Da Religiosidade · emite pseudópodes em direção aos intelectos abertos para ... no. Há os que...

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A COLEÇÃO ENSAIOS TRANSVERSAIS trata de temas ~ue articulam reflexões teóricas e aÇões cotidiana~, em busca do que se poderia caracterizar co.mo uma Scientia Activa. Os textôs representam vozes que procuram um debate aberto, <iJue tran:s- cenda a mer~ reiteração çl'eecos e cop.triJbuaefetiva- mente para à llílegociaçãoe a, párti}ha de signifi- cações. Tal fusão de horizontes é condiç,ão de pos- siMlidade para um acordo no discarso, fundamentclJI .. ,para a construção da c'idadani~. )~ . "

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A COLEÇÃO ENSAIOS TRANSVERSAIS tratade temas ~ue articulam reflexões teóricas e aÇõescotidiana~, em busca do que se poderia caracterizarco.mo uma Scientia Activa. Os textôs representamvozes que procuram um debate aberto, <iJue tran:s­cenda a mer~ reiteração çl'eecos e cop.triJbuaefetiva­mente para à llílegociaçãoe a, párti}ha de signifi­cações. Tal fusão de horizontes é condiç,ão de pos­siMlidade para um acordo no discarso, fundamentclJI

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© by Edita Flusser Vilém FlusserTodos os direitos desta edição reservados

Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda.Rua Maestro Callia, 123 Vila Mariana 04012-100

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Coordenação editorialNilson José Machado

CapaVera Andrade

Sistema AlexandriaA. L. : 1528677Tombo: 31458

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Da ReligiosidadeA literatura e o senso de realidade

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Editoração eletrônicaRicardo Siqueira

Ilustração da capaMikhail Aleksandrovitch Vrubel

"La Perla, 1904"Galeria Tretiakov, Moscou

FotolitosBinhos

1. Ensaios brasileros r. Título. 11.Título: A literatura e o senso de reali­

dade. m. Série.

ISBN 85-7531-060-7

ImpressãoBanira Gráfica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, Sp' Brasil)

Flusser, Vilém, 1920-1991.

Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade/Vilém Flusser. ­

São Paulo: Escrituras Editora, 2002. - (Coleção ensaios transversais)

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02-5687 CDD- 869.94

Índices para catálogo sistemático:1. Ensaios: Literatura brasileira 869.94

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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~escriturasSão Paulo, 2002

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Sumário

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Introdução 13

(1) Da religiosidade 15

(2) Por que e para quê? 23

(3) Coincidência incrível... 31

(4) Pensamento e reflexão 37

(5) Da dúvida 47

(6) Praga, a cidade de Kafka 63

(7) Esperando por Kafl<:a 69

(8) Do funcionário 83

(9) Em louvor do espanto

(10) O tema exclusivo 97

(11) Vicente Perreira da Silva 107

(12) O projeto 113

(13) Literatura brasileira de vanguarda? 133

(14) Resenha 139

(15) Concreto-abstrato 147

(16) O "Iapà' de Guimarães Rosa 155

(17) Do poder da língua portuguesa 161

Apresentação

A trajetória do filósofo Vilém Flusser é um exemplo deengajamento intelectual que se tornou raro nos dias dehoje. Da cidade de Praga, onde nasceu em 1920, Flusser esua mulher Edith emigram para o Brasil, depois de umabreve permanência em Londres, fugindo da máquina deextermínio nazista que avançava sobre a Europa no iníciodos anos 40. Em São Paulo ele inicia sua carreira como filó­

sofo ao publicar seus primeiros livros e artigos nos anos 60e atuando como professor de uma geração de jovens entusias­mados pelo seu estilo de pensar, falar e escrever sobre temasque, segundo ele, estavam remodelando toda a história doocidente.

Em suas palestras, que o tornaram conhecido comoum homem polêmico e intelectualmente sedutor, eramespecialmente os jovens que se sentiam atraídos pela suamaneira elástica de pensar, cheia de sutilezas e nuancescristalinos. Como orador influente, Flusser transcendia acondição temporal da fala, despertando para o vislumbre decertas dimensões atemporais do pensamento. Ele sabia queo arrebatamento era a condição essencial para a percepçãodo fluxo das coisas, e talvez isso possa explicar a influênciaque exerceu sobre muitos artistas, para quem ele pareciafalar desde cedo. A sua não ortodoxia-acadêmica, aliada auma vasta cultura histórica, despertavam tanto o prazer de

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pensar, quanto os várlOs ataques que sua forma de "verfilosofia nos jornais" recebeu. Seu hábito de encerrarensaios e até mesmo livros sem notas de rodapé parece tersempre afrontado aquela ordem magistral de manipulaçãodo saber, incomodada com as "performances" filosóficas ecom a objetividade comunicativa de um pensador lInicoentre nós.

No Brasil, Flusser irá exercer seu engajamel1to pormeio de publicações, cursos, palestras e projetos culturaisque, segundo sua forma de entender, poderiam servir dcmodelos para o resto mundo. Ao retornar para a Europa noinício dos anos 70, ele dará início à fase mais robusta dc suaobra, cujo marco fundamental será a publicação do livroFür einen Philosophie der Fotografie ("Por uma Filosofia daFotografia"), editado primeiramente na Alemanha cm1983 e dois anos depois no Brasil, com o título A Filosofiada Caixa Preta. Essa obra será responsável pela imagcmassociada ao filósofo de um "profeta da era tecnológica",um "premonitor" do avanço de uma sociedade cujos va­lores estariam sendo transferidos da produção de objctospara a produção de informações.

Em suas freqüentes viagens entre a Europa e o Brasil,Flusser construiu uma rede transoceânica de debates em

torno de três pontos axiais básicos: a invenção do alfabeto,a invenção da tipografia e a invenção da fotografia. Para ofilósofo, a fotografia, o primeiro meio de produçãoautomática da imagem, irá marcar o advento de um novoperíodo da história humana, pois "a história dahumanidade é a história do homem com seu instrumento

e, por isso, é possível falar de uma mentalidade da pedralascada, uma mentalidade do bronze e do ferro, assim comoo de uma mentalidade digital".

Mas o tema de "Da religiosidade", de Vilém Flusser,não é o da emergência de uma nova capacidade para fazer edecifrar imagens (imagens técnicas), e sim a literatura. Ela é

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"o lugar no qual se articula o senso de realidade. E senso derealidade é, sob certos aspectos, sinônimo de religiosidade."Para os interessados em sua obra, a reedição desse livro vemnos oferecer um fecundo campo de estudos da filosofia quese articulava no autor por volta dos anos 60. Além de nosapresentar uma via de acesso a seu pensamento, SOlnosainda apresentados à filosofia de Vicente Ferreira da Silva,figura de grande importância na formação intelectual deVilém Flusser em São Paulo. Em vários dos ensaios aquireunidos encontraremos as primeiras formulações queserão, décadas mais tarde, retomadas na Filosofia da CaixaPreta como no 1ns Universum der Technischen Bilder ("Nouniverso das Imagens Técnicas"), livro de 1985 e aindainédito em português, no qual ele aprofunda os argumen­tos lançados na Filosofia.

Além dos ensaios sobre Kafka, a poesia concretapaulista e Guimarães Rosa, Flusser aborda também umtema que parece pontuar toda a sua obra, que é o tema damorte. Ao tratar desse tema "exclusivo da vida", o filósofo

nos ensina que, "Toda frase de obra de pensador vivo apon­ta, (...) em sua busca de perfeição, o intelecto que a gerou, etoda frase de obra de pensador morto aponta o intelectoque a recebe. E a obra, como um todo, esta ligada ao in­telecto que a originou como por cordão umbilical, enquan­to vivo o seu autor. A morte corta esse cordão e a obra

emite pseudópodes em direção aos intelectos abertos pararecebê-Ia. O último significado da obra é deslocado, pelamorte, do intelecto do autor para os intelectos dos seusinterlocutores. (...) De receptor e de ponto de ressonânciatransforma-se o interlocutor em guardião e realizador daobra. A responsabilidade (...) passa do autor para o inter­locutor, e o destino da obra depende doravante dele".

Quanto a nós, "os provisoriamente pouco numerososinterlocutores da obra", podemos dizer também que "temoso privilégio e a responsabilidade de acolhê-Ia em nosso ínti-

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mo para que continue a realizar-se. Não seremos dignosdesse privilégio, nem estaremos à altura dessa responsabili­dade, se a ternura e plasticidade da obra for pretexto parauma inibição de nossa parte em atacá-Ia. Embora tenra eplástica, dispõe essa obra de força suficiente para resistir anossos golpes. É debaixo dos golpes que ela se formar<Í eadquirirá aqueles contornos e aquela dimensão, nos quaisentrará para a conversação brasileira, e quiçá do Ocidente".

Será apenas pelo estudo e pelo debate dos textos flusse­rianos que sua obra continuará sendo fecundada, revelandomais e mais a impressão que temos de que ele era um filó­sofo que criava como um artista.

São Paulo, outubro de 2002.Mario Ramiro

Artista pldsticoeprofissor da Escola de Comunicações e Artes da USP

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Introdução

Os pequenos ensaios que perfazem o presente volumeforam publicados em diversas revistas. Os ensaios denúmero 1, 2, 3, 6, 8, 9,11,14,15,16 e 17 saíram no Suple­mento Literário de O Estado de S. Paulo. O número 4 saiu

na Revista Brasileira de Filosofia, e o número 5 na Revista do

Instituto Tecnológico da Aerondutica, Depto. de Humanidades.Os números 7 e 10 saíram na revista Comentdrio. O número

12 no Didlogo e o 13 na Revista Brasilefza de Cultura, editadaem Madrid. A escolha dos ensaios obedeceu a um critério

vagamente temático, que é o seguinte: a literatura, seja elafilosófica ou não, é o lugar no qual se articula o senso de rea­lidade. E "senso de realidade" é, sob certos aspectos, sinôni­mo de "religiosidade". Real é aquilo no qual acreditamos.Durante a época pré-cristã o real era a natureza, e as religiõespré-cristãs acreditam nas forças da natureza que divinizam.Durante a Idade Média o real era o transcendente, que é oDeus do cristianismo. Mas a partir do século XV o real seproblematiza. A natureza é posta em dúvida, e perde-se a féno transcendente. Com efeito, nossa situação é caracterizadapela sensação do irreal e pela procura de um senso novo derealidade. Portanto, pela procura de uma nova religiosidade.Este o tema dos ensaios escolhidos.

O primeiro ensaio procura localizar o tema. O segun­do e o terceiro procuram mostrar como o tema surgiu com

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o Renascimento. o quarto e o quinto representam umesforço de formular um novo senso de realidade, tomandocomo real a língua. Representam portanto a minha filoso­fia. Os ensaios 6, 7 e 8 tratam da realidade como apareceem Kafka. Os números 9 e 10 tentam articular a realidade

do existencialismo, e mais especialmente a camusiana. Apartir daí focalizo a cena da literatura brasileira. Os ensaios11, 12, 13 e 14 se batem com e contra a filosofia de Vicen­te Ferreira da Silva, que é uma filosofia em busca de umarealidade. O ensaio nO 15 trata da poesia concreta, que éuma técnica de criar nova língua, portanto nova realidade.Os últimos dois ensaios têm por tema a obra de GuimarãesRosa, que alia a técnica realizadora do concretismo comuma religiosidade transcendente. A presente coleção deensaios procura portanto mostrar como a tendência ociden­tal em direção de uma nova religiosidade se manifesta pro­dutivamente na cultura brasileira. É neste sentido que podeser tomada como um esforço em prol da elaboração de umafilosofia da literatura brasileira.

Reunir estes ensaios sob a forma de um livro é tentar

salvá-Ios do efêmero que é próprio de toda Revista. Esperoque esta contribuição modesta seja útil à discussão geral doque é a civilização brasileira.

São Paulo, setembro de 1965.Vilém Flusser

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Da religiosidade

Há pessoas incapazes de repetir a mais simples melo­dia. Outras se tornam lânguidas ao ouvir um tango argenti­no. Há os que transpõem com os últimos acordes da "Flau­ta mágica" a porta celeste. Para outros o Cravo bemtemperado representa o próprio intelecto humano transfor­mado em fenômeno audível. São exemplos de diversostipos de musicalidade. Há, paralelamente, diversos tipos decriação musical, cuja gama se estende desde o empenhocomercial dos compositores de Hollywood até o empenhoreligioso de um Palestrina. E há, finalmente, o exército decríticos que "explicam" a música, e de virtuosos que a "apli­cam". Os virtuosos são aplaudidos e venerados, os críticostêm existências um tanto mais reclusas. Essa é, em termosgerais, a cena da música, se desconsiderarmos fenômenosmarginais como empresários, editores musicais, fabricantese lojas de discos. A forma da cena é mutável, mas a músicacomo tal é, digamos, eterna. O propósito do presente artigoé forçar um paralelo entre música e religião, e entre musica­lidade e religiosidade. A comparação é sempre um métodode estudo fértil, não tanto pelos seus resultados, mas peladistância que pode proporcionar ao espírito contemplativo.

O fenômeno que corresponde à crítica musical é, nocampo da religião, um certo tipo de filosofia. Mas devemosconfessar desde logo que a crítica musical é infinitamente

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mais competente que a maioria da filosofia do tipo mencio­nado. Dou como exemplo o marxismo. Essa filosofia,tomada como crítica de religião, considera os empresários,os editores musicais, e os fabricantes e lojas de discos comoos fenômenos centrais da cena da música (isto é, natural­mente, transpondo de religião para música), e acredita quea religião pode e deve ser explicada a partir dos empresáriose dos fabricantes. Como é possível tamanha excentricidade?É que os filósofos marxistas dispõem de uma religiosidadeque corresponde à musicalidade daquele que não sabe repe­tir a mais simples melodia. Algo como a crítica marxista dareligião é inconcebível no campo da música, já que a esco­lha da profissão de crítico musical pressupõe uma certa afi­nidade entre o crítico e a música, perfeitamente dispensávelno campo da religião e da filosofia. Dou, como outro exem­plo, o freudianismo. Essa psicologia filosofizante, tomadacomo crítica de religião, considera o crítico como figuracentral da cena, e crê que a crítica pode acabar com a músi­ca, libertando assim o ouvinte da necessidade de sujeitar-sea ela. É que, provavelmente, o freudiano dispõe de umareligiosidade que corresponde à musicalidade daquele quesoluça ouvindo tangos. Não é portanto, a meu ver, da críti­ca da religião que devemos esperar um esclarecimento dofenômeno religioso, pelo menos não no início do nossoesforço. Somos, creio, nesse esforço, remetidos a nossavivência interna, à religiosidade. É ela, embora tão variávele insegura, a nossa única avenida de acesso ao fenômenoreligioso. Todas as demais aproximações são secuncLírias eauxiliares. A ela pretendo recorrer, portanto, no presenteartigo.

Chamarei de religiosidade nossa capacidade para cap­tar a dimensão sacra do mundo. Embora não seja ela umacapacidade que é comum a todos os homens, é, não obstan­te, uma capacidade tipicamente humana. Certas pessoas,certas épocas e certas sociedades dispõem de um talento

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especialmente marcado para a religiosidade. Há pessoasreligiosamente surdas, mas não há época nem sociedadeinteiramente isentas de religiosidade. Pessoas religiosamen­te surdas vivem em mundos rasos e chatos, movimentam-seentre coisas transparentes (porque em tese inteiramenteexplicáveis), e dirigem-se para a morte que torna absurdosos mundos, as coisas e a própria vida. A capacidade religio­sa torna profundo o mundo, opacas as coisas (porquenunca inteiramente explicáveis), e torna problemática amorte. A capacidade religiosa torna portanto obscura avisão antes clara do mundo, como a contemplação da paisa­gem torna obscura a visão clara do mapa. O pintor (aqueleque procura captar a visão da paisagem) é portanto um obs­curantista do ponto de vista do cartógrafo (aquele quereduz a paisagem à sua clareza plana e chata). E o homemreligioso é um obscurantista do ponto de vista daquele quenão é incomodado pela dimensão sacra do mundo. Como aclareza é desejável, há pessoas que abafam dentro de si a vozda religiosidade e vivem como que com óculos escuros paraver mais claramente. Mas como a clareza é chata, há pessoasque fingem um sentimento religioso para o qual não têmcapacidade, e vivem enganando-se a si mesmos. Essas duasinautenticidades opostas complicam o fenômeno da reli­giosidade.

Épocas e sociedades religiosamente férteis educam efortalecem a capacidade individual para a religiosidade.Épocas e sociedades religiosamente pobres, como a épocaque está para encerrar-se e a sociedade tecnológica, repri­mem e abafam a capacidade individual para a religiosidade.Uma conseqüência dessa repressão é a deformação da reli­giosidade, que assume formas grotescas e monstruosas comoo zen-budismo nos Estados Unidos ou o paganismo atroz daAlemanha hitlerista. Outra conseqüência dessa repressão é odesvio do ardor religioso da dimensão sacra para a profani­dade chata do mundo e resulta em pseudo-religiosidades

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como o endeusamento do dinheiro ou do Estado. Estas

deformações e perversões da capacidade religiosa marcam acena da atualidade e dificultam, portanto, a contemplaçãodo fenômeno da religiosidade.

Feita abstração das formas inautênticas e das formasperversas, resta-nos a capacidade genuína para captar adimensão sacra do mundo. Essa capacidade revela o mundoe nossa vida dentro dele como realidade significativa, isto é,como realidade que aponta para fora de si mesma. Esse sig­nificado que o mundo e nossa vida dentro dele têm é cha­mado "o sacro". A profundidade do significado, a extensãodo sacro, dependem da nossa capacidade para a religiosida­de. O significado da vida pode ser, por exemplo, simples­mente a preparação para uma outra vida, em tudo igual aesta, mas mais feliz, e eterna.

Este tipo de significado é conferido à vida por um tipode religiosidade comparável à musicalidade do apreciadordo tango. E o significado da vida pode ser a superação doEu e sua diluição na imensidão do sacro. A intensidade danossa capacidade religiosa é portanto variada. Mas suaestrutura, sua "Gestalt" é nos imposta. Os grandes gêniosreligiosos da nossa civilização a impuseram sobre as nossasmentes. O sacro é, para nós ocidentais, prefigurado e proje­tado por esses gênios, como a música é para nós prefiguradae projetada pelos grandes compositores. Mas aí a compara­ção entre música e religião se torna insuficiente. Os grandescompositores estão no mesmo plano ontológico como nós,são gente como nós, embora certamente de proporçõesmuito maiores. Mas os grandes gênios religiosos, esses seresmíticos como Abrão e Jacó, Moisés e, de maneira aindamais acentuada, Jesus, são revelados, pela nossa capacidadereligiosa, como participando de outro plano de realidade.Em outras palavras: a nossa religiosidade é limitada à reali­zação de um único projeto: aquele que f()i inspirado, in iLlo

tempore, ao povo de Israel para realizar-se na civilização do

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Ocidente. Em suma: o sacro é, para nós, exclusivamenteDeus. Sabemos intelectualmente de outros tipos de projeto,de outros tipos de religiosidade, e de outros tipos de sacro.Mas este conhecimento intelectual é intraduzível para acamada da vivência religiosa, e as tentativas nesta direçãosão fadadas ao malogro da inautenticidade. Somos, comoseres religiosos, prisioneiros da revelação sinaica, por maisque nos rebelemos contra essas grades. É esse o projeto den­tro do qual fomos jogados e é essa, no fundo, nossa defini­ção de ocidentais dentro da qual existimos.

Nosso tipo de religiosidade nos define como exis­tentes, e estabelece o mundo dentro do qual existimos. Éverdade que no curso da nossa história elementos da reli­giosidade grega, e em grau menor das religiosidades latinas,germânicas e eslavas, infiltraram-se na nossa experiênciareligiosa para enriquecê-Ia e aprofundá-Ia. Mas não altera­ram sua estrutura básica, que pode ser caracterizada pelosconceitos de "fé" e "obras". A fé é a fidelidade ao significa­do transcendente do mundo e da vida dentro dele, fidelida­de essa mantida em desafio a toda evidência em contrário; éportanto absurda. As obras são resultado do nosso esforçoem prol desse significado transcendente, esforço esse quetransforma o mundo profano em mundo sacro pelo sacrifí­cio; são portanto absurdas. Nossa religiosidade oscila entreo pólo absurdo da fé e o pólo absurdo das obras. De certaforma é a história do Ocidente idêntica com a oscilação dopêndulo da religiosidade entre os seus dois pólos. Agosti­nho e S. Tomás, Calvino e Marx marcam-lhe o compasso.A absurdidade de nossa religiosidade é nossa resposta aoabsurdo do mundo profano. Essa revolta escandalosa con­tra a absurdidade pela absurdidade (para utilizar, emboraem contexto diferente, um pensamento kiekegardiano),marca a religiosidade do Ocidente.

Nossas religiões tradicionais são o ambiente dentro doqual nossa religiosidade funciona. Para voltar ao paralelo

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com a música, são as religiões tradicionais as organizaçõesque nos fornecem as orquestras e as salas de concerto, e osseus sacerdotes são nossos grandes virtuosos. Mas seriainsincera a tentativa de negar que as religiões tradicionaisestão em crise. Não satisfazem mais a nossa religiosidade. Acrise das religiões não é resultado dos ataques empreendidospelos soit-disant "materialistas ateus", mas os materialistasateus são resultado da crise das religiões do Ocidente. Osesforços ecumênicos, que são tentativas de formar umaúnica religião ocidental para enfrentar a irreligiosidade, são,portanto, a meu ver, contraproducentes. A união das reli­giões só pode ser conseguida pela diluição da religiosidade,e essa diluição apressará a decadência das religiões, já quedeixará ainda mais insatisfeita a nossa religiosidade. O pre­sente momento pode ser portanto caracterizado pela tenta­tiva, consciente ou não, de darmos novo campo a nossareligiosidade. Como indivíduos e como sociedade estamosà procura de um veículo novo para substituir as religiõestradicionais e abrir campo a nossa religiosidade latente.

As inautenticidades e perversões de nossa religiosida­de, das quais falei mais acima, são sintomas da procura. Nafalta de um novo veículo autêntico, a religiosidade abrecanais frustrados como partidos políticos ou seitas extrava­gantes. Mas em si é a procura de um sinal de renovação e desaúde. A Idade Moderna era, no campo da religiosidade,uma época decadente. Começou pelas guerras religiosas,portanto por uma exacerbação religiosa que é sinal de deca­dência interna. Culminou no Iluminismo, portanto numareligiosidade pervertida, já que desviada do transcendente efixada sobre os dois conceitos para-religiosos "razão" e"naturezà'. E acabou na profanação total e enfadonha datecnologia. A procura de um novo veículo para nossa reli­giosidade, que marca a meu ver a atualidade, é uma supera­ção da Idade Moderna. Com efeito, todas as nossas ativida­des criadoras, inclusive as científicas e as artísticas, estão

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dedicadas ao esforço de abrir campo novo à religiosidade.Com nosso intelecto ainda somos modernos, mas comnossa religiosidade já participamos de uma época vindoura.O que eqüivale a dizer que somos seres de transição e embusca do futuro. Se as religiões tradicionais são inaceitáveispara essa nova religiosidade, se as religiões exóticas são des­vendadas como fugas, e se o desvio da religiosidade para apolítica, a economia, a tecnologia decepciona, ficamos coma fome religiosa insatisfeita. Invejamos os que a satisfazemna forma tradicional ou nas formas substitutivas, massimultaneamente sentimos desprezo por eles. Essa misturade inveja e desprezo, de humildade e blasfêmia, caracterizaa religiosidade insatisfeita. É essa religiosidade não compro­metida e portanto faminta de compromisso que construirá,a meu ver, o futuro.

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Por que e para quê?

Considerem os leitores as perguntas seguintes: "Porque pássaros constroem ninhos? Para que pássaros cons­troem ninhos?" e "Por que tem Marte dois satélites? Paraque tem Marte dois satélites?" É óbvio que o primeirogrupo de perguntas, aquele que tem pássaros e ninhos portema, é plenamente significativo, no sentido de deixarentrever a possibilidade de respostas significativas. Porexemplo: "Pássaros constroem ninhos porque o seu instintoos condiciona para tanto" e "Pássaros constroem ninhospara neles botarem os ovos". Essas respostas são problemáti­cas e provocam toda uma série de novas perguntas, mas sãojuízos significativos. Servem de base para uma conversaçãosistemática, digamos para a conversação da biologia. Mas osegundo grupo de perguntas, aquele que tem Marte e saté­lites por tema, parece conter uma pergunta sem significado.Tentemos formular respostas. Por exemplo: "Marte temdois satélites porque ao ser expelido do sol destacou-se emtrês pedaços" e "Marte tem dois satélites para ser agradávelaos astrônomos que o observam".

A primeira resposta é significativa no sentido já men­cionado, embora seja provavelmente resposta "falsa". Opropósito do presente artigo é discutir se é significativa asegunda resposta. É um problema inquietante e tem a vercom a própria estrutura daquilo que chamamos "realidade".

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Espero poder transmitir aos leitores um pouco do fascínioque sobre mim exerce no curso deste artigo.

* * * *

Não pretendo discutir o aspecto lingüística do proble­ma. A lógica formal e a análise de símbolos demonstraráque os termos "por que" e "para que" envolvem dois tiposdiferentes de relações entre classes. Nem pretendo discutirdiretamente o aspecto do problema que a teoria do conhe­cimento ilumina. Essa teoria talvez afirmará que o termo"por que" procura articular o aspecto teleológico das coisas.O que procurarei fazer é evocar o clima existencial no qualesses dois tipos de pergunta se formulam.

Para tanto esboçarei, muito sumariamente, duas cos­movisões, duas descrições do mundo que nos cerca. E pararestringir o escopo dessa tarefa titânica "limitarei" essas des­crições ao cosmos da astronomia.

I - O mundo dos astros, aquilo portanto que se nosapresenta, nas noites claras, como céu estrelado para inspi­rar nossos poetas e amantes, e nos telescópios para inspiraros cosmonautas, não tem, no fundo, nem poetas, nemamantes, nem cosmonautas por finalidade. É, pelo contrá­rio, um conjunto de fenômenos que resultaram de um pro­cesso causal e que tendem a transformar-se nesse processo.Esse aspecto do mundo dos astros é relativamente recente.Antigamente era considerado esse mundo como o exemplopor excelência da imutabilidade e da eternidade. Mudançase transformações só as havia no mundo sublunar, mas nasesferas "acima da luà' reinava a harmonia eterna, uma ilus­

tração do "puro Ser", um símbolo da Divindade. Hoje ten­demos mais para uma interpretação diabólica do Inundodos astros. Houve, "no início", uma explosão, comparável,em sua estrutura, com as nossas explosões atômicas, mascujas dimensões são incomparáveis. O que explodiu? Umponto infinitamente pesado. O ponto é algo que não tem

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dimensão, que não ocupa espaço. "O ponto" é a maneirageométrica de articular o nada. O peso infinito é algo queabrange todas as coisas. É uma maneira um tanto materia­lista de dizer-se "tudo". O mundo dos astros teve início na

explosão de tudo que era nada. Essa explosão pôs em movi­mento uma cadeia de causas e efeitos. Tratava-se de uma

transformação progressiva e violenta de "matéria" em "ener­già'. O peso infinito tornou-se, em virtude dessa transfor­mação, peso finito. A dimensão zero tornou-se, em virtudedessa explosão, dimensão finita. O mundo dos astros tem,no seu estágio atual e fugaz, peso e dimensão finitos e deter­mináveis. É um "algo" esse mundo. Esse algo chama-se"espaço-tempo". Consiste de grande número de entalhos,de rugas, de vales, que se chamam "campos". O fundo des­ses vales é formado pela "matéria", e as paredes dos vales sãoformadas por "energià'. A matéria é energia condensada, aenergia é matéria diluída. O processo explosivo dilui maté­ria, diminui seu peso e aumenta a dimensão do campo. Esseprocesso é irreversÍvel (ou pelo menos parece sê-Io). Suasdiversas fases são, em tese, reversíveis, mas esgota esse pro­cesso as virtualidades contidas na explosão inicial, peloprincípio da "entropia".

As rugas formam bolsas dentro de rugas maiores, quepor sua vez formam bolsas em rugas ainda maiores. Asrugas-mães, os campos maiores, são chamados "sistemasgalácticos" e são os pedaços que compõem o mundo dosastros. Esses pedaços (se é que podemos recorrer a umtermo tão arcaicamente materialista) fogem em corridadesenfreada a partir de um centro. Distanciam-se, a cadasegundo que passa, desse centro e uns dos outros. "Omundo se expande". Fogem em direção ao nada, e o que ossepara, uns dos outros, é nada. O mundo dos astros consis­te de pedaços que flutuam no nada, tendem para o nada, eperdem peso e ganham dimensão nesse processo. O estágiofinal será um mundo de dimensões infinitamente grandes,

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e com o peso zero. "Dimensões infinitamente grandes" é amaneira geométrica de articular "tudo". "Peso zero" é umamaneira de dizer-se "nada". O mundo dos astros tende paraum estágio final no qual tudo será nada. Trata-se de umprocesso que se inicia com o tudo que é nada, e que se com­pleta com o nada que é tudo. O "algo" atual do mundo dosastros é um estágio efêmero desse processo.

É óbvio que num mundo assim a pergunta "para quetudo isto" não cabe. O mundo dos astros é pura absurdida­de. A contemplação do céu estrelado, longe de inspirar avisão do "puro Ser", da Divindade, ilustra a ilusão absurda ediabólica do mundo que nos cerca. Em momentos de reco­lhimento podemos admirar-lhe o rigor e a beleza da suaestrutura, articulável em poucas proposições matemáticassimples. Podemos admirar o mundo dos astros como obrade arte, mas como obra de arte inteiramente inútil. É omaior exemplo imaginável da "arte pela arte". As perguntasque esse mundo impõe começam, todas elas, pelo termo"como?" inquisitivo, ou pelo termo "por quê?" inquisitivoou indignado. O clima desta cosmovisão foi expressomagistralmente pela seguinte poesia de Omar Khayyam:

And that invertedbowl they call the sky,whereunder we ali crawlingliveand die,lift not thine eyesto it, for itmovesimpotently just as thou and r.

(E aquela tigela invertida que chamam de "céu", debai­xo da qual nós todos nos arrastamos para viver e morrer,não eleves os teus olhos até ela, pois ela se move tão impo­tente quanto tu e eu.)

II - Limitemos um pouco a visão colossal que nos tempreocupado até agora, e contemplemos o sistema galácticodo qual a nossa Terra modesta é parte. É constituído deastros, isto é, de campos gravitacionais que têm bolas mate­riais por centro. Essas bolas ilustram as fases reversíveis do

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processo irreversível que tentei descrever, tão ingenuamen­te, acima. São bolas incandescentes em diversos estágios dedesintegração, estão perdendo peso e emitindo energia.Algumas dentre essas bolas estão esgotadas. Mas poderãoexplodir novamente, serão estrelas "novas". As dimensõesdessas bolas variam, mas são consideráveis. Um exemplomodesto delas é o sol que nos aquece. Mas será tão modes­to assim esse exemplo?

O sol não está só e perdido no nada. Está acompanha­do de "planetas", de rugas que formam bolsas dentro da suaruga. Talvez existam outros sistemas planetários dentro donosso sistema galáctico, mas não temos certeza disto. Essadescoberta, se feita, seria existencialmente desinteressante.As distâncias entre os astros são de dimensões existencial­

mente proibitivas. Os planetas que acompanham o nossosol são de dois tipos, internos e externos. Os externos estãoafastados do sol e giram em seu redor envoltos em frio ini­maginavelmente rigoroso. Praticamente não pode haverreação química nesses corpos. Os planetas internos sãoMercúrio, Vênus, Terra e Marte. Mercúrio é um corpo fer­vente e fervoroso. Se há reações químicas nele, devem sersimples e rápidas e extremamente voláteis. Vênus e Martesão Terras frustradas. Não conseguem estabelecer o equilí­brio precioso e incrivelmente complexo no qual se encontraa Terra. Consideremos portanto essa nossa Mãe amorosaque é a Terra.

É ela um corpo a um tempo conservador e altamentemutável. Tudo nela é moderado. As temperaturas variamconstantemente, mas dentro de limites muito modestos. Háuma pressão quase constante, mas maleável, que sua atmosfe­ra gasosa exerce sobre a solidez fluida da sua crosta. Suassubstâncias se encontram em todos os estágios de agregado.São sólidas, viscosas, líquidas, emulsões e gases.A mais ínfi­ma variação de temperatura ou pressão (ínfima se comparadacom os externos que regem o cosmos) transforma sólidos em

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gases ou comprime gases. E, como estágio intermediário,incrivelmente improvável e incrivelmente fugaz, correm,fluem e derramam-se os líquidos em busca da vida.

Nossos ventos assopram nossas nuvens, nossos riosmodelam nossas montanhas, nossos oceanos, inspiradospor nossa Lua, retocam constantemente nossos continen­tes. Fazem-no para produzir praias ensolaradas, para criar oambiente daquele milagre indescritível que é o surgir daprimeira gota daquele polímero viscoso chamado "proto­plasma", da primeira gota da vida. Como se deu essa cons­piração gigantesca? Como se constelaram galáxias e astros,como se conjugaram influências físicas, térmicas, eletro­

magnéticas, óticas, químicas, e incontáveis outras, paraproduzir esse milagre? Como se contorceu esse cosmosgigantesco todo, para dar à luz essa ínfima gotinha? E qualé a estrutura dessa gotinha? Ela contém, em sua organiza­ção, o projeto de toda aquela evolução que passa pelos pro­tozoários, resulta na incrível riqueza de formas das espéciesvegetais e animais, produz o homem com sua capacidade deabranger, de maneira misteriosa, o cosmos inteiro pela suaforça articuladora, pela língua, e passa, quiçá, além dohomem para criar seres ainda mais divinos e diahólicos queele. E tudo isto estava contido, em projeto, naquda primei­ra gotinha? Não podemos crer, por instante scqucr, quetudo é resultado de um "acaso". Seria uma "explicação",cuja inautencidade existencial grita para os céus. Mas, afi­nal, "acaso" não é sinônimo de "milagre"? Não, o ll1undodos astros tem uma finalidade, e sentimo-Ia dentro da pró­pria medula dos nossos ossos. Todo esse processo aparente­mente absurdo tem por finalidade produzir o Sol, e a 'Icrra,e a vida, e o homem, e aquele espírito humano que indagapor sua finalidade.

O mundo dos astros tem um propósito, e esse propósi­to somos nós, são as nossas mentes. É com esta il1l"en<,~ãoqueo mundo dos astros foi criado, e perguntas que começam

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com o termo "para que" são perguntas significativas. Oclima existencial desta cosmovisão foi expresso no versoseguinte, que Beethoven transformou em canto:

"Die Himmel ruehmen des EwigenEhre,ihr SehaIlpflanzt SeinenNamen fort."

(Os céus louvam a glória do Eterno, o seu ressoar pro­paga o Seu nome.)

lU - Não me posso resolver nem por uma, nem pelaoutra das cosmovisões esboçadas. Uma espécie de honesti­dade vivencial me proíbe a primeira. A vivência da absurdi­dade da vida e da mente me proíbe a segunda. Mas de umacoisa estou convencido: Se é significativo perguntar "porquê?", é igualmente significativo o "para quê?", embora tal­vez ambas essas perguntas sejam absurdas. A prepotênciados que pretendem limitar a conversação ao "por quê?" meparece patente. A decisão por uma das duas perguntas, oupor ambas, ou por nenhuma das duas, é, a meu ver, umaspecto da decisão fundamental, da decisão existencial quedevemos tomar para realizar o projeto que nos lançou paracá e rumo à morte.

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Coincidência incrível

Quando abro o rádio, jorram anúncios; quando abro atorneira, jorra água. Se amanhã a torneira jorrasse anún­cios, a minha reação seria surpresa. Vivo em expectativaconstante: espero constantemente que torneiras jorremágua, pura água, toda a água, e nada mais que água. Essaminha expectativa não é confirmada pela experiência quemeus sentidos fornecem. Torneiras jorram água suja, oupouca água, ou nada. Mas a evidência dos meus sentidosnão destrói a minha fé nas torneiras. "Explicam" o compor­tamento das torneiras por fatores externos, como a hipóteseda falta de chuva, ou a hipótese do encanador, ou a hipóte­se da Municipalidade. Essas hipóteses "provam" que, elimi­nados os fatores externos, torneiras jorram água. A evidên­cia dos meus sentidos, embora prima facie contrária àminha fé nas torneiras, fortalece, em virtude das hipóteses,a minha expectativa de água. Pois é este exatamente o cará­ter da fé: é uma esperança que transforma evidência contrá­na em prova.

Mas o caso da torneira jorradora de anúncios seriadiferente. Seria, não o inesperado, mas o inesperável. Cau­saria surpresa. Poderei superar essa surpresa com hipótesesousadas. Pela hipótese da alucinação, ou pela hipótese dorádio portátil escondido na torneira, por exemplo. Mas, porum instante pelo menos, a minha fé ficará abalada.

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Casos como o da torneira jorradora de anúncios ocor­rem. Antigamente eram chamados milagres. Hipótesesousadas reintegravam os milagres no tecido da fé, a qualcontinuava fortalecida por eles. "Das Wunder ist des Glau­bens schoenstes Kind" (o milagre é o filho mais belo da fé)diz Goethe. Tão forte era a fé, que os antigos esperavampelo inesperável, pelo milagre. Atualmente, embora conti­nuem ocorrendo casos surpreendentes, não ocorrem mila­gres. Evoluímos um mecanismo que sufoca automatica­mente surpresas. É o mecanismo do "faça-de-conta".Quando algo inesperável ocorre, fazemos de conta que eraesperado. É graças a este mecanismo que nada nos sur­preende. Tudo é corriqueiro. Torneiras jorradoras de anún­cios: nada mais corriqueiro, nada mais banal que isto.

Que ocorram. O choque de surpresa que causarão nãopassará de vestígio de uma ingenuidade superada. A tese dopresente artigo será que este nosso mecanismo é sintoma defé profunda. Que somos uma época que espera por mila­gres. E que nossa fé na torneira é parte da nossa fé funda­mental na tecnologia. De uma esperança portanto que éfortalecida por evidências contrárias, e que cresce com tor­neiras jorradoras de anúncios, com milagres portanto.

Se digo: ''Amanhã nascerá, em vez do sol, um queijo deMinas para iluminar a Terrà', terei dito uma absurdidade.Mas se digo: "Ontem nasceu um queijo de Minas e iluminoua Terra", e se milhares confirmam esta minha observação,terei articulado uma banalidade. É óbvio que o queijo deMinas nasceu. As teorias astronômicas esperavam pelo nascerdo Sol, mas essas teorias são apenas sistemas hipotéticosincompletos. Comportam uma reformulação progressiva. Sereformuladas à luz dos acontecimentos de ontem, provamessas teorias que o nascer do queijo de Minas era um aconte­cimento necessário, ou, pelo menos, altamente provável. Oqueijo de Minas, longe de abalar a astronomia, prova, pelocontrário, a eficiência do método científico como captação

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da "realidade". Todo fenômeno novo se enquadra nessemétodo por simples modificação da teoria. Esta é, a meu ver,a forma como funciona a fé na atualidade.

É a fé na coincidência do pensamento de um determi­nado tipo com o mundo que nos cerca. O primeiro artigodessa fé reza: "O pensamento lógico coincide com a reali­dade". O segundo artigo reza: ''A expressão mais perfeitado pensamento lógico são os enunciados da matemáticapura". O credo conclui: "A realidade tem a estrutura damatemática pura". Isto não é, como parece, racionalismopuro. A tecnologia prova, empiricamente, que nossa fé é afé verdadeira. Nossas máquinas e nossos instrumentos sãofé aplicada, são "obras" no significado teológico do termo.E nossas máquinas e instrumentos funcionam. "Provam"nossa fé empiricamente. Funcionam como funciona, porexemplo, a torneira. Jorram água, e isto prova, também,que nossa fé é verdadeira. Ou jorram anúncios, e istoprova, de maneira concludente, que nossa fé é verdadeira.Nossa fé tem um aspecto racional, e um aspecto empÍrico:é uma fé completa.

A coincidência entre pensamento lógico e "realidade" éincrível. Não pode ser acreditada. Nossa vivência do mundo adesmente a todo passo. No entanto, nossa fé aceita essa coin­cidência como fato indubitável. É uma fé autêntica, porquecrê quia absurdum. Mas ao dizer que a coincidência é incrível,coloquei o presente argumento em terreno estranho à fé daatualidade. A "nossà' fé não é a fé do presente argumento.Como consegui essa ironia? Evidentemente porque nossa fépermite, em seu estágio atual, que seja abandonada. Abriufendas. Por uma dessas fendas escapou-lhe o presente argu­mento. Uma fé que abre fendas é uma moradia incômoda eperigosa. É incômoda, porque ventos gélidos invadem os seusaposentos e fazem tremer os que nela se abrigam. E é perigo­sa, porque ameaça ruir e soterrar os habitantes em sua ruína.[)uas são as possibilidades que uma situação destas oferece:

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procurar fechar as fendas, ou procurar construir uma fé nova.Com efeito, é o que estamos fazendo todos.

E, como somos seres confusos, estamos tentando asduas possibilidades simultaneamente. A mente humana éconstruída assim: não pode existir desabrigada. As tentati­vas de reconstrução e as de construção nova têm uma coisaem comum: procuram ambas descobrir os fundamentos doedifício ameaçado. É a pergunta: "Como surgiu a fé da qualtodos participamos ainda, embora precariamente?"

Jaspers publicou um livro que muito bem poderá ser oseu último: "Nikolaus Cusanus" (Cusano). É uma análiseexistencial desse pensador que se coloca entre a Idade Médiae a Moderna (1401-1464). Obviamente Jaspers procura des­cobrir um dos fundamentos da fé moderna. Não pretendoseguir-lhe os passos no livro mencionado. Chamarei, noentanto, a atenção dos leitores para um conceito fundamen­tal de Cusano: coincidentia oppositorum. A coincidênciapressupõe uma oposição, e essa oposição é o fundamento dopensamento moderno. É uma cosmovisão inteiramentediferente da medieval a moderna. Houve, no Renascimento,

uma virada fatídica, pela qual o homem se colocou em opo­sição ao mundo. O homem tornou-se "sujeito", e o mundoseu "objeto". Desde então o homem encara o mundo. É por­tanto absolutamente necessário que haja coincidência, entrehomem e mundo, por incrível que seja. Do contrário, seriao homem um ser totalmente alienado. Esta é, em resumo, a

"explicação históricà' da nossa fé periclitante.Em virtude da virada contra o mundo tornou-se o

homem, na palavra de Cusano, o segundo Deus. Ainda haviaum primeiro. Em Cusano a fé medieval em Deus ainda se con­fundia com a fé moderna. Mas já em Descartes essafé medie­val empalidecia. A função do primeiro Deus era a de ajudar osegundo Deus a estabelecera coincidência incrívelentre ele e omundo. É graças ao concursus Dei que o pensamento humanose adequa às coisas extensas. A fé moderna conseguiu, mais

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tarde, superar essanoção pálida do primeiro Deus. Transferiu­se para a coincidência mesma. Tanto racionalistascomo empi­ristas colaboraram nessa transferência que é, com efeito, oendeusamento do pensamento humano de um tipo determi­nado. Se, no curso do pensamento moderno, a noção de Deusparece acompanhar parte do argumento filosófico, é, noentanto, uma noção organicamente alheia. O pensamentomoderno pode passar, perfeitamente, sem essa hipótese deDeus. Dispõe de inúmeras outras. Mas da coincidência entrepensamento e mundo não pode passar, e esta não é hipótese,mas artigo de fé portanto. Credo in coincidentiam unam.

A conseqüência deste tipo de fé é a tecnologia. Os nos­sos instrumentos estão contidos, em germe, já no projetode Cusano. Os instrumentos são produtos da oposiçãoentre homem e mundo. Surgiram pela graça da coincidên­cia entre ambos. Por coincidir o pensamento lógico com omundo extenso, surgem instrumentos. Instrumentos sãoobras da graça. É pelos instrumentos que o homem se inte­gra na totalidade da graça. É por eles que se "realiza". Omundo dos instrumentos que nos cerca testemunha a pro­cura da graça da humanidade moderna.

A torneira é o equivalente do Ídolo de épocas passadas.Ídolos podem ser vorazes. O Moloch devora os fiéis que

o adoram. Isto prova que funciona. Confirma e fortalece a fédos fiéis portanto. A bomba H fortalece a fé moderna. Decerta forma prova, ao destruir a humanidade, que o homem éDeus. Não é por este aspecto ético da tecnologia que nossa fépericlita. Os que pensam assim, estão enganados. A razãodisto é outra. Está no próprio fundo da nossa fé na coincidên­cia incrível. Não acreditamos mais tão firmemente que nossospensamentos lógicos coincidem com a "realidade".

Não o acreditamos mais tão firmemente, a despeito deevidências tão palpáveis como o é a bomba H (ou a tornei­ra), porque somos incapazes de sorver a vivência da graçanos instrumentos. Já nos causam tédio e nojo. Não nos

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causam mais admiração e medo, e se o fazem, fazem-no deforma tediosa. É, com efeito, um círculo o pensamentomoderno, um círculo que se fecha atualmente. O círculo seabre com a oposição entre homem e mundo, e fecha-se aocomeçarmos a perceber que ambos não coincidem. E que,com efeito, a coincidência é incrível.

Essa sensação que os instrumentos nos causam é talvezo sintoma do despertar de um novo senso de realidade.Começamos a perceber que a "realidade" com a qual o pen­samento supostamente coincide, não é mais a nossa realida­de. Trata-se de um novo tipo de dúvida que surge. Umadúvida eguivalente à cartesiana, talvez, mas com intençãoinversa. E a tentativa de superar a oposição que a dúvidacartesiana estabelece. A tentativa de reintegração portanto.É cedo ainda querer articulá-Ia rigorosamente. A artemoderna e a filosofia da língua (por serem análises do pen­samento e da realidade) são as primeiras articulações tenta­tivas.

Ainda participamos todos, com a grande maioria dosnossos pensamentos e atos, da fé moderna. Ainda acredita­mos todos na torneira. Weizsaecker cita, em die Tragweite

der Wissenschaft (O âmbito da ciência), o seguinte exemplo:Um autor de livro anti-tecnológico telefona ao seu editorpara saber do manuscrito. O exemplo é significativo. Exem­plifica a fé do autor na tecnologia (telefone), e exemplifica atentativa de superá-Ia (livro). A transição na qual estamos éum processo difícil, penoso, e cheio de contradições inter­nas. Não era outra, no entanto, a situação dos pré-renas­centistas. ]aspers é talvez nosso Cusano. Ao tornar incrível acoincidência entre pensamento e "realidade", talvez tornecrível, ele e os que lhe seguirão os passos, uma realidadenova. A esta fé está dedicado o presente artigo.

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Pensamento e reflexão

O Instituto Brasileiro de Filosofia, tendo me honradocom o convite de proferir esta conferência de encerramenrodo seu ano letivo, proporciona-me a oportunidade de exporalgumas considerações um tanto heterodoxas em tornodaquele processo chamado "pensamento". Agradeço a opor­tunidade e proponho, como ponto de partida dessas consi­derações, a distinção cartesiana entre res cogitans (coisa pen­sante) e res extensae (coisas extensas). Podemos duvidar dascoisas extensas, mas a coisa pensante é indubitável. E a rela­ção entre esses dois mundos, entre o mundo duvidoso damatéria e o mundo indubitável do pensamento, pode serestabelecida somente com o concursus Dei, com a ajuda divi­na. A cosmovisão cartesiana, opondo o pensamento aomundo dos corpos, estabelecendo portanto uma relação desujeito-objeto entre eles, e relegando essa relação à fé emDeus, é uma das fontes, senão a fonte principal, da civiliza­ção ocidental tal como a conhecemos. De certa forma pode­mos dizer que a Idade Moderna, essa época do triunfo doOcidente, não passa de uma realização progressiva da visãocartesiana. A coisa pensante, o sujeito, investe durante essaépoca contra o mundo dos corpos que é o seu objeto, com adupla finalidade misteriosa de compreendê-Io e modificá-lo.A ciência é o método pelo qual o pensamento se precipitasobre os corpos para compreendê-Ios, e a tecnologia é o

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método pelo qual o pensamento se agarra às cOIsas paramodificá-ias.

O próprio êxito desses dois métodos (que é o triunfo doOcidente) e também, a meu ver, o começo do fim da Idade

Moderna, e, talvez, por isto mesmo, o começo do fim do Oci­dente. Porque o conhecimento do mundo dos corpos que aciência proporciona ao pensamento revela progressivamente adubiedade desse mesmo mundo, e a modificação nele opera­

da pela tecnologia é portanto fútil.Em outras palavras: as conquistas epistemológicas e éti­

cas do pensamento ocidental em seu avanço contra o mundodos corpos revelam progressivamente que falta, a esses méto­dos, o concursus Dei. Há algo fundamentalmente errado navisão cartesiana da qual brotaram. Se a física moderna revela.progressivamente e de muitas maneiras que o fundamento damatéria é o pensamento, já que os elementos da matéria serevelam como sendo mais símbolos do pensamento que outracoisa (nêutrons, mésons etc), e já que em certos processos hm­damentais não é possível fazer-se a distinção entre observadore observado, isto é, entre sujeito e objeto, há algo errado nafísica como método do conhecimento. E se a tecnologiamodificou o mundo dos corpos a ponto de tornar perfeita­mente imaginável um estágio de fartura e de lazer, sem quecom isto diminua a angústia e o tédio humano, há algo erra­do na tecnologia como busca de felicidade. Esse erro funda­mental devemos buscá-Io, ao meu ver, no conceito do pensa­

mento tal como foi projetado pela visão cartesiana, e realizadopelo Ocidente no curso da Idade Moderna.

A dicotomia que Descartes estabelece entre matéria epensamento, entre corpo e alma, entre o duvidoso e o indubi­tável, é, ao meu ver, uma dicotomia nefasta. Mas confesso ser

ela de superação muito difícil. Porque essa dicotomia, longede ter surgido no sistema cartesiano, já está contida nos mitosprimordiais que deram origem à civilização ocidental e queencontraram a sua expressão ritualizada no cristianismo.

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Descartes não passa, deste ponto de vista, de uma explicitaçãodo cristianismo. Já o cristianismo distingue, para falarmoscom Vicente Ferreira da Silva, entre o salvável (que é a alma) eo sacrificável (que é o corpo). A dicotomia pensamento-maté­ria não é portanto fruto de uma distinção epistemológica,como parece ser se a formos considerar a partir de Descartes,mas é fruto de todo um conjunto ético-religioso do qual par­ticipamos. Já que fomos projetados por esse conjunto, já queexistimos nele e graças a ele, é tremendamente difícil imagi­narmos outro projeto existencial, no qual a nefasta divisãomatéria-espírito não seria o caso. Embora saibamos de outrascivilizações, como a indiana (que desconhece a divisão aponto de conceber espíritos materializados), e de culturas cha­madas "primitivas" (que vivem em mundos pré-Iógicos, isto é,anteriores a essa divisão), é-nos impossível sorvermos existen­cialmente esses projetos alheios ao nosso.

Mas é necessário pelo menos tentarmos esse salto parafora do nosso projeto, se é que tenho alguma razão ao afirmarque a divisão matéria-pensamento ameaça a nossa civilizaçãocom o mergulho no abismo do tédio e da futilidade, justa­mente pelo êxito da ciência e da tecnologia. E creio ser possí­vel esse salto, até certo ponto. Não pelo ultrapassar do nossoprojeto, mas graças ao poder reflexivo do qual dispomos e oqual nos poderá conduzir até perto das nossas origens, daque­las origens nas quais se deu, in illo tempore, a divisão entre pen­samento e matéria, entre alma e corpo. A reflexão, portanto,para a qual convido os senhores, deve conduzir-nos até aqueleponto (para recorrer a um mito) no qual se deu a expulsão doparaíso, isto é, a alienação que é o nosso pensamento.

Que poder é esse, que acabo de mencionar e que chameide reflexivo? Para iluminá-Io, voltemos por um instante a con­siderar o processo do pensamento tal como o descrevi hápouco. Disse que o pensamento se precipita sobre os corpospara compreendê-Ios, e que se agarra a eles para modificá-Ios.O pensamento é portanto um processo explosivo que se

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expande para dentro do mundo dos corpos para devorá-Ios.O método desse devorar é a ciência e a tecnologia. Mas existeoutro movimento do pensamento, um movimento oposto.Nesse movimento contrário o pensamento se vira contra simesmo para compreender e devorar-se a si mesmo. A palavra"reflexão" indica a direção desse movimento, já que denotaum recuo em direção oposto ao avanço. A palavra correspon­dente alemã "Nachdenken" (pensar atrás ou depois) indica afunção desse movimento, já que denota controle.

E a palavra correspondente tcheca "rozmyslení" (pensaranalítico) indica o resultado desse movimento, já que denotaa decomposição do pensamento. A reflexão é portanto omovimento inverno do pensamento, que o controla e odecompõe em seus elementos. O método desse compreender­

se e modificar-se do pensamento é a filosofia. A filosofia éportanto exatamente o contrário da ciência e da tecnologia.As tentativas empreendidas de diversos lados, por exemplopelos marxistas, por Dilthey e por Husserl, de tornar científi­ca a filosofia, denotam, ao meu ver, uma incompreensão totaldo processo do pensamento. Se afirmei que, em nossa tentati­va de evitar a queda da nossa civilização no abismo do tédio eda futilidade, devemos recorrer à reflexão, tinha eu em mente

exatamente essa oposição entre filosofia de um lado, e ciênciae tecnologia do outro. Não é com mais ciência e mais tecnolo­gia que sairemos da situação angustiada na qual nos encontra­mos mas com mais filosofia (se é que sairemos). É verdadeque na descrição que acabo de lhes oferecer a ciência e a tec­nologia aparecem como as tendências progressivas do pensa­mento, e a filosofia como a sua tendência regressiva. E é ver­dade que a grande maioria continua valorizandopositivamente o progresso como herança dos dois séculos pas­sados e a despeito de muitos sintomas inquietantes. Mas exis­tem situações, reconhecidas mesmo por aqueles que põem suafé no progresso, nas quais uma expansão excessiva exige umrecuo para consolidação e descanso. Creio que devemos

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caracterizar assim a nossa situação, mesmo se formos otimis­

tas. A minha proposta de substituirmos a ciência e a tecnolo­gia pela filosofia pode ser portanto encarada como um réculerpour mieux sauter mesmo por aqueles que não crêem, comoeu, estar o nosso progresso dirigido rumo ao abismo.

Disse que a reflexão metódica, a filosofia portanto, deveconduzir-nos até perto das nossas origens, em profundidades

portanto que caracterizei pelo mito da expulsão do paraíso.Esse mito nos conta, conforme creio, em sua linguagem densa

e poética, que caracteriza todo mito, o mistério do surgir dopensamento. Conta-nos esse mito que fomos expulsos e lan­çados para cá porque comemos do fruto proibido da distinçãoentre o bem e o mal, do fruto da divisão e da dúvida portan­to. Modernizando um pouco, poderei chamar esse fruto de"antimescalina". A expulsão do paraíso, o qual pode ser descri­to como o estado da não-divisão e da não-dúvida, a expulsão

para cá, que pode ser descrito como o estado da divisão e dadúvida, não é um acontecimento de um passado históricoremoto, mas é um acontecimento mítico, isto é, um aconteci­

mento que a todos nós aconteceu e sempre acontece de novo.Estamos sendo expulsos do paraíso toda vez que distingui­mos, toda vez que duvidamos. Aliás, duvidar é sinônimo dedistinguir e de estar expulso, já que etimologicamente parentede dividir e de dois. Em alemão isto se torna ainda mais claro,

já que "zweifeln" (duvidar) conduz ao "verzweifeln" (perduvi­dar), isto é, ao desespero. A nossa expulsão desesperada doparaíso é portanto a própria dúvida, que é por sua vez um dis­tinguir, um dividir, um ordenar portanto.

Fomos expulsos do paraíso em direção da ordem e doprogresso. Deixamos para trás, sem esperança, o caos da indis­tinção e da ingenuidade, e estam os sendo lançados, impiedo­samente, em direção do cosmos da clareza distinta, que é,como diz o mito, a morte. Esta me parece ser a mensagem domito, que foi reformulada, em sua versão mais moderna, porHeidegger na frase: "fomos lançados para cá e estamos aqui

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para a morte". Mas esse duvidar, que é um distinguir e umordenar, e que o mito chama de expulsão, esse duvidar é opróprio pensamento. Com efeito, duvidar e pensar são sinô­nimos, e Descartes é, todo ele, resultado desse sinonimato. A

coisa pensante cartesiana é indubitável, justamente porque elaé a coisa que duvida. De acordo com Descartes a dúvida não

pode duvidar de si mesma. A dúvida, portanto o pensamento,distingue e ordena o duvidoso, submete o duvidoso a umaordem, a fim de que o duvidoso deixe de sê-Io e se torne indu­

bitável. O pensamento é portanto um processo absurdo.Duvida para deixar de duvidar, e transforma, nessa tentativa,

o duvidoso em dúvida. O processo é absurdo em dois aspec­tos: é absurdo porque a meta do pensamento é acabar consigomesmo, e é absurdo porque o pensamento pretende alcançaressa meta pela transformação de tudo em dúvida. O pensa­mento em sua absurdidade é comparável à sede que pretendematar-se bebendo o mar: porque é absurdo querer beber omar, e porque com cada gota bebida a sede aumenta. Quantomais progride o pensamento, tanto mais evidente se torna a

sua absurdidade dupla, tanto mais evidente se torna ser o pen­samento a expulsão do paraíso.

Duas perguntas se impõem ao contemplarmos a imagemdo pensamento que acabo de lhe propor: de que duvida opensamento? e como duvida o pensamento? Reformulando: oque é duvidoso? e qual é a ordem à qual o pensamento o sub­mete? A primeira pergunta me parece ser uma típica perguntafalsa, e o problema por ela posto um típico pseudoproblema.Porque toda resposta que a ela possamos dar (por exemplo aresposta cartesiana: "o duvidoso são as coisas externas") já seráuma transformação do duvidoso em pensamento, portantoem dúvida indubitável. Não se pode definir o duvidoso, por­que a definição acaba com ele. A definição do duvidoso é jus­tamente a meta de todo o processo do pensamento, uma metaabsurda. Porque se fosse alcançada essa definição, não somen­te acabaria o duvidoso, mas a própria dúvida acabaria, o

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pensamento acabaria, já que não teria mais assunto. Estaría­

mos de volta ao paraíso. Devemos portanto simplesmentedizer que o duvidoso é a direção na qual o pensamento seexpande. Como o pensamento se expande em todas as dire­ções, tal qual o cosmos da astronomia, devemos dizer que oduvidoso é o horizonte do pensamento. É a situação fronteiri­ça do pensamento, na qual este se expande para chocar-secom o nada e abrir-se para ele. Pensar a respeito do duvidosoé expandir os horizontes do pensamento, e a dicotomia carte­siana entre pensamento e coisa extensa é falsa.

A segunda pergunta: qual a ordem à qual o pensamentosubmete o duvidoso? deve ser portanto reformulada comosegue: qual a ordem na qual o pensamento se expande? Estasim é uma pergunta autêntica e admite resposta clara. O pen­samento se expande de acordo com as regras da língua. Comefeito, o pensamento é uma corrente de frases que se formulamde acordo com as regras lingüísticas e seguem, uma à outra, deacordo com essas regras. O pensamento, sendo um distinguir eum ordenar, é um articular do duvidoso de acordo com as

regras da língua. Devemos imaginar o pensamento como teiaque se expande em todas as direções, cujos fios são as regras lin­güísticas, e em cujas malhas impera o indizível. A teia não éuniforme. Em certos lugares ela se apresenta densa, como porexemplo na física moderna, em outros lugares ela é frouxa. Nafísica, as regras da língua, em forma de matemática, encobrem

quase totalmente o indizível, e é justamente por isto que nessaregião o pensamento se revela aquilo que é: transformador doduvidoso em língua. Em outros lugares esse caráter puramentelingüístico do pensamento não é tão evidente. Nesses lugaresainda persiste a esperança, desesperada conforme creio, que oconhecimento não é uma simples façon de parier.

Voltemos, para interpretar a teia lingüística que é o pen­samento, ao mito da expulsão do paraíso. Essa expulsão é por­tanto equivalente a uma expressão, a um grito. Cada palavra éum grito assim, e com cada palavra que pensamos, com cada

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conceito que formulamos, estamos sendo expulsos do paraíso.A corrente das palavras, a conversação, é o rio que nos arrastadas nossas origens, e pelo indizível que se esconde entre aspalavras estamos sempre nas proximidades das nossas origens.Desse indizível, dessas aberturas que a língua conserva para onada, é que brotam sempre novas. palavras, novos pensamen­tos. Estamos emergindo sempre do silêncio primordial e ingê­nuo que é o paraíso. Com efeito, essas nossas aberturas para osilêncio ingênuo, essa nossa capacidade para o espanto ante onada, essa nossa capacidade de gritar o nosso espanto, é sinalda nossa autenticidade. É sinal que ainda estamos na proximi­dade misteriosa do nada. Somente quando a teia da língua sefechar inteiramente em nosso redor, quando se tornar tãodensa e não permitir mais aberturas, é que perderemos essacapacidade para o espanto. Então não poderão surgir palavrasnovas nem pensamentos novos. Estaremos presos da conversafiada repetitiva e decairemos, inautenticamente, rumo àmorte. Essa decadência tem aspectos individuais e coletivos.

Os aspectos individuais são por demais conhecidos paraserem mencionados. Um exemplo do aspecto coletivo de con­versa fiada é a física moderna. Tão afastada está ela das origensdo pensamento, tão densa é nela a rede da língua, que está seaproximando rapidamente do círculo vicioso e tedioso dasequações reduzíveis a zero. Está adquirindo, rapidamente, oclima existencial da inautenticidade, e os próprios físicos sãoos primeiros a confessar esse fato.

O pensamento é portanto um processo lingüístico que seexpande, a partir do silêncio paradisíaco, em direção de suaprópria superação, de um novo silêncio portanto. O pensa­mento é a expulsão do paraíso em busca de outro.

Mas o paraíso secundário que o pensamento buscacomeça a revelar o seu caráter no estágio atual do desenvolvi­mento. Demonstra ser inautêntico e tedioso.

A soma dos conhecimentos que o pensamento está acu­mulando está se revelando como sendo reduzível a zero. E a

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civilização tecnológica perfeita que será o resultado dessesconhecimentos está se revelando, já muito antes de ser alcan­çada, como sendo tediosa. O paraíso em direção do qual opensamento nos impele será indistinguível do inferno. Comefeito, será o fim da dúvida, o fim do pensamento, será amorte. E aí o pensamento revela o seu aspecto mais absurdo.O pensamento é empolgante, é exuberante, é aventuroso,enquanto aberto para o nada, enquanto imperfeito. O pensa­mento perfeito, o pensamento bem sucedido, seria o tédiomortal, o círculo nojento do idem per idem. Mas, dirão ossenhores, esse pensamento perfeito não representa perigo, jáque nunca será alcançado. O paraíso secundário não represen­ta perigo, já que nunca será realizado. Não posso concordarcom esse argumento.

Defini o pensamento como processo lingüístico. A civili­zação ocidental, tal como se apresenta atualmente, reduz esseprocesso a umas poucas camadas lingüísticas, caracterizadaspelas palavras "ciêncià' e "tecnologià', que são, por sua vez,reduzíveis à camada da matemática e da linguagem do simbo­lismo lógico. Essas poucas camadas pobres são perfeitamenterealizáveis, como o nosso progresso o prova. Pelo empobreci­mento da conversação ocidental esta se aproxima, rapidamen­te, do estágio da conversa fiada. Dentro em breve não terá maisassunto. Graças a esse empobrecimento, o Ocidente terá reali­zado, dentro em breve, o paraíso na terra. Trata-se a meu ver,de um perigo real e quase iminente, um perigo que pode serevitado somente com a abertura de novas conversações, mais

próximas da origem, e portanto mais capazes do espanto anteo mistério do nada. Essas aberturas são possíveis, estão previs­tas no projeto que nos lançou para cá, porque esse projeto éinesgotável. Mas é somente, a reflexão metódica, é somente afilosofia, que pode abrir para nós essas aberturas novas, ésomente a filosofia que pode mudar o rumo do progresso.

Disse que, além da expansão, conhece o pensamentotambém a fase reflexiva, na qual procura conhecer-se a si

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mesmo, e modificar-se a si mesmo. A dúvida que é o pensa­

mento pode duvidar também de si mesma, pode, ela própria,tornar-se duvidosa. Neste ponto discordo, como vêem ossenhores, da análise cartesiana da dúvida, que me parece pecar

por insuficiente radicalidade. Essa dúvida da dúvida, esserefluir do pensamento sobre si mesmo, esta é, ao meu ver, adefinição de filosofia. E, tendo identificado pensamento comprocesso lingüístico, posso definir a filosofia como reflexão dalíngua sobre si mesma. Nessa reflexão a língua revelará a suaforça produtiva e a riqueza inesgotável dos seus temas. Opapel da filosofia na conversação (que é a história) sempre eraeste: descobrir reflexivamente os temas projetados na conver­

sação e propô-Ios à realização pela conversação em progresso.Foi assim que surgiram as ciências a partir da filosofia, e seráassim que devem surgir, a partir da mesma filosofia, novostemas a formar novas conversações e novas realizações por ora

inimagináveis. E é assim que se me afigura evitável a queda danossa conversação no abismo do silêncio inautêntico que aameaça.

O processo do pensamento é absurdo. Pensamos paranão pensar mais, falamos para podermos calar-nos. Mas é essaabsurdidade do pensamento que faz com que sejamoshomens. Ser homem é ser absurdo. É inalcançável para nós a

ingenuidade paradisíaca, o estado anterior à dúvida, a integra­ção portanto. Somos, como homens, seres alienados, seresexpulsos. Aceitemos a absurdidade do desterro. Duvidemos omais possível, e duvidemos num máximo de camadas possí­veis. Ao expulsar-nos do seu seio, nossa origem nos arriscou(Rilke). Aceitemos esse risco. Não nos deixemos enjaular pelas

poucas camadas agora em vias de realização pela conversaçãodo Ocidente. Não tenhamos medo de novas palavras e de

novos pensamentos. Abramos novas aberturas e experimente­mos novos espantos. Assim, e somente assim, seremos dignosde sermos homens, isto é, res cogitantes, coisas pensantes.

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Da dúvida

A dúvida é polivalente. Significa o fim de uma certeza.Significa a procura de certeza. Significa ainda, se levada aoextremo, ceticismo, isto é, certeza invertida. Em doses

moderadas estimula o pensamento. Em doses excessivasparalisa o intelecto. Como experiência intelectual é um dos

prazeres puros. Como experiência moral é tortura. O pontode partida da dúvida é a fé. A fé como aceitação ingênuados dados ("Wahrnehmen") é o estado intelectual primor­dial e primitivo. A dúvida destrói essa ingenuidade deforma irrevogável.

As certezas que o método da dúvida fornece nunca

serão tão autênticas quanto o é a certeza primitiva. Conser­varão sempre a marca da dúvida que lhes era parteira. Adúvida é um método que procura criar certezas inautênticaspela destruição de certezas genuínas. A dúvida como méto­do é absurda. Surge a pergunta: "Por que duvido?" É maisfundamental que a outra: "De que duvido?" Subentende apergunta: "Duvido mesmo?" Trata-se de duvidar da dúvidaportanto. Trata-se de um último passo.

Descartes (e com ele quase todo pensamento moder­no) aceita a dúvida como indubitável. Essa fé ingênua nadúvida caracteriza, com efeito, a Idade Moderna cujos últi­mos instantes presenciamos. A fé na dúvida cabe, durante a

Idade Moderna, o papel desempenhado pela fé em Deus

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em épocas anteriores. Essa fé resultou em mentalidade ecivilização "idealista". Em meio de um mundo duvidoso adúvida indubitável. A dúvida como núcleo e como último

refúgio da realidade.O intelecto como única realidade portanto. A dúvida

da dúvida seria um assalto a esse último reduto da realida­de. Seria o fim da Idade Moderna.

A dúvida da dúvida é um movimento do intelecto difí­

cil. Oscila entre dois pólos: "Tudo pode ser posto em dúvi­da, inclusive a dúvida mesma" e "Nada pode ser duvidadoautenticamente". Oscila entre um ceticismo radical e um

positivismo extremo. Kant afirma que o ceticismo é umdescanso para a razão, embora não seja lugar de moradia. Omesmo pode ser afirmado quanto ao positivismo. A dúvidada dúvida impede o descanso. É ela uma indecisão funda­mental que a análise de Sísifo feita por Camus ilustra. Adúvida da dúvida, se mantida, lança a mente na situaçãosisífica da pura absurdidade.

Duvido = penso. Penso: sou cadeia de pensamentos.Um pensamento segue outro. Por quê? Porque um pensa­mento não basta a si mesmo. Exige outro para certificar-se.Duvida de si mesmo. Sou cadeia de pensamentos que duvi­dam de si mesmo. Duvido, portanto sou. Duvido que sou,portanto confirmo que sou. Duvido que duvido, portantotorno duvidoso que sou. Por que sou? Porque duvido. Porque duvido? Porque sou. Portanto duvido que sou. Portan­to duvido que duvido.

É um beco sem saída. É, com efeito, o beco reservadoa Sísifo pelos Antigos. É uma forma de loucura. É o suicí­dio do intelecto.

Somos a primeira ou segunda geração que experimen­ta esse tipo de niilismo vivencialmente. É a perda total dafé, a loucura do nada todo-envolvente. Os sintomas abun­dam. É a lógica formal que reduz os pensamentos à tautolo­gia. É a "clara noite da angústia do nada" do existencialismo.

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É a manipulação consciente de conceitos divorciados darealidade pela ciência pura. É a produção de instrumentosdestruidores da humanidade, portanto autodestruidores,pela ciência aplicada. É a arte que se significa a si mesma. Éo carpe diem individual e coletivo, fruto do esvaziamentodos valores. O clima da absurdidade é resultado dessa

dúvida extrema. Nada tem significado. Poderá ser supera­do esse clima? Poderá sobreviver a nossa civilização à IdadeModerna.

I - Do intelecto. Certos exercícios do Ioga ultrapas­sam, em radicalidade, as meditações cartesianas. Revelamvivencialmente, não que penso, mas que tenho pensamen­tos. Posso, nesses exercícios, eliminar os pensamentos, mascontinuarei sendo. Com efeito, o método cartesiano provaa existência de pensamentos, não do eu que pensa. Há umafé humanista no "eu" que se infiltra, sub-repticiamente, noargumento cartesiano, sem jamais ser duvidada. Os exercí­cios do Ioga interessam, neste contexto, apenas enquantoproporcionam um ponto de vista sobre os pensamentos. Éo ponto de vista de dentro para fora. Os pensamentos seapresentam como tecido entreposto entre o "eu" e o mundodos fenômenos externos. Esse tecido tapa, apresenta erepresenta ("vorstellt" na palavra de Schopenhauer) omundo externo. Chamemos esse tecido de "intelecto".

Podemos definir o intelecto como o campo no qual ocor­rem pensamentos. Esse campo está ligado, de certa forma,com o "eu" que tem pensamentos, e com o mundo a quemos pensamentos representam. Pelo menos essa é nossa féingênua, sem a qual o intelecto não teria significado. Essasligações são justamente o significado do intelecto. Mas essasligações não podem ser pensamentos, dada a nossa defini­ção do intelecto. Do contrário, "eu" e "mundo externo"seriam parte do intelecto. As ligações que unem o intelectoao "eu" e ao "mundo externo" não são, portanto, pensa­mentos. "Eu" e "mundo externo" são impensáveis. Sendo

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impensáveis são, paradoxalmente, indubitáveis. Serão, emconseqüência, eliminados do presente argumento.

O intelecto definido como campo no qual ocorrempensamentos é uma visão que resultou de um ponto devista. É um ponto de vista externo ao intelecto. O intelectoé, deste ponto de vista, objeto. Pode ser investigado "objeti­vamente". Tornou-se despsicologizado. Os pensamentosque compõem o intelecto não são vivências, mas objetos deconhecimento. Uma dificuldade ontológica se escondeneste ponto de vista. Pensamentos se tornam objetos depensamentos. Essa dificuldade é conseqüência da dúvida dadúvida que fundamenta o ponto de vista.

Passemos, relutantes, por Cima dessa dificuldade.O intelecto como campo no qual ocorrem pensamen­

tos torna a pergunta "o que é intelecto?" pergunta sem sig­nificado. Um campo não é um algo. É um como algo se dá.O campo gravitacional da Terra é como se comportam cor­pos na vizinhança da Terra. O intelecto é como pensamen­tos ocorrem. Para ocorrerem, os pensamentos devem ocor­rer de uma forma ou outra. O intelecto é essa "forma ou

outra". Tendo negado dignidade ontológica ao intelecto,dedicaremos a nossa atenção aos pensamentos.

Os pensamentos como objetos são formações comple­xas. Consistem de elementos chamados "conceitos" ligadosentre si por elos chamados "regras". Pelo menos é assim quepensamentos ocorrem em campos chamados "intelectos donosso tipo".

Outros tipos de intelectos podem ser imaginados. Porexemplo: intelectos do tipo chinês ou kwakiutl, Nessesintelectos os pensamentos talvez não consistam de concei­tos. Restringiremos o argumento ao nosso tipo de intelecto.

Os pensamentos como conceitos ligados por regrassão processos. Discorrem. Dirigem-se para uma meta. Ameta é chamada "significado". Um pensamento significati­vo é um pensamento que alcançou sua meta. Pensamentos

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incompletos são insignificativos. Alcançado o significado,surge pensamento novo. Pensamentos significativos sãoprodutores de pensamentos novos. O significado do pen­samento é outro pensamento. Pensamentos sem significa­do não produzem pensamentos novos. O critério do signi­ficado é a capacidade para a produção de pensamentos.Um pensamento significativo pode produzir mais que umpensamento novo.

Quanto mais significativo o pensamento, tanto maior onúmero de pensamentos novos por ele produzidos. For­mam-se, assim, cadeias de pensamentos, chamadas "argu­mentos". Estes discorrem, por sua vez, em busca de signifi­cado, do qual o significado do pensamento individual éapenas um aspecto subalterno. A soma dos argumentosforma a totalidade do discurso. Este flui, por sua vez, emdireção de um significado. Pelo próprio caráter do processo,esse significado é inalcançável. Está ele naquele "eu" e"mundo externo" que eliminamos do nosso argumento. Peloseu próprio caráter, portanto, é o discurso um processo frus­trado; Carece de ulterior significado. Isto não invalida, noentanto, os significados parciais dos pensamentos e dosargumentos. O seu significado está no discurso, e não noalém dele. Somente aqueles que não se conformam com essalimitação imposta pelo campo que é o intelecto decaem noantiintelectualismo. No silêncio wittgensteiniano.

A procura de significado é sinônimo de "dúvida", e adúvida é portanto o declive do discurso. É a força que pro­pele o discurso. O significado parcial é a superação parcialda dúvida, e o significado total inalcançável é a garantia deser a dúvida inesgotável. É a garantia da continuidade dodiscurso. Ao discorrer, propelido pela dúvida, o discurso seramifica e amplia. O número dos significados parciaisalcançados cresce. Podemos portanto resumir o resultadoaté aqui alcançado: O intelecto é o campo crescente dadúvida em discurso.

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11 - Da frase. O que é conceito? Temos a tentação deresponder que conceito é aquilo que dá origem à palavra.Palavra seria símbolo de conceito. Mas seria significativaesta resposta? Não representa simplesmente a introdução deum termo novo, em tudo idêntico ao antigo, de um sinôni­mo com efeito? Podemos argumentar que há conceitos sempalavras, e palavras sem conceitos. Que os dois termos nãosão idênticos portanto. Mas o argumento não pode sermantido. Conceitos sem palavras é uma contradição de ter­mos, porque um conceito sem palavra, um conceito inarti­culado, não poderia participar do pensamento discursivo.Não seria portanto conceito. E palavra sem conceito é,igualmente, contradição de termos, porque toda palavra,por ser palavra, participa do discurso. O termo "palavrasem conceito" exprime apenas a desconfiança na função deuma determinada palavra, no conjunto do pensamento, enão, como aparentemente faz, a confiança em duas cama­das ontológicas: palavra e conceito. Os termos "palavra" e"conceito" são sinônimos para todos os efeitos formais,embora possivelmente não o sejam para a psicologia. Oponto de vista deste argumento é despsicologizante, isto é,"objetivo". Usará os dois termos como sinônimos portanto.E eliminará, pela regra da navalha de Occam, o termo "con­ceito". Redefinirá o pensamento como complexo de pala­vras organizadas por regras. E redefinirá o intelecto comocampo no qual ocorrem palavras organizadas por regras.

Com esta reformulação deslocamos o argumento deterreno. Localizamos a consideração do pensamento no ter­reno da língua. No terreno adequado. A preocupação como pensamento é uma disclplina da língua. O pensamentopassa a ser um fenômeno lingüístico chamado "frase". Asregras que ordenam as palavras na frase passam a ser "gra­mática" sensu Lato. Intelecto como campo no qual ocorrempensamentos passa a ser língua como campo no qual ocor­rem frases.

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Uma palavra de cautela: as ciências que investigam alíngua estão empenhadas na análise das línguas faladas eescritas. A língua na concepção do presente argumento é o"falar baixo". Línguas faladas e escritas são articulaçõessecundárias da língua "pura". As ciências da língua não dis­tinguem rigorosamente entre língua "pura" e "aplicada".Por exemplo: tratam ora de problemas de gramática (aspec­to de língua "pura"), ora de problemas fonéticos (aspecto delíngua "aplicada"). A distinção rigorosa urge. Investigaçõesda língua "aplicada" pertencem ao campo das ciências danatureza ou da sociedade. Investigações da língua "pura"constituem o fundamento da ciência do espírito (Geistes­wissenschaft), no sentido Diltheyano, embora de uma ciên­cia do espírito despsicologizada. O presente argumento seenquadra no segundo contexto.

A frase consiste, grosso modo, de cinco partes: (1)sujeito, (2) objeto, (3) predicado, (4) atributo, e (5) advér­bio. Atributo e advérbio são complementos. Serão descon­siderados no presente argumento. Sujeito é o grupo depalavras no qual o processo da frase se inicia. Objeto é ogrupo de palavras para o qual o processo da frase se dirige.Predicado é o grupo de palavras que une sujeito e objeto.Esta descrição é de uma frase padrão, sobre a qual todas asfrases podem ser, em tese, reduzidas. Nessa frase padrãosujeito e objeto são os horizontes, entre os quais o predica­dos se projeto. A frase é um processo do tipo chamado"projeto". Tem a forma ("Gestalt") do tiro ao alvo. Sujeito éo fuzil, objeto é o alvo, predicado é a bala.

Esta forma da frase é a estrutura do nosso tipo de lín­guas, portanto do nosso tipo de intelecto. Tudo que nosocorre, ocorre nesta forma. A filosofia tradicional comete oerro de projetar essa forma sobre o "mundo externo". Crêque a estrutura da língua (do intelecto) espelha a estrutura deuma realidade externa. Mas existem línguas de estruturainteiramente diversa. Se podemos dizer algo com referência

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ao "mundo externo", é isto: dada a diversidade de tipos delíngua, a estrutura da língua não espelha a estrutura do"mundo externo". A soit-disant estrutura do mundo externo

é chamada por Wittgenstein de "Sachverhalt", isto é, relaçãoentre coisas. Mas o próprio termo revela que o "Sachverhalt"não passa da estrutura das nossas frases. "Estrutura da frase" e"relação entre coisas" são sinônimos, e o resto é tentativametafísica e desesperada de romper as limitações do intelec­to. De romper as grades da língua. O que não pode ser fala­do, deve ser calado. A análise gramatical da frase é, de manei­ra categórica, a análise ontológica da realidade.

Sujeito, objeto e predicado são as formas de ser queperfazem a nossa realidade. Mais exatamente: as virtualida­des que se realizam na frase. O sujeito se realiza ao emitirpredicado. O objeto se realiza ao ser atingido pelo predica­do. O predicado, ao relacionar sujeito com objeto, estabele­ce um "Sachverhalt", isto é, uma situação de realidade. Osujeito, considerado isoladamente, é a procura e a demandada realidade. Subjaz ("sub-jectum") ao projeto da realidade.O objeto, considerado isoladamente, é a oposição a esseprojeto ("ob-jectum").

Mas sujeito e objeto, considerados isoladamente, nãosão seres realizados. Adquirem realidade efetiva ("Wirldich­keit") na situação da frase. O predicado, que estabelece asituação, comfere realidade ao sujeito e objeto. Sujeito eobjeto transcendem a situação, na medida em que não sãopredicados nela. São realizados apenas parcialmente pelopredicado. Toda frase é realização parcial de um (ou mais)sujeito e um (ou mais) objeto. A cadeia de frases (o argu­mento) é o processo contínuo de predicação de sujeitos aobjetos, com a finalidade de realizá-Ios. O discurso comoum todo é um processo de predicação de todos os sujeitos eobjetos. O discurso é predicativo.

"Realidade" ("Wirldichkeit") é o aspecto ontológicode "significado". A língua (o intelecto) é o campo no qual

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ocorre a busca predicativa da realidade. A língua em seudiscurso produz realidades parciais, mas a realidade total,sua meta, é inalcançável. "Busca da realidade" e "dúvida"são os dois aspectos do declive do discurso. A realidade totalé inatingível, e a dúvida é inexaurível, por duas razões for­mais diferentes: 1 - Nenhum sujeito é inteiramente predi­cável em direção de não importa que número de objetos. 2- Há uma infinidade de sujeitos, e a língua cria semprenovos sujeitos. A limitação mais frustrante do intelecto resi­de na inexauribilidade do sujeito. O sujeito em sua plenitu­de de virtual idades desafia o método da dúvida que é o dis­curso. O sujeito é um grupo de palavras de um certo tipo.Investiguemos esse tipo de palavras.

111- Do nome. Análise da frase é análise da realida­

de. Gramática é ontologia. A gramática tradicional éontologia aristotélica, e a sua classificação das palavras em"substantivos", "adjetivos", "verbos" etc. correspondeaproximadamente às categorias aristotélicas da realidade.Proponho que seja abandonada. Distinguirei dois tipos depalavras: palavras integradas no discurso, e palavras nãointegradas. A distinção é existencial, e não formal, e o seucritério é a vivência do discurso. Palavras integradas sãoarticuladas sem esforço, palavras não integradas comesforço. Palavra do tipo "Isto aqui" e "Olhe lá" são pala­vras que exigem esforço de articulação (gestos, inflexão davoz), que demonstra vivencialmente não serem integradasno discurso. Chamarei esse tipo de palavras de "nomespróprios", e todas as demais palavras de "derivadas". Há,pois, dois tipos de frases: as que contêm nomes própriosdesignarei pelo termo "chamar", e as que contêm apenaspalavras derivadas, pelo termo "conversar". Chamar é pre­dicar nome próprio, conversar é predicar palavra derivada.Nome próprio predicado é palavra derivada. Palavra deri­vada é palavra conversável. O nome próprio é chamadopara ser convertido em palavra conversável. A conversação

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consiste de palavras derivadas que podem ser, por sua vez,classificadas, por exemplo, em "nome de classe", "relação"etc. Desconsiderarei essa classificação no presente argu­mento.

Nomes próprios são as raÍzes do discurso. Chamar é adúvida em seu primeiro movimento. A consideração dosnomes próprios é a dúvida da dúvida portanto. É a reflexãoextrema. A volta às raÍzes. O nome próprio é o sujeitoainda não predicado. É plenitude inexaurÍvel das virtual i­dades. A consideração dos nomes próprios é a contempla­ção da plenitude das virtualidades. A meta do discurso é a

realização das virtualidades dormentes no nome própriopela predicação progressiva. A meta da reflexão é a con­templação da plenitude das virtualidades dormentes nonome próprio pela predicação regressiva. Reflexão é dis­curso invertido. Reflexão é filosofia. Filosofia é discurso

invertido. Filosofia é a língua (o intelecto), que reflui sobresi mesma. Filosofia é a busca das raÍzes. Filosofia é a dúvi­da da dúvida. Os nomes próprios são a barreira da filoso­fia. A consideração do chamar é a última consideração dafilosofia.

Chamar é estender o território do intelecto. No cha­

mar, um nome próprio novo aparece. Uma nova palavra éacrescentada à língua. Uma nova palavra é "produzida".Chamar é o movimento produtivo do intelecto. "Produzir"em grego é "poiein". Chamar é o movimento poético dointelecto. O intelecto (a língua) se expande pela poesia. Apoesia é o movimento do intelecto que produz nomes pró­prios novos. A poesia é a situação de limite da língua. Apoesia é dúvida em seu primeiro movimento. Conversar épredicar as palavras derivadas da poesia. O "assunto" daconversação são os nomes próprios chamados pela poesia. Apoesia chama nomes próprios e os "verte" para a conversa­ção para que sejam "convertidos" em palavras derivadas. Asfrases da poesia são "versos".

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As frases da conversação são "conversos". O discursoconsiste de "versos" e "conversos". A filosofia retraça os pas­sos do discurso. É, em última análise, crítica de "versos".

O verso é uma frase que tem nome próprio por sujeito.Um nome próprio novo. A característica do verso é sua"originalidade". O verso predica uma origem. A palavra". " d"" (b ) O 'b d I'ongem vem e os oca. verso e a oca a mgua,pela qual sorve e inspira nomes próprios novos. A inspira­ção poética sorve nomes próprios novos para predicá-Iosem versos. A inspiração poética articula o inarticulado parapredicá-Io em verso. O sujeito da poesia é o inarticulado. Onome próprio é o nome do inarticulado. A poesia produzlíngua, porque articula o inarticulado. A póesia encara oinarticulado. A poesia é o lugar de choque do intelecto como inarticulado. A poesia é o limite do intelecto. O intelectonão pode ir além da poesia. A poesia é o contato do intelec­to com o "mundo externo". O "mundo externo" é sorvÍvel

apenas poeticamente. Pode ser apenas chamado, nuncaconversado. É inarticulado. Nomes próprios são pedaçosarrancados ao inarticulado pela poesia para serem conversa­dos. O inarticulado é inexaurÍvel. A poesia lhe arrancaconstantemente novos pedaços sem exauri-Io. A continui­dade da poesia é prova disto. E todo novo nome próprio éinexaurÍvel pela conversação, por mais que seja predicado.Repitamos portanto que a limitação do intelecto é dupla: apoesia não pode exaurir o inarticulado, e a conversação nãopode exaurir os nomes próprios produzidos pela poesia.

IV - Da proximidade. A poesia encara o inarticulado.Encara a origem. Está oposta à origem. A poesia é o postoavançado do intelecto. Pela poesia está o intelecto, como umtodo, oposto à origem. O intelecto como um todo é o opos­to da origem. A origem (o inarticulado) é inteiramente dife­rente do intelecto. O intelecto, por estar oposto à sua ori­gem, está inteiramente alienado de sua origem. O intelecto éa própria alienação da origem de si mesma. O intelecto é o

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campo da dúvida progressiva. A dúvida progressiva é a alie­nação progressiva da origem de si mesma. A dúvida é aexpulsão ("Ausdruck" = articulação) da origem de si mesma.Com todo nome próprio novo a origem se expele de simesma. Todo verso novo é uma nova "expulsão do paraíso".O "paraíso" é, neste contexto, sinônimo de "ingenuidade".Todo verso novo é perda de ingenuidade.

Neste sentido é todo verso novo "original", porque épecado original. O intelecto é um processo de alienaçãoprogressiva que se origina, sempre de novo, no pecado ori­ginal do verso. Todo verso é uma alienação nova da origemde si mesma. Em todo verso a origem se encara a si mesmade novo. Neste sentido é todo verso um espelho novo da"realidade". Não como "adequação do intelecto à realidade"(definição tradicional da verdade), mas como oposição dointelecto à sua origem. Neste sentido é a poesia a fonte da"verdade".

. O intelecto é o campo no qual ocorrem frases. Algu­mas dessas frases são versos. Versos são expulsões, pela dúvi­da, do inarticulado de si mesmo. Nessa expulsão vibram osversos em "simpatià' com a origem que as tem expulsado.Essa vibração ("Stimmung") é o acorde que liga verso como inarticulado. O verso está em acorde ("stimmt ueberein")com o inarticulado. Este clima ("Stimmung") do verso é aúnica forma, embora intelectualmente insatisfatória, pelaqual podemos conceber a verdade. É intelectualmente insa­tisfatória, porque se processa nas regiões limítrofes do inte­lecto. A verdade é reduzida a um problema existencial deautenticidade. Um verso é verdadeiro quando autêntico,isto é, quando original e em vibração com a origem. Docontrário, é inautêntico, portanto falso. O verso autêntico éa fonte da verdade. A conversação elabora versos autênticosde acordo com a vibração neles contida. Essa vibração éconvertida pela conversação em regras de língua. As frasesda conversação são certas, quando obedecem a essas regras,

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e erradas, quando não obedecem. Neste sentido podemosdizer que o intelecto é o campo no qual ocorrem frases ver­dadeiras e falsas, certas e erradas.

A verdade é a vibração do verso com o inarticulado. Averdade é uma função da proximidade do verso com o inar­ticulado. Essa proximidade envolve o verso em clima("Stimmung") característico da poesia. É o clima do espan­to. A poesia é intelecto espantado ante o inarticulado. Oinarticulado é espantoso, porque inteiramente diferente dointelecto. A proximidade do inarticulado espanta. A dúvi­da, que é a oposição do inarticulado contra si mesmo, é umespanto do inarticulado ante si mesmo. A dúvida é umgrito de espanto. Esse grito de espanto resulta no nomepróprio a ser predicado em verso. A dúvida é espanto arti­culado. Intelecto é articulação progressiva do espanto. Àmedida que progride a conversação, o espanto se dilui, masestá denso no verso. A conversação é o método de diluirespanto. É um assobiar na floresta. Mas o espanto originalse renova sempre na poesia. A verdade é uma função doespanto. O nome próprio, articulação do espanto que é, é afonte da verdade, porque bota da proximidade com o inar­ticulado. O espanto é uma vivência imediata. Neste sentidoé válida a interpretação empirista da verdade.

Quando o inarticulado se encara pela dúvida, surge ogrito de espanto que resulta em língua. A estrutura da línguaé a elaboração, pela conversação, da vibração do espanto. Aspalavras da língua são elaborações, pela conversação, dosnomes próprios que o espanto articula. Todo verso contém,in nuce, toda uma língua. Neste sentido é o verso umasemente da realidade. É essa semente, porque brota da pro­ximidade com o inarticulado. O verso como semente da rea­

lidade é virtualmente um cosmos. Línguas são cosmoi quebrotaram em versos. As línguas do Ocidente são cosmoi quebrotaram de uns poucos versos contidos nos livros "sagra­dos" judeus e em filósofos gregos. Esses versos originais são

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"sacros", no sentido de cheios de espanto. A conversaçãodilui o espanto, isto é, "profaniza" os versos. A conversaçãoocidental, progredindo pelo declive da dúvida metódica,alcançou um estágio de profanação avançada. Afastou ointelecto ocidental da proximidade com o inarticulado. Aconversação avançada e profanizada ameaça mergulhar emconversa fiada. Na conversa fiada cessa a elaboração daspalavras derivadas. É uma repetição tediosa de palavras eformas congeladas em chavões estereotipados. Nesse estágioavançado a própria inspiração poética cessa de funcionarcomo renovadora de espanto. O intelecto em conversa fiadanão pode ser espantado. Os nomes próprios vertidos pelapoesia são transformados, nesse estágio, imediatamente emformas rigorosas. É esse o estágio que parece ser a meta ime­diata do Ocidente.

Os sintomas foram enumerados na introdução a esteargumento. Urge, enquanto é tempo, uma volta para asraízes. Urge uma volta para a proximidade com o inarticu­lado. Em outras palavras: urge uma filosofia radical queserá uma crítica das fontes da língua. Uma dúvida da dúvi­da portanto.

V - Conclusão. Somos, enquanto seres pensantes,produtos da língua e não podemos superá-Ia pensando.Somos, enquanto ocidentais, produtos de um grupo delínguas em estágio de conversação avançado. Não pode­mos, pensando, ultrapassar essa nossa condição dentro daqual estamos jogados. As línguas ocidentais, em seu estágioatual, são, de forma categórica, a nossa realidade. Todatentativa de quebrar as limitações dessa nossa condição sãometafísica surda e muda. A realidade, tal como as línguasocidentais em seu estágio atual a estabelecem em nossoredor, tem todas as características de uma conversaçãoavançada. Quase nada nos espanta. O tédio da conversafiada é o clima prevalecente. É uma realidade "absurda", nosentido de afastada das suas raízes. Uma realidade profana.

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Não podemos superar essa realidade altamente insatis­fatória pensando. Mas podemos refletir contra ela. Pode­mos retraçar-Ihe os passos e avançar, contra a sua corrente­za, até às suas fontes. Em outras palavras: podemos duvidarda dúvida da qual ela é realização avançada. Nesse nossoduvidar reflexivo reencontraremos os versos espantosos quelhe servem de base. Esses versos são inesgotáveis, porquecontêm nomes próprios inexauríveis. O nosso choque comesses versos poderá resultar em conversação nova. Digomais: poderá resultar em língua nova, embora brotando dasmesmas raízes.

Essa língua nova da qual estou falando não é uma fic­ção ad hoc inventada. Está surgindo em nosso redor ecomeça a desenvolver-se. É a arte nova. Nela e por ela estãosendo criadas novas categorias do pensamento, portantouma nova estrutura da realidade. A própria estrutura fun­damental "sujeito-objeto-predicado" está sendo reformula­da. Um novo tipo de discurso está sendo elaborado. Nessastentativas poderá ser superada a Idade Moderna, e poderáser salva a conversação ocidental do abismo da conversafiada.

A crise atual do Ocidente não é a primeira. A passagemda Idade Média para o Renascimento, por exemplo, marcaoutra. Possivelmente estamos no limiar de um novo Renas­

cimento. A filosofia da língua poderá muito bem ser a armateórica desse Renascimento.

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Praga, a cidade de Kafka

A civilização é um produto da cidade, pelo menos histo­ricamente. Os berços da chamada civilização ocidental sãoumas poucas cidades do Oriente Próximo. Havia uma rela­ção ambivalente entre cidade e civilização,uma relação rever­sívelde causa e efeito. A cidade marcava a civilizaçãocom seucaráter, e era, em troca, marcada pela civilização à qual deraorigem. Neste processo de vaivém, o caráter específico dacidade e da civilização tornava-se sempre mais pronunciado.

Algumas cidades conservam este poder de criar um esti­lo específico de pensar, sentir e viver até (ou quase até) os diasde hoje. Uma delas é Praga. Tudo que brotou das ruas tortas,às margens do rio torto, e tudo que cresceu, qual trepadeira,à sombra e como suporte das centenas de torres pontudas, éproduto, testemunho e reafirmação do espírito de Praga.Kafka é um exemplo recente dessa flora. Torna-se necessária,para a compreensão do inquietante fenômeno Kafka, destaprocura de Deus através do diabo, uma compreensão dePraga. Não é uma cidade muito antiga. As suas origens seperdem, no entanto, nas brumas da lenda.

Uma sibila inspirada profetizou "a grande cidade, cujaglória toca as estrelas".

Algo deste aroma lendário, sibilino e profético, algo aum tempo santo e demoníaco, paira sobre a cidade até hoje.A cidade vibra entre dois pólos: o enorme castelo com sua

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catedral gótica e torre barroca, e o aglomerado de torresgóticas da "Velha cidade", erguidas quais lanças de um exér­cito contra o céu. As ruas todas correm, como córregos tor­tuosos, monte acima ao encontro do Castelo, ou vale abaixopara desembocar na praça central da "Velha cidade". O rio,com seu "5" majestoso, forma a divisa entre os pólos. Aspontes modernas que o atravessam são tentativas inautênti­cas de negar ou diminuir a tensão, são estradas de fuga.Salvo uma, a ponte de Carlos. Essa, a gótica, com suas torrese suas estátuas, é o elo impossível, mas realizado, entre caste­lo e igreja, entre monte e vale, entre o rei e o burguês, entrea soberba e a humildade, entre a rua dos alquimistas e a uni­versidade, entre o céu e a terra, entre o "Castelo" e a aldeiade Kafka. Esta ponte carrega o trânsito não mais material(disto se encarregam as pontes modernas), mas espiritualentre o lado "grande" e o lado "pequeno" de Praga. O lado"pequeno", e isto é típico de Praga, é o subúrbio do castelocom os palácios barrocos dos senhores. Lá longe, rio acima,erguem-se as ruínas de um contracastelo, mas de um contra­castelo mais antigo que o próprio castelo. São esquecidas,mas continuam no subconsciente da cidade. Quando as cas­tanheiras estão em flor, ou quando os telhados estão cober­tos de neve, essa cidade-dialética reveste-se de uma belezasingular, resultado de uma luta milenar entre natureza earquitetura, ou, mais basicamente, de uma luta que o espíri­to humano, trava em duas frentes, contra a matéria e contraas forças superiores.

Vista superficialmente, é a cidade resultado e causa deluta entre três povos: o tcheco, o alemão e o judeu. Nofundo, no entanto, não há três populações em praga, masuma só: a praguense. Os alemães de Praga não sabem oquanto são tchecos, os tchecos não sabem o quanto são ale­mães, e ambos não sabem o quanto são judaizados. Osjudeus de Praga são talvez os mais assimilados entre todos osjudeus do mundo, por se terem assimilado a dois povos, mas

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conservam o seu judaísmo como uma espécie de "ponteCarlos" entre os dois povos.

O papel de Kafka como pontífice, como construtor depontes impossíveis, mas realizadas, tem uma de suas explica­ções nesta situação dos judeus praguenses. A posição flutuan­te e duvidosa do praguense para com a sua "nacionalidade" éposta em evidência, cada vez que a cidade é varrida por umatormenta externa. Quando foi ocupada pelo nazistas, grandeparte da população tcheca redescobriu a sua alma alemã,quando foi ocupada pelos russos, grande parte da populaçãoalemã redescobriu suas fontes eslavas. Os judeus, entretanto,foram praticamente eliminados, e Praga não é mais Pragacomo o fora no tempo de Kafka.

Praga é uma cidade situada nas fronteiras. Esta frasequer ser entendida em todos os sentidos, inclusive no sentidoque os existencialistas dão ao termo "situação de fronteira".Uma dessas fronteiras, a nacional, entre três povos, já foimencionada. Uma outra, a arquitetônica, entre o Gótico e oBarroco (saltando, caracteristicamente, o Renascimento), foitocada de leve. O Renascimento não encontrou, salvo em

poucos edifícios isolados, ponto de apoio em Praga, por estarem conflito com o espírito da cidade. Mas o Gótico e o Bar­roco, a elevação disciplinada da alma até Deus, com osdemônios se escondendo entre as torres da catedral, e a lutaenvolta e algo pretensiosa do espírito contra si mesmo, inau­têntica talvez em suas convulsões, mas autenticamente reli­giosa na sua vontade de forçar o divino, estes dois estilos sãoos estilos de Praga. Essa cidade consegue o inimaginável: afusão estética de dois espíritos alheios, e isto não somente nototal da imagem da cidade, mas até num único edifício, nacatedral gótica de torre barroca. Kafka reúne em si o gótico eo barroco, a fé a demonologia da Idade Média e a dúvida tor­turada e a angústia das guerras religiosas.

Outra fronteira que atravessa Praga é a que separa oOcidente do Oriente europeu.

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A cidade absorve, sedenta, todas as correntes ocidentais:

a universidade de Praga é um dos centro intelectuais da IdadeMédia, o Protestantismo se instala em Praga diretamente da

Inglaterra e antes de Lutero, o espírito científico toma contade Praga com Tycho Brahe antes de Kepler, e nos séculos XIXe XX a cidade marchava na primeira linha dos desenvolvi­mentos artísticos e intelectuais do Ocidente. No entanto, ela

nunca se desliga da vasta correnteza mística do Oriente euro­peu: os hussitas têm parentesco com os revolucionários mís­ticos russos, o rabino Loew, com seu homem artificial,

Colem, é um kabalista judeu precursor talvez do misticismohasídico do Oriente, os poetas Bezruc e Rilke pertencem, sobcerto ângulo, à tradição bizantina da "santificação da coisa".A síntese entre Ocidente e Oriente (europeus) tão estetica­mente repulsiva na Rússia, e contra a qual já se insurgiu Dos­toiewski, por senti-Ia inautêntica, foi realidade autentica­mente em Praga. Kafka é um produto e um realizador dessasíntese, e o era quase conscientemente. O seu interesse pelaliteratura iídiche, por exemplo, era como que uma saudadepor uma parte semi-esquecida do seu próprio espírito.

Mas a fronteira mais característica que passa pela cidade, ea que encerra em si todas as demais fronteiras, é a linha quedivide os espíritos, em intelectuais e meditativos. É claro queesta fronteira existe em todo espírito humano. Mas há, eviden­temente, um clima dentro do qual uma das duas regiões pre­domina. O clima dentro do qual uma das duas regiões predo­mina. O clima de Paris, por exemplo, é eminentementeintelectual, e o clima de Kioto eminentemente meditativo. Em

Praga esses climas coexistem com igual força. A tensão resul­tante produz um estado de alma e uma maneira de viver, carac­terizados por um ceticismo, um desespero irônico, e um cinis­mo voltado tanto contra o intelecto quanto a intuição, fato

este que não encontra paralelo em nenhuma outra cidade.Num nível mais baixo, esse estado de alma pode ser observado

na prontidão com que o povo de Praga coopera, de bom

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grado, com qualquer sistema de governo. É uma cooperaçãooportunista, irônica, cínica, feita com uma reserva mentalnunca percebida pelo potentado. Num nível mais elevado,transparece nas mentes divididas em si mesmas, cientes da trai­ção recíproca de uma metade da mente contra a outra. Um dosmais fortes e trágicos exemplos dessa situação de fronteira éKafka. Nele, a força extraordinariamente desenvolvida do inte­

lecto logo se quebra, no assalto à análise intelectual impiedosa­mente honesta. A impressão que temos ao ler qualquer páginade Kafka, diria até qualquer frase, é a de uma luta interna entreduas honestidades. A obra de Kafka é fragmentária, porque elese quebra a si mesmo no processo do pensamento.

Kafka explodiu como bomba retardada. Quando aexplosão se verificou, Praga, no sentido kafkiano, já haviadesaparecido. Os poucos que se tinham influenciado porKafka em vida, isto é, a geração de intelectuais judeus pra­guenses, todos estudantes pelo ano de 1910, estavam sendoexterminados nos campos nazistas. O divulgador de Kafka,Max Brod, um dos poucos sobreviventes, lançou os seusromances e contos num meio estranho.

A recepção da obra teria surpreendido o próprio Kafl(a.Ela foi aceita como expressão de um espírito isolado, alta­mente individual, bizarro e "mal ajustado", quando na reali­dade trata-se de uma expressão genial, típica e autêntica doespírito de Praga. A língua dos escritos de Kafka foi conside­rada um alemão sui generis, cheio de palavras inventadas eformas gramaticalmente grotescas. Na realidade, essa língua éo próprio alemão praguense. As palavras "inventadas" sãotraduções do tcheco. As "formas grotescas" são formas esla­vaso A ironia sardônica e diabólica que pervaga a obra, semprejuízo de uma seriedade, a qual foi considerada sinal docaráter desse escritor, é na realidade uma sublimação dohumor praguense.

A autodepreciação, nojo de si mesmo, que é o temabásico de Kafka, é interpretada como traço quase patológico

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da alma do autor, quando na realidade exprime uma disposi­ção de uma cidade e civilização voltadas contra si mesmas,numa mistura de furor suicida e auto-erotismo. O pseudo­arcaísmo casado ao modernismo de vanguarda, interpretadocomo forma poética individual de Kafka, é na realidade oestilo da cidade medieval industrializada. Os temas aparente­mente estranhos e exóticos dos romances e contos são na rea­

lidade quase temas tradicionais de Praga. A "carta ao pai",interpretada como documento clássico do complexo deÉdipo em trajes individuais kafkianos, passou na realidadepor uma camada praguense que lhe deu colorido de fervor edesespero religioso. A busca sempre frustrada, sempre repeti­da do absoluto quase alcançado e absurdamente perdido noúltimo instante, interpretada como religiosidade doentia ecaracterística de uma individualidade extraordinária, é narealidade o último capítulo da história religiosa de Praga.Enfim, o radicalmente novo, o revolucionário e original queo mundo crê ter achado em Kafka, é na realidade a últimaforma genial da mensagem milenar de Praga ao mundo.

Não resta dúvida de que Praga não explica inteiramenteo fenômeno Kafka. Há nele um grande substrato mais amploque o faz participar da correnteza da tradição ocidental ehumana, e portanto o torna compreensível ao mundo. Hánele uma superestrutura individual que justifica a nossaadmiração em face de um espírito genial e sofredor de inten­sidade quase insuportável. E há nele uma capacidade visioná­ria e quase profética que explica nossa certeza de estarmosdiante de um precursor, e não de um epígono. Mas este fenô­meno ocidental e humano, e este fenômeno individual e par­ticular, têm um esquema de referência exato: Kafka é pra­guense. Ele é o cantor de uma cidade e de uma civilizaçãoque morreram quase simultaneamente com ele. Ele pressen­tiu-lhe a morte e talvez as tenha transportado consigo para aeternidade.

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Esperando por Kafka

Uma obra literária é a articulação de um intelecto. É aforma lingüística na qual um intelecto se realiza. Realizan­do-se, o intelecto participa da conversação geral. Uma obraliterária é, portanto, um elo da cadeia da grande conversa­ção que podemos, grosso modo, chamar de "civilização".Como parte integrante da conversação tem a obra literáriadois aspectos básicos. Encerra a conversação que lhe prece­de. E origina a conversação que lhe sucede.

No primeiro aspecto é uma resposta. No segundo,uma provocação. Há portanto, duas possibilidades funda­mentais de uma apreciação de uma dada obra literária:podemos tentar compreendê-Ia como resposta, ou pode­mos tentar enfrentá-Ia como provocação. Na primeira ten­tativa estaremos analisando a obra. Na segunda estaremosconversando com ela. O campo da primeira tentativa é acrítica. Nesse campo a obra será compreendida como sín­tese das provocações às quais esteve exposto o intelectodentro do qual a obra surgiu. O campo da segunda tenta­tiva é a especulação. Nesse campo a obra será experimenta­da (erlebt) como mensagem enviada pelo intelecto dentrodo qual a obra surgiu, mensagem essa enviada em nossadireção.

Os dois campos não podem ser rigorosamente delinea­dos. A investigação crítica provoca, em nossos intelectos,

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espontaneamente, uma vivência da mensagem da obra. Aespeculação sobre a mensagem da obra provoca, esponta­neamente, a nossa curiosidade quanto aos elementos que atornaram possível. Não obstante, a esses dois campos cor­respondem duas atitudes (Stimmungen) diferentes. Aocampo da crítica corresponde a atitude da curiosidade. Aocampo da especulação corresponde a atitude da simpatia nosentido grego da palavra ("co-vibração"). Esta palavra "sim­patia" brotou do húmus da música. Consideremos, comoexemplo, a viola d'amore. Nela certas cordas vibram emsimpatia com as cordas tocadas pelo arco. Quando nosaproximamos da obra de Kafka, peço ao leitor que tenteassumir essa atitude de simpatia, que tente transformar oseu intelecto em cordas que vibrem em simpatia com aque­las tocas por Kafka. É um esforço difícil. A obra de Kafkanão é "simpáticà' no uso corrente da palavra. Entretanto,ela parece pedir a nossa simpatia num sentido que não éexclusivamente musical. Não é acaso que o instrumentoque dei como exemplo se chama viola d'amore.

Duas são as dificuldades que nos confrontam ao ten­tarmos abrir as nossas mentes à mensagem da obra deKafka. A primeira diz respeito à forma que essa mensagemtomou, isto é, à linguagem. A segunda diz respeito à exces­siva proximidade da obra kafkiana no tempo, proximidadeessa que nos impossibilita uma tomada de posição, à distân­cia. Torna-se necessária a consideração dessas duas dificul­dades antes da contemplação da mensagem propriamentefalando. Isto porque as dificuldades caracterizam a própriamensagem.

A obra de Kafka está escrita em alemão. Isto não é umacircunstância fortuita, mas é um dado fundamental da sua

mensagem. Os pensamentos que perfazem a obra de Kafkasão frases da língua alemã. Como tais, são esses pensamen­tos regidos pela estrutura da gramática alemã. Kafka tinhapensamentos alemães e tudo que pensava estava, a priori,

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informado pela gramática dessa língua. Nas traduções emoutras línguas estes seus pensamentos sofrem uma distorçãoestrutural, a qual faz com que a simpatia que porventuraesses pensamentos traduzidos provocam seja baseada emequívocos. Esta dificuldade inerente à tradução é geral, masno caso da obra de Kafl(a reveste-se de uma importânciadescomum. O alemão literário, o "alto" alemão, é uma lín­gua menos homogênea que a maioria das outras línguascivilizadas. Com efeito, é uma espécie de "língua franca"entre os dialetos e reflete o dialeto da região do autor,embora de maneira atenuada.

Kafka escreve a língua de Praga, a qual representa um"alto" alemão sui generis. É uma língua literária à qual nãocorresponde nenhum dialeto autêntico, já que o grupo quedela faz uso é formado por intelectuais ou pseudo-intelec­tuais isolados em um meio eslavo. Na Praga das chancela­rias do Imperador Carlos IV surgiu aquela língua oficial eartificial que deu origem ao "alto" alemão moderno. Nestesentido é o alemão de Praga o mais "puro", isto é, o maisestéril e seco. Em compensação, sofre essa língua o impactocontínuo do tcheco, com sua estrutura inteiramente estra­nha ao alemão. A língua alemã de Praga absorve essa estru­tura parcialmente, sem jamais poder assimilá-Ia. O resulta­do é que essa língua alia, de maneira grotesca, esterilidadeoficial com barbarismos bizarros. Dou dois exemplos, umpara ilustrar a artificialidade e outro para ilustrar o barbaris­mo dessa língua, muito embora esses exemplos percam, natradução para o português, parte de sua ridicularidade: Ein­rueckend gemacht (alistando-se = chamado às armas) e Wás

ist dir in das hinein? (que é para ti nisto para dentro? = nãote intrometas). Formas como estas abundam na obra deKafka.

Graças a esta linguagem adquire a mensagem de Kafkaaquela atmosfera de pedantismo ridiculamente absurdo quelhe é tão característica. A língua de Praga oscila entre o pólo

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do artificialismo pedante (representado, historicamente,pela administração austro-húngara) e o pólo do barbarismoridículo (representado, historicamente, pelo oficial subal­terno tcheco semigermanizado, por exemplo, Svejk). Estan­do os pensamentos de Kafka informados, a priori, por essalíngua, oscilam, automaticamente, nessa mesma tensão dia­lética. Da superação dessa tensão resulta aquela ironia sar­dônica que chamamos, via de regra, de kafbana.

Embora essa ironia seja típica do pensamento alemãopraguense, ela é levada a uma potência nunca dantes alcan­çada dentro da obra de Kafka. Com uma lucidez quasemórbida Kafka penetra o núcleo do seu próprio pensamen­to, núcleo que lhe é imposto pelo caráter da sua língua, eutiliza conscientemente a ironia fundamental e antes

inconsciente, para formular a sua mensagem. Utiliza auten­ticamente o clima de inautenticidade que lhe é impostopela língua inautêntica na qual pensa, com a finalidade dedestruir essa inautenticidade, destruindo-se a si mesmonesse processo. Trata-se, portanto, de uma situação irônicaao extremo. A inautenticidade fundamental do pensamentohfkiano é a fonte de sua suprema autenticidade, a qual é,por isso mesmo, auto destruidora.

O método empregado por Kafka para alcançar estasalturas da ironia é o da transposição da sua língua paracamadas de significado, nas quais a sua inautenticidade setorna berrante. A língua tem muitas camadas de significa­do, e a cada uma corresponde um clima apropriado. Dou,como exemplos, as camadas da linguagem conversacional,científica, e poética. Em cada uma dessas camadas a línguasignifica uma "realidade" diferente. A camada que Kafkaescolheu para dentro dela formular a sua mensagem é umaque normalmente chamaríamos de "teológica". Isto é: assuas frases significam uma "realidade" da qual nos falam asreligiões. Entretanto, em Kafka o clima da linguagem estátotalmente inapropriado à sua camada de significado. É o

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clima árido e estéril da língua burocrática no Castelo e noProcesso, ou o clima da conversa familiar e burguesa naMetamorfose, para dar dois exemplos. Desta maneira abreKafka um abismo esteticamente intransponível entre aforma e o significado das suas frases. Automaticamente asua mensagem assume o caráter de um código, ela é cifrada.Enquanto que a mensagem é de uma trágica quase insupor­tável, como veremos mais adiante, o código é ridículo egrotesco. Da incongruência entre código e mensagem surgea vivência do absurdo que Kafka nos proporciona.

O código empregado por Kafka serve para mascarar acamada de significado de sua mensagem. Embora não sejamuito difícil decifrar esse código, a sua absurda incon­gruência com a mensagem faz com que persista uma certadúvida quanto à validade da mensagem decifrada. Kafkacertamente pretendia provocar essa dúvida na mente dosseus leitores, e, muito provavelmente, nutria, ele próprio, amesma dúvida. Creio que temos aqui um exemplo de auto­ironia raras vezes repetido na história do pensamentohumano. Um projeta (porque Kafka é um profeta, emboraheterodoxo, da tradição judaica) que confessa sub-repticia­mente a inautenticidade de sua mensagem cifrada, tornan­do-a, por isso mesmo, duplamente autêntica. Para recorrer­mos a uma imagem, diria que Kafka não se esforça poresconder a chave do seu código, mas confessa, sub-repticia­mente, que se trata, possivelmente, de uma chave falsa.

Resumindo a primeira dificuldade, a dificuldade lin­güística, do acesso à mensagem da obra de Kafka: a men­sagem está vazada num alemão de Praga burocrático efamiliar, totalmente inapropriado ao significado. Entre­tanto, ironicamente, é essa língua inapropriada a própriafonte dessa mensagem, já que informou a priori todos ospensamentos de Kafka. Com essa afirmação absurda, tãotípica do mundo de Kafka, passo a considerar a segundadificuldade.

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Quando um intelecto lança uma mensagem em dire­ção da conversação geral, essa mensagem é submetida a umprocesso de desgaste pelos intelectos que participam daconversação, que conversam a mensagem. Trata-se de umprocesso complicado e de análise difícil. Estamos tentados,de um lado, a encará-l o como um processo de purificação,de modo que a mensagem se torna sempre mais clara. Porexemplo: um judeu ortodoxo afirmaria talvez que a mensa­gem da Bíblia se torna mais clara à medida que progridemos comentários em torno dela. De outro lado estamos ten­

tados a encarar esse processo como uma deturpação damensagem. Por exemplo: os protestantes da Reforma pro­curavam a mensagem pura da Bíblia, tentando libertá-Iadas impurezas dos comentários subseqüentes. Podemos,ainda, encarar esse processo como uma modificação cons­tante da mensagem, que passa a ser considerada coisa viva,no sentido que os antigos tinham em mente ao dizer habent

jàta libelli. Por exemplo: a mensagem de Aristóteles signifi­cava uma coisa na Antigüidade, outra na Idade Média,outra no Humanismo, e outra no Romantismo. Qualquerque seja a nossa opinião quanto ao processo ao qual umamensagem é submetida no curso da conversação, uma coisaé certa: a mensagem tem, por sua própria natureza, um des­tinatário, um destino, e não está completa, não se realizou,antes de ter alcançado o destinatário, antes de ter sofrido oseu destino. O que pretendo dizer com estas consideraçõesé que a mensagem que Kafka lançou em nossa direçãoainda não nos alcançou em cheio. Considerada do nossoponto de vista, do ponto de vista dos interlocutores deKafka, a sua mensagem é prematura. As razões dessa afir­mativa são as seguintes:

Kafka vive num mundo cuja problemática pouco ounada tem a ver com a problemática dos seus contemporâ­neos, razão por que não foi "compreendido" em seutempo.

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Os problemas que o perseguiam e torturavam care­ciam de significado para os que com ele vivam. Alguns des­ses problemas começam a adquirir hoje um significado.

Por exemplo: a situação de pais que fogem à persegui­ção impessoal de funcionários insignificantes, procurando amorte certa, e abandonando os filhos aos perseguidores.Outro exemplo: a situação do homem que perdeu a suaindividualidade e tornou-se parafuso dentro de um apare­lho. Há, entretanto, uma série de situações dentro da obrade Kafka para as quais não temos vivência e as quais, embo­ra as possamos compreender intelectualmente, não pode­mos sentir autenticamente. Essas situações agrupam-se,todas elas, em redor de uma situação mestra: a do homemesquecido pelo aparelho administrativo onipotente, masrelaxado e incompetente, homem que se esforça inutilmen­te e sem o mínimo sentido de revolta por fazer-se lembrado.Não é preciso, hoje em dia, de muita fantasia para imagi­narmos essa situação como uma das problemáticas centraisdo futuro imediato. Entretanto, uma coisa é imaginar, eoutra é viver uma situação. Kafka não é um escritor utópi­co, ele não escreve science jiction. Ele vive e sofre autentica­mente as situações que articula, e estas são, portanto, con­temporâneas com ele. Não o são, entretanto, conosco.Também neste sentido Kafka é profeta. É por esta razão quea mensagem de Kafka é prematura, como o era a mensagemde Jeremias para os habitantes da Jerusalém ainda não des­truída, embora ameaçada de destruição.

Entretanto, devo me apressar em acrescentar a estasconsiderações a seguinte:

As situações proféticas que encontramos na obra deKafka fazem parte do código kafkiano, são portanto másca­ras do significado real da mensagem. Embora tenham a suavalidade mesmo tomadas ao pé da letra (e nisto reside maisum aspecto da sua ironia), adquirem o seu verdadeiroimpacto quando decifradas. Talvez seja possível para nós a

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vivência da mensagem decifrada, sem que possamos viver amensagem em código. Com esta pergunta, que devo deixarem aberto, aventuro-me a uma aproximação da mensagempropriamente dita da obra de Kafka.

Essa mensagem, tal qual aparece pelo prisma das duasdificuldades mencionadas. Destorcida e duvidosa portanto,diz respeito à situação do homem em face das forças que ogovernam, à situação dessas forças em face do homem, e dizrespeito ainda a essas forças em si. Se tentarmos reduzir essamensagem a umas poucas frases, coisa com a qual Kafkaevidentemente nunca concordaria, chegaríamos aproxima­damente ao resultado seguinte: o homem vive em estado deculpa permanente em face das forças superiores. Sabe dasua culpa e da justiça de qualquer castigo que essas forçasporventura lhe imporão, mas não sabe da natureza dessaculpa. Procura o contato com essas forças, não para pedirperdão, mas para esclarecer a sua culpa, para "saber". Essaprocura tem excelentes possibilidades de êxito, já que asforças superiores são, aparentemente, muito próximas.

Entretanto, por motivos fúteis e absurdos, o êxito daprocura é frustrado continuamente. Intimamente ohomem sabe sempre da futilidade dos seus esforços paraencontrar as forças superiores, e o sabe a despeito de todaevidência em contrário. Persiste, entretanto, na procura,porque prefere dar ouvidos à evidência, e não à sua convic­ção íntima. As forças, tão próximas e tão inalcançáveis,mantêm em face do homem uma atitude de indiferença edesprezo. Consideram o homem culpado (nisto estão deacordo com ele), mas não lhes vale a pena castigá-Ia.

Ele próprio provoca o castigo com sua insistência deconhecer a sua culpa. A suspensão provisória do castigodivino (e por que não usar essa palavra?) não é conseqüên­cia da Sua misericórdia, mas de Sua superorganização. Aforça divina funciona devagar e mal, porque é complicadademais e administrada numa rotina que lhe é totalmente

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inapropriada. Dada a completa indiferença da força divinaem face do homem, este mau funcionamento não tem amínima importância. Entretanto, neste mau funcionamen­to reside a única esperança do homem para escapar ao cas­tigo justo que o espera. Sabendo, muito embora, disto, ohomem, absurdamente, se esforça em apressar o funciona­mento do aparelho divino. Nesse esforço frustrado reside afinalidade da vida humana. Assim devemos compreender oensinamento mestre de Kafka: "Passei a minha vida a com­

bater o desejo de acabar com elà'.A teologia que esta mensagem descortina diante da

nossa visão estarrecida tem vários pontos de contato com asteologias das nossas religiões tradicionais, mas se distinguedelas quanto ao seu clima. O clima da vida humana é o daangústia não mitigada por qualquer esperança, e o climadas hostes divinas é o nojo. A angústia humana não é, pro­priamente, um conceito novo, embora raras vezes tenhasido tão veementemente pregada como em Kafka. O queme parece ser revolucionário e epocal (no sentido exatodessa palavra) é o conceito do nojo divino. Em face do nojodivino a nossa angústia assume, realmente, proporçõesgigantescas, incomparavelmente maiores do que as daangústia em face da ira ou do ciúme divino. É preciso sor­ver esse nojo até o fundo, se quisermos compenetrar-nos dateologia de Kafka.

Não é o nojo que Deus sente da sua criação, este já eraconhecido dos antigos profetas ("somos vermes diante deTi"). É o nojo que Deus sente por Si mesmo. A tal pontoparece ser blasfêmia essa teologia, que começamos a com­preender e simpatizar com os esforços de Kafka de mascará­Ia em códigos.

Os pontos de contato com as teologias tradicionaissão muitos e evidentes. É por esta razão que podemos con­siderar Kafka um profeta judeu, embora heterodoxo.Temos aqui, para citar somente um exemplo, o conceito

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do pecado original. Todos são culpados. Entretanto (e istoé característico), o pecado original é o estado primitivo,"natural" do homem, não é conseqüência de qualquer atohumano. Com efeito, ainda não comemos do fruto da

árvore da sabedoria, e são justamente os nossos esforços decometer esse crime que são continuamente e absurdamen­te frustrados.

A bem dizer (e nisto reside, creio, a suprema ironia),vivemos ainda no Paraíso, num Paraíso kafkiano, bementendido. Numa teologia assim não há, evidentemente,lugar para a salvação e o Salvador, já que a queda ainda nãoaconteceu. O próprio conceito "salvação" carece de signifi­cado dentro do contexto da obra de Kafka.

Uma enumeração dos pontos de contato entre a men­sagem da obra de Kafka e a teologia tradicional, por fasci­nante que possa ser, seria, no entanto, um exercício fútil. Aforça de convicção que essa mensagem carrega consigonada tem a ver com exercícios deste tipo. Kafka nos con­vence (com todas as reservas que continuamos nutrindo, eque ele próprio, certamente, continuava nutrindo) porquea visão que ele descortina concorda com a nossa vivênciamais íntima. Trata-se de uma vivência tão penosa que arelegamos ao esquecimento, mas ela continua dormente emnosso espírito. Kafka veio para despertá-Ia. Consideremos oseu impacto:

Kafka ensina que a vida humana é uma procura frustra­da do saber. Mas não se trata de uma procura orgulhosa, oude um saber que proporcione poder. Nada tem a ver com aHybris dos gregos. A vida humana nada tem de heróica. Ohomem não é rebelde. A procura à qual se dedica é umtatear dócil e humilde, e o saber que procura é o da sua pró­pria perdição e futilidade. Esta ordem de idéias não concor­da com a imagem do homem que geralmente estamos acos­tumados a projetar, mas concorda com a vivência íntimaque temos de nós mesmos nos momentos de recolhimento.

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Kafka ensina que as forças que nos governam são indiferen­tes e desinteressadas na nossa sorte. Mas não se trata da indi­

ferença e do desinteresse das forças cegas da natureza, asquais substituem a divindade na mente dos ateus ingênuosdo século passado. Trata-se de uma indiferença cheia de des­prezo, e as forças que a nutrem para conosco a demonstrambrincando conosco absurdamente e sem regra, para nãodizer idioticamente. Esta ordem de idéias não concorda nem

com o conceito teológico tradicional da providência divina,nem com o conceito cientista das leis da natureza, mas con­corda com a nossa vivência íntima da estupidez e absurdida­de das nossas desgraças. Kafka ensina que a forças superioressão uma máquina pedante, corrupta, mal conservada enojenta. Esta idéia da Divindade é igualmente repulsiva egrotesca aos olhos de um crente como aos olhos de um ateu.Concorda, entretanto, com a vivência íntima que temos dasforças que nos regem.

Senão, por que rezamos, a não ser para corromper umain,stância inferior da hierarquia Divina? Por que fazemospromessas a nós mesmos, senão para enganar um suboficialceleste, encarregado vagamente do nosso caso, mas que oacha aborrecido e tedioso demais para interessar-se real­mente? Por que praticamos boas obras, senão para queobtenhamos um lançamento a crédito na nossa conta-cor­rente celeste, temendo, ao mesmo tempo, que algum conta­dor incompetente faça um lançamento errado? Não ésomente a nossa mente individual que opera intimamentecom o conceito kafkiano da Divindade, mas as própriasreligiões tradicionais o nutrem. Que outro significadopodem ter, por exemplo, rezas do tipo "Ora pro nobis", anão ser "Não te esqueças de rezar por nós, já que és perfei­tamente capaz de esquecer"?

Enfim, a força da convicção que a mensagem de Kafkatem, não provém nem da razão, nem da fé, mas da vivênciaimediata.

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Se a mensagem de Kafka se resumisse em pensamentosdo tipo acima considerado, poderíamos fugir à sua análiseimpiedosamente autêntica da existência humana, refugian­do-nos na fé religiosa. Mas a mensagem não se resume nes­ses pensamentos. Ela tem, pelo contrário, uma dimensãoinarticulada e inarticulável, a qual não permite essa fuga nafé religiosa no sentido tradicional, porque engloba e superaessa fé. A mensagem de Kafka não é anti-religiosa, maspassa pela religião e a ultrapassa sem abandoná-Ia. Tentan­do articular essa região na qual a língua deixa de funcionar,terei que recorrer a aproximações. Essa dimensão da mensa­gem de Kafka não pode ser autenticamente pensada, mastão somente intuída:

A mensagem de Kaflzatransporta o nosso pensamentopara aquela camada rarefeita que é chamada pelos místicosde unia mystica. É a camada dentro da qual, de acordo como testemunho dos místicos, pensamento e pensado, "alma"e "Deus", se fundem.

Kafka, pelo contrário, testemunha a inautenticidade ea absurdidade desse fundir-se. A vivência kafkiana concor­

da com os místicos quanto ao sentido da vida: é a procurade Deus. Diverge, entretanto, quanto à situação final dessaprocura: Deus, quando encontrado, revela-se como sendonada. No lugar no qual a fé postula Deus, a vivência kafkia­na descobre o abismo do nada. O pensamento, no seuavanço rumo a Deus, chega a um ponto no qual é tomadode uma vertigem, porque percebe, repentinamente, queDeus não passa de uma reflexão desse próprio pensamentona superfície calma e abissal do nada, à beira do qual o pen­samento agora se encontra.

Agora, nesta vertigem, estando vis-à-vis du rien o inte­lecto tem a vivência destruidora da futilidade total do sentido

da vida, e da futilidade total de "Deus", desse seu espelho.Esta é a vivência autêntica da unia mystica de acordo comKafka. E o intelecto, tendo vivido essa vivência, recomeça,

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absurdamente, a mesma caminhada, toma, novamente, a suaprópria reflexão por Deus (a despeito de sua convicção emcontrário), recomeça a sua obra sisífica. Com a diferença quetoma, agora, esse "novo" Deus por uma instância hierarqui­camente superior à primeira. O progresso do pensamento é,portanto, o caminho para dentro da hierarquia do nada.

Esta me parece ser, in nuce, a mensagem de Kafl{a: oDeus pedante, superorganizado, ridiculamente falível, eque tem nojo e tédio de si mesmo, não passa de uma sérieprogressiva de reflexões do pensamento humano sobre onada. O progresso do pensamento, e o progresso da vidahumana, é um progresso rumo ao nada, e passa por umaescala hierarquicamente organizada de vivências do nada.O nojo e o tédio são o lado avesso da angústia, como Deusé o lado avesso do pensamento. Unia mystica é o encontroentre nojo e angústia. Esse encontro é a vivência autênticado pensamento simultâneo dos dois princípios nietzschia­nos: "Tudo é vontade do poder" e "o eterno retorno dosempre idêntico".

Kafl{aé a existencialização de Nietzsche.Compreendemos, agora, a razão profunda do código

cifrado, no qual a mensagem de Kafka é vazada. Kafka seesforça por articular o inarticulável, por pensar o impensá­vel. Trata-se, portanto, de um esforço evidentementeabsurdo. O código, com sua ridícula incongruência com amensagem, com sua absurda incompatibilidade com atarefa que lhe foi confiada, torna, ironicamente, viável oesforço. O inarticulável não está sendo articulado, oimpensável não está sendo pensado, mas algo totalmente eridiculamente diferente está sendo articulado e pensadoque faz viver no leitor o impensável e inarticulável, porassim dizer por contraste. A mensagem de Kafl{a é umaparábola, como o foram as mensagens dos profetas deIsrael, e neste sentido Kafka é um elo da cadeia da tradiçãojudaica. Mas é uma parábola absurda, e por isso mesmo

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consegue provocar no leitor "simpático" a vibração, avivência do absurdo.

Embora se trate de um autor recente e que poderiaainda estar vivo, a sua mensagem não nos chega diretamen­te, mas por intermédio de um discípulo e possivelmenteexegeta, por intermédio de Brod. Também esta circunstân­cia, aparentemente casual, é absurda. Ela aumenta a nossadúvida quanto à autenticidade da mensagem.

Assim, duvidosa, irônica e absurda, a mensagem foilançada em nossa direção, para que a ela respondamoscomo melhor pudermos. O desafio foi lançado. Não sepode dizer que nos tenhamos saído com muito brilho emnossas tentativas de resposta, até agora. Essas tentativascobrem uma gama de saídas de fuga, gama essa que estamosacostumados a chamar de "existencialismo". Incluem res­postas tão diversas como a de um Sartre e a de um Buber.Em grande parte não são respostas conscientes a Kafk,:a.Mas o clima no qual se desenvolvem é o clima kafkiano, eas categorias de pensamento são categorias kafkianas.Entretanto, quer-me parecer que todas as respostas atéagora oferecidas são tentativas de uma volta à religiosidadetradicional ou ao ateísmo, voltas portanto impossíveis paraquem realmente assimilou a mensagem kafkiana. São fun­damentalmente inautênticas, são fugas. Mas o desafio kaf­kiano precisa ser aceito autenticamente, sob a pena de seperder a grande conversação que é a civilização, na comple­ta futilidade. Esperando por uma resposta autêntica aKafka, estamos, portanto, ainda esperando pela realizaçãocompleta de sua mensagem. Estamos esperando por Kafka.

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1

Do funcionário

É lugar-comum que a mente humana não consegueacompanhar o progresso. Os exemplos dessa afirmativaabundam. Os engenhos nucleares transferiram as guerrasdo campo da política internacional para o campo do Apo­calipse, e a política internacional é incapaz de assimilar essefato. O desenvolvimento da capacidade produtiva daindústria e da agricultura é tal que um único país (porexemplo os Estados Unidos) poderia suprir em futuro pró­ximo toda a humanidade, e os economistas estão presos àmentalidade de carência de produtos. Os meios de comuni­cação estão eliminando distâncias, e todo um continente (aÁfrica) está sendo fragmentado anacrônicamente em esta­dos "soberanos". Já existem métodos mecânicos e químicosque podem provocar qualquer estado psíquico, inclusive a"felicidade" (por exemplo a propaganda subliminar e a mes­calina), e quase ninguém está se dando conta desse fato ter­rível. A física nuclear abriu fontes inesgotáveis de energia, etransformou o trabalho físico em comodidade tão barata

quanto o é o ar, e a sociologia ainda não vislumbrou o fimdo homo jàber. A cibernética e a eletrônica estão produzin­do computadores que dispõem de uma memória e de umacapacidade de planejamento infinitamente superior àhumana, e a pedagogia ignora este fato. A auto mação subs­titui a automatização e elimina o fator humano tanto do

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setor produtivo quanto do administrativo, e as virtudes"laboriosas" humanas, como "aplicação" e "iniciativa" con­tinuam valorizadas positivamente. Em síntese: a mentehumana é incapaz de compreender (e muito menos deaproveitar) o progresso que ela própria desencadeou tãolevianamente.

O que falta, com efeito, é uma visão abarcadora dacena da atualidade, a partir da qual uma análise mais minu­ciosa da nossa situação possa ser feita. O que falta é umadistância irônica que eleve a mente contempladora porcima do turbilhão dos acontecimentos. É uma filosofia quefalta. Pode objetar-se que o existencialismo é uma filosofianeste sentido, já que procura analisar diversos aspectos dasituação na qual nos encontramos. O presente artigo daráum exemplo, a meu ver fundamental, da insuficiência dasanálises até agora ensaiadas. Para o existencialismo tem a

situação humana a forma seguinte: o homem está lançadoem meio de circunstância; essa circunstância forma o seuhorizonte e consiste de objetos e de outros homens. Defen­

derei a tese de que essa forma de situação não se aplica a umnovo tipo de situação que se está tornando sempre mais fre­qüente. Nesse novo tipo o centro é ocupado pelo aparelho,e o horizonte é constituído de funcionários que funcionamem função do aparelho. Reluto com designar o funcionáriopelo termo "homem", já que se trata de um novo tipo de serque está surgindo.

Descreverei a situação, para depois procurar interpretá­la. No centro está um aparelho, por exemplo um computa­dor, ou uma máquina automática de tipo material (tôrno),ou ideal (repartição de um aparelho administrativo). O apa­relho funciona. Não pretendo aprofundar-me no conceito

da função, já que isto significaria um desvio talvez poucoagradável pelo terreno da matemática. Direi apenas que fun­cionar é um processo no qual variam os valores das entida­des empenhadas no funcionamento. Procurarei elucidar o

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significado dessa frase um pouco difícil mais adiante. O fun­cionamento do aparelho é um movimento das partes doaparelho. No caso do computador, por exemplo, é o movi­mento de partículas elétricas, de fitas magnéticas, de cartõesperfurados e de entidades que chamei de "funcionários" notítulo deste artigo. No caso do torno são as engrenagens, asalavancas e os funcionários que se movimentam. No apare­lho administrativo movimentam-se papéis, equipamentos efuncionários no processo do funcionamento. Esse movi­mento do aparelho é circular, se visto de dentro, e linear, sevisto de fora. Visto pelo cartão perfurado, ou pela roda deengrenagem, ou pelo papel de ofício, ou pelo funcionário, éo aparelho um sistema fechado que gira sobre si mesmo.Visto de fora o aparelho se apresenta como um vórtice den­tro do qual se precipitam estatísticas, ou barras de ferro, oudinheiro, e do qual jorram informações, ou parafusos, ouprojetos para estradas de rodagem. Visto de fora o aparelhonão passa portanto de uma função de um super-aparelho.

Mas é justamente essa visão de fora que o funcionárionunca poderá alcançar, isto é, se for funcionário perfeito. Estáinteiramente englobado pela situação, e não pode superá-Ia.Movimenta-se e age em função do aparelho. Superar umasituação é uma característica do homem. É neste sentido quedizemos que o homem "existe", isto é, "ek-siste" (supera). Ofuncionário não "existe" neste sentido do termo. É por istoque relutei em chamá-Ia de "homem". Para o funcionário per­feito o aparelho tem plena autonomia. É um sistema fechadosobre si mesmo. Não se pode falar em "finalidade do apare­lho" do ponto de vista do funcionário, porque a finalidade doaparelho está no além da situação, portanto no transcendente.Para o funcionário a pergunta pela finalidade do aparelho emfunção do qual ele funciona é uma pergunta metafísica nosentido pejorativo do termo. Carece de significado.

Em conseqüência são os movimentos do funcionário(aquilo que podemos chamar de "vida do funcionário")

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caracterizados pela circularidade. A vida do funcionáriogira em círculos em redor do aparelho. É o eterno retorno

do sempre idêntico, mas que não é totalmente eterno, por­que o funcionário denotará, após alguns milhares de ciclos,falhas no seu funcionamento. É o cansaço do material quefaz com que o funcionário seja "aposentado", isto é, relega­do para uma situação sem centro. Nessa situação, o funcio­nário, dá ainda algumas voltas "em ponto morto", paradepois deixar de funcionar em definitivo.

Os círculos que o funcionário descreve em redor do

aparelho variam quanto à freqüência da rotação e quantoao raio que os separa do centro. Um funcionário bem inte­

grado no aparelho gira com crescentes freqüências e proxi­midades do aparelho. O funcionário "avança" e "progride".Esse seu progresso varia em função do aparelho, e, namedida que avança, aumenta o seu valor no conjunto dofuncionamento. Este é o significado da frase um poucodifícil que prometi elucidar quando falei da função comoconceito. A freqüência e o diâmetro dos círculos em redordo aparelho são a medida de valores do funcionário: sãosua norma. Valores que não se adaptam a essa norma nãoserão admitidos, sem percebidos. A meta do movimentodo funcionário (que chamei um tanto eufemisticamente

de "vida") é o círculo mais estreito. Funcionários quegiram em círculos estreitos e em freqüências altas, isto é,funcionários que freqüentam círculos na proximidadeimediata do aparelho, são funcionários plenamente realiza­dos. Se o aparelho for muito grande, e o número de fun­cionários muito elevado, poucos funcionários estarão tãobem adaptados a ponto de poderem realizar-se inteiramen­

te. Esses poucos (por exemplo, presidentes de aparelhosadministrativos comerciais ou políticos) serão confundidospelos muitos com o aparelho mesmo. Mas trata-se de umailusão de ótica criada pela distância, já que o funcionáriojamais se confunde com o aparelho. Por sua definição86

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ontológica mesma o funcionário exerce função, isto é: ofuncionário é uma propriedade, um atributo do aparelho.O funcionário não tem propriedade, ele é propriedade.Como a propriedade nunca se confunde com a substância,o funcionário não se confunde com o aparelho. O progres­so do funcionário reside justamente nisto: tornar-se pro­gressivamente propriedade mais valorosa.

O método do progresso do funcionário é sua adapta­ção ao aparelho. Há várias formas de adaptação, mas men­cionarei apenas uma: a da especialização progressiva. Nela ofuncionário se adapta a uma parte específica do aparelho.Com essa adaptação o funcionário adquire um papel espe­cífico no conjunto do processo do funcionamento, isto é,algo que se parece, de longe, com a "pessoa". O especialistaé um funcionário valioso, porque se assemelha a uma pes­soa, e se destaca assim do anonimato.

Surge, na situação que descrevi, o problema da liberda­de, isto é, o problema da escolha entre alternativas. É óbvioque o funcionário não pode escolher, já que é propriedadedo aparelho. Mas está em atividade, "funciona", e dá por­tanto a impressão e a ilusão de tomar decisões, especial­mente porque ainda estamos atrasados e confundimos fun­cionário com homem. E os "altos" funcionários, emespecial, criam em nós a ilusão de se movimentarem comliberdade. Mas os seus movimentos exprimem apenas a"vontade" do aparelho. Essa "vontade" do aparelho é a rea­lização automática do projeto, de acordo com o qual osaparelhos foram projetados. Não é "vontade" no sentidohumano do termo. É por isto que as decisões dos funcioná­rios são, necessariamente, inumanas. O aparelho e sua pro­priedade, o funcionário, não podem ser julgados com nor­mas humanas, já que se trata de um novo tipo de ser ematividade.

A situação que procurei esboçar é idealizada. Ainda nãoforam realizados aparelhos autônomos nem funcionários

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perfeitos. Os aparelhos mais autônomos da atualidade ainda

exigem um fator humano para dar-Ihes impulso e para pro­gramá-Ios. E os funcionários mais perfeitos da atualidade

ainda conservam vestígios do humano. Mas é óbvio queaparelhos autônomos são perfeitamente realizáveis e queserão realizados pela própria força do progresso, o qual é emúltima análise, um aparelho em busca automática de auto­

nomia. E é igualmente óbvio que funcionários perfeitosserão realizados, já que os vestígios do humano que aindaconservam entravam o seu funcionamento. A situação quedescrevi é idealizada, mas será realizada em breve. A trans­formação total daquilo que ainda é natureza e sociedade emaparelho, e a transformação total daquilo que ainda é huma­nidade em funcionalismo, é uma questão de tempo. Aliada aoutros fatores, alguns dos quais mencionei no primeiroparágrafo do presente artigo, modificará essa transformaçãointeiramente a cena do mundo. Creio que é preciso encararesse fato.

O Processo, de Kafka, descreve um estágio um poucomais adiantado do processo de transformação que tenhoem mente. Nesse estágio o aparelho já é onipresente, masseu funcionamento ainda é falho. E a humanidade já setransformou em funcionalismo, mas K. ainda conserva ves­tígios do humano. Será portanto triturado, automática e

inumanamente, pela engrenagem do aparelho. E acha justoque assim seja, porque já não consegue transcender o apare­lho. Mas a sensação que nos invade ao contemplarmos oaparelho em seu funcionamento é a sensação do absurdo.

Ainda nos rebelamos (e não nos rendemos como K.) por­que ainda somos parcialmente humanos, e ainda temos

parcialmente personalidade. Com essas propriedades queainda temos, ainda conseguimos precariamente transcender

a situação na qual fomos lançados. Ainda "existimos" parciale precariamente. Dada essa forma de ser que ainda temos,podemos ainda fazer filosofia. E há uma esperança nessa88

nossa capacidade. Podemos, pela filosofia, superar a auto­nomia e a automaticidade do progresso e, de fora, talvezinfluir no seu rumo. Não sei se podemos ainda fazê-Io, maspodemos pelo menos tentá-Io.

Para que essa nossa tentativa tenha sentido, é necessá­rio que saibamos, pelo menos aproximadamente, querumo queremos que o progresso tome. É necessário quetenhamos valores. O existencialismo falhou, a meu ver,

duplamente. Não conseguiu transcender a situação, e nãoconseguiu formular valores. Nós, no Brasil, estamos, nessesentido, em situação privilegiada. Somos "subdesenvolvi­dos". O progresso, cujos aspectos apontando o aparelho eo funcionário procurei esboçar, está aqui atrasado. Esta­mos em situação transcendente pela mera posição geográ­fica que ocupamos. Não é uma transcendência das maiselegantes, mas serve como ponto de partida. Podemos por­tanto contribuir, talvez significativamente, para elaboraçãode uma filosofia que formule valores e aponte rumos aoprogresso.

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Em louvor do espanto

Camus ensina, no Mito de Sísifo, que há somente umúnico problema fundamental: Por que não me mato? Aprópria formulação dessa pergunta caracteriza, a meu ver,uma situação existencial que proponho seja chamada e defi­nida como "situação atual", tanto em seus aspectos indivi­duais como coletivos. Pressupõe essa formulação uma desi­lusão total com todos os valores e uma indolência vital e

intelectual que transforma o suicídio em única obra quepossivelmente valha a pena. Este me parece ser o clima dapergunta: nada vale a pena, salvo, talvez, suicidar-se. É oclima do tédio absoluto, e o hálito que o inspira é o bocejo.Com efeito, a própria pergunta "por que não me mato?" épronunciada com um bocejo. O propósito do presente arti­go é articular esse clima, com a esperança de destruí-lo, nãonegando-o, mas tentando superá-lo.

Podemos imaginar a situação do homem primordial(esse ser mítico) como situação espantosa. Está ele jogadono meio de coisas que sobre ele se precipitam para esmagá­10. Surgem as coisas, uma após outra ou em grupos, dapenumbra que forma o horizonte da situação, e invadem,ameaçadoras, a clareira a qual o homem primordial habita.As coisas advêm das sombras e cada uma é uma aventura

assombrosa, seja ela uma fera ou um trovão, uma árvore ououtro homem. Diante de toda coisa que advém o homem

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primordial treme, espantado, porque toda coisa é nova.Sendo nova, toda coisa é milagrosa. O tremor do homem

face à coisa é portanto um misto de temor e admiração, éum tremor religioso (Urschauder). Essa situação espantosapodemos identificar, individualmente, com a situação dacriança recém-nascida, e, coletivamente, com a situação dahumanidade recém-expulsa do paraíso. Nela a pergunta"por que não me mato?" não pode surgir, não há clima paraela. A pergunta que impera nela é "como posso sobreviver?"e a resposta a essa pergunta é dedicado todo o esforço daexistência humana primitiva.

Essa situação pertence a um passado remoto indivi­dual e coletivo. A nossa situação como seres blasés e comogeração tardia é outra. Nada nos espanta, porque nada énovo. Não esramos jogados no meio de coisas, mas nomeio de instrumentos. Esses instrumentos são, no fundo,prolongamentos e projeções do nosso próprio eu. Asmáquinas são nossos braços prolongados, os veículos nos­

sas pernas prolongadas, e o mundo em geral é uma proje­ção do nosso eu sobre a superfície calma e abismal do

nada. As feras que ainda aparecem são cachorros projeta­dos por nós para guardar nossas casas. Os trovões queainda trovejam são movimentos do ar projetados por nóspara carregar nossos aviões em seu vôo fútil. As árvores

que ainda brotam são matéria-prima projetada por nóspara ser transformada em instrumento. E o "outro" quecompartilha conosco esse mundo instrumental é, ele pró­prio, instrumento, sendo fornecedor ou consumidor,parceiro ou concorrente. Nossa atitude diante dessemundo dos instrumentos é a atitude do déjà vu, a atitudedo "já vi tudo". Os instrumentos não nos advêm dapenumbra misteriosa, não são venturosos. Pelo contrário,estão aqui, diante da nossa mão para servir-nos. Tomadosde nojo dessa servil idade somos nós que saímos em buscadesesperada da aventura, desautenticando, por esse nosso92

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movimento deliberado, a própria essência da aventura,que é um "advir", e não um "ser buscado". Essa nossabusca inautêntica de aventura, que é no fundo uma fugado tédio, e que caracteriza tão bem a situação atual, é jáuma tentativa fracassada de responder à pergunta "porque não me mato?".

A transformação do mundo espantoso das coisas mila­grosas no mundo nojento dos instrumentos tediosos é umatransformação lenta. Levou milênios para realizar-se, eainda não está completa. Ainda restam, na situação atual,grandes províncias "subdesenvolvidas", grandes ilhas domaravilhoso a flutuar no oceano dos instrumentos. Mas,protegidos como somos pela muralha dos instrumentos,não nos ameaçam esses restos de um mundo ultrapassado.E, embora continuemos avançando contra essas regiões malexploradas com rapidez impiedosamente acelerada, não nosseduz esse avanço, já que lhe conhecemos o resultado:transformação do maravilhoso em tedioso. Neste sentido,sim, podemos dizer que o processo de transformação doespanto em tédio está completado, por assim dizer porantecipação do resultado. Ainda resta muito a fazer, mas jánão vale a pena fazê-Io. É nesse clima que Camus formula asua pergunta, e é nesse clima que grande parte da novageração vegeta.

A filosofia existencial, filha do tédio e neta do espan­to, procura descobrir, pela reflexão, a diferença ontológicaentre o mundo das coisas e o mundo dos instrumentos.

Heidegger diz que as coisas são nossa condição, e os instru­mentos nossas testemunhas. Trata-se de um pensamentoinformado pela língua alemã e dificilmente pensável emportuguês. "Coisas" em alemão são "Dinge" e "condição" é"Bedingung". "Instrumentos" em alemão são "Zeug" e"testemunhas" são "Zeugen". Embora não seja possível tra­duzir a análise heideggeriana, é possível aproveitar-se delapara pensamentos portugueses independentes. É claro que

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a qualidade de ser das coisas é diferente da qualidade de serdos instrumentos. As coisas surgem do fundo escuro donado, são coisas justamente por não serem nada. Mas onada faz com que sejam coisas as coisas, porque lhes servede pano de fundo e as faz resplandecer em seus contornos.As coisas são os meteoros do nada que se precipitam sobreo campo gravitacional da existência para realizar-se. São osmensageiros (angeloi) do nada, e, como diz Rilke, "todo

anjo é terrível". Toda coisa arrasta consigo o nada do qualadvêm, toda coisa rasga a plenitude do ser e abre uma

fenda para o nada. Toda coisa revela o nada e é por isto quetoda coisa é espantosa. O instrumento é a coisa domestica­

da. É uma coisa apreendida, compreendida e ultrapassadapelo homem, uma coisa descoisificada. O que aconteceuno processo dessa transformação é a retirada da capa donada que envolve a coisa, e a integração do instrumento naplenitude do ser é a desmistificação da coisa. O instrumen­to está integrado em nossa existência, não é misterioso. Oinstrumento está cheio de nós e "nós estamos cheios de

instrumentos". Ao invés de rasgar uma abertura para onada, como o faz a coisa, o instrumento forma uma mura­

lha contra o nada e tapa a nossa visão do nada. E é justa­mente essa plenitude do mundo instrumental, este "estar

cheio", que nos causa nojo. Realmente é difícil compreen­der por que não nos matamos nesse mundo.

Essa transformação gradativa das coisas em instrumen­tos explica a deterioração progressiva do nosso sentimentoreligioso. As coisas eram revelaçõesdo nada e, como tal, car­regadas de sacralidade. Os instrumentos obstruem a visão do

nada e são portanto o contrário do sacro, são o corriqueiro.As coisas representavam algo, eram símbolos de algo, e erapossível adorar esse algo atrás das coisas. Os instrumentos

representam, no melhor dos casos, o trabalho manipulado rda existência humana, e a única coisa que é possível adorarnos instrumentos é o trabalho humano atrás deles. A única

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religiosidade da qual somos capazes, portanto, é a auto-ado­ração, é o narcisismo. A adoração auto-erótica é nojenta. Nãodá um autêntico significado à existência humana.

Dada essa nossa situação, compreendem-se as tentativasde uma reconquista do espanto, que são, no fundo, tentativasde dar significado à existência humana pela procura delibera­da de uma segunda ingenuidade. É deste ângulo que deve­mos interpretar a fenomenologia husserliana que é um méto­do de deixar a coisa ser coisa. Pela "redução eidética", isto é,pela supressão de todos os conhecimentos a respeito da coisa,procura Husserl redescobrir a coisidade, o eidos da coisa, oespanto da coisa. E é deste ângulo que devemos interpretar osurrealismo que é uma tentativa de ver a coisa com olho novoe redescobrir o seu espanto. Mas, bem no fundo, são frustra­das todas essastentativas. A ingenuidade não é algo a ser pro­curado. Como a virgindade, não pode ser reconquistada.Face ao mar, por exemplo, não podemos reconquistar oespanto primitivo, porque não podemos suprimir, autentica­mente, os nossos conhecimentos quanto ao conteúdo salinoe iodino de sua água. Tendo sido elaboradas as tábuas dasmarés, nunca mais poderá o mar servir de berço a Afrodite, anascida da espuma. Não é por esforço deliberado que pode­remos reconquistar o espanto nem encontrar um significadoda existência humana. A transformação das coisas em instru­mentos é um processo irreversÍvele as tentativas reacionáriasde fazê-Io refluir são fadadas a malogro.

O conjunto das coisas é a natureza, e a transformaçãodas coisas em instrumentos equivale à domesticação danatureza, portanto ao seu aniquilamento. A natureza, tendodeixado de ser espantosa, deixou de ser natureza. Mas anatureza não é a única fonte do nosso espanto. É verdadeque a atenção do pensamento ocidental se tem dirigido, apartir do Renascimento, quase exclusivamente contra anatureza, e o resultado, dessa atenção é justamente o aniqui­lamento da natureza. Como herdeiros dessa atenção exclusiva

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estamos inclinados para uma identificação entre a naturezae o mundo. Tendo sido a natureza transformada de espantoem tédio, estamos inclinado a concluir que o mundo intei­ro se tornou tedioso, e sentimos existencialmente este tédio

absoluto. Mas uma consideração por exemplo da IdadeMédia nos mostra que a natureza não é idêntica ao mundo.Mostra que o nosso ambiente não consiste somente de coi­

sas a serem transformadas em instrumentos. É preciso des­viar a atenção das coisas para descobrir todo um mundoespantoso em nosso redor, um mundo pronto a precipitar­se sobre nós, desde que nós nos abramos para ele. É difícilfalar-se desse mundo, porque ainda não foi articulado. Masnossos poetas são os primeiros a mergulhar nele, e voltam,das suas expedições, com as primeiras articulações espanta­das. Tudo é novo nesses versos que os poetas trazem, e tudovibra com o espanto do nada do qual surgiu. E há um ar deaventura em redor desses versos, comparável à aventura dasviagens de descoberta do século XIV:

Creio que somos uma geração em transição, e que assis­timos ao fim de uma época e ao surgir de outra. A IdadeModerna transformou a natureza em parque industrial e tor­nou-a tediosa. Esse tédio de fin de siecle nos faz perguntar:"por que não me mato?" Mas sentimos as dores de parto deuma Idade nova. A natureza esvaziada, e os métodos de suainvestigação, como ciência e tecnologia, tornaram-se desinte­ressantes existencialmente, mas surge um fascínio novo, aindanão articulável, mas existencialmente sorvível. O perigo dessenovo fascínio reside no seu possível antiintelectualismo, e atarefa da nossa geração é intelectualizá-lo. É uma tarefa nobre,e nela reside, ao meu ver, a resposta à pergunta: "por que nãome mato?'. É uma tarefa espantosa. Aristóteles diz: Propteradmirationem enim et nunc et primo homines princípiabantphilosophari (É pelo espanto que os homens começaram a filo­sofar antigamente e hoje em dia). Enquanto esse espanto dafilosofiapersistir, não há motivo para matar-se.

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o tema exclusivo

Peço ao leitor que se prepara para ler este artigo quemedite na seguinte pergunta: Por que leio este artigo? E estarevista? E qualquer coisa escrita? E por que e para que foiescrito este artigo, e todos os artigos nesta revista, e todacoisa jamais escrita? É claro que milhares de respostas aestas perguntas estão por aí, pré-fabricadas e prontas aentrar em funcionamento, respostas ponderadas, respostasindignadas, respostas irônicas, respostas evasivas. Peçoentretanto que o leitor não recorra a elas, mas que tenteassumir uma atitude ingênua, como se esta fosse a primeiravez que as perguntas foram formuladas. Essa ingenuidade,esse espanto ante a futilidade é o clima deste artigo. Neleimpera o espanto ingênuo ante a minha contínua atividadea despeito de sua futilidade evidente. Nada adianta fazer efaço algo sempre. Não é isto espantoso? E por que faço algosempre? Porque não posso deixar de fazê-lo, a não ser quedurma ou morra. Viver é fazer algo a despeito da evidentefutilidade de tudo. Viver é portanto tentar negar a futilida­de evidente de tudo. E por que é evidente essa futilidade?Pela morte. Viver é tentar negar a morte. Viver é fazer deconta que não há morte. Mas há. Não é isto espantoso?Sugiro ao leitor que a morte é o tema exclusivo e universalda vida. É portanto um tema sussurrado. A camuflagem dotema da morte é chamada "valores". Os valores são outras

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tantas tentativas de negar a morte. O leitor lê este artigo embusca de um valor, tenta negar a morte. Estamos em con­versação, o leitor e eu, porque participamos da conspiraçãotácita do fazer de conta que não há morte. A grande conver­sação que é a civilização, com todos os seus valores e todosos seus feitos, é esta conspiração tácita, e o nosso fazer deconta que não há morte é o segredo do qual todos partici­pamos. A fita que representamos é interrompida, rarasvezes, por um leve piscar de olhos, um sorriso conspiratórioapenas esboçado, pelo qual reconhecemos uns aos outroscomo atores da mesma peça chamada "vida". É como sequiséssemos dizer, uns aos outros: "Pss, não divulgue queestamos mentindo, não estrague o faz-de-conta da vida". E,quando um dos nossos, talvez farto da mentira, trai a cons­piração e se mata, precipitamo-nos, todos, sobre a brechapor le aberta para fechá-Ia com um tecido de explicações,uma teia de mentiras. Assim, a nossa conversação é a varia­ção infinita de um único tema: - "Não há morte".

É claro que em certas fases da nossa conversação discu­timos a morte como se ela existisse. Falamos, com muitaerudição, da morte biológica, definindo-lhe os sintomas.Falamos, com muita sabedoria, da morte do corpo, contras­tando-a com a imortalidade da alma. Falamos, com muitoentusiasmo, da morte do indivíduo, contrastando-a com aimortalidade da espécie. Mas deve ser igualmente claro queessa morte que discutimos com tanta elegância não é aque­la cuja negação é o nosso tema exclusivo. Pelo contrário,essa morte que admitimos e discutimos já é a negaçãodaquela morte que negamos, e é justamente por isto que aadmitimos. A morte que negamos é indiscutível. Não podeser enquadrada no contexto biológico, ou psicológico, outeológico, ou qualquer outro contexto, já que todo contex­to é uma tentativa de negá-Ia. A morte admite somenteduas atitudes: negá-Ia e continuar representando, ou aceitá­Ia e cair no mutismo. O presente artigo é portanto mais um

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ensaio em prol da negação da morte. Entretanto, faz partedaquela série de ensaios que admitem o faz-de-conta que osfundamenta. A nossa época proporciona um clima adequa­do para o surgir desse tipo de ensaios. É o clima do tédioexistencial provocado por aquele processo chamado "pro­gresso da tecnologia". A futilidade de toda a atividade soit­disant criadora está sendo desfilada ante os nossos olhos

diariamente, em forma de aviões supersônicos, de geladei­ras super eficientes e instituições super organizadas. É difí­cil, hoje em dia, e será mais difícil amanhã, esquecer quetudo isto é fita para negar a morte. Essa demonstração diá­ria e insistente da futilidade de toda atividade é portanto,de certa forma, um convite diário e insistente para umareflexão sobre a morte.

Iniciarei essa reflexão com a consideração da absurdi­dade da morte. Tentarei não repisar os caminhos trilhadospor Heidegger, Camus ou Sartre, mas tentarei preservar aminha ingenuidade. É evidente que tudo que faço é umatentativa de negar a morte. Se me levanto da cama, se mevisto, se tomo café e se vou trabalhar, é que nego que voumorrer e faço de conta que sou eterno. Não fosse essaminha negação, ficaria na cama. Já que vou morrer, diria,tanto faz morrer hoje, ou amanhã, ou daqui a cem anos, eficaria na cama. A negação da morte dá portanto nãosomente significado à vida me geral, mas a cada vivênciaindividual, a cada ato meu. Mas a negação da morte dá essesignificado somente porque se sabe a si mesma mentirosa.Se fosse honesta essa negação, se realmente estivéssemosconvencidos de que não há morte, não levantaríamos dacama, exatamente como não levantaríamos se não tentásse­mos negá-Ia. Se realmente não há morte, se o meu futuro éilimitado, então nada tem urgência, nada precisa ser feitoagora, o que eqüivale dizer que nada precisa ser feito nunca.Podemos portanto concluir desta primeira consideraçãoque a urgência do instante (que é a própria essência da vida)

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é resultado de uma desonestidade: já que nada urge se acei­to sinceramente a morte, e já que nada urge se a nego since­ramente, finjo negá-Ia e tudo urge. Em outras palavras:urge escrever este artigo, e urge lê-lo, já que escrevê-lo e lê­10 nos torna ainda mais imortais que somos, já que podería­mos morrer antes de escrevê-lo e lê-lo.

Chamei de "desonestidade" esta atitude que dá urgên­cia e significado à vida, e realmente, formulada assim elanão é apenas desonesta, mas ainda ridiculamente inepta.Mas sabemos que essa atitude que chamei de "desonesta" seaproxima daquela que Camus chama de "honestà'. Camusdefine a honestidade (se o interpreto bem) como a atitudeque aceita a morte e continua agindo a despeito dela. À pri­meira vista há uma diferença entre a atitude camusiana eaquela que acabo de esboçar ligeiramente: ao aceitar amorte Camus parece ter aberto mão da mentira. Mas, ao -l..;

continuar agindo, não estaria ele caindo novamente na ·:1'.

mentira? Não se trata, por acaso, em Camus de uma novacamuflagem da negação da morte, embora de uma camu­flagem que finge ser aceitação da morte? Para desmascará­Ia, analisemos rapidamente a posição camusiana, uma posi­ção que me parece ser típica da nova geração, ou pelomenos de uma das tendências mais importantes dela: Acei-to a morte. Admito que vou morrer, e o admito não apenasem teoria como figura de retórica, mas compenetro-mevivencialmente desse fato, incluo a morte em cada instante.Todo meu instante passa a ser final e definitivo, passo aviver à bout de souffle. Nessa situação todos os supostosvalores da humanidade se apresentam para mim comomentirosos, e toda conversação a respeito deles como con­versa fiada grandiloqüente destinada a fazer esquecer amorte. As religiões, as artes, a ciência e a filosofia são outrastantas fugas inautênticas e pretensiosas, já que supõem que

buscam "uma vida melhor", quando, na realida~p~buscam é escapar à morte. Toda essa conversa fiia de <-rt<t R,) m

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"vida melhor" me enche de nojo, porque sei que se trata deuma mentira pomposa. Não é o caso de viver o melhor pos­sível, mas simplesmente de viver o mais possível. Face àmorte o que conta é a quantidade, e não uma suposta qua­lidade. A honestidade me força a admitir a vacuidade detoda moralidade.

Doravante simplesmente tentarei viver o mais possível,e da maneira mais variada possível. Don Juan com suasmúltiplas maneiras de amar, o conquistador com suas múl­tiplas maneiras de violência, o ator com suas múltiplasmaneiras de representar, eis exemplos de existências hones­tas. São honestas, porque não fingem que buscam valores.E são honestas porque, não buscando valores, ainda assimnão se matam mas vivem o mais possível. Aceitam a absur­didade de todo o ato e, em desafio a essa absurdidade,

atuam o mais possível. São existências dignas. Essa é, empoucas palavras, a posição camusiana.

Mas, se a esbocei fielmente, é uma posição curiosa­mente contraditória e inconsistente. Porque me parece ser,no fundo, uma posição ética e, como tal, uma busca devalores. "Honestidade", 'dignidade", o que são estes concei­tos camusianos a não ser valores? E a frase camusiana "é

preciso viver o mais, e não o melhor", não é ela um impera­tivo? A quantidade que Camus recomenda em substituiçãoà qualidade, não é ela, ela própria, uma qualidade, porassim dizer por salto qualitativo? "Viver o mais possível",não é isto uma maneira camuflada de dizer "viver o melhor

possível"? Não é portanto desonesta a "honestidade" camu­siana, não é nojenta a "dignidade" camusiana, e não seenquadra a posição camusiana entre as conversas fiadaspomposas que procuram negar a morte? Enfim, não setrata, em Camus, simplesmente de um novo ardil destinadoa "explicar" por que não me mato?

Sem dúvida, Camus participa de nossa conspiração con­traa morte, embora dando-se ares de traí-Ia. A sua posição

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não passa de um "teatro no teatro" e neste sentido, sim,Camus é autêntico, é um ator elevado à segunda potência,um ator verdadeiro. Não podemos negar nossos aplausos asua "performance" brilhante, mas descobrimos, se formosatentos, o piscar conspiratório em sua atitude. Continuamosportanto, a despeito dele, vítimas do dilema fundamental: anossa incapacidade existencial de aceitar ou negar a morte,esse nosso tema exclusivo. Note bem o leitor, trata-se de umdilema negativo. Não são duas possibilidades que ele nosabre, mas são duas impossibilidades diante das quais noscoloca. Entretanto, a própria negatividade do dilema parececonter a chave de sua solução, pelo menos "in nuce". O dile­ma, sendo negativo, parece ser um pseudodilema, e o temaexclusivo da nossa conversação portanto um pseudotema.Com efeito, como superamos o dilema vivencialmente? Fin­gindo ser ele um dilema positivo. Fazemos de conta quepodemos tentar aceitar como negar a morte e chamamos essefazer-de-conta "a nossa liberdade". Dentro dessa liberdade

fingida escolhemos ou negar a morte (o que o pensamentoexistencial chama de "inautenticiade"), ou aceitá-Ia (o que omesmo pensamento chama de "autenticidade").

Tanto a autenticidade como a inautenticidade são por­tanto fictícias, já que frutos da ficção que é a liberdade faceà morte.

Mas, dada a negatividade do dilema diante do qual amorte nos coloca, é a superação fictícia desse dilema a únicasuperação concebível. Em outras palavras: face à morte nãopodemos senão fingir, e todo esse processo chamado "vida",e seu epifenômeno chamado "pensamento", é portanto fic­tício. No entanto, com esta afirmativa estamos nos aproxi­mando, quer me parecer, da chave do dilema.

Já que nada podemos dizer a respeito da morte quenão a falsifique, talvez possamos dizer algo a respeito davida e do pensamento, daquelas ficções face à morte? Direi,neste esforço penoso de articulação, que a vida é a ficção:

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I

"não há morte", e o pensamento é a ficção: "não há vida". Otema exclusivo da vida é a morte, e a vida nega o seu tema.O tema exclusivo do pensamento é a vida, e o pensamentonega o seu tema. A vida faz de conta que é imortal, emborasurja da morte, desemboque na morte e seja permeada porela. O pensamento faz de conta que é autônomo e ontolo­gicamente primário, embora surja na vida, desemboque navida, e seja permeado por ela. A posição da vida é portantomuito menos complexa que a do pensamento. A vida é umaconspiração contra a morte. O pensamento, sendo umaconspiração contra a vida, é uma conspiração anticonspira­tória, e neste sentido é o pensamento um desvelamento.Desvela a conspiração que é a vida, e revela, destarte, amorte. O homem, como ser pensante, é com efeito o únicoser vivo que sabe da morte. O saber da morte me parece sero traço distintivo do homem. O que equivale dizer que ohomem é um ser irônico. Pensamento é ironia face à vida, éo abandono da seriedade animalesca e é, justamente poristo, o sorriso distanciado face à morte. A vida nega, série eagastada, a sua própria mortalidade. O animal vive como sefosse viver eternamente,· embora todo ato seu seja umadefesa contra a morte. Ele está sempre sur te qui vive no sen­tido literal desta palavra. A vida animalesca é uma ficçãoprofundamente séria, é um teatro triste. O homem comoser pensante representa uma paródia desse teatro. Lança umdesafio à seriedade da vida e, por isso mesmo, à morte.Sendo irônico, é ousado. Ousa sorrir da vida e da morte. Éum ser lúdico, brinca com a vida e com a morte. Não estátotalmente englobado pela vida e pela morte, não está total­mente "interessado" pela vida e pela morte. É um ser par­cialmente "desinteressado". Graças ao pensamento, não estáele tão desesperadamente engagé em prol da vida e da mortecomo o é o animal ou a planta. Nesse sentido podemosdizer que o homem tende a superar, pelo pensamento,tanto a vida como a morte.

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Disse que o pensamento é o desvelamento da morte.Com efeito, o pensamento é uma única enorme provocaçãoda morte, uma chamada gigantesca da morte. Podemosresumir o pensamento numa única pergunta: "onde estás,morte?" Enquanto que a vida se esconde da morte, tremen­do, o pensamento sai em busca da morte, desafiando. Éverdade que, se a vida não consegue escapar à morte, tam­pouco consegue o pensamento encontrá-Ia. Ambos, a vidacomo o pensamento, são processos absurdos. São, comodisse, fictícios. Fazem de conta que há liberdade face àmorte. Mas o clima de ambos esses processos é radicalmen­te diferente. O clima da vida e, fundamentalmente, o daangústia, enquanto que o clima do pensamento pode ser, secultivado, o do sorriso. Não podendo autenticamente resol­ver o dilema da morte, pode o pensamento, entretanto,recusar-se a tomá-Io com total seriedade. E esta me parece achave do dilema.

Bem entendido: não se trata aqui de uma minimizaçãobanal do dilema da morte. Não se trata de negar ao dilemaa sua fundamental idade. Trata-se, pelo contrário, de admi­tir o dilema como o próprio fundamento do nosso ser, edesprezá-Io assim mesmo. O desprezo do nosso própriofundamento, esta me parece ser a verdadeira ironia. Nãoserá essa ironia aquilo que Camus procurava ao falar em"dignidade"? Porque este me parece ser o erro da posiçãocamusiana, e de toda a posição da filosofia chamada Lebens­

philosophie e do existencialismo: desvirtuar o pensamento.Para este tipo de filosofia é o pensamento uma serva, umaancila da vida. Participa portanto da conspiração da vidacontra a morte e serve de instrumento contra a morte. Na

realidade, conforme creio ter exposto, o pensamento é umaconspiração contra a vida e revela a morte. A posição camu­siana, resultado que é do desvirtuamento do pensamento,cai na contradição, porque procura utilizar-se do pensa­mento, contra o pensamento. Parece aceitar a morte, e

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nisso trai o pensamento. Embora, portanto, seja a posiçãocamusiana uma traição da conspiração da vida apenas apa­rentemente, é ela uma traição da conspiração do pensamen­to contra a vida. A "dignidade" e "honestidade" camusianaé um abrir mão da mentira que é o pensamento, não umabrir mão da mentira que é a vida. É por isto que é indignae desonesta essa "dignidade" e "honestidade". Mas a ironiaque é o pensamento pode ser um abrir mão da mentira queé a vida e neste sentido, sim, uma aceitação da morte. Éuma aceitação absurda, sem dúvida, porque uma aceitaçãonegativa, mas justamente é a única atitude honesta e digna.Em outras palavras: o pensamento é a única atitude hones­ta e digna do homem face à morte, embora (ou talvez justa­mente porque) seja uma atitude absurda.

Rilke diz: Der Tod ist grossoWir sind die seinen lanchen­den Munds. (A morte é grande. Nós somos os seus de bocaridente). Esta me parece ser a única resposta honesta edigna ao pseudodilema diante do qual nosso tema exclusivonos coloca.

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Vicente Ferreira da Silva

Em desafio ao destino que se abateu sobre ele, qual aveestupidamente rapina para dilacerar-lhe o corpo, representaFerreira da Silva uma esperança para o pensamento brasilei­ro. O presente artigo é uma tentativa de contribuir para aapreciação de sua mensagem pelo público culto. O ensina­mento ferreiriano aponta picos da especulação filosófica quesão difíceis para quem, como quem escreve estas linhas, nãotem a vivência imediata das premissas das quais Ferreira daSilva parte. Entretanto, o esforço de acompanhá-Io em suasubida rumo a estes picos é promissor, já que no caminhosurge uma visão da paisagem da atualidade, uma visão quepodemos chamar de autenticamente brasileira. Ferreira daSilva é um filósofo brasileiro, e com ele o Brasil tomará partena discussão filosófica ocidental com voz independente. Paraapreciar a sua mensagem, esqueçamos os chavões do giganteque desperta e do subdesenvolvimento a ser superado, e lan­cemos um olhar sobre a cena brasileira, tal como ela se apre­senta no conjunto da civilização ocidental. É uma cena sui­generis. Uma fusão de elementos alhures incompatíveis, quepromete ser criadora de novos valores, está se processandoneste país. Dessa fusão participam, com ênfase maior emenor, praticamente todos os povos europeus, um fortesubstrato negro que é aceito pelas elites com um mínimo depreconceitos, os povos do Extremo Oriente com parcela

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sempre crescente, e um leve aroma da população índia exter­minada paira sobre este processo todo. O resultado é umasociedade em formação, de caráter ostensivamente católico e

latino, mas fundamentalmente influenciado pela magia afri­cana e modulado pela estética oriental, uma sociedadefaminta de realizações que articulem a nova personalidadeque surge. Essas realizações começam a sair do terreno dopossível e irrompem dramaticamente para dentro do territó­rio da realidade. Irrompem em forma de música, na qual oritmo africano se casa com a tradição européia. Irrompemem forma de pintura, na qual a brilhante cor tropical se casacom a visão estética oriental e o rigor formal europeu. Irrom­pem na forma da poesia e do romance, de maneira mais difi­

cilmente analisável, já que muito mais cerebrina. E começama irromper na forma do pensamento abstrato, pensamentoeste que deve servir, futuramente, de sistema de referência atodas as demais atividades criadoras. O pensamento ferreiria­no é uma das fontes das quais esse sistema brota.

Exporei esse pensamento com base nos seguintes tra­balhos: Instrumentos, coisas e cultura (Revista Brasileira deFilosofia), A natureza do simbolismo (Revista Brasileira deFilosofia), Floresta Sombria (Diálogo) e Teologia e Anti­humanismo, e com base em inúmeras discussões pessoais.Parto da seguinte premissa: todo (ou praticamente todo)pensamento filosófico ocidental está viciado por um ódiofundamental à natureza. Esse ódio tem sua origem nas reli­giões bíblicas e no orfismo. Estas estabelecem uma ordemespiritual, sobrenatural, em oposição violenta à naturezacomo conjunto de presenças divinas, isto é, em oposiçãoviolenta ao paganismo. A história do Ocidente é a realiza­ção progressiva desse ódio, é o que Nietzsche chama de"niilismo platônico". É a progressiva profanação da natu­reza. Em seu ódio à natureza, em seu esforço de humilhá­Ia, o homem ocidental se afasta dela e se opõe a ela. Assu­me, nesse alheamento, a posição de observador. Torna-se

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sujeito, cujo objeto é a natureza. A objetivação do mundoda natureza, em oposição à subjetivação do mundo sobre­natural ("espiritual") tem por conseqüência a transforma­ção da natureza em conjunto de objetos definidos ou defi­níveis. A natureza se transforma em sistema de coisas, cadaqual com seu lugar fixo. A natureza fica paralisada nesse sis­tema. Torna-se manipulável. As coisas da natureza, humi­lhadas e enquadradas no sistema, tornam-se acessíveis aotrabalho manipulador do "espírito", desse sujeito sobrena­tural da natureza. As coisas podem ser transformadas eminstrumentos. Impelido pelo ódio à natureza, o homemocidental a manipula, transformando-a em conjunto deinstrumentos, em parque industrial. A história do Ociden­te é a progressiva substituição das "coisas da natureza" porinstrumentos que são produtos do trabalho manipulado rdo espírito sobrenatural. A natureza fica aniquilada. A festapagã, fundamento de toda civilização, é uma orgia na qualo homem se confunde com a natureza. A civilização oci­dental acaba com essa festa. O judaísmo, esse primeiropasso, a proíbe. O orfismo a intelectualiza. O cristianismo,essa fusão das duas tendências antipagãs, a abandona comdesprezo, já que o seu reino não é desta Terra. O Cristo é asuperação e a humilhação da natureza pelo Deus-Homem.O puritanismo com sua mortificação da carne é o cristia­nismo radicalizado. Com efeito, é nos países puritanos quesurge a industrialização, essa mortificação da natureza. Aindustrialização é a realização radical do cristianismo. Nelao espírito-sujeito (Cristo) subjuga e aniquila a natureza.As sociedades tecnológicas, e mais especialmente a UniãoSoviética (já que professa a tecnologia conscientementecomo alvo), são tentativas da realização total do cristianis­mo. A próxima vitória da tecnologia será o fim da histó­ria, como Hegel e Marx prevêem corretamente. A nature­za totalmente profanada e subjugada não deixará margema nenhum acontecimento novo. O homem, totalmente

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alienado da natureza, e tendo totalmente transformado ascoisas em instrumentos, não terá mais assunto. A vida seráesvaziada de aventura, de grandeza, de exuberância, doexcelso. A noite cinzenta do niilismo platônico encobrirá ahumanidade num eterno retorno do sempre idêntico. Océu cristão ter-se-á realizado sobre a terra.

Entretanto, o ódio fundamental do pensamento oci­dental face à natureza não é uma "epifania do divino"autêntica. No pensamento ocidental não aparece o divino.O pensamento ocidental é fundamentalmente negativo,embora disfarce o seu ódio em "amor ao próximo". "Sersujeito" não é uma forma autêntica de ser. E uma forma denegar e aniquilar o ser. É um alheamento, uma fuga. Opensamento ocidental, e, em conseqüência, toda a históriado Ocidente, é uma fuga à natureza.

Felizmente o Brasil não é totalmente ocidental. Foi

cristianizado apenas superficialmente. Elementos pagãos(no sentido ferreiriano) se conservaram. Temos, no Brasil,elementos festivos, por exemplo o carnaval e o candomblé,nos quais o espírito não se subjetiva, mas nos quais ohomem se funde com a natureza. Nessas festas pode read­quirir a faculdade, perdida pelo Ocidente, do "pensamentosimbólico". Esse pensamento não humilha a natureza, nãoa paralisa, não congela as coisas. Pelo contrário, libera ascoisas do peso do pensamento manipulador. A naturezavolta a ser uma manifestação múltipla do divino. Volta aser presença do divino. As coisas deixam de ser fixas (con­ceitos), mas voltam a ser vagas, cada qual abrangendotodas as demais, voltam a ser símbolos. A terra deixa de ser

aquele objeto fixo e manipulado pela geometria, para vol­tar a ser a deusa Caia, de cujo colo materno, morno e escu­ro, surgimos, e a qual nos mantém com seu seio exuberan­te. A parreira deixa de ser uma planta a ser utilizada naindústria do vinho, e volta a ser encarnação de Dionísio,com seu séquito enlouquecido de bacantes, do coro trágico,

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volta a ser a encarnação do sentido exuberante e extáticoda existência. Pois este é justamente o característico dosímbolo: não ser unívoco, como o é o conceito rígido, masser uma sinopse de muitos aspectos. A natureza, aceitacomo simbólica, volta a ser a própria presença, a revelaçãosimultânea dos múltiplos aspectos do divino. No Brasil,este tipo de pensamento simbólico é novamente possível, eFerreira da Silva nos convida a dele participar.

Quem não sentirá o atrativo desse convite? Quem nãolhe sentirá a beleza e sinceridade? Quem não se sentirá tenta­do a acompanhar o pensador em seu avanço rumo a visõesapenas vislumbradas, como seja o surgir de uma civilizaçãonova, a superar autenticamente a tecnologia? Por certo, mui­tos são os argumentos que podemos mobilizar contra estaconcepção do mundo em geral, do Ocidente, como particu­lar, e mais especialmente dos elementos que perfazem o Oci­dente, como seja o cristianismo e a tecnologia. Podemos porexemplo negar que a tecnologia seja a realização total do cris­tianismo, pela simples razão de que, sendo o cristianismo umaepifania autêntica, não admite realizaçãototal. Podemos argu­mentar que todo tipo de pensamento é negativo, e nãosomente o tipo ocidental, já que pensar é justamente "opor-sea algo". Podemos objetar que o pensamento simbólico advo­gado por Ferreira da Silvaé um tipo de pensamento que terágrande dificuldade em passar pelo teste dos logicistassimbóli- .cos, já que será desvendado como sendo "insignificativo", istoé, oco. Podemos, em breve, argumentar para salvaro intelectoem geral, e o intelecto ocidental em particular, do ataque for­midável que Ferreira da Silva lhe move. Mas, fazendo isto,estaremos defendendo a tradição ocidental contra um ataquenovo, um ataque brasileiro. É uma nova personalidade nocenário filosófico que se torna articulada com Ferreira daSilva. É uma voz com a qual deveremos contar no futuro. Odestino estupidamente brutal não conseguirá sufocá-Ia.

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o projeto

Quando morre um pensador, algo se dá com o conjun­to de frases, orais e escritas, que perfazem a sua obra. Cha­marei de espantoso e maravilhoso esse acontecimento e ten­tarei transmitir neste artigo uma parcela daquele espanto edaquela maravilha que me causa a obra de Vicente Ferreirada Silva, transfigurada por sua morte. O que aconteceucom ela, e com que direito afirmo estar ela transfigurada?Os livros e os artigos que Vicente Ferreira da Silva escreveuaparentemente nada mudaram desde o último mês. Não sealterou nenhuma vírgula, não se modificou nenhum acen­to. As frases por ele pronunciadas aparentemente ressoamna memória dos seus parceiros como ressoavam antes dasua morte. Não se alterou na memória nenhuma entona­

ção, não se modificou nenhum gesto. Os seus pensamentosaqui estão, dentro de nós e ao nosso dispor, aparentementena forma exata na qual foram por ele formulados. Noentanto essa aparente indiferença da obra ferreiriana face aoseu criador é enganadora. Fundamentalmente tudo mudounela. Nenhuma frase, nenhuma vírgula, nenhum gestoescapou à ação misteriosa da morte. A obra ferreiriana emseu conjunto, e cada frase individual, adquiriram um signi­ficado novo graças a essa ação misteriosa. Somos, doravan­te, incapazes de recapturar o significado original, e somoscondenados a trabalhar com o significado novo. Como se

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deu essa modificação e em que consiste? Permitam querecorra a uma imagem para ilustrar o que tenho em mente.A obra de um pensador jorra do seu intelecto sob alta pres­são, impelida rumo à realização pela força concentrada dopotencial latente nesse intelecto. Toda frase, toda palavravibra com essa pressão, com essa urgência de articular-se,para dar lugar a novas frases e novas palavras famintas derealidade. Tão famintas e apressadas são as frases, tão vora­zes de realidade são as palavras, que se torna imperativa,para um intelecto fecundo, uma extrema economia estilÍsti­ca que não admite desperdício de uma única palavra. Oestilo condensado e desidratado, como é o estilo ferreiriano,é prova da pressão latente que impele cada palavra. Assim seprojeta o jato das frases sobre os intelectos que participamda conversação com o pensador, assim esses intelectos rece­bem o seu impacto. Podem recebê-Io passivamente paraabsorvê-Io, ou podem reagir ativamente, transformando-o eretransmitindo-o transformado, ou podem repeli-lo. Mas,em todo caso, sofrem os intelectos o choque da pressão queo jato continua jorrando, se está vivo o pensador, os intelec­tos receptores recebem as suas frases como pontas de lançacujo cabo ainda está por realizar-se. Mas se o pensadormorreu, recebem as suas frases como obuses que explodemdentro dos intelectos receptores para continuarem a reali­zar-se.

Toda frase de obra de pensador vivo aponta, portanto,em sua busca de perfeição, o intelecto que a gerou, e todafrase de obra de pensador morto aponta o intelecto que arecebe. E a obra, como um todo, está ligada ao intelectoque a originou como por cordão umbilical, enquanto vivoo seu autor. A morte corta esse cordão, e a obra emitepseudópodes em direção aos intelectos abertos para recebê­Ia. O último significado da obra é deslocado, pela morte,do intelecto do autor para os intelectos dos seus interlocu­tores. Desta maneira altera a morte profundamente todo o

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aspecto da obra, dando-lhe uma nova Gestalt, uma novadinâmica e uma nova estrutura.

A objeção a este argumento pode afirmar ser essamodificação da obra um aspecto puramente subjetivo, eque "objetivamente" a obra não se alterou e ficou intocadapela morte. Mesmo deixando de lado a problemática quetoda consideração da objetividade envolve, não me pareceválido o argumento. A obra foi criada pelo autor como arti­culação na direção de interlocutores e adquire o seu signifi­cado somente como parte integrante da conversação geralda qual participa. São portanto os interlocutores ingredien­tes essenciais da obra, tão integrantes da obra quanto o é oautor, já que são meta e campo de realização da obra. Amodificação que a obra sofreu pela morte é portanto, nestesentido, uma modificação "objetiva". A nova Gestalt e onovo significado da obra, impostos sobre ela pela ação mis­teriosa da morte, são doravante qualidades inseparáveis daobra. Importam, em resumo, em modificação total da fun­ção do interlocutor na obra. De receptor e de ponto de res­sonância transforma-se o interlocutor em guardião e reali­zador da obra. A responsabilidade pela obra passa do autorpara o interlocutor, e o destino da obra depende doravantedele. É devido a este aspecto ético da transfiguração da obrapela morte que a chamei de espantosa e maravilhosa. Econvido os leitores para uma consideração da obra ferreiria­na, tendo esse espanto e essa maravilha em mente.

Recém-surgida do colo materno da morte, ainda tenrae maleável, e estendendo seus pseudópodes em nossa dire­ção como que em busca de amparo, assim se apresenta aobra ferreiriana. Nós, os provisoriamente pouco numerososinterlocutores da obra, temos o privilégio e a responsabili­dade de acolhê-Ia em nosso Íntimo para que continue a rea­lizar-se. Não seremos dignos desse privilégio, nem estare­mos à altura dessa responsabilidade, se a ternura eplasticidade da obra for pretexto para uma inibição de

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nossa parte em atacá-Ia. Embora tenra e plástica, dispõeessa obra de força suficiente para resistir a nossos golpes. Édebaixo dos golpes que ela se formará e adquirirá aquelescontornos e aquela dimensão, nos quais entrará para a con­versação brasileira, e quiçá do Ocidente. E hontaremos opensador mais autenticamente no combate do que com ser­vilismo.

A obra ferreiriana quer ser combatida. É toda ela umgrito de oposição, um brado de guerra. Faz parte daquelerio subterrâneo de revolta, de negação, de recusa, e de here­sia contra a ortodoxia que acompanha a história do Oci­dente. Essa corrente submersa e reprimida torna problemá­ticos todos os valores do Ocidente e põe toda a nossacivilização em aspas. É geralmente invisível, mas emmomentos dramáticos da nossa história irrompe à superfí­cie para provocar um reexame das posições e uma retomadade contato do Ocidente com as suas fontes. Faz parte, por­tanto, essa corrente do majestoso rio do Ocidente, e agepoderosamente em prol de sua propagação, justamente aonegá-Io. Nisso reside o seu paradoxo e a razão do desesperodos intelectos que dela participam. Tudo fazem para des­truir aquilo "que aqui está", convencidos de sua nocividade,e tudo o que fazem contribui para construÍ-lo. É graças aeles, é no combate a eles, que o Ocidente se consolida eprogride. Sejamos gratos a eles, nós que afirmamos o Oci­dente, e saibamos apreciar a posição desesperada na qual secolocam para que nós possamos continuar a existir.

A obra ferreiriana é um daqueles momentos de irrupçãoda negação ao Ocidente. Insurge-se violentamente contra aimposição de valores fundamentais do Ocidente, reexaminaessesvalores e afirma a sua ociosidade, ociosidade essa torna­da sempre mais evidente pelo progresso da história do Oci­dente. Nega ao Ocidente o direito de impor suas regras, negaa validade das regras, e nega todo aquele mundo que se reali­zou e continua a realizar-sede acordo com essasregras. Parece

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portanto ser ética a revolta ferreiriana contra o Ocidente,contra aquilo que chamava de "nosso projeto". Mas não creioque a mola mestre do pensamento ferreiriano seja realmenteuma preocupação ética, uma preocupação com o bem e omal portanto. Creio que a fonte da revolta ferreiriana é suareligiosidade estética (se assim me posso exprimir) e que aobra ferreiriana se rebela contra a feiura sacrílega do Ociden­te. Ao pintar o retrato da nossa civilização, Ferreira da Silvarecorre a tintas cinzentas. Feio e cinzento é o presente danossa sociedade, mais feio e mais cinzento ainda é o seu futu­ro. Cinzento e feio é o ambiente dentro do qual vegetamos,seres feios e cinzentos que somos, e os nossos prazeres e nos­sas desventuras têm o gosto nojento das cinzas. Nessa nossafeiura reside o nosso "crime", e estamos nos precipitando,num processo chamado "progresso", como indivíduos ecomo sociedade, para o abismo da feiura definitiva. Os tentá­culos da feiura que é o presente ocidental se agarram a nós demil maneiras nojentas, e a obra ferreiriana é a tentativa delibertação desse abraço pernicioso. É toda ela portanto umabusca do sol da beleza na noite sempre mais escura que assombras do progresso projetam.

Chamei de religiosa essa busca de beleza. Porque nocontexto no qual a obra coloca o problema da beleza, esta setorna sinônimo do resplandecer do sacro, da hierofania. Opresente ocidental, no qual estamos mergulhados, carece debeleza, porque está afastado da proximidade do sacro. Todaobra ferreiriana pode ser interpretada como pesquisa dasrazões desse afastamento, com o propósito de rasgar, nessapesquisa, as nuvens da feiúra e abrir uma fenda para o solresplandecente do sacro. Para compreender essa pesquisa eessa meta, é preciso considerar o conceito do projeto, con­ceito central do pensamento ferreiriano.

É claro que Ferreira da Silva busca esseconceito na espe­culação filosófica alemã, na qual a palavra Entwurf ocupaultimamente um lugar de destaque. Mas a relação entre o

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pensamento ferreiriano e o alemão é curiosa. Ferreira da Silvaconhece os conceitos alemães em seu contexto filosófico, masfalta-lhe a familiaridade com o húmus coloquial do qual estesconceitos brotam. Entwuif é a negação de Wurf, é portantoum "desjeto". É um virar-se contra as origens que nos proje­taram. Uma existência im Entwuif é uma existência em opo­sição ao destino. Mas a palavra "projeto", embora traduçãoda palavra Entwurf, não transmite a idéia de oposição, masde continuidade. Essa discrepância devida à tradução escapaa Ferreira da Silva. Crê portanto que o seu uso do conceito"projeto" o coloca dentro da corrente do pensamento exis­tencial alemão, quando, na realidade, o desloca para umaposição de suma originalidade. Não era por modéstia, por­tanto, que Fen'eira da Silva negava a força original do seupensamento, mas por mal-entendido.

Para o pensamento ferreiriano, um pouco como para opensamento da antiguidade, a história é um projeto que seprojeta a começar da proximidade do sacro em direção aoprofano. É, para falarmos na linguagem das Metamorfoses,uma queda do tempo áureo em direção ao tempo das cin­zas. Mas, enquanto os antigos reconheciam um único pro­jeto, o deles, reconhece Ferreira da Silva uma multiplicida­de de projetos. A civilização ocidental não passa de umentre muitos modos de profanação do sacro. Devemos ima­ginar esse processo de profanação como explicitação pro­gressiva de potencialidades contidas na aparição original dosacro. O resultado dessa explicitação progressivá é ummundo com seus valores. Quanto mais o mundo se realiza,tanto mais se esgota o projeto proposto pela aparição dosacro. Quando todas as possibilidades contidas nesse proje­to estiverem explicitadas, quando portanto se tiver realiza­do um mundo perfeito (no sentido de totalmente feito),teremos alcançado, nesse dado projeto, uma época final,uma Endzeit. Essa época se caracterizará pela perfeição, istoé, pelo tédio absoluto. Tudo será efetivo, e nada será possível.

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Nada acontecerá, e o tempo no sentido atual do termo teráacabado. Isto equivale a dizer que tudo será profano e nadaserá sagrado. A tese ferreiriana, se aplicada à civilização oci­dental, permite o diagnóstico de uma rápida aproximaçãoda Endzeit, da época de perfeição portanto.

Em que consiste a aparição do sacro que está na ori­gem daquele projeto chamado civilização ocidental? Naoposição entre sujeito e objeto. A civilização ocidental sedistingue de todos os demais projetos por essa dicotomiasujeito-objeto. Na hierofania que fundamenta a nossacivilização o sacro nos aparece como sujeito que se cercade objeto. É "Deus" que cria "o mundo". A história doOcidente é uma explicitação das possibilidades contidasno projeto dessa dicotomia sujeito-objeto. Na expressãode Ferreira da Silva é nossa civilização "sujeitiforme".Analisando a hierofania fundamental podemos, com efei­to, deduzir, numa espécie de profecia às avessas, todas asfases da história do Ocidente, prefiguradas como estãonessa hierofania. Em primeiro lugar podemos deduzirdessa hierofania o tipo de pensamento que regerá o Oci­dente. Será o tipo lógico, consistirá de conceitos rigoro­sos. O sujeito, em sua oposição ao objeto, está para comeste em relação de "trabalho". Deus "criou" o mundo. Emconseqüência, o objeto deve ser manipulável, isto é,apreensível, concebível, apalpável. Deve consistir de con­ceitos. Esses conceitos devem possuir contornos rigorosos,silhuetas nítidas, devem ser definíveis. A ação definidorade conceitos. O sujeito se impõe, nessa ação, sobre aquiloque vai ser o seu objeto, recortando-o em conceitos bemdefinidos e bem adaptados ao seu trabalho. O "mundo"ocidental torna-se, graças a essa ação definidora, ummundo progressivamente concebível e concebido. No fimdesse processo definido r teremos um mundo consistidototalmente de conceitos definidos, um mundo rigorosa­mente organizado, um sistema perfeito de conceitos nítidos

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e manipuláveis. O sujeito ter-se-á imposto totalmente aomundo. O mundo será instrumento dócil do sujeito total­mente afastado desse mundo, colocado como estará na

situação superior ("transcendente") de manipulador domundo. Um mundo assim totalmente objetivado já nãoterá mistério, não terá segredo. Será inteiramente elucida­do. E o sujeito a ele oposto será inteiramente alienadodele, já que a ação definidora terá cortado todas as liga­ções misteriosas que unem o sujeito ao mundo. Terá surgi­do a época messiânica da total alienação do sujeito, aépoca da loucura perfeita portanto. Essa loucura sujeiti­forme é, de acordo com a tese ferreiriana, a meta do pen­samento ocidental, imposta sobre ele pelo nosso projeto.

Em segundo lugar podemos deduzir da hierofaniafundamental o tipo de valores que regerão o Ocidente.Aquilo, portanto, que Ferreira da Silva chama de "o salvá­vel". A dicotomia sujeito-objeto transfere todos os valorespara a região do sujeito, e despreza o objeto como o "mani­pulável". Surge, automaticamente, uma dualidade "bemcontra mal", dualidade essa alheia a outros projetos. Obem, o salvável, diz respeito ao sujeito, e o mal, "o peca­do", diz respeito aos vÍculos que ainda prendem o sujeitoao objeto. O caminho do bem é o caminho da purificação,é o desprender-se do sujeito, é catharsis no sentido órfico, ecachrut no sentido judeu do termo. O bem supremo, oabsolutamente salvável, é o sujeito puro, desprendido, alie­nado, é a "alma". Todos os valores do Ocidente dizem res­peito, em última análise, à "alma". Prova disso é nãosomente a ética judia e cristã, mas também, e talvez maisradicalmente, a ética "humanista", e mais especialmente amarxista. O materialismo marxista é a afirmação do sujei­to, da "almà', como antítese da matéria, do mal a ser puri­ficado. É por isto que Marx fala em Tuecke der Materie

("perfídia da matéria"), e o marxismo se revela como puri­tanismo radicalizado.

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O conhecimento adquire portanto um sabor éticodentro do projeto do Ocidente. Conhecer, isto é, definir oobjeto e desvincular dele o sujeito significa purificar, signi­fica salvar a alma. O caminho rumo à salvação da alma é ocaminho do conhecimento. Os outros caminhos pregadospelo cristianismo, como seja "amor" e "obras", não passamde variantes da mesma estrada. A análise destruidora do

"amor", e a identificação do "próximo" com "o objeto",constituem uma das partes mais empolgantes da obra fer­reiriana, cuja discussão infelizmente ultrapassa o escopodeste trabalho. O valor supremo do Ocidente é o sujeitoonisciente, portanto todo-poderoso, é o Eu agigantado, etotalmente alienado. Essa megalomania ética ocidental éconseqüência orgânica da loucura do pensamento do Oci­dente. Adquire a sua expressão mais clara em Hegel.

Em terceiro lugar podemos deduzir da hierofania fun­damental as diferentes fases de sua explicitação, que consti­tuem a história do Ocidente. Temos, no orfismo, a primei­ra fonte do nosso projeto, já que este se baseia em mitos depurificação e do desvendar violento do "objeto". E temos,no judaísmo bíblico, a segunda fonte, já que este se baseiaem mitos de criação e da transcendência do "Eterno". Aconfluência dessas duas fontes no cristianismo constitui o

ponto de partida do projeto ocidental e a sua expressãomáxima é a figura do Cristo. Essa figura representa a afir­mação radical do sujeito em oposição ao objeto, a afirma­ção do sacro como o "Verbo". A fase medieval da nossa his­tória é a tentativa de elucidação dessa afirmação mediante aespeculação escolástica, isto é, mediante a conceitualizaçãoespeculativa. A esta fase se seguem, sem progresso sempremais vertiginoso, e com consistência interna inexorável, asaplicações "práticas" desse trabalho especulativo. No renas­cimento o sujeito, numa virada de 180 graus, se precipitasobre o objeto para subjugá-Io. Surge a ciência com suatransformação, primeiro teórica e depois prática, da natureza

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em conjunto de objetos manipuláveis e manipulados. Surgea matemática "pura" como estrutura da natureza. Surge ohumanismo como afirmação do sujeito como fonte dosvalores. Surge o capitalismo como sistema "produtor", istoé, como sistema de violentação da natureza. E surge osocialismo como método da realização definitiva da socie­dade comunistas, isto é, da subjugação definitiva da natu­reza (inclusive da "natureza humana") e da vitória definiti­va do sujeito em forma de sociedade. A relação entresujeito e objeto, "o trabalho", é primeiro enaltecido nesseprocesso, já que conduz para a total realização do sujeito,para depois ser superado e ultrapassado, na realização totaldo sujeito, e relegado às máquinas automatizadas. "O tra­balho na fábrica é conseqüência necessária da missa" (Fer­reira da Silva), para depois ser superado pelo progresso donosso projeto, ao alcançar a Endzeit. Esse último estágioserá a transformação total da natureza em parque indus­trial, e da humanidade em sociedade comunista perfeita.Não haverá mais trabalho, já que não somente jorrarão asmáquinas automaticamente os seus projetos, mas aindaplanejarão infalivelmente a produção e a distribuiçãodaquilo que a sociedade já agora inerte consumirá de acor­do com esse planejamento automatizado. Nada mais acon­

tecerá, com efeito. A sociedade se resumirá na contempla­ção daquela perfeição que é o mundo totalmenteobjetivado. Ter-se-á realizado o céu. As visões dos profetasde Israel, e dos mistagogos órficos, e dos santos cristãos, ede Hegel e Marx, terão se tornado realidade. Tudo será

perfeita bondade, no sentido ocidental do termo, já quetudo será pura contemplação da obra perfeitamente reali­zada. Será alcançado o sétimo dia, no qual o sujeito des­cansará, e verá que é bom o que fez. Inexoravelmente, ecom rapidez impiedosa, estamos nos projetando rumo aesse sétimo dia, ao tédio e ao nojo dessa última, insuportá­vel feiúra.

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A contemplação antecipada desse último estágio danossa história não requer fantasia, porque em certas socie­dades, por exemplo na União Soviética, já alcançou quase arealidade. O tédio e o nojo, a feiúra e a fàlta do sacro jáagora caracterizam essa sociedade. Demonstra ela, demaneira palpável, como funcionará o paraíso. As artes dei­xarão de desenvolver-se e decairão num "realismo" inautên­

tico, porque não terão assunto. A discussão entre os intelec­tos estagnará, porque nada haverá a ser discutido. A vidaperderá todo sabor, porque não haverá aventura, tudo seráplanejado. O elemento festivo, que caracteriza a proximida­de do ser com o sacro, terá sido eliminado. Será melhormorrer de vez a ter de vegetar nesse paraíso. Não é portantoexistencialmente possível aceitar como inexorável esseparaíso que se aproxima com tamanha velocidade. É preci­so reagir, é preciso fazer qualquer coisa. Não é possível cairpassivamente nesse abismo medonho. É preciso empenhar­se contra esse projeto, é preciso lutar contra ele, mesmo quese venha a "morrer esperneando" nessa luta. Porque émelhor morrer agora, enquanto o nosso projeto ainda estáum pouco aberto, do que viver num projeto totalmenterealizado, fechado como jaula. O engagement ferreiriano éuma busca desesperada de uma abertura pela qual seria pos­sível sair do projeto e evitar o paraíso.

Essa claustrofobia está, portanto, no fundo das pesqui­sas ferreirianas dos outros projetos. Sua preocupação com osdeuses gregos, ou com as religiões africanas (Otto e Frobe­nius), sua imersão febril no pensamento romântico alemãocom suas fontes soit-disant germânicas (Fichte, Schelling,Novalis), seu estudo apaixonado dos existencialistas alemãese seus precursores poéticos com sua tendência antiocidenta­lista (Heidegger, Hoelderlin, Rilke), tudo isto não passa deuma procura desesperada de aberturas. Já que o projeto oci­dental não é o único, é possível, talvez, escapar para outro?Aquele dos gregos arcaicos, por exemplo, no qual o sujeito

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não se distanciava do objeto, no qual essa nefasta dicotomianão existia? No qual o homem se confundia festivamentecom a natureza, e não pensava em conceitos, mas em sÍm­bolos cheios de significado indefinÍvel? No qual o homeme a natureza eram carregados do sacro? No qual a vida eraaventurosa e mergulhada naquela beleza que eram o mundoe as artes dos gregos antigos? Ou talvez seria possível escaparpara aquela floresta sombria, cheia de mistério e encanto, naqual murmuram as vozes sacras e espantosas, das quais Hei­degger e Lawrence nos contam? Ou talvez se abra uma pos­sibilidade de fuga em direção daquele mundo das máscaras edas danças selvagens, do entusiasmo e da sacra embriaguezque nos aparece nos candomblés, já que somos, afinal, brasi­leiros? Ou talvez possamos encontrar, independentes detodos estes projetos prefigurados, uma abertura imediata no

convívio com a natureza tropical que nos cerca, despindo anossa roupagem ocidental, e fundindo-nos com o mar e a

areia na praia? Talvez possamos forçar-nos para a vivênciaimediata, cheia e rica e saborosa, esquecidos do conheci­mento cinzento que o Ocidente nos proporciona. Tudo,tudo é melhor que a aceitação passiva das grades nas quais onosso projeto nos encerra com a trivialidade de sua feiura.

Mas para um espírito tão lúcido quanto o é o ferreiria­no não escapa a futilidade e o desespero dessas saídas. Poisse a sua tese do projeto é correta, as nossas próprias mentesforam por ele projetadas e são p.or ele inexoravelmente for­muladas. As notícias que temos dos "outros projetos",temo-Ias através do nosso, e as nossas tentativas de mergu­lhar para dentro deles são tentativas de mergulhar em pro­jetos já invadidos pelo nosso. Os gregos arcaicos, por exem­plo, são reais para nós somente como parte do nossoprojeto, e como "gregos em si" não existem para nós, nãoestão projetados dentro do nosso projeto. Não é portantoretalhando o bode ou aspirando o incenso do oráculo queFerreira da Silva pode encontrar-se com eles, mas lendo

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Otto. Nem é possível para ele mergulhar num mar primor­dialna praia aborígine, em busca de uma vivência imediata,já que não é possível esquecer o conteúdo iodino da águanem o conteúdo monasÍtico da areia. Enfim, inexoravel­mente, como todos nós, está Ferreira da Silva condenado aser ocidental, a ser cristão, e sabe disto.

Sua revolta contra o Ocidente não se limita, portanto,às tentativas de irrupção por aberturas cuja última inautenti­cidade reconhece. Assume também um aspecto intramural,quer obstar também dentro do próprio projeto o seu cursoimpiedoso. Em seu desespero quer conservar, pelo menosprovisoriamente, e pelo menos localmente, o estágio imper­feito, e portanto parcialmente aberto, do nosso projeto.Quer conservar os restos de beleza que a vida ainda ofereceno Ocidente chamado "livre", em contraste com a feiura

imensa que prevalece nas sociedades chamadas "populares".E neste seu desejo se precipita para um engagement que oconduz a inúmeras e insuperáveis dificuldades de ordemintelectual e moral. Por exemplo, transforma-o, como quepor encanto, num "defensor do Ocidente". Entenda-se: doOcidente atual contra o Ocidente do futuro. Outro exem­

plo: o Ocidente precisa, doravante, definir-se como oposto àEuropa oriental e central, justamente portanto àquela regiãoonde, de acordo com o pensamento ferreiriano, mais perfei­tamente se realiza o Ocidente, e onde, afinal das contas, sur­

giu. O último exemplo: os valores do liberalismo precisamser afirmados em oposição aos valores do socialismo, embo­ra, de acordo com o pensamento ferreiriano, esses valoresliberais já contenham, em projeto, os valores socialistas. Oengagement ferreiriano adquire, nessa sua profunda proble­mática, toda a sua dramaticidade. Porque seria inteiramenteincorreto chamar de "inautêntico" esse engagement, somentepor ter sido incoerente. Pelo contrário, é autêntico justa­mente por causa da sua incoerência, porque torna evidente oseu empenho, empenho quia absurdum.

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Mas este engagement tem outro efeito, mais profundo,sobre a obra. Cria nela uma ambigüidade quanto à hierofa­nia fundamental do Ocidente. Uma ambigüidade quetorna vacilante toda a posição ferreiriana. No conceito ori­ginal ferreiriano devemos compreender que a hierofaniaocidental é tão autêntica como qualquer outra. O sacropode aparecer e resplandecer de muitas formas, e a formasujeito-objeto é uma delas. O cristianismo é, em outraspalavras, uma revelação tão autêntica do divino quanto o éo mito de Prometeu, por exemplo. Mas o ódio e o horrorque Ferreira da Silva sente pelos efeitos do Ocidente o con­duzem a negar a autenticidade dessa revelação in totum.

Diz ele ser inautêntica uma revelação que afirma o sujeito,porque se trata de uma afirmação apenas aparente. Afirmaro sujeito é negar o objeto, e "ser sujeito" é "não ser objeto".Sendo portanto negativa a revelação ocidental, não é uma

revelação autêntica, e o projeto ocidental é, todo ele, nega­tivo. Estamos aqui, curiosamente, voltando para Nietzschee para o "veneno da Judéia" que é o Ocidente. Mas o"engagement" ferreiriano o obriga a uma nova reviravolta.Agora esse veneno precisa ser defendido, precisa ser auten­ticado "post festum". E o círculo se fecha novamente sobre

a hierofania original que nos projetou de si para destruir­nos, e a qual, não obstante precisamos defender, justamen­te para não sermos destruídos.

Essa profunda vacilação da posição ferreiriana não meparece ser defeito. Pelo contrário, dá a marca de autenticida­de existencial a toda a filosofia ferreiriana. Existem, a meuver, dois tipos de filosofia. Um é válido por sua consistência,e invalidado pela descoberta de falhas. O outro, muito maisempolgante, é válido pelo tonus de sua pesquisa, e invalida­do pela descoberta de insinceridade. A obra ferreiriana é do

segundo tipo. E creio ser totalmente válida sob este prisma.É, toda ela, uma procura de posição face ao desenvolvimen­to pavoroso da nossa civilização em direção do tédio, e o

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fato de não ter sido encontrada essa posição prova a sinceri­dade da procura. O que importa na obra ferreiriana não é oresultado da pesquisa, mas iluminação original e penetranteà qual submete a cena da atualidade. Sugiro ao leitor queessa iluminação revela aspectos verdadeiros da nossa situa­ção, enquanto que as conclusões que Ferreira da Silva tiradesses aspectos sejam, felizmente, fortuitas e, na minha opi­nião, falsas.A importância da obra ferreiriana reside na aná­lise à qual submete a nossa situação, não nos remédios querecomenda. Como análise representa essa obra a maisimportante contribuição do pensamento brasileiro à discus­são filosófica, e como programa representa uma documenta­ção da confusão, na qual se encontram justamente osmelhores espíritos atualmente. Defenderei essas afirmativasda seguinte maneira:

A primeira impressão que temos, se postos frente aomundo ferreiriano sem aviso prévio, é a de uma caricatura.Reconhecemos, imediatamente, o nosso mundo, mas comcertos traços característicos exagerados, e outros traços, nãomenos característicos, suprimidos. Antes de analisar quais ostraços exagerados e quais os suprimidos, permitam que ofere­ça uma tentativa de explicação do porquê dessa caricatura. Aobra ferreiriana surgiu em São Paulo. É difícil imaginar umlugar ao qual a filosofia ferreiriana melhor se adapte. Emboraseja ela uma caricatura da cena atual como um todo, é umretrato fiel da cena paulistana. Na planície ondulante e reco­berta, originalmente, de vegetação subtropical, separada domar por serra majestosa, imprimiu, recentemente, a civiliza­ção ocidental um amontoado de caixas de cimento armadode feiúra insuperável. Nas fendas entre essas caixas e nosburacos dentro dessas caixas uma multidão informe e desen­

raizada desenvolve uma atividade febril, acompanhada deruídos metálicos e cheiros benzóicos, e que tem por finalida­de aparente aumentar o número de caixas, de ruídos e decheiros. Visto do ar o planalto oferece o espetáculo de um

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tecido cutâneo atacado por câncer, que irrompeu em formade edifícios que se estenderam, pelo gânglio da via Anchieta,até a praia, e em forma de sarna, abrindo buracos de um roxoacinzentado na vegetação outrora luxuriante. Nenhumaspecto de beleza mitiga esse cenário, e os modestos esforçosda arquitetura, escultura e paisagismo para modificá-Ia, con­seguem tão somente intensificar-lhe a feiúra. Pois é exata­mente essa a imagem da civilização ocidental que Ferreira daSilva retrata. Essa imagem não podia ter surgido na PlaceBlanche, nem no Stephansplatz, nem em Grosvenor Square,mas somente na Praça da Sé. Não obstante, aplica-se, comocaricatura, também a Paris, a Viena e a Londres. Aceitem ou

não os leitores minha tentativa de explicação, creio ser elaválida como qualquer outra talvez mais profunda que aminha.

Pois o que a obra ferreiriana exagera é a feiúra da nossacivilização, e está singularmente insensível à sua beleza.Nota, impiedosamente, a trivialidade e a falta de festividadedos nossos afazeres diários, o tom cinzento que invadiutodas as nossas atividades. Nota o absurdo tedioso do levan­tar-se, do tomar o café e o ônibus, do trabalho na fábrica eno escritório, da fila de cinema, da conversa fiada interminá­

vel, nota o planejamento das festividades e a organizaçãooficial ou jornalística dos entusiasmos, nota a regulamenta­ção dos gostos e dos ideais pela propaganda comercial oupolítica, e identifica tudo isto com a nossa realidade. Masnão nota (por não poder ou não querer?) o florescimentofestivo de cores nas paredes da Bienal, nem a aventura espi­ritual na nova literatura e no novo teatro, nem nota (e isto éestupendo) a própria beleza que se desfralda no pensamentoferreiriano. Como pode um espírito tão faminto de beleza etão criador de beleza estar tão cego? Creio que a razão residenos antolhos que se impôs voluntariamente e por infelicida­de sua. Porque a beleza que a civilização ocidental cria é umabeleza intelectual, a festividade do Ocidente é um festejar do

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intelecto, e a aventura do Ocidente é o avanço do intelecto.Ferreira da Silva sabe disso, ou não teria postulado o sujeitocomo centro do projeto do Ocidente. Mas a sua cosmovisãoo conduz para o antiintelecutalismo. Impelido pelo ódio dafeiúra hodierna, renega Ferreira da Silva todo o Ocidente, ese vê forçado, nessa negação, ao abandono do intelecto comtoda a sua beleza, festividade e aventura. Esse abandono étrágico porque, num intelectual como Ferreira da Silva,importa num abandono de si mesmo. Assim, por fidelidadeà sua visão do mundo, abandona Ferreira da Silva a simesmo. Procura, doravante, nos gregos antigos, na praia, ouna luta política, aquela beleza e aquela aventura que estãodentro dele, mas que a sua sinceridade lhe proíbe. Ora, essatragédia íntima do pensador constitui para nós, os seusinterlocutores, fonte de riqueza. O antiintelectualismo fer­reiriano ressalta, para nós, de maneira marcante, os excessosdo intelectualismo e do racionalismo que caracterizam aatualidade. E nos compele para uma reavaliação do intelec­to. Daquilo que se salvará dessa reavaliação depende a nossaexistência continuada de seres pensantes que somos.

A interpretação ferreiriana do Ocidente como expli­citação da hierofania sujeito-objeto é de uma fertilidadeextraordinária e sugestiva. Permite uma compreensão defenômenos aparentemente díspares como sejam a tecnolo­gia e a salvação da alma, ou o socialismo e o processo dedefinição de conceitos. Nessa interpretação adquire a his­tória do Ocidente uma Gestalt e um significado que senti­mos ser mais fundamental que uma interpretação marxis­ta ou spengleriana. Mais fundamental, por estar maispróxima do sacro. Mas devemos refutar a sugestão de serinautêntica a hierofania que nos serve de base. O fato de"ser sujeito" implicar "não ser objeto" não é sinal de inau­tenticidade. Pelo contrário, a negatividade é sinal de todahierofania autêntica, já que aparecer (phainein) é não ser.Hierofania significa aparecer do sacro, portanto negação

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do sacro. O pensamento ocidental, explicitação da hiero­fania sujeito-objeto, é negativo. Mas todo pensamento énegativo. Pensar significa negar. Portanto é autênticonosso projeto, justamente por ser negativo. E sendoautêntico nosso projeto, e autêntica a hierofania que lheserve de base, é nosso projeto inexaurível. As potencialida­des contidas no cristianismo, e no judaísmo e no orfismoque lhe antecedem, são inesgotáveis. Nem a tecnologia,nem a ciência, nem o comunismo lhe esgotam as possibi­lidades, mas exploram, cada um por si e em seu conjunto,apenas umas poucas das inümeras possibilidades. Se a tec­nologia, por exemplo, se esgotar, isto não representará ofim do nosso mundo. Nosso projeto ultrapassará a tecno­logia e avançará rumo a outras realizações de suas poten­cialidades. A pobreza da tecnologia, da ciência e do comu­nismo reside justamente nessa sua limitação à realizaçãode umas poucas possibilidades contidas no projeto docristianismo.

Embora sendo desnecessário o esgotamento da nossacivilização na tecnologia, na ciência e no comunismo, é eleinteiramente possível. Nisso tem totalmente razão o pensa­mento ferreiriano, e o seu enorme valor reside justamentena maneira dramática como evoca esse perigo. Não repre­sentam, portanto, um mal em si essas três tendências mes­

tras da atualidade, mas representam um perigo mortal paranossa civilização, se desacompanhadas de tendências novase vivificantes. É totalmente verdade que, tomadas em si,cada uma dessas três tendências representa um fechamentodefinitivo do nosso projeto, no sentido de nada mais poderacontecer, e tudo congelar-se. Mas, aliadas a tendênciasnovas, representarão talvez, essas três tendências antigas equase esgotadas, excelentes vigas de suporte para desenvol­vimentos novos. Por ora são inimagináveis essas tendênciasnovas, mas podemos pressentir-Ihes o campo. Serão ten­dências novas do intelecto. A essas tendências novas, se

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surgirem, servirão a tecnologia, a ciência e a sociedadeorganizada (que não será necessariamente "comunista", enisso Ferreira da Silva se engana), como suportes total­mente esvaziados de interesse, por já realizados. O desespe­ro ferreiriano serve, paradoxalmente, de um dos pontos departida para a procura dessas tendências novas. E o antiin­telectualismo ferreiriano serve para o encontro de um inte­lectualismo novo a superar o antigo.

É possível que tudo isto o que acabo de dizer aconteça.É possível que superemos, graças a pensadores como Ferrei­ra da Silva, a crise na qual a nossa civilização se debate. Masé também inteiramente possível que nosso projeto se apro­xime de seu fim, na forma da era messiânica ferreiriana, ouna forma mais palpável de cinzas, a saber, de cinzas radioa­tivas. Neste segundo caso Ferreira da Silva nos ensina, mal­gré lui, o que terá sido perdido. Com o pensamento ociden­tal se perderá todo um tipo de pensamento, a saber, opensamento subjetivo. Esse pensamento resultou, é verda­de, na feiüra e (por que não dizê-Io?) na maldade das cida­des-monstros, das vidas esmagadas por trivialidades, e debarbáries e guerras talvez sem paralelo. Mas resultou tam­bém, e isto não é menos verdade, naquele enorme tesourosempre crescente de beleza e sabedoria que representa nossatradição cultural e, por isto, nosso engagement para o futu­ro. Não importa se o lado feio e mau da nossa civilizaçãosupera ou não o lado bom e belo. Somos em todo caso obri­gados a empenhar-nos em prol de sua continuidade. Ferrei­ra da Silva explica por que: porque assim fomos projetados.Nossa recusa desse empenho não representa livre escolhanossa, mas seria uma queda na inautenticidade. Essaimpossibilidade de uma escolha contra nosso projeto, enossa liberdade somente dentro das possibilidades do nossoprojeto, este me parece ser o ensinamento mais importanteda obra ferreiriana. Este ensinamento não é formulado

expressamente, e formalmente até pode contradizer o teor

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da obra. Mas é o ensinamento que apreendemos da Cestalttotal da obra, como ela foi moldada pela ação misteriosa damorte.

No curso deste trabalho ataquei, segundo a minhamelhor compreensão, capacidade e convicção, a obra ferrei­riana. Ataquei, com efeito, aquela parte do meu intelectoque é Ferreira da Silva. Porque o pensamento de Ferreira daSilva, na parte na qual o compreendi, é agora o meu pensa­mento. Como é parte do pensamento de todos os seus inter­locutores. No ataque que lhe movo, e que lhe moverão osoutros, esse pensamento se formará e representará a imorta­lidade daquele fenômeno chamado Ferreira da Silva. Espero,portanto, que este trabalho se incorpore, embora modesta­mente, na conversação como contribuição para a realizaçãoda obra ferreiriana. Não sei de outra forma para expressar aminha gratidão pela indizível aventura intelectual que meproporcionou e que continua a me proporcionar.

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Literatura brasileira de vanguarda?

A Revista de Cultura Brasilefía impõe, logo no títuloda pesquisa sobre a literatura brasileira da atualidade, umalimitação severa. O termo "vanguarda", para ser usado sig­nificativamente, pressupõe o conhecimento da direção doprocesso sob estudo. Deve ser, a rigor, aplicado somente aprocessos encerrados. A literatura brasileira é um processoem desenvolvimento. Não lhe conhecemos a direção, e se aconhecêssemos, já estaria a literatura brasileira, por anteci­pação, esgotada. Pelo contrário, entretanto, a literatura bra­sileira é um processo explosivo que se expande em muitasdireções pelo método da tentativa e do erro, de modo quetoda tendência atual seja "vanguarda" para si mesma, e"retaguarda" para todas as demais. "Literatura Brasileira deVanguarda" é portanto literatura brasileira atual tout court,e creio ter eliminado, com esta consideração, a limitaçãoimposta pelo título desta pesquisa.

Pretendo, neste trabalho, dirigir a atenção do leitorpara a literatura filosófica, um segmento fundamental,embora subdesenvolvido, da literatura brasileira. O prefá­cio desta publicação fala em "levantamento da realidade"que as letras brasileiras estariam levando a cabo. Mas o queé essa realidade que as letras supostamente levantam? Cabeà especulação filosófica responder a essa pergunta. Cabeportanto a ela fornecer a própria matéria-prima à literatura,

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se é que literatura é mesmo um "levantamento da realida­de". E se não o é, se é, pelo contrário, a criação de realidadenova (conforme creio), cabe à especulação filosófica orien­tar essa criação e fornecer-lhe as armas teóricas para a sualuta contra o caos. É, com efeito, exatamente este o papelda especulação filosófica no desenvolvimento da literaturaeuropéia ao qual o prefácio desta publicação se refere. Afenomenologia husserliana, por exemplo, é responsável,direta e indiretamente, por muitos daqueles "ismos" que oprefácio chama de anti-realistas, já que Husserl abriu ummétodo para uma nova apreciação da "realidade". A especu­lação filosófica brasileira não tem cumprido, até agora, opapel que lhe cabe na literatura. Acanhada e acadêmica,tem-se limitado, até agora, a certos gestos rituais em tornodos grandes filósofos europeus, e mais especialmente emtorno das três ortodoxias do tomismo, do marxismo e dopositivismo. A literatura brasileira, muito mais audaciosa,avançou muito além, e vê-se abandonada pela suas fontesfilosóficas, das quais deveria ter brotado. Em conseqüência,busca a sua justificativa, muitas vezespost hoc, em filosofiasque lhe são parcialmente estranhas. Esta falta de umaautêntica filosofia brasileira como fundamento não somen­

te da literatura, mas da cultura em geral, caracteriza todosos fenômenos intelectuais e artísticos, deixando-os comoque a pairar no ar sem suporte. O presente trabalho preten­de mostrar os primeiros passos do pensamento filosófico nadireção da autenticidade.

O Instituto Brasileiro de Filosofia prepara a publicaçãodas obras completas de Vicente Ferreira da Silva. Trata-se deum pensador (falecido) que representa, a meu ver, a primei­ra realização do espírito filosófico autenticamente brasilei­ro. Embora profundamente influenciado pelo pensamentoeuropeu, e mais especialmente pelo pensamento existencialalemão, era Ferreira da Silva a própria expressão daquilo aque chamam, com tanta leviandade, de "realidade brasileira".

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A filosofia européia serviu, no seu pensamento, de instru­mento para a pesquisa dessa realidade. Aliás, a dicotomiaEuropa-América que o prefácio estabelece é inexistente. Acivilização brasileira é uma parte orgânica da ocidental, e orecurso à tradição européia é tão autêntico no Brasil comona Espanha. A influência de Heidegger sobre Vicente Fer­reira da Silva não impede que seja Ferreira da Silva tipica­mente brasileiro, como a influência de Descartes sobre Hei­degger não impede que seja Heidegger tipicamente alemão.No pensamento ferreiriano articula-se, pela primeira vez, atensão dialética que informa, sustenta e ameaça a "realidadebrasileirà', a saber, a tensão entre a racionalidade cristã lati­na e a irracionalidade pagã negra. Mostra-nos o pensador,com impiedosa clareza, a linha reta que conduz da subjeti­vidade transcendente (que é o cristianismo original) para aobjetividade imanente (que ameaça estagnar no tédio dasociedade tecnológica perfeita). E mostra-nos, simultanea­mente, a aventura e a festividade de uma vida dentro domito, de uma vida carnavalesca digamos. A realização irre­vogável do projeto cristão, que é a civilização ocidental, trazconsigo a sensação do tédio, do nojo existencial, do mergu­lho no cinzento do cotidiano. A festa pagã quebra esse pro­jeto e permite uma redescoberta da sacralidade e do carátersimbólico das coisas da natureza, aspectos do mundo que oracionalismo ocidental encobriu. O Brasil, palco da con­frontação dramática entre as duas tendências, é portantoum dos lugares decisivos para a civilização ocidental e paraa humanidade.

As conclusões às quais Ferreira da Silva chega são quaseinteiramente pessimistas. Escolhi, não obstante, a sua obracomo ilustração de uma filosofia geradora de literatura, por­que demonstra, mesmo num esboço superficial, as potencia­lidades de uma literatura brasileira genuína. Num país queoscila entre fenômenos como São Paulo (extrema realizaçãoda tecnologia cinzenta e nojenta) e como o candomblé (festa

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extática que sacraliza instintos), abre-se à literatura a possibi­lidade de criar um novo tipo de civilização para superartanto o epigonismo ocidental como o primitivismo africa­no. A uma literatura, bem entendido, que esteja fundadasobre alicerces autênticos, e não empenhada ("engagée") emprol de uma realidade preconcebida.

A obra de Vicente Ferreira da Silva e, em verdade, umesforço isolado. Mas há indícios de uma nova mentalidadefilosófica a quebrar as algemas das ortodoxas. O curiosodesse desenvolvimento é que se desenrola quase à margemdas faculdades. A vida universitária alienou-se da realidade

intelectual, seja pelo empenho político dos estudantes, sejapelo academismo dos professores. A nova mentalidade filo­sófica manifesta-se em discussões promovidas por entidadesquase particulares, e a forma literária que assume é o ensaiopublicado em revistas. Essas publicações espelham ainda,pela sua temática, o acanhamento que caracterizava o pen­samento filosófico até ontem. Consistem, em sua maioria,de críticas de pensamentos alheios. Ou, quando tratam deproblemas originais, tratam deles de maneira indireta: nãose escreve sobre o problema do outro, mas sobre o proble­ma do outro em Ortega. Mas essa inibição é progressiva­mente mais formal que essencial, e a temática serve de más­cara para pensamentos originais e, às vezes, poderosos. Oensaísta faz de conta que analisa Bergson, quando, na reali­dade, desenvolve um pensamento original sobre o conheci­mento. Assim surge uma literatura filosófica brasileira,imperceptivelmente: portanto impercebida.

A vivência do pensador filosófico no Brasil é portantoa da angústia do isolamento. Falta-lhe contato não somen­te com outros pesquisadores filosóficos, mas ainda com aliteratura em geral, em prol da qual a sua atividade se reali­za. Mas também esse isolamento está prestes a ser rompi­do. Uma colaboração consciente entre o pensamento teóri­co e a atividade literária criadora está surgindo em lugares

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isolados da cena brasileira, colaboração essa que deverámarcar o amadurecimento da literatura brasileira.

Tentei dizer, no início deste trabalho, que o conceito"vanguarda" é inaplicável à literatura brasileira da atualida­de. Tudo que se escreve é de vanguarda. Mas há um signifi­cado que permite o uso do termo "vanguarda", embora nãoseja esse o significado pretendido pelo título desta pesquisa.A literatura filosófica representa, em certo sentido, o passopreparatório para toda atividade literária, cultural, artística,consciente de si mesma. Neste sentido toda literatura filo­

sófica é de vanguarda. A modesta atividade filosófica noBrasil, da qual tentei dar um esboço muito superficial, é,neste sentido, a literatura brasileira de vanguarda. Mas, afi­nal, "vanguarda" é um termo militar e uma van;s;uardamodesta não exclui um exército poderoso a seguir-lhe ospassos. A civilização brasileira, que já alcançou alturas apre­ciáveis nos campos da música e da pintura, e que mesmo nocampo da literatura sensu lato tem realizações maduras, nãoterá encontrado a sua personalidade antes de criar sua lite­ratura sensu stricto, isto é, sua filosofia. E é para a formaçãodessa vanguarda, formação modesta mas promissora, que opresente trabalho quer chamar a atenção, contribuindo,assim o espera, para que essa formação se realize.

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Resenha

Vicente Ferreira da Silva: Obras Completas, VoI. I,Instituto Brasileiro de Filosofia, 1964.

A obra de VFS é constituída de uns poucos livros, deensaios publicados em revistas e jornais, e de notas nãopublicadas. O Instituto Brasileiro de Filosofia pretende reu­nir esse material e publicá-Io em dois volumes. O primeirovolume acaba de sair e inclui: (1) Ensaios filosóficos (publi­cados em 1948 pela IPE), (2) Exegeseda ação (publicada em1949 pela Livraria Martins Editora), (3) Dialética das cons­ciências (publicada em 1950 pelo autor), (4) Idéias para umnovo conceito do homem (publicadas em 1951 pela RevistaBrasileira de Filosofia), (5) Teologia e Anti-humanismo(publicada em 1953 pelo autor), e (6) Filosofia da mitologiae da religião (ensaios publicados em várias revistas). O livroobedece a uma ordem cronológica, e apresenta-se portantocaótico quanto à sua temática e mesmo quanto às linhasmestras do seu argumento. Representa uma fase do pensa­mento do A., portanto um fragmento de uma obra que éfragmentária em sua totalidade. Exige do leitor um esforçode integração e de sistematização, já que a morte não permi­tiu que o A., o faça. Mas uma leitura, mesmo superficial, dovolume ora apresentado convence imediatamente e demaneira violenta que estamos em contato com um pensa­mento de extrema originalidade e profundidade, e que esse

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esforço, embora penoso, precisa ser feito. A tareb é dificul­tada por dois momentos: o ardor do pensamento seduz oleitor e o arrasta consigo; e o estilo alterna entre passagens deinspiração poética e outras de um artificialismo exasperante.As considerações seguintes são resultado desse esforço deintegração e sistematização, são portanto parciais e represen­tam um único aspecto visto de um único ponto de vista.

A melhor avenida de acesso para um pensamento filo­sófico me parece ser a consideração da sua teoria de conhe­cimento. O A. fundamenta a sua teoria de conhecimentona ar1<Í.lisedo amor e do ódio. O amor é o clima do reco­nhecimento, o ódio é o clima do conhecimento no sentidoque a tradição ocidental dá ao termo "conhecimento". O

amor é o clima no qual admito o crescimento e o poder dooutro que amo. O ódio é o clima no qual procuro sufocar ooutro que odeio. O primeiro movimento do ódio é restrin­gir o âmbito do objeto odiado. É justamente nesse movi­mento que o outro se torna "objeto". No clima do ódioexisto num mundo constituído de objetos, cujos lugaresprocuro determinar sempre mais rigorosamente. Um deter­minado objeto está em determinado lugar e não pode estarem outro. É prisioneiro desse lugar, no qual o meu ódio odeterminou para diminuí-Ia e poder oprimi-Io. Um mundoconstituído de objetos aprisionados e oprimidos pelo ódio éum mundo logicamente conhecível. A lógica é, com efeito,o método do ódio na sua tentativa de oprimir, e, em últimaanálise, aniquilar o odiado: neste caso o mundo. O mundodos objetos pode ser manipulado para ser aniquilado. Aotransformar os objetos em instrumentos, aniquilo com efei­to progressivamente o mundo odiado, porque imprimosobre ele a minha marca e o torno mera sombra de mim

mesmo, isto é, "humanizo o mundo". A manipulação dosobjetos é conseqüência do conhecimento, e é portanto osegundo movimento do ódio ao mundo. O mundo atual datecnologia é o último estágio desse segundo movimento. Ao

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transformar o mundo em conjunto de objetos transformo­me em sujeito que transcende o mundo. O ódio cria por­tanto um projeto existencial no qual o sujeito se lança con­tra o objeto para aniquilá-Ia. Este projeto se chama:"história do Ocidente".

O clima do amor estabelece outros tipos de mundo.Esses mundos não consistem de objetos, mas de presenças.O outro amado está presente em tudo, e tudo evoca o seramado. Como a mulher amada está no lenço, na flor, nabrisa, no sol, assim está tudo em tudo no mundo que amo.Cada "coisa" revela todos os aspectos do mundo amado(Weltaspekte), e todo aspecto é uma presença divina, é umdeus. O mar está em todas as coisas e não somente naqueleobjeto "mar" ao qual o ódio quer restringi-lo. Todas as coi­sas evocam o mar, porque todas tevelam um aspecto domundo chamado Poseidon pelos antigos. Reconheço o matem tudo, porque é símbolo de Poseidon sob este aspecto.Um mundo assim constituído não pode ser conhecido nonosso significado do termo, porque o pensamento lógiconão se aplica a ele.

O pensamento simbólico que se desenvolve nesseclima não admite a divisão entre sujeito e objeto, entreconhecedor e conhecido. O homem está integrado nomundo, e, já que não o transcende, não pode conhecê-Io.Pode apenas reconhecer-se nele.

O ódio ao mundo que fundamenta a história do Oci­dente é resultado do mito da transcendência. Esse mito,

que nos vem da Bíblia e dos mistérios órficos, desvenda oaspecto (Weltaspekt) odioso do mundo. A revelação judeu­cristã revela o mundo como antivalor, como o "sacrificá­vel". O reino de Deus não é deste mundo, e a meta do

empenho humano é ultrapassar o mundo.Em conseqüência "temos" corpo e alma. O corpo é

tudo aquilo que rejeitamos e odiamos. A alma é o "salvá­vel". A história do Ocidente é a realização progressiva desse

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mito. Atualmente está se aproximando de sua realizaçãoderradeira. A "humanização" total do mundo será oconhecimento total e portanto a aniquilação dos corpos.Tudo será alma. A sociedade perfeita será pura contempla­ção dos instrumentos automáticos, será portanto o céu.Tendo sido esgotado o mito da transcendência, terá sidoalcançada aquela perfeição que acabará com o projeto doOcidente.

A revelação do aspecto odioso do mundo pelos mitoscristãos é uma revelação negativa. O ódio fez com que osdeuses se retirassem do mundo. Com o cristianismo

começou uma maré baixa dos deuses, que retiravam a suapresença do mundo. Águas que baixam revelam o fundolamacento do lago. Os deuses em retirada revelaram ofundo lamacento, material, do mundo. O mundo esvazia­

do da presença dos deuses, esvaziado portanto de sacrali­dade, revelou o seu aspecto odioso de profanidade. Esta éa revelação bíblica que o Ocidente realiza progressivamen­te. Desta maneira a própria retirada dos deuses constituiuma proximidade divina (Gottesnaehe), embora negativa.Porque também a Bíblia revela um aspecto do mundo,embora um aspecto negativo. Neste sentido também aBíblia atesta a proximidade de um deus. Também a Bíbliaé um mito autêntico, e estabelece um mundo como todomito. Mas sendo esse mito o da transcendência, estabeleceo mundo objetivo a ser aniquilado pelo sujeito. Neste sen­tido tem razão Nietzsche quando fala em "niilismo doOcidente".

O mito da transcendência pode ser chamado tambémde "mito do progresso", já que o progresso é o método doódio ao mundo. É por isto que apenas o Ocidente, realiza­ção do mito do progresso que é, tem a vivência da historici­dade. É um projeto linear e acabará quando tiver profaniza­do inteiramente o mundo odioso. Quando tiver eliminadoo último vestígio dos deuses.

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O mito do progresso faz com que vivamos sempre parao instante seguinte. Nenhuma das nossas ações é significati­va em si e por si, já que visa ao futuro.

Existimos num mundo de andaimes. Dada essa nossa

loucura não vivemos sensu stricto, já que todo instante visaao próximo, e nenhum tem significado. Somos seres aliena­dos, já que estamos em oposição ao mundo, e em oposiçãoao instante. Mas essa nossa loucura é inevitável, já quefomos lançados para cá pelo projeto do progresso, isto é,pelo mito do ódio que revela o aspecto profano do mundo.Em outras palavras: é inevitável que sejamos cristãos lança­dos como sujeitos em um mundo objetivo. É inevitável, anão ser que modifiquemos radicalmente o nosso conceitodo homem. Para tanto a contemplação de outros tipos deexistências e outros tipos de mundo pode ser proveitosa.Por exemplo, daquelas existências e daqueles mundos queos mitos gregos estabeleceram. São mundos do amor mar­cados pelo ritmo da circularidade do rito. Nesses mundos aatividade humana é ritual, é participação das festas semprerecorrentes que festejam os aspectos sacros do mundo. O A.no entanto não nos diz como podemos dar esse salto dotempo linear para o circular, do profano para o sacro, dopensamento lógico para o simbólico, do afastamento para aproximidade dos deuses. No fundo, não crê, ele próprio,nessa possibilidade. É pessimista. A perfeição se aproximainexoravelmente. O que podemos fazer é apenas esboçar ogesto da revolta.

Mas o gesto é tudo. Creio, no entanto, que a análisedo gesto (a meu ver a meta da filosofia do A.) aparecerá nosegundo volume da sua obra. É óbvio que o gesto é umproblema ligado intimamente ao da linguagem. De pro­pósito suprimi todos os argumentos contidos no presentevolume que tenham a língua por tema. Não devemosesquecer que a primeira preocupação do A. era lógica neo­positivista e análise da língua. Essa primeira tendência

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pervaga, subterraneamente, todo o seu pensamento, eprocura, em sua última fase, rearticular-se. Toda a sua filo­

sofia é uma filosofia do gesto in statu nascendi. }i que odestino não permitiu que se realizasse, calo-me a respeito.Calo-me, ainda, porque creio que tive certa influênciasobre esse desenvolvimento.

O esboço que dei é resumido e, neste sentido, falsificao pensamento, já que elimina, e eliminando distorce. Mas

deve ter se tornado óbvio ao leitor que se trata de pensa­mento poderoso e perigoso. Falarei primeiro do seu perigo.É perigoso, em primeiro lugar, porque despreza o intelectono sentido ocidental do termo, e é duplamente perigoso,porque o faz com um intelecto extremamente agudo. É odiabo em Fausto que aconselha: Verachte nur Vernunjt undWissenschajt, des menschen allerhoechste Krajt (desprezerazão e ciência, a suprema força humana). Em segundolugar, porque todo pessimismo desesperado é perigoso, jáque tende a paralisar ação e pensamento. Em terceiro lügar,porque alguns dos argumentos apresentados se prestam auma interpretação filo-fascista por espíritos politicamenteingênuos, e é preciso confessar que o próprio A. era ingê­nuo neste sentido. Não digo que um fascista possa jamaisassimilar o pensamento do A, já que fascismo pressupõe oufalta de inteligência, ou má fé patente. Mas digo que algunsaspectos do pensamento do A nasceram do mesmo húmusdo qual brotou o nazismo, a saber, o romantismo alemão

com todas as suas conseqüências nefastas. Estes três perigoscontribuíram para o isolamento do A em vida. Creio quedevem ser encarados e eliminados da nossa mente, depoisde refutados, para podermos entrar em conversação produ­tiva com esta obra.

Não cabe, em resenha, entrar em conversação como aesboçada. A meu ver, trata-se da maior contribuição brasi­leira para a discussão filosófica do Ocidente. É verdade quenão tenho suficiente distância da obra para poder julgá-Ia.

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Mas, quanto mais me afasto dela, tanto mais parece crescerem importância e beleza. Os seus defeitos, como aquelestrês perigos que mencionei, ou como o estilo e as palavrasdifíceis, ou como a aparente confusão de temas, empalide­cem com o tempo, e suas virtudes, como as profundas epenetrantes visões da nossa situação, ou como sua Íntimavibração com o mistério do mundo que nos envolve, oucomo sua força de tornar palpáveis as raÍzes mesmas donosso pensamento, resplandecem com o tempo. O A. noslança um desafio. Podemos (a meu ver: devemos) discordardele. Mas devemos igualmente aproveitar esse presente dos"deuses" ao nosso pensamento que é a obra de Vicente Fer­reira da Silva.

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Concreto - abstrato

Quando crianças, brincávamos esse jogo. Os poetasatuais continuam a brincá-Io. Formam, com essa brincadei­ra, a vanguarda daquela atividade lúdica chamada "civiliza­ção humana". O propósito do presente artigo é defender atese de que a poesia cria a civilização, e de que a poesia con­creta cria a civilização do futuro imediato. Os meus conta­tos com poetas concretos, e mais especialmente com o Sr.Haroldo Campos, me fazem crer, embora tenham sido con­tatos fugazes, que esses poetas estão quase conscientes dopapel que lhes cabe. Se o presente artigo contribuir para aconsciencialização desse papel, terá alcançado a sua meta.Mas, mesmo se falhar, se apenas provocar alguma reação namente dos poetas e seus leitores, dou-me por satisfeito.

Começarei por uma definição dos dois termos, comuma definição que estará em desacordo com os dicionáriosfilosóficos, mas que concordará com uma teoria que forma,a meu ver, a base inconsciente da poesia. Definirei os ter­mos "concreto" e "abstrato" como qualidades lógicas deconceitos. Direi que o conceito "Haroldo Campos" é umconceito concreto, e o conceito "poeta concreto" um con­ceito abstrato, porque o primeiro tem apenas um represen­tante, enquanto o segundo tem vários, embora talvez enu­meráveis. O conceito concreto é portanto uma classe de umúnico membro, e o abstrato tem vários membros que

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podem ser, por sua vez, classes. Assim, o conceito "HaroldoCampos" tem um único membro, que é o Sr. HaroldoCampos, o conceito "poeta concreto" tem vários membros,por exemplo, também o Sr. Décio Pignatari, e o conceito"poeta" tem vários membros que são classes, por exemplo,"poeta concreto", "poeta romântico" e "poeta alienado". Otermo "abstrato" pode ser portanto graduado, e o conceito"poeta" é mais abstrato que o conceito "poeta concreto".Em suma: de acordo com esta definição são conceitos con­cretos os nomes próprios como "Haroldo Campos" e "estacaneta", e são conceitos abstratos todos os demais nomes.

Esta definição está em desacordo com os dicionáriosque definem "concreto" como "realidade não abreviada emcontato ileso com a realidade total" (Hegel). (Escolhi depropósito a definição hegeliana, porque demonstra comodefinições podem obscurecer, em vez de iluminar, o termoa ser definido.) A tradição filosófica dirá, em outras pala­vras, que o conceito "Haroldo Campos" é abstrato, e queconcretas são as impressões que o Sr. Haroldo Campos mecausa. Mas a tradição filosófica é prisioneira de um círculovicioso. Porque essas impressões são abstrações da concreti­cidade que é o Sr. Haroldo Campos, por exemplo a impres­são "poeta concreto" que ele causa. Insisto portanto na defi­nição do concreto como nome próprio e da concreticidadecomo qualidade (lógica e existencial) que ao nome próprioadere.

A tradição filosófica afirmará que o nome próprio"Haroldo Campos" significa as impressões que aquele poetaconcreto me causa. Nessa afirmação a circularidade e aviciosidade do argumento me parecem patentes. Afirma,com efeito, em sua tentativa fútil de ultrapassar os limitesda língua, que o nome próprio significa aquilo que o nomepróprio causa, ou aquilo que causa o nome próprio é o queé aquilo que o nome próprio causa. Não pode haver maisbelo exemplo de uma roda gigante girando em ponto

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morto. Resumindo o argumento torturado, chegamos aoseguinte resultado: o nome próprio significa-se a si mesmo.E este é realmente o característico do concreto (tanto lógicocomo existencial): o concreto significa-se a si mesmo. Oconceito "Haroldo Campos" é concreto, porque significaHaroldo Campos, e o conceito "poeta concreto" é abstrato,porque significa algo além de si, por exemplo HaroldoCampos. Conceitos são significativos, apontam para algo.Conceitos abstratos apontam para fora de si mesmos, con­ceitos concretos apontam para dentro. A poesia concreta éconcreta porque e quando aponta para dentro de si mesma,porque e quando se significa a si mesma. Um poema con­creto é concreto porque e quando é, em sua totalidade, umúnico nome próprio, significando-se a si mesmo.

Esta definição da poesia concreta é de tremenda radi­calidade, e não sei se os poetas concretos se dão conta doquanto é radical e tremenda a sua tarefa. É radical a suatarefa, porque consiste na proclamação de nomes próprios,portanto na criação das raÍzes da realidade. E é tremendaporque essas raÍzes brotam do chão do nada, daquele chãoque faz tremer o poeta que o pisa. O poeta concreto, aoabandonar o chão firme repisado das abstrações, o chãosólido tradicional do significado externo, mergulha naregião misteriosa do vir-a-ser, para de lá voltar, tremendo,com novos nomes próprios, reféns do nada. Cada um des­ses nomes próprios novos, cada um desses "poemas concre­tos" novos, é uma conquista do intelecto criador ao caos donada, e enriquece o território da realidade. Assim, é o poetaconcreto a um tempo a abertura da realidade para o nada, ea defesa da realidade ante o nada que a cerca.

Criar realidade é uma atividade lingüística, já que con­siste na criação do concreto, que é o nome próprio novo. Apoesia concreta, que se sabe atividade lingüística, é portantouma criação autoconsciente. Sabe que criando língua estácriando realidade, o "concreto". As pesquisas lingüísticas dos

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poetas concretos são sintomas de consciência despertada.Mas ao ler os poemas concretos temos a sensação de umaforça refreada, de uma aventura tímida, de um avanço cheiode reservas. Embora conscientes da sua tarefa, parecem ospoetas concretos inibidos na sua tentativa de cumpri-Ia. Sejapor concessões que fazem aos que continuam presos aosconceitos abstratos, seja por receio de um mergulho definiti­vo no caos do nada, não queimam os poetas concretos aspontes que os ligam à terra firme do significado externo. Oresultado é, a meu ver, uma poesia híbrida que deixa apenasentrever a esperança daquilo que seria uma autêntica poesiaconcreta.

Baseando-me na "antologia noigandres 5" no "plano­piloto para poesia concreta", devo confessar que o que mechoca é a timidez tanto da teoria como da prática dos seusautores. Sem dúvida, descobriram eles um continentenovo, mas parece faltar-Ihes a coragem de colonizá-Io. Emvez de empenhar-se com toda energia em prol da língua,continuam a manter ligações com empenhos que já devemter reconhecido como superados. Não são suficientementeradicais, e não admitem portanto a língua como fonte darealidade. Os seus poemas são, em conseqüência, acanha­dos. Teorizam sobre artes gráficas, e praticam compromis­sos como "TOPOGRAMAS ", quando deveriam teorizarsobre a estrutura visual e auditiva das palavras, e quandodeveriam praticar o abandono de si mesmos à língua. Nãoobstante, é através de poemas como aqueles que podemosvislumbrar, embora nebulosamente, uma nova abertura danossa civilização já esgotada em tantos aspectos.

O processo civilizante pode ser encarado de três ângu­los: a partir da sua origem, a partir de sua meta, e de dentro.A partir de sua origem esse processo se afigura como deca­dência, a partir de sua meta como progressivo, e a partir doseu curso como abstração. Decadência, progresso e abstra­ção são os três aspectos da "histórià', e podemos dizer que a

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civilização decai de suas origens concretas e progride emdireção a suas metas abstratas. A civilização é uma conversa­ção que substitui progressivamente nomes próprios pornomes sempre mais universais e abstratos. Os nomes pró­prios, significando-se a si mesmos, estão cheios de significa­do, mas o seu campo é restrito. Quanto mais abstrato umnome, tanto maior o seu campo de significado, e tanto maisvazio. O processo civilizante é um avanço a partir da pleni­tude do significado em direção à amplitude do insignifica­do. Na história da civilização ocidental esse processo tevetrês fases, aproximadamente paralelas com as três "Idades"que nos ensinaram no ginásio: na Idade Antiga, partiu-sedo concreto dos mitos, de nomes próprios cheios de signifi­cado como "Iogos", ou "Adão" ou "Ahriman", e progrediu edecaiu em abstrações ocas como "lógica aristotélica" ou"antropocentrismo" ou "plotinismo". No fim da IdadeAntiga, a civilização tinha esgotado pela abstração os nomespróprios concretos dos mitos e estagnava na universalidadedas filosofias e religiões esotéricas. A Idade Média partiudo concreto da fé, de nomes próprios cheios de significadocomo "Deus" e "alma" e "salvação", e progrediu e decaiuem abstrações ocas como "prova ontológica" e "realismo" e"tomismo". No fim da Idade Média a civilização tinhaesgotado, pela abstração, os nomes próprios concretos dafé e estagnava na universalidade da escolástica. A IdadeModerna partiu do concreto sensorial, de nomes próprioscheios de significado como "pedra" e "queda" e "conheci­mento", e progrediu e decaiu em abstrações ocas como"antipróton" e "campo unificado" e "Indeterminabilidadede Heisenberg". No presente momento a civilização pareceter esgotado, pela abstração, os nomes próprios concretosdos sentidos, e estagna na universalidade dos conceitoscientíficos. É precisamente nesse momento que surge apoesia concreta. Surge portanto em "tempo de penúrià' ecomo esperança de uma nova abertura.

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Para a Idade Antiga a realidade se concretiza nos mitos,para a Idade Média na fé, para a Idade Moderna nos senti­dos. Para nós, geração a um tempo epigônica e pioneira, arealidade é problemática e a luta por um senso de realidadeé o tema das nossas vidas. A poesia concreta aponta paraum novo campo de realização: a língua. É na língua que elaprocura restabelecer o senso de realidade perdido. Numalíngua, bem entendido, que não seja um sistema de símbo­los significando algo externo, mas um sistema de nomespróprios cheios do significado de si mesmos. Se compreen­dermos a poesia concreta assim ela não é, afinal, algo tãonovo. A música, tal como vem sendo composta há pelomenos quatrocentos anos, é uma poesia concreta, porqueprocura a realidade dentro de um aspecto concreto da lín­gua. A música é um proclamar de nomes próprios, porquese significa a si mesma, e a música é uma atividade lingüís­tica, porque a sua matéria-prima é a língua falada despidade significado externo. E a pintura, tal como vem sendocomposta há poucos decênios, aproxima-se rapidamente deum estágio que pode ser chamado de "poesia concreta".Procura a realidade dentro de um outro aspecto concreto dalíngua. É um proclamar de nomes próprios, porque se sig­nifica a si mesma, e é uma atividade lingüística, porque asua matéria-prima é a língua escrita despida de significadoexterno. A vivência imediata de realidade que a grandemúsica proporciona, e a visão fugaz da realidade que algu­mas das novas pinturas proporcionam, testemunham umanova abertura da civilização, uma nova concreticidade.

Mas os poetas concretos dos quais trata este artigo sãomais ambiciosos que os músicos e pintores. Pretendem cap­tar a realidade na plenitude da língua. Pretendem reunirnuma única concreticidade o aspecto musical, pictórico econceitual da língua. Dou como exemplo o nome próprio"homemmoendahomemmoagem", criado por HaroldoCampos. O sussurrar musical desse nome quando lido em

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voz alta, a vivência angustiante dos "mm", quando contem­plado visualmente, e o significado conceitual dos nomes"homem", "moenda" e "luoagem" criam uma unicidadeconcreta que é um elemento da nossa realidade. Não direique os poetas concretos tenham alcançado a sua meta decriar realidade. Como já disse, parecem-me inibidos, cheiosde compromissos, e presos a abstrações da Idade Modernaultrapassada. Não me parecem totalmente autênticos noseu empenho em prol da língua. Ainda não surgiu entreeles nenhum Bach, e nem me parece ter surgido um Mon­drian entre eles. Mas não tenho dúvida em afirmar que elesplantaram uma semente da qual poderá brotar a árvore dofuturo. De que esta semente está sendo plantada no Brasil ésintomático o papel que este país está chamado a desempe­nhar no conjunto do Ocidente. Apelo portanto aos poetasconcretos que se tomem mais a sério a si mesmos e, apeloao público inteligente que se aprofunde com seriedade ehumildade nas tentativas tremendamente radicais que ospoetas concretos estão empreendendo. Estamos todos, nósOcidentais em geral e nós no Brasil em particular, empe­nhados na procura de um novo senso de realidade. Nessaprocura, os poetas concretos formam uma vanguarda, nãonecessariamente a única, nem necessariamente a mais bemsucedida, mas certamente uma das mais empolgantes. Se,com estas considerações, forneci a esses bandeirantes algu­ma arma nova na luta do intelecto contra o caos, o meuesforço terá sido amplamente recompensado.

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r'

o "lapa" de Guimarães Rosa

Ommm! Jóia no lótus! Hummm! Há centenas de anosmoem os moinhos de reza do Oriente, moem o trigo sagra­do da língua para reduzi-Io a pó, ao pó mágico do "iapa".Trituram os moinhos de reza a casca dura do conceito e libe­

ram a palavra da sua prisão lógica, para que a farinha mági­ca da língua se possa derramar, em torrente vivificante, sobreo espírito e sobre a alma e possa arrastá-Ios rumo ao silênciodo nirvana. A casca dura do conceito e a palha seca da gra­mática prendem e oprimem o pensamento. O moinho dereza, ao aniquilar o conceito e a gramática, permite ao pen­samento alcançar nas asas da língua os céus do nada. Purifi­cada das crostas do significado lógico, a língua desfralda assuas asas mágico-musicais, desfralda o "iapà'. Deixa as pla­nícies prosaicas da conversação para elevar o espírito aoscumes poéticos que se aproximam do firmamento silenciosodo Nada. Ommm! Mani padme! Hummm!

E nós, os ocidentais, para os quais em vão moem osmoinhos tibetanos, estaremos nós condenados à prisão per­pétua da gramática e do conceito? Não, temos GuimarãesRosa. Neste artigo pretendo comunicar aos leitores algo daforça elementar do "iapà' que se derramou sobre mim, vio­lenta e vivificante, quando fiquei exposto, há poucos dias, aGuimarães Rosa. Acabo de publicar um livro, Língua e Rea­lidade, no qual abordo, timidamente, o problema do "iapa".

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Esse livro era a razão ostensiva do meu choque com Guima­rães Rosa. A razão profunda é a corrente majestosa da línguaportuguesa, contra a qual ambos nadamos, embora ele ofaça de maneira gloriosamente produtiva, e eu de maneiramodestamente fragmentadora. Convidou-me GuimarãesRosa para uma aliança neste esforço, e aceitei o convite,como a toupeira (ou "taIpa", como diz ele) aceita a aliançacom o vulcão no seu esforço contra a crosta terrestre. O pre­sente artigo quer ser a primeira contribuição a essa aliança.

A língua portuguesa em seu estágio atual e tal como estásendo falada, escrita e pensada no Brasilofereceum espetáculosingular no conjunto das línguas do Ocidente. É uma línguaneolatina, o que equivale a dizer que é uma corrupção bárbarada língua latina. Isto a distingue das línguas germânicas e esla­vas, que brotam diretamente do húmus lingüístico sem terempassado pelo banho purificador do latim e pela decadência vul­garizante da migração dos povos. Mas o português se distinguedas demais línguas neolatinas por ter sofrido um segundo pur­gatório no curso do seu avanço. Purificou-se no Renascimen­to, quando todas as línguas neolatinas (com exceção talvez doromeno) derrubaram finalmente a barreira do latim e começa­ram sua marcha vitoriosa para um desenvolvimento indepen­dente. Mas recaiu na barbárie da vulgaridade e do preciosismodepois de um breve florescimento. No instante do seu emergirdesse seu segundo purgatório Guimarães Rosa está à espreitapara captá-Ia. O espetáculo é empolgante.

Para compreendermos o que acontece, comparemos oportuguês com outras línguas. O francês, herdeiro aparentedo latim, vem reconquistando, há pelo menos quatrocentosanos, o terreno da clara e distinta beleza estrutural do pen­samento latino. O tecido da língua francesa, tendo integra­do em si os elementos bárbaros e latinos, expande-se siste­maticamente em largura e profundidade, para submeterterritórios sempre mais amplos à sua ação ordenadora.Ciência e filosofia, poesia e teologia submetem-se à estrutura

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cristalina da língua francesa e ad~ptam-se a ela. Os intelec­tos que participam da conversação francesa ou se rendemao seu espírito, ou se desfazem, como Beckett, Artaud eIonescu, em salada de palavras. O alemão, cujas fontes bro­tam diretamente do fundamento pré-histórico da língua, ecujas palavras estão carregadas da penumbra misteriosa quea proximidade da origem lhes proporciona, inunda a con­versação ocidental com seus conceitos e suas formas grama­ticais dificilmente penetráveis. Surge, graças a essa língua,um novo tipo de filosofar, um novo tipo de poesia, umanova teologia. Os intelectos que participam da conversaçãoalemã, imbuídos como são do lusco-fusco dessa língua,encontram um labirinto de significados em toda direçãoque escolham. O russo, herdeiro tardio do grego, irrompeudramaticamente há pouco mais de cem anos da crisálida deum patois humilde, um patois que tem o aroma da terra,para resplandecer em forma de poesia lírica, no romance eno teatro. Mas a sua força criadora, com seus verbos plásti­cos, seus prefixos multiformes e sua melodia a um temposuave e vigorosa, ainda não se apoderou de todos os terre­nos do pensamento, e a rigidez pedante da nova ortodoxiaque o oprime dificulta o seu avanço.

O português ressurge do seu sono de duas direçõesabsurdamente incongruentes: do sertão e das bibliotecas. Écomo se tivessem guardado a língua de Cícero e de Camõessimultaneamente em estufa e em geladeira para conservá-la.No sertão o português retomou contato com a natureza brutae, com a assistência de elementos índios e bantus, ensaioucomo que uma terceira primitividade. Nas bibliotecas iniciouo português essadança formalista em redor de si mesmo, esseminuete narcisista que o caracterizava até um passado recen­tíssimo que resultou na maré dos estudos gramaticais e retóri­cos, sinais da esterilidade. Agora os dois braços do rio portu­guês estão convergindo, tendo à margem direita os camposgerais do pseudoprimitivismo, à margem esquerda a Serra do

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Preciosismo, e, à terceira margem do rio, Guimarães Rosa.Graças a ele o português está adquirindo, a olhos vistos, ascaracterísticas de língua poética, filosófica e teológica, paraparticipar doravante da conversação do Ocidente.

Neste esforço criador Guimarães Rosa se apóia tantosobre o sertão como sobre a biblioteca. Viaja com osvaqueiros em busca de palavras e formas. Dorme com osbezerros para captar os ruídos e as imagens brutais que ten­dem a realizar-se na linguagem sertaneja. Sorve a plenitudedas vogais e mastiga a dureza das consoantes para apalpar amatéria-prima da língua.

Mas, simultaneamente, mergulha nos compêndios,anota e compara formas da gramática latina, húngara, sâns­crita ou japonesa para penetrar o tecido da língua e desven­dar-lhe a estrutura. E, tendo assim reunido a massa viva epalpitante da língua, põe-se a amassá-Ia com ambas as mãospara dar-lhe consistência e forma. Nenhum truque, nenhumartifício, nenhum golpe baixo estão proibidos nesse catch ascatch can, nessa luta livre do espírito criador com o seu mate­rial, a língua portuguesa. A ingênua onomatopoesia entranesse jogo ("berberro"), e a falsa etimologia ("equiparado =

parado em cavalo"), e uma sintaxe ad hoc ("pois é não?"), e obalbuciar ("lua luala"), e a subjetivação heterodoxa ("uru­buir"), e um filosofar sub-reptício ("fazia vácuos"), e saltosabruptos de camadas de significado ("Damadossola = damada sala, Utrecht = o trecho"). E todas as suas capacidades par­ticipam desta luta: os sentidos, o sistema neuro-vegetativo, ointelecto, a sensibilidade, a intuição, o palpite, o espanto reli­gioso. Surge, desse esforço inaudito, uma torrente de línguaque é o português do futuro.

Essa nova língua chega até nós em forma de contos eem forma de um romance. Mas nós, os interlocutores deGuimarães Rosa, temos por obrigação lançar mão dessa lín­gua em novos contextos, se quisermos continuar a conver­sação por ele iniciada. Ela está à nossa espera para que dela

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façamos uso em novos campos de significado.' Como exem­plo de seu destino possível cito o título e a primeira palavrado romance Grande Sertão: Veredas e "Nonada". Proponho,neste exemplo, traduzir estas palavras para o campo daespeculação existencial, tão característico da atualidade.

Traduzo Grande Sertão: Veredas para o alemão por Gros­

sesRolz: Rolzwege para forçar uma ligação entre Heidegger eGuimarães Rosa. "Holz" é uma palavra antiga alemã quesignifica "florestà', mas também "madeirà' e, com pequenosalto, "matéria-primà'. "Holzwege" são veredas sem rumo,veredas frustradas. E retraduzo Grande Sertão: Veredas para oportuguês por: "Grande matéria-prima: esforço frustrado".A partir dessa retradução é possível construir toda umaontologia que estaria, conforme creio, dentro do espírito deGuimarães Rosa. E proponho uma análise da palavra"Nonadà' que aponta os seguintes horizontes: "Não nadà',"Não ao nadà', "Não há nada", "No nadà', e finalmentenon rem natam. A negação do nichts heideggeriano e do"néant" sartriano é o ponto de partida do Grande Sertãocom suas veredas. E traduzo a frase heideggeriana Das Nichtsnichtet (o nada nadifica) para a língua de Guimarães Rosa:"Nonadà'. Assim, creio, devemos manejar a arma poderosaque Guimarães Rosa nos confia.

Mas será que Guimarães Rosa está construindo a sualíngua para as finalidades que acabo de propor aos leitores?A resposta é um enfático "nonada".

Porque utilizando a língua para a especulação filosóficaestaremos engrossando as fileiras dos hermógenes, estare­mos hermetizando a língua. E é justamente contra essa her­metização, essa intelectualização e conceitualização queRiobaldo luta. Hermes, o pai dos hermógenes, é o intelectoensimesmado, fechado hermeticamente sobre si mesmo, é odemo contra o qual Riobaldo lança o desafio do nonada.Há um profundo antiintelectualismo nos esforços lingüísti­cos de Guimarães Rosa. São esforços dirigidos contra a

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língua, esse intelecto palpável. Trata-se de um violentarfurioso da língua, de um triturar e um moer da língua, por­que a língua, sendo intelecto, é o demo. O pacto que Gui­marães Rosa assinou com a língua no trivium do grandesertão, ele o usa para destruí-Ia. A força diabólica da língua,pela qual é possuído, ele pretende usá-Ia como exorcismo. Ese nós, persuadidos por ele, nos entregamos a ela, encanta­dos, estaremos nos entregando ao diabo.

Mas será esta toda a verdade? O nome Riobaldo o

nega. Qual rio, lança-se contra o intelecto, mas lança-sedebalde. O seu antiintelectualismo está frustrado. É ele

próprio invadido pelo doce veneno da língua. O próprioRiobaldo é um hermógenes disfarçado. E a dupla negaçãodo nonada é uma afirmação dialética, tanto do intelectocomo da "intuição", tanto da língua como do silêncio,tanto de Deus como do diabo. A impossibilidade terrível dedistinguir entre ambos, e o adorar dialético, o "Diadorim"de ambos, é o tema fundamental da atividade criadora de

Guimarães Rosa, como o é de todo espírito imerso em lín­gua. A nova língua que jorra de Guimarães Rosa é uma dia­doração que é um invocar, um provocar e um evocar doinarticulável. É portanto equívoca essa língua, e justamentepor isto uma língua fértil em possibilidades futuras.

Essa dupla adoração (de "ad-orare" = "falar em direçãode"), essa oração hermafrodítica, que tem algo de Hermes ealgo de Afrodite, e que Guimarães Rosa chama de "Diado­rim", os tibetanos chama de "iapà'. Como os moinhos dereza elevam o espírito rumo ao nada pela trituração siste­mática da língua, assim o nosso espírito é libertado do jugodo significado pela diadorim da língua de Guimarães Rosa.Ele destroça em nós as algemas do conceito e da gramática,e abre uma abertura para o nada pelo leve sussurrar dasvogais e o suave deslizar das consoantes. É a partir dessaabertura que poderemos continuar a conversação portugue­sa rumo ao inarticulável. Ommm! Diadorim! Humm!

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Do poder da língua portuguesa

I- Da navalha de Occam

A nova velha história de Guimarães Rosa, "Fita verde

no cabelo", é uma peça brilhante, não no sentido gasto,cansado e empoeirado que a palavra "brilhante" tem naconversa fiada inautêntica, mas no sentido mineralógicoda palavra "brilhante". Assim, mineralogicamente, peçoque seja considerada pelos leitores. É produto da açãoabrasiva de um intelecto e uma sensibilidade aguda sobre omineral quebradiço e traiçoeiro da língua portuguesa. Odiamante duro da conversação, quase irreconhecÍvel den­tro da formação geológica cinzenta da conversa fiada,transformou-se, graças a essa ação abrasiva, no brilhanteque o leitor vê, e cujas cores mudam, perturbadoramente,de acordo com a luz com a qual o leitor o ilumina, e deacordo com a versão à qual o leitor o submete. O processotem portanto quatro fases: a fase bruta, do diamante den­tro da sua formação, a grande conversação portuguesa; afase ingênua, do garimpeiro à procura do diamante, Gui­marães Rosa o bandeirante; a fase técnica, do talhado r atrabalhar o diamante, Guimarães Rosa o artífice; e a fasefinal, do brilhante a serviço do joalheiro, a grande conver­sação portuguesa enriquecida. O presente artigo pretendeqirigir a atenção para a terceira fase. Submeterá a tese de

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que o instrumento usado no talhar do diamante é a nava­lha de Occam.

Entia praeter necessita tem non sunt multiplicanda. (Asentidades não devem ser multiplicadas desnecessariamen­te.) Que arma terrível é a navalha de Occam, se brandidadentro da conversação portuguesa. O uso luxuriante dosinônimo e a preciosidade da forma gramatical caracteriza­va até há pouco, e caracteriza, levemente disfarçada, atéhoje a prosa portuguesa. Essa flora tropical de cipós e para­sitas sufocava, como ainda sufoca, as "plebeinhas flores"das palavras e das formas honestas. E, sufocando as pala­vras e as formas honestas, sufoca os conceitos e os pensa­mentos honestos. A força primordial da palavra autêntica,e o poder revelado r da forma autêntica, ficam quase intei­ramente encobertos pela selva intricada da desonestidadeestilística. Guimarães Rosa, brandindo impiedosamente anavalha de Occam, desvenda as fontes da língua portugue­sa e nos força a encarar o nada do qual ela brota. Ressur­gem, com impacto brutal, do colo escuro do nada, a vovó,a sua linda netinha, e ressurge o próprio Lobo. Estamossendo mergulhados para dentro de uma daquelas situaçõesprimordiais das quais fomos projetados. Tudo "era umavez", tudo é redescoberto como eterno retorno, se elimina­mos a conversa fiada pretensiosa que pretende encobrir omito. A vovó, Chapeuzinho Vermelho e o Lobo estão aí,dentro da língua portuguesa, dentro do núcleo do nossoEu, portanto encobertos tão-somente pelos conceitos e ospensamentos falsos e ocos, "que a gente não vê que nãosão". Tendo rasgado a falsidade do estilo, Guimarães Rosarasgou o véu que tapa nossa visão da situação existencialdentro da qual fomos jogados. Força-nos a ter medo doLobo.

A clara noite desse medo, dentro da qual GuimarãesRosa nos coloca, deve a sua clareza à sua honestidade estilís­tica. Com efeito, ao contemplarmos o conto, sentimos

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como honestidade estilística e honestidade existencial seconfundem.

Linguagem honesta são pensamentos honestos, e pen­samentos honestos são o confronto honesto do intelecto

com o nada que o cerca. Linguagem honesta é portanto aabertura do intelecto para o nada, é a resolução do intelec­to para a morte, para "o medo do Lobo". E é somente den­tro desse medo, alcançado graças à honestidade lingüística,que o intelecto "tem juízo pela primeira vez", isto é, que ointelecto se torna livre. É somente dentro desse medo que ointelecto pode exclamar: "Venha, Lobo!"

A simplicidade ingênua do estilo do conto é, no entan­to, uma simplicidade que nasce da multiplicidade, e é ingê­nua porque é nova. É por isto que Guimarães Rosa chama ahistória de "nova velha". Para ilustrar esse fato, permitamque conte uma lenda. Quando foi destruído o templo doSenhor em Jerusalém pelas legiões romanas, os anjos doSenhor carregaram as pedras para Praga e lá reconstruíramo templo, mais tarde conhecido por templo "velho-novo".'" T lh " / I ) c . 'd " , . " / tve o-novo Ia t-neu 101reconstrlll o, em memona la-

tnai) do templo primitivo.Assim Guimarães Rosa reconstrói, com as pedras velhas

da língua portuguesa, o velho mito do Chapeuzinho Verme­lho, destruído pela conversa fiada, constrói um "novo-velho"mito. E, já que é autêntica essa construção, a qualidade do"novo-velho" permeia toda construção gramática, informatoda palavra do conto. Toda forma gramatical, toda palavravibra com essa novidade velha, com essa antigüidade revolu­cionariamente nova. As palavras readquirem a força invoca­dora que lhes é própria originalmente, como por exemplo "orepentino corpo", e as formas o seu poder ordenado r da rea­lidade, como por exemplo "quando a gente tanto por elaspassa". Mas readquirem essaforça e essepoder "em memória"da força e do poder primitivo. A velha situação mítica ressur­ge, mas ressurge metamorfoseada. Justamente por ser tão

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velho o mito do Chapeuzinho Vermelho, é tão radicalmentenova a história da Fita-Verde. Justamente por ser tão velha apalavra "de repente", é tão radicalmente nova a palavra"repentino corpo". Justamente por ser tão velha a forma"passar tanto", é tão radicalmente nova no presente contex­to. A velha situação mítica, invocada e reconstruída, é nossasituação existencial de aqui e agora. Ao pôr a velha situaçãopara cá (herstellen, poiein), Guimarães Rosa se revela "poetà':cria a situação do aqui e agora. E o mito diz respeito, "repen­tino", não ao ciclo das gerações (kyklos tés genéseos) que sãoeternamente engolidas pelo Lobo para sair eternamente desua barriga, mas diz respeito ao Lobo que está dentro danossa barriga para devorar-nos, de dentro para fora, definiti­vamente. O mito de Guimarães Rosa, justamente por ser ovelho mito de Chapeuzinho Vermelho, é o novo mito deFita Verde, e o medo do Lobo, justamente por ser a velhaangústia da reencarnação, é a nova angústia da morte.

E justamente por ter sido tão autenticamente "desco­bertà' a velha história, é tão autenticamente "inventadà' ahistória nova. Saiu de lá, com a fita verde inventada nocabelo.

Na literatura abundam mitos ressuscitados. São outras

tantas falsidades. Correm, sombras, empós do mito. Mas ahistória de Guimarães Rosa sai atrás de suas asas ligeiras,porque ela não fala do mito, ela fala o mito. Toda palavra etoda forma da história faz parte do mito, é palavra e formamítica, porque não só a história, ma toda palavra e forma énova-velha. O conto conta, não algo que lhe é estranho eexterno, mas conta-se a si mesmo. O Lobo não está somen­te dentro da avó, mas está dentro de toda palavra e dentrode toda forma. A partir da primeira palavra do conto oLobo já está lá, nenhum, desconhecido nem peludo, e aavó, a partir da primeira palavra do conto, já não está maislá, sendo que demasiado ausente. O conto todo não fazmais que desenvolver o seu próprio projeto, já contido no

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seu título, brota organicamente qual semente que se desen­volve em planta. O próprio estilo é o conteúdo do conto, eo conteúdo do conto é o seu estilo. É por isto que todapalavra e toda forma do conto já são o conto todo, e é porisso que o conto todo pode ser considerado como umaúnica palavra: em breve, um mito.

Os mitos brotam da proximidade do nada. Surgemnaquele ponto, no qual o intelecto se choca contra o nada. Ochoque do intelecto contra o nada resulta num grito deespanto, que é o mito. Esse grito de espanto arranca comoque pedaços ao nada e os lança para dentro da conversação,para que esta deles se apodere. A história de Guimarães Rosaé um grito de espanto assim, um grito de espanto ante oLobo. Espanta Guimarães Rosa que, embora tenham oslenhadores exterminado o lobo, no curso dos últimos dez milanos, nada tenha perdido o Lobo do seu terror primitivo. Eesse espanto problematiza todo aquele enorme processo cha­mado "progresso". O mito da Fita Verde é a resposta dohomem angustiado à absurdidade desse "progresso". É umaresposta autêntica, porque haurida nas fontes da língua.

Mas há um elemento dentro da simplicidade ingênuada história, que mitiga a angústia e torna diáfano o mito.Esse elemento é a sua ironia. Embora Guimarães Rosa este­

ja empenhado no seu conto, não está por ele englobado.Uma parte da sua existência transcende o conto. Conservauma distância irônica, uma distância contemplativa. E essaironia, ela também, não pervaga somente o conto todo,mas permeia toda palavra e toda forma. É graças a essa iro­nia que o mito não é nem novo, nem velho, mas novo­velho. Falta-lhe a qualidade do engagement total, da fé abso­luta. Embora essa ironia mitigue a angústia da morte,intensifica a absurdidade da situação existencial na qual omito se deu.

Porque demonstra que a simplicidade ingênua da his­tória é uma simplicidade sem fundamento (bodenlos), e

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uma ingenuidade sofisticada. Esta a dicotomia da situaçãode Guimarães Rosa, que é a situação de todos aqueles quese negam a decair na conversa fiada: a impossibilidade irô­nica de distinguir entre a avó e o Lobo, e a falta conseqüen­te da fé em ambos. E essa profunda dicotomia, essa profun­da tragédia da nossa geração, ela também se espelha emtoda palavra e toda forma do conto. É que Fita Verde nãosó se espanta, mas também se entristece de ver que perderaem caminho sua "grande fita verde".

Como vêem os leitores: o mito de Guimarães Rosa é

um mito que chora a morte do mito, e não a morte de umDeus. É o mito da ironia.

Eis o poder tremendo da língua portuguesa: aplicandocontra ela a navalha de Occam, limpando-a das impurezas daconversa fiada, do preciosismo e do soit-disant realismo, elabrilha e resplandece com aparente lucidez e profunda opaci­dade. Ela, a língua portuguesa, justamente por ter sido tãoabandonada, abusada e estrangulada no passado, rende-se aquem dela se aproxime autenticamente e desvenda a quemdela se apodere aquilo que chamamos de "realidade". Umpedaço dessa realidade brilha na história de Guimarães Rosa.Quem ler atentamente o conto, quem se render à magia dassuas palavras e formas, captará algo dessa realidade. E aqueleque não conseguir captá-Ia, que diga que são rebuscadas eartificiais as considerações desenvolvidas neste artigo. Terárazão em afirmá-Io, do seu ponto de vista. Porque, para podercaptar as vibrações misteriosas da língua, é preciso ter umacapacidade toda especial, por que não chamá-Ia de "graçà'?Quem tem o dom dessa graça, escutará o murmurar podero­so da língua portuguesa numa pequena história aparentemen­te despretensiosa como "Fita Verde", e para quem não a temtodos os tomos da literatura do mundo não revelarão o mito

mestre, o mito dos mitos, que é a língua.

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11 - Da flauta de Pã

A natureza, aquele conjunto vivo de coisas vivas e mor­tas que os gregos chamavam de physis, respira ritmicamen­te. As ciências naturais estão dedicadas ao esforço de desco­brir esse ritmo, essas "leis que regem a natureza", etransformá-Ia, destarte, de deusa em serva. Essa transforma­ção tem duas conseqüências inesperadas: mata a natureza,que doravante se torna conjunto morto de coisas vivas emortas, e aliena o homem da natureza. Os gregos arcaicos,inspirados pelas musas, conheciam o ritmo da respiraçãosem recurso às ciências, porque vibravam em simpatia comele. Era o ritmo musical, o ritmo das musas, que regia a res­piração da natureza. Era um canto esse ritmo, e a naturezapor ele era encantada. Os deuses e homens que cantavam ocanto, bocas das musas que eram, eram encantados eencantadores como a natureza da qual brotaram e a qualcantaram. O canto suspirado por Pã na flauta, o canto cho­rado por Orfeu e dançado pelas bacantes, o canto da fugapânica, da harmonia órfica, da síncope dionisíaca, estaseram as "leis que regiam a naturezà'.

Pitágoras tentou formulá-Ias em números mágicos einiciou assim a longa caminhada a partir da flauta de Pã atéà equação maxwelliana. Mas surge, ainda assim e de vez emquando, um cantor entre nós e retoma a flauta de Pã, aban­donada e escondida no vale do Sirimim, e, de repente, vibra­mos nós, os seres cientificamente alienados, com a respira­ção rítmica da natureza rediviva. "As garças" de GuimarãesRosa, o conto-canto que acompanha este artigo, é umaredescoberta da flauta de Pã na forma da língua portuguesa.É um conto musical, inspirado pela musa chamada "língua",que canta a espiral de uma alta saudade: os círculos crescen­tes da natureza viva. O presente artigo é um convite ao leitorpara contemplar o poder musical da língua portuguesa quejorra daquela boca das musas que é Guimarães Rosa.

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Há um personagem no conto que abre uma fenda na suaconstrução compacta: o "entendido". É um intruso do mundo"sujeitiforme" (Vicente Ferreira da Silva) dentro do mundo

mágico do vale do Siri mim, e assume uma posição irônicadentro dele. O presente artigo tem o dever ingrato, mas neces­sário, conforme creio, de assumir para com o conto a posiçãodo "entendido". O impacto do conto é direto e vivencial, é"denso" (dicht) e "poético" (Dichtung). A crítica afrouxa a den­sidade, traduz o conto da camada vivencial para a intelectual eo integra na grande conversação que somos. Dentro dela ele sepropaga em busca da imortalidade. Diante do olhar crítico a

inspiração poética se torna transparente e os fios do seu tecidoaparecem: são palavras e formas gramaticais, e o poeta é umcriador e ordenador de língua. "As garças" são um hino da lín­gua portuguesa em louvor da língua portuguesa, e, ao enaltecê­Ia engrandecem-na produtivamente. Guimarães Rosa ressusci­ta a natureza porque a cria com seus bichinhos se-mexentes,com suas garças em-pé-zinhas, com suas infundadas urupucas.A natureza vive, é nova, porque vivem, são novas as palavras eas formas que Guimarães Rosa cria. Criando língua, cria natu­reza, e, louvando a natureza, louva a língua por ele criada. Anatureza é um subproduto da língua, e o vale do Sirimim é umsub-produto da língua de Guimarães Rosa. Criticando a lín­gua de Guimarães Rosa, estaremos fazendo "ciência natural"

num sentido ontologicamente mais imediato que pelo sistemada física ou biologia. É lingüisticamente que compreendere­mos os discardumes de peixes, e não ecologicamente, e é lin­güisticamente que compreenderemos as graças nivais, e nãomecanicamente. A natureza é regida primariamente pela poe­sia, e só secundariamente pela matemática, essa bisneta da poe­sia. A função ontológica primordial da língua salta aos olhosem "As garças".

Setentrionais, vindas das regiões do sete e três, são asgarças brancas, têm outra espécie de recado. São as aves dodestino. Já são conhecidas nossas.

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Juntas aparecem, de jusante, no mito de Íbico, ano porano, quando os jogos olímpicos das nossas vidas se travam.A espécie de recado que têm é a mensagem pitagoréica daregra, da ordem, do logos. São os legisladores. Seus bicos,pontuais, marcam as horas no relógio das nossas vidas.Nigra (sedfirmosa) persegue-Ihes as sombras no chão, ela ­tão negra; elas - tão brancas.

Sirimim, o nosso vale, está situado entre a brancura

das garças que nos visitam porque querem, e a negrura docachorro. As garças são de um branco indubitável, formamo horizonte indubitável do vale. Nigra, que é uma bondosacachorra, late, aborrecida, ante essa falta de dubiedade. Mas

há, no nosso vale, um homem que anda comendo bichobranco, e há o horrível e voraz bicho garceiro. Estes, ohomem e o bicho, destroem a imaculada e virgem brancu­ra, a qual, morrendo, fura o olho de Nigra, já quase cega. Ohomem comedor e o bicho voraz eliminam os limites do

nosso vale. Morreram as garças, demasiado brancas, e agoraestá muito escuro. (Ou, como diz Nietzsche, cada dia setorna mais frio.) Este o conto do nosso vale, este o conto de

"As garças" e das nossas desgraças.

As leis que regem o vale do Sirimim, e junto das quaisGuimarães Rosa vai embora, horizonte acima, são as regrasda língua portuguesa. As próprias garças, legisladoras, nãopassam de portadoras de um recado setentrional, da har­monia mágica da língua. Guimarães Rosa, criador e legisla­dor do Sirimim, a ela está subordinado. De que lugar, pelorio, do norte, vem ele? Do bosque de Pã, onde nasce a lín­gua. Lá, na fronteira entre a angústia pânica e o mistério dodeus, surge o logos, surge o sete e o três sagrado, surge ocontar de contos. O sussurrar pânico que Guimarães Rosaausculta, com suas conotações fastas e nefastas, é o murmu­

rar denso e cheio de significado que um desenvolvimentomilenar transformou nas proposições claras e isentas de sig­nificado da semântica, linguagem na qual a ciência conta os

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seus contos. Ambos, Guimarães Rosa e a ciência, vêm domesmo bosque, ambos são regidos pelas mesmas regras,ambos contam os mesmos contos. Mas Guimarães Rosa

mora perto do bosque e conhece a angústia pânica de perto.A ciência (o comedor de garças) e a matemática (o bichogarceiro), aparentemente abrigados pelo vale, ignoram oupretendem ignorar suas fontes. A realidade na qual nosconta Guimarães Rosa é portanto, conscientemente, a reali­dade sorvida na fonte da língua, enquanto que a realidadeda qual a ciência nos conta se dá ares de ser mais "realida­

de". Enganados pela ciência somos tentados a afirmar que ovale do Sirimim é fictício, enquanto que os mundos da físi­ca e da biologia são "dados". Justamente o contrário é a ver­

dade. O vale do Sirimim é "dado" pela língua, a qual, paradar-se, abriu uma boca chamada Guimarães Rosa, enquan­to que os mundos das ciências são abstrações fictícias dedados como este. A natureza das ciências naturais é umaabstração da natureza de contos como este, e as diversasespécies e gêneros da biologia são abstrações dos bichinhosse-mexentes. É por isto que a natureza das ciências é morta,e as espécies e gêneros da biologia são mortos, enquantoque o vale do Sirimim vive. Mas as regras que regem ambasas naturezas são as mesmas; são as regras da língua. No valedo Sirimim essas regras funcionam vitais e palpitantes, por­que jorram diretamente do centro da língua portuguesa.Nos mundos das ciências funcionam cansadas e repetitivas,porque provêm de uma linguagem abstrata e universal queé a matemática pura. A matemática é uma língua que com­prou sua universalidade pelo preço da abstração, pelo preçodo esvaziamento. As línguas vivas que lhe servem de fonte,e das quais o português é uma, crescem e se desenvolvem àsua revelia. O conto de Guimarães Rosa é uma bela ilustra­ção desse crescimento e desenvolvimento. E é tanto maissignificativo, por representar um crescimento e um desen­volvimento conscientes.

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Os poetas são os criadores de palavras e regras, portan­to os criadores de natureza. Tendo criado a palavra "jere­miar", Guimarães Rosa criou o conceito, e, tendo criado oconceito, criou o fenômeno que o conceito "intende". Osbiólogos e os psicólogos virão, no seu tempo, para inseri-Iodentro da sua realidade. Mas os poetas criam sem saber oque fazem. São instrumentos inconscientes da língua. Gui­marães Rosa é a língua tornada consciente de si mesma e dasua função produtora da realidade. Em Guimarães Rosa alíngua portuguesa despertou para si mesma. Talvez tenhaacontecido algo parecido com o inglês em Joyce, mas ofenômeno, por ser português, não admite paralelos. Emcontos como ''As garças" a língua portuguesa cria conscien­temente, se quiserem cerebral e metodicamente, realidadenova. Cria essa realidade dentro do projeto que lhe é pró­prio, isto é, à maneira portuguesa, mas ao mesmo tempovira-se contra si mesma, modifica-se e expande-se, é umalíngua nova. E vejam como é essa realidade que surge desseesforço reflexivo da língua: cheia de significado estético eético, uma realidade bela e empolgante.

A beleza do vale do Sirimim dispensa comentários quea diminuiriam, em vez de ressaltá-Ia. Mas a sua qualidadeética quer ser comentada. Os dois pólos éticos da realidade,o destino indubitável, as garças, e a dúvida chão, Nigra aliberdade, heimarmené portanto e hybris, formam as duascolunas autênticas da situação humana. Quando rui umapela ação destruidora da inautenticidade, arrasta consigo aoutra. A tentativa inautêntica de destruir a necessidade,empreendida pelos comedores de garças e assistida pelo mis­terioso bicho garceiro, implica a destruição da liberdade. Oscomedores de garças, nós os conhecemos bem, são os racio­nalistas que não sabem que carne de garça não presta, comranço de peixe. Mas o bicho garceiro, que não conseguedevorar a garça, arrancando-lhe apenas a asa, essa força anti­racional e bárbara, este, por ser menos conhecido, é mais

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perigoso. A aliança entre o racionalismo e anti-racionalismo,que é resultado da perda da fé, e que torna cega a liberdadetanto quanto mata a necessidade, caracteriza nossa situaçãomoral, caracteriza nosso vale. Duvido que Guimarães Rosaconcorde inteiramente com esta interpretação da mensagemética do seu conto, mas, talvez malgré lui, me parece ser esteo recado que nos traz das fontes da língua. A conversaçãoque ampliará o conto desvendará essa mensagem de manei­ra muito mais satisfatória que este artigo curto pode tentar, eque esta posição engagée pode vislumbrar. Porque, comomensagem poética que é, tem ela muitas facetas.

Futuramente, e com o correr da conversação, o conto"As garças" se tornará parte integrante da conversação por­tuguesa. Será parte da realidade portuguesa, e como talparte da realidade do Ocidente. Futuras mentes por eleserão parcialmente informadas e o conto agirá, destamaneira, e em muitos níveis, em prol deste grande processolingüístico chamado "pensamento". Mas hoje, quando pelaprimeira vez penetra o real a partir do potencial, podemossentir-lhe toda a originalidade. Lendo o conto podemossentir, vivencialmente, como surge realidade. Dou graças aodeus das línguas que permitiu o fenômeno GuimarãesRosa, como que para provar de forma prática as minhasteorias. O poeta é o único criador de realidade, e os demaisesforços intelectuais são meramente epigônicos e parasitá­rios, inclusive este artigo.

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Dados do autor

Vilém Flusser nasceu em Praga em maio de 1920.Ainda como estudante da Universidade Karlov, foi expulsopelos nazistas em 1939, vindo para o Brasil. Chegou ao Riode Janeiro em 1940 e em seguida fixou residência em SãoPaulo/SP. A partir de meados dos anos 50, dedicou-se aotrabalho intelectual, participando do Instituto Brasileiro deFilosofia, lecionando na Escola de Arte Dramática e noInstituto Tecnológico de Aeronáutica, e escrevendo noSuplemento Literário de O Estado de São Paulo e naRevista Brasileira de Filosofia. Entre 1963 e 1971,colaborou com o Prof. Milton Vargas, a quem posterior­mente substituiu, ministrando a disciplina Filosofia eEvolução da Ciência, na Escola Politécnica da Universi­dade de São Paulo. Em 1972, mudou-se para a Itália,depois foi para a França, iniciando uma contínua atuaçãocomo conferencista em vários países da Europa, sobretudona Alemanha, mantendo sempre viva a relação afetiva eprofissional com o Brasil. Publicou em diversos países,sendo alguns títulos originalmente em português, comdestaque para Natural: mente - Vários acessos ao signifi­cado de Natureza; Pós-História: Vinte instantâneos e ummodo de usar; Filosofia da Caixa Preta, Ficções Filosófi­cas. O presente texto foi publicado inicialmente em 1967na Coleção Ensaio, do Conselho Estadual de Cultura/SãoPaulo, passando a integrar, a partir de agora, a ColeçãoEnsaios Transversais, da Escrituras Editora.

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