DA MATTA, Roberto; Relativizando - Uma Introdução à Antropologia Social (Parte I)

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-Ex.3: 9'059

ELATIVIZANDOl)MA INTRODUÇÃOA ANTROPOLOGIA SOCIAL

obertoDoMotto

ESAMC

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PRIMEIRA PARTE:

A ANTROPOLOGIA NO QUADRODAS CIÊNCIAS

1. Ciências Naturais e Ciências Sociais

Nenhum filósofo ou teórico da ciência deixou de se preocuparom as semelhanças e diferenças entre as chamadas «ciências

da natureza» ou «ciências naturais», com a Física, a Química,H Biologia, a Astronomia etc., e as disciplinas voltadas parao estudo da realidade humana e social, as chamadas «ciências<Ia sociedade», «ciências sociais», ou, ainda, as «ciências hu-manas». Como tais diferenças são legião, não caberia aquinrrolá-las ou indicá-Ias de um ponto de vista histórico. Isso

ria uma tarefa para um historiador da ciência e não para11m antropólogo. Apenas desejaria ressaltar, já que o pontom parece básico quando se busca situar a Antropologia

ial (ou Cultural) no corpo das outras ciências, que elasc I geral tocam em dois problemas fundamentais e de perto1'1 lacionados. Um deles diz respeito ao fato de que as cha-mudas «ciências naturais» estudam fatos simples, eventosuu presumivelmente têm causas simples e são facilmente

roláveís. Tais fenômenos seriam, por isso mesmo, recorreu-II li e sincrônicos, isto é, eles estariam ocorrendo agora mes-1110, enquanto eu escrevo estas linhas e você, leitor, as lê.

matéria-prima da «ciência natural», portanto, é todo oIlonjunto de fatos que se repetem e têm uma constância ver-dnd iramente sistêmica, já que podem ser vistos, isolados e,Hwdm,reproduzidos dentro de condições de controle razoáveis,1IIIIn laboratório. Por isso se diz repetidamente que o pro-1,11 m da ciência em geral não é o de desenvolver teorias,'111 fi o de testá-Ias. E o teste que melhor se pode imaginar

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e realizar é aquele que pode ser repetido indefinidamente,até que todas as condições e exigências dos observadoresestejam preenchidas satisfatoriamente. Além disso, a simpli-cidade, a sincronia e a repetitividade asseguram um outroelemento fundamental das «ciências naturais», qual seja: ofato de que a prova o.u o teste de uma dada teoria possaser feita por dois observadores diferentes, situados em locaisdiversos e até mesmo com perspectivas opostas. O labora-tório assegura de certo modo tal condição de «objetividades,um outro elemento crítico na definição da «ciência» e da«ciência natural». Assim, um cientista natural pode presen-ciar os modos de reprodução de formigas (já que pode terum formigueiro no seu laboratório) , pode estudar os efeitosde um dado conjunto de antícorpos em ratos e pode, ainda,analisar o quanto quiser a composição de um dado raioluminoso.

Em contraste com isso, as chamadas «ciências sociais»estudam fenômenos complexos, situados em planos de causa-lidade e determinação complicados. Nos eventos que consti-tuem a matéria-prima do antropólogo, do sociólogo, do his-toriador, do cientista político, do economista e do psicólogo,não é fácil isolar causas e motivações exclusivas. Mesmoquando o «sujeito» está apenas desejando realizar uma açãoaparentemente inocente e basicamente simples, como o atode comer um bolo. Pois um bolo pode ser comido porquese tem fome e pode ser comido por «motivos sociais e psi-cológicos»: para demonstrar solidariedade a uma pessoa ougrupo, para comemorar uma certa data (como ocorre numaniversário), para revelar que o bolo feito por mamãe émelhor do que o bolo feito por D. Yolanda, para indicar quese conhecem bolos, para justificar uma certa atitude e, ainda,por todos esses motivos juntos. Para que se tenha uma provaclara destas complicações, basta parar de ler esse trecho eperguntar a uma pessoa próxima: «por que se come um bolo 7»Verá o leitor que as respostas em geral colocam toda essaproblemática na superfície, sendo difícil desenvolver umateoria que venha a determinar com precisão uma causa únicaou uma motivação exclusiva.

A matéria-prima das «ciências sociais», assim, são even-tos com determinações complicadas e que podem ocorrer emambientes diferenciados tendo, por causa disso, a possibíli-

dade de mudar seu significado de acordo com o ator, asrelações existentes num dado momento e, ainda, com a suaposição numa cadeia de eventos anteriores e posteriores. Umbolo comido no final de uma refeição é algo que denomina-mos de «sobremesa», tendo o significado social de «fechar»ou arrematar uma refeição anterior, considerada como prin-cipal, constituída de pratos salgados. O salgado, assim, ante-cede o doce, sendo considerado por nós separado e maissubstancial que os doces. Agora, um bolo que é comido nomeio do dia pode ser sinal (ou sintoma) de um desarranjopsicológico, como acontece com as pessoas que comem com-pulsivamente. Finalmente, um bolo que é o centro de umareunião, que serve mesmo como motivação para o convitequando se diz: «venha comer um bolo com o Serginho», éum bolo com um significado todo especial. Aqui, ele se tornaum símbolo importante, cuja análise pode revelar ligaçõessurpreendentes com a passagem da idade, com as relaçõesentre gerações, identidades sexuais etc,

Mas, além disso, os eventos que servem de foco ao «cien-tista social» são fatos que não estão mais ocorrendo entrenós ou que não podem ser reproduzidos em condições con-troladas. De fato, como poderemos nós reproduzir a festa doaniversário do Serginho 7 Ou o ritual do Carnaval que ocorreuem 1977 no Rio de Janeiro? Mesmo que possamos reuniros mesmos personagens, músicas, comidas, vestes e mobiliá-rio do passado, ainda assim podemos dizer que está faltandoalguma coisa: a atmosfera da época, o clima do momento.Enfim, o conjunto criado pela ocasião social que de certomodo decola dela e, recaindo sobre ela, provoca o que po-demos chamar de «sobredeterminações», como a imagem pro-jetada numa tela ou num espelho. Diferentemente de umrato reagindo a um anticorpo num laboratório, o aniversâ-rio (e todas as ocasiões sociais fechadas) cria o seu próprio'Plano social, podendo ser diferenciado de todos os outros,mbora guarde com ele semelhanças estruturais. Esse plano

<10reflexo, da circularidade e da sobredeterminação me pa-I' ce essencial na definição do objeto da Antropologia Social( da Sociologia) e eu voltarei a ele inúmeras vezes no de-e rrer deste volume. Agora, basta que se acentue o seu cará-(. r de modo ligeiro, somente para revelar como as situaçõestI< iais são complexas e de difícil controle, quando as com-

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raramos com os laboratórios onde os biólogos, quimicos efísicos realizam suas experiências. Realmente, tudo indicaque entre as Ciências Sociais e as Ciências Naturaís temosóIDa relação invertida, a saber: se nas «ciências naturais»(1S fenômenos podem ser percebidos, divididos, classificadose explicados dentro de condições de relativo controle e em~ondições de laboratório, objetivamente, existem problemasformidáveis no que diz respeito à aplicação e até mesmo nadivulgação destes estudos. Na maioria dos casos, o cientista:r:latural resolve um problema simplesmente para criar tecno-jogias indesejáveis e, a longo prazo, mortíferas e daninhas~o próprio ser humano. Isso para não falarmos em desco-}Jertas que podem trazer ameaças diretas à própria vida e9 dignidade do homem por seu uso inescrupuloso na árear1lilitar. Nada mais simples e bem-vindo do que o isolamentode um vírus e nada mais complexo do que esse próprio iso-lamento permitindo a realização de guerras bacteriológicas~ de contaminação.

No caso do cientista social, as condições de percepção,ólassificação e interpretação são complexos, mas os resulta-dos em geral não têm conseqüências na mesma proporçãoda «ciência natural». São poucas as teorias sociais que aca-}Jaram tornando-se credos ideológicos, como o racismo e aluta de classes, adotados por nações e transformados em va-lores nacionais. As mais das vezes, as chamadas teorias so-óiais são racionalizações ou perspectivas mais acuradas paraproblemas que percebemos, ainda que tais problemas nãosejam realmente «objetivados» com muita clareza. Neste sen-tido, o cientista social tende a reduzir problemas correndomesmo o risco de simplificar demais as motivações de certos~ventos observáveis numa sociedade ou época histórica. Masraramente seus resultados podem ser transformados em tec-Ilologia e, assim, podem atuar diretamente sobre o mundo.}!.:mgeral, o resultado prático do trabalho do cientista socialé visto fora do domínio científico e tecnológico, na regiãodas «artes»: nos filmes, peças de teatro, novelas, romancese contos, onde as idéias de certas pesquisas podem ser «aplí-(ladas», produzindo modificações no comportamento social.I\1as é preciso observar que é mais fácil trocar de automó-velou de televisão e aceitar inovações tecnológicas (taisinovações fazem parte do nosso sistema de valores), do quetrocar de valores simbólicos ou políticos.

Mas voltemos ao ponto já colocado. Vimos que uma dasdiferenças básicas entre os dois ramos de conhecimento eraque os fatos sociais são, geralmente, irreproduzíveis em con-dições controladas .. Ê claro que ações sociais podem ser re-produzidas no teatro e no cinema, mas aqui a distância quexiste entre o ator e o personagem recriado é um dado que

v·m modificar substancialmente a situação. Além disso, osutores seguem um texto explicitamente dado, enquanto quenós, atores fora do palco, seguimos um texto implicitamentedado que a pesquisa por causa disso mesmo deseja descobrir.

problema básico, assim, continua: os fatos sociais sãorreproduzíveis em condições controladas e, por isso, quase

HCIDprefazem parte do passado. São eventos a rigor histó-ricos e apresentados de modo descritivo e narrativo, nuncana forma de uma experiência. Realmente, não posso ver e.ortamente jamais verei uma expedição de troca do tipokula, tão esplendidamente descrita por Malinowski; ou umdto de iniciação dos Canela do Brasil Central que Nimuen-daju narrou com tanta minúcia. Do mesmo modo, não possosaber jamais como se sente alguém diante dos eventos crí-Li 'os da Revolução Francesa ou como foram os dias quenntecederam a proclamação da República no Brasil. Podemos,obviamente, reconstruir tais realidades (ou pedaços de rea-lldade) , mas jamais clamar que nossa reconstrução é a «ver-dadeira», que foi capaz de incluir todos os fatos e que com-nr endemos perfeitamente bem todo o processo em questão.'l'ul totalização é impossível, embora possa ser um alvo de-H jável para muitos cientistas sociais. Mas nós sabemos muitoli m a diferença que existe entre a teoria das ondas hertzianas( um rádio transmissor e receptor, que são aparelhos queum físico conhece totalmente e os pode fabricar. Por issoI que existe uma ligação direta entre ciências naturais e1.( mología. E a nossa relação com um evento complexo comoIL Revolução Russa ou mesmo o problema do incesto, fatosnocíais que nós podemos conhecer bem, mas com que man-I. mos sempre uma relação complicada, como se, entre o acon-1.(, 'imento e nós, existissem zonas conhecidas e áreas profun-das, insondáveis, Nossas reconstruções, assim, diferentementedl\C'(uelasrealizadas pelos cientistas naturais, são sempre par-(' ais, dependendo de documentos, observações, sensibilidadeI 1erspectivas. Tudo isso que pode utilizar os dados dispo-

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níveis ou solicitar novos dados ainda não vistos. É por causadisso que nossas teorias, digamos, do incesto, não são capa-zes de gerar uma tecnologia do incesto. Podem .gerar tera-pias. mas, mesmo aqui, nosso conhecimento continua funda-do num processo complexo, nunca numa relação como aquelaque existe entre um químico e as drogas que pode fabricar.

Os fatos que formam a matéria-prima das «ciências so-ciais» são, pois, fenômenos complexos, geralmente impossíveisde serem reproduzidos, embora possam ser observados. Po-demos observar funerais, aniversários, rituais de iniciação,trocas comerciais, proclamações de leis e, com um pouco ,desorte, heresias, perseguições, revoluções e incestos; mas, alemde não poder reproduzir tais eventos, temos de :nfr~ntar anossa própria posição, história biográfica, educação, ínteres-ses e preconceitos. O problema não é o de somente re-produzir e observar o fenômeno, mas substancialmente ode como observá-lo. Todos os fenômenos que são hoje partee parcela das chamadas ciências sociais são fatos conhecidosdesde que a primeira sociedade foi fundada, mas nem se~-pre existiu uma ciência social. Assim, classes de homens di-versos observaram fatos e os registraram de modo diverso,segundo os seus interesses e motivações; de acordo com aqui-lo que julgavam importante. O processo de acumulação quetipifica o processo científico é algo lento em todos os ra~osdo conhecimento, mas muito mais lento nas chamadas cien-cias do homem.

o iorre nos desenhos animados e nos contos de fadas, comourna réplica da sociedade humana. Embora possa incorporar118 baleias ao reino do humano, poderei imaginar o queI ntem realmente esses cetáceos ? É claro que não. Essad tância irremediável dada ao fato de que jamais poderei1,0 nar-me uma baleia é que permite jogar com a dícoto-mia clássica da ciência: aquela entre suj eito (que conheceou busca conhecer) e objeto (a chamada realidade ou o" nômeno sob escrutínio do cientista). As teorias e os mé-todos científicos são, nesta perspectiva, os mediadores queI) rmitem operar essa aproximação, construindo uma ponteentre nós e o mundo das baleias.

Mas, ao lado disso, há um outro dado crucíal, Ê que eunos o dizer tudo o que quiser em relação às baleias saben-do que elas jamais irão me contestar. Poderei, é claro, serIlontestado por um outro estudioso de baleias, mas jamais11 Ias baleias mesmas. Estas continuarão a viver no imenso()' ano de águas frias, nadando em grupos e borrifando(H1)uma independentemente das minhas deduções e teorias.IHHO significa simplesmente que o meu conhecimento sobreli/! baleias não será jamais lido pelas baleias que jamaisI' O modificar o seu comportamento por causa das minhas

I,oorias de modo direto. Minhas teorias poderão ser usadasPOI' mim mesmo ou por terceiros para modificar o compor-I.nrn nto das baleias, mas elas nunca serão usadas direta-1111 nte pelas baleias, Em outras palavras, nunca me torna-1'0 um cetáceo, do mesmo modo que um cetáceo nunca po-!I(\I'Ú virar um membro da espécie humana. ,É por causa dissotil/( teorias sobre baleias e sapos são teorias, isto é, conhe-I' 11'1 nto objetivo, externo, independente de baleias, sapos e

11vo tigadores.Mas como se passam as coisas no caso das «ciências

melaís» ?ra, aqui é tudo muito mais complexo. Temos, em pri-

11111 ro lugar, a interação complexa entre o investigador e oli, ('!to investigado, ambos - como disse Léví-Strauss _I tundos numa mesma escala. Ou seja, tanto o pesquisador

Ifll/ nto sua vítima compartilham, embora muitas vezes nãoI iomuniquem, de um mesmo universo das experiências hu-

11II111ItS. Se entre nós e os ratos as diferenças são irredutí-'i I, homens e ratos pertencem a espécies diferentes, sabe-

2. Uma Diferença Crucial

Mas de todas essas diferenças a que considero mais fun-damental é a seguinte: nas ciências sociais trabalhamos comfenômenos que estão bem perto de nós, pois pret,endemosestudar eventos humanos, fatos que nos pertencem integral-mente. O que significa isso?

Tomemos um exemplo. Quando eu estudo baleias, estudoalgo radicalmente diferente de mim, Algo que ?OSSO perce-ber como distante e com quem estabeleço facilmente umarelação de «objetividade». Não posso imaginar o ~niversointerior de uma baleia, embora possa tomar as baleias pararealizar com elas um exercício humanizador, situando-as como

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mos que os homens não se separam por meio de espécies,mas pela organização de suas experiências, por sua históriae pelo modo com que classificam suas realidades internase externas. Por causa disso ninguém pode virar baleia, ratoou leão, mas todos podemos nos tranformar em membrosde outras sociedades, adotando seus costumes, categorias depensamento e classificação social, casando com suas mulhe-res e socializando seus filhos. Rezando aos seus espíritos edeuses, aplacando a ira e agradecendo as bênçãos dos seusancestrais, obedecendo ou modificando suas leis, falando bemou mal sua língua. Apesar das diferenças e por causa delas,nós sempre nos reconhecemos nos outros e eu estou incli-nado a acreditar que a distância é o elemento fundamentalna percepção da igualdade entre os homens. Deste modo,quando vej o um costume diferente é que acabo reconhecendo,pelo contraste, meu próprio costume.

Quando estudei os nomes pessoais entre os Apinayé doNorte do Estado de Goiás e vi que, entre eles, os nomeseram mecanismos para estabelecer relações sociais, foi quepude reconhecer imediatamente o papel dos nomes entre nós.Aqui, percebi, os nomes servem para individualizar, paraisolar uma pessoa das outras e, assim fazendo, individuali-zar um grupo (uma família) de outro. O nome caracterizao indivíduo, pois os nomes são únicos e exclusivos, com otermo xará demonstrando a surpresa que dois ou mais no-mes idênticos podem causar. Lembro que a palavra xará éde origem tupi e significava originalmente «meu nome». Elatem assim a virtude de relacionar dois indivíduos cujosnomes são comuns, indicando, junto com a boa surpresa,algo que talvez não devesse ocorrer, pois o nome tem umcaráter exclusivo na nossa sociedade. Entre os Apinayé eos Timbira em geral, porém, os nomes não individualizammas, muito ao contrário, estabelecem relações muito impor-tantes entre um tio materno e o sobrinho, já que ali os nomessão sistematicamente transmitidos dentro de certas linhas deparentesco. Os genitores jamais devem dar os nomes aos seusfilhos que sempre os devem receber de parentes situados emcertas posições genealógicas, entre as quais se destaca a dotio materno. De acordo ainda com essa lógica, os nomessempre devem passar de homem para homem e de mulherpara mulher, algo bem diferente do que ocorre em nosso

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III io, onde eles são transmitidos obedecendo a uma lógica11 ssoal e fundada numa livre escolha. Se tirarmos o sobre-nome, o nome de família, que legitima direitos a propríeda-dt, o nome próprio ou primeiro nome é algo que pode variarIIUlÍto quando é escolhido e dado. De fato, falamos em «darum nome à criança»; quando na sociedade Timbira é muito1I1l\isapropriado falar-se em transmissão de nomes, ato quer', V Ia melhor o sistema de nominação vigente naquela so-l' odade. Mas, além disso, os nomes Timbira dão direitos a1)( I'L ncer a certos grupos cerimoniais muito importantes,pois são grupos que atuam durante os rituais e também nas,'ol'ridas carregando toras, esporte nacional destas tribos.

HHim,papéis sociais são transmitidos com os nomes pró-pr' os e grupos de pessoas com os mesmos nomes desempe-rlll irn os mesmos papéis.

Um sistema de nomes próprios, tão coletivo como essednH Timbira, nos faz pensar de imediato nas possibilidadestil rm sistema oposto, isto é, num sistema de nominação em1111 os nomes fossem absolutamente privados e individuali-,11(1S de tal modo que a cada indivíduo não só correspon-

ti, HH um só nome, mas que tal nome fosse mesmo comoIjlll a expressão de sua essência individual. Pois bem, tal

I. ma parece existir entre os Sanumá do Norte da Ama-)1\H. (cf. Ramos, 1977) onde os nomes próprios são se-

I "I cI . Temos, pois, neste exemplo, o modo característico de111'0(;der a comparação em Antropologia Social e, por meiorlulu, descobrir, relativizar e pôr em relação o nosso sistema011parte dele), pelo estudo e contato com um sistema di-

II "(nte. Pois se os nomes dos Timbira são coletivos e os dosnuumá absolutamente individualizados (até mesmo ao límí-

I, d tornarem-se sigilosos), o nosso sistema fica como que1I111llltposição intermediária, como um conjunto que, ao mes-1110 L mpo que individualiza, também permite a apropriaçãoI I xpressão do coletivo. Mas é preciso observar que o"li I () sistema - como o dos Sanumá - parece contrastar,to\( ntamente com o Timbira, na medida em que o seu eixolI, L m acentuar indivíduos e grupos exclusivos. Sem o con-

IIH 11. e a distância que o sistema de nominação dos Tim-" ,'H oloca, seria difícil tomar consciência do nosso sistema,111111\primeiro passo, para poder relativizá-lo apropriadamen-11. A história da Antropologia Social, aliás, como veremos

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um pouco mais adiante, é a história de como esses diferen-tes sistemas foram percebidos e interpretados como formasalternativas - «soluções» e «escolhas» para problemas co-muns colocados pelo viver numa sociedade de homens. Ecomo esse tipo de encaminhamento se constitui num mome~-to importante no sentido de unir o particular com o UnI-versal pela comparação sistemática e criativa: relacional erelativizadora.

Mas além da problemática colocada pelo deslocamentodos sistemas (ou subsistemas) , deslocamento que permite acomparação e uma percepção sociológica, rela~ivizada ou deviés existe uma outra questão crítica nestas diferenças entreas ;<ciências sociais» e as «ciências naturais». Trata-se doseguinte:

Quando eu teorizo sobre os nomes Apinayé, isto é, quandoconstruo uma interpretação para esse subsistema da socie-dade Apinayé (ou Timbíra) , eu crio uma área complexaporque ela pode atuar em dois sistemas di~erentes: o m~ue o deles. Em outras palavras, quando eu interpreto o SIS-tema de nominação Apinayé, eu entro numa relação de re-flexividade com o meu sistema e também com o sistemaApinayé. Posso ir além da minha comunidade de cientistas,para quem estou evidentemente criando e procurando ap:e-sentar minha teoria; discutindo minhas hipóteses e teoriascom os próprios Apinayé! Esse é um dado fundamental erevolucionário, pois foi somente a partir do início deste sé-culo que nós antropólogos sociais temos procurado tes~arnossas interpretações nesses dois níveis: no da nossa SOCIe-dade e cultura e também no nível da sociedade estudada, como próprio nativo. Esta atitude, que certamente um evolucio-nista vitoriano do tipo Frazer consideraria uma verdadeiraheresia acadêmica, é que tem servido - como veremos nodecorrer deste livro - para situar a Antropologia Social nocentro epistemológico de todo um movimento relativizadorque eu reputo como o mais fundamental dos últimos tem-pos. Porque quando apresento minha teoria ao meu «objeto»eu não só estou me abrindo para uma relativização dos meusparâmetros epistemológicos, como também fazendo nascer umplano de debate inovador: aquele formado por uma dialéticaentre o fato interno (as interpretações Apinayé para os seuspróprios nomes), com o fato externo (as minhas interpre-

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nções dos nomes Apinayé ) . E essa dialética acaba por inven-Iur um plano comparativo fundado na reflexividade, na cír-rularidade e na crítica sociológica, o que é radicalmente di-1'1I" nte da comparação bem comportada, onde a consciênciado observador fica inteiramente de fora, como uma espécied omputador cósmico, a ela sendo atribuída a capacidadedI tudo dar sentido sem nunca se colocar no seu próprion I(lU ma comparativo.

,É essa possibilidade de dialogar com o nativo (informan-II) que permite ultrapassar o plano das conveniências pre-Ionc ítuosas interessadas em desmoralizar o «outro». É ela1111(também impede a Antropologia Social contemporânea de\11llzar aqueles esquemas evolucionistas fáceis, que situamII I Histemas sociais em degraus de atraso e progresso, colo-I'II11dosempre o <<110SS0sistema» como o mais complexo, o11\11 H adiantado e o que, por tudo isso, tem o direito sagrado(!llIdo pelo tempo histórico legitimador) de espoliar, explo-1/\I' destruir - tudo em nome do chamado «processo ci-

I Im't6rio». Podemos então dizer que é nesta avenida aberta\111/1possibilidade do diálogo com o informante que jaz aII 1'1I' nça crítica entre um saber voltado para as coisas ina-11Itlll(ias ou passíveis de serem submetidas a uma objetivi-d'ltll t tal (os objetos do mundo da «natureza») e um saber,I111110 da Antropologia Social, constituído sobre os homens1111 o iedade. Num caso, o objeto de estudo é inteiramenteIII1HI'() mudo; noutro, ele é transparente e falante. No casotlH ó: .iências sociais» o objeto é muito mais que isso, ele1111 ambém o seu centro, o seu ponto de vista e as suas

11111rnr tações que, a qualquer momento, podem competir eI111III'/lI' de quarentena as nossas mais elaboradas explanações.

/\. raiz das diferenças entre «ciências naturais» e «ciên-1 HII no iais» fica localizada, portanto, no fato de que a na-I III ~I~ não pode falar diretamente com o investigador; ao111\ 10 que cada sociedade humana conhecida é um espelho'11dl 1\ nossa própria existência se reflete.

utrupologias e Antropologia

I I tll'lIl'Hndo definir um «lugar» para a Antropologia Social,1 pl'I' 1:1 não esquecer as relações da Antropologia com seus

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outros ramos. Sabemos que nossa disciplina tem pelo menostrês esferas de interesse claramente definidas e distintas.Uma delas é o estudo do homem enquanto ser biológico,dotado de um aparato físico e uma carga genética, com umpercurso evolutivo definido e relações específicas com outrasordens e espécies de seres vivos. Esse é o domínio ou ocampo da chamada Antropologia Biológica, outrora confina-da, como Antropologia Física, as famosas medições de crâ-nios e esqueletos, muitas vezes no afã de estabelecer sinaisdiacríticos que pudessem servir como diferenciadores das«raças» humanas. Felizmente, como iremos ver com maisvagar adiante, a noção de «raça» como um tipo acabado estátotalmente superada, de modo que é um absurdo pretendertirar do conceito qualquer implicação de caráter sócio-culturalcomo se fazia antigamente. Hoje, o especialista em Antro-pologia Biológica dedica-se à análise das diferenciações hu-manas utilizando esquemas estatísticos, dando muito maisatenção ao estudo das sociedades de primatas superiores(como os babuínos ou gorilas), à especulação sobre a evo-lução biológica do homem em geral - apreciando, por exem-plo, a evolução do cérebro ou do aparato nervoso e ósseoutilizado e mobilizado para andar; ou está dedicado ao enten-dimento dos mecanismos e combinações genéticas fundamen-tais que permitam explicar diferenciações de populações enão mais de raças!

Claro está que a Antropologia Biológica lança mão demétodos e técnicas comuns aos outros ramos da Biologia,da Genética e da Zoologia, além da Paleontologia, de modoque o cientista a ela dedicado deve ter familiaridade comtodas essas outras disciplinas, sendo um biólogo especializa-do no estudo do homem. Na história da Antropologia, grandeparte da popularidade da disciplina decorre de achados cien-tíficos vindos desta esfera de estudo.

A segunda esfera de trabalho da Antropologia Geral dizrespeito ao estudo do homem no tempo, através dos monu-mentos, restos de moradas, documentos, armas, obras de artee realizações técnicas que foi deixando no seu caminho en-quanto civilizações davam lugar a outras no curso da His-tória. Essa esfera de trabalho antropológico é conhecida comoArqueologia e, como tal, é uma subdisciplina da AntropologiaGeral e, mais especificamente, da Antropologia Cultural (ou

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o ial), já que seu objetivo é chegar ao estudo das socie-dllct s do passado. De fato, o Arqueólogo está interessado•m pedaços de cerâmica, cemitérios milenares, cacos de pedra• I' stos de animais, enquanto tais resíduos permitem deduzirmodos concretos de relações sociais ali existentes. A Arqueo-IOKia, assim, é uma Antropologia Social, só que está debru-"/leia em cima do estudo de um sistema de ação social jád. saparecido. Para chegar até ele, a disciplina desenvolveu11t IL série de métodos e técnicas destinadas ao estudo pre-.' HO e detalhado dos restos de uma sociedade ou cultura:uuulto que foi cristalizado e perpetuado pelos seus membros,•"quanto atualizavam certos padrões de comportamento espe-, I' os daquele sistema. Todo sistema social humano precisati. instrumentos e artefatos materiais para sobreviver. NaI.nlldade, artefatos, instrumentos e objetos materiais sãoj 111m ntos definidores do homem, já que eles definem a pró-ur IL condição e sociedade humana em oposição a sociedades1111 mais. Mas esses instrumentos, embora tendo o objetivoti. permitir a exploração da natureza, multiplicação daIIII"'L e do poderio do homem ou a realização de alguma1111'( ta especial, estão determinados pelos modos através dosqWI H o grupo se autodefine e concebe. Daí a sua variabí-I til (\ • Assim, embora a agricultura seja uma técnica co-uuun a muitas sociedades, nem todas a praticam do mesmoIIl1ldo, utilizando os mesmos instrumentos, dentro do mesmoI Imo, ou plantando os mesmos produtos. Mesmo em áreasI li I' ficas comuns, como o Brasil Central, por exemplo,

r urnntramos grupos de língua Tupi, como os Tenetehara,111" I, ando uma agricultura fundada na mandioca e baseada'111 t. nicas avançadas; ao passo que as populações de fala Jê,I" m sma região, operavam (e ainda operam) técnicas agrí-I 111.1 diferentes, com o seu produto cultivado principal sendo11111/ grande variedade de inhames. O arqueólogo estuda essesII duo deixados por uma sociedade, depois que seus mem-"'11 \ P receram. E sua tarefa é a de reconstruir o sistema,,1I1·'t que ele somente existe por meio de algumas de suasI I III,HUzações.

C~uando pensamos em Arqueologia, pensamos freqüente-1111111. nos especialistas dedicados ao estudo das chamadas

" nll civilizações (Egito, índia, Mesopotâmia, Grécia e, uniu) , estudiosos que têm como material de estudos, não

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só instrumentos de exploração da natureza, mas formas desociedade bem cristalizadas como os monumentos e os pa-lácios. Mas é preciso não esquecer o arqueólogo devotado aoestudo de pequenos grupos de pessoas que também deixaramsua marca em algum ambiente geográfico, cuia reconstru-ção correta é muito mais difícil mas igualmente básica parauma visão completa da história do homem na terra. Eécurioso e importante saber como se pode «fazer falar» essesresíduos pela técnica arqueológica. Assim, uma aldeia anti-ga, cujas casas já foram consumidas pelo tempo e pelasintempéries, pode fornecer uIIl; padrão de habitabilidade quedenota um tipo especial de aldeamento, pois as casas podemser grandes ou pequenas; estar dispostas de modo aleatórioou seguindo um desenho geométrico preciso, como um qua-drado ou um círculo. E a informação é básica porque existemsociedades, como as de língua Jê do Brasil Central (cf.Melatti, 1978; Da Matta, 1976), que constroem aldeias re-dondas, com um pátio no centro e as casas situadas ao redor.Tal divisão representa um esquema básico e revela como adisposição em círculo pode indicar algum aspecto básico damundivisão daquela sociedade. Além disso, toda a aldeia podeter um depósito comum de lixo e isso permitirá descobriro tipo de alimentação da população, bem como o tipo dematerial que era mais usado por ela nos seus afazeres co-tidianos. Restos de alimentos podem significar esqueletos deanimais e isso permitirá descobrir as espécies mais consu-midas e até mesmo a quantidade da alimentação e o modocomo os animais foram mortos. Por outro lado, esta infor-mação poderá ser crítica no equilíbrio da dieta alimentarda aldeia e no peso que a caça, a coleta e a agriculturateriam tido na sua vida econômica e social. Ao lado destesresíduos de animais, pode o arqueólogo deduzir muito sobrea estrutura social se descobrir planos de casas intactos como que restou de suas divisões internas e externas. Tipos defamília poderão vir à luz destes dados e a população daaldeia poderá ser até mesmo calculada por meio deles. Ce-mitérios que fazem parte da imagem popular do arqueólogocom sua roupa cáqui e chapéu de explorador são básicos.Um cemitério relativamente intocado pode indicar muito so-bre população, distribuição sexual desta população, forne-cer dados sobre tipos de morte e formas de doença, explicar

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PH(\l'~ es de casamento e migração (pelo estudo de esqueletosti I' 'Y' ntes): Esqueletos enterrados em conjunto e com certos, Id' lt s e aparato funerário lançaria luz sobre a vida reli-} (lH ~ e política de uma aldeia, pois ao lado de mortos enter-'" doa com simples enfeites poder-se-iam encontrar também111HHoas enterradas sós e com muita riqueza de aparato fu-lI/I' rrio, o que faz suspeitar de uma sociedade com híerar-1111 fi e diferenciações religiosas, políticas ou econômicas.

arqueólogo trabalha por meio de especulações e dedu-I' I\I~, numa base comparativa, balizando sistematicamenteI II~I achados do passado com o conhecimento obtido pelo co-

IIII! ilmento contemporâneo de sociedades com aquele mesmoJ "/LU de complexidade social. Seu trabalho segue, então, emI nltH gerais, o mesmo ritmo daquele realizado pelo etnó-10 o ou antropólogo social (ou cultural), só que ele estuda111111 população que somente existe pelo que foi capaz de

1,,' iristalizado em materiais não-perecíveis. 1 Como o homem, o único animal que tem essa fantástica capacidade pro-II I va, pois 'ele efetivamente se projeta (projeta seus valo-II ideologias) em tudo o que concretiza materialmente,lI/li \ s ciedade humana deixa sempre algum vestígio das suas, (, (;0 s sociais e valores naquilo que usou, negociou, adorou1\ I 11 'L sourou com ganância, sabedoria ou generosidade aoIIIIIf{O dos tempos, É porque os homens são assim que a esfe-11\ do onhecimento arqueológico é possível.

uando falamos em Arqueologia, já tivemos que utilizarti Ia de mecanismos sociais sistematizados - que chamei1)'I'ojetivos - para exprimir o campo de estudos desta

I' nlina dedicada à análise das formas que os homens11 ílll tam, copiam e constroem de modo a poderem operar11I11 vidas individual e coletivamente segundo certos valo-

I ",, G~Llandoo tigre de dentes-de-sabre desapareceu, foi-seI 11111 1 todo o seu aparato adaptativo, do qual o dente-de-

/I!t" ra obviamente uma peça fundamental. Mas quando a111' odade Tupinambá desapareceu, ela deixou atrás de si todo

11111 conjunto de objetos que havia elaborado, copiado, inven-IlIdo, .onstruido e fabricado, elementos que eram soluções11/ ", desafios universais e, mais que isso, constituíam expres-

, I narticulares dos Tupi resolverem tais desafios.

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I. P,u'n uma introdução ao modo de proceder arqueológico, na concepção de um'I" \H~If)nlll,veja-se a notável introdução de V, Gordon Childe, Evolução Social (Zahar,II I ,

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Agora que desejo definir a terceira esfera do conheci-mento Antropológico, preciso conceituar melhor esses meca-nismos projetivos que permitem atualizar valores sociais.Tradicionalmente eles têm sido chamados de cultura e édeles que precisamos falar quando pretendemos localizar ocampo da Antropologia Social, Cultural ou Etnologia; Defato, os nomes (que estão relacionados às tradições de estu-dos de certos países) não nos devem ofuscar, pois todos de-notam a mesma coisa: o estudo do Homem enquanto produ-tor e transformador da natureza. E muito mais que isso: avisão do Homem enquanto membro de uma sociedade e deum dado sistema de valores. A perspectiva da sociedadehumana enquanto um conjunto de ações ordenadas de acordocom um plano e regras que ela própria inventou e que écapaz de reproduzir e proj etar em tudo aquilo que fabrica.A esfera da Antropologia Cultural (ou Social) é, assim, oplano complexo segundo o qual a cultura (e o seu irmãogêmeo a sociedade) não é somente uma resposta específicaa certos desafios; resposta que somente o Homem foi capazde articular. Não. Essa visão instrumentalista da culturacomo um tipo de reação de um certo animal a um dadoambiente físico deve ser substituída por uma noção muitomais complexa e generosa, por uma visão realmente muitomais dialética e humana. A de que a cultura e a consciênciaque a visão sociológica nela contida deve implicar situa ohomem muito mais do que um animal que inventa obje-tos, chamando atenção para o fato crítico de que ele é umanimal capaz de pensar o seu próprio pensamento. Em outraspalavras, somente o homem é capaz de criar uma linguagemda linguagem, uma regra-de-regras. Um plano de tal ordemreflexivo que ele pode ver-se a si próprio neste plano. Sealguns animais podem inventar objetos, o homem é o únicoque inventa as regras de inventar os objetos. E assim fa-zendo pode definir-se enquanto um ser que usa a linguagem,mas que também tem consciência da linguagem. Seja porquea língua articulada permite uma multiplicidade de propósi-tos práticos, seja porque sabe que sua língua é particulare por causa disso permite uma individualização diante deoutras sociedades. O ponto essencial é que o homem não inven-ta uma canoa só porque deseja cruzar o rio ou vencer o mar,mas inventando a canoa ele toma consciência do mar, do

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1'10, da canoa e de si mesmo. Se o homem faz-se a si pró-nrío, é preciso também não esquecer que ele assim procedePOrque pode ver-se a si mesmo em todos os desafios queI nfrenta e em todos os instrumentos que fabrica. '

A Antropologia Social (ou Cultural), ou Etnologia, per-mlte descobrir a dimensão da cultura e da sociedade des-1/\ ando os seguintes planos: '

a) Um plano instrumental, dado na medida em que umu:leito responde a um desafio de um ambiente ou de um

IIUl,tO grupo. Se a temperatura da terra mudou vários ani-1I1I1.is apenas desenvolveram defesas para esse novo fato. Mas11 animais apenas desenvolvem respostas internas, parte e!lnl' ela do seu próprio organismo, como peles, garras e den-111 I, Sua resposta é instrumental, direta, não permitindo to-IIIH!' conhecimento reflexivo da resposta mesma. Numa pala-

1'1\, a resposta não se destaca do animal, fazendo parte doIII próprio corpo e a ele estando intimamente ligada sem

I' 1'1xão ao estímulo.O plano instrumental é um plano das coisas feitas ou

""1111 e a sua concepção e importância está muito ligada à1111' P ctiva segundo a qual o homem foi feito aos poucos:I I m íro o plano físico, depois o plano social (ou cultural).1'1 ItI iro o plano individual, depois o coletivo, Primeiro os

11111 que imitavam a natureza, depois a linguagem articula-ilu, IJoje sabemos que tal visão que Geertz (1978) chamou111 (litratificada» não é mais válida. Muito mais importante

1 umur consciência de um plano francamente cultural.

h) No plano cultural ou social, que a Etnologia, Antro-JlllltlH'In Social e Antropologia Cultural permitem tomar co-11111\(1m nto, o mundo humano forma-se dentro de um ritmoII 111I, 'o com a natureza, Foi respondendo à natureza que11Ittllll! m modificou-se e assim inventou um plano onde pôde1I111111Hl1eamentereformular-se, reformulando a própria na-

11111'1,/ • Neste nível, estamos na região das regras culturais11111 liO ilaís, a distinção será estabelecida mais tarde), quando111 1/lltIOS uma resposta e também um reflexo desta resposta1111~III,elto. Assim, se a temperatura da terra mudou, os ho-111111 nventaram cobertas e abrigos, Mas é fundamental con-Idl "111' de uma vez por todas que isso não é tudo. Porque" ooborta« e abrigos variam. Não porque existisse alguma

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razão interna (de natureza genética ou biológica), mas por-que a resposta foi pensada em termos de regras, como algoexterno e percebido como tal. Apenas podemos dizer que ohomem deverá responder, mas não podemos prever efetiva-mente como será essa resposta. O homem, assim, é o únicoanimal que fala de sua fala, que pensa o seu pensamento,que responde a sua própria resposta, que reflete seu próprioreflexo e que é capaz de se diferenciar mesmo quando está seadaptando a causas e estímulos comuns. Realmente, pode-semesmo dizer que um tigre está ficando cada vez mais tigre,na medida em que se adapta a um certo ambiente naturale desenvolve certas características biológicas: Mas com ohomem as coisas são muito diferentes. Aqui, a noção deadaptação é muito complicada, porque ela não indica umcaminho de mão única, indo apenas na direção de um mí-nimo de atrito com a natureza, como é o caso dos animais.No caso das sociedades, adaptações podem significar desta-ques do ambiente, pelo uso de uma tecnologia avançada eque busca dominar e controlar a natureza; o uso de umestilo neutralizador, quando uma sociedade busca integrar-seno ambiente.

Vê-se, deste modo, que a resposta cultural é muito di-ferente da instrumental. Ela permite a superação da neces-sidade e também o estabelecimento de uma diferenciação porcausa mesmo da necessidade. E esse ponto é crítico. Os ho-mens se diferenciaram porque tornaram-se homens, e torna-ram-se homens porque responderam de modo específico aestímulos universais. Por isso é que o estudo da Antropolo-gia Social será sempre o estudo das diferenças, plano efetivoe concreto em que a chamada Humanidade se realiza e torna-se visível.

Tomar a cultura (e a sociedade) como sendo uma espé-cie de elaborada resposta ao desafio natural é um modo muitocomum de colocar em foco ° objeto da Antropologia. Creioque minha visão é mais complexa e, melhor que isso, maisadequada ao conhecimento moderno das sociedades e dos ho-mens. Por outro lado, ela abandona, como vimos, a perspec-tiva evolucionista muito simplificadora, segundo a qual aexistência social foi realizada em etapas: primeiro o físico,depois o social; primeiro o grito, depois a fala; primeiroo indivíduo, depois o grupo. A visão aqui apresentada, na

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11I li dn mesmo em que íamos revelando os planos de atua-11 d, cada antropologia, foi a de mostrar como a sociedade

III1 d uma dialética complexa e, por isso mesmo, refle-I li, onde o desafio da natureza engendrava uma resposta111, por sua vez, permitia tomar consciência da consciência

11111 lias possibilidades de responder), da natureza e daI 11111I' resposta dada. A plasticidade humana é que permite1 ,oh!'ir sua variabilidade, já que ela apenas indica o ca-

1IIIIIho <l alguma reação, mas não pode determinar com pre-,I 11 I~ I' sposta. De fato, neste sentido, o homem é realmente11 "

C I Planos da Consciência Antropológica

I 11 1/11( ficou colocado acima, segue que temos em Antropo-I.. 1\ 1/ 10 menos três planos de consciência. Incluiríamos com

,1/ 111' o um quarto plano, o mais fundamental de todos,I " I Ic não fosse tão especializado e nosso conhecimento""1 I II tão superficial. Quero me referir ao plano da lin-111 I I", do estudo da língua, esfera de consciência abso-

1IIIIIItlC Ilt básico na transmissão, invenção e produção de',,,1,, li ' nhecímento e cultura. Elemento ou meio sem o qual'"1" 01-1 outros não poderiam existir, já que sem uma lin-

111, 111 articulada seria impossível apreender o mundo, torná-I" 1111111 ido e manipulável por meio de um esquema de ca-

I 111 /I ordenadas.M, fi dentro dos três planos que destacamos e nos quais

I I 111 11101'1 indiretamente a linguagem será preciso destacar os111 IIlc e pontos:

() studo da Antropologia Biológica situa a questão deII I1 1'0118 iência física no estudo do Homem. Ela remete aos

1111 111( tros biológicos de nossa existência, revelando como1111110 ligados ao mundo animal e aos mecanismos básicos, dn no planeta. Neste plano, trabalhamos num eixo11111111" I de caráter verdadeiramente planetário e cósmico,

111I1It 111 'ala de milhões de anos, onde é praticamente impos-I I I ti utir com alguma precisão o surgimento de eventos

!II umrcados. No plano da consciência que faz parte da"I t IIpol gía Biológica, especulamos sobre mudanças íntrín-

I do corpo e cérebro humanos, apreciando por compa-

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ração com os animais as conquistas realizadas por esse pri-mata superior que acabou tão diferenciado. O fato de ohomem ter descido de uma" árvore, de ter desenvolvido obipedalismo pode ser o ponto de partida para uma sériede transformações correlatas, todas ocorridas num espaço detempo inteiramente inconcebível para a nossa consciênciafreqüentemente confinada a uma experiência verdadeiramen-te diminuta da duração temporal. Assim, o bipedalismo estáassociado a uma diferenciação entre os pés e as mãos, espe-cíalização verdadeiramente única, já que os primatas supe-riores não deram um passo tão decisivo nesta direção, sendosuas mãos e pés órgãos com uma mesma estrutura anatõ-mica. Tal diferenciação entre a parte de cima do corpo esua parte de baixo (uma oposição clara no homem entrealto e baixo) levou a mudanças na estrutura do rosto (comos olhos vindo um pouco mais à frente e o crânio tomandouma parte bem maior da cabeça), com as modificações típi-cas nas curvaturas da coluna vertebral (são três no homem)e posição do foramen magnum (orifício na parte inferiorda cabeça, na sua articulação com a espinha dorsal), nasarticulações da bacia e do fêmur, com as suas implicaçõesbásicas para todo o conjunto funcional e anatõmico relacio-nado ao andar bípedal,

Tais transformações na estrutura anatômica são acom-panhadas de mudanças na estrutura do cérebro, visão, olfatoe audição, mudanças que, sabemos hoje, estão intimamenteligadas ao uso de instrumentos e do fogo, mesmo quando setratava de um pré-homem (um hominídio), vivendo na Áfricado Sul há cerca de três milhões de anos atrás. É, pois, impor-tante discutir tais modificações em suas associações diretascom alguma forma de cultura ou proj eção no meio ambiente,atividade que está acompanhada de uma complexa dialética.

Mas é importante notar que aqui estamos observando econhecendo resíduos de homens ancestrais, pedaços de estru-turas que estavam a meio caminho entre uma forma animal,situada dentro das determinações naturais e geográficas, eformas mais desenvolvidas, com uma capacidade única dereagir a tais determinações. De fato, inventando suas pró-prias determinações sociais e históricas, pelo uso e abuso dosinstrumentos. Estamos, portanto, situados num reino conge-lado - ou como colocou Lévi-Strauss (1970) no reinado de

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11111/I história fria», onde os acontecimentos só aparecem emI 11/1 'OH de tempo extraordinariamente longos. Entre a «des-111111 1'1,1\» do bipedalismo ou, digamos, a perspectiva desta pos-

111 I d id e a descoberta da primeira arma ou instrumento,tilllll\tml milhões de anos não se teriam passado? E entre atllIlIll Li ação do fogo e dos animais, quantos outros milha-1I 1I anos não teriam decorrido? Ou será que tudo foiI 111m rado num só momento, uma espécie de «queda do

I 11111 H biológico», quando o animal que viria a ser o homemIIIIII!)LI com as cadeias que o prendiam às determinações'I ,,11 ~ as e ambientais, construindo um primeiro ato pro-II I Vil: uma arma, uma alavanca, um instrumento capaz deI'IIIIIIII/rar o braço, ou de multiplicar a força? Sabemos que1'1 IH' blemas nos colocam, por sua própria dificuldade atéIIlt 'rlO de verbalização adequada, no limiar entre o científico

11 " Jigioso (ou o filosófico), naquela fronteira onde o11'111110 - por ter que ser contado na escala dos milhõesdi I n a - deixa de operar como uma categoria significa-I /I, P rdendo todo o sentido classificatório. A Antropologia" nlllti a, assim, nos coloca diante dos espaços primordiais,ti 11 atos decisivos, do tempo que corre numa escala fria,IIIIIH, infinita. Ela nos permite especular sobre aquele mo-1111 fiLo mágico quando o milagre do significado deve terI "(alízado e todas as coisas se juntaram num primeiro

II '0 L de classificação.studo da Antropologia Cultural e/ou Social (ou Etno-

111' 11) abre as portas de realidades diversas. A Arqueologia11I1 "mete ao mundo de um tempo em escala de milharesti un ,mas onde os acontecimentos passam a ser decisivosI 'I mais em escala da espécie humana como uma totalidade,

11 '1 'mo elementos que permitem diferenciar civilizações,I1 'MS produtivos e regimes políticos específicos. Ela nos

Ildll(tlt diante de uma espécie de arrancada posterior: depois111 111 a diferenciação ao nível universal (e portanto da espé-I I, homem realizou simultaneamente as suas variadasli II1 " nciações internas, inventando formas sociais diferentes." movimento é simultâneo, parece-me, embora seja difícil1lIllIdt-Io assim, sobretudo utilizando um meio como a escrita'1111 ,acima de tudo, linear. De qualquer modo, a «consciên-

1'1 urqueológíca» é aquela que nos toca com temporalidades1111' nltas e com uma história igualmente fria, onde os espaços

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entre os acontecimentos são enormes. Mas aqui a noçãode espaço começa a se insinuar, já que o tempo por si sónão é suficiente para localizar as diferenças. No ano 3000antes de Cristo tínhamos civilizações diferenciadas em algu-, . ,. . .mas regiões da Terra: a mmoana, a egípcia, a sumeria-na, a indiana e a chinesa. Tais formações sociais já permi-tem vislumbrar especificidades verdadeiramente demarcado-ras em vários domínios sociais, embora se possa, para pro-pósitos didáticos, tornar todas essas sociedades semelhantes. D~qualquer modo, sabemos que as escalas que nos remetem aArqueologia e à Antropologia Biológica são escalas, de .te~~omilenares, onde a biografia tem que ceder lugar a históriadas técnicas que, por sua vez, é mais significativa ~o quequalquer especulação sobre o nascimento e desenvolvI.mentodas instituições sociais, domínio intrinsecamente relacionadoà história política, econômica e social. Em outras palavras,numa escala de um milhão de anos, apenas vejo mudançasno nível da estrutura anatômíca e o surgimento de algunsinstrumentos essenciais, como o fogo. Mas, no nível de mi-lhares de anos percebo o nascimento e o aperfeiçoamentode técnicas mais elaboradas como a domesticação de animais,o uso técnico do fogo, com a metalurgia, as diferentes téc-nicas de tecelagem e com elas algumas instituições sociais.De fato na medida em que deixo o tempo biológico e pe-netro no tempo arqueológico, começo a vislumbrar a socie-dade e a cultura. Numa escala de mil anos, posso percebernitidamente algumas instituições sociais e até mesmo certasbiografias. Mas é visível a possibilidade de especular. sobreuma «história instítucíonal», sobretudo quando se deseja pe-netrar no campo das conquistas, guerras e etnias, o que re-mete à guerra e ao comércio: a uma história econômica epolítica das sociedades. Finalmente, na escala secular, estouno tempo da história propriamente dita, quando minha cons-ciência deve desenvolver uma noção muito mais complexa edialética das determinações múltiplas dos eventos sobre oshomens e as sociedades. Mas esse tipo de consciência jápertence à nossa Antropologia: a Antropologia Social (ouCultural) .

() Biológico e o Social

I 'litro que as diferenças entre as Antropologias e a Antro-IIl1loj{'iaSocial dizem respeito fundamentalmente à descober-1I dI) social (e do cultural) como um plano dotado de rea-I tlnc\, regras e de uma dinâmica própria. Em outrasIII1I1Lvras,e como já colocou Durkheim no seu clássico AsI rflra8 do Método Sociológico (em 1895), como uma «coisa»,I 10 " um fato capaz de exercer coerção externa (de fora1111'n dentro) como qualquer outra «realidade» do mundo" t, dor. Como, por exemplo, a chuva ou esta mesa, ele-1111 Ilt s que no nosso sistema classificatório têm mais reali-""'!,I que as outras coisas. Curioso, como veremos em todoI til 'orrer deste livro, que o social tenha sido formuladod, modo tão tardio e até hoje não tenha sido ainda bemJ I'~ bido como tal em muitas discussões a respeito da so-I rlnde, Mas é possível interpretar este fato e, interpre-IlIlIdo-o, certamente lançar luz sobre os nossos modos de con-Illu r o mundo e nele ordenar os fenômenos, perspectiva queI" nnltirá apreciar a importância da consideração do socialI fltllO «coisa» no seu sentido correto e, paralelamente, a ím-IIIII'L ucia da formidável descoberta que foi a formulação de11111'1 heím e seus colaboradores.

N sta parte,desejo apenas chamar atenção para algu-111/1/ das especificidades correntes dos chamados fatores bío-I,'I eos em oposição aos sociais, no intuito de demarcar umll"llIm melhor o objeto de estudo da Antropologia Social11111 ultural). Creio que esta discussão é necessária, ainda'I I V nha a correr o risco da repetição, porque entendo que11 rocial» e o «cultural» sejam conceitos-chaves na perspec-I , sociológica do conhecimento social, mas que estão cor-I lido sempre o risco de esvaziamento e da reifícação pelo seuI ti napropriado, Por outro lado, esta primeira formulação

.1/1 oposições entre o biológico e o social/cultural permitirá• IIt I' r ar a discussão seguinte, devotada ao entendimento da

ul ropologia no Brasil.N'A.S páginas anteriores, vimos que tudo que é biológico

, n ntrínseco, isto é, fazia parte da natureza ou, no caso,111m animal concreto, de sua natureza, do seu organismo.I "01 gico, então, tem seu lugar em transformações ínter-"I <1 uma estrutura orgânica, sofrendo por causa disso

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mesmo uma lenta modificação, em escalas de tempo verda-deiramente cósmicas. Fatores biológicos e fatores naturaissão utilizados muitas vezes como sinônimos, designando o«mundo natural» como uma realidade separada e, às vezes,em oposição à chamada «realidade humana» ou «social». Emmuitas formulações, essa «natureza» é a «realidade externa»,objetiva, independente de um sujeito que sobre ela se debruçae a questiona. Nesta perspectiva é que temos a oposição entreconsciência e matéria (realidade) que segue paralela à di-cotomia real/ideal e, junto com ela, o dogma segundo o qual amatéria é anterior à consciência. E sendo anterior é natu-ralmente a parcela que a engloba e emoldura. Sabemos quenesta posição o natural é visto como anterior ao biológicoque, por sua vez, é anterior ao social que, por sua vez, éanterior ao individual. Temos uma verdadeira cadeia hierar-quizada, numa ordem específica que vai do natural num sen-tido totalizador, ao biológico, ao instrumental, ao institucio-nal, ao social, ao grupal e ao individual, forma que é to-mada como a mais desenvolvida e complexa. Claro está queaqui temos, numa cápsula, o desenvolvimento da «ciência»,tal como ela é concebida no nosso mundo social. Temos tam-bém, aqui repetido, o dogma da criação, quando Deus inventaprimeiro a natureza começando do seu plano físico (a inven-ção da luz) e' a partir daí, chegando ao plano dos animais,do homem, da mulher e, finalmente, das regras sociais,quando Ele se retira de cena, deixando o homem entreguea seu próprio destino. Também na Bíblia as relações sãovisivelmente hierarquizadas, com a natureza existindo antesdo homem e o indivíduo preexistindo à invenção do universosocial que é, permitam-me dizer, visto em todo o relato comoa fonte de todos os problemas e discórdias.

A questão não é só a de revelar que a conceituação éum ponto pacífico para nós, já que ela é sempre vista comoparte e parcela do «mundo real», o mundo exterior, a rea-lidade intransponível etc. Mas de mostrar também como onatural é classificado em oposição ao social e ao cultural.Numa palavra, na nossa ideologia e sistemas de valores, ohomem está em oposição à natureza numa atitude que nãoé nada contemplativa, mas ativa. Ele visa o seu domínio econtrole, o seu comando, Assim, na orientação ideológica po-pular, a dialética é a do homem saindo da natureza e, depois,

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nltando-sa contra ela, com o intuito de dominá-Ia pelo pro-1II 80. Essa é a dialética do senso-comum, dialética que evi-

d, 11t mente entra em choque com a visão que apresenta1111111 m e natureza; ou melhor, sociedade e natureza comodlIHII entidades que se formam de modo simultâneo e que po-.II'H ter entre si relações marcadas por outros dinamismos.

Mas isso não é tudo. Essa percepção «naturalista» deI 11 -comum tende fatalmente a cair numa atitude instru-Iltl/talista ou utilitarista das regras e instituições sociais.~I (,n atitude, como já alumbramos páginas atrás, todos os1111\ humanos diferenciadores ou instauradores de diferenças1111'( as sociedades acabam sendo reduzidos a respostas ou

tllfl'IlS adaptações a um conjunto de desafios tomados como1111 v rsais. De acordo com tal posição, ainda hoje defendidaJlIII' muitos cientistas sociais, temos uma cadeia de processos111111 H passam mais ou menos assim:

I I m,(Íro Ato: A natureza hostil e ameaçadora reina absoluta( orno nas gravuras dos livros sobre pré-história); omundo é povoado e povoado intensamente por todo o tipo(\ animais monstruosos e fenômenos naturais perigosos:V ndavaís, vulcões, tempestades, glaciações.

, 1I11'1/(loAto: Neste mundo aparece o homem. Ele é apre-ntado, mesmo nos livros de Antropologia Biológica,

romo ser único e universal - como o homem da Decla-I'H ão dos Direitos Humanos, nu e fraco. Solitário. Ohomem é um indivíduo dotado de inteligência superior.

IIIbo Ato: Pelo exercício de sua inteligência que é esti-mulada pelo mundo exterior hostil, o homem - como um

rdadeiro empiricista no melhor estilo britânico - co-li\( ça a aprender pela experiência. O fogo descoberto ao111'11 o nas lavas vulcânicas, por exemplo, permite-lhed('1I obrir o seu uso, O ódio contra um animal maisI'm't faz com que aprenda a utilizar um pedaço deIH dra ou árvore como arma. E assim o homem desco-'11'( a tecnologia.

('om ntârio Importante: Volto a chamar atenção para o1'II!.o de que a nossa mitologia científica da origem dohum m tenha que conceber necessariamente o ambienteJII' -histórieo como hostil, quando ele poderia ser per-

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feitamente calmo e dadivoso. E ainda que o homem pri-mitivo o Adão da nossa Antropologia Biológica e dosesque~as vitorianos, seja forçado a descobrir e a !nven-tar pela força do ambiente. Ou sej a: o homem nao po-deria inventar sem o impulso de uma força a ele ~xt~-rior, como o pecado, a mudança ambiental ou. o proprtoDeus. E é isso que provoca (arranca, seria melhordizer) dele uma resposta! Não é, pois, ao acaso ~ue. aAntropologia de Lévi-Strauss tenha caus~do polêmicaquando ela sugere a possibi~idade de !magmar a espe-cie humana tendo a capacidade de inventar, contem-plar e especular sobre o mundo e sobre si própria, domesmo modo que faz um filósofo da Sorbonne ou deHarvard! Por que não seria possível imaginar o nossoAdão da Ciência como um ser fundamentalmente con-templativo e filosófico, vivendo num mundo natur~l da-divoso e com facilidades para encontrar todo o tipo dealime~tos? É que, no nosso sistema ideológico, a açãoé mais importante como mediação do que .0 ~nsamento.E este sem dúvida é um dos nossos mais Importantesparado~os. Como, 'pergunta-se, pode-s~ ~r~vilegi~r _aação, num universo social no qual o indivíduo e taofundamental?

Quarto Ato: Descoberto um modo de intervir. na natureza,e conhecendo a magnitude e o poder destrutivo das forçasnaturais o homem passa a se conhecer como fraco e so-litário. Decide então agrupar-se e formar a sociedade.

Quinto Ato: Uma vez em sociedade, mas mantendo dentrodele todos os impulsos anti-sociais individualistas, comoa fome a agressividade e o sexo, o homem se vê novamente obrigado, pela força da experiência negativa, a inventaras instituições. Deste modo, a agressividade engendra H:-I

leis, a política e o direito; o apetite sexual provoca Il

invenção da família, do incesto, do casamento e do parentesco; a fome conduz à descoberta do trabalho e dovalor dos alimentos pela lei da escassez. Os aventouanormais, como a coincidência, a morte, o sonho e a desgraça, leva à religião.

- Pano-

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Nosso teatro da Origem do Homem revela (e creio queI in muitos erros) uma visão utilitarista da cultura e daoC' dade corrente. Nela, como vimos, o social é um fenômenoIeundârío : uma resposta aos elementos naturais (internos

• ternos) que de fato cercam a vida humana e para ele1010 aro problemas e estímulos.

Quais os enganos deste teatro?O primeiro é que ele fala do homem quando, na verdade,

11 que temos são sociedades e culturas. O homem é umaI vc nção ocidental e, ainda que possa ser um conceito gene-

I 11 li e útil em muitos contextos, não se pode esquecer quelima invenção social determinada, parte importante de umtoma social que se concebe como formado de indivíduos

I nO qual são esses átomos sociais - os indivíduos - queI I' nstituem nos seus elementos mais básicos.

segundo é que, falando do homem e deixando de ladoc iedades e culturas, fala-se de universalidades e de ge-

li' 1/11 dades, jamais chegando perto das diferenças. É curioso"li orvar essa ambigüidade diante do diverso e do específico,IIlIt'( tudo em sociedades marcadas como é o caso da brasí-

11 II I por uma tendência hierarquizante. Tomando o homemI '1111() um ser da «resposta Instrumental», deixamos de lado

1/11 fa realmente básica de explicar as diferenças.O terceiro é que, deixando de focalizar as diferenças,

II '1\ tamos uma mentalidade ecológica, segundo a qual oIIlIllt. m não contempla nem pensa: ele apenas reage ao am-li IIlc natural, como uma espécie de cão de Pavlov. E nesta11 I 111 nlldade, essa resposta é tanto mais clara, quanto maisI" 1111 lva for a sociedade. Entre os índios brasileiros, que

nnl.ropólogos da «ciência ecológica» percebem como pri-11 I VOR, pois têm uma capacidade muito baixa de acumularIIII u, a sociedade somente reage de modo direto. Em taistil I dndea não se contempla a possibilidade de o pensamento'lI I I, existir de fato, de modo que o processo se passeI runtrárío : com a sociedade provocando a mudança do

11 11 onL em sua volta; ou pensando e experimentando comII1 nova forma de organização social. Não! Só na nossa\I IId",c\ e no nosso sistema é que novas formas de rela-1"""1t1C nto social podem ser descobertas e inventadas. Em

II I alavras, o ponto de partida da mentalidade instru-,,111 ecológica é a de que os índios e nativos em geral

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feitamente calmo e dadivoso. E ainda que o homem pri-mitivo o Adão da nossa Antropologia Biológica e dosesquemas vitorianos, seja forçado a descobrir e a inven-tar pela força do ambiente. Ou seja: o homem não po-deria inventar sem o impulso de uma força a ele exte-rior, como o pecado, a mudança ambiental ou. o próprioDeus. E é isso que provoca (arranca, serra melhordizer) dele uma resposta! Não é, pois, ao acaso ~ue. aAntropologia de Lévi-Strauss tenha causado polêmicaquando ela sugere a possibilidade de imaginar a espé-cie humana tendo a capacidade de inventar, contem-plar e especular sobre o mundo e sobre si própria, domesmo modo que faz um filósofo da Sorbonne ou deHarvard! Por que não seria possível imaginar o nossoAdão da Ciência como um ser fundamentalmente con-templativo e filosófico, vivendo num mundo natur.al da-divoso e com facilidades para encontrar todo o tipo dealime~tos? É que, no nosso sistema ideológico, a açãoé mais importante como mediação do que o pensamento.E este sem dúvida, é um dos nossos mais importantesparado~os. Como, pergunta-se, pode-s~ ~r~vilegi~r _aação, num universo social no qual o indivíduo e taofundamental?

Quarto Ato: Descoberto um modo de intervir na natureza,e conhecendo a magnitude e o poder destrutivo das forçasnaturais o homem passa a se conhecer como fraco e so-litário. Decide então agrupar-se e formar a sociedade.

Quinto Ato: Uma vez em sociedade, mas mantendo dentrodele todos os impulsos anti-sociais individualistas, comoa fome, a agressividade e o sexo, o homem se vê novamen-te obrigado, pela força da experiência negativa, a inventaras instituições. Deste modo, a agressividade engendra asleis, a política e o direito; o apetite sexual provoca ainvenção da família, do incesto, do casamento e do pa-rentesco; a fome conduz à descoberta do trabalho e dovalor dos alimentos pela lei da escassez. Os eventosanormais, como a coincidência, a morte, o sonho e a des-graça, leva à religião.

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111 rlnde corrente. Nela, como vimos, o social é um fenômenoI 1Il1l1lirio:uma resposta aos elementos naturais (internos

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111 li útil em muitos contextos, não se pode esquecer queIIlIm invenção social determinada, parte importante de umI, mil. social que se concebe como formado de indivíduos

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() terceiro é que, deixando de focalizar as diferenças,til 'I ntamos uma mentalidade ecológica, segundo a qual o11111111 m não contempla nem pensa: ele apenas reage ao am-I 1 1111 natural, como uma espécie de cão de Pavlov. E nestaI 111 ulídade, essa resposta é tanto mais clara, quanto maisI" 111 tíva for a sociedade. Entre os índios brasileiros, que

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são mesmo primitivos e não podem experimentar com suasformas sociais. Eles também não têm a capacidade de re-formar suas instituições políticas e religiosas, realizandorevoluções e inovações. Apenas se ~onstata, no c~so ~as ~o-ciedades tribais, a capacidade duvidosa e nada imaginativade responder a problemas colocados pela natureza. O que talperspectiva jamais se coloca é. a possibilidade de respostasdiversas para os mesmos dssafios. Se realmente existe umadicotomia tão definitiva entre mente e matéria, real e ideal,e natureza e cultura, por que então existem respostas dife-rentes para problemas considerados como semelhantes.? Por-que o que é real aqui, é ideal lá, naquela outra SOCIedade;e o que é considerado civilizado entre nós é tido como sel-vagem entre os selvagens. Caso o mundo social fosse re~l-mente regido por leis utilitárias; ou melhor, por forças cujalógica fosse realmente - como qu~rem os antropó~ogos adep-tos desta perspectiva instrumentahzante - redutível a UI~aracionalidade, por que haveríamos de ter diferenças? E mal~,respostas realmente antieconômicas. Nós voltaremos a taisproblemas críticos das diversas possibilidades de interpret~-ção sociológica. Por enquanto, porem, basta acentuar maisuma vez que o problema sociológico nunca será resolvidoadequadamente pela visão utilitarista da cultura, mas de umaposição onde a consciência terá que ser discutida e levadaem consideração.

Finalmente, como quarto ponto, temos que a visão dosocial ancorada no biologismo ou no naturalismo (e mate-rialismo vulgar), e atualizada na Antropologia moderna soba forma de Antropologia Ecológica ou visão instrumenta-lista utilitarista ou evolucionista da cultura e sociedade, re-duz 'as diferenças sociais a respostas culturais, deixando deinquirir sobre a diversidade humana, ponto fundamental daperspectiva antropológica.

E aqui voltamos à questão inicial. O biológico não per-mite explicar ou interpretar diferenças porque o homem (-uma só espécie no planeta. Assim, tomar instituições cul-turais e sociais e tratá-Ias como um biólogo, em termos deconceitos como adaptabilidade, estímulo etc. a mudanças supostamente ocorridas no meio exterior, é .evitar penetrar narazão crítica das diferenças entre as SOCIedades e penetrarnesta área é estar começando a ficar preparado para discutir

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" mundo social e cultural - o mundo da diversidade, dali tória e da especificidade.

Podemos, então, dizer que o biológico diz respeito aoIlL( mo, ao intrínseco, ao que não é controlado pela consciên-

• I pelas regras inventadas ou descobertas pela sociedade.() social, entretanto, é o oposto. Como colocou M. Levy Jr.,11111 destacado sociólogo americano, a ação social é toda a/I' o que não pode ser adequadamente explicada em termosd.: a) fatores de hereditariedade e b) do ambiente não-11111 ano (cf. Levy Jr., 1952: 7-8). O que Levy está querendo.1 '" r é que a ação social só pode ser analisada, interpre-IlIdn e eventualmente explicada por seus próprios termos.'111, não pode ser reduzida, como pretendem os antropólogos111 orãveis a uma visão utilitarista da cultura, nem a fato-I néticos (ou a nossa natureza interior) nem a fatores

I, rnos, como a idéia de natureza concebida como mundo11' I exterior com suas forças e ameaças. Como já haviad monstrado Durkheim, o social é algo que está ligado a

11111 forma de consciência específica e a consciência é umauuululidade de ser não-automática e sobredeterminada. Por1111110 lado, um fato social, uma instituição humana] uma1/1I ficação de um pedaço do mundo, implica em deterrni-

11 11 i'R múltiplas, sobre outras instituições, fatos e sobre o11'1111,'1 mundo. De fato, eu não posso ter uma classificação.(11 , nimais, por exemplo, pela metade; ou melhor, abrindo111 11 d certos animais e apenas classificando um terço da111 IIllIi fauna. Se eu classifico dois mamíferos, já classifiqueiI. rlunlmente todos os outros, embora não tenha realizadoI II ti modo explícito. Trata-se, neste caso, da classificaçãou I" I lêncio ou pelo vazio que os estudiosos de semântica

IlIlIh em como tão importante, pois que às vezes o «clamorI ncío» é bem maior e mais eloqüente que os gritos de

I1 111 discursa.I:omo ponto básico, podemos dizer, numa formulação que

I1 nmplíada nos próximos capítulos, que o social (e cul-111 I tudo aquilo que independe da natureza interna (ge-

1111, OU quadro genético) ou externa (fatores ambientais,I ti" 111 H). OU sej a, todos aqueles fatos que não podem ser

11 Ivnlmente resolvidos por estes fatores, sendo mais ade-I dltHl nte tratados quando são estudados uns em relaçõo, IIIII,I'OS, Se tal formulação não é definitiva, deixando em

I:(

);1r.

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II

aberto muitos problemas, ela pelo menos tem a enorme van-tagem de situar, à maneira de Durkheim, um campo (ouum objeto) dentro do qual podemos trabalhar com essa rea-lidade que estamos tomando como sociológico e que é o nossoalvo deslindar. Ela também expõe claramente a perspecti-va a meu ver crítica, de acordo com a qual o mundo socialé um fenômeno coletivo, globalizante, múltiplo e dependentepara sua compreensão correta, de uma abordagem capaz depercebê-Io e estudá-lo nestes termos. O social não decorrede um impulso natural (como o chamado «instinto gregá-rio» ), nem de uma resposta a um estímulo externo (comoum terremoto), nem de uma reação à condição básica deque os homens têm uma existência individual. Ele não éuma estrada de mão única, com diretrizes bem traçadas edomínios bem demarcados, exceto na nossa cabeça, nos sis-temas de classificação e nas nossas teorias. O social, nestaperspectiva, é muito mais um caminho amplo, com muitasdireções e zonas de encontro e espaços de choque e confli-to. E aqui poderia, sem nenhuma dúvida, lembrar uma ela-boração de Marx freqüentemente esquecida nestes dias desequiosa busca de certezas, quando uma visão totalitária domundo social é marcante: «Os homens fazem sua própriahistória, mas não a fazem como querem; não a fazem sobcircunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com quese defrontam, diretamente legadas e transmitidas pelo passa-do. A tradição de todas as gerações mortas oprime comoum pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente - continuaMarx numa outra passagem básica - quando parecem empe-nhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algoque jamais existiu, precisamente nestes períodos de criserevolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seuauxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado osnomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apre-sentar-se nessa linguagem emprestada»' (cf. Marx, 1974 :334). Neste estudo, que deveria ser lido por todos quantosse interessam por uma visão realmente sociológica e generosada vida social, Marx simplesmente revela que a conspiraçãoe a revolução - ou seja, os momentos em que a ação de-terminada, planificada e direta seria possível - não são abso-lutamente momentos vazios, mas situações altamente dramá-ticas, em que o passado e o presente se confundem e homens

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VIIIores são, muitas vezes, trocados, realizando precisamen-I. f) inverso daquilo que intentavam fazer. Esta visão da to-1111 tlade social como drama, ponto fundamental deste estudoI IIlnl de Marx, informa esta minha visão do social como

11111 'plano capaz de formar-se a si próprio, tendo suas pró-I" H regras e, por tudo isso, possuindo um dinamismo espe-,1/11 que é vantajoso para o observador interpretar e com-1114 í nder nos termos de suas múltiplas determinações eIllIhsrüidades.

o ocial e o Cultural

,. agora estive considerando o social e o cultural como11\1. orias, que revelam uma parcela semelhante da condiçãoluuunna. E tempo de buscar indicar suas diferenças, emboraI /'nl' fa carregue consigo o risco da visão parcial e a con-lI/I ente díscordância de outros especialistas. Isso, porém,

I1 " deve nos desiludir visto que é possível indicar cami-111111 I parciais, práticos e teóricos, pelos quais o estudante1"1 /lH refletir sobre a realidade social humana de formaI I unda,

Iniciemos nossa visão das diferenças entre sociedade e1/llIm'a, descartando a visão eclétiea segundo a qual os doisI 11 m nos são parte de uma mesma coisa, a realidade huma-111, rom suas diferenças ocorrendo a nível de angulação, comoI Ilido dependesse apenas da posição do investigador. É

I 1111I que a posição do investigador é fundamental mas sobI" lI/L de incorrermos num idealismo paralisante c~locar' tudo111 111 não resolve nossos problemas. O fato concreto é que

1(, no plano mesmo da prática antropológica erudita ounua, uma noção destas diferenciações. Um exemplo sim-

1111 tornará mais claro o que digo: posso ver uma socie-I! Id, de formigas em funcionamento. Mas formigas não1,1I/lIH e não produzem obras de arte que marquem dife-II 11 '/I entre formigueiros específicos. Em outras palavras,"llltH'l\ a ação das formigas modifique o ambiente - sa-

Iu /lto que elas são, em muitos casos, uma praga - esse,,111 unte é modificado sempre do mesmo modo e com o

11 ti dll mesmas matérias químicas, caso se trate de uma"li IIIH espécie de formigas. Essa constância e uniformização

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diante do tempo permite que se explicite um primeiro postula-do importante: entre as formigas (e outros animais sociais)existe sociedade, mas não existe cultura. Ou seja, existe umatotalidade ordenada de indivíduos que atuam como coletivi-dade. Existe também uma divisão de trabalho, de sexos eidades. Pode haver uma direção coletiva e uma orientaçãoespecial em caso de acidentes e perigos - tudo isso que sa-bemos ser essencial nas definições de sociedade. Mas nãohá cultura porque não existe uma tradição viva, conscien-temente elaborada que passe de geração para geração, quepermita individualizar ou tornar singular e única uma dadacomunidade relativamente às outras (constituídas de pessoasda mesma espécie).

Sem uma tradição, uma coletividade pode viver ordena-damente, mas não tem consciência do seu estilo de vida. Eter consciência é poder ser socializado, isto é, é se situardiante de uma lógica de inclusões necessárias e exclusõesfundamentais, num exaustivo e muitas vezes dramático diá-logo entre o que nós somos (ou queremos ser) e aquilo queos outros são e, logícamente, nós não devemos ser. A cons-ciência de regras e normas é, pois, uma forma de presençasocial, sempre dada num dialogar com posições bem mar-cadas pelo grupo. Quando eu tenho consciência de que devoescrever ou dar minha opinião sobre um determinado assun-to, estou sempre realizando a ação depois de um diálogocom minha consciência. E minha consciência é um «arma-zém» de paradigmas e regras de ação, todas colocadas alipelo meu grupo e minha biografia neste grupo. Não é pois,por acaso, que a consciência é sempre materializada entrenós como uma zona de diálogos, onde constantemente sedigladiam um Anjo Bom e um Demônio.

Como conseqüência disto, a tradição viva e a consciênciasocial subtendem responsabilidade. E responsabilidade signi-fica excluir possibilidades e isso diz respeito a formas deescolhas entre muitos modos de pensar, perceber, classificar,ordenar e praticar uma ação sobre o real. Uma tradiçãoviva é, pois, um conjunto de escolhas que necessariamenteexcluem formas de realizar tarefas e de classificar o mundo.Dançamos deste modo e não daquele; tomamos a colheitado milho e não o final do inverno como ponto crítico parademarcar o tempo; assumimos o incesto como o pecado mais

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Infernal que alguém possa cometer, deixando de lado o adul-I do; tomamos a mulher como elemento de mediação entrehomens e deuses enquanto que nossos vizinhos escolheram, criança para a mesma função; não comemos animais deungue quente na sexta-feira, mas comemos porco em todos

11 outros dias não santificados - e a lista de exclusões(I inclusões) seria verdadeiramente infinita ...

Ter tradição significa, por tudo isso, mais do que viverurdenadamente certas regras plenamente estabelecídas, Sig-II fíca, isso sim, vivenciar as regras de modo consciente (e"l1ponsável), colocando-as dentro de uma forma qualquer deI1 mporalídade, Quando nós vivemos regras sobre as quaisI ntimos que não temos nenhum controle, pois são normasfll'l xíveis, classificamos a situação de modo especial: ou

IIILnrnosjogando ou estamos vivendo um contexto dramático,Inmo o aprisionamento numa cela. Realmente, nestas con-d I' s, são as regras que nos vivem e somos nós quem por• IHH passamos, sem nenhuma condição de modificá-Ias. Umluun jogador é aquele que é capaz de atualizar com precisão1I regras do jogo que joga. E um prisioneiro passa pela

11" HÜO sem poder devolver ao sistema suas vivêncías mais" Icas, pois a punição numa sociedade histórica é precisa-1111 nte colocar alguém diante do inferno de uma situação111 IIR normas não estão no tempo, sendo imutáveis.

Mas no caso das tradições culturais autênticas, o pro-'I '10 é dialético e existe uma interação complexa, recíproca,

111 I' regras e o grupo que as realiza na sua prática social.1'11 ti se as regras vivem o grupo, o grupo também vive as" j I'/ll=!. Ê precisamente esse duplo vivenciar e conceber que11

'nnlte a singularização, valorização e preenchimento do

I"IIPO, tornando-o visível, significativo e, muitas vezes, pre-, t I1H, Ocasiões socialmente valorizadas pelo grupo fazem com'1111 sua duração (seu tempo) se torne rara, «passe depressati, IIIHi.A»,transforme-se em ouro puro quando um artista o1111' 1\ ihe com seu virtuosísmo e o arranca das periodizações,li I' HS. Situações socialmente negativas inventam duraçõesI. IIlpo'I'ais ambíguas, onde o tempo fica paralisado e horasIlItll"om dias.

A tradição, assim, torna as regras passíveis de seremI ','I(~iadas, abrigadas e possuídas pelo grupo que as inven-

11111 , ndotou, de tal modo que, numa sociedade humana, seus

Ir();~.I'r.

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membros acabam por perceber sua tradição corno algo inven-tado especialmente para eles, corno urna coisa que lhe,s pe:-tence. Assim dizem: «fazemos deste modo porque assim diznossa tradição» e a «nossa tradição» é urna realidade (eurna realização) dinâmica, Que está dentro e fora do grupo;que pertence aos ancestrais e espíritos; que a legitimam ea nós mesmos (pobres mortais), que a atualizamos e honra-mos no espaço atual, no momento presente.

Sociedades sem tradição são sistemas coletivos sem cul-tura. Mas além de estarem submetidas a leis e normas uni-versais impermeáveis à passagem do tempo e das gerações,as sociedades de formigas e abelhas nada deixam que asindividualize. Quando desaparecem, sobra apenas sua açãomais violenta sobre um dado ambiente natural. Mas, destassobras, é impossível reconstruir o comportamento de ~eusindivíduos e dos seus grupos. Em outras palavras, formigase outros animais sociais estão suj eitos a uma apreensãosincrônica do seu comportamento. Caso a sociedade desapa-reça no tempo, sua reconstrução é impossível - ,ficando oanimal representado individualmente, corno os dinossaurosque nunca são representados em grupo. Os animais nãodeixam nada comparável a urna tradição quando desapare-cem. Sua sociedade é um conjunto de mecanismos dados numaestrutura genética, contidos na própria espécie, não se des-tacando dela e, por isso mesmo, jamais permitindo inovaçõesque poderiam consagrar espaços especiais para diferenciaçõesde quaisquer tipos.

Podemos assim dizer que sociedades sem cultura apenasacontecem no caso das «animais sociais» (urna expressão,sem dúvida, contraditória). No caso do homem, a cada so-ciedade corresponde urna tradição cultural que se assenta notempo e se projeta no espaço. Daí o seguinte postulado bá-sico: dado o fato de que a cultura pode ser reificada notempo e no espaço (através de sua projeção e materializaçãoem objetos), ela pode sobreviver à sociedade que a atualizanum conjunto de práticas concretas e visíveis. Assim, pod»haver cultura sem sociedade, embora não possa existir uma,sociedade sem cultura.

Em outras palavras, posso ter resíduos daquilo que foi asociedade do Egito Antigo na forma de restos de monumen-tos arquitetônicos, estátuas, campos de cultivo, decretos reais,

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I II S comemorativos, obras de arte e tratados científicos eI 10 ficos, embora a sociedade do Antigo Egito tenha desapa-'.'1' elo diante dos meus olhos. Dito de outro modo, não tenho111/1 um sistema de ação entre grupos, categorias, classes so-I 111 H, estamentos e indivíduos que fizeram a coletividade doli!}L Antigo e atualizaram um certo conjunto de valores,ti ur issivos de urna dada tradição, Apenas tenho certas cris-1/11 zações (ou materializações) deste sistema de ação, obje-111 I: ições que são tanto um reflexo direto deste sistema de11' (11,1 as concretas, quanto esse próprio sistema. Mas tudo

o dado através de urna forma indireta de suas repre-111, ões. Vale dizer: por meio de um espelho que é a cul-

III1 n ou a tradição reificada. Mas corno nem tudo que per-I. IH'( a urna tradição pode ser reificado ou o grupo deseja'I I ,. ificado em coisas materiais, sabemos que é impossívelII I L do o sistema de ação social reproduzido em objetos,do m smo modo que nem todos os valores são igualmente111111'1' tizados. Daí também a distinção entre sociedade e cul-1111' orno dois segmentos importantes da realidade humana:11 111' meiro indicando conjuntos de ações padronizadas; o se-

ruulo expressando valores e ideologias que fazem parte da111111' ponta da realidade social (a cultura). Urna se reflete11 I nutra, urna é o espelho da outra, mas nunca urna pode111'1 li luzir integralmente a outra. Daí, novamente, a ímpli-

11 I. de que o germe da mudança, da transição e da pró-1'11/1 morte, já escondido no vasto espaço existente entre asI" I eas (com sua lógica organizatóría) e teoria com suasI I d anjo e idealizações que permitem enxergar o mundo

11' 11 I' rmado, De fato, se a sociedade do Antigo Egito fosse111 I r produção exata dos valores e ideologias do Antigo1 1111 (vale dizer: de sua cultura), seria impossível aos seusti IIlh,' distinguir e atribuir valores a pedaços de suas ações

11 ,Porque nem tudo no Antigo Egito foi feito de pedra11 d. uro; e nem tudo foi cercado de objetos materiais11""' uvos do seu valor excepcional e de sua pompa ver-

d, rnmente sagrada. É pela cristalização material que,111 1H I V zes, nós podemos separar, distinguir e atribuir sig-

11111'11110 às nossas ações, O domínio do sagrado (e do poder111 11m muit.os sistemas, se mistura com ele) é freqüente-II 111, lima esfera interdita, segregada, secreta, próxima da

"Ic que, corno nos diz Thomas Mann, inspira respeito

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e nos faz andar na ponta dos pés. Aqui nestas regiões, asações sociais concretas e que devem obedecer às constríçõesda força da gravidade, da lógica da comunicação, das restri-cões especiais e dos mecanismos grupais, são cercadas deuma parafernália material que lhes transforma e emprestapoder. É precisamente essa moldura material ao redor deconjuntos de ações humanas que as distingue de outros con-juntos. O que resta de uma sociedade é, pois, em geral, aquiloque era sagrado e altamente significativo, transformador,precioso. Mas, além disso, é preciso indicar que a realidadecultural remete a um plano especulativo, ideal e idealizado,sempre resistente a uma atualização perfeita e integral emtermos de ações humanas e de personagens humanos. Eume pergunto secretamente quantos sacerdotes egípcios nãoteriam ficado decepcionados com o porte de seu Faraó, dis-tante das suas representações ideais do que deveria ser odeus-homem. A cultura, portanto, trabalha sempre com for-mas puras, perfeitas, que se ajustam ou não à sua reprodu-ção concreta no mundo da sociedade, o mundo expressivodas realizações e realidades concretas. Devo observar, entre-tanto, que isso não significa de modo algum que estou endos-sando uma visão conhecida entre nós, segundo a qual o idealé melhor do que o real. Não! O que cada sociedade faz destadistinção é um problema social significativo. Eu apenas afir-mo que a distinção deve ser universal e importante. Masnão sei como cada grupo humano situa o real e o ideal emseus esquemas conceituais. Temos sociedades, como a nossa,onde o ideal é básico, tomado como o mais importante. Àsvezes como a verdadeira realidade. Temos sociedades comoa Apinayé (cf. Da Matta, 1976), onde o real é consideradocomo muito mais «forte» e melhor do que o ideal. E; temostambém grupos onde real e ideal formam uma só «realida-de», sendo impossível distinguir a prática da teoria. Isso,porém, não invalida a distinção que estamos buscando esta-belecer entre sociedade e cultura, posto que ela tem uma vi-gência fundamental em muitos sistemas e, pela comparação,pode ser colocada sob foco analítico e relativizada.

Desta posição vemos que não há possibilidade de umareprodução de «um-para-um» entre o domínio da cultura e odomínio da sociedade. Eles buscam se reproduzir, é certo,mas de um modo complexo, imperfeito, sobrando sempre

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muitas esferas sem encaixe perfeito e muitos resíduos quedevem depois ser aproveitados pela totalidade. Essa distân-da - que, na nossa sociedade, é, de fato, a distância entre() céu e a terra - é um foco poderoso de mudança social1 de transformação. Por causa disso, é sempre bom usar

quando buscamos essa distinção - a comparação com o( atro para expressar claramente a diferenciação entre so-l' dade e cultura.

Realmente, no teatro temos sempre um problema funda-11\ ntal de ajustamento interpretativo entre um texto, diga-111 s, Romeu e Julieta de Shakespeare, e um sistema de açõesl'lmcretamente dados num dado local (o palco e o teatro).()u seja, estão aqui colocados os ingredientes básicos do fe-" meno social: temos valores e idéias que devem ser vistosI ouvidos (e não lidos) e o problema de como atualizá-Iosmr um conjunto de ações dramáticas, práticas. Sabemos quernras vezes poderemos atualizar perfeitamente um texto tãoI co e complexo como o de Romeu e Julieta de modo per-II t . A busca dos atores já é algo difícil. Sua interpre-IH I o é outro problema. A discussão de suas roupas, ambien-1111' histórica e a própria consideração de tudo isso, cons-I lucm nova dificuldade. Por que não realizar um RomeuI Julieta moderno?

Mas, além de todas essas questões, temos uma dicoto-111 I fundamental entre um texto escrito numa outra era

tI(/l1-! que faz parte de nossa tradição cultural) e um sis-I, IIIH de ações concretas, visíveis, que se deseja montar. Creio1/11 texto serve bem como uma metáfora da cultura, tal111111) estou apresentando aqui; ao passo que a sociedade é o!lI/IIIO representado pelo espetáculo teatral na sua práticadlllltuttica e cênica. Um não vive sem o outro, embora oI, I() possa sobreviver às várias interpretações do drama.I" texto por si só é como a cultura do Egito Antigo.

I't nnsforma-se em mero objeto deslocado, virando peça de11111 1111 e coleções. É uma espécie de fantasma, entidade sem

111 po, em busca de um grupo de pessoas imperfeitas, masI' 1\ capazes de lhe restituir a vida. Texto e dramatizaçãoI, III H1H\ realidade e oferecem seus problemas.

I J m deles é que a dramatização do texto põe proble-I I roncretoa. É preciso um local, um cenário, uma divisãoI 11'/ l>ilho por tarefas, por sexos, por idades. É necessário

11I(

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um maquilador que ajude a disfarçar as distâncias entre asexigências do texto e a realidade física dos atores. A pre-sença de um ordenador de conflitos e de ações é crítica,pois o diretor serve de ponte entre ações individuais e otexto que coletiviza e sistematiza tudo coerentemente numahistória etc. Tal como ocorre no plano social, a peça criasuas necessidades próprias, dentro de uma lógica do concre-to que lhe diz respeito e, ao mesmo tempo, faz restrições aotexto. Algumas são passíveis de superação; outras não. Asíntese de tudo isso é o espetáculo e permite também - pelacomparação sistemática - dizer qual a representação deRomeu e Julieta que foi mais feliz ou mais sincera ...

A sociedade, portanto, traz problemas de ordem con-cretos, práticos. Ela conduz quase que mecanicamente ao con-junto, à totalidade, pois uma ação individual remete a outrae um grupo de pessoas se liga a outro. Por outro lado, açõesrequerem necessariamente espaços e instrumentos e tudo issoimplica em mobilizar, esmagar, controlar e colocar pessoaslado a lado. Enquanto o texto pode ignorar elos pessoais esociais concretos, processos emocionais formados ao longodos ensaios da peça, a sua representação não pode deixarde presenciar essas formas de relações entre atores e seuspapéis' os personagens entre si, dentro do texto da peça;entre os atores como pessoas uns com os outros; e, ainda,entre atores e personagens e todas as pessoas encarregadasem «dirigirem» o show. Isso apresenta um paradoxo, poispara termos um sistema implementado é preciso criarmos po-sições fora dele; gente que ficará situada ao long~ e mesmofora da peça, mas que vigia sua representação. E ISSO ocorrenas sociedades concretas, na figura das pessoas que contro-lam o poder e têm a obrigação de situar os desviantes e oscriminosos - os que, no drama da vida - não querem ounão podem desempenhar os seus papéis ...

A perspectiva da realidade humana a partir da noção desociedade remete inevitavelmente a uma orientação sincrô-nica, integrada, sistêmica e concreta de pessoas, grupos, pa-péis e ações sociais que são muitas vezes vistos como umorganismo ou uma máquina. Ela como que conduz a umavisão da vida humana como algo que acontece aqui e agora,diante dos nossos olhos. Daí, certamente, ter sido o con-

. ito de sociedade o último a surgir no campo das ciênciasH ciais e da antropologia social, pois não é fácil ter-se umaperspectiva do universo humano como constituído de cate-gorias e grupos necessariamente relacionados, todos tendoI' lações com todos num jogo complexo que constitui a di-nâmica da vida coletiva. Durkheim e sua «escola sociológi-ca» desenvolveram esta posição, mas, como veremos com maisvagar na próxima parte, os inventores da Antropologia So-.íal, gente como Tylor, por exemplo, preferiu elaborar suasteorias ao redor da noção de cultura, pois era mais fácilperceber a realidade humana como feita de camadas está-ticas, isoladas entre si, do que coisas dinâmicas, interliga-das num sistema. Assim, na definição de Tylor (de 1871),n cultura é privilegiada como um conceito fundamental daAntropologia, mas dentro de uma visão voltada para «tra-'os», «itens», «complexos», «objetos» e «costumes» percebi-dos e estudados como elementos isolados, individualizados.msse ponto de vista da realidade humana como um conjun-t de elementos isolados persiste na antropologia americana,

até teóricos importantes como Robert H. Lowie oscilavamntre perceber o social como um sistema de relações ou umionjunto confuso de coisas individuais de sentido duvidoso.orno uma «colcha de retalhos», como ele mesmo colocou. 2

O conceito de sociedade (e de social) parece prestar-semais a uma percepção mecânica do. mundo humano, poisle põe claramente problemas de inter-relação entre gru-

pos, segmentos, pessoas, papéis sociais etc., já que é vir-tualmente impossível estudar uma sociedade concreta empleno funcionamento, sem buscar interligar seus domínios esegmentos entre si. São, pois, abundantes, os trabalhos queH orientam para a especulação dos «requisitos funcionais»da sociedade humana, ou seja: dos traços ou mecanismosiue uma coletividade humana deve necessariamente criar edesenvolver para tranformar-se numa sociedade. E se pen-amos, como fizeram tais teóricos, em termos de totalidades

relações, não será difícil perceber que uma sociedade re-quer um palco (um ambiente geográfico), um texto (valores

papéis sociais fixos), uma linguagem comum a «atores,dramaturgos e espectadores», formas diversas de dividir o

2. Para uma v-isão analítlca do conceito de cultura, veja·se Velho e Viveiros denstro, 1978. Este trabalho ~ lll!'a introdução às transformações sofridas pelo conceito

(10 cultura e sugere sua aplicação para o estudo de "sociedades complexas".

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trabalho e as tarefas requeridas pela peça que deseja ence-nar, domínios que assegurem sua reprodução e sua produção,estruturas de dominação que assegurem o controle das dispu-tas e as zonas de ambigüidade que o drama por ele encar-nado possa engendrar; além de especialistas que possamescrever e reescrever suas peças. A perspectiva da peça, comseus requisitos e mecanismos institucionais, não é todo odrama, pois esse mesmo conjunto pode exprimir dramas di-versos e nós sabemos como um mesmo texto tem interpre-tações distintas. Assim, na discussão da realidade humana,o conceito de sociedade deve ser sempre complementado 'pelasua outra face, a noção de cultura que remete ao texto eaos valores que dão sentido ao sistema concreto de açõessociais visíveis e percebidos pelo pesquisador. A noção decultura permite descobrir uma série de dimensões internasligadas ao modo como cada papel é vivenciado, além de indi-car as «escolhas» que revelam como este grupo difere da-quele na sua atualização como uma coletividade viva. Emoutras palavras, não basta só dizer que toda a sociedadetem uma infra-estrutura que diz respeito às relações doshomens com a natureza e instrumentos destinados a explorá-Ia e modificá-Ia (os meios de produção) ; e uma superestru-tura que engloba as relações dos homens com os homense dos homens com as idéias, espíritos e deuses. Pretenderdescrever uma coletividade humana utilizando desta visão éo mesmo que objetivar estudar uma peça de teatro, dizendoque o teatro tem que necessariamente ter uma platéia co-nivente e passiva, que assiste e um grupo de atores numpalco, ativos e atuantes. A colocação nada tem de errada.É apenas insuficiente, já que ela jamais poderá exprimirpor que alguns espetáculos são bem sucedidos e outros não.Do mesmo modo que ela não poderá penetrar na razão doteatro como algo dinâmico, vivo, onde o que existe de de-terminativo são relações, elos, interligações. Como já foi ditoanteriormente, o problema não é só explicar um conjuntono seu plano formal, mas também dar conta de como estasinstituições são vividas e concebidas pelas pessoas que asinventaram, que as sustentam e que as reproduzem. Não hásociedade humana sem uma noção de paternidade e de ma-ternidade, sem idéias a respeito da filiação e do comporta-mento ideal das suas crianças. Esse é o fator formal, dado

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na visão «sociológica» do mundo. Mas essa visao não con-segue explicar o conteúdo destes papéis sociais que variam~ormemente de grupo para grupo, de sociedade para so-iiedade. Esse conteúdo que é dado pelas ideologias e valoresiontídos nas relações sociais observáveis de um dado grupo

são eles que irão nos ajudar a compor aquilo que é co-berto pela noção de cultura. Não existe, pois, coletividadehuman~ que não se utilize substantivamente de uma noçãode sociedade ou de cultura para exprimir partes de suarealidade social. Assim, muitas vezes um costume é justifi-cado dentro de uma moldura social: «fazemos isso porque

mais econômico», «temos aquilo porque existe uma ligaçãoentre X, Y e Z», «o chefe mandou realizar aquela tarefaporque estava com raiva de X» etc. Mas também utiliza-mos a moldura cultural para exprimir e englobar condutas,racionalizando-as e legitimando-as. Quando, por exemplo, fa-lamos : «O rei mandou matar porque isso faz parte de nossaconcepção de realeza»; «comemoramos o carnaval porque issoI'uz parte de nossa tradição», «rezamos a Deus porque éII:le quem informa todos os nossos costumes». Num caso,I) apelo é para uma lógica direta, externa, aparentementevisível. No outro, a sugestão é a de que a conduta é legi-timada pelos valores e conjuntos de idéias que o grupo atua-liza, honra e que, por isso mesmo, servem para distingui-Iopomo uma singularidade exclusiva.

Na perspectiva em que estam os situando a realidade so-c' al e a realidade cultural, pode-se dizer que o arqueólogoIem a ~ultur~ e, por meio do seu estudo detalhado, esperaehegar a SOCIedade. Ao passo que o antropólogo social temI) sistema social (ou a sociedade), e, observando-o e enten-tl ndo por meio de entrevistas e conversas as motivações que11 sustentam, espera poder chegar aos seus valores e ídeo-IOA'ias.Há, pois, entre os especialistas que não percebem bemli/; a peculiaridade da existência humana uma tendência a1'( duzir o universo social exclusivamente a cultura ou a sis-1«mas de ações observáveis. Assim, os arqueólogos (e os hís-lnriadores da sociedade e da cultura) tendem a enxergarIlido numa perspectiva diacrônica, como se a sociedade não10 se realmente básica com suas determinações funcional-I truturais, Já os antropólogos sociais, que observam siste-1111\8 de ações concretas e de práticas vividas por um dado

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grupo num certo período de tempo, tendem a minimizar opapel dos objetos materiais que o grupo cristaliza em suatrajetória, objetos que concretizam sua história e o modopelo qual ele pode se perpetuar enquanto coletividade. Daí,como estamos vendo, a importância dos dois conceitos que,tudo indica, exprimem aspectos fundamentais da vida socialdas coletividades humanas e nos ajudam a perceber suaespecificidade.

7. Digressão: A Fábula das Três Raças,ou o Problema do Racismo à Brasileira

Termino esta parte com uma digressão para revelar ao leitorcomo a perspectiva sociológica encontra resistências no ce-nário social brasileiro. De fato, ela tem sido sistematica-mente relegada a um plano secundário, dado que são asdoutrinas deterministas que sempre lhe tomam a frente.Destas, vale destacar o nosso racismo contido na «fábula dastrês raças» que, do final do século passado até os nossosdias, floresceu tanto no campo erudito (das chamadas teo-rias científicas), quanto no campo popular. Mas o nossopendor para determinismos não se esgota nisso, pois logodepois do «racismo» abraçamos o determinismo dado pelasteorias positivistas de Augusto Comte, teorias básicas paramuitos movimentos sociais abraçados por nossas elites, en-quanto que modernamente assistimos ao surgimento do mar-xismo vulgar como a moldura pela qual se pode oriental'muito da vida social, política e cultural do país. Estamos,pois, novamente às voltas com um outro determinismo, agorafundado numa definição abrangente do «econômico» e das«forças produtivas», e temos outra vez a possibilidade detotalizar o mundo e a vida social num tempo que' não é oda vontade e consciência dos agentes históricos, mas emforças e energias que se nutrem em outras esferas, incon-troladas pela vontade e desejos humanos. Num certo sentido,retornamos a um começo, recusando a discussão aberta ('generosa de nossa realidade enquanto um fato social e his-tórico específico.

Nesta digressão, pois, apresento o caso do «racismo àbrasileira» como prova desta dificuldade de pensar social-mente o Brasil e ainda como uma tentativa de especular

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0111 as razões que motivam as relações profundas entreI 1I cios científicos supostamente eruditos e divorciados daII"I dade social e as ideologias vasadas na experiência con-III tIL do dia-a-dia. Observo, então, nesta parte, como o nossoI I. ma hierarquizado está plenamente de acordo com os de-

It I mlnísmos que acabam por apresentar o todo como algoIII/'I'eto, fornecendo um lugar para cada coisa e colocando,uuiplementarmente, cada coisa em seu lugar. Mas é preciso

I IIU! ar do começo,I o começo aqui é a perspectiva de senso comum rela-

t Imente à Antropologia. Tomando tal posição como pontoIh nartída, assinalo minha convicção segundo a qual é sempreI I 11 r do que supomos a famosa distância que deve separarI orias eruditas (ou científicas) da ideologia e valores" tuudídos pelo corpo social, idéias que, como sabemos, for-III/Im o que podemos denominar de «ideologia abrangente»IltlHtue estão disseminadas por todas as camadas, permeando

us espaços sociais. Por tudo isso, gostaria de começarI 1111morando uma experiência social corriqueira para o pro-

nal de Antropologia.uando alguém descobre que somos «antropólogos» -

11 amigos, observo, dizem isso pronunciando a palavra como• lu fosse uma fórmula, posto que é, na maioria das vezes,

li -onhecída, supondo uma atividade misteriosa - a primei-I rgunta é sempre dirigida ao nosso trabalho com ossos,1\ s, túmulos e esqueletos fósseis. Outra indagação fre-

11 ute pode igualmente surgir no conjunto de perguntas•• 111' as «raças formadoras do Brasil», com todas aquelasIlIh ações já conhecidas desde o tempo da escola primária,

I 111 \ que misteriosamente persistem no nosso cenário ideoló-1'11, perguntas que dizem respeito a uma confirmação cien-

I t t ~ da «preguiça do índio», «melancolia do negro» e aI ICJ) dez» e estupidez do branco lusitano, degredado e de-I "Indo. Tais seriam ainda hoje os fatores responsáveis,

11 tn visão tão errônea quanto popular, pelo nosso atraso, '"1\ mico-social, por nossa indigência cultural e da nossali. I'. li idade de autoritarismo político, fator corretivo básico111 Ii universo social que, entregue a si mesmo, só poderiad. nerar-se, Ouvindo tais opiniões tantas vezes, eu sempre11 I V rgunto se o racismo do famoso Conde de Gobineau está

"mente morto!

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A resposta de que somos antropólogos SOCIaIS(ou cul-turais) e que estamos interessados no estudo da vida socialdos grupos humanos ou, como é o meu caso, em índios deverdade, faz o interlocutor calar-se ou então provoca o enter-ro do assunto com o comentário de que os índios estão sendodestruídos e perdendo suas terras. Mas a essa altura temosuma conversa séria, aproximando o leigo de certos problemaspolíticos e econômicos atuais, questões das quais ele dese-ja ardentemente fugir, o que conduz à decepção final de queo antropólogo social é mais um desses especialistas em pro-blemas contemporâneos. Não é aquele senhor grisalho e deroupas cáqui que com seus óculos finos e capacete de explora-dor descobre esqueletos datados de três mil anos antes de Crís-, .to em algum lugar do mundo, provavelmente no Antigo Bgito.Do mesmo modo, ele não é também o sagaz contador decasos, capaz de alinhavar historietas de negros escravos,lendas de índios idealizados ou episódios históricos de damas,duques e príncipes portugueses, na nossa graciosa fábula dastrês raças.

Disto tudo, fica a imagem do antropólogo social comoum medidor de crânios, um confirmador de teorias sobre asraças humanas ou um arqueólogo clássico, romanticamenteperdido nas misteriosas discussões das crenças iniciáticasegípcias, arena privilegiada onde se encontram todas asnossas crenças na reencarnação, no Carma indiano e nascuras mágicas. Traços que se ligam às nossas mesas do altoespiritismo kardecista, aos terreiros poeirentos de Umbandae às teorias «científicas» da Parapsicologia. Ei tudo isso,como sabemos bem, faz parte do mundo ideológico brasilei-ro dominante, generalizado e abrangente.

Ou seja, nos nossos valores, o lugar do antropólogo ésempre junto à Biologia (medindo caveiras ou discutindoraças) ou com a Arqueologia Pré-Histórica, perdido na ma-drugada dos tempos. Ora estamos na História do Brasilvista, a meu ver, pelo seu prisma mais reacionário: comouma «história de racas» e não de homens; ora estamos forado mundo conhecido~: no Antigo Egito, na velha Grécia 011

junto com os homens das cavernas. Em todo o caso, observonovamente, sempre com o conhecimento social sendo reduzido a algo natural como «raças», «miscigenação» e traçosbiologicamente dados que tais «raças» seriam portadoras. Na

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1111 '"e r das hipóteses, estaríamos tratando da pré-históría, ou1/1: de um tempo situado antes do mundo social, no seu

11111 111'. Um tempo que marca justamente o surgimento daIdnde, da cultura e da história. Essa é, numa penada, a

I"'" onde somos sempre colocados.() fato social (e ideológico) fundamental, que precisa ser

., 1111, do e denunciado, é que, na consciência social brasilei-1 I 11 antropólogo surge na sua versão acabada de cientista

, '1I1'{.tl. Como tal, tem suas unidades de estudo bem deter-IIIIIIIld : são as raças. E o fio que deve conduzir o seuI" 11 nmento : é o plano de evolução destas raças. Tem também11 Ilmn1nio no qual se faz o drama brasileiro: é o modo pelo11111 tais «raças» entram em relação para criar um povo'"lh 110 no seu caráter. Nesta visão de mundo e de ciência111111 há que os homens e os grupos aos quais pertençam1"1 I m realizar concretamente. Tudo é uma questão de «tem-1111 11 ológíco», nunca de tempo social e historicamente deter-"llIudo. Assim, o «tempo biológico» tem suas razões que o11 11lU ) dos homens concretos e históricos desconhece, de nada

I It IIcI qualquer rebelião contra ele. Como um cientista na-111/11 d aumanizado o antropólogo social fica, nesta postura,li. I) sujeito ao estudo das coisas dadas, jamais daquilo

realizado pelo homem em sociedade. Sua «estória»,empre corre o risco de ser ordenadamente pessimista

farçadamente elitista, embora surja mascarada emI' 111011 livros como um grito de libertação. De fato, não éI 111 narrativa de possibilidades e alternativas, atitude queI 1111H' faz nascer o otimismo, mas de derrotas e feehamen-

111 I num universo onde a vontade e o espaço para a espe-11111 'IL ' muito reduzido.

Mns nem sempre o antropólogo surge na consciência po-IIdlll orno cientista natural preocupado com medidas de

com a biologia do homem como espécie animal. EleI, 1111 m surge como uma espécie de economista, produzín-111 11/tl discurso onde conceitos básicos como «modo de pro-ItI o, «sobre-trabalho», «unidade produtiva», etc. são re-li ., 111. , num conjunto quase sempre mais preocupado com" III'IDa do que com a substância mesma destas relações'ltI' IIK conceitos implicam diretamente. Questões tais como:,I '111 modo se desenvolve o capitalismo no Brasil; como seI " (' ncretamente as relações de produção e trabalho entre

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vi5i'

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nós; como todo esse edifício é percebido pelos que nele estãoenvolvidos e muitas outras são raramente realizadas. Respon-der a essas questões seria fundamental para perceber aquiloque Marx denominou de «éter» das relações sociais; ou seja:os valores e as motivações que - como cultura e ideologia- emolduram e dão sentido às próprias relações sociais e deprodução. Deste modo, quando deixamos de perceber quandoas idéias passam a ser atores em certas situações sociais,seja porque atuam para desencadear a ação, seja para im-pedir certas condutas, deixamos de penetrar no mundo so-cial propriamente dito e, assim fazendo, corremos o riscode cair na postura teórico-formal e, com ela, no plano abstra-to das determinações. Sejam as de caráter biológico, sejam asde caráter econômico que hoje tendem a substituir essas deter-minações mais antigas, fornecendo o quadro que permiteencontrar novamente uma totalidade abrangente e superiorque tudo submete e explica, enquanto esconde as possibili-dades de resgatar o humano dentro do social, já que elejamais pode ser contido em «leis», «fórmulas», «regras» oudeterminações, a menos que o jogo das forças sociais assimo deseje. O ponto destas reflexões é fundamental e terei queretomâ-lo mais adiante, sob pena de ser acusado de super-ficialidade ou ignorância. Agora, porém, é preciso prosseguirna especulação do sentido psicológico da nossa fábula dastrês raças e de suas implicações para uma antropologia bra-sileira que se deseja realmente libertadora.

Tomemos esse plano como ponto focal de nossas inda-gações. Essa fábula é importante porque, entre outras coisas,ela permite juntar as pontas do popular e do elaborado (ouerudito), essas duas pontas de nossa cultura. Ela tambémpermite especular, por outro lado, sobre as relações entre ovivido (que é freqüentem ente o que chamamos de popular e oque nele está contido) e o concebido (o erudito ou o cien-tífico - aquilo que impõe a distância e as intermediações).

É impressionante também observar a profundidade histó-rica desta fábula das três raças. Que os três elementos sociais- branco, negro e indígena - tenham sido importantes entronós é óbvio, constituindo-se sua afirmativa ou descoberta quaseque numa banalidade empírica. É claro que foram! Mas h{t

uma distância significativa entre a presença empírica dORelementos e seu uso como recursos ideológicos na construção

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di identidade social, como foi o caso brasileiro. Mas devoI1 mbrar, não foi o caso norte-americano, mexicano' e deIIltI tos outros países da América do Sul e Central, onde _III! mos bem - branco colonizador, índio e negro formavamI m ntos visíveis empiricamente. Mas em muitas outras so-

I Idades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, o recorte111 ,1\1 da realidade empiricamente dada foi inteiramente di-

"O, com negros e índios sendo situados nos pólos infe-, I " a de. uma espécie de linha social perpendicular, a qualI urpre SItuava os brancos acima. Naquele país, como tem

11; rn nstrado sistematicamente muitos especialistas, não háInlas entre elementos étnicos: ou você é índio ou negro

1111 1l~0 é! O sistema não admite gradações que possam pôr111 risco aqueles que têm o pleno direito à igualdade. Em

1I\lII'/l palavras, nos Estados Unidos não temos um «triân-I(o e raças» e me parece sumamente importante considerar

I 111110 esse triângulo foi mantido como um dado fundamen-1111 nn ~ompreensão do Brasil pelos brasileiros. E mais, como• I trIangulação étnica, pela qual se arma geometricamente

I ula das três raças, tornou-se uma ideologia dominan-I. I nbrangento, capaz de permear a visão do povo dos ínte-" • Innls, dos políticos e dos acadêmicos de esquerda e de di-1I til I uns e outros gritando pela mestiçagem e se utilizandoI.. hrancos, do «negro» e do «Índio» como as unidades bá-11 I I itravés das quais se realiza a exploração ou a reden-

11 ilHa massas.

() que parece ter ocorrido no caso brasileiro foi uma11111I o ideológica básica entre um sistema hierarquízado real• 1111I'1 (to e historicamente dado e a sua legitimação ideoló-

11, num plano. muito. profundo. Observo que as hierarquias111 lt\ do «antigo regime», Isto é, o regime anterior à Re-«Iue O Francesa, eram ideologicamente fundadas nas leis

.1. 111\11 e da Igreja. Era o fato de Deus ter armado uma111 111 d social com os nobres lá em cima e com o Impe-

tln, o Papa legitimando seus poderes no plano temporal11 rltual que respondia às questões neste sistema. No

II 1)I'I'1.si.Ieiro,a justificativa fundada na Igreja e num Ca-""" 1110 formalista, que chegou aqui com a colonizacão por-

11 II 111, foi o que deu direito à exploração da terra e ~àescra-I , () de índios e negros. No nosso caso, tal legitimaçãoI , fundada numa poderosa junção de interesses religio-

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sos, políticos e comerciais, numa ligadura que era ao mesmotempo moral, econômica, política e social e que tendia amexer-se como uma totalidade. Não temos companhias par-ticulares explorando a terra com o olho apenas na atividadeprodutiva e com leis individualizadas, semi-independentes daCoroa, como aconteceu nos Estados Unidos. Mas, ao contrário,era a Coroa portuguesa que, legitimada pela religião, pelapolítica e pelos seus interesses econômicos, explorava sobe-ranamente o nosso território com sua gente, fauna e flora.O jogo político estava submetido ao comercial - mas atéum certo ponto, pois no fundo era básico que o Rei tivessetodo o controle moral sobre os empreendiment-os coloniais etal «controle moral» era o motor que impulsionava a cons-ciência da colonização portuguesa, estando motivado pela re-ligião e pela política civilizatória. Em outras palavras, asatividades comerciais logo dominavam o mundo colonial por-tuguês e estavam por trás de sua arrancada colonizadora,mas o suporte consciente deste empreendimento era a fé eo império. Era na religião que Portugal encontrava a mol-dura através da qual podia justificar o seu movimentoexpansionista.

Tais favores, que podem ser lidos com o vagar que me-recem na obra de Raymundo Faoro (1975) e de VitorinoMagalhães Godinho (1971), entre outros, fortaleceram aquio sistema vigente em Portugal, realizando um perfeito trans-plante de ideologias de classificação social, técnicas jurídicase administrativas de modo a tornar a colônia exatamenteigual em estrutura à Metrópole. Deste modo, em que peseas especulações sobre nossa formação social (tingida, comodesejam os nossos ideólogos, pelo sangue negro e indígena),o fato social crítico e socialmente significativo é que eraPortugal quem nos dominava, abrangia e totalizava. Emoutras palavras, a Colônia brasileira nunca foi um campopara experiências sociais ou políticas inovadoras, onde se pu-dessem ímplementar a fundo diferenças radicais e individua-lidades. Muito pelo contrário, apesar das diferenças regio-nais, de clima, de desenvolvimento econômico e experiênciapolítica, todo o nosso território foi sempre fortemente centralizado e governado por meio de decretos e leis uníversalizantes, ditadas na sede do Governo. Nosso modo doexpressão como sociedade, como uma totalidade socialmente

nificativa e diferenciada, sempre foi por meio de leis alta-1111nte generalizadoras, dentro do formalismo jurídico que éI J) dra de toque das sociedades hierarquizadas modernas.

11!t1l outras palavras, o nosso sistema colonial estava fun-dlldo numa «hierarquia moderna», sistema cujos pés eram oI 11tHrcio mundial, os braços eram as leis e uma administra-I o .olonial baseada numa larga experiência mundial, o corpoI' uma sociedade ideologicamente muito bem estruturada1111rnamente, com seus «estados sociais», e a cabeça era o

1 I . Aliás, vale a pena abrir um parêntesis para mostrar1111110as hierarquias sociais se davam em Portugal, sobretudo1IIII'que temos uma imagem de Portugal como um país ima-

11rio, atrasado, onde não existe uma sociedade. Na rea-I d, ti , porém, a sociedade portuguesa à época da colonizaçãodi, Hrasil é um todo social altamente hierarquizado, com111I tas camadas ou «estados» sociais diferenciados e comple-1IlllIl.nres. Tão hierarquizada que até as formas nominais deI, "I umento, isto é, o modo de uma pessoa se dirigir a outra,

111vnm reguladas em lei desde 1597 e foram reguladas no-IIII\( nte em lei de 1739. Como nos diz Magalhães Godinho,111o ia-se não só dar o tratamento, como mesmo aceitá-lo,

IHl8soas a que não era devido». Ou seja, a igualdade estáIljlll'o8amente proibida. E continua Godinho: «o alvará deII di janeiro de 1739 reserva a Excelência aos Grandes,

"'" Io clesiásticos como seculares, ao Senado de Lisboa erlnmas do Paço; a Senhoria pertence aos bispos e cônegos,

" ondes e barões, aos gentis-homens de Câmara e moços11 ti 11I os do Paço, abaixo, há só direito a Vossa Mercê» (Go-III 1111,1971: 73). Tais formas de tratamento altamente re-IhldliH dão-nos uma idéia dos «estados» sociais de um

1111111H cial altamente complexo, sociedade onde «as pessoasII 11'1Y m-se imediatamente em categorias que as distinguem1"I" 11orne, pela forma de tratamento, pelo traje e pelas penas

11111 tão sujeitas» (cf. Godinho, 1971: 74). E continua1111o Autor, agora especificando as divisões internas de Por-111,ti: «na Crônica de D. João I enumeram-se quatro esta-I" do reino: prelados, fidalgos, letrados, cidadãos - abaixo'I I rludãos, ou povo no sentido político (homens bons), há

IlIlId massa, sem representação em cortes. O Rei, quandoti I K às categorias sociais-jurídicas, escreve por ordem:

/ fíciais (é a categoria dos letrados), fidalgos, cava-

:'11~'1"1',,!I

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leiros, escudeiros, homens bons e, por derradeiro, o povo»(Godinho, 1971: 74-75). Do mesmo modo, há uma ordemrígida de aparecimento nos rituais ou cerimoniais, onde emprimeiro lugar surgem os prelados (que emolduram e to-talizam a festividade ligitimando a ocasião perante a ordemDivina), depois os «grandes senhores de título» que são se-guidos de outros fidalgos que, por sua vez, antecedem 08

cidadãos e o povo em último lugar. A cada uma dessas ca-tegorias sociais correspondem direitos e deveres bem marca-dos, inclusive direitos de terem punição diferenciada paraseus crimes. Nesta sociedade, cujo modelo nos é familiar,ninguém é mesmo igual perante a lei! 3

Temos em Portugal uma sociedade complexa, ou melhor,complicada. Sua economia é mercantilista e portanto moder-na. Estava fundada num mercado e em trocas comerciais.Mas toda ela era controlada por leis e decretos que rigida-mente impediam que o «econômico» se estabelecesse comoatividade dominante. No dizer de Godinho, tínhamos em Por-tugal um Estado mercantil - com uma economia modernaoperando em escala mundial, mas sem as suas Instituiçõesconcomitantes: uma burguesia comercial com individualidade e interesses próprios (cf. Godinho, 1971: 93). Ao con-trário, em Portugal havia um sistema onde imperava o mel'cantilismo, mas sem uma mentalidade burguesa, isto é, semuma classe comercial com idéias igualitárias, individualistase acreditando no poder definidor total do mercado e do dinheiro. Temos, pois, uma sociedade singular neste Portugalmoderno. Um sistema onde as hierarquias tradicionais sãomantidas, o todo sempre prevalece (na forma da Coroa, doCatolicismo, da Igrej a e do Rei) sobre as partes, e é o próprio Rei que é o principal capitalista. Se o Rei não controla totalmente o comércio, ele - por outro lado - também não deixa que o grupo que tem nesta atividade SUII

principal meta desenvolva um plano de valores a ela adcquado, Deste modo, o comerciante português em vez de opc

3. Elaborei este mesmo ponto, embora partindo de outros domíníos sociais qUfilltl1lanalisei a expressão brasileira, "Você sabe com quem está falando?", no lllml

Carnavais, Malandros e Heróis, Rio: Zahar, 1979. Neste contexto, vale recordar (JI'i1

Portugal conhecia muito bem a instituição da escravidão negra e moura, como o provI!uma citação de Clenardo, referida por Wilson Martins na sua monumental Hist», 1/1

da Inteligência Brasileira. ~ conveniente citar o texto em pauta: "Os escravos puluhuu.diz Clenardo, por toda a parte. Todo o serviço é feito por negros e mouros cativo»Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou quase a crer que só "111

Lisboa há. mais escravos e escravas do que portugueses livres de condição ... " (4' rMartins, 1976: 19 vol.: 81),

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I numa classe social horizontalizada, com forte consciên-I,. d. sua individualidade (consciência de classe, no senti-, I I ssico que Marx empresta a este termo) e interesses

, II/Â-J o Rei e a nobreza dona da terra e de outros pri-11" 01'1 tradicionais, funciona como uma categoria social.

1 •• ltHI uma camada complementar aos nobres e ao Rei, ínte-I Id, nas hierarquias sociais do sistema. Temos, pois, em••illIl-I'ul (e, diríamos, também no Brasil), a figura ímpar

I" 'li' stocrata-eomerciante ou fidalgo-burguês, personagem\, IIIH drama social e político ambíguo, cujo sistema de1.1/1 I mpre esteve fundado nos ideais da hierarquia e daunhlnde, na espada e no dinheiro,

Nl'sta sociedade dominada pelas hierarquias sociais abran-I1 I. tudo tem um lugar, A categorização social é geral,\I 111 IItlO obviamente grupos étnicos diferenciados, sobretu-I 1l101It'OS e judeus. Não se sustenta a tese de Gilberto

I t \11', (apresentada sistematicamente em Casa Grande &" ,,11/,), segundo a qual o contato com o mouro (e com a

1111111' moura) havia predisposto o «caráter nacional» do1111 fiO a uma interação aberta e igualitária com índios e111 • Muito ao contrário, o que se sabe de comunidades

ti 11I " judias em Portugal, permite dizer que o contro-111' 1\1 e político de etnias alienígenas era agudo, senão

111/11, como foi o caso dos judeus. Temos aqui uma socie-I familiarizada com formas de segregação social, cuja11 111 rlade seria marcada, na expressão de Godinho, pela

1iI 111 erácíca» e religiosa. Fica, assim, demonstrado que o1I "I 11 fi colonizador não chegou ao Brasil como um indiví-"ti r dado e degradado. Como um elo solto de uma cor-,I q\l ele próprio era incapaz de reconstruir. Muito ao

11 "O, as engrenagens do Império Colonial Português11 nu1 ito complexas e se mexiam com extrema eficiência,

I I I. rnndo sua extensão, diversidade e dificuldades de• 1101' • Reconstruiu-se aqui, obedecendo-se naturalmenteI 11' /l(,t rístícas históricas dos povos indígenas que habita-" 110 RftS praias, a sociedade portuguesa original. E tal111 II lição foi tanto mais fácil, quanto maior e mais abran-

"I, "01 o comando dos colonizadores relativamente aos na-AH im, a colonização do Brasil não foi uma empresa"I Idn por meros criminosos, indivíduos sem eira, beira

, Id.1l1osriasocial. Se ela não foi obra de grupos altamen-

~.

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te religiosos, coesos e determinados, como foi o caso dHAmérica do Norte, ela também não se constituiu numa empresa algo sem alvo, ou método. 4

:É impossível demarcar com precisão as origens do credoracial brasileiro, mas é possível assinalar seu caráter profundamente hierarquizado, como uma ideologia destinada 11

substituir a rigidez hierárquica que aqui se mantinha desd«o descobrimento, quando nossas estruturas sociais começaram a se abalar a partir das guerras de Independência. ()movimento de Independência provocou toda uma reorientação dos sistemas de hierarquia vigentes no Brasil, fazendocom que a estrutura de poder tivesse como ponto final 11

Corte do Rio de Janeiro, em vez de se prolongar .para oalém-mar, na direção de Lisboa, ponto do qual, anteríormente, partiam todas as ordens e todos os favores. Mesmo considerando que nossa Independência foi obra dos estratos dominantes e não um movimento de baixo para cima, nãotendo por isso mesmo o mérito de ser uma alavanca paratransformações sociais mais profundas, ela foi básica na medida em que apresentou à elite nacional e local a necessidade de criar suas próprias ideologias e mecanismos de Tacionalização para as diferenças internas do país. De fato,é impossível separar e tornar-se independente, sem a conseqüente busca de uma identidade - vale dizer, de umnbusca no sentido de justificar, racionalizar e legitimar diíerenças internas. Se antes a elite podia colocar todo o pesodos erros e das injustiças sobre o Rei e a Coroa Portuguesaem Lisboa, a partir da Independência, esse peso tinha qu«ser carregado aqui mesmo, pela camada superior das hierarquias sociais. Onde foi nossa elite buscar tal ideologia?

Creio que ela veio na forma da fábula das três raças I

no «racismo à brasileira», uma ideologia que permite conciliar uma série de impulsos contraditórios de nossa sociodade, sem que se crie um plano para sua transformaçãoprofunda. Neste sentido, vale a pena observar, com ThomunSkidmore (1976), que o marco histórico das doutrinas l'a

cíais brasileiras é o período que antecede a Proclamação dnRepública e a Abolição da Escravatura, momento de cris«nacional profunda, quando se abalam as hierarquias sociais

4. Neste sentido, recomendo fortemente a leitura de Boxer, 1969, e de Scbwarh.1979.

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que deveria ter chegado com a Independência que,I II 1.0, ela acabou adiando, mas que se realizou afinal nohiv m nto Abolicionista e da Proclamação da República,

I dois momentos críticos, parte e parcela de um só drama11 111 altamente contraditório já que a Abolição é progressí-I I nberta - propugnando pela igualdade e transformação

1 I 11i rarquias; ao passo que a República é um desfechoI II/ldo e reacionário, destinado a manter o poder dos donos

I Iurra, conforme revela, entre outros, Richard GrahamI I til I) .

( fato de a Abolição se constituir num movimento con-I I" uma terrível ameaça ao edifício econômico e socialI1 PH S. Deste modo, se a ideologia católica e o formalismo

1111 11, que veio com Portugal não eram mais suficientesI' II1I ustentar o sistema hierárquico, era preciso uma nova'" IIlo/{ia. Essa ideologia, ao lado das cadeias de relações so-,111 dadas pela patronagem e que se mantiveram aparen-1I 1111Il't intactas, foi dada com o racismo. Mas é preciso11•• 1111 orno essa ideologia surgiu de modo complexo, no bojo1i doia impulsos contraditórios típicos aliás das grandesI I de abertura social. Um deles, caracterizado pelo pro-

1110 I' acionârio de manter o status quo, libertando o escra-'I urldicamente, mas deixando-o sem condições de libertar-

Itl'ial e cientificamente; o outro é muito diferente: trata-,(I perceber como o racismo foi uma motivação poderosa

11.1111 nvestigar a realidade brasileira. Pode-se, pois, dizerItll , «fábula das três raças» se constitui na mais poderosaI 111' ultural do Brasil, permitindo pensar o país, integrarIII 111m nte sua sociedade e individualizar sua cultura, Essa1.11,,11\ hoje tem a força e o estatuto de uma ideologia do-11 IIWl1te: um sistema totalizado de idéias que interpenetra

111' ria dos domínios explicativos da cultura, DuranteIIII I, 'fi anos forneceu e ainda hoje fornece, o mito das três" I' I as bases de um projeto político ·e social para o bra-1\ I I> (através da tese do «branqueamento» como alvo a ser

1111 1'1 (l ); permite ao homem comum, ao sábio e ao ideólogo11111" b r uma sociedade altamente dividida por hierarquiza-

.omo uma totalidade integrada por laços humanos11110 com o sexo e os atributos «raciais» complementares;

I unlmente, é essa fábula que possibilita visualizar nossa111" lnde como algo singular - especificidade que nos é

•.,

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I I

presenteada pelo encontro harmonioso das três «raças». ~eno plano social e político o Brasil é. rasgado por hierarqui-zacões e motivações conflituosas, o mito das tres «ra~a.s» un.ea ;ociedade num plano «biológico» e «natural», domínio UnI-tário prolongado nos ritos de Umbanda, na cordialidade, nocarnaval, na comida, na beleza da mulher (e da mulata) ena música ...

Mas é preciso falar um pouco sobre as fontes erudita!'!deste racismo brasileiro. Sabemos que ele nasceu na Europano século XVIII na crise da Revolução Francesa, mas só veiodominar o cenário intelectual europeu no século seguinte, naforma das teorias evolucionistas cientificamente respeitadas.No século XVIII, sua apresentação carecia de força ideoló-gica, pois era apenas - de acordo com Hannah ~re??t(1976: capo 2) - uma doutrina que trabalhava uma históriaheróica do povo francês, numa concepção segundo a. qual osnobres formavam uma parcela alienígena forte e, aSSIm, des-tinada pelo nascimento e origem ao poder. No século XIX,entretanto o racismo aparece na sua forma acabada, comoum instrumento do imperialismo e como uma justificativa«natural» para a supremacia dos povos da Europa Ocidentalsobre o resto do mundo. Foi esse tipo de «racismo» que 11

elite intelectual brasileira bebeu sofregamente, tomando-ocomo doutrina explicativa acabada para a realidade qUI\existia no país. Do mesmo modo que ocorre ainda hoje, as t~orias racistas produzidas por norte-americanos como Aga~sI/.;ou por europeus como Buckle, Gobineau e Couty, para ficarmos com os que foram os mais influentes no Brasil, são amplamente adotadas, tendo-se grande preocupação - como reveluSkidmore (1976: capo 2) - com as idéias daqueles estudiosos, como Buckle, Gobineau e Agassiz que fizeram refi,rências expressas ao Brasil. Nelas, obviamente, nosso futu 1"0

surgia como altamente duvidoso, já que a sociedade brasileira se caracterizava por se constituir numa arena de CO/l

junções raciais entre negros, brancos e índios, uniões quneram totalmente condenadas. Assim dizia, por exemplo, oConde de Gobineau que levaria «menos de duzentos anos ..o fim dos descendentes de Costa-Cabral (Brasil) e dos e~"grantes que os seguiram» (cf. Skidmore, 1976: 46) .. ~u sejn,Gobineau colocava a tese de que a sociedade brasileira ('1"11

inviável porque possuía enorme população «mestiça», produ

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10 indesejado e híbrido do «cruzamento» de brancos, negros• ndios, tomados por esses «cientistas» como espécies dife-I', 1\ iadas. Apesar da diversidade das teorias «racistas» espo-/ d~\s pelos vários especialistas, eles partiam de pressupostosmples ; simplicidade, aliás, que se constituía, como já cha-

IIIt atenção, numa da mais poderosas razões de seu atrativo!td, lectual e político. Mas quaís eram esses pressupostos?

Um deles é o de que cada raça ocupa um certo lugarII1I história da humanidade. Não importa aqui considerar se/I proposição tinha um ponto de partida segundo o qual todas"li raças saíram de um mesmo tronco comum ou de AdãoI IIJva (como foi de fato teorizado nos séculos XVI e XVII)'"1 I:l elas haviam sido criadas de modo diferenciado desdeti começo, o fato é que, tanto na hipótese monogenista quanto/111 poligenista, elas eram tomadas como espécies altamente11 1'(\1' nciadas, seja no tempo, seja no espaço, ou em ambas/I dimensões. Daí a ilação de que as diferenças entre as,111' dades e nações expressavam as posições biológicas di-

11'1\ nciadas de cada uma numa escala evolutiva. Louis Agassíz,"UI' xemplo, que foi provavelmente o maior dos poligenistasdll Estados Unidos, não hesitava em situar a «raça branca»1111110 superior e, após sua famosa visita ao Brasil, escreverti 11 I H u livro o que seria uma opinião díscutidíssima sobre'I nosea sociedade. Dizia o célebre zoólogo de Harvard : «Que'1Wllqller um que duvida dos males desta mistura de raças,

inclina, por mal entendida filantropia,a botar abaixoIlId, as barreiras que as separam, venha ao Brasil. Não1111111 t'á negar a deterioração decorrente do amálgama deI I IIH, mais geral aqui do que em qualquer outro país do1111111110, e que vai apagando rapidamente as melhores qua-I ti 11 s do branco, do negro e do índio, deixando um tipo111I11 f' nido, híbrido, deficiente em energia física e mental»(111, do por Skidmore, 1976: 47-48). Como se observa, o"111,'11 istico não é muito diferente do de Gobineau.

ITm outro ponto também essencial nas doutrinas racistas11 (( terminismo, Isso significa que as diferenciações bío-

I, !'HI-! são vistas como tipos acabados e que cada tipo está0/. I. rmínado em seu comportamento e mentalidade pelos fa-"li' H intrínsecos ao seu componente biológico. Gobineau ela-111111111 bem esse ponto, valendo a pena reproduzir aqui o

11 I tquema das «raças humanas», pois para esse autor há

rc.:r'''J:";I.~..

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uma perfeita equação entre traços biológicos, psicológicos oposição histórica. Uma espécie de totemismo às avessas. EiHo esquema racial de Gobineau, tirado do seu A DiversidadeMoral e Intelectual das Raças:

RA:ÇAS HUMANAS

Negra Amarela Branca

Intelecto Débil Medíocre Vigoroso

Propensões Muito fortes Moderadas Fortesanimais

Manil estações Parcialmente Comparativamente Altamentemorais latentes desenvolvidas cultivadas

(De acordo com Gobineau, 1856: 95, 96)

o esquema põe a nu não só a questão da diversidade,como também a concepção da superioridade das chamadas«raças brancas», traço que a história confirmava amplamen-te na teoria de Gobineau. Além disso, cada «raça» tem umadeterminada tendência, havendo na base uma equação entreRAÇA = CULTURA = NAÇÃO = TRIBO. Deste modo,os fenicios eram mercadores; os gregos, «professores dasfuturas gerações» e os romanos, modeladores de governo eleis. Acrescenta ainda Gobineau, explícítando um pouco maissua visão determinista: «Estes poderes e os instintos ouaspirações que surgem deles nunca mudam enquanto a raçapermanece pura. Eles progridem e se desenvolvem, mas nuncaalteram sua natureza» (1856: 76). Estamos diante de umverdadeiro código natural e diante de realidades que jamaispodem mudar pelo ato puro e simples da vontade. Ao con-trário, nesta perspectiva, as qualidades positivas e negativassão dadas de uma vez por todas - sendo depois o destinoda «raça» atualizado numa mera questão de combinações.Se as «propensões animais» são fortes e não contrabalan-çadas por «manifestações morais», a «raça» estaria conde-nada a ter uma vida coletiva deficiente e desorganizada.

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/111111< smo modo e pela mesma lógica, quando as «propen-dlldl li animais» são fortes e o «intelecto» é vigoroso, como1111'1om as «raças brancas», o resultado é uma «grandeIII1I1H~o do sentido moral, com uma complexa e variada

11111Ili ilação política emergindo» (cf. Gobineau, 1856: 96).N te modelo, cuja simplicidade, determinismo e pobre-

I 1I0H faz hoje imaginar como foi possível levá-lo a sério/1 111 nos de cem anos atrás, as civilizações decaíam, arrui-II11-um-se, eram conquistadas, não se desenvolviam ou sim-I I. 111nte desapareciam porque sua «história racial» conduzia• 111xturas infelizes dos traços contidos em cada unidade• 11I I. Daí, certamente, a fantástica preocupação do CondeI, (:obineau com o Brasil, onde ele serviu como Embaixador."111 11l de uma realidade física de mulatos, cafusos e ma-IIIIIIU'OS,diante de uma sociedade altamente variada em ter-I 1111cI cor, Gobineau não teve outra alternativa senão

1"'01iar seu pessimismo diante do futuro do país já que,JlI 1,,\ uas teorias, aqui o branco estava perdendo suas qua-IlIhllltS para o índio e, sobretudo, para a «raça negra».

Com o imenso prestígio que circunda tudo o que vemdi "ora, sobretudo da Europa e dos Estados Unidos, esta1,111'H que gerou o «arianismo» e permitiu relacionar a Bío-Itll I e a História com a moralidade foi logo aceita no, I1\ l. De fato, nada mais fácil para servir de «modelo111\lI. fico» a nossa realidade, dando-lhe uma forma totalíza-dtl ( acabada, do que essa síntese arianista, nascida das1111 11 de Gobineau. Mas isso não ocorreu ao acaso, ou por1111\percepção empírica da experiência histórica brasileira.I I'lHI'O, como indica Skidmore (1976), que a experiência his-lill' ('H é básica para a adoção das teses «racistas», mas aI 111\ ver essa experiência não é tudo.

I'J istem, como estou procurando mostrar, fatores mais11I1I1'"ndosrelacionados à formação social, cultural e histó-I"'H do Brasil que permitem especular sobre a adoção e a111uunnência do «racismo» como ideologia e como tema deII III fio científica, de Sílvio Romero até os nossos dias. Con-Idll' mos sumariamente tais fatores:

primeiro ponto a ser considerado é que nem todas as11I1/ll/tSde determinismo foram aceitas para discussão no1111I) ocial, político e cultural brasileiro. Em outras palavras,I ti H ussão das teses do «determinismo geográfico» são cer-

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tamente menos estudadas e debatidas do que as oferecidaxpelos «determinismos raciais», segundo os quais a unidadedeterminativa dos fatos sociais e políticos, o agente de causalidade não é o solo, a chuva, o clima, a temperatura ou oregime dos rios, mas fatores biológicos internos. A prefcrência indica claramente a relação profunda existente entreo meio social brasileiro e as doutrinas racistas de gente cornoGobineau, Lapouge, Inginieros, Couty e outros. Existe, POiH,

uma relação profunda, socialmente determinada, entre HH

doutrinas racistas de tipo histórico (chamadas de earianistas»), em seu apelo explicativo para uma sociedade concrctamente dividida em segmentos, cujo poder e prestígio difcrencial e hierarquizado correspondia, grosso modo, a diforenças de tipos físicos e origens sociais.

O segundo é que o racismo à la Gobineau tinha o méritode inaugurar uma reflexão sobre a dinâmica das «raças»,abrindo a discussão das dinâmicas sociais. Podia-se, comisso, deixar de louvar os tipos puros (sobretudo o «brancoariano» ), passando para a especulação dos resultados d011«cruzamentos» entre as «raças». Isso correspondia à situaçãohistórica e social do Brasil, onde a escravidão estava contida num sistema político antiindividualista e antiigualitário :um sistema totalizante e abrangente, dominado por umnmodalidade muito bem articulada e antiga de formalismnjurídico - legado da colonização portuguesa. O fato ele'termos constituído até o final do século passado uma sociodade de nobres, com uma ideologia aristocrática e antiiguulitária; dominada pela ética do familismo, da patronagcme das relações pessoais, tudo isso emoldurado por um sisí ('ma jurídico formalista e totalizante, que sempre privilegiao todo e não as partes (os indivíduos e os casos concretos):deu às nossas relações sociais um caráter especial. Fez, pOIexemplo, que o regime de escravidão fosse aceito como alg'onormal pela maior parte dos membros de nossas elitcn,tornando-se um sistema universal pelo fim do século Xl XEm outras palavras, a escravidão brasileira não foi um fentmeno social regional, altamente localizado, como ocorreu comos Estados Unidos, mas - pelo contrário - tornou-se UIlIlIforma dominante de exploração do trabalho. Como diz Skidmore, «por volta do século XIX, toda região de maior irnportância geográfica tinha percentagem significativa de ('/1

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I I"IVOSem sua população. Em 1819, segundo uma estimativa111' .ial, nenhuma região tinha menos de 27% de escravos napopulação total» (cf. Skidmore, 1976: 59). E isso não po-de rla ser de outro modo, dado que o sistema era governado1101" meio de uma estrutura política autoritária, centralizante,IIlul o político e a moralidade sempre controlavam e demar-ruvam de cima os impulsos econômicos.

Em outras palavras, numa sociedade fortemente híerar-'111 zada, .onde as pessoas se ligam entre si e essas ligações

•• consideradas como fundamentais (valendo mais, na ver-tllI!! , do que as leis universalizantes que governam as instí-111 .ões e as coisas), as relações entre senhores e escravos11111liam se realizar com muito mais intimidade, confiança e«nieideraçõo. Aqui, o senhor não se sente ameaçado ou cul-IIlIdo por estar submetendo um outro homem ao trabalhoI ",. rvo, mas, muito pelo contrário, ele vê o negro como seuIIIl/Il{)lemento natural, como um outro que se dedica ao tra-I',\lho duro, mas complementar as suas próprias atividadesI/IIt ão as do espírito. Assim a lógica do sistema de rela-I IH sociais no Brasil é a de que pode haver intimidadeI ,,11' senhores e escravos, superiores e inferiores, porque oII"Nldo está realmente hierarquízado, tal e qual o céu daI, 1' • ja Católica, também repartido e totalizado em esferas,I II'ulos, planos, todos povoados por anjos, arcanjos, queru-I, 11 , santos de vários méritos etc., sendo tudo consolidado11/1 , antíssima Trindade, todo e parte ao mesmo tempo; igual-d/lll. e hierarquia dados simultaneamente. O ponto críticodi t do o nosso sistema é a sua profunda desigualdade.

11 uém é igual entre si ou perante a lei' nem senhores,ti I' rencíados pelo sangue, nome, dinheiro, títulos, proprie-d"dI\H, educação, relações pessoais passíveis de manipulaçãoI II I , nem os escravos, criados ou subalternos, igualmente11 li', " nciados entre si por meio de vários critérios. Esse' é,11111\(' -me, um ponto-chave em sistemas hierarquizantes, pois,"IIIIIç! se estabelecem distinções para baixo, admite-se, pela"lllIlIlft lógica, uma diferenciação para cima. Todo o univer-II \O .íal, então, acaba pagando o preço da sua extremada

Ia ualdade, colocando tudo em gradações,N ste sist,em~, não há necessidade de segregar o mestiço,

mulato, o índio e o negro, porque as hierarquias asse-111'1 rn a superioridade do branco como grupo dominante. A

'I·

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intimidade, a consideração, o favor e a confiança, podemse desenvolver como traços e valores associados à hierarquiaindiscutível que emoldur~ a sociedade e nunca - como SUpÜIiFreyre - como um elemento do caráter nacional POrtUgUêH,Tal e qual na índia, as camadas diferenciadas da sociedade_ as castas - são vistas como rigorosamente complementares. Aqui no Brasil, o nosso racismo forneceu os elementos de uma visão semelhante, colocado no triângulo das racunquando situa o branco, o negro e o índio como formadorende um novo padrão racial. Branco, porém, diferente d011«arianos» europeus ou americanos do norte: algo tipicameute brasileiro, singular e forte como o samba e o carnaval.A falta de segregação parece ser, pois, um elemento relucionado de perto à presença de patronagem, intimidade "consideração. Numa palavra, a ausência de valores igua,{,itários. Num meio social como o nosso, onde «cada coisa tC1I1um lugar demarcado e, como corolário, - cada lugar temsua coisa», índios e negros têm uma posição demarcada numsistema de relações sociais concretas, sistema que é oricntado de modo vertical: para cima e para baixo, nunca parnos lados. É um sistema assim que engendra os laços de putronagem, permitindo conciliar num plano profundo posiçõcnindividuais e pessoais, com uma totalidade francamente dirigida e fortemente hierarquizada. Em sociedades assim constituídas, situações de discriminação (ou de segregação) HO

tendem a ocorrer quando o elemento não é conhecido socialmente; isto é, quando a pessoa em consideração não tem 1\não mantém relações sociais com pessoa alguma naquele meio,A discriminação não é algo que se dirige apenas ao diferente,mas ao estranho, ao indivíduo desgarrado, desconhecido li

solitário: ao estrangeiro - o que, numa palavra, não estllintegrado na rede de relações pessoais altamente estruturadas que, por definição, não pode deixar nada de for»nem propriedade nem emoção nem relação. Ê claro que, n011sistemas hierarquizados, pessoas de cor sofrem díscriminacãocom mais freqüência, mas não se pode esquecer que pessonupobres e até mesmo visitantes ilustres podem ser discrim 1nados pela simples razão de não terem nenhuma associaçà«firme com alguém da sociedade local. O maior crime entronós, ou melhor: no seio de um sistema hierarquizado, niíllestá em ter alguma característica que permita diferenciar

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11 ím inferiorizar, mas em não ter relações SOCIaIS.Umaque tais relações são estabelecidas, todos ficam dentro

11rn sistema totalizante e é sempre por meio dele que asI I' nças entre os grupos são resolvidas.

Mas o que ocorre em sistemas igualitários e individua-I1 IdoH, onde as hierarquias que sustentam o poder do todo11111'\AS partes foram rompidas?

A responder a essa questão, chegamos ao centro da111.I' Iça entre o «racismo» brasileiro e norte-americano,111111 mo ao cerne das diferenciações raciais doutrinárias.

,ti II m s que nos Estados Unidos e na Europa o «mestiço»111visto como peça indesejável do sistema de relações ra-111ti. De fato, o foco das teorias era a especulação sobre a

1IIIIII'Ioridade básica do «mestiço», elemento híbrido, e dota-dil di todas as qualidades negativas daquilo que se chamava011\ sub-raças». Numa palavra, todo o problema era que,1111110 mbora se pudesse tomar as «raças» como tendo qua-Ildllll I:l positivas, colocando a «raça branca» como inques-Iuuu v lmente superior, o que não se podia realizar era a

111 lura» ou o «cruzamento» entre elas. Aqui, a doutrina1.11' Ia deixa transparecer dois pontos muito importantes que'I ",,(,lise sociológica não deve deixar passar: um deles é'1111/li! «raças humanas», embora situadas em escalas de atra-II I progresso, tinham qualidades. Seriam até mesmo dignas

111 I\dmiração, caso não fossem jamais colocadas lado a lado.II nutro, é a condenação fundamental de suas relações. O11111' ?/,ao está nas diferenças entre as raças, diz o «racismoI ',l/liHta»,mas nas suas relações. Aqui temos, obviamente, o111110·have dos racismos «arianistas», sobretudo na sua mo-

1II\Ilnd americana. E o que isso nos diz do ponto de vista111'11119ico? Diz-nos claramente que o problema é considerar

,,,d,,, «raça» em si, mas nunca estudar suas relacões E nós,ti 11ItlOS que as relações denunciam estruturas de poder di-

I. uuioladas e hierarquizadas em sistemas fundados num credo11I1.1íário explícito. A elaboração do «racismo científico»

111111,-nmericano correspondia muito de perto à realidade so-1111dltquele país, onde o credo igualitário, o individualismo11 ti al da igualdade perante a lei criavam obstáculos insu-

VI Ia para uniões entre pretos e brancos em outros pla-111 IIU não fosse o do trabalho. O fato, então, de ° «mu-I 111 H 'r tão desprezível no credo racial americano, a ponto

'I;~',"

.'li'

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dele não ter ali uma posição socialmente reconhecida, postoque é classificado como «negro», tem suas raízes, como de-monstrou Myrdal (1944), na existência concreta de um credoigualitário e individualista e no peso social deste credo dentrodo meio social norte-americano. 5

Realmente após o movimento abolicionista, a massa denegros livres 'tornou-se um problema social serís~imo, ~osEstados Unidos. Diferentemente do Brasil, onde havia variascategorias de negros com posições sociais diferenciadas nosistema (negros escravos recentes, negros escravos antigos,negros escravos mais longe ou mais perto. das casas-grandes,negros livres há muito tempo, negros livres rec~ntemente,crianças livres filhas de escravos etc.) , naquele. pais, .a com-binação do homem livre com o negro era mUlto. ~als rarae foi conseqüência de uma sangrenta guerra _cI~Il. ~omo,então manter o credo segundo o qual todos sao .iguais pe-rante' a lei, se existem ex-escravos comp·etindo com brancospobres, sobretudo num Sul derrotado? Em outras palavras,como encontrar um lugar para negros, ex-escravos, nu~ SIS-tema que situava (e ainda situa) o ~nd}ví?uo e. \ 19ual.-dade como a principal razão de sua eXlstencla social? Aqui,a única resposta possível é a discriminação violenta,. n~ forma de segregação que, diferentemente do caso br~s:lel~o (ode outros países com contingente negro e predomman~la. deestruturas sociais hierarquizantes), assumiu caracterIstIcamente a forma clara e inequívoca de segregação legal, [undada em leis. Assumida portanto com todas as l~tras e emtoda a sua integridade, a segregação racial deixa de .sel'um paradoxo historicamente dado no sistema norte-amerícuno. Ela de fato pode ser explicada como um modo concretoe coerente de uma sociedade individualista resolver ~ problema da desigualdade e de sua manutenç~o nu~ SIstemaonde um credo igualitário tem importâncIa social determinativa.

A expressão deste fato sociológico concreto. no plano erudito das doutrinações científicas foi a doutrma ra~lal q.UI·desencorajava o «mulato» como tipo físi~o ~ categ?rIa sO~J:~1legitimamente reconhecida, tornando aSSIm impossível solid I

ficar as redes de relações pessoais efetivamente existentes

5. Para este problema, veja-se também Dumont, 1974, e Da Matta, ~979. Para "melhor anâlise comparativa dos sistemas "raciais" brasileiro e amerrcano, veJll'"Carl Degler, 1971.

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"li' brancos e negros no Sul, o que certamente poderiati 11 I' seqüência às estruturas hierarquizadas ali existentes,11tH que foram destruí das à força pela Guerra Civil queI O estabelecer a hegemonia do credo igualitário e indivi-

ti 11/1 lista por todo o sistema americano como um plano jurí-1111'0 e político socialmente básico. Esta forma de racismo'1111 nega ou coloca o tipo mestiço como indesejável surgeIUlIlb m como uma «solução científica» para um paradoxo

111' ,,1 que situava brancos e negros em posições realmente111111' nciadas, e um credo nacional fortemente igualitário no,,1111\0 político-jurídico.

rei o que são tais fatores que explicam, no caso norte-'11111 rlcano, o horror dos teóricos de tais doutrinas diante.111 t' alidade brasileira, repleta de gradações e de «tipos ra-I /I • intermediários». Sociologicamente falando, a reação que

111' revestida pelo idioma biológico, dizendo que o BrasilII 11 tinha futuro porque era um país de «mestiços» e de

111 11latos», de «suo-raças híbridas e fracas», pode ser inter-11I,lnda como um modo de rejeitar a hierarquia que permite,

I 111 ameaçar as elites dominantes, todo o tipo de encontrotil intimidades entre pretos, índios e brancos. Tal traço

I " ,como gostaria que fosse gente como Freyre e outros,11111/ aracterística cultural portuguesa, senão um modo de

111 ,'I ntar os dilemas do trabalho escravo num sistema alta-1I1111l< hierarquizado, onde cada homem tem um lugar deter-II 1111(\0 e onde a igualdade não existe. Se o negro e o branco1"ltI um interagir livremente no Brasil, na casa-grande e na,"~nln, não era porque o nosso modo de colonizar foi essen-1,lItI\( nte mais aberto ou humanitário, mas simplesmente

1"" !I11 aqui o branco e o negro tinham um lugar certo et 111 nmbigüidades dentro de uma totalidade hierarquizada

11 \I 10 bem estabeleci da.'I' li fato, entre outros, deu ao «racismo» brasileiro uma

1111111/ special, com o foco no centro do sistema. Deste modo,uuunnto a leitura americana condenava a «mistura de raças»,,,11111« por uma solução radical, contida na divisão entre

1'1 Htll'OA e negros, aqui no Brasil a preocupação e a conse-II 111 teorização foi realizada em cima do «mestiço» e do11111/110, ou seja: nos espaços intermediários e interstícios do!lI flll'cebíamos como sendo o nosso «sistema racial». Nos

,"111 onde cada «tipo racial puro» encontrava o outro e

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criava um elemento ambíguo, com supostas característicasdos dois. Foi com tal preocupação, correspondente à nossamaneira de resolver os problemas colocados concretamentepor nossa sociedade, que nasceram os racismos de Sílvio Ro-mero e Nina Rodrigues, doutrinadores fundamentais e pa-radigmáticos do nosso mundo intelectual. Pois se eles con-

. sideravam que o «branco ariano» era indiscutivelmente supe-rior ao negro e ao índio, nem por causa disso deixaram deconsiderar o caso brasileiro como constituído de um triânguloracial. Enquanto, pois, o credo' racista norte-americano situaas «raças» como sendo realidades individuais, isoladas e quecorrem de modo paralelo, jamais devendo se encontrar, noBrasil elas estão frente a frente, de modo complementar,como os pontos de um triângulo. Num esquema:

Estados Unidos Brasil

Branco

jBranco/~

Negro Indh,TT

SISTEMA UNIVERSAL DE LEIS

o diagrama deixa ver claramente como o sistema amoricano concebe a posição dos grupos diferenciados como maispróximos ou mais distantes de uma linha de leis igualitárias,que teoricamente estão distantes de todos, não se confundindocom nenhum grupo. É a ideologia do «todos são iguais pcrante a lei» que, como coloquei anteriormente, irá determinar o racismo na forma dualista, direta, legal como formapervertida (como diz Myrdal) de superação do credo iguaJitário abrangente. No caso do Brasil, é a interação entre ;1:1

peças do triângulo que irá criar as leis e o todo nacional.A ideologia é abrangente e hierarquizada em sua própriaformulação.

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o esquema também torna clara aquela outra distinçãossencial, já indicada por Oracy Nogueira (1954), num tra-

balho clássico. Enquanto o esquema do preconceito racialamericano é de «origem», o brasileiro é de «marca». Ou seja:O sistema americano não admite gradações e tem uma formade aplicação axiomática : uma vez que se tenha algum «san-~tuenegro» (e isso é determinado culturalmente), não se pode'mudar jamais de posição. Pode-se ser tratado idealmente'orno um «igual perante a lei», mas a diferença do «sangue»permanecerá para sempre. Já no nosso sistema, o ponto-.have é a admissão de gradações e nuanças. A «raça» (ou

li cor da pele, O' tipo de cabelos, de lábios, do próprio corpoe mo um todo etc.) não é o elemento exclusivo na classi-I'icação social da pessoa. Existem outros critérios que podemnuançar e modificar essa classificação pelas característicasl'lsicas (que são definidas culturalmente). Assim, por exem-plo, o dinheiro ou o poder político permitem classificar umpreto como mulato ou até mesmo como branco. Como se op so de um elemento (como o poder econômico) pudesse apa-f{ \1' o outro fator. Temos, pois, no Brasil, sistemas múltiplosti classificação social (cf. também Da Matta, 1979: capo IV) ;no passo que nos Estados Unidos há uma tendência nítida'unra a classificação única, tipo «ou tudo ou nada», diretat dualista, tendência que me parece estar em clara corre-ill .ão com o individualismo, o igualitarismo e, obviamente

como mostrou Weber - com a ética protestante (cf.W ber, 1967).

Mas o ponto importante que desej o enfatizar aqui é1111 \ esses «tipos de preconceito racial» são inteiramente coe-1'1 11 tes com as ideologias dominantes de cada uma dessas so-l' Idades, estando diretamente correlacionados com as formas11I1'olhidas historicamente de recorte da realidade social.I)t\Htemodo, os racismos americano e europeu, que partem de1IIltH realidade social mais igualitária, temem a miscigena-I' I) porque com' ela podem colocar em dúvida sua homoge-1II rlade social e política, segundo a antiga noção de que aItlt'IIH de um povo contém em si o postulado básico da iden-I ilnde e homogeneidade física. Já entre nós, o racismo euro-111 I1 e americano penetra a cena intelectual, mas é trans-illl'tnado por meio de um cenário hierarquizado e antiiguali-I I' o. Aqui ele se orienta para os interstícios do sistema,

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local onde vivem e convivem muitas categorias sociais inter-mediárias, perfazendo uma totalidade triangulada. É preci-samente isso, a meu ver, que permite integrar as «raças»num esquema altamente coerente e abrangente, formando desuas diferenças e hierarquias uma totalidade integrada. Poroutro lado, essa integração permite até hoje discutir e per-ceber a acentuada miséria dos «negros» e «índios», sem per-ceber suas diferenciações específicas e, sobretudo, sem co-locar em risco a posição de superioridade política e socialdos «brancos».

No nosso esquema, portanto, o branco está sempre uni-do e em cima, enquanto que o negro e o índio formam asduas pernas da nossa sociedade, estando sempre embaixo esendo sistematicamente abrangidos (ou emoldurados) pelobranco. O próprio triângulo sugere suas interações, nestateoria brasileira que reduz as diferenças concretas (sociais,políticas e econômicas) em descontinuidades abstratas em«raças» com uma definição semibiológica. Por isso sabemosque o triângulo inicial pode gerar outros, agora constituídode tipos intermediários, os «resultados» das misturas «ra-ciais» dos tipos puros. Assim:

Branco

Negro fOllio

Mulato ~ __ + ~ Mameluco

Cafuso

Sempre temos, como se observa no esquema, a possibi-lidade de formar triângulos. Vale dizer: de sempre interme-diar, conciliar e tornar sincréticas as posições polares dosistema, pela criação de tipos interstíciais, mediadores destasposições. Num meio social hierarquizado, tais intermediações

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I. angulares (ou sej a: em três e nunca em dois, o que con-Iluziria ao dualismo exclusivista) são parte de sua própriaI. tca social, pois é por meio da mediação que se pode efe-I vamente propor o adiamento do conflito e do confronto.

!11m,o uso, ou melhor: a invenção do mulato como umaV Ivula de escape» (cf. Degler, 1976), o sistema de precon-

to racial de marca (em oposição ao de origem), como1111 cou Nogueira; e as intimidades e redes de relações pes-unia entre negros e brancos (como coloca Gilberto Freyre),() todas funções de um sistema abrangente de classificação

••daI fundado na hierarquia. Um sistema de fato profunda-1111 nte antiigualitário, baseado na lógica do «um lugar paraI rula coisa, cada coisa em seu lugar», que faz parte de nossahurança portuguesa, mas que nunca foi realmente sacudidoIIUI" nossas transformações sociais. De fato, um sistema tãoI"Lrnalizado que, entre nós, passa despercebido.

Nesta sociedade há em todos os níveis essa recorrente1" cupação com a íntermediação e com o sincretismo, naIlIl se que vem - cedo ou tarde - impedir a luta aberta

'111 o conflito pela percepção nua e crua dos mecanismos deploração social e política. O nosso racismo, então, especulou

••h' o «mestiço», impedindo o confronto do negro (ou do111(110) com o branco colonizador ou explorador de modo di-I t o. Com ele, deslocamos a ênfase e a realidade: situamos,11/1 biologia e na raça, relações que eram puramente polí-I I'I\S e econômicas. Essa é, a meu ver, a mistificação que111 I mítíu o nosso racismo, o que explica a sua reproduçãoI ' hoje como uma ideologia científica ou popular. Do mes-

11111 modo, no campo político e social, também sintetizamos(11\1 conciliamos) sistematicamente as posições polares eulngônícas. Deste modo tivemos uma monarquia absolutista

'IlIIlndo deveríamos proclamar a república, fomos governados1111' um monarca liberal diante de uma elite reacionária eIIIIIR rvadora, temos uma burguesia que deseja se aliar com•• I'latado, desde que este defenda seus lucros. E, no campoI I A'ioso, conseguimos criar religiões intersticiaís, como al lmbanda, religiões «sincréticas», isto é,· fundadas em ele-,,\lutos compostos e tirados de outros credos, tudo isso neste1I o de ideologias que se nutrem do ambíguo e da concilia-

11 abrangente que evita a todo o custo o conflito e oIIl\fronto.

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Vemos, assim, que, entre nós, o «racismo» não foi sóuma doutrina racionalizadora da supremacia política e eco-nômica do branco europeu, e nem poderia ter sido destemodo. Aqui, o «racismo», como outras ideologias importadasforam modificadas, e nesta modificação obedeceram ao poderdas forças que constituíam nossa totalidade social. Como asociedade era hierarquizada, foi relativamente fácil refletirsobre as categorias intermediárias, intersticiais, ponto bási-co em sistemas onde existem gradações e se está semprebuscando um «lugar para cada coisa», de modo que «cadacoisa fique em seu lugar». Foi isso que efetivamente ocorreue, neste quadro ideológico-político geral, permitiu utilizar anoção de raça de modo intensivo e extensivo,

A noção de «raça» e o «racismo à brasileira» tem umvalor socialmente significativo até hoje - sobretudo entreas camadas médias de nossa população - porque o nossotipo de doutrinação racial é uma variante da européia. Entrenós, o conceito passou a ser, como o sistema que o ab~iga,totalizante. De modo que para nós raça é igual a etnía ecultura. É claro que essa é uma elaboração cultural, ideo-lógica, não tendo valor científico. Do ponto de vista bioló-gico, a raça é uma variação genética e adaptativa de umamesma espécie. Mas na conceituação social elaborada noBrasil, «raça» é algo que se confunde com etnia e assim t:ID.uma dada «natureza». Essa colocação, por seu turno, permiteescapulir ainda hoje de problemas muito mais complicados,como o de ter que discutir o nosso «racismo» como umaideologia racial às avessas, antiideológica, que se nega a siprópria, mas que é uma imagem de espelho do racismo euro-peu e americano. Só que aqui situamos questões relativa.'!aos pontos intermediários do sistema triangulado pelas trêsraças, ao mesmo tempo em que fazemos um elogio claroe aberto da mulataria (sobretudo no seu ângulo feminino)e ao mestiço. Não é por outra razão que continuamos a vero estudo da Antropologia Social como dentro de um planotraçado no século XIX, no estudo das raças; e oantropôlogncomo o grande eugenista que irá, pela «mistura» apropriadado branco, do negro, do índio e de todos os tipos intermediários, criar finalmente um «tipo brasileiro». Tipo que seráexoticamente moreno, mas obviamente abrangido pela «raçahumana»; ou então será uma «meta-raça branca», como co

loca delirantemente Gilberto Freyre nas suas modernas for-mulações do problema. 6

Não é preciso dizer novamente - pois esse foi o pontoII ta longa digressão - que tudo isso é socialmente signi-f' 'ativo e que toda essa discussão de «raças» é uma questão.11 ideologias e valores. Em outras palavras, dos modos pelosuuaís nós recortamos nossa realidade interna para nós mes-111 S. Foi neste recorte que recriamos a hierarquia que formao nosso esqueleto social e foi nele que abrimos mão de estu-rlnr as relações entre as «raças», preferindo sempre o estu-di das «raças» em si mesmas. Isso tem atrasado nossa per-('I pção de nós mesmos como uma sociedade definitivamenterlotada de estrutura social singular e cultura específica. Por-1111 , colocando tudo em termos de «raças» e nunca discutindoIIn relações, reificamos um esquema onde o biológico se con-

111 nde com o social e o cultural, permitindo assim realizar1I/lIlL permanente miopia em relação à nossa possibilidade deIItlL conhecimento. Num mundo social determinado por moti-I' es biológicas, desconhecidas de nossas consciências, pouco

1111 quase nada há para se fazer em termos de libertação eI 11 rança de dias melhores. Mas, como vimos, toda essa dou-II lU\. é ideologia social. Agora que a conhecemos, podemosI( t ornar o caminho do estudo antropológico como devotado111 ntendimento do social e o social é o histórico. Por isso

1111 mo, pode ser modificado e aberto ao sol do futuro e daI 11 rança.

, J~ a seu lado Darcy Ribeiro, cufa concepção de sociedade no fundo padece desta.. "'I" vtsão, Assim, para ele. as configurações s6cio-culturais se reduzem a "povos".•• i'pOVOS" a "matrizes étnicas". Tais "rnata-izes étnicas", porém, nada mais são

f ", um nome novo para o velho e batido conceito de "raça", na melhor tradiçãoIohtn nu, Silvio Romero e Nina Rodrigues. Conforme coloca Ribeiro, numa passagem

,I I ti, onde procura expor a tese dos "povos testemunhos". "povos transplantados".I f lI. mergentes" e "povos novos": "Os povos-novos, oriundos da conjunção. de-1111111 O e ealdeamento de matrizes étnicas muito dispares, como a indigena, ad, ~"I\ O a européia" (cf, Ribeiro, 1972: 12). Observe o uso das expressões biolô-

I ".1 Hhmtrizes" J "ealdeamento" e o termo "díspares", a trair a idéia - muito clara".1110 eltado - de que o "branco" é de fato superior ao indio e ao negro. Note

, '11, 1'1 " outra noção bãsiea (e evidentemente errada, mas muito velha entre nós)I "" li pode realmente falar em "raças" européias, africanas ou indigenas como

, 'u 1110 xplanatória.s.

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