Da Silva Experiência Hermenêut Preconceito

download Da Silva Experiência Hermenêut Preconceito

of 18

description

gadamer

Transcript of Da Silva Experiência Hermenêut Preconceito

  • Almir Ferreira da Silva Jnior concluiu doutorado em Filosofia pela Universidade de So Paulo (2006).

    Sua rea de pesquisa na filosofia Hermenutica contempornea e Esttica. Atualmente professor

    adjunto II, no Departamento de Filosofia na Universidade Federal do Maranho e lder do grupo de

    pesquisa Estudos de Filosofia e Hermenutica.

    Maria dos Santos Lopes possui graduao em Filosofia pela Universidade So Francisco (2001), Ps-

    graduao em Filosofia Clnica pela Faculdade Bagozzi/Instituto Packter e em tica e Poltica pelo

    Instituto de Estudos Superiores do Maranho-IESMA. Atualmente mestranda em Filosofia na

    Universidade Federal do Piau e bolsista CAPES.

    EXPERINCIA HERMENUTICA EM GADAMER:

    DA REABILITAO DOS PRECONCEITOS AO CONCEITO

    DE EXPERINCIA HERMENUTICA.

    Almir Ferreira da Silva

    Maria dos Santos Silva Lopes

    Resumo:

    Este artigo discute a precompreenso em Gadamer, enquanto questo epistemolgica

    central de uma hermenutica verdadeiramente histrica e experiencial. Focaliza a crtica

    de Gadamer Hermenutica Filosfica Moderna, em seu carter terico e metdico,

    como contraponto ao seu novo paradigma de verdade, a saber, o da redefinio do

    conhecimento pela experincia histrica que admite a compreenso pelos preconceitos

    (positivos) e no somente negativos, a despeito do Iluminismo. Ressalta-se a

    importncia da noo gadameriana de preconceito como elemento conceitual

    imprescindvel para a ressignificao da hermenutica da experincia (Erfahrung).

    Palavras-chave: Hermenutica, Epistemologia, Gadamer, Preconceito, Experincia.

    L'EXPRIENCE HERMENEUTIQUE: DS LA RHABILITATION DES PRE-JUGES AU

    CONCEPT DE L'EXPRIENCE HERMNEUTIQUE.

    Rsum:

    Cet essai discute la prcomprhension en Gadamer comme question pistmologique

    centrale d'une hermneutique essencielement historique et exprientielle. Il focalise la

    critique de Gadamer l'hermneutique philosophique moderne, en son caractre

    thorique et mthodique, comme contrepoint son nouveau paradigme de vrit,

    savoir, de la redfinition de la connaissance par l'exprience historique qui admet la

    comprhension par des prjugs (positifs) et non seulement ngatifs, au contraire de

    lIllminisme. Nous soulignons l'importance de la notion gadamerienne de prjug comme lment conceptuel vital pour la resignification de l'hermneutique de

    l'exprience (Erfahrung).

    Mots cls: Hermneutique, pistmologie, Gadamer, Prjug, Exprience.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 2

    INTRODUO

    O Filsofo Hans-Georg Gadamer (1900 2002), ao lado de Paul Ricoeur e na

    esteira de Heidegger, depois da publicao de sua principal obra Verdade e Mtodo

    (1960), reconhecido como o grande representante da Hermenutica Filosfica do

    sculo XX.

    Aluno e seguidor de Heidegger (1889 1976) durante mais de cinquenta anos,

    Gadamer tornou-se o filsofo alemo mais famoso dos ltimos tempos1. Destacou-se

    tambm por sua grande familiaridade com o mundo cultural, como fillogo, especialista

    em teologia protestante e, como filsofo, simpatizante de Plato, Hegel, Husserl, e,

    sobretudo, da fenomenologia de Heidegger.

    Em Verdade e Mtodo (WahrheitundMethode)2, a apresentao da crtica dirigida

    subjetividade moderna articula-se diretamente problemtica do monoplio de uma

    metodologia cientfica moderna, o que traduz uma deformidade e negligncia da

    experincia da verdade vinculada, unilateralmente, ao modelo metdico das cincias

    naturais que, baseada em um modelo quantitativo-mecanicista, restringe o fenmeno do

    saber cientfico e delimita a possibilidade de experincias de verdade.

    A hermenutica filosfica gadameriana defende uma reflexo acerca da verdade

    que ultrapassa sua significao moderna e reabilita o conceito de tradio como

    condio de possibilidade para a compreenso. Essa ressignificao da verdade deve

    considerar o conjunto de experincias que perfazem o mundo da vida, construdo

    historicamente e a partir de um horizonte pr-compreensivo3.

    1 Cf.GRONDIN. Jean. Hans-Georg Gadamer; Une biographie.Paris: Bernard Gasset, 2011.p.10. 2 Originariamente o ttulo da obra seria Compreender e acontecer, mas, dada a insatisfao por parte do

    editor, tendo em vista a proposta do subttulo Fundamentos de uma hermenutica filosfica, a obra

    vem a intitular-se, posteriormente, Verdade e Mtodo: Fundamentos de uma hermenutica filosfica.

    Torna-se ainda relevante destacarmos o carter provocativo desse ttulo, conforme ressalta Ernildo

    Stein. Segundo sua leitura, trata-se, de fato, da verdade contra o mtodo, uma vez que Gadamer busca

    mostrar, em sua estrutura, que nas experincias da arte, da histria e da linguagem produzido um tipo

    de verdade incompatvel com o mtodo lgico-analtico (Cf. E. STEIN, Aproximaes sobre

    hermenutica, p. 44). 3 Cf. GRONDIN, Jean. Hermenutica. Traduo de Marco Marcionillo. SoPaulo: Parbola, 2012,

    (p.63): o propsito inicial de Gadamer justificar a experincia de verdade das cincias humanas (e do entendimento em geral) participando da concepo participativa do entendimento. Ela constitutiva

    daquilo que ele chama, na primeira linha de sua obra (Verdade e Mtodo), de o o problema hermenutico. Mas esse problema fora encoberto, segundo ele, pela concepo excessivamente metodolgica da hermenutica proposta por Dilthey. A ideia de Gadamer que Dilthey sucumbe a uma

    concepo da verdade inspirada na metodologia das cincias exatas, que declara antema todo

    entendimento de subjetividade.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 3

    Sua noo de pr-compreenso, herdeira da estrutura prvia da compreenso do

    crculo hermenutico de Heidegger, necessria para a atualizao ontolgico-

    hermenutica da discusso sobre o fenmeno do conhecimento; o que por sua vez

    reivindica uma hermenutica da experincia, pensada necessariamente em seu horizonte

    de abertura e dialgico da finitude. Isso confere hermenutica gadameriana a pergunta

    de como se inicia um esforo hermenutico e qual a relao entre preconceito e

    tradio. Se o sentido do preconceito (Vorurteil) para Gadamer provisrio, direcional,

    na medida em que lana a pessoa humana (ser finito e histrico) para a relao, para a

    responsabilidade, para o dilogo e para a alteridade, s a interpretao capaz de

    decidir sobre a verdade ou falsidade dos preconceitos, considerando que a interpretao

    uma tarefa inacabada de reconhecimento e formao4.

    A tarefa crtica da Hermenutica ser compreender o fenmeno da distncia

    temporal e o esclarecimento do seu conceito, ou seja, distinguir os preconceitos que

    cegam daqueles que esclarecem. Questo que supe uma anlise da conscincia da

    histrica dos efeitos como estrutura da experincia.

    Diante do exposto, o nosso objetivo apresentar a relevncia do preconceito

    para a discusso hermenutico-contempornea sobre o fenmeno da compreenso, e

    como elemento conceitual para a reconsiderao hermenutica da noo de experincia

    (Erfahrung) Gadamer. A problemtica que se desenvolve neste artigo , em que medida

    a compreenso ontolgico-hermenutica da experincia, pensada pela reabilitao da

    tradio e dos preconceitos e, sob os efeitos da histria, decisiva para desconstruir o

    carter paradigmtico da subjetividade e cincia moderna?

    1 A REABILITAO DO PRECONCEITO

    A hermenutica da experincia proposta por Gadamer situa-se na crise

    provocada pela crena de que o paradigma das cincias naturais seria a nica

    possibilidade de conferir legitimidade s pretensas experincias de verdades e,

    consequentemente, quando o universo dos fenmenos contemplados pelas cincias

    humanas envereda em busca de outro fundamento que os legitime como verdade,

    4 Cf. SILVA, Maria Lusa P. F. da, O Preconceito em H.-G. Gadamer: sentido de uma Reabilitao.

    Coimbra: FCG, JNICT, 1995.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 4

    diferentemente do modelo monolgico sustentado pela cincia moderna; dessa vez mais

    prximo da tradio e da histria. Sua reivindicao de reabilitar o preconceito

    justificada por sua pertinncia ao mundo da experincia, pois seria difcil analisar o

    problema hermenutico da experincia desconsiderando a evidncia da tradio e sem

    acolher a perspectiva de seu mbito pr-conceitual.

    O conceito de preconceito (Vorurteil), em seu sentido negativo, remonta ao

    advento da cincia moderna, com Francis Bacon (1561 1626), ao apresentar seu

    mtodo dos dolos da mente sobre os pensamentos prvios que afastam do caminho

    da verdadeira razo. Contudo, o termo preconceito foi matizado somente no Iluminismo

    francs, com Destutt de Tracy (1754 1836), significando cincia das ideias,

    compreendidas no sentido bem amplo de estados de conscincia. Com isso, a teoria dos

    dolos de Bacon fora transferida de sua aplicabilidade nas cincias naturais para as

    cincias sociais e se transformaram em ideologia (idologie),em 1801.5

    O expurgo dos dolos afastados e substitudos pela luz da razo ocorreu,

    notadamente, com Descartes( 1596 1650), a partir do Discurso do Mtodo (1637), em

    sua defesa da construo de um saber seguro e indubitvel sujeito a constantes

    revises e assegurado metodicamente por regras , e mais tarde com Kant (1724

    1804), na realizao de seu programa iluminista de libertar os seres humanos da tutela

    auto imposta da razo.

    Como a problemtica da legitimidade do preconceito remete questo da

    autoridade e da tradio, do ponto de vista hermenutico-filosfico, a tradio

    iluminista imprimiu uma oposio entre razo e preconceito e entre esse e a autoridade;

    e mais ainda, a veracidade da tradio ao tribunal da razo e credibilidade duvidosa

    que esta lhe confere. Portanto, Gadamer critica o Iluminismo (Aufklrung)6 dada sua

    pretenso em pensar a autoridade sob o conceito de submisso fundamentando o

    mtodo como raiz da autoridade , conferindo validez somente ao conhecimento que

    passa pelo crivo da razo.

    5 HEKMAN, Susan J. Hermenutica e sociologia do conhecimento. Traduo de Lus Manoel

    Bernardo. Lisboa: Edies 70,1986, p. 40. 6 SILVA,1999, pp. 221-222: por todos sabido que no iluminismo a humanidade do homem se define

    justamente pela libertao de toda a superstio ou menoridade culpvel, o que implica uma recusa de

    toda a relao ao outro que no seja previamente confirmada pela autoridade da razo. Autoridade da

    razo e a sua luz natural substitui-se nessa altura a toda e qualquer razo da (alteridade) autoridade.

    Esta j no significa reconhecimento, mas obedincia e submisso.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 5

    Assim, ao ser incapaz de pensar a finitude, a historicidade em interdependncia

    dimenses essenciais do existir , a Aufklrung sobreps a razo monolgica e

    atemporal como fundamento, princpio e autoridade mxima. Por isso, a crtica

    hermenutica ao Iluminismo acompanhada da defesa de que o sentido do preconceito

    no somente negativo, mas tambm positivo, pois no consider-lo como tal

    constituiria um verdadeiro entrave para a relao entre compreenso, tradio e

    conscincia histrica.

    Ora, o que distingue a teoria gadameriana do preconceito, da posio iluminista

    sobre o mesmo que, diferentemente de rejeitar o limite humano, silenciando-o como

    questo insolvel e incmoda, sua nfase destaca a reabilitao dos preconceitos na

    reconsiderao do seu sentido eminentemente positivo e necessrio. Do ponto de vista

    de uma ilustrao, esse problema hermenutico vai se tornar central para a Aufklrung

    moderna, quando a sua interpretao dogmtica imposta Sagrada Escritura, ao

    colocar que a interpretao desta deve acontecer racionalmente e isenta de todo

    preconceito. E como a crtica da Aufklrung primeiramente dirigida tradio

    religiosa do Cristianismo, Gadamer no hesitou em defender o carter comprobatrio do

    escrito, a fim de que se possa distinguir, tanto por ele quanto por uma afirmao oral, o

    que opinio e o que verdade.

    Para iniciar o percurso da reabilitao da noo de preconceito, Gadamer

    relaciona a palavra alem Vorurteil (preconceito) francesa, prjug; e relembra que o

    matiz negativo que possui o conceito de preconceito foi recebido somente com o

    Iluminismo, ao restringir seu significado ao de juzo no fundamentado. A esse

    respeito segue sua definio:

    Em si mesmo, preconceito(Vorurteil) quer dizer um juzo (Urteil) que se prova antes da prova definida de todos os momentos determinantes segundo a coisa. No procedimento

    juris-prudencial um preconceito uma pr-deciso jurdica, antes de ser baixada uma

    sentena definitiva. Para aquele que participa da disputa judicial, um preconceito desse tipo

    representa evidentemente uma reduo de suas chances. Por isso, prjudice, em francs, tal

    como praejudicium, significa tambm simplesmente prejuzo, desvantagem, dano. No

    obstante, essa desvantagem apenas secundria. justamente na validez positiva, no valor

    prejudicial de uma deciso, tal qual o de qualquer precedente, que se apoia a consequncia

    negativa."Preconceito" no significa, pois, de modo algum, falso juzo, pois est em seu

    conceito que ele possa ser valorizado positivamente ou negativamente. claro que o

    parentesco com o praejudicium latino torna-se operante nesse fato, de tal modo que, na

    palavra, junto ao matiz negativo, pode haver tambm um matiz positivo. Existem prjugs

    lgitimes. Isso se encontra muito distante de nosso atual tato lingustico (1999,p. 407&

    275).

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 6

    Como possvel, ento, a legitimidade dos preconceitos? Gadamer afirmou que

    pela experincia hermenutica, acompanhada dos efeitos do tempo que comporta a

    experincia reflexiva e dialgica de perguntar sobre a validade ou no de algo, cujo

    acontecimento se d no horizonte reflexivo da conscincia histrica. E em que consiste

    uma conscincia histrica? Na abertura ao reconhecimento da tradio como instncia

    do horizonte compreensivo, identificando na alteridade um lugar privilegiado para o

    desenvolvimento de experincias hermenuticas. Assim, a distncia temporal permite

    decidir sobre os preconceitos falsos, que se fecham ao dilogo e interpretao e, por

    isso, conduzem ao erro dos preconceitos verdadeiros que promovem a compreenso, o

    dilogo e a alteridade.

    Ao revigorar o conceito de preconceito luz do texto e da tradio no trabalho

    hermenutico, Gadamer contribuiu decisivamente para atualizar a importncia da

    tradio na constituio dos saberes e das experincias. Sua proposta de reabilitao da

    autoridade da tradio uma questo filosoficamente fundamental de justia, pois o

    descrdito conferido a noo de preconceito pelo Iluminismo (Aufklrung), apresentado

    como um preconceito que limita, to somente, parte integrante da prpria realidade

    histrica. Ele investe, assim, na reconsiderao da palavra preconceito cujo sentido de

    pr-compreenso, de pr-juzo, transmitida historicamente. Portanto, se somos

    pertencentes histria, no se pode conceber um indivduo que se compreenda e que

    compreenda o outro, fora de uma realidade, de um mundo, de uma situao, posto que

    os preconceitos de um indivduo so, muito mais que seus juzos, a realidade histrica

    de seu ser. (Gadamer, 1999, p. 416 & 281).

    A importncia de privilegiar a questo dos preconceitos para Gadamer a

    problemtica central de uma hermenutica, de modo que sua legitimao constitui-se de

    fundamental importncia para o enfrentamento das questes epistemolgicas no tocante

    ao reconhecimento cientfico das cincias humanas e o alargamento da noo de

    verdade na contemporaneidade. Nesse sentido, a hermenutica para Gadamer ultrapassa

    seu carter eminentemente psicologizante, articulado na modernidade por

    Schleiermacher (1768 1864), bem como sua especificidade vinculada s cincias do

    esprito considerando a ilimitada liberdade da razo histrica , imprimindo nfase na

    ontologia do fenmeno da compreenso a partir do ser histrico. Isso viabilizou, ainda,

    um dilogo hermenutico frtil, elencando pontos de convergncias e divergncias entre

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 7

    a hermenutica filosfica e a filosofia da vida de Dilthey com seus pressupostos

    idealistas, romnticos e estticos; o que contribuiu de forma decisiva para o

    desdobramento do pensamento hermenutico contemporneo.

    A reflexo hermenutico-filosfica sobre o significado dos preconceitos como

    elemento de discusso ontolgica acerca da construo do saber e da constituio de

    experincias precisa ser pensada em suas referncias filosficas conceituais; eis o que

    conduz a um dilogo mais prximo com Heidegger, conforme se segue.

    2 DA ESTRUTURA ANTECIPATRIA DE HEIDEGGER PARA O

    COMPREENDER EM GADAMER

    Verdade e mtodo apresenta como subttulo o que de fato constitui seu grande

    propsito, ou seja, a formulao dos fundamentos de uma hermenutica filosfica.

    Mesmo, desde cedo, recebendo uma forte influncia do filsofo alemo Martin

    Heidegger, tanto da fase inicial quanto da tardia de seu pensamento, a expresso

    utilizada por Gadamer no fenomenologia hermenutica, mas sim hermenutica

    filosfica. Em Ser e tempo (Sein und Zeit), de 1927, a fenomenologia enquanto via de

    acesso e verificao do ser dos entes, em suas modificaes e sentido, constitui-se como

    tarefa nuclear de uma ontologia fundamental. Aqui o termo fenomenologia tomado

    no duplo aspecto de sua constituio: o carter singular de fenmeno e o carter

    universal de logos.

    Trata-se, portanto, de demonstrar um ente tal como ele se mostra em si mesmo,

    mas considerando aquilo que, por vezes, se mantm velado diante do que imediatamente

    se manifesta, o ser dos entes. Por isso, o mtodo fenomenolgico assume, na orientao

    heideggeriana, um duplo carter: o velamento, o oculto, e o desvelamento, a presena.

    Do ponto de vista metdico, todavia, a descrio fenomenolgica interpretao.

    Enquanto interpretao, a hermenutica constitui-se como condio de possibilidade de

    uma investigao ontolgica, j que fenomenologia do Dasein hermenutica na

    significao primitiva da palavra. Assim, a filosofia, na condio de uma ontologia

    fenomenolgica, torna-se tambm uma ontologia hermenutica, ou seja, uma

    interpretao sobre o sentido do ser. Em sua formulao de uma fenomenologia

    hermenutica, Heidegger pe a hermenutica a servio da compreenso do ser, tomando

    como ponto de partida o aspecto prtico que descreve o sentido e as condies do ser

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 8

    humano como ser-no-mundo. No se trata mais e apenas de um compreender,

    interpretar, descrever objetos e textos, ou mesmo as coisas do mundo, mas de uma

    compreenso em sua totalidade, de uma hermenutica da facticidade.

    A proposta de uma hermenutica filosfica anunciada por Gadamer tem sua

    especificidade no modo pelo qual desenvolvido seu pensamento filosfico. A

    originalidade e complexidade dessa obra parecem estar ligadas sua possibilidade de

    conectar investigaes, anlises crticas, questionamentos e abordagens, alm de uma

    reviso histrico hermenutica prpria, que a poca lhe permitia, reconsiderando-as sob

    uma perspectiva mais ampla e, s vezes, integrando-as a seu projeto filosfico. No

    entanto, se seu desenvolvimento tem como ponto de partida a problemtica da auto

    evidncia das cincias humanas, a questo central que se articula no conjunto da obra

    precisamente o conceito de experincia, cuja amplitude de desdobramento remete-nos

    temtica da finitude, da verdade e da historicidade. Embora seu impulso ontolgico

    fundamental tenha sido dado por Heidegger, tendo em vista o significado e o horizonte

    da denominada hermenutica da facticidade o ser humano na condio de seu modo

    ftico de ser , o que prope Gadamer uma ontologizao da hermenutica em

    sentido novo7.

    Gadamer compreende que a mudana nova e radical que Heidegger confere

    questo da compreenso histrica no contexto das cincias do esprito e da natureza a

    abordagem da compreenso como forma originria de realizao da pr-sena, que

    serno-mundo. [...] e a compreenso o modo de ser da pr-sena, na medida em que

    poder ser e possibilidade(1999, pp. 392 & 264). Essa disposio do Dasein considera

    a interpretao como elaborao de possibilidades projetadas, o que faz da compreenso

    7 Cf. E. STEIN, Aproximaes sobre hermenutica, p. 70. Sobre o impulso fundamental que a filosofia

    de Heidegger exerce na obra de Gadamer e o consequente carter de valorizao ontolgica que o

    problema da compreenso assume na proposta hermenutica do hermeneuta, ressalte-se um dos

    momentos do dilogo estabelecido entre Gadamer e Habermas que se estende dos anos 60 aos 80.

    Trata-se do pronunciamento habermasiano intitulado Hans-Georg Gadamer: Urbanizao da provncia heideggeriana, proferido por ocasio da entrega do Prmio Hegel, de 1979 na cidade de Stuttgart. Enquanto discpulo de Heidegger, cujo pensamento radical instala um abismo ao redor de si,

    a hermenutica filosfica de Gadamer teria naquele momento o mrito de lanar uma ponte que no

    apenas neutralizasse o distanciamento entre as cincias humanas e a filosofia, bem como pudesse

    transpor o abismo ocasionado pela filosofia heideggriana. Habermas explicita melhor essa ideia assim

    afirmando: [...] a imagem de ponte sugere falsas conotaes [...] Eu preferia dizer que Gadamer urbaniza a provncia heideggeriana. claro que deveramos levar em conta que a palavra provncia`

    (Provinz), sobretudo em alemo, ns associamos no somente ao limitativo, mas tambm o teimoso, o

    cabeudo (Dickschdelig-Eingenssinnig) e o primitivo ou original (Ursprnglich) (J. HABERMAS, Hans Georg Gadamer: Urbanizao da Provncia heideggeriana, in: Dialtica e Hermenutica, p. 74)

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 9

    um constante re-projetar que realiza o movimento do sentido do compreender e do

    interpretar (1999, pp. 402 & 271).Compreenso que apresenta uma estrutura circular,

    pois s dentro de uma totalidade j dada de sentido que uma coisa se manifesta como

    tal, ou seja, como a coisa mesma8. Assim, toda interpretao, se movimenta no campo

    da concepo prvia para qual a interpretao de algo como algo se funda,

    essencialmente numa posio prvia, viso prvia e concepo prvia(Heidegger,2000,

    p.207). Disso resulta a estrutura do horizonte da compreenso e interpretao, a saber, a

    de que toda interpretao, que quer produzir compreenso, deve j ter compreendido o

    que vai interpretar. Por isso, toda compreenso de uma coisa, de um acontecimento ou

    de um estado de coisas em seu sentido exige, como condio de sua possibilidade, o

    todo de um contexto de sentido.

    Desta forma, a noo heideggeriana de estrutura antecipatria originou a noo

    de preconceito em Gadamer. O crculo de que fala Heidegger o crculo da

    precompreenso e de sua explicao no seu processo hermenutico. Seu sentido

    ontolgico o ponto alto de sua reflexo hermenutica, posto que a que Heidegger

    descreve a tarefa da concretizao da conscincia histrica, ou seja, a abertura ao

    reconhecimento da alteridade e da tradio no horizonte da compreenso e como

    constituinte radical da experincia. , portanto, do Crculo Hermenutico de Heidegger

    - o crculo da interpretao e da compreenso-, que Gadamer partiu para a teorizao do

    seu crculo hermenutico o crculo do todo e das partes ampliando-o com sua noo

    de concepo prvia da perfeio, que significa a compreenso numa unidade completa

    de sentido. Com isso, a concepo prvia da perfeio gadameriana contempla

    Heidegger em sua noo de estrutura antecipatria, em sua fenomenologia

    hermenutica e na sua anlise da historicidade da pr-sena.

    O compreender para Heidegger significa primeiramente sentir-se entendido na

    coisa, e s secundariamente, compreender a opinio do outro como tal. Eis a razo de a

    8 Cf. (GADAMER, 2002, pp. 83-84): o conceito de coisa (Sache) no traduz apenas o conceito latino

    de res; a palavra alem Sache (coisa) e seu significado assumem sobretudo o que expressa a palavra

    latina causa. No uso da lngua alem, a palavra sache, significa em primeiro lugar causa, isto , a

    coisa(Sache) litigada, que est em questo. Originalmente coisa que se coloca no centro entre as

    partes litigantes, porque ainda no se tendo sentenciado sobre ela h que se tomar uma deciso. A coisa

    precisa ser protegida contra a apoderao particular de uma ou de outra parte. Nesse contexto,

    objetividade significa o oposto, a parcialidade, isto , o contrrio do abuso do direito para fins

    particulares[...] aqui, portanto, a natureza da coisa(Sache) algo que se faz valer, algo que temos que

    respeitar.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 1 0

    pr-compreenso ser a primeira de todas as condies hermenuticas. por isso que a

    hermenutica deve partir do fato de que quem quer compreender, como diz Gadamer

    (2002, p.79), [...] est ligado coisa que vem fala na tradio, mantendo ou

    adquirindo um vnculo com a tradio a partir de onde fala o texto transmitido. J que

    a conscincia hermenutica sabe que o vnculo coisa no pode acontecer de um modo

    evidente e inquestionvel, sua tarefa no desenvolver um procedimento da

    compreenso, mas iluminar as condies para que acontea a compreenso. Isto supe a

    interpretao e o distanciamento na compreenso prvia, representada pelo preconceito,

    como compreenso fundamental, uma pertena assumida.

    Para isso, necessrio, que o sujeito tome conscincia dessa ambivalncia que o

    preconceito lhe confere, a mistura entre familiaridade e estranheza, e no se dirija

    coisa sem examinar a origem e a validade das suas prprias antecipaes. Pois uma vez

    que o sujeito se apercebe de suas prprias antecipaes, permite que o texto se apresente

    em sua alteridade, sendo possvel confrontar a verdade do texto com suas opinies

    prvias. A falta de abertura alteridade que torna um preconceito falso, alteridade que

    acontece na mtua abertura, na experincia do tu, na linguagem (Gadamer 1999, pp.532

    & 367):

    [...] ela tem um autntico correlato na experincia do tu. No comportamento dos homens

    entre si, o que importa , como j vimos, experimentar o tu realmente como tu, isto no

    passar por alto sua pretenso e deixar-se falar algo por ele. A isso pertence a abertura. Mas,

    por fim, esta abertura no se d s por aquele por quem queremos nos deixar falar; antes,

    aquele que em geral se deixa dizer algo est aberto de maneira fundamental. Se no existe

    esta mtua abertura, tampouco existe verdadeiro vnculo humano. Pertencer-se uns aos

    outros quer dizer sempre e ao mesmo tempo poder-ouvir-se-uns-aos-outros[...] a abertura

    para o outro implica, pois que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim,

    ainda que no haja nenhum outro que o v fazer valer contra mim. Eis aqui o correlato da

    experincia hermenutica. Eu tenho de deixar valer a tradio em suas prprias pretenses,

    e no num sentido de mero reconhecimento da alteridade do passado, mas na forma em que

    ela tenha algo a me dizer.

    Essa alteridade dialgica permite esclarecer, no horizonte compreensivo, os

    preconceitos dos mal-entendidos, a saber, aqueles que se fecham interpretao,

    distncia temporal ou mobilidade histrica da coisa, tornando-se rgidos e perdendo a

    sua funcionalidade, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradio. So os

    preconceitos no percebidos que originam a alienao, bloqueando-nos em nossa

    capacidade de ouvir a tradio: estes so de fato os preconceitos falsos ou ilegtimos

    que, por no se colocarem em questo, induzem ao erro de compreenso. Mas, como

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 1 1

    sabermos quais so, como distinguirmos os preconceitos produtivos ou verdadeiros dos

    falsos ou ilegtimos? Para Gadamer, esta a tarefa crtica da Hermenutica e nos coloca

    permanentemente ante a desafios.

    Dado que a compreenso dos preconceitos como estrutura prvia de sentido nos

    remete a uma estrutura dinmica da compreenso, sua reflexo reivindica a

    considerao do horizonte histrico no qual o conjunto de sua experincia se

    desenvolve. Se compreender pr-compreender, esse processo se verifica em uma

    perspectiva histrica. A compreenso se d sob uma vigilncia histrica. Passemos a

    esse ponto.

    3 A HISTRIA DOS EFEITOS COMO EXPERINCIA HERMENUTICA

    Uma reflexo, ao comprometer-se com o verdadeiro compreender, sustenta

    Gadamer, no pode, nem em benefcio de uma ilusria confiana em um

    metodologismo, ou mesmo de um objetivismo histrico, omitir sua prpria

    historicidade. Conhecer historicamente o objeto , portanto, buscar apreender o que h

    de diferente neste, em sua relao com a realidade da histria e como a realidade do

    compreender histrico.

    Por isso, uma hermenutica verdadeiramente adequada ao seu objeto

    investigativo deve mostrar, na prpria compreenso, a realidade da histria. O que

    torna, por exemplo, a arte um objeto histrico no simplesmente o produto artstico

    propriamente dito, mas tambm suas diferenas em relao a ele mesmo, a verdadeira

    realidade de sua compreenso histrica. Compreender , pois, submeter a investigao

    dos objetos ao princpio da histria dos efeitos (Wirkungsgeschichte), ou seja os

    efeitos destes na histria. Como lembra Grondin, o desenvolvimento dessa concepo

    de conscincia da histria (Wirkungsgeschichte) indica o propsito gadameriano de

    pensar o fenmeno da compreenso em consonncia com a questo da objetividade nas

    cincias do esprito (Geisteswissenschaften).

    A noo de histria dos efeitos remonta ao sculo XIX, referindo-se ao estudo de

    interpretaes produzidas por uma poca. Designa uma disciplina cujo interesse era a

    continuada influncia da recepo de obras ou acontecimentos. Sob esse propsito trata-

    se de uma reflexo articulada por uma conscincia histrica, cuja tarefa compromete-se

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 1 2

    com o real significado de uma obra, outrora constituda na tradio. Seu interesse

    concentra-se, portanto, na acolhida e recepo compreensiva das obras no horizonte de

    seus efeitos e influncia.

    Para Gadamer, porm, a histria dos efeitos (Wirkungsgeschichte) no

    corresponde apenas histria da recepo, da qual se pode obter um conhecimento

    objetivo, mas a uma compreenso de histria que nunca se torna plenamente evidente,

    pois nela se encontra uma conscincia de seus prprios efeitos. A conscincia histrica

    aquela conscincia produzida pelos efeitos da histria. Em sua formulao

    terminolgica, a expresso Wirkung designa o prprio movimento de atuao da histria

    at mesmo onde seus efeitos no so perceptveis. Wirkungsgeschichte significa no

    apenas o processo de ao da histria, como tambm seu resultado, nossa conscincia

    sobre ela: a conscincia histrica. um seguir atuando da histria para alm da

    conscincia que podemos ter dela. Ora, dado que a distncia histrico-temporal

    determina nossa prpria condio hermenutica, compreender um fenmeno histrico

    significa, necessariamente, inserirmo-nos no conjunto de seus efeitos.

    Por isso, pelo fenmeno da distncia temporal e do esclarecimento do seu

    conceito de histria dos efeitos que Gadamer considera possvel distinguir os

    preconceitos que cegam daqueles que esclarecem, pois a diferena de tempo entre

    intrprete e autor insupervel e cada poca entende um texto de uma maneira nica,

    peculiar, isto , a partir dos seus prprios interesses e de uma correspondncia pessoal.

    Eis porque o verdadeiro sentido de um texto no depende da mensagem que o

    autor quis passar ao pblico de sua poca, mas da interpretao que feita quando do

    contato do intrprete com o mesmo. E quando o intrprete entende um texto, para alm

    do que o autor quis expressar, consequentemente, superando-o, a compreenso no um

    comportamento reprodutivo, mas sim produtivo. Isto contraria Schleiermacher na sua

    defesa de interpretao originria de que um intrprete pode entender o autor de um

    texto melhor que ele mesmo. Em oposio, Gadamer sustenta que, pela compreenso

    produtiva, no se trata de compreender melhor o autor, mas trata-se, de compreender

    diferente. (Gadamer, p. 444 & 302). Essa concepo hermenutica se refere verdade

    da coisa, que leva a srio um texto em sua pretenso de verdade e que foi recuperada

    por Heidegger.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 1 3

    Segue-se que o que era considerado um abismo, um empecilho para a

    compreenso, pelo historicismo, o elemento fundante de uma compreenso produtiva.

    Gadamer pe a distncia como nico meio de expresso completa do verdadeiro sentido

    da coisa, sentido este que no se esgota. A compreenso assume aqui seu carter

    infinito, pois ela um processo contnuo.

    A distncia de tempo favorece uma filtragem. Continuamente vo se eliminando

    os erros as distores e vo surgindo novas fontes de compreenso. A filtragem

    proporcionada pela distncia encarrega-se, do lado negativo, de fazer os preconceitos

    falsos desaparecerem; do lado positivo, de realar, de trazer tona os preconceitos que

    levam compreenso correta assim que a distncia do tempo possibilita distinguir

    os preconceitos.

    Duas questes bsicas que perpassam as indagaes de Gadamer e que so

    importantes para a sua defesa positiva de preconceito, necessitam ser respondidas:

    Como se inicia um esforo hermenutico e qual a relao entre preconceito e tradio?

    Sobre a primeira questo, sua resposta, como j vimos, que a primeira

    condio da hermenutica a precompreenso, tendo a distncia temporal como

    elemento essencial para uma compreenso positiva, uma vez que ela proporciona uma

    filtragem que vai eliminando os preconceitos, as distores.

    Destaque-se que na noo dos preconceitos que causam mal-entendidos, subjaz

    que so parciais e particulares porque contrariam uma conscincia histrica, que

    Gadamer tambm chama de senso histrico. Pois, manter-se numa viso particular

    (preconceito) sem ampli-la para um contexto no qual se est inserido, confinar-se a

    uma tradio fechada sobre si mesmo. Como tradio, em sua etimologia, do verbo

    latino tradere, significa, levar adiante, trans-portar, trans-mitir, deixar em herana, o

    fechamento contraria o seu significado.

    At aqui, a distncia temporal nos ajudou a um entendimento de que o tempo se

    encarrega de ir eliminando os preconceitos que causam os mal-entendidos. Estes, no

    entanto, so desnecessrios quando direcionam a compreenso a particularidades,

    impedindo uma conscincia histrica. Essa conscincia da influncia dos efeitos no ato

    da interpretao faz parte da realizao da compreenso ela no pode se esgotar, visto

    que, segundo Gadamer (1999, pp. 451 & 306) o ser histrico nunca se esgota no

    saber-se.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 1 4

    Toda essa abordagem anteriormente desenvolvida permite ainda pontuar de

    modo objetivo a explicitao da noo de experincia, no rigor conceitual de sua

    ressignificao hermenutica filosfica e como contraponto a sua significao

    cientfico-moderna. A experincia em sua significao hermenutica no corresponde

    quela desenvolvida por uma conscincia que prepara, controla e testa, uma vez que a

    conscincia, no confronto com suas prprias experincias de finitude. Da o que justifica

    sua reflexo privilegiando seu carter histrico e dialtico. Desse modo, a compreenso,

    o fenmeno do conhecimento propriamente dito, no se constitui um fluxo de

    percepes, mas um processo cuja formao contempla rupturas e refutaes, dvidas e

    um fluxo de negatividade. Experincia no enquanto simples vivncia interna de algo

    (Erlebnis), mas enquanto Erfahrung, cuja referncia conceitual a hermenutica

    gadameriana busca na filosofia de Hegel.

    Nesse sentido, ressalta o hermeneuta, a verdadeira experincia experincia da

    negao, e precisa ser pensada na perspectiva constante de sua radical abertura a novas

    experincias. Desmonta-se, assim, a concepo puramente instrumental e metodolgica

    da experincia baseada na autonomia transcendental do sujeito que, enquanto

    autoconscincia, planifica, controla e administra suas experincias, objetivando-as.

    Inevitavelmente o homem , inevitavelmente, cujo exerccio e desenvolvimento

    integram sua natureza histrica. Tal abertura, todavia, implica a possibilidade de um

    desapontamento quanto s expectativas, contrariando-as. Tambm por isso, a

    experincia , essencialmente, experincia da finitude humana (Erfahrung ist also

    Erfahrung der menschlichen Endlichkeit)e o reconhecimento de seus limites.

    Ora, isso significa que a condio de ser experiente torna-nos verdadeiramente

    conscientes de nossa prpria finitude, dos limites de toda antecipao, bem como do

    carter de insegurana de todos os nossos planos; nossa finitude pressupe

    constantemente abertura de novas experincias elaborao de nossos planejamentos

    racionais, a outros horizontes e, consequentemente, s expectativas futuras. Da por que

    o reconhecimento de nossa finitude faz ainda da verdadeira experincia a experincia de

    nossa prpria historicidade. Enquanto ser de experincia que atua e age na histria, o

    homem adquire, atravs desta, uma intuio de futuro, por meio da qual se mantm

    sempre renovada a abertura a novas expectativas.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 1 5

    Em seu desdobramento do carter histrico-dialtico, o significado da

    experincia hermenutica seria precisamente aquilo que deparamos como tradio e

    que, portanto, tem de ser experimentada. Tradio no como um acontecimento que,

    vindo de longe, reconhecido pela experincia e controlado por ela, mas conforme

    ressaltado anteriormente, correspondendo ideia de entrega, transmisso (Tradition;

    berlieferung). Por isso o termo tradio significa, antes de tudo, linguagem.

    Situando-nos nela, sua compreenso d-se como uma experincia essencialmente

    lingustico-dialgica sob a especificidade uma relao eu-tu. Ora, esta autntica abertura

    est em conexo com a verdadeira experincia9 dialtica, em cuja estrutura eu-tu o

    eu e o outro, exercitando suas possibilidades de experimentar, nivelam-se e so afetados

    no encontro.

    A considerao da experincia hermenutica, a partir dessa relao eu-tu, tem

    como especificidade, aqui nesse momento, o seu carter histrico e mais precisamente

    aquilo que se denomina de conscincia histrica (historische Bewutsein). esta que,

    ao nos remeter a ideia de alteridade, o faz sob a forma da relao eu-tu. Se a alteridade

    o passado, essa conscincia busca compreend-lo no seu contedo de sentido, no seu

    carter histrico nico. Tal procedimento, no entanto, no se apoia na objetividade, nem

    tampouco, com vistas a uma pretenso especulativa; ultrapassa o prprio

    condicionamento histrico e o domnio dos preconceitos (Vorurteil) ao qual a

    conscincia est necessariamente submetida.

    Na experincia hermenutica o que se pe como mtua abertura no nos

    proporciona apenas um simples reconhecimento da alteridade do passado, mas

    revelao de que a tradio tem algo a me dizer. Por isso, a experincia hermenutica,

    enquanto experincia da conscincia histrico-efetiva (Wirkungsgeschichte), ao nos

    confrontar com um horizonte de abertura, permite que a tradio converta-se em

    experincia e mantenha-se em atitude de aberta. A tarefa de pensar a identidade da

    experincia deixa-se aqui conduzir por uma hermenutica da memria, como condio

    de nossa prpria finitude; ser finito ter memria, ser afetado pelo outro em sua

    identidade cultural.

    9 Como verdadeira experincia, a hermenutica entende aquela que afeta a quem experimenta. O outro

    sempre ser o tu nunca cercado pelo eu, mas sempre o afetando, e vice-versa. Aquele que afetado e

    experimenta nunca sai ileso dessa experincia.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 1 6

    S assim, segundo Gadamer, possvel redefinir as condies da experincia

    humana do sentido. Da tambm porque sua ressignificao comporta necessariamente a

    proposta de reabilitao da tradio e da unidade prvia de conceitos que sempre

    conferem sentido e importncia no processo de construo do saber e do interpretar.

    CONCLUSO

    O presente artigo objetivou apresentar o sentido de preconceito na concepo

    gadameriana, enquanto situao hermenutica. Tendo em vista que uma situao

    hermenutica determinada pelos preconceitos e diante da conotao negativa que o

    preconceito recebeu com o iluminismo (Aufklrung), necessrio que se reabilite o

    valor da tradio e da importncia que exerce a distncia do tempo para uma

    possibilidade positiva do mesmo na compreenso. Reabilitar a fora da tradio implica

    consider-la no apenas como um legado do passado que teve sua importncia

    minimizada em um tempo distante, mas atentar s ressonncias de significados e

    sentidos dos quais somos herdeiros e que no cessam de nos dizer algo. Ouvir a tradio

    considerar a alteridade de um passado enquanto transmisso no pode ser descartado

    enquanto um elemento constitutivo da nossa tarefa de compreender o mundo.

    O problema que, segundo Gadamer, o historicismo do sculo XIX,

    representado por Wilhelm Dilthey, embora comprometido em buscar uma legitimidade

    epistemolgica s cincias do esprito, pela histria, lamentavelmente apenas estendeu a

    concepo iluminista ao fundamentar uma compreenso reprodutiva da Histria

    desprovida de uma conscincia histrica e de uma concepo mais alargada de mtodo

    daquela preconizada pelo cartesianismo moderno. Diferente do historicismo, que

    pensava a compreenso como um reportar-se ao tempo da coisa a ser compreendida,

    para compreend-la exclusivamente com o horizonte da respectiva poca, uma

    conscincia Hermenutica necessita considerar a distncia do tempo como elemento

    essencial para a compreenso produtiva, atravs dos preconceitos positivos. Da a noo

    hermenutica de que o fenmeno da compreenso reivindica um dilogo permanente e

    frtil entre o passado e o presente.

    A distncia temporal se encarrega de filtrar os preconceitos fazendo com que os

    preconceitos dos mal-entendidos desapaream e com que os preconceitos verdadeiros se

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 1 7

    destaquem. Isto possvel atravs de uma conscincia histrica efetiva. Tal conscincia

    histrico-efetiva subentende que numa compreenso esto subjacentes os efeitos que a

    histria causa em ns, o que nos conduz a uma situao hermenutica plausvel,

    concebida pelo conceito de horizonte. Por isso que o fenmeno da compreenso

    pressupe um processo de fuso de horizontes.

    Se por ltimo nos perguntarmos pelo significado e importncia da relao entre a

    concepo dos preconceitos e a noo de experincias enquanto reflexo crtica dirigida

    noo do saber moderno, segundo Gadamer, podemos afirmar de modo objetivo que a

    reconsiderao hermenutica da experincia legitimada pela proposta de reabilitao

    dos preconceitos. Ora, ao reabilitar os preconceitos, a hermenutica filosfica no s

    dirige um apelo escuta da tradio enquanto alteridade de sentido imprescindvel para

    o compreender e interpretar como alarga-se ainda o horizonte histrico-dialgico a

    partir do qual a experincia eu-tu, enquanto experincia de abertura e de finitude, ganha

    densidade de sentido e no pode mais ser regulada por uma racionalidade limitada pelos

    referenciais de uma subjetividade cientfica moderna, e por uma concepo de verdade

    indiferente a pluralidade de sentidos que agregam o mundo da vida.

    REFERNCIAS

    ALMEIDA, C. L. da S., FLICKINGER, H. G., ROHDEN, L., Hermenutica

    Filosfica: nas Trilhas de Hans Georg Gadamer. PoA: EdipucRS, 2000.

    FRUCHON, Pierre. Lhermeneutique de Gadamer Platonisme et modernit. Paris: LesditionsduCerf, 1994.

    GADAMER, Hans-Georg. O problema da conscincia histrica. Organizador: Pierre

    Fruchon. Traduo de Paulo Csar Duque Estrada. Rio de Janeiro: Fundao

    Getlio Vargas, 1998.

    ______.Verdade e mtodo. Traos Fundamentais de uma Hermenutica Filosfica.

    Traduo de Flvio Paulo Meurer. 3. ed. Petrpolis: Vozes, 1999.

    ______. Verdade e mtodo II. Complementos e ndices. Traduo de nio Paulo

    Giachini. Petrpolis: Vozes, 2002.

    ______. Esttica y hermenutica. Introduccin de ngel Gabilondo. Traduccin de

    Antonio Gmez Ramos. 3 ed. Espana: Tecnos, 2006.

    _____. Hermenutica em Retrospectiva. Traduao de Marco Antonio Casanova. 2 ed.

    Petrpolis: Vozes, 2012.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 - 1 8 1 8

    GRONDIN. Jean. Introduction Hans-Georg Gadamer; La nuit surveille. Paris: Les

    editions du Cerf,1999.

    ______. Introduo hermenutica filosfica. Traduo de BennoDischinger. So

    Leopoldo: UNISINOS, 1999, Coleo Focus.

    ______. Hans-Georg Gadamer; Une biographie.Paris: Bernard Gasset, 2011.

    ______. Hermenutica. Traduo de Marco Marcionillo. So Paulo: Parbola, 2012.

    ______. O pensamento de Gadamer. Traduo de Enio Paulo Giachini. So Paulo:

    Paulus, 2012.

    HABERMAS, Jrgen. Dialtica e Hermenutica. Traduo de lvaro Valls. Porto

    Alegre:L&P,1987.

    HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Traduo de Mrcio de S Cavalcanti, Petrpolis:

    Vozes, 1988, V. 1.

    HEKMAN, Susan J. Hermenutica e sociologia do conhecimento. Traduo de Lus

    Manoel Bernardo. Lisboa: Edies 70, 1986.

    OLIVEIRA, Manfredo Arajo de. Reviravolta lingustico-pragmtica na filosofia

    contempornea. : So Paulo: Loyola, 1996.

    PALMER, Richard E. Hermenutica. Rio de Janeiro: Edies 70, 1969. 284 pp.

    OSS, A.O. Diccionario de hermenutica. Bilbao: Universidad de Deusto, 1997.

    SILVA, Maria Lusa P. F. da, O Preconceito em H.-G. Gadamer: sentido de uma

    Reabilitao. Coimbra: FCG, JNICT, 1995.

    VATTIMO, Gianni. Introduo a Heidegger. Lisboa: Edies 70, 1971.

    ROHDEN, Luiz. Hermenutica filosfica. So Leopoldo: Unisinos, 2002. Col. Ideia.

    STEIN, E. Aproximaes sobre hermenutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.