Preconceito linguístico
-
Upload
jamille-rabelo -
Category
Documents
-
view
16.314 -
download
0
description
Transcript of Preconceito linguístico
Jamille RabeloMaria de Jesus
Mayara Pereira
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA - UFUINSTITUTO DE LETRAS E LINGUÍSTICA - ILEEL
CURSO DE LETRAS
“Discutir variação e ensino se coloca pra mim sempre como
um desafio, pelo fato de eu não tratar diretamente de
questões que envolvem o ensino. Mas, tendo em vista que, na
minha opinião, um dos aspectos fundamentais no ensino tem
a ver com a atitude linguística, sempre que participo de
discussões dessa natureza, faço relação com a questão do
preconceito linguístico”.
(SCHERRE, 2005, p. 76)
“[...]Eu sou testemunha viva deste fato. Sempre interessada em
estudos que envolvem línguas, normativos ou descritivos, só fui
entender (sem aceitar) a argumentação das gramáticas normativas
quando estava fazendo o curso de mestrado, em 1974. Naquela
ocasião, fazendo um trabalho a quatro mãos, uma colega minha
escreveu a sua parte do texto usando sistematicamente a
denominada passiva sintética, o que achei absolutamente estranho,
para não dizer ‘errado’ “.
(SCHERRE, 2005, p. 82)
Língua: sistema natural de comunicação humana.
Gramática normativa: livro feito por falantes-pesquisadores, com
ênfase especial na modalidade escrita de prestígio, uma das muitas
faces do exercício do poder.
“Aquisição natural não requer ensino formal, apenas exposição ao
ambiente lingüístico. Uma criança de 3 anos de idade já exibe uma
produção lingüística que supõe a existência de um sistema bastante
complexo.” (p.88)
“Praticar preconceito lingüístico, explícito ou implícito, é, sem dúvida,
atentar contra a cidadania.” (p.88)
“[...] quando um falante nativo de uma língua explicita o sentimento
de que não sabe falar a sua própria língua, ele de fato está
confundindo a sua língua com a gramática normativa de parte de sua
língua.” (p. 89)
“[...] gramáticas normativas são reflexos de diversos estados de
línguas falados pela elite, baseadas no mais das vezes em textos
escritos por pessoas de prestígio: é a codificação da linguagem falada
ou escrita dos que exercem o poder social, político e econômico.”
(p.89)
“Mais uma vez está se confundindo língua com gramática normativa;
e esta confusão precisa ser desfeita e não reforçada.” (p. 89)
“Não custa lembrar que, antes da descoberta do
Brasil, os povos indígenas, legítimos donos
desta terra, falavam línguas diversas, que
foram sim, assassinadas, pela imposição
cultural de seus descobridores, ou, outras
vezes, pelo simples extermínio de seus falantes.
Também não custa lembrar que inúmeras vezes
as pessoas são levadas a não expressarem suas
opiniões ou são impedidas de participarem do
sistema produtivo porque não detêm as formas
consideradas padrão por uma criatura (a
gramática normativa) que, infelizmente, engole
o seu criador (homens falantes que a
elaboraram).” (p. 91)
“Se “99% dos falantes erram” a construção “Nada existia entre
mim e você”, ao substituí-la por “Nada existia entre eu e você”
(“Mim faz e acontece”, 6 de novembro de 1995), então, em
verdade, quem está errando? Os falantes ou a gramática?”
“Que direito tem alguém de estabelecer relação entre o domínio de
determinadas formas lingüísticas e beleza ou feiúra; domínio de
determinadas formas lingüísticas e elegância ou deselegância;
determinadas formas lingüísticas e domínio de determinadas
formas lingüísticas e competência ou incompetência e domínio de
determinadas formas lingüísticas e inteligência ou burrice? (...)”
João Figueiredo, anos atrás (...) Ninguém pensava que o presidente
usasse o chulo coco, embora o vocábulo combinasse com ele,
pessoa física. (...)” (p. 92-3)
“Não sou contra a gramática normativa. Não tenho como ser contra.
Na maior parte das vezes, gramáticas normativas são produtos dos
grupos sociais de prestígio. Seu ensino tem, nas comunidades
modernas, uma função da qual não se pode fugir. Não se pode furtar
de ensinar a usar uma arma de luta social. O que tem de ficar bem
claro é que, quando o professor de português está ensinando
gramática normativa, ele NÃO está ensinando língua materna, ele
NÃO está ensinando língua portuguesa. Língua materna se adquire;
não se aprende e nem se ensina”. (p. 93)
“Casos normais: “deficiência de aprendizagem” e
“aprendizagem” é enganoso. Não há aprendizagem
em qualquer sentido geral do termo. Você pode
tentar ensinar uma língua se quiser, mas você
estará apenas distorcendo o processo normal, e
provavelmente a criança não prestará nenhuma
atenção”. (p. 94)
“Ensina-se, sim (e muitas vezes se aprende), gramática
normativa, uma segunda língua ou uma língua estrangeira ou,
talvez, um novo dialeto; as gramáticas normativas, em alguns
aspectos, são reflexos de verdadeiras línguas, no sentido de
serem reflexos de um outro estado de língua, com um outro
conjunto de relações.”
“O grande conflito é que se ensina gramática normativa
afirmando que está se ensinando língua materna. E os
alunos, ou os aprendizes, como são sábios, muitas vezes não
gostam de aulas de português; e com completa razão.”
(p. 95)
1. Ensinar gramática normativa:
É acima de tudo uma atitude política, e a postura do
professor na sala de aula é fundamental no processo
ensino/aprendizagem da gramática normativa.
2. Especialmente nas quatro primeiras séries do
primeiro grau, o ensino de gramática normativa, a meu ver,
é absolutamente desnecessário:
O tempo que se gasta com gramática deve ser totalmente
dedicado à produção e compreensão continuada e crítica do
texto escrito, de forma rica e prazerosa.
3. A gramática normativa da língua portuguesa precisa ser
atualizada.
Mais pesquisas lingüísticas que envolvam comparação entre
língua falada e língua escrita.
No que diz respeito à descrição das unidades gramaticais da
fala e da escrita.
a) No português brasileiro, a expressão na forma escrita de
propagandas sem diálogos:
Imperativo por meio do subjuntivo:
Olha a chuva. Olha o óleo. Redobre a sua atenção ao dirigir
na chuva.
Em algumas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil a
expressão do imperativo se dá por meio da forma associada ao
indicativo:
Passa o braço na frente. Vai embora daqui... Não faz isso comigo.
Não tem nenhuma associação com a segunda pessoa do singular tu
como estabelece a gramática normativa.
b) Os casos particulares de concordância verbal de número, listados
pelas gramáticas normativas (casas variáveis e muitos dos quais
próprios da escrita).
(I) Construções de sujeito com estrutura subordinada adjetiva
(estrutura relativa), com dois candidatos ao controle da concordância.
Uma das falácias que existe sobre o serviço público é o excesso de
funcionários. Não sou eu quem descrevo.
(II) Construções de sujeito de um só núcleo (sujeito simples) não-
humano com dois candidatos ao controle da concordância:
Sujeito de um só núcleo singular não-humano seguido de
sintagma preposicional (SPrep) com núcleo plural:
A maioria dos pais impõem restrições à prática das crianças de assistir
televisão.
Boa parte dos partos não ocorre em hospitais.
Sujeito de um só núcleo plural não-humano seguido de
sintagma preposicional (SPrep) com núcleo singular:
As drogas da psiquiatria bloqueiam a inteligência.
As mudanças bruscas do momento político pode provocar um aumento
de patologias mentais.
Sujeito de um só núcleo singular não-humano seguido de
sintagma preposicional (SPrep) com adjuntos compostos:Mapa astral de Collor e Brizola indica dificuldades.
Sujeito de um só núcleo de uma pessoa do discurso seguido
de SPrep com núcleo de outra pessoa do discurso:Muitos de nós tivemos.
Muitos de nós tiveram medo
Estruturas com verbo ser – sujeito não-humano singular e
predicativo não-humano plural:Nem tudo são flores no caminho da avó.
A ventura era as tuas delícias.
(III) Construções de sujeito de mais de um núcleo (sujeito composto)
singular não-humano, coordenado pela conjunção e ou por
entonação/pausa, representada pela vírgula na escrita:
A abertura e a desregulamentação da economia chegará finalmente ao
mercado financeiro.
A ordem e o equilíbrio da composição geométrica em planos bem definidos
reafirmaram esta visão do tema.
(IV) Construções de sujeito de mais de um núcleo (sujeito composto)
singular, coordenado pelas demais conjunções (ou, nem, como) incluindo-
se aqui a preposição com e as expressões correlativas (tanto... como; bem
como; assim como. Do mesmo modo que, não só... mas também):
Tanto o músico quanto o instrumento chegam da província.
TRE admite que tanto a votação quanto a apuração dos votos será lenta
que nos outros estados.
(V) Construções com sujeito posposto, independentemente de
ser composto pelo menos o primeiro núcleo no singular:
Faltam produtos nos supermercados.
Em todo canto surge sinais de alarme que deveriam nos
inquietar.
Muitas gramáticas normativas apontam que as estruturas
especificadas acima não apresentam a mesma probabilidade
de terem como controlador da concordância um elemento que
não ocupa a posição de núcleo do sujeito.
Estruturas de núcleo com percentuais: se singular, o verbo
tende ao singular (10% da população ativa do país está
desempregada); se plural, o verbo tende ao plural (Ela diz
que 90% dos prematuros saem da maternidade mamando).
Estruturas de núcleo plural não percentuais: retêm no próprio
núcleo a concordância. As drogas da psiquiatria bloqueiam a
inteligência.
As estruturas de sujeito com estrutura subordinada adjetiva
(pronome relativo que: sua principal função é a de obliterar
a relação do verbo com o sujeito).
Doa-se lindos filhotes de poodle
Vendem-se casas
Joga-se búzios
Cobrem-se botões
Analisa-se dados
Consertam-se calçados
Aluga-se apartamentos
Devem-se ler bons livros
Frita-se ovos
Doa-se lindos filhotes de poodle
Vendem-se casas
Joga-se búzios
Cobrem-se botões
Analisa-se dados
Consertam-se calçados
Aluga-se apartamentos
Devem-se ler bons livros
Frita-se ovos
A questão tem de ser vista, no mínimo, como de
escolha do falante ou do escritor. (p. 109)
“Embora a fala normal e a escrita monitorada (especialmente a
de textos acadêmicos criteriosamente revisados) tendam a
exibir estruturas do tipo Doam-se lindos filhotes de poodle,
recentes trabalhos sobre as estruturas sintáticas de
classificados evidenciam que a presença de verbo no plural
em estruturas deste tipo nos jornais brasileiros do século
XXI é de 9%, conforme pesquisa inédita de Santos, Silva,
Bechara & Souza (2002).” (p. 111)
“A luta pelo preconceito linguístico,
bem como a luta contra toda
espécie de preconceito, parece às
vezes ser uma luta contra a maré.
Mas é uma luta que precisa
continuar: nós, falantes-lingüistas e
lingüistas nem sempre muito
falantes, não podemos nos omitir.
Temos, todos nós, o dever de
participar do debate público contra
o preconceito lingüístico.” (p. 112)
“Não falamos (e muitas vezes não escrevemos) o que a
gramática registra, mas o que os grupos sociais usam, aceitam
e, até, não aceitam ou rejeitam. Falamos a língua de nosso
tempo e a língua de nosso grupo. Isso não quer dizer que
devemos rejeitar as gramáticas normativas, mas, apenas, usá-
las e atualizá-las, também na fonologia, na morfologia, na
sintaxe e na semântica. Gramáticas são criaturas; os criadores
somos nós.”
BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística. São
Paulo: Contexto, 2006.
___________. Não é errado falar assim! Em defesa do português
brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
___________. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 52 ed.
São Paulo: Edições Loyola, 1999.
SCHERRE, Maria Marta Pereira. Doa-se lindos filhotes de
poodle: variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo:
Parábola Editorial, 2005.
ABRAÇADO, Jussara. Entrevista com Maria Marta Pereira
Scherre sobre preconceito lingüístico, variação lingüística e
ensino. In: Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Preconceito
lingüístico e cânone literário, no 36, p. 11-26, 1. sem. 2008