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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DA MARGEM PARA O CENTRO: IMPORTÂNCIA DA PESQUISA COM O SEGMENTO
DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS FORA DO CIRCUITO
Tamires Barbosa Rossi Silva1
Resumo: Este trabalho explora a importância de pesquisas sobre a promoção de direitos das
travestis e transexuais e a militância em cidades de médio porte. Comumente as pesquisas tendem a
se centrar em cidades de grande porte, o que está relacionado com questões conjunturais destes
espaços, prioridade dos pesquisadores, e também com a localidade de algumas universidades. Além
disso, a origem de determinados movimentos, como o LGBT, é sempre contada a partir do eixo
Rio-São Paulo, o que impede uma percepção diversa sobre o movimento e as experiências da
militância; como é o caso dos cursinhos pré-enem voltado para travestis e transexuais realizados em
cidades de médio porte. Pensar a promoção de direitos das travestis e transexuais em outras
localidades, aporta dados novos e produz resultados originais que podem somar ás escassas
pesquisas do segmento. Especificamente, essa comunicação traz dados de pesquisas que não foram
centradas no eixo Rio-São Paulo; aponta como as pesquisas sobre o segmento de travestis e
transexuais do eixo Rio-São Paulo acabam criando “margens em relação a margens” (Bento, 2011);
e por fim, destaca a importância de pesquisas que não se dediquem apenas a explorar esses espaços
descentralizados, mas que construam objetos analíticos a partir de várias escalas, numa perspectiva
multissituada (Marcus, 2001).
Palavras-chave: pesquisa, travestis e transexuais, cidadania, militância.
Precisamos do poder das teorias críticas modernas sobre como significados e corpos são
construídos, não para negar significados e corpos, mas para viver em significados e corpos
que tenham a possibilidade de um futuro.
(Haraway, p. 16, 1995)
Introdução
Este trabalho é fruto de reflexões que surgiram durante a pesquisa que desenvolvi no
mestrado ao pesquisar a partir de cidades interioranas de Minas Gerais a construção de espaços
políticos nestas localidades e as políticas educacionais voltadas para as pessoas trans2. Através da
etnografia multissituada (Marcus, 2001) fui tomando contato com este universo e problematizando
algumas pesquisas já realizadas sobre tais temáticas.
1 Mestranda em ciências sociais pela Unesp-Marília, docente da rede pública do estado de Minas Gerai. 2 Termo guarda-chuva que busca abarcar travestis, mulheres e homens transexuais, a discussão conceitual da
terminologia será realizada posteriormente. Quando for utilizado a terminologia pessoas trans, estarei me referindo as
identidades que termo abarca. Já para me referir as experiências específicas utilizarei a terminologia própria.
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Comumente as pesquisas tendem a se centrar em cidades de grande porte, o que está
relacionado com questões conjunturais destes espaços, prioridade dos pesquisadores, e também com
a localidade de algumas universidades. Além disso, a origem de determinados movimentos, como o
LGBT, é sempre contada a partir do eixo Rio-São Paulo, o que impede uma percepção diversa sobre
o movimento e as suas experiências políticas.
Este artigo explora a importância de pesquisas sobre a promoção de direitos das pessoas
trans em cidades de médio porte. Pensar a promoção de direitos das pessoas trans em outras
localidades, aporta dados novos e produz resultados originais que podem somar ás pesquisas já
realizadas.
Assim, através de uma busca no banco de dados da Scielo, Google Acadêmico e o Portal
periódicos da Capes utilizando as palavras chaves travesti e interior, mapeei algumas pesquisas
sobre a vida de travestis que residem no interior e a característica destes trabalhos. Abordo tais
dados e aponto como as pesquisas sobre o segmento de travestis do eixo Rio-São Paulo acabam
criando margens em relação a outros espaços geográficos, no que se concerne à cidadania e outras
temáticas relevantes para as pessoas trans e por fim destaco a importância de pesquisas que se
dediquem a explorar esses espaços não investigados, mas que também analisem os dados
trabalhando com várias escalas analíticas, tal como numa perspectiva multissituada (Marcus, 2001).
O que se tem falado sobre o interior?
Quando iniciei minha incursão de campo no interior de Minas Gerais conheci Jacqueline, ao
me apresentar tentei deixar claro ao que se devia minha aproximação e o real interesse do meu
contato, ou seja, o que queria pesquisar e as motivações que me levaram a me interessar pela vida
de pessoas trans. Terminado o campo, repenso todos estes momentos de apresentação inicial as
minhas interlocutoras, vejo que naquele momento estava tão munida e armada de leituras de outras
experiências etnográficas que não me atinei a alguns detalhes importantes. Tais trabalhos falam de
lugares e momentos históricos específicos, assim discuto nessa seção, algumas características das
produções acadêmicas sobre questões trans realizadas nas últimas décadas, também aponto algumas
características de pesquisas que não foram centradas em cidades de grande porte e/ou centros
universitários.
Ao longo das últimas quatro décadas muitas pesquisas foram desenvolvidas em torno das
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questões trans,3 tais trabalhos foram importantes para retirar da marginalidade os referidos assuntos.
Pesquisas como as de Hélio Silva (2007) e de Don Kulick (2008) realizadas na década de 1990
foram significativas para a construção de tais temáticas enquanto objeto de estudo acadêmico. Um
fator que contribuiu para o aumento dos estudos de gênero e sexualidade foi a epidemia de aids nos
anos 90, surgiram diferentes pesquisas a respeito da questão da sexualidade, incluindo travestis,
lésbicas e gays. Inicialmente poucos trabalhos trouxeram a questão das travestis e suas
especificidades de gênero em relação às dinâmicas sociais ou com a epidemia. No entanto esses
estudos tiveram um papel “político” junto à academia: colocando as temáticas do corpo, do gênero e
da sexualidade em pauta. (Benedetti, 2005) O lugar de direitos alcançado pelas travestis e
transexuais na esfera pública esteve, nas últimas três décadas pelo mesmo, associado ao âmbito da
saúde, inicialmente centrada exclusivamente nas questões relativas às doenças sexualmente
transmissíveis e à aids e, mais recentemente têm se voltado, para a atenção ao processo de
feminilização. A saúde também tem se ocupado em discutir temas como violência policial,
hormonioterapia, articulação e manutenção de organizações políticas representativas, mercado de
trabalho, que, dada a abrangência não puderam ser tratados em toda sua profundidade por um único
setor. (Pelúcio, 2009) Tal característica também tem predominado no campo de pesquisa, no
entanto as várias pesquisas realizadas nas últimas décadas no campo do gênero e da sexualidade
contribuíram para potencializar um deslocamento do debate que estava centralizado no âmbito
biomédico para a linguagem dos direitos.(Carrara, Sérgio apud Piscitelli, 2014, p.7). Assim as
abordagens, que eram guiadas prioritariamente por conceitos das áreas médicas e psicológicas,
deram lugar a formulações teóricas que questionam a marginalidade das populações que vivem em
desacordo com normas hegemônicas de gênero e sexualidade. Diversas pesquisas se dedicaram a
constatar a exclusão de direitos sociais e civis que os sujeitos tidos como desviantes das normas de
gênero e sexualidade4 sofrem, as pesquisas de Marcos Benedeti (2005) William Peres (2005),
Marcos Roberto Vieira Garcia (2007) e Larissa Pelúcio (2009) são exemplos deste marco analítico.
Estas pesquisas possuem uma característica, se dedicam a explorar a questões concernentes
a vida de travestis e transexuais que residem em cidades de grande porte ou centros universitários. É
3 As pesquisas desenvolvidas em relação a travestilidade e transexualidade abordaram violência, as DST´s, AIDS, a
prostituição, a construção do corpo, transmigração, processo transexualizador, dentre outros. 4 Judith Butler (2000) (2008) mostra que a formação dos sujeitos exige uma identificação com a normativa do sexo, no
qual o imperativo heterossexual possibilita e nega algumas identificações sexuais. Essa normativa produz os gêneros
tido como “inteligíveis”, que são os que mantém uma relação de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática
sexual e desejo. Os sujeitos tidos como desviantes das normas de gênero e sexualidade são aqueles que não são
inteligíveis.
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esta característica de pesquisas que me preocupa neste artigo. Não quero ser anacrônica, nem
desconsiderar a localidade de grandes centros universitários, e a importância de tais análises, muitos
acadêmicos de diversas áreas de pesquisa saem de suas localidades para grandes centros
universitários e são compelidos a centrarem seus campos de estudo nestas localidades e seus
arredores, o que acaba produzindo uma extensa bibliografia de determinados espaços e uma
escassez de outros.
Através de um breve levantamento bibliográfico no banco de dados da Scielo, Google
Acadêmico e o Portal periódicos da Capes utilizando as palavras chaves travesti e interior,
identifico algumas pesquisas que se centraram em pesquisar em cidades do interior do país e
algumas de suas características para pensar as relações de poder que perpassam o ato de pesquisar e
questões que considero importante de serem analisadas.
Privilegiei neste levantamento trabalhos de mestrado e/ou doutorado sobre tais temáticas, no
entanto minha preocupação não é sobre acumular citações de trabalhos para defender minha
hipótese, pois o argumento e o questionamento que proponho tem sua importância independente da
quantidade de citações; o significativo é jogar luzes sobre o problema norteador deste artigo, que é
o quanto pesquisas que se centram em uma única escala podem produzir um discurso normativo.
A dissertação de Luiz Henrique Miguel (2015) “Gerações travestis: Corpo, subjetividade e
geracionalidade entre travestis do interior de São Paulo” que busca compreender como a diferentes
gerações de travestis que se prostituem no interior de São Paulo, especificamente São Carlos e
Ribeirão Preto, constroem seus corpos e subjetividades, a sua escolha destes lócus de pesquisa se
deu através de fatores econômicos, pois tais cidades possuem um fluxo migratório e econômico
importante, além da proximidade da universidade na qual a pesquisa foi desenvolvida. Já o artigo
“O sexo sem lei, o poder sem rei: sexualidade, gênero e identidade no cotidiano travesti de Luciene
Jimenez e Rubens C. F. Adorno (2009) aborda a história de vida de três irmãos homossexuais
nascidos no interior do nordeste brasileiro, mas que migraram para São Paulo onde tornaram
travestis e profissionais do sexo. Assim, os autores abordam como se deu a construção identitária
destes sujeitos. Enquanto a dissertação de Thiago Teixeira Sabatine (2013) “Travestis, territórios e
prevenção de AIDS numa cidade do interior de São Paulo” procurou compreender as ações de
promoção para saúde e qualidade de vida de travestis prostitutas. Neste contexto afim de abordar de
modo mais detalhado a cidade, o autor atribuiu um nome fantasia para a cidade. O artigo de
Martinho Tota (2015) “Cinco vidas: Travestilidades, gênero, sexualidades e etnicidades no interior
da Paraíba”, que é fruto de sua tese de doutorado, também promove o deslocamento dos grandes
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centros, a partir das histórias de vida de cinco travestis indígenas, habitantes de cidades do interior
do estado da Paraíba. Por fim a dissertação de “Localidade ou metrópole?: demonstrando a
capacidade de atuação política das travestis no mundo-comunidade” de Luana Mirella (2010) trata
de casos de travestis que atuam politicamente no interior do Piauí, mostrando que mesmo em uma
cena aparentemente atrasada e resistente à modernidade, podemos encontrar um maior pluralismo
sexual, Mirella questiona as relações de poder que configuram o eixo Sul-São Paulo superior do
ponto de vista econômico e cultural em relação aos outros estados.
Destes cinco trabalhos encontrados, todos se propõem a pensar questões trans a partir de
lugares, experiências não centralizadas. Há ainda nestes trabalhos uma preocupação com a questão
da prostituição e a saúde, embora este binômio ainda seja importante para pensar as questões trans,
há de se questionar a centralidade que estes possuem. Além disso, o espaço da prostituição não é
mais o único espaço importante para a constituição da travestilidade. Késia Melo (2016)
acompanhou em sua pesquisa que os contatos de técnicas de modificação corporal de algumas de
suas interlocutoras que ocorreram através de grupos no Facebook. Isto não significa que o espaço
da prostituição perdeu a sua importância, mas não é mais o único espaço de constituição de
sociabilidade trans. Há nestas pesquisas rastros da epidemia de aids dos anos 90, assim como a
manutenção das temáticas da prostituição e questões identitárias, embora tais temáticas sejam
relevantes é importante pensar outros temas balizadores no interior, tais como o acesso a política e a
militância.
A pesquisa de Sabatine (2013) exigiu que não se nomeasse a localidade pesquisada, tal
técnica é uma saída estratégica para tratar temas específicos, quando pensamos a questão do acesso
a direitos e os movimentos sociais tais temáticas podem esbarrar em problemas éticos com muito
mais facilidade do que em outras temáticas podendo ocorrer negações de entrevistas e/ou de uso de
dados, assim tais demandas éticas exigem que o pesquisador utilize tal saída para constituição do
texto e abordagem das problemáticas. Cada trabalho etnográfico lida com seus problemas de forma
específica, ou o próprio campo se organiza de forma que o pesquisador lide com os dados que o
campo oferece, o campo de pesquisa nas ciências humanas não é um todo organizado e metódico,
ele por vezes surpreende o pesquisador com temáticas que não estavam elencadas inicialmente.
O trabalho de Tota (2015) e de Mirella (2010) se preocupam com o deslocamento centro-
periferia, apontando a importância de pesquisas que se centrem em questões relativas a pessoas
trans fora dos grandes centros e do que já tem sido repetidamente produzido no campo acadêmico
nos últimos anos; os demais embora tenham se centrado em compreender lugares não centrais e as
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questões trans nestes contextos, não tem como preocupação esse deslocamento. Tais pesquisas,
mesmo que não possuam a preocupação do deslocamento, são um importante acervo de como a
vida de pessoas trans tem significado em contextos fora dos grandes centros. Acervo este que pode
ser consultado e seus dados relacionados e analisados. Narrativas etnográficas partindo de lugares
específicos, é importante, falar sobre vidas que não se apoiam em marcos normativos é um ato
político. Existem temáticas, que ainda são caras as pessoas trans, pois ocupam um lugar marginal
nas interações e no imaginário social. Investigar o acesso à saúde, a educação, segurança pública e
moradia, ainda é relevante; pois este acesso ainda é precário, tais temáticas são ainda
marginalizadas, embora sejam objetos de questionamento em algumas pesquisas. Com exceção do
trabalho de Mirella (2010), não há uma preocupação em discutir as relações de poder e a relação da
escala micro com as questões macro. O interior, as margens ainda carecem de fotografias.
Margem da margem? É possível?
Berenice Bento (2011) ao fazer uma breve revisão bibliográfica sobre pesquisas
relacionadas a sexualidade, homossexualidade, transexualidade, indicou mecanismos de
funcionamento das margens, donde é possível perceber que mesmo entre os sujeitos que não se
identificam com a heterossexualidade compulsória há uma produção de normatizações, assim:
Para além de pensar o feminino como uma estrutura que se desloca entre os corpos, essas
pesquisas também nos revelam as margens produzidas dentro das margens e como a
binariedade margem versus centro é mais uma das dicotomias enganosas. No entanto, essa
afirmação não pode ser diluída em uma despolitização e o apagamento das violências
contra gays, lésbicas, travestis, transexuais, os meninos femininos e os intersexos. (p.98)
Este mesmo mecanismo de produção de “margem entre as margens” identificado dentro das
revisões bibliográficas feitas por Bento (2011), também opera nas produções acadêmicas. Pesquisas
que tratem a respeito de condições de vida de pessoas trans, constituição de identidade, as
violências que estes sujeitos são submetidos, se configuram como análises que abordam temáticas
marginais, são trabalhos que olham para a fronteira, mas nem sempre feitos na fronteira. Assim,
como a travestilidade não pode ser tomada como única, os resultados das pesquisas devem ser
vistos como processos analíticos que estão em constante produção e modificação, sendo resultados
heterogêneos, diversificados, que possuem temporalidades e localidades.
Edward Said (2007) aborda a relação entre Oriente versus Ocidente, apontando como é
“uma relação de poder, de dominação, de graus variáveis de uma hegemonia complexa, (...)” (p.
32) Entendo que relação de poder semelhante existe na relação entre as cidades brasileiras de
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grande porte que abarcam renomadas universidades em relação a cidades interioranas que não
possuem uma rede de ensino e pesquisa já consolidada. Said propõe que se repense a complexidade
da relação entre o conhecimento e o poder, para que se possa a estudar e compreender outras
culturas de modo libertário, não repressivo e não manipulador.
Claudia de Lima Costa (1997) ao pensar o sujeito do feminismo utiliza a obra de Said,
propondo que:
Creio que paralelo semelhante poderia ser traçado em relação as narrativas da teoria
feminista ocidental. As vozes e as lutas daquelas outras, subalternas, (in)apropriadas, que
ficaram do outro lado da divisão do Império, soaram, no contexto pós-colonial, alto o
suficiente para subverter e fragmentar a hegemonia de um tipo de narrativa feminista que,
tal qual o discurso orientalista analisado por Said, construiu imagens universais da “outra”
enquanto legitimava o exercício de “um tipo específico de poder em definir, codificar e
manter conexões existentes entre o primeiro e o terceiro mundo.” Com o pós-colonialismo,
uma heteroglossia de linguagens e uma multiplicidade de representações (e auto –
representações) proliferaram dentro das teorias feministas juntamente com o surgimento, a
nível político, de vários novos movimentos sociais interrogando, entre outras coisas, os
paradigmas epistemológicos ocidentais. Dos fragmentos das metanarrativas surgem outros
conhecimentos (parciais, situados) apoiados nas diversas condições de determinação que
estruturam diferentes experiências (de raça, de gênero, de classe, de orientação sexual, de
geração, de etnia etc.)´para diferentes sujeitos em conjunturas históricas, materiais e
libidinais variadas e díspares. Estes irão, por sua vez, moldar consciências e visões de
mundo, isto é, unidades – na diferença. (p. 134)
Afirmo neste trabalho que a produção cientifica a partir das cidades brasileiras de grande
porte que abarcam renomadas universidades contribui para a afirmação de uma perspectiva analítica
eurocêntrica, tornando determinados espaços analíticos e determinadas teorias, a “nossa europa”. O
eurocentrismo não é uma perspectiva de pensamento exclusiva dos europeus, mas de todos que são
influenciados por tal hegemonia (Quijano, 2014). O eurocentrismo é responsável por produzir a
condição de colonialidade que:
Se funda en la imposición de una clasificación racial / étnica de la población del mundo
como piedra angular de dicho patrón de poder, y opera en cada uno de los planos, ámbitos y
dimensiones, materiales y subjetivas, de la existencia cotidiana y a escala social. (p.287)
Aponto que a centralidade de analítica de algumas pesquisas é uma perspectiva de
colonialidade, pois se cria hierarquizações discursivas e analíticas, o que sustenta a relação de
dominação, que hierarquiza as experiências que se dão em outras localidades.
Assim, como as temáticas trans estão marginalizadas, a produção em determinados espaços
também é marginal e caso procedimento de marginalização da margem não seja identificado se
incorre o risco de moldar concepções de mundo estanques e essencializadas acerca de tais assuntos.
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Afim de fugir do risco da essencialização e de pensar a sobre a importância de
conhecimentos situados, me refiro ao texto de Donna Haraway (1995) “Saberes localizados: a
questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Haraway aborda a
falácia da objetividade e do relativismo, na qual fomos convencidos sobre a importância da busca
da objetividade na ciência, demanda que tem acuado as mulheres, fazendo as conformar com a fala
cínicas de cientistas que “contam fábulas sobre a objetividade e o método científico para
estudantes nos primeiros anos de iniciação, mas nenhum praticante das altas artes científicas
jamais seria apanhado pondo em prática as versões dos manuais.” (p. 9) A proposta de Haraway
(1995) para este campo de poder no qual a ciência se configura, é a construção de uma ciência
feminista que seja capaz de oferecer uma explicação rica e mais adequada do mundo, que possa
proporcionar uma relação crítica e reflexiva sobre as práticas de dominação, privilégio e opressão
que todos sujeitos possuem:
Assim, creio que o meu e o "nosso" problema é como ter, simultaneamente, uma explicação
da contingência histórica radical sobre todo conhecimento postulado e todos os sujeitos
cognoscentes, uma prática crítica de reconhecimento de nossas próprias "tecnologias
semióticas" para a construção de sentido, e um compromisso a sério com explicações fiéis
de um mundo "real", um mundo que possa ser parcialmente compartilhado e amistoso em
relação a projetos terrestres de liberdade finita, abundância material adequada, sofrimento
reduzido e felicidade limitada. (p. 15 e 16)
Tal projeto de ciência feminista que Haraway defende, aponta a constituição de uma
objetividade feminista, que é a condição para a existência dos saberes localizados. Posicionar é a
chave do conhecimento, a partir dessa prática é possível organizar o discurso cientifico e filosófico
ocidental “ Posicionar-se implica em responsabilidade por nossas práticas capacitadoras. Em
consequência, a política e a ética são a base das lutas pela contestação a respeito do que pode ter
vigência como conhecimento racional.” (p. 27)
Desfechos: Qual é a saída para pensar a margem?
As margens não estão numa escala inferior de condições políticas, elas não irão caminhar
numa perspectiva evolutiva para as condições tidas como desenvolvidas. Afinal como explicar a
que primeira vereadora travesti no Brasil, Katia Tapety, é do Piaui ? (Mirella, 2010) Não deveria ser
do Sudeste, já que a localidade se encontra mais “desenvolvida”? Será que a inexistência de
pesquisas sobre saúde, educação, segurança em cidades não centrais se deve a inexistência de
condições de acesso a saúde, educação, segurança? Mas quais estéticas têm sido possíveis neste
espaço de inexistência de direito? Seria tais trabalhos desenvolvidos até agora uma ficção?
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As relações interioranas possuem incongruências com o que é desenvolvido nas regiões
centralizadas. O interior não caminha para o desenvolvimento, claro que existem relações de poder
que podem tornar a vida mais dura nestas localidades, afinal são inúmeros fatores que possibilitam
condições políticas e sociais mais favoráveis, e raramente essas condições são objetos analíticos.
Por vezes essa condição mais favorável pode se constituir uma grande falácia. Mas a única forma de
obter uma fotografia do interior é torna-lo objeto analítico.
É preciso enunciar, deixar claro o lugar que se fala, pensar em como as questões políticas
afetam o fazer cientifico. Haraway (1995) aponta que o conhecimento situado deve estar em tensão
com as estruturações produtivas. É ver como esse saber localizado também toca no campo das
emissões globais:
Estou argumentando a favor de políticas e epistemologias de alocação, posicionamento e
situação nas quais parcialidade e não universalidade é a condição de ser ouvido nas
propostas a fazer de conhecimento racional. São propostas a respeito da vida das pessoas; a
visão desde um corpo, sempre um corpo complexo, contraditório, estruturante e
estruturado, versus a visão de cima, de lugar nenhum, do simplismo. (p. 30)
Ver as conexões as disjunções e interstícios, não é ver o global e o local de forma
dicotômica. O global nem sempre constitui o local e vice-versa, mas estes em alguns momentos
dialogam e se entrecruzam.
A questão do lugar de enunciação, deve levar em conta alguns aspectos para entender o que
é o lugar, o lugar não deve ser entendido a partir de categorias ontológicas, o lugar de enunciação
surge da experiência concreta, e a experiência não possui uma essência. O lugar possui tensões,
fraturas e tensões que não podem ser representadas por um modelo binário de relações de poder. A
fronteira, o lugar precisa de materialidade pois é uma questão política, não poética (Costa, 1997)
A importância de pesquisas que se dediquem a explorar esses espaços não investigados, mas
que também analisem os dados trabalhando com várias escalas analíticas, numa perspectiva
multissituada, o deslocamento de escalas pode oferecer análises mais profícuas. As relações de
poder na antropologia também tem sido objeto de questionamento e de fraturas dentro deste campo
cientifico.
A antropologia tem elaborado vários conceitos e paradigmas, abrindo novas áreas de
investigação, mas mantendo a sua preocupação com a diversidade. Nos anos 70, a cidade começou
a fornecer novos temas e objetos para serem estudados pela antropologia (Magnani,1996). Dentre as
temáticas fornecidas, encontramos os estudos de gênero e sexualidade. Durante muito tempo as
pesquisas tinham como característica a centralidade em determinados objetos ou localidades. No
entanto, nos anos 80, o debate etnográfico, é norteado pelo paradigma pós-moderno, a etnografia se
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desdobraria em uma multiplicidade de interpretações, outros modelos de autoridade etnográfica
surgem, assim como uma preocupação com os recursos retóricos presentes no modelo textual das
etnografias clássicas e contemporâneas. A etnografia nessa perspectiva passa a ser uma das
representações culturais possíveis. É nessa perspectiva de prática antropológica que destaco como
metodologia importante para o questionamento situado neste artigo.
A crítica pós-moderna, leva em conta as relações de poder, os seus jogos e como a
antropologia interpretativa tornava a cultura um conceito essencializado. Segundo Patrícia Jordão
(2004) a crítica contemporânea a respeito da etnografia, tem levado em conta o modo em como os
antropólogos têm aparecidos nos trabalhos etnográficos, a relação entre os antropólogos, o texto e
sujeito de pesquisa. Tal critica tem quebrado textos que ainda estão comprometidos com o
positivismo, assim outros métodos e técnicas tem aparecido para se pensar essa nova realidade.
Jordão (2004) faz a divisão da antropologia pós-moderna americana em três perspectivas de
crítica, embora este tipo de divisão não comporte todos os autores possíveis, são elas: 1) Meta-
etnografia ou meta-antropologia, estuda a etnografia como um texto e gênero literário, apontando
outras possibilidades de escrita etnográfica. 2) Etnografia experimental busca redefinir as maneiras
de se fazer a observação participante no trabalho de campo e na sua relação com os sujeitos
pesquisados. 3) A terceira corrente é mais extrema e de vanguarda, está voltada para as questões
referentes à crise da ciência, buscando uma ruptura com o fazer antropológico que foi constituído
até então.
A perspectiva etnográfica, a meta-etnografia, especificamente a etnografia multissituada na
perspectiva de George Marcus (2011) discute como construir uma prática etnográfica que exceda o
espaço pesquisado, não é somente pesquisar na aldeia, mas articular o local com um sistema social
mais abrangente que está envolvido.
Pesquisas que se centram em uma única escala podem produzir um discurso normativo? Não
e sim, pois a produção de normatividade não perpassa apenas pela discussão de falar de vários
pontos de vista é possível realizar uma pesquisa em várias escalas analíticas e produzir
normatividades. A etnografia multissituada é uma ferramenta que pode ser utilizada para pensar tais
relações de poder.
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FROM THE MARGIN TO THE CENTER: IMPORTANCE OF THE RESEARCH WITH
THE SEGMENT OF TRANSVESTITES AND TRANSSEXUALS OUTSIDE THE CIRCUIT
Astract: This paper explores the importance of research on the promotion of transvestite and
transsexual rights and militancy in medium-sized cities. Usually research tends to focus on large
cities, which is related to the conjunctural issues of these spaces, the priority of the researchers, and
also with the locality of some universities. In addition, the origin of certain movements, such as
LGBT, is always counted from the Rio-São Paulo axis, which prevents a different perception about
the movement and the experiences of militancy; As is the case of the preparatory courses at
transvestites and transsexuals in medium-sized cities. Thinking about the rights of transvestites and
transsexuals in other places, brings new data and produces original results that may add to the
limited research in the segment. Specifically, this communication brings data from surveys that
were not centered on the Rio-São Paulo axis; Points out how research on the segment of
transvestites and transsexuals of the Rio-São Paulo axis end up creating "margins in relation to
margins" (Bento, 2011); Finally, it emphasizes the importance of researches that are not only
dedicated to exploring these decentralized spaces but which construct analytical objects from
several scales in a multisituated perspective (Marcus, 2001).
Keywords: Research, transvestites and transsexuals, citizenship, militancy.