Da retorização da pintura à pintura Narrativa 1
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A “retorização” da pintura em Alberti.
Bruno Oliveira de Andrade
E posso ficar perfeitamente parado olhando uma pintura sem menos prazer para minha mente do que se eu estivesse lendo uma boa história.
Leon Batista Alberti.
O estabelecimento de relações entre pintura e escrita, seja ela poética ou retórica,
é um traço recorrente em boa parte dos tratados artístico de meados do século XV até
meados do século XVIII. A formação de um “campo” específico para a pintura na
aurora do Renascimento constitui-se como uma das batalhas principais de várias
gerações de humanistas, dentre os quais Leon Batista Alberti se destaca em função de
sua verdadeira militância em prol da definição e estabelecimento da pintura como uma
arte liberal, digna de constar entre as mais prestigiosas atividades do Homem. Nesse
sentido, o pintor Alberti – é a partir dessa posição muito bem demarcada que o autor
escreve o clássico De Pictura (1435) - ufana-se de pertencer a um grupo social que tem
como atividade a pintura, pois esta tem “como seu título de glória o fato de que
qualquer grande pintor verá suas obras adoradas e se sentirá considerado quase como
um outro deus”.1 A linguagem hiperbólica era necessária à natureza do “combate”, alem
disso e sobretudo, nos indica um dos primeiros traços da relação entre pintura e escrita
no texto de Alberti. Essa relação decorre do fato, não necessariamente óbvio, de o
trabalho de Alberti ser justamente um texto; e um texto retoricamente construído no
qual é possível identificar boa parte de figuras, lugares comuns, exemplos e hipérboles
tradicionais. Desse modo, o tratado de Alberti não inova- e de fato não deveríamos
esperar inovação (ao menos no sentido moderno) de uma forma de escrita que possui
como característica fundamental uma manipulação e acomodação de modelos antigos,
cujo intuito, entre outros, era justamente estar filiado a determinada tradição, nesse caso
a tradição antiga Greco-latina- seu traço diferencial reside no modo como os recursos
retóricos são mobilizados para o estabelecimento de uma classificação.
1 Leon Batistta Alberti. Da Pintura. Campinas: Editora da Unicamp, 1999,p.102
E, com efeito, a classificação é uma das mais imediatas “pulsões” retóricas; na
formulação jocosa e precisa de Roland Barthes: “O mais das vezes, no entanto a
obsessão por classificar implica uma opção ideológica: “há sempre uma aposta em
nome das coisas: dize-me como classificas, dir-ti-ei quem és.”2. Essa formulação se
adéqua profundamente ao tratado de Alberti, uma vez que no De Pictura a classificação
das diversa partes da pintura, reduzidas a três pilares: os “rudimentos”, nos quais se
discute os fundamentos geométricos da pintura; a “pintura” em que se discute as
características e fins da pintura; e por fim o “pintor” onde é enunciado as virtudes
necessárias ao bom pintor, implica o estabelecimento da pintura como mestra das artes:
“Talvez não se encontre arte de algum valor que não tenha vínculos com a pintura, de
tal forma que se pode dizer que toda beleza que se encontra nas coisas nasceu da
pintura.”3. A passagem deixa claro que os vínculos das outras artes com a pintura são
vínculos de subordinação, por isso a necessidade de se disputar a primazia dessa arte. E
no entanto, há várias passagens do texto em que se sugere, implícita ou explicitamente,
a necessidade de o pintor conhecer e incorporar procedimentos próprios de outras artes
afim de obter a excelência em seu trabalho:
A companhia de poetas e oradores traria aos pintores muita satisfação. Eles têm muitos recursos em comum com os pintores; dotados de vasto conhecimento sobre muitas coisas, serão de grande ajuda para uma bela composição da história, cujo maior mérito consiste na invenção que, como veremos, costuma ser de tal força que, mesmo sem a pintura, agrada por si mesma.4:139).
Essa passagem indica outra questão fundamental da relação entre pintura e a
escrita poética e retórica. Os poetas e oradores possuiriam uma das virtudes
fundamentais que determinaria segundo Alberti a excelência de uma pintura, trata-se da
invenção, fundamental para a composição de uma bela história. A invenção é um dos
aspectos centrais da pintura, seu domínio constitui a principal virtú do pintor. É na
compreensão do predomínio da invenção no tratado de Alberti que reside a chave para
entender a um só tempo, a importância da retórica e da poética para o estabelecimento
do “campo” da pintura no Renascimento enquanto uma arte liberal, e de outro lado a
2 Roland Barthes. A retórica antiga.Memorandum,in:A aventura semiológica. –Lisboa: Edições 70, 1987,p.51 3 Leon Batistta Alberti. Da Pintura. Campinas: Editora da Unicamp, 1999,p. 103 4 Leon Batistta Alberti. Da Pintura. Campinas: Editora da Unicamp, 1999,p. 139
constituição da pintura histórica5 como gênero hegemônico da prática pictórica
Ocidental durante alguns séculos.
Antes, porém, de se discutir a importância da inventatio na composição pictórica
deve-se comentar rapidamente a primeira parte do tratado de Alberti em que o
florentino expõe os rudimentos da pintura, por meio de uma análise “científica” baseada
na ótica e na geometria. É nessa parte que Alberti expõe sua célebre definição da
perspectiva como uma janela voltada para o mundo. Para a maioria dos leitores críticos
de Alberti sua concepção de representação pautada num método racional e científico
seria uma das manifestações teóricas mais acabadas do realismo renascentista; Anthony
Blunt, um dos grandes especialistas em teoria artística da Itália, diz a respeito de Alberti
que: “o âmago de seus pontos de vista acerca das artes representacionais se acha em sua
teoria da imitação da natureza, e é aqui que o seu realismo pode ser traçado com maior
clareza,”6. Esse tipo de abordagem, expresso em tendências mais sofisticadas ou não,
consolidou uma leitura da obra de Alberti que referenda excessivamente o seu projeto.
Esse tipo de leitura só confirma a separação do tratado em uma parte “científica” (Livro
I), uma “estética” (Livro II) e “prática” (Livro III).
Talvez seja possível esboçar outra forma de leitura que, a contrapelo da intenção
albertiana, enfatize a dimensão artística como constitutiva dos três livros que compõem
o tratado. Embora Carlos Alberto Brandão não procure pensar o livro de Alberti desse
modo o autor nos fornece uma chave de leitura importante nesse sentido. Pois ao tentar
complexificar o conceito de mímesis em Alberti o autor enfatiza a dimensão artificiosa
de seu suposto naturalismo. Os rudimentos (geometria, ótica) “se colocam no texto
como pressupostos a priori, artifícios necessários sem os quais a realidade permanece
desprovida de uma dimensão humana”7. Desse modo, a mimesís albertiana não seria
uma imitação, mas uma trama visual cujo sentido e objetivo principal seria estabelecer
uma familiaridade entre homem e mundo. “Na medida em que a pintura exige os
rudimentos que proporcionavam o real ao olhar, ela insere o homem ‘no mundo da
obra’ e faz com que estes coexistam numa ambiência mútua, numa familiaridade e
5 Aqui pintura histórica significa tanto uma pintura de eventos passados, como a pintura de uma história mitológica ou religiosa. Seria mais próprio pensar história aqui como um evento, um tema representado, em oposição a pintura de coisas isoladas, como retrato, natureza morta e paisagem. 6 Antony, Blunt. Teoria estética na Itália 1450-160. São Paulo: Cosac e Naify, 2001,p.26 7Carlos Antônio Leite Brandão. Quid Tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti.- Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p.150
numa comunicação possível”8. Ora, essa familiaridade, essa ambiência mútua é um
artifício no sentido de que é uma criação plástica, tecnicamente: uma tradução visual
para o plano bidimensional de uma visão tridimensional. Desse ponto de vista mesmo
os rudimentos discutidos por Alberti dizem respeito a um problema “estético”, da ordem
da criação artística, não da ciência e da geometria, nesse caso não é a matemática e a
geometria que se servem da pintura para conhecer as leis do mundo, mas a pintura que
instrumentaliza a matemática para a criação artística.
A perspectiva como diz Merleau- Ponty é criação, não uma lei científica que nos
proporcione como objeto, o mundo percebido:
é certo no entanto que essa perspectiva não é uma lei de funcionamento da percepção, que ele provém da ordem da cultura que é uma das maneiras inventadas pelo homem de projetar diante dele o mundo percebido, e não o decalque desse mundo.9
O autor da Fenomenologia da percepção acrescenta em seguida, de modo
esclarecedor que: “não que o mundo percebido desminta as leis da perspectiva e
imponha outras, mas sobretudo porque ele não exige nenhuma em particular, e que é de
uma outra ordem que não elas”10. Por questão de espaço não se insistirá nesse ponto, é
necessário apenas que fique claro que ao se enfatizar a dimensão artificiosa, criativa e
por assim dizer estética da perspectiva (síntese dos procedimentos rudimentares da
pintura segundo Alberti) enfatiza-se por consequência o caráter inovador tanto dos
pintores do período quanto dos teóricos, em especial Leon Batista Alberti, ao
sistematizar os procedimentos da perspectiva11.
Inventio.
De todo modo é no segundo livro que as relações entre pintura e escrita retórica
começam a se estabelecerem de modo mais cerrado. A pintura, dividida em
8 Carlos Antônio Leite Brandão. Quid Tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti.- Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p.150 9 Maurice Merleau- Ponty . A linguagem indireta. In: O Homem e a comunicação:a prosa do mundo. Rio de Janeiro. Bloch Editores. 1974, p. 65 10 Idem,p.66. 11 O livro de Carlos Leite Brandão ao reconsiderar a mimesís albertiana como um artifício possibilita a leitura que se esboçou do conteúdo do livro I como sendo de ordem “estética”, o autor só não investe nessa questão porque se o fizesse fugiria de seu problema específico de análise, que consiste, de forma sintética, na tentativa de pensar uma unidade para o pensamento albertiano, no qual ética e estética, ação e sensibilidade compõe uma unidade indissociável. Assim sendo, não faria muito sentido explorar a dimensão estética da parte do De pictura em que se manifesta de modo mais claro, no âmbito da pintura, uma das questões chaves do humanismo, qual seja, a pesquisa do mundo no sentido de agir nele e não mais contemplá-lo.
circunscrição, composição e recepção das luzes, é redefinida no sentido de uma
produção intelectual. Pois circunscrição significa o delineamento das coisas,
estabelecimento de seu lugar no espaço, demarcação da fronteira entre os objetos; o
instrumento de que o pintor dispõe para tanto é o desenho das linhas. O desenho em
Alberti, como de resto em boa parte dos pintores subsequentes seria uma produção
mental12 por que depende, entre outras coisas, de uma configuração estruturada de um
modo de visão “científico” que percebe o mundo a partir de coordenadas básicas. “sou
de parecer que nessa circunscrição deve-se tomar muito cuidado para que seja feita de
linhas tão finas que quase deixem de ser vistas”13. O teor intelectual evidencia-se pela
necessidade de quase suprimir o caráter material do desenho. Nesse sentido, o desenho
seria como que uma escrita em que a materialidade da letra devesse ser transparente.
A composição, segunda parte da pintura segundo o tratado de Alberti, pode ser
pensada como o núcleo principal que define a pintura como arte. Alberti define a
composição como “o processo de pintar pelo qual as partes das coisas vistas se ajustam
na pintura”14. Dessa definição básica, entretanto, é deduzido o aspecto principal
referente à temática ou conteúdo da pintura, pois uma boa composição tem como
objetivo principal inventar uma história. E “a maior obra do pintor não é um colosso,
mas uma história”15 Esse é o ponto central da questão, pois: “história define a
compositio e a qualidade do artista. É para ela, e não para a beleza que a arte se dirige. E
é sobretudo através dela que a poesia se insere na obra e conecta a pintura com as ars
liberalis: ut pictura poiesis.”16. A compositio em Alberti parece ser um mediador entre
duas partes da teknhe retórica, quais sejam, a inventio e a dispositio, pois ela a
compositio, traz para a cena da pintura tanto o assunto a ser dito quanto o modo
ordenado de dizê-lo.17 A compositio parece mediar ainda, no interior da pintura, uma
relação entre poesia e retórica pois o poeta ajudaria o pintor sobretudo com o assunto e
o retor com a composição do assunto. Por isso Alberti recomenda ao pintor, como na
passagem já citada, que frequente o poeta e o orador.
12 Leonardo da Vinci, insistirá posteriormente nessa questão, desenvolvendo uma sofisticada definição do desenho. 13
Leon Batistta Alberti. Da Pintura. Campinas: Editora da Unicamp, 1999, p.109. 14 Idem, p. 112 15 Idem. P. 114 16 Carlos Antônio Leite Brandão. Quid Tum?: o combate da arte em Leon Battista Alberti.- Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p .156. 17Arrisco essa interpretação sem estar completamente seguro de sua pertinência, em função da dificuldade de se estabelecer, termo a termo, a relação entre as partes da pintura de acordo com Alberti e as partes da tekné retórica.
De todo modo, deve-se enfatizar como faz Barthes que: “A inventio reenvia
menos para uma invenção (dos argumentos) que para uma descoberta: tudo existe já,
apenas é necessário reencontrá-lo: é uma noção mais extrativa do que criativa. Isto é
corroborado pela designação de um ‘lugar’ (a tópica), de onde podemos extrair os
argumentos e de onde é necessário reconduzi-los”18 a tópica é, alem de um “celeiro de
provisões”19, um celeiro de exemplos e funciona como um dos instrumentos essenciais
da invenção e composição de uma bela história; (inclusive seria possível escrever uma
história da pintura ocidental semelhante ao modo que Ernst Curtius escreveu sua
“história da literatura europeia”, diga-se de passagem que o livro de Curtius, não por
acaso, é dedicado a Warburg). Deve-se interrogar o que seria uma bela história para
Alberti. Uma hipótese de leitura seria pensar a historia em Alberti como um mediador
que relaciona dois polos, a beleza (arte) e a ação ( política), pois de um lado, segundo
Carlos Brandão em Alberti a composição pictórica é composição de uma história porque
a pintura deve mimetizar a ação dos homens, não a natureza, por isso a representação de
histórias exemplares; por outro lado a eficácia dessa representação só pode ser garantida
através de uma bela composição, ou seja através dos instrumentos próprios à arte, que
desse modo, possa não somente ornar a historia mas torná-la “viva”, posta sob os olhos.
Nesse sentido é através da historia, tecnicamente através da compositio, que a máxima
horaciana, instruir e deleitar, penetra no tratado de Alberti.
Portanto, a pintura seria uma das práticas fundamentais do humanista que cultiva
a vida ativa- daí que no tratado seja citado uma série de figuras exemplares que
praticavam a pintura- e uma de suas vantagens em relação as outras artes seria o fato de
que ela, através de sua historia viva posta sob os olhos: “merecedora de elogio e
admiração, deverá com seus atrativos se apresentar de tal forma ornada e agradável que
conquistará, pelo deleite e movimento de alma, a todos que a contemplem, doutos ou
indoutos”20. Ou seja, a pintura por meio de sua bela composição teria inclusive um
sentido formativo para os homens, e diferentemente das outras artes como a poesia,daí
um dos aspectos de sua superioridade, poderia agradar também os indoutos.
18 Roland Barthes. A retórica antiga.Memorandum ,in:A aventura semiológica. –Lisboa: Edições 70, 1987,p. 51 19 A expressão é de Curtius. Cf. Ernst Curtius. Literatura europeia e idade média latina.- São Paulo: Hucitec, Edusp,1996. 20
Leon Batistta Alberti. Da Pintura. Campinas: Editora da Unicamp, 1999, p.119.
Referências Bibliográficas.
ALBERTI, Leon Batistta. Da Pintura; tradução: Antônio da Silveira Mendonça, Campinas:
Editora da Unicamp, 1999.
BARTHES, Roland. A aventura semiológica; tradução: Maria de St Cruz, Lisboa: Edições 70, 1987.
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Quid Tum? o combate da arte em Leon Battista Alberti.-
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europeia e idade média latina.- São Paulo: Hucitec, Edusp,1996.
PONTY, Maurice-Merleau. O Homem e a comunicação:a prosa do mundo; tradução: Celina
Luz, Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1974.