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7/30/2019 Da valentia à neurose: Criminalização das galeras funk, ‘paz’ e (auto)regulação das condutas nas favelas http://slidepdf.com/reader/full/da-valentia-a-neurose-criminalizacao-das-galeras-funk-paz-e-autoregulacao 1/28 653 Introdução Brigar pra quê se é sem querer? Quem é que vai nos proteger? Será que vamos ter de responder Pelos erros a mais, eu e você? Legião Urbana O s “bailes de galeras” 2 – “de brigas” ou de “corredor”, como também eram classi cados – integraram o cir- cuito de bailes unk no Rio de Janeiro na década de 1990. A atuação em galeras se caracterizou por interações ba- seadas em lutas ísicas, constituindo uma modalidade de lazer e sociabilidade para muitos jovens, em sua maioria moradores de avelas e subúrbios da cidade (VIANNA, 1988; CECCHE- O, 1997; HERSCHMANN, 2000; CUNHA, 1996, 2001; MAOS, 2006). As brigas aconteciam dentro de clubes ou lu- gares de passagem e encontro, como praias, zonas centrais dos Da valentia à neurose: Criminalização das galeras unk, ‘paz’ e (auto)regulação das condutas nas avelas 1 Carla dos Santos Mattos Pesquisadora da Uerj Recebido em: 30/06/2011 Aprovado em: 22/05/2012 Este artigo versa sobre percepções e experiências de violência entre jovens ex-integrantes de galeras unk. O oco da análise recai sobre as palavras “neurose”, usada entre os jovens para contextualizar uma ase de maior tensão, e “violência”, ligada ao poder das acções do tráco de drogas nas avelas cariocas. Busco explorar os sentidos da “neurose” como categoria que percebe uma mudança no padrão de interação social que marca a extinção das galeras no circuito de eventos em torno do unk. Tais percepções são parte da construção de subjetividades gestadas no processo de criminalização que opera a secular oposição “avela”/“asalto”. Palavras-chave: sociabilidade, violência, avela, unk carioca, galeras DILEMAS: Revista de Estudos de Conito e Controle Social - Vol. 5 - n o 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680 From Valour to Neurosis: Criminalization of the ‘Galeras’ Funk, ‘Peace’ and (Self-)Regulation of Conduct in the Fave- las addresses the perceptions and experiences o youth violence among ormer members o ‘galeras’ unk (tribe-like groups o unk a cionados). The analysis ocuses on the words ‘neurose’ (neuro- sis), used by the youths to describe a situation o high tension, and ‘violência’ (violence), related to the power o the drug tra ck- ing actions in the Rio de Janeiro slums. The category ‘neurosis’ detects a change in the pattern o social interaction that marks the elimination o the ‘galeras’ rom the circuit o unk events. Such perceptions help construct subjective views generated in the process o criminalization that operates the secular opposition between the ‘ avela’ and the ‘as alto’ (the regular urban space). Key words: sociability, violence, avela, Rio de Janeiro unk, galeras 1 Este artigo é uma releitura de dois capítulos de minha disserta- ção (MATTOS, 2006). Agradeço a minha orientadora, Márcia Leite, por instigar a valorização acadê- mica deste trabalho e incentivar sua publicação. Sou imensamen- te grata aos amigos interlocuto- res do estudo – “Michele”, “Silva”, “Charles” e “Nando”–, por longas entrevistas para ajudar na pesqui- sa, narrando suas experiências e explicando/teorizando paciente- mente os termos e situações. 2 Os termos entre aspas servem para indicar uma categoria nativa quando significativa para o contex- to analisado. É o caso de “paz”, “vio- lência”e “guerra”. Diferentemente, o termopacificação, embora esteja em destaque na política estatal de segurança pública atualmente, é usado aqui no sentido do apazi- guamento de tensões e conflitos.

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Introdução

Brigar pra quê se é sem querer?Quem é que vai nos proteger?Será que vamos ter de responderPelos erros a mais, eu e você?Legião Urbana

Os “bailes de galeras”2 – “de brigas” ou de “corredor”,como também eram classi cados – integraram o cir-cuito de bailes unk no Rio de Janeiro na década de

1990. A atuação em galeras se caracterizou por interações ba-seadas em lutas ísicas, constituindo uma modalidade de lazere sociabilidade para muitos jovens, em sua maioria moradoresde avelas e subúrbios da cidade (VIANNA, 1988; CECCHE -

O, 1997; HERSCHMANN, 2000; CUNHA, 1996, 2001;MA OS, 2006). As brigas aconteciam dentro de clubes ou lu-gares de passagem e encontro, como praias, zonas centrais dos

Da valentia à neurose: Criminalização dasgaleras unk, ‘paz’ e (auto)regulação dascondutas nas avelas 1

Carla dos Santos Mattos

Pesquisadora da Uerj

Recebido em: 30/06/2011Aprovado em: 22/05/2012

Este artigo versa sobre percepções e experiências deviolência entre jovens ex-integrantes de galeras unk.O oco da análise recai sobre as palavras “neurose”,usada entre os jovens para contextualizar uma ase

de maior tensão, e “violência”, ligada ao poder dasacções do trá co de drogas nas avelas cariocas.Busco explorar os sentidos da “neurose” comocategoria que percebe uma mudança no padrão deinteração social que marca a extinção das galeras nocircuito de eventos em torno do unk. Tais percepçõessão parte da construção de subjetividades gestadasno processo de criminalização que opera a secularoposição “ avela”/“as alto”.Palavras-chave: sociabilidade, violência, avela, unk carioca, galeras

DILEMAS: Revista de Estudos de Con ito e Controle Social - Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680

From Valour to Neurosis: Criminalization of the ‘Galeras’Funk, ‘Peace’ and (Self-)Regulation of Conduct in the Fave-las addresses the perceptions and experiences o youth violenceamong ormer members o ‘galeras’ unk (tribe-like groups o unk

a cionados). The analysis ocuses on the words ‘neurose’ (neuro-sis), used by the youths to describe a situation o high tension,and ‘violência’ (violence), related to the power o the drug tra ck-ing actions in the Rio de Janeiro slums. The category ‘neurosis’detects a change in the pattern o social interaction that marksthe elimination o the ‘galeras’ rom the circuit o unk events. Suchperceptions help construct subjective views generated in theprocess o criminalization that operates the secular oppositionbetween the ‘ avela’ and the ‘as alto’ (the regular urban space).Key words: sociability, violence, avela, Rio de Janeiro

unk, galeras

1 Este artigo é uma releitura dedois capítulos de minha disserta-ção (MATTOS, 2006). Agradeço aminha orientadora, Márcia Leite,por instigar a valorização acadê-mica deste trabalho e incentivarsua publicação. Sou imensamen-te grata aos amigos interlocuto-

res do estudo – “Michele”, “Silva”,“Charles”e “Nando”–, por longasentrevistas para ajudar na pesqui-sa, narrando suas experiências eexplicando/teorizando paciente-mente os termos e situações.

2 Os termos entre aspas servempara indicar uma categoria nativaquando significativa para o contex-to analisado. É o caso de “paz”, “vio-lência” e “guerra”. Diferentemente,o termo pacificação, embora esteja

em destaque na política estatal desegurança pública atualmente, éusado aqui no sentido do apazi-guamento de tensões e conflitos.

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bairros e transportes públicos, constituindo áreas nomeadas de“neutras”. odos esses locais, chamados de “as alto”, di erem dosespaços que são re erências para as identidades territorializa-das das galeras: ruas, becos, bairros, regiões, travessas e avelas.Nesses bailes, se ritualizava predominantemente o que FátimaCecchetto (1997) interpretou a partir da noção deethos guerrei-ro: um conjunto de valores baseados na honra masculina paraa de nição social do homem valente; quem tem “disposição”para brigar e de ender o seu território e/ou amigos.

As galeras caram conhecidas através do “arrastão” –roubo coletivo – de 18 de outubro de 1992, na praia de Ipane-ma, Zona Sul, quando oi desencadeada a discussão públicasobre o lugar do pobre na cidade e na pauta política do Estado.

Procurou-se explicar a sensação de insegurança patrimoniale ísica decorrente de episódios considerados parte do que sechamou “violência urbana”. As releituras seguiram uma lógi-ca especí ca de interpretação inspirada no que Márcia Leite(2000) de niu como “metá ora da guerra” entre a “ avela e oas alto”. A criminalização e a violência das brigas repercuti-ram no universo unk a partir da ameaça de proibição dosbailes e da acusação de associação ao trá co, azendo comque setores dos movimentos sociais se unissem a grupos liga-dos ao unk em prol do movimento de “paz” nesses eventos.A despeito do es orço interno de paci cação, iniciou-se umprocesso de interdição judicial dos bailes, sobretudo nas ave-las onde os eventos sempre oram considerados pací cos noque tange à dinâmica dos “corredores” em clubes na cidade.

Este texto apresenta uma pesquisa realizada em 2004 e 2005com ex-integrantes da extinta galera da Nova Holanda, avelada Maré, Zona Norte da cidade. A análise se baseia em relatosde quatro jovens que representam duas gerações que atuaramem distintos bailes de nidos pelo nível de “violência”: o Bailede Bonsucesso (1987-1996) e o Baile do Chaparral (1999), esteúltimo considerado mais perigoso3. O objetivo do artigo é com-preender as percepções e experiências de “violência”, assumindoo viés histórico e comparativo na análise sobre a atuação “guer-reira” em relação ao novo momento de “paz” nos bailes. Os jo- vens interlocutores da pesquisa azem uso recorrente da palavra

“neurose” ao se re erirem a um novo contexto de poder ligadoàs acções do trá co de drogas que atuam nas avelas no Rio deJaneiro4, marcando uma nova perspectiva para o convívio social.

3 “Violência” re ere-se ao usoda orça na construção doscon itos e interações sociais.Na percepção dos jovensque entrevistei, o uso da or-ça ísica, quando extrapola oespaço dos bailes, gera uma“violência” maior.

4 A defnição que uso de“ avela” é a mesma dada pe-los in ormantes da pesquisapara di erenciar as áreasresidenciais populares do-minadas por grupos crimi-nosos ligados ao tráfco dedrogas ou milícias. Muitasvezes, o termo “comunida-de” serve para designar omesmo sentido de “ avela”,mas é utilizado também

como orma alternativa aoestigma que liga avela ecrime, visando a uma identi-fcação a etiva com o lugar.

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O confito e a “violência” tinham orça integradora no conví- vio entre galeras rivais5, mas essa maneira de experimentar a riva-lidade é modi cada no contexto das acções quando observadasduas situações. Na primeira, nota-se que, dentro dos “corredores”,alguns jovens – chamados de “neuróticos” – começam a se des-tacar a partir dos re erenciais culturais da acção que idealizam a“guerra” armada contra o inimigo – “alemão” –, impondo umanova moral do “sujeito homem” não mais valorizada em sua orça

ísica e disposição para a luta. A segunda situação re ere-se ao con-texto de “guerra” entre acções nas avelas – contexto chamado de“ritmo neurótico” (MATTOS, 2006) –, quando um novo ideal deconvívio social de “paz” e “lazer” na comunidade e nos bailes in-cide de modo diverso nas percepções de risco-perigo, nas estraté-

gias de circulação e nas práticas de (auto)regulação6

das condutase de identi cações em ace da criminalidade violenta local.

Criminalização e o “pede a paz” no circuitode brigas na cidade

Sou história do unk isso eu tenho que alarPede a paz, tem conceito, vem também para animar(...)Verde e rosa é a Mangueira, Só você está com vocêA montagem “Pede a Paz” luta contra a covardiaEu peço pra vocês para se ligar na minhaDia 22 de julho se liga no que aconteceuSete menores Assassinados morreramO tempo oi passando e sentimos outra dorEm Vigário Geral só morreu trabalhador(...)Eu canto esse rap e mando no embaloPara quem não me conhece eu sou o MC GaloHistória do Funk – Mc Galo da Rocinha

O “arrastão” serviu de operador lógico de amiliarizaçãodo unk na cidade (VIANNA, 2000), inaugurando um camposemântico que articulou juventude, violência e pobreza. Nes-

se contexto criminalizador, os unkeiros oram apresentadoscomo inimigos da cordialidade carioca, pondo em xeque osprincípios da democracia racial e social que ordenam a re-

5 Sobre etno graf as embailes de “corredor” e os motivos das ri xas ver Hers-chman n (2000), Cecchetto (1997) e Cunh a (2001).

6 Usei a ide ia de (auto)con-tro le no sentido pens adopor Norbe rt Elias sobre ainterdependência entre as

orças regu lado ras externase os processos de sub jeti-vação imp licad os em cadaconfguração de poder .

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presentação do Rio de Janeiro como “cidade maravilhosa” esímbolo da “essência” da identidade brasileira (LEI E, 2000;CUNHA, 1996, 2001; HERSCHMANN, 2000). Imediata-mente trans ormados em questão de polícia, os bailes unk eos unkeiros so reram um processo de repressão estatal. Em1995, oi criada a CPI do Funk para investigar a ligação nãocomprovada dos organizadores dos bailes com o trá co dedrogas na cidade e, em 1996, a Lei Pitanga regulamentou osbailes de clube, mas somente naqueles em que não aconte-ciam brigas. Ganhando status de ilegalidade, os “corredores”continuaram; contudo, o problema público em torno do unk começou a recair sobre a questão da clandestinidade, por cau-sa da apologia ao crime e à pornogra a denunciada nos bailes

em avelas – ou “baile de comunidade”.Outra legislação criada em 2000, a Lei do Funk es-tabeleceu uma série de exigências legais para a regula-mentação desses eventos, sendo interditados vários deles,como destaca a notícia (ARAÚJO, 28/3/2001) publicadapelo Portal erra em março de 2001:

O Promotor Romero Lyra, um dos principais participantes da CPIdo Funk que resultou na lei, concorda que ela ainda é poucoaplicada. “A grande maioria dos bailes é clandestina”, a rma Ro-mero. A Lei do Funk, aprovada em maio de 2000, é resultado dostrabalhos da CPI na Assembleia do Rio de Janeiro que apurou asdenúncias de violência, apologia ao crime e às drogas e porno-gra a no interior dos bailes. Os principais promotores do unk e as autoridades que denunciaram as irregularidades nos bailes

oram chamados, entre outubro de 1999 e maio de 2000 paraprestar depoimento à CPI. Uma série de acusações oi levantadae cerca de 30 bailes oram interditados.

Os bailes em avelas sempre oram pací icos e algunseram bastante populares, como, por exemplo, o do Cha-péu Mangueira, na Zona Sul. Classi icados como áreasnão neutras, a própria lógica das galeras não permitia queo “alemão” atuasse junto ao seu grupo. As brigas entregaleras, moradores ou visitantes eram proibidas pelas tra-

icantes no intuito de evitar problemas com a polícia e ga-rantir o evento, rentável para o negócio das drogas e parao prestígio da acção (como veremos na próxima seção).

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O unk “proibido” e o contexto das acções: “Guerra” e“paz” nas avelas

Valentão, você quer baterMas vai ter que contar com a sorteInventaram a arma de ogoNão existe homem orteRap proibido do Comando Vermelho

O unk “proibido” ou “proibidão” é uma vertente mu-sical que retrata a vida dos bandidos no crime e constrói a“guerra” entre acções como “realidade” das avelas. As mú-sicas contendo letras proibidas sempre existiram, mas esses

unks ganham o repertório temático nos bailes quando osgrupos criminosos começam a se associar a acções e a dis-putar territórios para venda de drogas ilícitas no varejo.

Os “proibidões” tocados nos bailes de avela começam aazer parte da produção musical como orma de projeção ar-

tística já em meados da década de 1990, quando são proibidos vários bailes de briga em clubes da cidade. Como mencioneianteriormente, oi o momento em que os organizadores dessesbailes promoveram os “ estivais de galeras”, objetivando cana-lizar positivamente as rivalidades através de gincanas e, sobre-tudo, da realização de concursos musicais. Os unks que ga-nharam os estivais, em sua maioria, pediam a “paz” nos bailes.Ao etnogra ar esses estivais, Fátima Cecchetto (1997) veri couque, apesar de o movimento de conscientização pela paz terganhado orça no circuito, a atuação dos “guerreiros” em brigasde galeras continuava a ser o clima excitante da competição –momentos conhecidos como “cinco minutinhos de alegria”.

Ligados a essa problematização pública da “paz”, e antea criminalização do unk, alguns raps do Comando Verme-lho (CV) surgem ressigni cando a linguagem das galeras,utilizando termos como “alemão”, “invasão”, “bonde do mal”,“disposição”, “bonde destruidor”, usando igualmente o ritmo“pancadão” ou “batidão” – a mesma base da criação musical.No mesmo estilo dos “gritos” ou “montagens” de galeras, oicriado o hino do CV: “Alemão, tu passa mal, porque o Co-

mando é vermelhô, vermelhôooo/É o bonde de disciplina, éo bonde destruidor... tem que ter disposição/Porque de dia ede noite, pode vir que a chapa é quente”. rilhando a mesma

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DILEMAS 659DILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680Carla dos Santos Mattos

perspectiva, outros raps exaltam a acção e seus líderes, ma-peiam as avelas onde atuam (ou atuavam) e descrevem a dis-posição violenta dos bandidos para “de ender” a sua acção eseu território contra os “alemão”: a acção rival e o X-9 – tam-bém chamado de “mandado”, “Mister M” ou quem vem de“ninja dis arçado” para “caguetar”. Se, por um lado, diversasletras retratam o cotidiano violento de “guerra” entre acçõese tiroteios com a polícia, por outro, as músicas vão en atizar ecelebrar o controle do território e a expectativa de rotinizaçãodesse controle através da pacifcação das condutas.

O “pede a paz” nos bailes do “as alto” é ressigni cado nessecontexto. Na avela, a “paz” vira sinônimo de “lazer” e os bailes

unk tornam-se o espaço-tempo contraneurótico onde todos

podem conviver na “tranquilidade”. A categoria “sem neurose”exprime a idealização de um espaço social não con itivo noqual é preciso ter uma conduta pací ca chamada “blindão”. Aconstrução desse ambiente “sem neurose” requer as seguintescondições: (i) a regulação das condutas dos “valentes”; (ii) aeliminação do “alemão” do convívio social; (iii) e a di ícil nego-ciação do “arrego”, isto é, o pagamento de propina aos policiais,nesse caso especí co para garantir que o baile unk ilegal acon-teça. As letras a seguir discorrem sobre tais condições:

(i) Regulação das condutas/desqualifcação dos valentes,tranquilidade e lazer nos bailes

(1) Se liga rapaziada, o cerco tá se echando/Por causa do “corredor”,os bailes unk estão se acabando/Eles [Estado/polícia ] estão bolados[irritados], querem nos prejudicar/Cabeça de passarinho, vou te daruma ideia/Pare de vacilação, leve noblindão [ter disciplina, seguir as

regras] que a coisa tá séria/Sem neurose, sem miséria, vou te alertar:baile unk na avela, não tem corredor, não pode brigar

(2) Não subestime o próximo, cada um com o seu cada um/Deus aju-da quem trabalha, na escola da vida você é mais um/Experiência seadquire na prática, Nova Holanda está sempre presente/(...) Vem praNova Holanda, tradição dos bailes que você vai se amarrar/Vem praNova Holanda, sou criado e moro lá (...) Na Nova Holanda é paz, tran-

quilidade, lazer no blindão/Ter conceito é responsa, baile unk é bomsem vacilação/Conquiste na disciplina a con ança dos irmãos/Quemsabe mostra na prática e não de ca de caô [vacilo] mandando sermão

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(ii) Aniquilamento do “alemão” do convívio

(3) A ronda vai passar por aí/Se botar a cara tu vai cair/Não pre-cisa nem gritar, o bonde vai te massacrar/O Gatão vem aí de AK/Porque o bonde é pureza, é disposição/Não dá mole, não/Por issonão entra X-9 e nem vacilação/Seu otário, vacilão/É vermelhô, osalemão tentou brotar!/Fazendinha vai detonar, pois é vermelho,é vermelho!/Os alemão tentou brotar, [Morro da] Mineira vai de-tonar, pois é vermelho/Estou no Fallet e Fogueteiro [avelas loca-lizadas no Centro da cidade ], Mister M [ X-9] não entra no Salgueiro[ avela localizada na Zona Norte]/O bonde oi iluminado, oi porDeus do céu/Meu amigo, um dia vou no Borel [avela localizada na Zona Norte]/... Liberdade pros irmãos de vez/Soltar o Bangu I, Frei

Caneca e o Bangu III/Os alemão tentou brotar, pá pum pá pum vaidetonar, pois é vermelho/Destrava o uzilzão, destrava o uzilzão/Vamos lá nos alemão! [trocar tiros com a acção rival na ronteiraterritorial que divide as acções, chamada de “divisa” ]

(iii) Perspectiva de pacifcação: Baile unk como lazer da avela

(4) Vaza, porra! Tá com a boca amargando? Quer bala?/Mas só nãopode correr, não adianta correr/Eu vou car do Azul [Morro Azul, lo-calizado na Zona Sul ] só de olho em você/Ô, Mister M!/Mas os ami-gos do Jaca [ avela do Jacaré, Zona Norte] agem sem perder a é/Prapoder botar o baile na “boca” Jacaré [entrada da avela]/Mas tem unscomédias que querem atrapalhar [ policiais]/Quando a equipe estámontada eles mandam desmontar/Com o morro tampado nãoposso trabalhar/Mas o “arrego” [ propina ] é humilde e eles não que-rem aceitar/Eu já alei com o coronel, já dei um toque no tenente/Se não aceitar o “arrego” eu vou descarregar o pente/De segunda àsexta só esporro do patrão/Chega no m de semana nós queremosa diversão/Curtir um baile unk, tirar onda no pagode/Será que issoé proibido? Ai meu Deus, como pode?/Uma área tão linda, uma vis-ta grande e bela/Pra curtir alguma coisa tem que sair da avela?/Eu sou um so redor, ai meu Deus, como pode?/Eles estão me su o-cando tá me batendo neurose /Mas se a gente ligar e “desenrolar”/Na

avela do Jacaré o baile tem que rolar/Pega esse “arrego”, saia logovoado/Senão mato vocês, cambadas de arrombado/Mas vocês só

me su ocam/Querem muita grana/Vou pegar o G3 e “barulhar” oSantana/Pois eu já me bolei e vou perder a linha/Vai ser várias raja-das em cima do Gol “bolinha”[modelo de viatura policial ]

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DILEMAS 661DILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680Carla dos Santos Mattos

(5) Eu tô bolado, tu sabe como é!/Lotado de verme na avela doJacaré/Olha meu amigo, nós não aguentamos o golpe/A avelatá preta, tá cheia de Bope/Olha meu amigo, você pode acredi-tar/Não tem outra solução a bala vai ter que cantar/Eu não queroisso você pode perceber/Os vermes têm que sair de lá pra área

virar de lazer/Nós somos antiterror, seguimos o ritmo do criador

(6) Domingo vou pro Recajá [ Jacaré]/Com os irmãos echar, Jacarélazer/E dar um rolé bolado e esquecer de tudo/Todos os caô queaté hoje me az so rer/Eu tô com a amília, não tem simpatia/E obagulho hoje já tranquilizou/Estar aqui de novo az parte da vida/Bate orte o coração no Jacaré/No comando do povão/Compadre,o que aconteceu? Neurose em mim não bateu !!! (...) O bonde é só

menor sagaz e a acção é o lazer/Comando do povão, o Jacaré lazer

As narrativas sobre o crime violento e sua realidade nos morrossão tematizadas nos bailes de avela o erecendo o contexto de produ-ção para a criação musical e a projeção artística. Como demonstraMylene Mizrahi (2010), o unk tem umalógica apropriativade criaçãoque conscientemente valoriza a “mente” criativa em seu potencial demanipulação dos elementos culturais o erecidos na sociedade. O estilomusical possui um mecanismo especí co de apropriação do social ao

ocar e aproximar produção e consumo no circuito existente, explici-tando o caráter interdependente entre autonomia individual e socieda-de (MIZRAHI, 2010, p. 91). Nesse sentido, o circuito de bailes ilegaisem avelas vai inspirar as mentes criativas que, com pouco espaço deatuação no “as alto”, ganham destaque e reconhecimento nas avelas.Como observa a autora, a avela tem um papel undamental de di usãodo unk, onde as músicas que arão sucesso entrarão no mercado ilegalaté a inserção nos repertórios de programas de rádio e TV.

Mergulhadas em tal procedimento e lógica criativa, as letrasproibidas (de acção e de pornogra a) vão ganhando uma versãoliberada e os termos ganham duplo sentido, entre o sexual e o violento (MA OS, 2006). A palavra “neurose” deixa o sentidode perturbação e violência para expressar o impacto positivo deum comportamento ou coisa – um corte de cabelo “neurótico”,por exemplo. Como marca estilística, a “ avela” “proibida” é ontede um estilo di erenciador que Mizrahi chama dehiper-realista,

em que a elaboração do real se dá pelaestratégia do chocar , oupor meio do que chamei de per ormances proibidas, ao me re erirao “ritmo” valorizado nesses eventos culturais (MA OS, 2006).

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DILEMAS662 Carla dos Santos MattosDILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680

Da disposição ‘guerreira’ e ‘neurótica’: excitação, lazere alteridade

Sou da Nova Holanda e tenho disposiçãoVocê que é da Baixa vem azer na mão9

Nando, Michele e Silva10 relatam suas experiênciasde briga no período de 1987 a 1996, no Baile de Bon-sucesso, momento em que integraram a galera da NovaHolanda (NH), até a sua interdição. Esse baile era re-alizado no clube de Bonsucesso em área considerada“as alto”, ou seja, território “neutro” em relação ao localde moradia dos membros das galeras que lá atuavam:

Morro do Adeus, Penhão, Coahb, Vila do João, ParqueUnião, Roquete Pinto, Vila “do Pinheiro” (uma das a- velas da Maré, cujo nome o icial é Conjunto Vila dosPinheiros) etc. Em outros bailes da cidade, como Cole-ginho de Irajá, Pavunense, CCIP de Pilares e Country Clube de Heliópolis, os integrantes da NH atuavam comas galeras amigas do Lado B. Mas o baile de Bonsucesso

oi o lugar onde esse grupo ganhou visibilidade no Lado

B pelas suas atividades bem-sucedidas na competição/briga contra o seu principal rival11: a galera do Adeus(Morro do Adeus, Complexo do Alemão).

Quando “O Bonsucesso” oi echado, em 1996, algunsintegrantes pararam de brigar nos “corredores”, comoMichele. Mais tarde, o grupo da NH voltou com orça ade ender o Lado B no Baile do Chaparral, realizado nogalpão abandonado de uma extinta ábrica na AvenidaBrasil, em Ramos. Segundo os interlocutores da pesquisa,o Chaparral tornou-se um dos bailes mais “violentos” doRio, onde alguns jovens envolvidos com tra icantes de-

endiam a acção que atuava na avela em que moravam.Por essa razão, algumas galeras visitantes tinham entreseus “guerreiros” um integrante armado – o “neurótico” –para azer cobertura a seu grupo em caso de troca de tirosna saída do evento12. Integrante de uma nova geração debailes mais “violentos”, Charles narra suas experiências

de briga e con lito no Chaparral entre 1995 e 1999, nomomento em que descreve a emergência da “neurose”como situação e comportamento violento13.

9 Música que conheci naNova Holanda no fnal dadécada de 1980, onde uicriada e morei há mais de20 anos. A rase expressa arixa entre duas galeras de

avelas vizinhas na Maré:Nova Holanda x Baixa doSapateiro. Nessa época, aUniversidade Federal doRio de Janeiro organizava acolônia de érias do Fundãopara jovens entre 9 e 15anos moradores das ave-las da Maré. Participei em1988, 1989 e 1990. A uni-versidade enviava ônibusem vários pontos da Maréàs 7h para nos levar e nostraziam às 17h, de segundaa sexta, durante todo o mêsde janeiro. No curto percur-so do ônibus eram canta-

das essas rivalidades entregrupos da Maré associadosa bailes unk.

10 Os interlocutores dapesquisa, apresentadoscom nomes fctícios, sãoamigos conhecidos daNova Holanda, alguns daépoca de adolescência.

11 A ama da galera daNova Holanda é celebradaem uma “montagem degaleras” (música unk espe-cífca sobre esses grupos):“O Lado B quem manda? Éa Novô Holanda, é a NovôHolanda!”

12 Relato do ex-líder dagalera de Boaçu, em SãoGonçalo, sobre o Baile doChaparral, em entrevista re-alizada em Jardim Catarina,Região Metropolitana, em2005 (MATTOS, 2006).

13 Para imagens do Bailedo Chaparral, ver Geleia DJZZ (15/05/2008).

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DILEMAS 663DILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680Carla dos Santos Mattos

Adisposiçãoguerreira envolve técnicas corporais de lutas queritualizam o potencial de orça e coragem na de esa de seu territó-rio e na construção de uma rede de amizades. O con ronto entregaleras era ruto da valorização de pequenas di erenças entre osgrupos amigos e rivais – rivalidade entre escolas, líderes e até mes-mo rixas imemoriais. O espaço dentro dos clubes tinha uma ron-teira, chamada de “corredor”, que dividia e institucionalizava asbrigas em dois grandes lados: Lado A e Lado B. Nos “corredores”se davam os embates ísicos e rituais (através de gritos e danças)entre uma minoria “guerreira” disposta a bater no “alemão”. Nes-se espaço limítro e e con ituoso também se posicionavam os se-guranças do clube para a regulação dos momentos das agressões,proporcionando, assim, um ambiente controlado da “violência”

para a entrada no ront da “guerra” entre rivais.Nando e Silva relacionam as brigas à diversão coletiva:

Ah, como posso explicar... o nosso “bonde” [grupo de amigos ] pu-lando e se divertindo, aí dava um soco na cara de um. Aquilo eraa maior alegria que tinha no mundo! (Nando).

Tem muitos que vão por brincadeira, pra se divertir (...) Não pre-cisa ter motivo. (Silva).

Os jovens narram suas experiências passadas, buscando justi car suas ações e suas razões sobre o envolvimento em bri-gas nesses bailes. Ao alarem dos motivos e dos seus sentimen-tos, também alam de uma ase de suas vidas na qual as brigaseram percebidas como uma orma de lazer aprendida quandotinham 12 e 13 anos de idade. odos, contrariando suas mães,narram a primeira vez como um acontecimento transgressor:

Eu tinha 12 anos na época. Foi através das minhas colegas. Antiga-mente eu cava ouvindo unk em casa, aí as garotas alavam “vamospara o baile”, aí eu alava “a minha mãe não deixa”. Uma vez a minhacolega pediu para a minha mãe pra eu ir ao baile, isso oi na NovaHolanda na época, eu ui e gostei. Comecei a ir pro baile só ali mes-mo, perto de casa. Aí teve um dia que a minha colega me chamoupara o Bonsucesso [baile em clube ora da avela]. Lá era muita briga.

Gostei, adorei, senti o gostinho de brigar e ui indo até os 16 anos...[antes não saía ] minha mãe não deixava eu sair... [quando começa-ram as brigas ] botei na minha cabeça que eu só tinha 12 anos, que

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DILEMAS664 Carla dos Santos MattosDILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680

eu tinha mais é que estudar. Mas, depois comecei a curtir bailes e aestudar ao mesmo tempo e, por causa desse negócio de briga, euparei de estudar. Por causa de galeras arrumando briga. Eu estudavaperto do Morro do Adeus, aí as meninas do Morro do Adeus me ezcorrer bastante. Mas no dia que elas me pegaram, elas me arreben-

taram todinha [risadas]. (Michele)

[Quando você começou a gostar de unk? O que você curtia antes? ]Não azia nada. Eram os moleques mesmo, era infuência de adoles-cente. Então oi assim, antes da minha mãe alecer, eu pedi pra ir aobaile e ela deixou. Depois pedi pela segunda vez e ela não deixoumais. Depois, quando ela aleceu, eu comecei a desandar. (Silva)

Eu comecei a curtir baile unk, eu tinha 13 anos. Os meu colegasque pediam a minha mãe pra eu ir, aí a minha mãe deixava, so-zinho eu não ia. Lá em casa é só eu e a minha irmã. Eu sou maisvelho que a minha irmã. Eu que levei a minha irmã pro baile. Osgarotos lá da rua sempre oi unkeiro, aí nessa empolgação eu iacom eles. (Nando)

A interação entre competidores de galeras estava basea-da em laços de interdependência segmentar entre indivídu-os que compartilham um grau mínimo de rotinização do la-zer – organizando encontros, passeios, estas, competições,combinados de rixas e alianças:

[Você e a sua galera da Nova Holanda estavam sempre se encon-trando? ]A gente não era colega de colégio porque elas estudavam emcolégio na comunidade e eu sempre estudei ora, mas além de ir

para baile, a gente convivia juntas porque todo mundo moravaperto, na mesma rua. E a gente conversava muito o que ia azerdomingo, porque o baile de galera era mais no dia de domingo.A gente sempre conversava o que ia azer porque, além das bri-gas, tinha o estival de galeras, então a gente tinha que se reunirpra ver o que ia azer na semana.[Tinha um líder? ] Tinha e, principalmente, o líder também brigava e não podia

porque tirava ponto e a Nova Holanda sempre perdia! Então agente azia as coisas por zoação. (Michele)[Como era o grupo? ]

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DILEMAS 665DILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680Carla dos Santos Mattos

No grupo sempre tem um líder, então esse líder no unk erachamado de líder de galeras. No baile tinha gincana pra receberprêmios durante três ou quatro meses, então o líder promovia onegócio e sempre tinha aquele pessoal que segue ele, que erao pessoal de briga, era a minoria. Quando tinha que ser a maior

galera do baile pra ganhar o maior ponto, aí sim ele chamavatodo mundo pra ir todos juntos. Fora isso todo mundo só se en-contrava dentro do baile, indo cada um com o seu grupo. (Silva)

No livro de Dunning e Elias sobre “excitação e lazer” os au-tores dão especial destaque aoespectro do tempo livrepara a com-preensão dos modos de apropriação subjetiva do tempo em tor-no das regularidades da vida diária, em que o lazer surge como

um enclave nas rotinas de trabalho pro ssional e nas rotinas detempo livre. Eles estabelecem uma tipologia das várias atividadesde tempo livre como um “espectro” do qual az parte o lazer emsua dimensão de “agradável destruição da rotina”, ou excitaçãoproporcionada pelo risco de desa ar a vida rotineira14.

Os jovens alam sobre o interesse em seguir uma rotinade lazer na qual o status de briga era onte de reconhecimen-to social e diversão. Para Michele, brigar no baile era uma

orma de ser “bem-vista” e de ter “moral”:

Ah, não vamos implicar com essa garota não porque ela bate pracaramba, arrebenta a gente, vamos nas covardes, aquelas maismedrosas. Aí, eu queria ter essa moral também, né [risadas]? Aí eu ui e comecei a brigar. (...) As garotas me chamavam de Capeta,porque eu era perturbada no baile. Eu brigava até com homem.

O reconhecimento da valentia como onte de autoesti-ma também é justi cado por Charles:

Eu comecei a curtir baile porque eu via os garotos lá [na avela NovaHolanda ]... Eu sempre ui oprimido! Minha vida era de casa para es-cola, da escola pra casa e igreja. Mas aí eu comecei a ver os garotosque se criaram comigo lá na rua que as mães davam assim “liberdade”,entre aspas, pra, por exemplo, car na rua brincando com os outrosgarotos. Eles começaram a car mais brabos e eles eram mais res-

peitados dentro da comunidade. Aí eu ui procurar saber por queacontecia isso. Quando eu ui vê, era porque eles brigavam em baileunk, então os caras tava conseguindo ganhar nome. A gente tinha

14 Defnição do fo teóricode “espectro” do lazer notempo livre: “como coresno espectro das cores, secon undem entre si; sobre-põem-se e undem-se com

requência. Muitas vezes,combinam característicasde várias categorias. Mas aspropriedades de tais amál-gamas, de todas as rontei-ras e tipos de transição, só

podem ser compreendidasa partir de suas próprias ca-racterísticas” (ELIAS e DUN-NING, 1982, p. 146).

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DILEMAS666 Carla dos Santos MattosDILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680

que azer nome, senão, os garotos assim, que a mãe não dava edu-cação, que a mãe deixava largado e o mundo criava, eles botavam oterror na gente (...) a nossa mãe ia baixar a cabeça, e a gente tambémia entrar pra dentro [de casa], criado no ritmo da igreja (...) Eles não,eles tinham uma vida de avelado, mesmo, de jogado na rua, andar

descalço, sem camisa, pular a laje dos outros, invadir casa. Aí eu alei:por que eles são o terror da comunidade? (...) Não! Vou mostrar queeu tenho voz! Comecei a ir pro baile de briga e comecei a encarar eles.

Para Charles, está em questão a sua “liberdade” e o contro-le sobre o seu comportamento, mais especi camente da mãe,da escola e da igreja. São dois “ritmos” para o sujeito (homem)escolher: o “ritmo da igreja” ou o “ritmo da rua”, este último

signi cando o lugar dos garotos “criados no mundo”, ou seja,o lugar da imposição do mais orte. Con orme destaca MicaelHerschmann, embora as brigas ossem a principal re erênciana organização das galeras ou bondes, havia outros interessesde participação. Dentre eles, considero o ideal de segurança umimportante indicador que liga um segmento jovem a certa or-ma de mobilidade urbana ou, como coloca Charles, de seguir“o ritmo da rua”. Alguns a rmaram só se sentir seguros no seubairro, junto à sua comunidade, e que quando vão às praias,bailes de clube e estádios de utebol, o mais prudente é estarentre amigo (HERSCMANN, 2000, p. 165).

Charles começou a requentar o Baile do Chaparralem 1999 representando a galera da Nova Holanda, Lado Bdo “corredor”. Logo de início, ele se espelhou em um per l,dentre os “guerreiros”, conhecido como “neurótico”:

Os caras que batiam mais, que chamavam os caras pro duelo, os

caras que não davam mole pra ninguém, batiam até em segu-rança. Viu, esse era o cara neurótico.

Mais do que representar a sua galera, o “neurótico” tinhao propósito de liderança e, para isso, precisava ser reconhecidocomo alguém que, independentemente de seu grupo, era destemi-do, “devastava no baile, o que não dava mole pra ninguém”. Como objetivo de ganhar reconhecimento social através da capacidade

individual de se impor pela orça, Charles diz que passou para umsubgrupo visto como o espaço dos “problemáticos” ou “delinquen-tes”, um tipo ora da lei que não consegue servir ao coletivo:

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DILEMAS 667DILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680Carla dos Santos Mattos

Eu queria ser o mais neurótico. Eu comecei a desa ar os outros no corre-dor, comecei a chamar pro duelo mano-a-mano. Eu queria ser reconheci-do como alguma coisa, entendeu? Os caras que tinham medo de encararo duelo mano-a-mano, eles eram vistos como nada, entendeu, só iampro baile de corredor quando a massa ia, mas quando era sozinho, sei lá,

tripidavam, tinham medo. E já os caras que encaravam era assim “caraca,olha aquele cara”, era tipo um herói, o cara que mandava na parada. Aí comecei a entrar pro corredor dos problemáticos, dos delinquentes.[Problemático em que sentido? ] Era assim porque na hora de alar pela equipe, pelo grupo, eles eram avoz do grupo, entendeu? Ninguém alava não, se alasse um não parao problemático, aí já era “ih, qual é o teu problema comigo? Ê rapa, vêlegal, se liga na tua responsa”. Aí o cara já era neurótico e todo mundo

começava a colocar o galho dentro pra ele. Eu não queria botar ogalho dentro pra ninguém, eu queria ser o cara bem visto.

O “neurótico” é classi cado como o rapaz que sempre querse impor ao grupo. Em suas palavras, “é o problemático” no bailee dentro da sua galera. Importante notar como Charles ocaliza adimensão psicológica e individualista dos “neuróticos”, pois está

alando de si próprio, da sua autoconstituição como “neurótico”.Agora, interessa-nos pôr em relevo sua visão sobre projeto indi- vidual. Utilizo a noção de projeto individual seguindo a de ni-ção de Gilberto Velho, elaborada a partir de Al red Schütz: comouma “tentativa consciente de dar um sentido ou uma coerência”às experiências ragmentadoras, em que a biogra a deva aparecercomo um locus privilegiado da vida emocional (VELHO, 1987,pp. 29-31). O olhar retrospectivo de Charles almeja enquadrartodas as suas ações e intenções em um projeto refexivamenteconstruído que acredita no indivíduo autônomo e responsávelpela construção e controle de sua imagem pública. Charles alasistematicamente em “promoção de autoimagem” que se preten-dia pouco controlada pelo grupo. A sua identidade de “neurótico”encontrou suporte em outros grupos, o do “ladrão 155” 15 e o da

acção Comando Vermelho. Ser “neurótico” no baile de galeras eser “neurótico” como bandido ou ladrão têm em comum a neces-sidade que o agente sente de controlar as situações pela obsessãode estar pronto para os “problemas”. Contudo, é onde o trá co im-

põe suas regras de conduta, ou seja, nas avelas, que o “neurótico”pode encontrar meios mais e cazes de realização plena da sensa-ção de potência e de total “liberdade”, como veremos a seguir.

15 Re erência ao artigo penalque enquadra os crimes de rou-bo sem agressão ísica à vítima.

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DILEMAS668 Carla dos Santos MattosDILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680

Da valentia à neurose

As brigas entre galeras, antes apresentadas como diver-são e parte integrante da esta, começam a virar um atorimpeditivo dos bailes e são percebidas como um enômenoque gera mais violência. As interações con ituosas tornam--se cada vez mais violentas, indicando uma situação pertur-badora de maior risco quando passa a ser comum o uso daarma de ogo – adquirida através do trá co – para a resolu-ção “violenta” de um desentendimento, como observa Silva:

Hoje em dia, se não me engano, de 2000 pra cá, o baile está sendomuito concentrado em comunidade [quer dizer que acontecem em

territórios denominados “ avelas” ou “comunidades” ] e antes não, an-tes era em clube e clube saía briga (...) Antigamente, tomava porra-da só, hoje em dia não, hoje em dia ia morrer. Hoje em dia é matarmesmo. Hoje em dia tá muito “neurótico”: é alemão? Bora matar!É alemão? Bora bater e dar sumiço! (...) No baile unk, nego davaporrada, brigava na rua, saía correndo, quem tivesse perdendo saíacorrendo e pronto. Hoje em dia é na base da bala.

Além do ácil acesso à arma de ogo para alguns inte-grantes de galeras, outra novidade tem relação com a novade nição de “alemão”. Antes, o “alemão” era a galera de de-terminado lugar. Depois, a rivalidade passou a ter por re e-rência as acções do crime. Esse segundo momento re ere-seao nal da década de 1990 e à ase de declínio desse tipo deorganização em grupos em torno dos bailes unk. Mudama con guração de alianças e os motivos das rixas, pois duascomunidades/galeras que antes eram “amigas”, do mesmo“lado”, viram “inimigas” porque as comunidades são domi-nadas por acções rivais. Essa é uma situação mais estru-tural de inter erência do trá co entre as galeras que todosos integrantes tinham que respeitar, independentemente desuas vontades. Então, por que essas rivalidades inauguramuma ase mais violenta? Não me re ro a um padrão coletivode conduta generalizado das galeras, e sim às identi caçõese aos comportamentos individuais de membros dentro de

seus grupos – chamados “neuróticos” –, que ocam a suaatenção para a nova de nição de “alemão”, criada entre asronteiras territoriais e simbólicas da disputa entre acções

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DILEMAS 669DILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680Carla dos Santos Mattos

e/ou, no caso de Charles, que visava à ama individual. Emnarrativa detalhada, ele explora a relação possível entre o“neurótico” dos bailes de galera e a “neurose” gerada pelaincerteza de qual lado representar.

Como vimos, a atuação de Charles se deu no Baile doChaparral entre 1995 e 1999, quando se liou a um grupo de“problemáticos” ou “neuróticos” reconhecidos pela “disposição” violenta. Em um primeiro momento, época em que ainda preva-lecia o valor da representação das galeras nos chamados “ estivaisde galeras”, a “neurose” não apareceu associada à acção, e simao comportamento violento do “neurótico”. Segundo Charles, aprópria equipe que organizava o baile e promovia o estival esco-lhia o representante de galera segundo a sua “disposição” “neuró-

tica”, desrespeitando a eleição do líder por cada grupo. Ele lembraque o termo surgiu colado à acção em 1998, quando se deu umareunião entre líderes “neuróticos” das galeras da Nova Holanda,do Parque União, da Kelson e da Cidade Alta com um “repre-sentante” do Comando Vermelho. O encontro oi marcado pararesolver o que Charles chamou de “neurose da Cidade Alta”, de-corrente de sua resistência em aceitar a nova regra de rivalida-de ditada pela “guerra” entre acções, segundo a qual o Lado Bpassou a ser Comando Vermelho e o Lado A, erceiro Coman-do. De acordo com esse parâmetro, a briga entre as galeras daNova Holanda (antigo Lado B) e da Cidade Alta (antigo LadoA) deveria acabar. Contudo, nos “corredores” a galera da CidadeAlta não se aliava à Nova Holanda contra a galera de Parada deLucas (antigo Lado A), ao contrário, quando não partiam paraa briga contra a Nova Holanda aziam vista grossa em relação à vantagem de Lucas no embate. Essa con usão de Lado A e LadoB passou a atrapalhar o circuito de bailes de avela já divididossegundo a acção criminosa, onde o “alemão” deveria ser expulsodo convívio. Vejamos como Charles articula esses atos:

Quase já não existia mais Lado A e Lado B, porque Lucas era Lado Ae Cidade Alta era Lado A, mas Cidade Alta era Comando Vermelho eLucas era outra acção rival no trá co, o Terceiro Comando. Então, jáestava começando as neuroses da Cidade Alta, [continuar a ] não bri-gar com Lucas, mas brigar com a gente da Nova Holanda, e acon-

tecia direto em bailes. Aí a gente continuava brigando; na verdade,a gente não entendia mais nada, eu apanhava dos moleques deLucas, o pessoal da Cidade Alta via a gente apanhando e não azia

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DILEMAS670 Carla dos Santos MattosDILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680

nada e iam pro baile da Nova Holanda [baile de avela] e eu ia probaile da Cidade Alta. E lá eles apertavam a minha mão e eu não en-tendia nada, eu alava: “Porra, esses moleques são o maior alemão,são Lado A, bate na gente e depois vem apertar a mão”. Aí, nessaépoca, o trá co começou a intervir nos bailes de briga. De 98 pra cá

já começou essa infuência; a gente já não tinha mais liberdade dedeclarar o que é o que a gente queria ser, tinha que ser por opçãodeles, sem liberdade. E oi assim até acabar o baile de corredor.[Essa intervenção se deu como? ]Eu me lembro que os caras [lideranças de galera ] da Nova Holanda

oram lá na Cidade Alta, junto com o pessoal da Kelson, que tam-bém era Comando Vermelho e era Lado B e brigava junto com aNova Holanda e o Parque União. Aí oi essa galera com um repre-

sentante de baile, mas não representando o baile e sim o ComandoVermelho, na Cidade Alta, e alou que se o pessoal da Cidade Altabrigasse de novo com o pessoal da Nova Holanda, ia tomar tiro, oscaras já iam mandar tiro em cima deles quando eles saíssem do bai-le. Foi quando teve a separação, oi quando começou a acabar comos bailes porque começou a cortar laços de amizade, começou ainfuenciar em uma porção de coisas e começou também aneurose “se eu or lá será que os caras vão me pegar?”E começou aneurose de um não poder requentar a área do outro e assim se extinguiu onosso trajeto. Eu me lembro que na época do arrastão oi Lado A eLado B juntos. Foi a massa todinha. Todo mundo invadindo a praia.Depois disso [in uência da acção], algumas praias caram mais res-tritas, mais restritas do que já é, por exemplo, o Arpoador, no Posto8 cou um lance muito doido devido a essa briga de acção den-tro de baile, porque quando o Lado A e Lado B não representavam

acção, mas só as galeras, todo mundo podia requentar o Posto8. Vila do Pinheiro [Lado A/Terceiro Comando] requentava o Posto

8. Depois que o Comando Vermelho assumiu os bailes, a gente jácomeçou a expulsar o pessoal do Pinheiro, a expulsar o pessoal deLucas, o Posto 8 virou só do Comando Vermelho. Após o echamento do Baile do Chaparral, em 1999,

Charles oi algumas vezes a outros clubes de “corredor” naBaixada Fluminense, onde ainda restaram alguns bailes degaleras após a interdição de grande parte desses eventos no

circuito unk carioca. A repressão violenta da polícia tam-bém é apontada como um elemento importante que impe-diu a continuidade desses bailes e de sua participação:

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Pra mim e pra maioria do pessoal mudou [após a interdição do Chaparral ]. Ain-da tinha alguns bailes de briga, só que eram discriminados, por quê? Porqueera o seguinte, os ônibus de briga saíam muito cheios, a polícia parava o ôni-bus de briga, às vezes eles aziam o ônibus voltar, às vezes dava porrada. Teveuma vez que eu estava indo para o Pavunense, acharam um coturno, uma

bota do exército dentro do ônibus, oi todo mundo pra delegacia, entramosna porrada, os policiais alaram assim: “Ah, vocês gostam de bater em baile?Então vamos ver se vocês gostam de apanhar!” E botaram a gente sentado,deram um banho na gente de borracha de bombeiro, bateram e ez a gentevoltar pra casa só de bermuda, descalço. Começou a ter opressão, o pessoalcomeçou a car com medo de ir pro baile de briga, porque na entrada da a-vela tinha blitz, no Piscinão [Maré] tinha blitz e era caminho para baile. (Charles)

Além disso, a necessidade de “mostrar nome”, como um“ritmo de ser”, é a razão pessoal que incidiu diretamente nodesinteresse de Charles em deixar de brigar em galeras. Apercepção sobre a situação de Charles nos ajuda a compre-ender como a “neurose” se tornou seu projeto individual:

Eu não ui mais em baile de clube. De 99 pra cá, eu e uma galera bem grandeparamos com baile de clube. (...) porque a gente tinha um ritmo, um ritmo deser, a gente tinha que mostrar nome, e ali a gente só representava a galera, noconcurso de galera, (...) isso pra gente não era interessante, entendeu, a gentenão se promovia ali, não era mais bem-visto, era mais bem-vista a galera (...)Depois do concurso de galera a gente caiu no esquecimento. Já não era maiso cara que batia, era a galera que ele representava. Então o cara já não era maislucro. Eu vou brigar lá, vou azer, suar a minha camisa, levantando bola pra todomundo ganhar nome? Não. Vou car promovendo os outros? Eu vou me au-topromover. Cada um tinha que ser por si, era um por si e Deus por todos.

Desde que o Baile de Bonsucesso echou, em 1996, Mi-chele parou com as brigas e passou a valorizar as músicas,os shows, as novas amizades e a sua conquista amorosa nobaile chamado de “normal” na Baixada Fluminense:

Hoje penso assim, que baile unk tem várias maneiras de você curtir.Antes eu ia pra baile pra brigar, hoje não, eu vou pra namorar. No baile

unk eu arrumei um namorado e hoje eu tô casada. Vou pros meus bai-

les ainda, mas o baile hoje mudou muito, nem baile unk não é, é maisagora negócio de acção, é um querendo esculachar a avela do outro,por isso que eu não gosto de curtir o baile da avela porqueeu já era

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neurótica, né, com o negócio de Lado A, Lado B... agora, se eu curtir bailede avela, eu vou fcar mais neurótica: “Ah, eu não vou mais entrar na áreade Terceiro porque eu sou Comando”; porque pessoa que curte bailede avela az isso, “eu sou Comando não sei o quê ... bah”, começa a alarcom aquelas gírias, vai e começa a infuir em muitas coisas.

Para Michele, curtir baile de avela infuencia a maneira de apessoa se expressar e agir segundo as regras das acções. Michele vêum descompasso entre as regras estabelecidas nos bailes de avela e asua personalidade, o que pode tornar a sua diversão um ator de risco:

É, porque é o seguinte: eu tenho o pavio muito curto, não sei quemeu puxei na minha amília, se mexer comigo, eu quero ir atrás do pre-

juízo. Eu nunca levei desa oro pra casa, graças a Deus, e hoje em diaem baile de avela, se brigar, raspa a cabeça e ainda ganha tiro nopé e ainda ca de castigo [re erindo-se aqui às possíveis punições da

acção do tráfco que domina sua localidade]. Imagina que desgostoeu ia dar pra minha amília! Eu trabalho, graças a Deus, já pensou eu

car de castigo sem direito de azer nada, tendo que car três mesesdentro de casa. Por isso que eu não curto baile de avela, porque seas garotas quiser tirar onda [desafá-la] com a minha cara, sei lá quemé ela, se é mulher de bandido. Eu não vou querer saber se é mulherde bandido [quer dizer que vai bater nela] ,por isso que eu não vou. Já para Nando e Silva, o risco de violência está nos lugares

considerados áreas “neutras”, quer dizer, ora da avela, nos lo-cais classi cados de “as alto”. Ambos demonstram suas pre e-rências pelos bailes em avelas que sejam da mesma acção queatua em sua comunidade. Embora não sejam envolvidos e nem“neuróticos”, eles têm uma apreciação pelo unks “proibidos”.Nando e Silva compreendem que suas pre erências por essesbailes e por essas músicas se justi cam por acreditarem queretratam o cotidiano das avelas, sem que isso signi que umainfuência do trá co em suas vidas. Tal infuência só teria sen-tido para “quem não sabe dividir as coisas” (Silva). Ter vontadeprópria e “saber não se misturar” (Nando) revela a crença naautonomia do indivíduo rente a determinado contexto social.Contudo, tal perspectiva parece não dar conta das situações en-

volventes, que estão para além da escolha racional e conscientede saber lidar e jogar com as regras impostas. “Saber dividiras coisas” é possível somente dentro dos limites seguros dos

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territórios do CV, caso contrário, sentirão “neurose”: sensaçãoperturbadora pela antecipação da “violência” em lugares nosquais eles acreditam que podem ser alvos16. Suas pre erênciaspelas músicas e bailes da acção, todas do Comando Vermelho,expressam esses limites, como indica a entrevista de Nando:

O que eu curto no baile unk hoje em dia é só rap, a maioria que toca,tudo é rap proibido. Aonde eu gosto! Se não tivesse rap proibido, achoque eu já tinha parado. É a realidade que acontece na avela. No caso,uma avela é da mesma acção que a outra, essas duas comunidadesnão podem brigar, tá entendendo, têm que respeitar uma e outra. Anti-gamente, brigavam, hoje em dia não pode. No caso de ir para qualquerbaile, exemplo, se eu or pro baile de Vila Kennedy, pra mim [não dá

para ] ir tranquilo,vai bater neurose . Por quê? Porque passa em comuni-dade que é inimiga com a daqui, tá entendendo? Não posso curtir umbaile na comunidade rival, ou de guerra com outras que curto. Ou eu tôarriscado a morrer lá ou tô arriscado a morrer aqui. Aí a gente tem queevitar, curtir o baile aonde a minha comunidade possa ir.[Caso aconteça uma neurose assim, o argumento para desenrolar émuito di ícil? Como ser trabalhador? Ainda existe essa possibilidade? ]Se or aqueletrabalhador neurótico, que étrabalhador bandido... traba-lhador bandido, que eu quero dizer, é aquele trabalhador que trabalha esó vive com gíria na boca, alando gíria, aquele que anda com ginga debandido, ala com a bandidagem. Aí isso já ca meio di ícil de explicar.

Nando e Silva gostam de bailes em avelas do Comando Ver-melho e gostam de “proibidões” como uma orma de conhecer arealidade em que vivem. Tal comportamento de adaptação – andarno “blindão” – é aconselhado em alguns raps “proibidos” e conside-rado uma orma de evitar a “neurose” – descon ança, incerteza deestar seguindo as regras. Condições estas que constroem um espa-ço de “paz”, “cultura” e “lazer”. Fazendo outro percurso, Charles seassociou ao trá co em episódios de intensa violência entre acçõesrivais. Primeiro, entrou para a “boca-de- umo” rea rmando a sua

ama de “neurótico”, reconstruindo e “controlando” a sua imagempública para ser “reconhecido na comunidade” e pelas garotas, pri-meiro como ladrão, depois como tra cante. Ele diz que esse era o seuprojeto para se promover como “o cara”, ainda em torno da ama pre-

viamente construída do “problemático” dentro de sua galera. O seuprojeto de ser “neurótico”, que teve início nos bailes de galeras unk,encontrou maiores chances de a rmação no trá co. Como bandido,

16 Intrínseca à dimensãopsicossocial da “neurose”,a violência antecipadaaparece como dispositi-vo mental da segregação,discussão atual da minhapesquisa de doutorado.Sobre as antecipações daviolência nos processos deidentifcação, circulação esegregação, ver: Jegana-tham (2004). Ver também,

sobre o material do ner-voso e interpretações doestado ísico-moral da pes-soa: Duarte (1986).

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DILEMAS674 Carla dos Santos MattosDILEMAS Vol. 5 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2012 - pp. 653-680

Charles deveria seguir outro caminho, participando de situações queexigem atividades constantes de violência. O aumento do emprego edas disposições para a violência tem a ver com o contexto da “guerra”entre acções e uso de armamentos potentes, como descreve:

O que acontece, quando eu ormei na boca de vez e eu me decla-rei tra cante, não tinha mais como, eu tinha que azer uma outraimagem, eu já tinha que ter o nome no rap como o cara no trá co,o cara que era o bambambã, então o que eu comecei a azer? Co-mecei a ir pra pista pra buscar carro armado, comecei a participarde invasões de avelas de alemão, tomar a avela dos outros. Praser reconhecido,eu fquei mais neurótico ainda, entendeu?

Levar o nome da acção parece sugerir uma trans ormação sub- jetiva no modo como Charles se insere nas relações sociais, modi -cando a orma como se vivenciam os laços pessoais. Como “neuróti-co” no trá co, ele parece experimentar uma contradição interna, namedida em que, por um lado, almeja o reconhecimento social, mas,por outro, descon a, desquali ca as pessoas que se aproximam dele:

[Dá uns exemplos da neurose no tráfco. E ser neurótico, como era? ]Por exemplo, se eu era um cara neurótico... lá avela tem muito mora-dor que rende homenagem pra vagabundo. E não é nada. Eu olhavaassim... e um morador passava “oi ulano, como tu tá, tranquilo?” Eu,“tranquilo”. E, por exemplo, vinha um amigo de ora, eu alava “Alá, távendo, é o maior comédia udido, não é porra nenhuma, não podeme ver que quer apertar a minha mão, quer render homenagem pramim”. Eu já cansei de menosprezar morador na comunidade assim.[Você acha que as pessoas azem isso por quê? ] Tem pessoas que também querem se promover em cima disso, na ver-dade, é isso que eu te alei, todo mundo quer criar nome, todo mundoquer ser visto como alguma coisa, nem que seja como puxa-saco dobandido, todo mundo quer ser visto, quer ter o seu respeito na avela.

Di erentemente de Charles, os outros interlocutores não seconsideram “neuróticos”. Isso é um dado relevante por ligá-los auma concepção relacional ou holística. Tal perspectiva ca evidentequando o envolvimento em situações de confito social é narrado

como parte de um contexto, no qual se az presente uma avaliaçãoda atitude do “outro”. A concepção “guerreira” do confito está ligadaà antiga rivalidade entre galeras unk. Nesse contexto, as agressões

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ísicas são usadas visando a um sentido maior para além da a r-mação individual do “valente”, qual seja, o de projetar o grupo ou onome de sua comunidade. Também diz respeito a uma concepçãobaseada em uma “identidade-nós” mais fexível e tolerante com o“outro”, pois o “alemão”, além de requentar o mesmo evento e seresperado, poderia se tornar “amigo”, dependendo das negociaçõesentre os grupos. Em tal perspectiva relacional, o “outro”, o “alemão”,pode ser aliviado/protegido se estiver em uma situação de desvanta-gem, como descreve Silva: “Se eu tiver saindo com uma galera, e se

or pra pegar um moleque só, é a maior judiaria, mas, se or mais deum, eu ajudo a bater. Eu posso até de ender, se or um só”.

Justamente por não ser “neurótico”, Silva avalia a situação da “neu-rose” dentro das avelas através da lógica relacional, mas, paradoxalmen-

te, tenta conciliar a sua visão “guerreira” à nova ideia do “alemão”. Por umlado, ele diz não gostar de “terceiro” – de quem mora em área de TerceiroComando –, expressando sua adaptação às rivalidades criadas entre ac-ções. Por outro lado, ele consegue se pôr no lugar do “outro” – o “tercei-ro” – e descreve de modo distanciado e crítico a produção da “neurose”:

Tenho raiva [de “terceiro” ] porque... Apesar de que todos os dois lados [Co-mando Vermelho e Terceiro Comando ] não vê a pessoa primeiro. Se vocêmora no Terceiro e eu no Comando, e eu conversar contigo, alguémvai espiar, vai car olhando, então, hoje em dia eu não quero dividir isso.

Em uma visão oposta à de Silva, Charles atribui à “neurose” todaa margem para expressar a sua emoção como marca biográ ca, mos-trando a relevância subjetiva para a sua adesão ao trá co. Em uma brevecarreira no trá co, Charles se dividiu entre a “boca” e os estudos, conse-guindo concluir o ensino secundário em uma escola pública local ondeteve oportunidades de inserção em novas redes de convivência. Na épo-ca da entrevista, em 2005, estava ora do trá co e integrou o grupo De-compondo Divisas, nascido de um projeto de extensão da UniversidadeFederal Fluminense, articulado pelo antropólogo Mário Miranda Neto,na época, pro essor e morador da Maré. Nesses encontros, alguns estu-dantes, moradores de diversas avelas da Maré, tiveram a oportunidadede conversar sobre a “neurose” vivida no local através da produção deum mapa a etivo17. Ao relatar tal experiência crítica e refexiva no grupo,Charles diz estar interessado em circular em outros lugares na cidade, lu-

gares “di erentes” que, a seu ver, impactam a sua experiência social de de-senraizamento positivo, vivenciado, por exemplo, na Lapa: “Um lugar demaluco, tem todo tipo de gente e cultura e onde ninguém é de ninguém”.

17 As re erências sobre adiscussão são apresentadaspelo antropólogo MárioMiranda. Ver: Pinho (2004).Agradeço ao amigo e inter-locutor de pesquisa Márioo convite para conhecer o

Decompondo Divisas e o in-teresse em compartilhar va-liosíssimas re exões sobre a“neurose” na Maré.

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Considerações fnais

A visão dual “ avela”versus“as alto” não orientava os motivosdas rixas, assim como não constituía os laços de aliança entre osseus membros, onde o con ronto e o “alemão” eram partes consti-tutivas da esta e esperados. A vivência da rivalidade começa a serpercebida como um problema dentro do baile quando o con itosegue uma oposição entre “ avela” x “ avela” mediada pela “guerra”entre acções. Portanto, as rixas e a interação “violenta” entre os“guerreiros” proporcionavam uma excitante vivência dos con itossem excluir a possibilidade do convívio social. Em sentido oposto,a rivalidade entre acções representou a aniquilação do con ito doespaço de convivência, onde o controle externo da violência e a

paci cação das condutas disciplinam o corpo e perturbam a alma.Em contraposição ao código de valentia da sociabilidadeguerreira compartilhado por Michele, Nando e Silva, a cate-goria “neurose” oi usada para explorar situações nas quais apessoa se vê a etada ou próxima do ritmo de vida violento nas

avelas em que atuam acções do crime. Seu uso traz à tona asregras para o emprego da orça no contexto da guerra pelas“bocas de umo” e sua análise possibilita compreender o im-pacto nas ormas de se vivenciarem as rivalidades.

Os signi cados das brigas entre as galeras unk tinhamcomo valores-guia os códigos de honra e a coragem pessoalem seu sentido de reputação da valentia guerreira associadoà cultura machista, que, no plano simbólico, conecta a ideiade orça, vigor e virilidade (ZALUAR, 1997; CECCHE O,1997). Esse código era interpretado a partir de uma perspectivarelacional das ações violentas de seus membros que valoriza oslaços de reciprocidade entre grupos e pessoas amigas e rivais.Já sob o domínio das acções nas avelas, constrói-se uma novaperspectiva para as ações violentas. A ên ase recai sobre a orçae a ameaça do “neurótico”, que tende a desconsiderar o “outro”da relação. A organização do trá co de drogas em acções apa-rece cada vez mais relacionada ao trá co de armas. A acçãonão só recruta os mais jovens como acilita o seu acesso à armade ogo (ZALUAR, 1994, 1997). A ên ase no poder armadodesloca o signi cado do estilo masculino agressivo do corpo e

suas técnicas de luta para ressaltar o temperamento obsessivoe controlador do “neurótico”, cujas ações violentas seguem umnovo ideal de virilidade de nido pela associação ao trá co.

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Do ponto de vista subjetivo, ser “neurótico”, no sentido detornar-se violento como projeto individual valorizado na vida docrime, é di erente de fcar “neurótico” ou sentir “neurose”, como an-tecipação dos riscos de ser alvo de violência. A “neurose” pode sersentida por qualquer morador ou moradora de avela que se envol- va em algum confito banal e, consequentemente, corra o risco deser julgado pelo “neurótico”. Nando e Silva justi cam a nova reali-dade de violência e se veem autônomos e capazes de controlaremos riscos dentro da avela. Mesmo não sendo bandidos, eles não sesentem subordinados aos “neuróticos”; de certa orma sentem-se

amiliarizados com os valores viris da violência. Argumentei que aideia de Nando e Silva de “saber dividir as coisas” não consegue “es-capar” pela via do individualismo. Procurei mostrar que os valores

são reinterpretados e contextualizados no interior das confgurações especí cas da violência (ELIAS, 1990). Para cada con guração da violência, identi quei o seu valor típico correspondente, mesmoconsiderando as di erentes estratégias dos jovens como pertencen-tes a uma realidade contraditória, heterogênea, na qual os códigose valores se entrecruzam e se hibridizam. Ao analisar a categoria“neurose”, pude compreender que o “neurótico” ou o bandido/tra-

cante, como Charles, di erentemente dos outros jovens não “neu-róticos”, en atiza mais a crença no indivíduo moral. Ele encontroumaiores chances de individualização na con guração especí ca daordem social do trá co de drogas nas avelas.

A distinção de valores e condutas entre galeras unk e entre gru-pos de “neuróticos” mostra duas confgurações sociais. Cada con gura-ção, ou seja, cada contexto especí co de interpretação do “eu”, do “nós”e do “outro”, en atiza uma concepção de mundo especí ca que orientao uso da orça ísica em situações de confito. Interpretei que a oposição“holismo-valentia” / “individualismo-neurose” demarca valores signi -cativos em cada con guração da violência. A análiseconfguracional desenvolvida por Norbert Elias (1965) oi um importante guia pen-sado como alternativa teórica à dicotomia “indivíduo”/“sociedade”18,mas não su ciente para se contrapor à visão normativa das relaçõessociais. Visando escapar a uma perspectiva essencialista que ateste aadesão à ordem, considerei percepções e estratégias díspares no per-curso dos jovens, contextualizadas pela mudança con guracional da violência. Partindo de autores como Schütz (1979), Geertz (1978) e Ve-

lho (1987), valorizei a ên ase biográ ca e situacional como dimensãodada ao universo de motivações e possibilidades de individualizaçãodos sujeitos sociais inseridos em redes de signi cados.

18 A análise confgura-

cional de Norbert Elias oimais detalhadamente ex-plorada em minha disser-tação (MATTOS, 2006).

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De la valentía a la neurosis: Criminalización de los grupos jóvenes de funk, ‘paz’ y (auto)regulación de las conductas enlas ‘favelas’ versa sobre percepciones y experiencias de violenciaentre jóvenes ex-integrantes de “galeras” unk (tribus urbanasde a cionados al unk). El análisis se concentra en las palabras“neurosis”, usada por los jóvenes para contextualizar una ase demayor tensión, y “violencia”, conectada al poder de las acciones deltrá co de drogas en las avelas. La categoría “neurosis”percibe uncambio en el patrón de interacción social que marca la extinciónde los grupos en el circuito de eventos unk. Estas percepciones son

parte de la construcción de subjetividades gestadas en el procesode criminalización que opera la secular oposición “ avela”/”as alto”.Palavras clave: sociabilidad, violencia, avela, unk carioca, galeras

CARLA DOS SANTOS MATTOS ([email protected]) é doutoranda em ciências sociais noPrograma de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PP-CIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ);pesquisadora do Coletivo de Estudos sobre Violência eSociabilidade Urbana (CEViS) do Instituto de EstudosSociais e Políticos (Iesp) da Uerj.

________ [e] ALVITO,Marcos (orgs). (2000), Cidadania e violência. Editora UFRJ/FGV.

VIANNA,Hermano. (1988), O mundo unk carioca. Rio deJaneiro, Jorge Zahar.

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ZALUAR,Alba. (1994), “ eleguiados e che es: Juventude e cri-me”. Em: O condomínio do diabo. Rio de Janeiro, Revan.

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Textos de jornais e revistas e mídia digital

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terra.com.br/reporterterra/ unk/dia3_not1.htmNAME,Daniela. (21/12/2003), “Como é, quem az e como

são os bailes da música que já oi con undida com ocrime e proibida, mas hoje contagia a cidade”. O Globo,Segundo Caderno, p. 1.

GELEIA DJ ZZ.(15/05/2008), “Chaparral: Grito de galera doJacaré”. Video (internet), 37seg. Disponível (on-line) em:http://www.youtube.com/watch?v=WX5KJhQxGBI