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  • DADOSDEODINRIGHTSobreaobra:

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  • 120ªedição

    2013

  • R143a

    13-01844

    CIP-Brasil.Catalogação-na-fonteSindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ.

    Ramos,Graciliano,1892-1953Angústia[recursoeletrônico]/GracilianoRamos;[posfáciodeSilvianoSantiago].-1.ed.-RiodeJaneiro:Record,2013.recursodigital

    Formato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWebISBN9788501404381(recursoeletrônico)

    1.Ficçãobrasileira.2.Livroseletrônicos.I.Título.

    CDD:869.93CDU:821.134.3(81)-3

    Copyright©byherdeirosdeGracilianoRamoshttp://www.graciliano.com.br

    Reservadostodososdireitosdetraduçãoeadaptação

    posfácioSilvianoSantiagocapaeg.design/EvelynGrumachilustraçãoMarceloGrasmannfotodoautorArquivodefamília–GracilianoRamos.Maceió,1928finalizaçãodacapaeg.design/FernandaGarciaprojetográficodemioloeg.design/EvelynGrumacheFernandaGarcia

    TextorevisadosegundoonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

    DireitosexclusivosdestaediçãoreservadospelaEDITORARECORDLTDA.RuaArgentina171–RiodeJaneiro,RJ–20921-380–Tel.:2585-2000ProduzidonoBrasil

    ISBN9788501404381

  • SejaumleitorpreferencialRecord.Cadastre-seerecebainformaçõessobrenossoslançamentosenossaspromoções.

    [email protected](21)2585-2002

  • Notadoeditor

    Esta nova edição de Angústia teve como base a 4ª edição do romance,publicado pela J. Olympio, com as últimas correções feitas por GracilianoRamos.OsoriginaisestãonoFundoGracilianoRamos,ArquivodoInstitutodeEstudosBrasileirosdaUniversidadedeSãoPaulo.

    EsteprojetodereediçãodaobradeGracilianoRamosésupervisionadoporWanderMeloMiranda,professortitulardeTeoriadaLiteraturadaUniversidadeFederaldeMinasGerais.

  • Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não merestabeleci completamente.Das visões queme perseguiam naquelasnoites compridas umas sombras permanecem, sombras que semisturamàrealidadeemeproduzemcalafrios.

    Hácriaturasquenãosuporto.Osvagabundos,porexemplo.Parece-mequeelescrescerammuito,e,aproximando-sedemim,nãovãogemerpeditórios:vãogritar,exigir,tomar-mequalquercoisa.

    Certos lugares queme davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante deumalivraria,olhocomdesgostoasvitrinas,tenhoaimpressãodequeseachamalipessoasexibindotítulosepreçosnosrostos,vendendo-se.Éumaespéciedeprostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando obeiço,naquelesdesconhecidosqueseamontoampordetrásdovidro.Outrolargaumaopiniãoàtoa.Basbaquesescutam,saem.Eosautores,resignados,mostramasletraseosalgarismos,oferecendo-secomoasmulheresdaruadaLama.

    Vivoagitado,cheiodeterrores,umatremuranasmãos,queemagreceram.Asmãosjánãosãominhas:sãomãosdevelho,fracaseinúteis.Asescoriaçõesdaspalmascicatrizaram.

    Impossível trabalhar.Dão-meumofício, um relatório, para datilografar, narepartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião

  • Tavares aparece em cima do original, e osmeus dedos encontram no tecladoumaresistênciamoledecarnegorda.Elávemoerro.Tentovenceraobsessão,caprichoemnãousaraborracha.Concluootrabalho,masaresmadepapelficamuitoreduzida.

    À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munhecaemperrada,opensamentovadiolongedoartigoquemepediramparaojornal.

    Vitóriaresmunganacozinha, ratosfamintosremexemlataseembrulhosnoguarda-comidas,automóveisroncamnarua.

    Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letrasdestenome,arranjocoisasabsurdas:ar,mar,rima,arma, ira,amar.Unsvintenomes. Quando não consigo formar combinações novas, traço rabiscos querepresentamuma espada, uma lira, uma cabeça demulher e outros disparates.Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos:processos,orçamentos,odiretor,osecretário,políticos,sujeitosremediadosquemedesprezamporquesouumpobre-diabo.

    Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçando,indecentes.Quandoavistoessacambada,encolho-me,colo-meàsparedescomoumratoassustado.Comoumrato,exatamente.Fujodosnegociantesquesoltamgargalhadasenormes,discutempolíticaeputaria.

    Nãopossopagaroalugueldacasa.Dr.Gouveiaaperta-mecombilhetesdecobrança.Bilhetesinúteis,masdr.Gouveianãocompreendeisto.Hátambémohomemdaluz,oMoisésdasprestações,umapromissóriadequinhentosmil-réis,járeformada.Ecoisaspiores,muitopiores.

    Oartigoquemepediramafasta-sedopapel.Éverdadequetenhoocigarroetenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristezacresce.Tristezaeraiva.Ar,mar,ria,arma,ira.Passatempoestúpido.

    Dr. Gouveia é um monstro. Compôs, no quinto ano, duas colunas quepublicou por dinheiro na seção livre de um jornal ordinário. Meteu essetrabalhinho num caixilho dourado e pregou-o na parede, por cima do bureau.Estácheiodeerrosepastéis.Masdr.Gouveianãoossente.Oespíritodelenão

  • tem ambições. Dr. Gouveia só se ocupa com o temporal: a renda daspropriedadeseocobrequeotesourolhepinga.

    Nãoconsigoescrever.Dinheiroepropriedades,quemedãosempredesejosviolentos demortandade e outras destruições, as duas colunasmal impressas,caixilho, dr.Gouveia,Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor esecretário,tudosemovenaminhacabeça,comoumbandodevermes,emcimadeumacoisaamarela,gordaemolequeé,reparando-sebem,acarabalofadeJulião Tavares muito aumentada. Essas sombras se arrastam com lentidãoviscosa,misturando-se,formandoumnoveloconfuso.

    Afinal tudodesaparece.E, inteiramentevazio,ficotemposemfimocupadoemriscaraspalavraseosdesenhos.Engrossoaslinhas,suprimoascurvas,atéquedeixonopapelalgunsborrõescompridos,umastarjasmuitopretas.

    ...

    Se pudesse, abandonaria tudo e recomeçaria as minhas viagens. Esta vidamonótona,agarradaàbancadasnovehorasaomeio-diaedasduasàscinco,éestúpida.Vidadesururu.Estúpida.Quandoarepartiçãosefecha,arrasto-meatéorelógiooficial,meto-menoprimeirobondedePonta-da-Terra.

    Que estará fazendo Marina? Procuro afastar de mim essa criatura. Umaviagem,embriaguez,suicídio...

    Penso nomeu cadáver,magríssimo, com os dentes arreganhados, os olhoscomoduasjabuticabassemcasca,osdedospretosdocigarrocruzadosnopeitofundo.

    Osconhecidosdirãoqueeueraumbomtipoeconduzirãoparaocemitério,numcaixãobarato,aminhacarcaçameiobichada.Enquantopegaremesoltaremas alças, revezando-se no mister piedoso e cacete de carregar defunto pobre,procurarãosaberquemseráomeusubstitutonadiretoriadafazenda.

    Enxoto as imagens lúgubres. Vão e voltam, sem vergonha, e com elas a

  • lembrançadeJuliãoTavares.Intolerável.Esforço-mepordesviaropensamentodessascoisas.Nãosouumrato,nãoqueroserumrato.Tentodistrair-meolhandoarua.

    Àmedidaqueo carro se afasta do centro sinto quemevoudesanuviando.Tenhoasensaçãodequeviajoparamuito longeenãovoltareinunca.Doladoesquerdo são as casas da gente rica, dos homens que me amedrontam, dasmulheresqueusampelesdecontosderéis.Diantedelas,Marinaéumaratuína.Do ladodireito,navios.Àsvezeshádiversosancorados.Rolambondesparaacidade,queestáinvisível,láemcima,distante.Vidadesururu.

    Há quinze anos era diferente. O barulho dos bondes não deixava a genteouvirosinodaigreja.Omeuquarto,noprimeiroandar,erauminfernodecalor.Porisso,àhoraemqueosoutroshóspedesiamparaaescola,estudarmedicina,eudavaumsaltoaoPasseioPúblicoe lia,debaixodasárvores,onoticiáriodapolícia.Naturalmente a pensão se fechou e d.Aurora, que naquele tempo eravelha,morreu.

    Ocaloraquitambémégrandedemais.Efaltamplantas.Apenas,umpoucoafastados,coqueirosmacambúzios,perfilados,comoseesperassemordens.

    Cidade grande, falta de trabalho. Omeu quarto ficava junto à escada, e ànoiteocheirodogáserainsuportável.Quandoescurecia,Dagoberto,estudanteerepórter,vinhadespejarsobreaminhacamaumcompêndiodeanatomiaeumacestadeossos.

    O bonde chega ao fim da linha, volta. Bairro miserável, casas de palha,criançasdoentes.Barcosdepescadores,aschaminésdosnavios,longe.

    D.Aurora,quetinhasobrenomeinglês,àsseishorasencostava-seaoguarda-louça e rosnava, agitava os caracóis brancos, pregava os óculos nos hóspedesque comiamdemais e nos que estavam em atraso.Havia um rapaz deMinas,dispéptico, que ela adorava e queria casar com a neta. Enquanto os outrosmastigavam,Dagobertoesqueciaopratoefalavasobreosdiscursosdacâmara.

    Retornoàcidade.OsglobosopalinosdoAterroiluminamogramadomurchoe a praia branca. Os coqueiros empertigados ficam para trás. Penso numa

  • ditaduramilitar,emparadas,emdisciplina.Osnaviostambémficamparatrás.Apensão, o meu quarto abafado, o focinho de d. Aurora e a cesta de ossos deDagobertosomem-se.

    Ocarropassapelosfundosdotesouro.Éaliquetrabalho.Ocupaçãoestúpidaequinhentosmil-réisdeordenado.

    RuadoComércio.Láestãoosgruposquemedesgostam.Contoaspessoasconhecidas: quase sempre até os Martírios encontro umas vinte. Distraio-me,esqueçoMarina,quealgumasruasapenasseparamdemim.Afasto-meoutravezda realidade, mas agora não vejo os navios, a recordação da cidade grandedesapareceu completamente. O bonde roda para oeste, dirige-se ao interior.Tenhoaimpressãodequeelemevailevaraomeumunicípiosertanejo.Enempercebooscasebresmiseráveisquetrepamomorro,àdireita,ospalacetesquetêmospésnalama,juntoaomangue,àesquerda.QuantomaismeaproximodeBebedouromais remoço.Marina, Julião Tavares, as apoquentações que tenhoexperimentadoestesúltimostempos,nuncaexistiram.

    Voltoa sercriança, revejoa figurademeuavô,TrajanoPereiradeAquinoCavalcanteeSilva,quealcanceivelhíssimo.Osnegóciosna fazendaandavammal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteirosmanzanzandonumaredearmadanosesteiosdocopiar,cortandopalhademilhopara cigarros, lendo oCarlosMagno, sonhando com a vitória do partido quepadreInáciochefiava.Dezoudozereses,arrepiadasnocarrapatoenavarejeira,envergavamo espinhaço e comiam omandacaru queAmaro vaqueiro cortavanos cestos. O cupim devorava os mourões do curral e as linhas da casa. Nochiqueiro alguns bichos bodejavam. Um carro de bois apodrecia debaixo dascatingueirassemfolhas.TinhamamarradonopescoçodacachorraMoquecaumrosário de sabugos de milho queimados. Quitéria, na cozinha, mexia emcumbucoscheiosdemiudezas,escondiapelesdefumonocaritó.

    Euandavanopátio,arrastandoumchocalho,brincandodeboi.Minhaavó,sinha Germana, passava os dias falando só, xingando as escravas, que nãoexistiam. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva tomava pileques

  • tremendos.Àsvezessubiaàvila,descomposto,umcamisãovermelhoporcimadacerouladealgodãoencaroçado,chapéudeouricuri,alpercatasevarapau.Nosdiassantos,devoltadaigreja,mestreDomingos,quehaviasidoescravodeleeagorapossuíavendasortida,encontravaoantigosenhorescoradonobalcãodeTeotoninho Sabiá, bebendo cachaça e jogando três-setes com os soldados. Opreto era um sujeito perfeitamente respeitável. Em horas de solenidade usavasobrecasaca de chita, correntão de ouro atravessado de um bolso a outro docolete,chinelosdetrança,porcausadoscalos,quenãoaguentavamsapatos.Porbaixodochapéuduro,atestaretinta,úmidadesuor,brilhavacomoumespelho.Pois,apesardetantasvantagens,mestreDomingos,quandoviameuavônaqueladesordem, dava-lhe o braço, levava-o para casa, curava-lhe a bebedeira comamoníaco. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva vomitava nasobrecasacademestreDomingosegritava:

    —Negro,tunãorespeitasteusenhornão,negro!Quando o carro para, essas sombras antigas desaparecem de supetão— e

    vejo coisas que não me excitam nenhum interesse: os focos da iluminaçãopública, espaçados,cochilando,piongos, tãopiongoscomo luzesdecemitério;um palácio transformado em albergue de vagabundos; escuridões, capoeiras,barreirascortadasapiquenomonte;afrontariadeumafábricadetecidos;e,delongeemlonge,atravésderamagens,pedaçosdemangue,cinzentos.Àmedidaque nos aproximamos do fim da linha as paradas são menos frequentes. Ospostes cintados de branco passam correndo, o carro está quase vazio, asrecordaçõesdaminhainfânciaprecipitam-se.EadecadênciadeTrajanoPereiradeAquinoCavalcanteeSilvaprecipita-setambém.

    Estavapegandoumséculoquandoentrouacaducar.Encolhidonacamadecouro cru, mijava-se todo, contava os dedos dos pés e caía na madorna. Derepenteacordavasobressaltado:

    —SinhaGermana!Meu pai largava o Carlos Magno, abria o tabaqueiro, deixava a rede,

    impaciente:

  • —Queéquehá?—Homem,vocênãomedirá onde está suamãe?Aquimais deumahora

    chamandoessamulher!—Morreu.— Que está me dizendo? estranhava o velho arregalando os olhos quase

    cegos.Quandofoiisso?CamiloPereiradaSilvaamolava-se:—Deixedearrelia.Morreuoanopassado.—Tantotempo!diziaTrajano.Evocêscalados...Punha-se a folgar comosdedos e pegavano sono.Quinzeminutos depois

    estavaberrando:—SinhaGermana!Acabou-se numa agonia leve que não queria ter fim. E enterrou-se na

    catacumba desmantelada que nossa família tinha no cemitério da vila.MestreDomingos pegou na alça do caixão e declarou a meu pai que a morte é ummundéu.Fomosmorarnavila.Meteram-menaescoladeseuAntônioJustino,paradesasnar,pois,comodisseCamiloquandomeapresentouaomestre,eueraum cavalo de dez anos e não conhecia a mão direita. Aprendi leitura, ocatecismo,aconjugaçãodosverbos.Oprofessordormiaduranteas lições.Eagentebocejavaolhandoasparedes,esperandoqueumaréstiachegasseaoriscode lápis que marcava duas horas. Saíamos em algazarra. Eu ia jogar pião,sozinho,ouempinarpapagaio.Semprebrinqueisó.

    ...

    Umachuvinharenitenteaçoitaasfolhasdamangueiraqueensombraofundodomeu quintal, a água empapa o chão, mole como terra de cemitério, qualquercoisadesagradávelpersegue-mesemsefixarclaramentenomeuespírito.Sinto-meaborrecido,aperreado.

  • Debaixodachuvaazucrinante,espéciedeneblinapegajosa,amangueiradoquintaleasroseirasdacasavizinhaestãoquaseinvisíveis.

    Emendo um artigo que Pimentelme pediu, artigo feito contra vontade, sóparanãodescontentarPimentel.Felizmenteaideiadolivroquemepersegueàsvezesdiasediasdesapareceu.

    PensoemmestreDomingos,novelhoTrajano,emmeupai.Nãoseiporquemexi com eles, tão remotos, diluídos em tantos anos de separação. Não têmnenhumarelaçãocomaspessoaseascoisasquemecercam.

    ReleiocomdesgostooartigoquevoudaraPimentel.Os defuntos antigos me importunam. Deve ser por causa da chuva. Nos

    mesescompridosdaqueles invernosdeserramuitasvezesfiquei tardes inteirassentadoàportadanossacasanavila,olhandoaruaquedesapareciadebaixodeumlençolbrancodeáguaempó.Oschuviscosentravampelasala,osmóveisearoupadagentepareciamcobrir-sedepontinhasdealfinetes.Detemposatemposumvultoembuçadopassavanacalçada.OvelhoAcrísio,decachimbonaboca,chegavaàjanelaparaconversarcommeupai.Nãoentrava:davaumasnotícias,esfregandoasmãos,aguentandoaquelespinguinhosquenãomolhavam,apenaslheumedeciamocapoteeocachenêdelãvermelha.

    Agoraachuvaéumpoucodiferente,onevoeiromenosdenso.Delongeemlongeaáguabatenotelhadocomforça,depoiscontinuaapeneiraqueocultaojardimdacasavizinha.

    SeMarina tivessea ideiade sebanharali àquelahorada tarde,eunão lheveria o corpo. Talvez visse apenas uma sombra, como acontece no cinemaquando se apresentam mulheres nuas. Este pensamento esquisito — Marinadespida, arrepiada, coberta de carocinhos — bole comigo durante algunsminutos.

    Gostavademelavarassimquandoeramenino.Atrovoadaaindaroncavanocéu,ejámepreparava.Àsvezesapreparaçãoduravatrêsdias.Otrovãorolavapor estemundo, os relâmpagos sucediam-se com fúria.Quitéria encafuava-se,ofereciapelesdefumoaSantaClara,escondiaacabeçadebaixodascobertase

  • gritava: — “Misericórdia!”; meu pai largava o romance, nervoso; TrajanoPereira de Aquino Cavalcante e Silva chamava sinha Germana, que tinhamorrido.Quandoo aguaceiro chegava, o couro cru da camadovelhoTrajanoviravamingau,tantagoteirahavia;aredesujadeCamilofediaabode;osbichosda fazenda vinham abrigar-se no copiar; o chão de terra batida ficava todocobertodeexcremento.

    Eu tirava as alpercatas, arrancava do corpo a camisinha de algodãoencardida, agarrava um cabo de vassoura, fazia dele um cavalo e saíapinoteando,pererê,pererê,pererê,atéofimdopátio,ondehaviatrêspésdejuá.Repetiaoexercício,cheiodealegriadoida,egritavaparaosanimaisdocurral,queselavavamcomoeu.Fatigado,saltavanolombodocavalodefábrica,velhoelazarento,galopavaatéoIpanemaecaíanopoçodaPedra.Ascobrastomavambanhocomagente,masdentrodaáguanãomordiam.

    OpoçodaPedraeraumapiscinaenorme.Antesdeentrarnela,o Ipanematinhadoismetrosde larguraearrastava-sedebaixodosgarranchosdealgumasquixabeirassemfolhas.

    Quandoeuaindanãosabianadar,meupaimelevavaparaali,segurava-meum braço e atirava-me num lugar fundo. Puxava-me para cima e deixava-merespirar um instante. Em seguida repetia a tortura. Com o correr do tempoaprendinataçãocomosbichoselivrei-medisso.Maistarde,naescolademestreAntônioJustino,liahistóriadeumpintoredeumcachorroquemorriaafogado.PoisparamimeranopoçodaPedraquesedavaodesastre.SempreimagineiopintorcomacaradeCamiloPereiradaSilva,eocachorroparecia-secomigo.

    SeeupudessefazeromesmocomMarina,afogá-ladevagar,trazendo-aparaasuperfíciequandoelaestivesseperdendoofôlego,prolongarosuplícioumdiainteiro...

    Debaixodachuva,amangueiradoquintalestá todabranca.Opapagaionacozinhabateasasas,sacudindoossalpicosquevêmdabiqueira.Afagoopelomacio do meu gato mourisco, que dorme enroscado numa cadeira. As ideiasruinsdesaparecem.Marinadesaparece.

  • Ponho-meavagabundearempensamentopelaviladistante,entronaigreja,escuto os sermões e os desaforos que padre Inácio pregava aos matutos: —“Arreda, povo, raça de cachorro com porco.” Sento-me no paredão do açude,ouçoacantilenadossapos.VejoafigurasinistradeseuEvaristoenforcadoeoshomensqueiamparaacadeiaamarradosdecordas.Lembro-medeumfato,deoutrofatoanteriorouposterioraoprimeiro,masosdoisvêmjuntos.Eostiposque evoco não têm relevo. Tudo empastado, confuso. Em seguida os doisacontecimentossedistanciameentreelesnascemoutrosacontecimentosquevãocrescendo até me darem sofrível noção de realidade. As feições das pessoasganham nitidez. De toda aquela vida havia no meu espírito vagos indícios.Saíramdoentorpecimentorecordaçõesqueaimaginaçãocompletou.

    A escola era triste. Mas, durante as lições, em pé, de braços cruzados,escutandoasemboançasdemestreAntônioJustino,euvia,nooutroladodarua,umacasaquetinhasempreaportaescancaradamostrandoasala,ocorredoreoquintal cheio de roseiras. Moravam ali três mulheres velhas que pareciamformigas. Havia rosas em todo o canto. Os trastes cobriam-se de grandesmanchas vermelhas. Enquanto uma das formigas, de mangas arregaçadas,remexia a terra do jardim, podava, regava, as outras andavam atarefadas,carregandobraçadasderosas.

    Daqui também se veem algumas roseiras maltratadas no quintal da casavizinha.Foientreessasplantasque,nocomeçodoanopassado,avisteiMarinapelaprimeiravez,suada,oscabelospegandofogo.

    Lá estão novamente gritando os meus desejos. Calam-se acovardados,tornam-se inofensivos, transformam-se, correm para a vila recomposta. Umarrepio atravessa-me a espinha, inteiriça-me os dedos sobre o papel.Naturalmente são os desejos que fazem isto,mas atribuo a coisa à chuva quebatenotelhadoeàrecordaçãodaquelapeneiraranzinzaquedesciadocéudiasedias.

    Meupaicochilava,encostadoaobalcão.Nasaletadanossacasa,pordetrásdabodega, eu recordava as lições, entorpecido.Enfiandoosolhospela janela,

  • vianaruaomeuvizinhoJoaquimSabiá,decócoras,fazendoconstruçõescomareia molhada. Havia um grande silêncio, um silêncio incômodo. Às vezespunha-meatossir,parameconvencerdequenãotinhaficadosurdo.Eracomose agentehouvessedeixadoa terra.De repente surgiamvozes estranhas.Queeram?Aindahojenãosei.Vozesqueiamcrescendo,monótonas,emecausavammedo. Um alarido, um queixume, clamor sempre no mesmo tom. As ruasenchiam-se, a saleta enchia-se — e eu tinha a impressão de que o bradolastimoso saía das paredes, saía dos móveis. Fechava os ouvidos para nãoperceber aquilo: as vozes continuavam, cada vez mais fortes. Que seriam?Tentavadescobrir a causado extraordinário lamento.Supunhaque erampatosgritando,emboranuncativesseouvidoavozdospatos.Tambémmeinclinavaaadmitirquefossemsapos.MasossaposdoaçudedaPenhacantavamdeoutraforma.Nãopodiam ser sapos.Averdade é quemuitas vezes perguntei amimmesmoserealmenteouviaaquelebarulhogrande,diferentedosoutrosbarulhos.Pergunteinaqueletempooupergunteidepois?Nãosei.Tenho-meesforçadoportornar-mecriança—eemconsequênciamisturocoisasatuaisacoisasantigas.

    ...

    Penso namorte demeupai.Quandovoltei da escola, ele estava estirado nummarquesão,cobertocomumlençolbrancoquelheescondiaocorpotodoatéacabeça. Só ficavam expostos os pés, que iam além de uma das pontas domarquesão,pequenoparaodefuntoenorme.Muitaspessoasse tinhamtornadodonas da casa: Rosenda lavadeira, padre Inácio, cabo José da Luz, o velhoAcrísio.

    Fuisentar-menumaprensadefarinhaquehavianofundodonossoquintal.Tenteichorar,masnãotinhavontadedechorar.Estavaespantado,imaginandoavidaqueiasuportar,sozinhonestemundo.Sentiafrioepenademimmesmo.Acasaeradosoutros,odefuntoeradosoutros.Euestavaalicomoumbichinho

  • abandonado, encolhido na prensa que apodrecia. Ouvia o barulho de umdescaroçadordealgodão,próximo,noCavalo-Morto.Eviaocorredordanossacasa,porondepassavamabatinadepadreInácio,afardadecaboJosédaLuz,ovestidovermelhodeRosendaeocapotedovelhoAcrísio.

    Queiaserdemim,soltonomundo?PensavanospésdeCamiloPereiradaSilva,sujos,comtendõesdagrossuradeumdedo,cheiosdenós,asunhasroxas.Eram magros, ossudos, enormes. O resto do corpo estava debaixo do lençolbranco,quefaziaumvincoentreaspernascompridas.Eunãopodiatersaudadedaqueles pés horríveis, cheios de calos e joanetes. Procurava chorar —lembrava-medosmergulhosnopoçodaPedra,dasprimeirasliçõesdoalfabeto,quemerendiamcocorotesebolos.Desejavaemvãosentiramortedemeupai.Tudoaquiloeradesagradável.—“Istoéumcavalodedezanosenãoconheceamãodireita.”

    Agoraeutinhacatorze,conheciaamãodireitaeosverbos.Volteiàsala,naspontasdospés.Ninguémmeviu.CamiloPereiradaSilva

    continuavaescondidodebaixodopanobranco,queapresentavanolugardacaraumanódoavermelhacobertademoscas.Rosendaqueimavaalfazemanumcacodetelha.SeuAcrísionãoserviaparanada.EraimpossívelsaberondesefixavaoolhodepadreInácio,duro,devidro,imóvelnaórbitaescura.Ninguémmeviu.Fiqueinumcanto,roendoasunhas,olhandoospésdofinado,compridos,chatos,amarelos.

    Sempreabafandoospassos,dirigi-menovamenteaofundodoquintal,commedodaquelagentequenemmehaviamandadobuscaràescolaparaassistiràmorte demeu pai. Até a pretaQuitéria se esquecera demim.Ao passar pelacozinha,encontrei-amexendonaspanelaselastimando-se.Sentei-menaprensa,cansado,oestômagodoendo.Queiriafazerporaíàtoa,miúdo,tãomiúdoqueninguém me via? Encostei-me ao muro, escorreguei por cima da madeirabichada,adormecipensandonosmergulhosdopoçodaPedra,nosbolosenospésdeCamiloPereiradaSilva.E,enquantodormia,ouviaacantigadossaposnoaçudedaPenha,oburburinhodosintrusosqueseacavalavamnocorredor,o

  • barulho do descaroçador de algodão no Cavalo-Morto. Vozes chegavam-me,confusas,eeunãoconseguiaapreenderosentidodelas.Visões também.Viaacasa da fazenda, arruinada, os bichos definhando na morrinha, o chiqueirobodejando,relâmpagoscortandoocéu.Achuvacaía,euandavapelopátio,nu,montadonumcabodevassoura.QuemmeacordoufoiRosenda,quemetraziaumaxícaradecafé.

    —Muitoobrigado,Rosenda.Ecomeceiasoluçarcomoumdesgraçado.Desdeessediatenhorecebidomuitocoice.Tambémmeapareceramalguns

    sujeitos que me fizeram favores. Mas até hoje, que me lembre, nada mesensibilizou tanto como aquele braço estirado, aquela fala mansa que medespertava.

    —Obrigado,Rosenda.Iam levando o cadáver de Camilo Pereira da Silva. Corri para a sala,

    chorando. Na verdade chorava por causa da xícara de café de Rosenda, masconseguienganar-meeeviteiremorsos.

    Na casa escura, cheia das lamentações deQuitéria, não encontrei sossego.Adormecipelamadrugada.

    No dia seguinte os credores passaram os gadanhos no que acharam.Tiposdesconhecidosentravamna loja,mediampeçasdepano.Chegavamdechapéuna cabeça, cigarro no bico, invadiam os quartos, praguejavam. Enterrar osmortos,obrademisericórdia.Omortoestavaenterrado.PadreInácioeosoutrossumiram-se. E os homens batiam os pés com força, levavam as mercadorias,levavamosmóveis, nemmeolhavam,nemolhavamQuitéria, que se encolhiagemendo“Misericórdia!”,comoquandootrovãorolavanocéueosbichosiamabrigar-senocopiardafazenda.

    Passei anoite aumcantoda salade jantar,numa redeencardida, a cabeçadebaixodocobertor,commedodaalmadeCamiloPereiradaSilva.Pensavanaredearmadanocopiar, nopoçodaPedra,nopátiobrancoonde se arrastavamcascavéisejararacas.Aquiloagoratinhaoutrodono.Ocupimcontinuavaaroer

  • os mourões do curral e os caibros da casa, o carro de bois apodrecia sob ascatingueiras,osbichosbodejavamnochiqueiro.MasasombradovelhoTrajanonão brincava com os dedos dos pés, Amaro vaqueiro não cortava mandacarupara o gado, a cachorraMoqueca tinhamorrido, Camilo Pereira da Silva nãofolheavaoromance.

    Que estaria fazendo a alma de Camilo Pereira da Silva? Provavelmenterondava a casa, entrava pelas portas fechadas, olhava as prateleiras vazias.Asoutras almas mais antigas, Trajano, seu Evaristo, sinha Germana, não meatemorizavam; mas aquela, tão próxima, ainda agarrada ao corpo, dava-metremuras.Osuorcorria-mepelorosto.ComoestariamospésdeCamiloPereiradaSilva?Certamenteestavaminchados,verdes,compedaçosficandopretos.

    ...

    Seu Ivo, silencioso e faminto, vem visitar-me. Faz agrados ao gato e aopapagaio,entende-secomVitóriaearranjaumossonacozinha.Nãoquerovê-lo,baixoosolhosparanãovê-lo.

    Fico de pé, encostado à mesa da sala de jantar, olhando a janela, a portaaberta, os degrausde cimentoquedãoparaoquintal.Água estagnada, lixo, ocanteirodealfacesamarelas,asombradamangueira.Porcimadomurobaixoaofundoveem-se pipas,montes de cisco e cacos de vidro, umhomem triste queenchedornassobumtelheiro,umamulhermagraquelavagarrafas.

    Seu Ivo está invisível. Ouço a voz áspera deVitória e istome desagrada.Entro no quarto, procuro um refúgio no passado.Mas nãomeposso esconderinteiramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranquilidade,falta-meinocência,estoufeitoummolamboqueacidadepuiudemaisesujou.

    Fumo.AssistoaumadiscussãodobarbeiroAndréLaertecomonegocianteFilipeBenigno.Aspalavrasmechegamquaseapagadas,destituídasdesenso.Éprovávelquenãodigamnada.FilipeBenignoéumpouconebuloso:sópercebo

  • dele claramente as barbas brancas e os olhosmiúdos.Mas a figura deAndréLaerte tembastantenitidez.Pareceumgato: anda em redordooutro como seestivesse preparando um salto para agarrá-lo. Tem um avental manchado desangue,umbigodinhoraloefaz“Pfu!”SeuBatista,vestidoemrobedechambre,passeia na calçada, com as mãos atrás das costas. D. Conceição, mulher deTeotoninhoSabiá,preparamilhoparaoxerém.Carcarásoltagargalhadasqueseouvemna outra extremidade da rua.O doutor juiz de direito conta ao vigáriohistóriasdeonçasejacarésdoAmazonas.CaboJosédaLuz,àportadoquartel,espalhatristezas:

    Assenteipraça.NapolíciaeuvivoPorseramigodadistintafarda...

    Osinodaigrejinhabateaprimeirapancadadasave-marias.Não,nãoéosinodaigreja,éorelógiodasaladejantar.Oitoemeia.Preciso

    vestir-me depressa, chegar à repartição às nove horas. Apronto-me, calço asmeiaspeloavessoesaiocorrendo.Parosobressaltado,tenhoaimpressãodequeme faltampeçasdovestuário.Assaltam-medúvidas idiotas.Estarei àportadecasaou já terei chegadoà repartição?Emquepontodo trajetomeacho?Nãotenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo ficoassim.Provavelmenteumsegundo,masumsegundoquepareceeternidade.Estáclaro que todo o desarranjo é interior. Por fora devo ser um cidadão como osoutros,umdiminutocidadãoquevaiparaotrabalhomaçador,umLuísdaSilvaqualquer.Mexo-me,atravessoaruaagrandespernadas.

    Tenhocontudoaimpressãodequeostranseuntesmeolhamespantadosporeuestarimóvel.

    Imóvel.CamiloPereiradaSilvatambémestavaimóvel,debaixodaterra.D.Conceição vinha oferecer-me comida. As meninas dela, d. Maria e Teresa,tentavamconsolar-me.Retraía-mecomoumanimalacuado,fechavaosouvidos

  • àsconsolações,cerravaosolhos,apalpavaacabeçaesentiaadurezadeossos,davaestaloscomosdedoseouviaosomdeossos.

    —Obrigado,muitoobrigado.Não precisava de nada. Os ossos de Camilo Pereira da Silva

    desconjuntavam-senapodridãodacova,eaalmajánãomefaziamedo.Eraumaalma que envelhecia e estava fora da terra, provavelmente no purgatório.Quitériarezavaaltonacozinha:

    —Ofereçoestepadre-nossoeestaave-mariaàsalmasdopurgatório.Era lá que devia estacionar uma parte de meu pai, curando uns restos de

    pecados.Levespecados.Apenasmuitapreguiça.Por issoeuaguentavafomeeouviaaslamentaçõesdeQuitéria.

    Paraquebandaficariaopurgatório?SeuAntônioJustinonãosabia.Nemeu.SabiaondeficavamoRiodeJaneiro,SãoPaulo,Minas,lugaresquemeatraíam,queatraemaminharaçavagabundaequeimadapelaseca.Resolvidesertarparaumadessasterrasdistantes.Abandoneiavila,comumatrouxadebaixodobraçoeoslivrosdaescola.—“Adeus,d.Conceição.Muitoobrigadopelacomidacomquemematouafome.Adeus,JoaquimSabiá,d.Maria,Teresa.Adeus,Quitéria,Rosenda, cabo José da Luz.” E comecei a andar lentamente pelo caminhoestreito,afastando-medavilaadormecida.

    Começo a andar depressa, receando encontrar o ponto encerrado. Tolice.Provavelmente tudoaquilosepassounumsegundo.Tenhoa impressãodequeumaobjetivamepegou,numinstantâneo.Ficareiassim,comapernaerguida,apastadebaixodobraço,ochapéuembicado.

    LuísdaSilva,acaminhodarepartição,lesando,pensandoemdefuntos.

    ...

    Este mês fiz um sacrifício: dei uns dinheiros ao Moisés das prestações paraamortizaraminhaconta.Dr.Gouveiahádeterpaciência:esperamaisunsdias.

  • Deixarei de andar pela rua do Sol para não encontrá-lo. O que não posso écontinuaraesconder-medeMoisés.Escondo-me,estivealgumassemanassemiraocafé,comreceiodeverojudeu.Egostodocafé,passoláumahorapordia,olhandoascaras.

    Há o grupo dos médicos, o dos advogados, o dos comerciantes, o dosfuncionáriospúblicos,odosliteratos.Certosindivíduospertencemamaisdeumgrupo,outroscirculam,procurando familiaridadesproveitosas.Naqueleespaçode dez metros formam-se várias sociedades com caracteres perfeitamentedefinidos,muitodistanciadas.Amesaaquemesentoficaaopédavitrinadoscigarros.Éumlugarincômodo:aspessoasqueentrameasquesaemempurram-measpernas.Contudonãopoderiasentar-medoispassosadiante,porqueàsseishorasdatardeestãoláosdesembargadores.Éagradávelobservaraquelagente.Comumadespesadedoistostões,passoaliumahora,encolhidojuntoàporta,distraindo-me.

    Pois ultimamente precisei renunciar ao café, por causa de Moisés. Eletambém se esquivava. Há dias deu de cara comigo ao dobrar uma esquina eempalideceu,balbuciounasualínguaavariada:

    —Olá!Comovai?Estoucommuitapressa.Éumpéssimocobrador.Dei-lheestemêscemmil-réisparapôrtermoaesses

    vexames.Masaindadevomuito,nemseiquanto.Aculpaéminha.Quandomevendeuasfazendas,Moisésfoifranco:

    —Istoécarocomoodiabo.Vocêfazmelhornegóciocomprandoadinheironoutraloja.

    MaseuestavanapindaíbaeprecisavaadquirirostraposparaMarina.Desdeentão venho suando para reduzir o débito.Quandome atraso,Moisés foge demim. Agora, depois de receber o cobre, declarou-me que as mercadorias játinhamsidopagas.Infelizmentenãomepodiadarquitação,porqueostroçosquevendesãodotio,judeuverdadeiro.

    —Estámuitobem.Eo constrangimento desapareceu.Às seis horas estamos de novo sentados

  • junto à vitrina dos cigarros. Moisés fala com abundância, desforrando-se dosilêncioemqueestivemosultimamente.Procuraaexpressão,coçaatesta,franzeosbeiçosnumacaretaquelhemostraosdenteslargosediz:

    —Estápercebendo?Sim, percebo, embora ele tenha sintaxemedonha e pronúncia incrível. Faz

    rodeios fatigantes, deturpa o sentidodas palavras e usa esdrúxulas demaneirainsensata.Escuto-o.Osouvidossãoparaele,osolhosparaasfigurashabituaisdocafé.Osolhosestãoquaseinvisíveisporbaixodaabadochapéu,eumafolhadaportaoculta-meocorpo.Umacriaturinhainsignificante,umpercevejosocial,acanhado,encolhidoparanãoserempurradopelosqueentramepelosquesaem.

    Pertoumcapitalistafalamuitoalto,eoscotovelossobreomármoredão-lhena sala estreita espaço excessivo. No grupo da justiça as palavras tombammedidas,pesadas,eosgestossãolentos.Alémdoispolíticoscochichameolhamparaoslados.

    Moiséscomentaojornal.Nuncavininguémlercomtantarapidez.Percorreas colunas com o dedo e para no ponto que lhe interessa. Engrola, saltandolinhas, aquela prosa em língua estranha, relaciona o conteúdo com leiturasanterioresepassaadiante.ÉumdedointeligenteodoMoisés.Orestodocorpotem pouca importância: os ombros estreitos, a corcunda, os dentes que semostram num sorriso parado. O que a gente nota é o dedo. O dedo e a vozsibilada,descontente,sempreaanunciardesgraças.Moiséséumacoruja.Achaque tudo vai acabar, tudo, a começar pelo tio, que esfola os fregueses. E euacreditoemMoisés,quenãoescoraassuasopiniõescomapalavradoSenhor,comoosantigos:cita livros,argumenta.Pregaa revolução,baixinho,e temosbolsoscheiosdefolhetosincendiários.

    Derepentecala-se:foiodoutorchefedepolíciaqueapareceuecomeçouacochicharcomospolíticos.OdedodeMoiséssome-seentreasfolhasdojornal,o revolucionário esconde-se por detrás do sorriso inexpressivo.Covardia.Masafasto este pensamento severo. Moisés não tem jeito de herói: é apenas umsujeitobomeinteligente.Porissofizosacrifíciodelhedarcemmil-réis,queme

  • vãotranstornaroorçamento.Estavatãoabandonadonestedeserto...Sósedirigiamamimparadarordens:—SeuLuís,ébommodificarestainformação.Corrijaisto,seuLuís.Fora daí, o silêncio, a indiferença. Agradavam-me os passageiros que me

    pisavamospés,nosbondes,esevoltavam,atenciosos:—Perdão,perdão.Fazfavordedesculpar.—Semdúvida.Oraessa.Ouentão:—TemabondadedemedizerondeficaaruadoApolo?—Perfeitamente,minhasenhora.Vamosparalá.Éomeucaminho.Agoraestoudefrontedeumamigo,amigoquemeligapoucaimportância,é

    verdade, amigo todoentregue aos telegramas estrangeiros,masquemecustoucemmil-réis. Parece-me que até certo pontoMoisés é propriedademinha.Oscemmil-réismevãofazermuitafalta.

    Estremeço:dr.Gouveiaentranasala,marchaparaavitrinadoscigarros.—Vamosdarofora,Moisés?DoisminutosdepoisestamossentadosnumbancodapraçaMontepio.Aqui

    hásossego,nãovêmcácertosindivíduosimpertinentes.Oquemedesgostaéverde relance, nos bancos do centro, que a folhagem disfarça mal, pessoasatracadas. Sinto furores de moralista. Cães! Amando-se em público,descaradamente! Cães! Tremo de indignação. Depois esmoreço: julgueidistinguir entre as folhas dos crótons o vulto de Marina. Foi ilusão, mas aimagempermanece.Cachorrada!

    Moisésfalaempolíticosreacionários.Encho-medeferocidade:—Malandros!ladrões!AgoraMoisésestácontandoasperseguiçõesaosjudeus,naEuropa.Lembro-

    me do tio dele e digo comigo que provavelmente a narração é exagerada. SeMoisésnãofosseinteligente,comcertezamuitosdaquelesfatosnãoexistiriam.Sofrimentos.Iniquidades.

    — Aqui há tanto disso! Mas somos fatalistas, estamos habituados e não

  • temosimaginaçãocomovocês.Entro a falar sobre a minha vida de cigano, de fazenda em fazenda,

    transformado emmestre de meninos. Quando ensinava tudo que seu AntônioJustino me ensinara, passava a outra escola. Tinha o sustento. Depois era acaserna.Todasasmanhãsnosexercícios.—“Meia-volta!Ordinário!”Aspeçasdo fuzil, marchas na lama, a bandeira nacional, o hino, as tarimbas sujas, osdesaforos do sargento. Em seguida vinha a banca de revisão: seis horas detrabalhopornoite,osolhosqueimandojuntoaumfocodecemvelas,cincomil-réisdesalário,multas,suspensões.

    E coisas piores, que me envergonham e não conto a Moisés. Empregosvasqueiros, a bainha das calças roída, o estômago roído, noites passadas numbanco, importunado pelo guarda. Farejava o provinciano de longe, conhecia onordestinopelaroupa,pelacordesbotada,pelapronúncia.Eassaltava-o:

    — Um filho do Nordeste, perseguido pela adversidade, apela para agenerosidadedev.exª.

    Valorizavaaesmola:—Tragoumromanceentreosmeuspapéis.Compusumlivrodeversos,um

    livro de contos. Sou obrigado a recorrer aos meus conterrâneos. Até que mearranje,atéquepossaeditarasminhasobras.

    Recebia, com um sorriso, o níquel e o gesto de desprezo.O frege-moscasfediaavinhopodre,eogalego,detamancos,cobertodenódoas,eraasqueroso.Mais tarde, já aqui emMaceió, gastando sola pelas repartições, indignidades,curvaturas,mentiras,nacaçaaopistolão.

    — Escrevi muito atacando a república velha, doutor; sacrifiquei-me,endividei-me,estivepresoporcausadaideologia,doutor.

    Afinal,paraselivraremdemim,atiraram-meesteossoquevouroendocomódio.

    —Cheguemaiscedoamanhã,seuLuís.Eeuchego.—Informelá,seuLuís.

  • Eeuinformo.Comosoudiferentedemeuavô!Um dia um cabra de Cabo Preto apareceu na fazenda com uma carta do

    chefe.Deixouo clavinote encostado aumdos juazeirosdo fimdopátio, e delonge ia varrendo o chão com a aba do chapéu de couro. Trajano Pereira deAquino Cavalcante e Silva soletrou o papel que o homem lhe deu emandouAmaro laçarumanovilha.Ocabra jantou, recebeuumanotadevintemil-réis,que naquele tempo era muito dinheiro, e atravessou o Ipanema, tangendo obicho.DiadeNatalmeuavôfoiàvila,comamulher,eencontrounocaminhoogrupodeCaboPreto,quesemeteunacapoeiraparanãoassustaradona.SinhaGermana,desaiasarregaçadas,escanchadanasela,ummosquetãonamaçaneta,nãoviunada,masmeu avô fezumgestode agradecimento aos angicos e aosmandacarusquemarginavamaestrada.QuandoapolíticadepadreInáciocaiu,odelegadoprendeuumcangaceirodeCaboPreto.OvelhoTrajanosubiuàvilaepediuaodoutorjuizdedireitoasolturadocriminoso.Impossível.Andou,virou,mexeu,gastoudinheirocomhabeascorpus—eodoutordurocomochifre.

    —Estádireito,exclamouTrajanoplantandoosapatãodecourocrunapalhadacadeiradojuiz.Euvousoltarorapaz.

    No sábado reuniu o povo da feira, homens e mulheres, moços e velhos,mandou desmanchar o cercado do vigário, armou todos com estacas e foiderrubaracadeia.

    EstáaíumahistóriaquenarrocomsatisfaçãoaMoisés.Ouve-medesatento.O que lhe interessa na minha terra é o sofrimento da multidão, a tragédiaperiódicadassecas.Procurorecordar-medosverõessertanejos,queduramanos.Alembrançachegamisturadacomepisódiosagarradosaquieali,emromances.Dificilmente poderia distinguir a realidade da ficção. De resto a dor dosflagelados naquele tempo não me fazia mossa. Penso em coisas percebidasvagamente:ogado,escurodecarrapatos,roendoamadeiradocurral;ocavalodefábrica, lazarentoecomesparavões;bodesdefinhandonamorrinha;ocarrode bois apodrecendo; na catinga parda, manchas brancas de ossadas e o voonegrodosurubus.Tentolembrar-medeumadorhumana.Asleiturasauxiliam-

  • me,atiçam-meosentimento.Masaverdadeéqueopessoaldanossacasasofriapouco.TrajanoPereiradeAquinoCavalcante eSilva caducava;meupaiviviapreocupadocomosdozeparesdeFrança;Quitéria,coitada,erabrutademaiseporissoinsensível.Osoutrosmoradoresdafazenda,ascriaturasqueviviamemranchos de palha construídos nas ribanceiras do Ipanema, não se queixavam.JoséBaía falavabaixoe riasempre.SinhaTerta rezavanovenase faziapartospela vizinhança. Amaro vaqueiro alimentava-se, nas secas, com sementes demucunãlavadasemseteáguas,raizdeimbu,miolodexiquexique,edetemposatemposfurtavaumacabranochiqueiroeatiravaaculpaàsuçuarana.Doressóasminhas,masestasvieramdepois.

    ...

    A minha criada Vitória anda em cinquenta anos, é meio surda e possui umpapagaiointeiramentemudo,quepretendeeducarassim:

    Currupaco,papaco,AmulherdomacacoElafia,elacose,ElatomatabacoTorradonocaco.

    Opapagaiopreganavelhaoolhoredondo.Emseguidacerraaspálpebrasebaixaacabeça.Àsvezesseaborrecedagaiolaebateasasas.Adonacorreparaoquintaleespiaafolhagemdamangueira:

    —Meu louro, meu louro! Currupaco, papaco.Meu louro! Onde andará osem-vergonhadessepapagaio?

    Sóseacomodadepoisdepercorreravizinhançaeencontrarofugitivo.Pegaentãoaparolarcomele,quenãodiznada.Quandosecansa,agarraojornalelê

  • comatençãoosnomesdosnaviosquechegamedosquesaem.Nuncaembarcou,sempre viveu em Maceió, mas tem o espírito cheio de barcos. Dá-mefrequentementenotíciasdestegênero:

    — O Pedro II chega amanhã. O Aratimbó vem com atraso. Terá havidodesastre?

    Nãoseicomosepodecapacitardequeacomunicaçãomeinteressa.Hátrêsanos,quandoaconheci,amaniadelameespantava.Agoraestouhabituado.Leioo jornal e deixo-o em cima damesa, dobrado na página em que se publica omovimentodoporto.Vitóriatomaafolhaevaiparaacozinhaleraopapagaioalistadosviajantes.

    No princípio do mês, quando se aproxima o recebimento do ordenado,excita-seenãolargaoDiárioOficial.

    —Faltamdoisdias,faltaumdia,éhoje.Efazcálculosquenãoacabam,cálculosinúteis,porquenãogastanada:usa

    osmeussapatosvelhosetrazumxalepretoamarelentoquedeveterdezanos.Recolhe amensalidade emete-se no fundo do quintal, põe-se a esgaravatar aterra como se plantasse qualquer coisa. Esquece os navios e as lições aopapagaio.

    Volta a tratar das ocupações domésticas,mas de quando emquando lá vairondar amangueira e acocorar-se junto ao canteirodas alfaces.Dáum salto àcozinha, fala com o louro, tempera a boia. Minutos depois está novamenteremexendoaterra.

    Observo esses manejos. Sentindo-se observada, levanta-se, deita água nocacodasgalinhas,vaiaobanheiro,saicomumabraçadaderoupa,queestendenoarameesticadoentreacercaeumdosramosdamangueira.Entraemcasa,abreojornaleanuncia:

    —Odelegadofiscalviajouontem.Nota, pela minha cara, que o delegado fiscal não me interessa e dá uma

    notíciaimportante:—OarcebispochegoudoRio.

  • Escapole-se,vaiconsertaracerca,taparosburacosporondepassambichosqueestragamahorta.Daminhacadeiravejo-lheococógrisalho,acabeçacurva,atentasobreaterraqueescava,fingindotratardoscanteirosoufincarasestacasdacerca.Nooutrodiatiraráasestacas,que,detantoremovidas,fizeramaliumaespéciedeporteira.

    Nemànoiteapobredescansa:levanta-sepelamadrugadaeabreaportadofundo, cautelosamente. Cautela inútil. Como émeio surda, pensa que não fazbarulho, mas arrasta os sapatões com força, e as pernas reumáticas atiram-nacontra os móveis, às escuras, tropeçam nos degraus de cimento quebrado.Ausenta-seumahora.Depoisaportarangedenovoeaspisadasreaparecem.Daía pouco está a criatura resmungando, fazendo contas intermináveis. Erra osnúmeros e recomeça. Esta agitação dura quatro, cinco dias pormês. Sossega,voltaàslistasdospassageiros,àtagarelicecomopapagaio:

    Currupaco,papaco,Amulherdomacaco...

    A voz é áspera e desdentada. E, acompanhando a cadência, tremem aspelancasdopescoçoengelhadocomoumpescoçodeperu,trememospelosdobuçoeasduasverrugasescuras.Éterrivelmentefeia.

    Logoquemeentrouemcasa,descobrinelaumaparticularidadealarmante.Sou um desleixado.Quandomudo a roupa, esqueço papéis nos bolsos.Deixofrequentemente níqueis e pratas sobre os móveis. Essas frações de pecúniasomem-se,ecertavezdesapareceu-medacarteiraumacéduladecinquentamil-réis.As faltas coincidem com uma grande excitação da velha.Recomeçam asfugasparaoquintal.Vendo-lheococóbambeanteentreasfolhasdealface,seiperfeitamentequeelaestáenterrandoodinheiro.Descubroaopédacerca,juntoàraizdamangueira,covasfrescas.

    Assustei-meaprincípio,depoismetranquilizei.Anotadecinquentamil-réis

  • foi achada entre as páginas de um livro. E asmoedas voltam para os lugaresdonde saíram. Finjo não prestar atenção a elas, para amulher não se ofender,metoalgumasnobolso,comindiferença.Sóquandoestounecessitado,digoporalto,escolhendoaspalavras:

    —Vitória,hojepelamanhãdeixeicairumaspratasnochão.Apanheiduasou três,masparecequeasoutras rolarampara trásdacama.Você,varrendooquarto,nãoteráencontradoalgumas?

    Vitóriaestica-se,opescoçoencarquilhadoincha,osolhosmiúdosfuzilam,asverrugastrememindignadas:

    —Osenhortemcadauma!Senãoestásatisfeitocomigo,édizer.Jáviviemmuita casa de gente rica, seuLuís.Criei-mevendodinheiro, seuLuís. Se nãoestáachandobom,éarriaratrouxa.Desconfiançacomigo,não.

    —Deixe disso, criatura. Quem falou em desconfiança? É que derrubei asmoedas.Quevocênãoviuestáclaro,nãosediscute.Dêumabusca.

    —Ah!exclamaVitória.Eunãotinhacompreendidobem.Torna-seamável,coçaoqueixocabeludo,puxaconversaforadepropósito,a

    voz sumida, uns risinhos encabulados. Julgando-me distraído, afasta-se naspontas dos pés, olhando-me como rabo do olho, e vai apanhar alfaces.Daí apoucovolta,entranoquarto,arrastaacama,examinaoscantosdaparede:

    —Sóvejoteiadearanha.Derepenteaparecechocalhandoasmoedas:— Estão aqui. Não sei quando o senhor quer tomar jeito. A vida inteira

    perdendodinheiro!Guardo algumas pratas e deixo o resto em cima da mesa. Não há perigo.

    ReceioéqueVitóriaseenganenascontasemetragamaisqueoquetirou.

    ...

    Em janeiro do ano passado estava eu uma tarde no quintal, deitado numa

  • espreguiçadeira,fumandoelendoumromance.Oromancenãoprestava,masosmeus negócios iam equilibrados, os chefes me toleravam, as dívidas erampequenas—eeurosnavacomumbocejotranquilo:

    —Temcoisasboasestelivro.Lia desatento, e as letras esmoreciam na sombra que amangueira estirava

    sobreoquintal.Moisés e Pimentel apareciam-me às vezes, e alguns rapazes acanhados

    vinhampedir-me em segredo artigos e composições poéticas, que eu vendia adez,aquinzemil-réis.Istochegavaparaoalugueldacasa—edr.Gouveianãome importunava. Distraía-me com leituras inúteis. Quandome caía nas mãosumaobraordinária,ficavacontentíssimo:

    —Ora,muitobem.Istoétãoruimqueeu,comtrabalho,poderiafazercoisaigual.

    Os livros idiotas animam a gente. Se não fossem eles, nem sei quem seatreveriaacomeçar.

    Essequeeuliadebaixodamangueira,saltandopáginas,erabemsafado.Porissointerrompiaaleitura,acendiaocigarro.

    Foinumadessassuspensõesquepercebiumvultomexendo-senoquintaldacasavizinha.Comojádisse,existeapenasumacercaseparandoosdoisquintais.Do lado esquerdo há ummuro, e ignoro completamente o que se passa alémdele. Mas daquela banda o que temos é a cerca baixa, que Vitória consertasempre por causa das galinhas e para guardar dinheiro nos pés das estacaspodres. Para lá dessa linha de demarcação tudo me era familiar: o banheiro,paredes-meiascomomeu,algumasroseiras,ummontedelixoqueainquilina,senhoraidosa,àsvezesqueimava.

    Ovultoquesemexianãoeraasenhoraidosa:eraumasujeitinhavermelhaça,deolhosazuisecabelostãoamarelosquepareciamoxigenados.Foisóoquevi,de supetão, porque não sou indiscreto, era inconveniente olhar aqueladesconhecidacomoumbasbaque.Demaisnãohavianadainteressantenela.

    Ondeandariaasenhoraidosa,quetodasasmanhãsiaregarasplantas,com

  • umpanobrancoamarradoàcabeça?Mudara-se,provavelmente,eaquelaquealiestavadeviasermoradoranova.

    — Sim senhor, disse comigo, muito poética, aí entre as roseiras, com oscabelospegandofogoeacarapintada.

    Sentia a ausência da senhora idosa, cheia de rugas, tranquila, um panoamarradoàcabeçaeoregadornamão,movendo-setãodevagarqueeracomoseestivesse parada. Essa outra estava em todos os lugares ao mesmo tempo,ocupavaoquintalinteiro.Umazougue.

    —Quediabotemela?Emergulheina leitura,desatento,estáclaro,porqueo livronãovalianada.

    Virava a página muitas vezes, e quando isto acontecia, olhava, fingindodesinteresse,amulherdoscabelosdefogo.Tinhaasunhaspintadas.

    —Lambisgoia!Fiqueilendooromance,péssimoromance,enquantoatipinhasemexeuentre

    as roseiras. Notei, notei positivamente que ela me observava. Encabulei. Soutímido: quandome vejo diante de senhoras, emburro, digo besteiras. Trinta ecinco anos, funcionário público, homem de ocupações marcadas peloregulamento.OEstadonãomepagaparaeuolharaspernasdasgarotas.Eaquiloeraumagarota.Alémdetudoseiquesoufeio.Perfeitamente,tenhoespelhoemcasa.Osolhosbaços,abocamuitogrande,onarizgrosso.Comosechamavaasenhoraidosaquevinharegarasplantas?Averdadeéquenuncameempatoualeitura. Fiquei ali até que escureceu e a mulherinha deu o fora. Mais tardeinformei-me:

    —ÓVitória,avizinhaaquidadireitamudou-se?—Morreu,disseVitóriadepoisdemefazerrepetiraperguntaquatrovezes,

    porqueeraluanovaeelaestavainteiramentesurda.Osenhornãoviuoenterro?Poisé.Agoraháoutrosmoradores.

    Pobre da velha.Morta e enterrada, e eu nem havia percebido alteração nacasa.

    Moisés e Pimentel apareceram à noite e conversaram muito, mas ouvi-os

  • distraído.Além das plantas mencionadas, havia também um mamoeiro no quintal

    vizinho.Eraengraçadaodiabodapequena.Parao inferno.Umhomemlidoecorrido, pegando trinta e cinco anos, amolecendo, preocupando-se comaquelaguenza!

    —Vamosdeixardetolice.E contrariei Pimentel eMoisés, arranjei umas opiniões descabidas, porque

    realmentenãosabiaoqueelesestavamdizendo.No dia seguinte (era sábado e não havia expediente à tarde) sentei-me de

    novo à sombra da mangueira, com o romance. A coisinha loura tornou aaparecer, em companhia de uma mulherona sardenta, e começaram ambas acortar os ramos secos das roseiras. A pequena estouvada não me prestavaatenção:descontentara-aprovavelmenteoexamedavéspera.Umsujeitofeio:osolhosbaços,onarizgrosso,umsorrisobestaeaatrapalhação,oencolhimentoqueémesmoumadesgraça.

    Apesardestasdesvantagens,osnegóciosnãoiammal.Efoiexatamentepormecorreravidaquasebemqueamulherinhameinspirouinteresse—novidade,pois sempre fui alheio aos casos de sentimento. Trabalhos, compreendem?Trabalhosepobreza.Àsvezesocoraçãoseapertavacomocordaderelógiobemenrolada.Umratoroía-measentranhas.

    Nestes últimos tempos nem por isso. Antigamente era uma existência decachorro. As mulheres tinham cheiros excessivos, e eu me sentia impelidoviolentamenteparaelas.Masavozdochefedarevisãoestavacoladaaosmeusouvidos:

    —Suspensoporcincodias,seuSilva.Aunha suja de tinta riscavanaprovao corpodedelito.Vidade cachorro.

    Comoiriapagarapensão?—D.Aurora,tenhapaciência.Vejasemearranjaumquartomaisbarato.Os

    temposandamsafados,d.Aurora.Asruasestavamcheiasdemulheres.Eoratoroía-mepordentro.

  • Ora,umdia, semmotivo, convidei d.Auroraparao cinema.Tenhodessesrompantes idiotas. Faço uma tolice sabendo perfeitamente que estou fazendotolice. Quando tento corrigir o disparate, caio noutro e cada vez mais mecomplico. Foi o que se deu. Convidei d. Aurora e a neta para o cinema.Arrependi-me e ofereci-lhes refrescos.Aceitaram tudo— e começou aminhatortura.Lá fui comelas, capiongo, pagar bonde, sorvetes e três cadeiras.Tipobesta.

    —Aguenta,maluco,trouxa,filhodeumaputa.Econtavamentalmenteodinheirosuadoemesquinho.Nasaladeprojeçãoa

    netaded.Auroraabriuumlequeenormeemcimadascoxasemeteuaminhapernaentreasdela.Subitamenteoratodeixouderoer-me.Oqueeuestavaeraindignado. E calculava. Três passagens de bonde — mil e duzentos. Trêssorvetes—trêsvezescinco,quinze.Eentradasnocinema.Ascoxasdamoçaeramfrias.Comcertezafaziaaquiloporhábito.Naqueletempoeuandavacomoumbode.Masesfrieitambém.Cincomil-réisporseishorasdetrabalhoànoite,suspensões,multas,o jornal indoparacimaeparabaixo.Eraumsofrimentoaideiadequenofimdaquinzenaficaríamossemocobrequeestavaenganchado.

    —Hojeninguémrecebe.Láia,decabeçabaixa,beberumcopodecaldodecanaecomerumpastel.

    Osníqueisamarradoscomodinheirodematuto.Pois,numaquebradeiraassim,bonde, sorvete, cinema.Eainda faltavamaspassagensdevolta.A fita era tãocomprida!Amoçatinhaaspernasfrias.

    Aquelaqueestavaaliameiadúziadepassos,cortandoos ramossecosdasroseiras, vermelha comopimenta, os braços levantadosmostrandoos sovacos,deviaserquentedemais.

    —Cargaderisco!Amulhersardentaesararátinhatraçosdela.Comolivroesquecidonosjoelhos,ocigarroapagado,oolhomeiocerrado,

    lembrei-mecompreguiçadecoisasvagas, sem importância.HavianoCavalo-Mortoumaraparigadesbragadíssima.Nãotinhadecoro,amavaaosgritos,como

  • osgatoseosciganos.Emhorasderecolhimentonaturalberravadanadamente:—Rasga,diabo!Vaifazerissocomtuamãe,peste!Eueramuitomoço,eaquelafúriameespantava.Amoresselvagens.Da janela de seuAntônio Justino via-se um jardim bem-tratado, onde três

    mulheresvelhasquepareciamformigascavavam,podavam,regavam.Berta, uma alemãzinha bonita que antigamente conheci, também tinha as

    unhaspintadasepontiagudas.Aquiloarranhavadocemente.Aprimeiramulherdejeitocomquemmeatraquei.Eulevavanobolsounsdinheiroscurtosganhosno jogo e a carta de recomendação que um deputado, depois de muitossalamalequesemuitasviagens,mehaviadadonaCâmaraparaodiretordeumjornal.Cadasolecismohorrível.Metiaamãonobolsoecertificava-medequeaspelegasmachucadas e os solecismos existiam. Ia de cabeça baixa, ruminandoprojetos. De repente uma voz estrangeirada, cheia de rr, gargarejou perto demim:

    —Senhornãoquerentrar?Eduasmãosmiúdasagarraram-meumbraço,arrastaram-meporumaporta

    atéaescada.Escorei-meaocorrimão,acuado,pigarreeicomumnónagarganta:—Madame, eu sou um bicho do mato, nunca me encostei a uma pessoa

    comoasenhora.Sejafranca,madame.Quantoéquelhedevodar?Bertaeraengraçada:lourinha,gordinha,umavozsuave,apesardosrr.—Deixadisso.Nãofazfeio.Eeu,amãonobolso,apertandooscobres:—Nãobrinque,madame.Souumsertanejo,umbruto,umselvagem.Quanto

    équeasenhoracostumareceber?Bonitinha,Berta.Emais decente que a neta de d.Aurora.Bonde, cinema,

    refrescos.Menina viciada. Dagoberto fugia dela. Uma piranha. Ser roído poraquilo!Ah! não.Lembrava-medos bancos do passeio, das botinas de elásticobambo.

    —Senhor,umnordestinoperseguidopelaadversidadeapelaparav.exª.E o frege-moscas fedorento, as toalhas cobertas de nódoas de vinho, boia

  • nauseabunda, o galego, de tamancos, sujo, cantando. Com semelhantesrecordações,quempensaemmulheres?

    Amocinha,noladodeládacerca,nãomedavaatenção.Perua.Cabelosdemilho,unhaspintadas,beiçosvermelhoseopernãoaparecendo.

    —Àsvezesaquiloésóacasca.Porbaixo—marcasdeferidasemolambos.Sirigaita.Souumhomemprático,passadopeloscorrimboquesdodiabo, lidoecorrido.Paraoinferno.

    Levantei-me,aprumei-meerecolhi-me,comolivrodebaixodobraço,acaraenferrujada,importante.Navésperaodiretormetinhadito:

    — Necessitamos um governo forte, seu Luís, um governo que estique acorda.Essepovoandaderédeasolta.Umgovernoduro.

    Eeuhaviaconcordado,naturalmente:—Éoqueeudigo,doutor.Umgovernoduro.Equereconheçaosvalores.Considerava-me umvalor, valormiúdo, uma espécie de níquel social,mas

    enfim valor. O aluguel da casa estava pago. Andava em todas as ruas semprecisardobraresquinas.Porumadiferençadedoisvotos,tinhadeixadodesereleitoSecretáriodaAssociaçãoAlagoanade Imprensa.Quinhentosmil-réisdeordenado.Comalgunsganchos,embiravaunssetecentos.Podiaatécasar.Casarouamigar-mecomumacriaturasensata,amantedaordem.Nadademelindrosaspintadas. Mulher direita, sisuda. Passar a vida naquela insipidez, aguentandoumacriadasurda,reumática,cheiademanias!

    —ÓVitória,griteiaoouvidodavelha,queméessagentequechegouaíaolado?

    Vitória não sabia. Tentei ler um artigo político de Pimentel, mas estavadistraído, pensava em Berta, na neta de d. Aurora e na rapariga do Cavalo-Morto. Deitei-me cedo. Não pude dormir: os cabelos de fogo, os olhos eespecialmenteaspernasdavizinhacomeçaramabulircomigo.Aquilodeviaserumapimenta.Passei anoite imaginandocenas terríveis comela.Nooutrodialevantei-me aperreado. Quando me aparecem esses acessos, fico assim umasemana,calado,murcho,pensandoemsafadezas.

  • ...

    AindanãodissequemoronaruadoMacena,pertodausinaelétrica.Ocupadoem várias coisas, frequentemente esqueço o essencial. Que, paramim, a casaondemoramosnãotemimportânciagrandedemais.Tenhovividoemnumerososchiqueiros. Provavelmente esses imóveis influíram no meu caráter, mas souincapazderecordar-medasdivisõesdequalquerdeles.Nãoesperemadescriçãodestasparedesvelhasquedr.Gouveiamealuga,semremorso,porcentoevintemil-réismensais,foraapenadeágua.

    Afinal,paraaminhahistória,oquintalvalemaisqueacasa.Eraali,debaixodamangueira,que,devoltadarepartição,mesentavatodasas tardes,comumlivro.Foi láqueviMarinapelaprimeiravez,emjaneirodoanopassado.E lánostornamosamigos.

    Seelamorassenoprédioàesquerda,talveznãonosconhecêssemos.Quandosaioparaoserviço,passoemfrentedacasaàdireitaecumprimentoaspessoasqueestãoàjanela.Transitoraramentepelooutrolado.Residealiumad.Rosália,que temomarido sempre ausente.Mulher antipática, amarela,muito faladora.Quasenuncaaencontro.Felizmenteháomuroquenosafasta.Vejoàsvezesporcimadelecabecinhasdecriançasqueesperammomentofavorávelparafurtarasmangas dos galhos que lhes chegam ao alcance das garras. Fujo para nãoimportuná-las,massãoassustadiçaseescondem-se.

    Omeuhorizontealieraoquintaldacasaàdireita:as roseiras,omontedelixo, o mamoeiro. Tudo feio, pobre, sujo. Até as roseiras eram mesquinhas:algumas rosas apenas, miúdas. Monturos próximos, águas estagnadas,mandavamparacáemanaçõesdesagradáveis.Mashaviasilêncio,haviasombra.OvozeirãodeVitóriaeraummurmúrioabafado.Talvezomamoeiro,asroseiras,o monte de lixo me passassem despercebidos, e se os menciono, é que,escrevendoestasnotas,revejo-osdaqui.

  • Tornei-me, pois, amigo de Marina. Com certeza começamos por olhares,movimentos de cabeça, sorrisos, como sempre acontece.Depois, palavra aqui,palavra ali, em pouco tempo estávamos camaradas, tratando-nos por você.Procurandoreproduzirosnossosdiálogos,compreendoquenãodizíamosnada.Frívola, incapaz de agarrar uma ideia, amocinha pulava como uma cabra emredordoscanteirosepulavadeumassuntoparaoutro.Oquemeaborrecianelaeramcertasinclinaçõesimbecisousafadas.

    —Porqueéquevocênãomanda fazerumsmoking,Luís?Umrapazqueganha dinheiro andar com essas roupas mal-amanhadas! Eu, se fosse você,brilhava,vivianotrinque.

    Eupilheriavacomela:—Marina,nemsódesmokingviveohomem.Outrasvezes:—D.Mercedesestavahojechamandoaatençãodetodoomundonaigreja

    doRosário.Vestidocordecinzacomvivosencarnados,luvascordecinza,bolsaencarnada,chapéuencarnadoesapatosencarnados.Vocêgostadoencarnado?

    D.Mercedes é uma espanholamadura da vizinhança, amigada em segredocom uma personagem oficial que lhe entra em casa alta noite. Possuimobíliacomplicadíssima,passaosdiasolhando-seaoespelhoepolindoasunhas,metidanumpeignoirdeseda,equandomergulhanabanheira,sente-sedelongeocheirodaágua-de-colônia.Marinaadmirava-acomexagero,arregalandoosolhos:

    —D.Mercedesélinda.Pareceumaartistadecinema.Eumeaperreava:—Que tolice!Vocêelogiandouma tipaordinária,umagalegadearribação

    que ninguém sabe donde saiu! Não está direito. Uma bicha feia e velha, umcouro,umcanhão!

    Marinaexcitava-se:— Que couro, que nada! D. Mercedes é uma senhora vistosa, bem-

    conservada, muito distinta. E rica. Tem filha no colégio emanda dinheiro aomarido.

  • Vejamquemiolo.Equetendências.Eu,senãofosseumidiotacomfumaçasde homem prático, lido e corrido, teria cortado relações com aquela criatura.Admirar uma estrangeira que vive só, tem filha no colégio e sustentamaridoausente!

    Estirava-menaespreguiçadeira,abriao livro,carrancudo.A leituranãomeatraía, mas atirava-me a ela. Marina ficava por ali, rondando, machucandopétalas de rosas, acanhada, o nariz comprido, procurando conversa. Dava umgiroentreoscanteiros,temperavaagoelae,derepente:

    —Quelivroéessequevocêestálendo?Fingia-medistraído,encostavaacaraaovolume.—Deveserumaobrainteressante.—Nemporisso.—Eu também estou lendo um livro interessante, da biblioteca dasmoças.

    Muitopenoso.Olhava-acomódio:—Passebem,Marina.Aproximando-me da cozinha, percebia a voz de Vitória, que resmungava

    juntoàgaioladoCurrupaco:—Franguinhaassanhada.Cochichandocomumhomemnoescuro!Cabrita

    enxerida.Realmenteestavaescuro.Àsvezesagente seesqueciado tempoeentrava

    pelanoitenaprosa.Umfocodailuminaçãodaruaembranqueciaumpedaçodomuro.

    Currupacopregava-meoolhoredondo,encolhiaapernaeescondiaacabeçacomtédio.

    —Safadinha,enxerida,insistiaVitóriaquandomeviaascostas.Punha-meapassearpelacasa.Chegavaàportadarua,voltava,marchavaaté

    a sala de jantar, faziameia-volta, e assim por diante, pisando com força.Umsmoking,imaginem.Paraquediaboqueriaeuumsmoking?Teriagraçaestaralicontandoospassosouiraocafé,vestidonumsmoking.Estúpida.

  • —Umromancecomovente.Esquecionomedoautor.Enredobonito.Estúpida. Lia as notas sociais, casamentos, batizados, aniversários, coisas

    destegênero.Estúpida.Fatigado, sentava-me um instante na sala de jantar. A parada justificava

    outra, instantes depois, à janela da rua. Debruçava-me, olhava osparalelepípedos, a sarjeta, o poste de ferro, os arames, a calçada da casa àesquerda. Virava-me para a esquerda. O outro lado não me interessava. Umapancada no postigo, e recomeçava o passeio. Nova demora na sala de jantar.Coçava a barriga do gato, que se espreguiçava, estirava as pernas. Sem-vergonha,pareciamulher.Oquintal estavaescuro.Porcimadasárvoreshaviaclaridade,atéseenxergava,adistância,umanúncioquesepodialer;maspertodochãoeraaquelepretume.Fastidiosamúsicadegrilos,certamentenocanteirodashortaliças.

    AquantosubiriaafortunaqueVitóriatinhaalienterrada?Aminhasituaçãonão era das piores. Uns três contos de economias depositados no banco. Hágentequesecasacommenosevive.

    Pela porta da cozinha via-se na parede a sombra da cabeça de Vitória,enorme,porcimadasombradojornal.

    —ÓVitória,prepareocafé.Precisavairsacudi-la:—Ocafé,Vitória.—An!Afastava-me.Achaleirachiavanofogão.Asombradesaparecia.Arrastarde

    pésesonsresmungados:—Peruinha,cabritinhadescarada.Punha-metambémaarrastarospésnasaladejantar,fumava,bebiaumtrago

    deaguardente.—Mulhereshámuitas.Eodiabodamúsicadosgrilos.Asletrasdoanúncioeramenormes.Daíapoucoláiadenovoparaocorredor,chegavaàjaneladafrente,abriao

  • postigo,olhavaarua.Masnãomevoltavaparaadireita.Osparalelepípedos,osarames,asarjeta.Abichinhasem-vergonhadeviaandaraliperto,saracoteandonacalçada,indoespiarasaladed.Mercedeseosmóveisded.Mercedes.Nãomevoltava.

    —Paraodiabo.Aquimepreocupandocomaquelaburra!Unhaspintadas,beiços pintados, biblioteca das moças, preguiça, admiração a d.Mercedes—total: rua da Lama. Acaba na rua da Lama, sangrando na pedra-lipes. Vamosdeixardebesteira,seuLuís.Umhomeméumhomem.

    ...

    Foi por aquele tempo que Julião Tavares deu para aparecer aqui em casa.Lembram-sedele.Osjornaisandaramaelogiá-lo,masdisserammentira.JuliãoTavares não tinha nenhuma das qualidades que lhe atribuíram.Era um sujeitogordo,vermelho,risonho,patriota,faladoreescrevedor.Norelógiooficial,noscafés e noutros lugares frequentados cumprimentava-me de longe, fingindosuperioridade:

    —Comovai,Silva?Ànoitechegava-meacasa,empurravaaportae,quandoeumenosesperava,

    desembocava na sala de jantar, que, não sei se já disse, é omeu gabinete detrabalho.E lá vinham intimidades queme aborreciam.Linguagem arrevesada,muitosadjetivos,pensamentonenhum.

    ConheciessemonstronumafestadeartenoInstitutoHistórico.Dequandoemquandoumcidadãoselevantavaeliaumacomposiçãoliterária.Emseguidaumasenhoraabancavaaopianoe tocava.Depoisoutradeclamava.Aíchegavadenovoavezdohomem,eassimpordiante.Pelomeioda funçãoumsujeitogordo assaltou a tribuna e gritou um discurso furioso e patriótico. Citou oscoqueiros, as praias, o céu azul, os canais e outras preciosidades alagoanas,desceuecomeçouabaterpalmasterríveisaosoradores,aospoetaseàscantoras

  • quevieramdepoisdele.Àsaídadeu-meumencontrão,segurou-meumbraçoeimpediu que me despencasse pela escada abaixo. Desculpou-se por me haverempurrado, agradeci ter-me agarradoobraço e saímos juntos pela ruadoSol.Repetiu pouco mais ou menos o que tinha dito no discurso e afirmou queadoravaoBrasil.

    —Ah!Euviperfeitamentequeosenhorépatriota.Foiaconta.— Quem o não é, meu amigo? Nesta hora trágica em que a sorte da

    nacionalidadeestáemjogo...—Efetivamente,murmurei,ascoisasandampretas.Conversa vai, conversa vem, fiquei sabendo por alto a vida, o nome e as

    intenções do homem. Família rica. Tavares & Cia., negociantes de secos emolhados,donosdeprédios,membrosinfluentesdaAssociaçãoComercial,eramunsratos.QuandoeupassavapelaruadoComércio,via-ospordetrásdobalcão,dois sujeitos papudos, carrancudos, vestidos de linho pardo e absolutamenteiguais.EsseJulião,literatoebacharel,filhodeumdeles,tinhaosdentesmiúdos,afiados,edeviaserumrato,comoopai.Reacionárioecatólico.

    —Pordisciplina,entende?Consideroareligiãoumsustentáculodaordem,umanecessidadesocial.

    —Seosenhorpermite...Edivergidele,porqueoacheihorrivelmenteantipático.Ouviu-meatentoe

    mostroudesejodesaberoqueeuera.Encolhiosombros,olheiosquatrocantos,fizumgestovago,procurandonoarfragmentosdaminhaexistênciaespalhada.

    —LuísdaSilva.RuadoMacena,númerotanto.Prazeremconhecê-lo.Emeti-menoprimeirobondequepassou.Masnãoconseguidesembaraçar-

    medohomem.Diasdepoisfez-meumavisita.Emseguidafamiliarizou-se.EeraLuísparaaqui,Luísparaali,elogiosnatábuadaventa,sócomofimdereceberoutros. Não tenho jeito para isso. Duas, três horas de chateação, que medeixavamenervado,besta,roendoasunhas.

    Habituei-mea escrever, como jádisse.Nunca estudei, souum ignorante, e

  • julgo que os meus escritos não prestam. Mas adquiri cedo o vício de lerromanceseposso,comfacilidade,arranjarumartigo,talvezumconto.Compus,no tempo da métrica e da rima, um livro de versos. Eram duzentos sonetos,aproximadamente.Nãome foipossívelpublicá-los,ecoma idadecompreendiquenãovaliamnada.Em todoo caso acompanharam-meporonde andei.Umdia, na pensão de d. Aurora, o meu vizinho Macedo começou a elogiar umdesses sonetos, que por sinal era dos piores, e acabou oferecendo-me por elecinquentamil-réis.Nemfoiprecisocopiar:arranqueiafolhadolivroerecebiodinheiro, depois de jurar que a coisa estava inédita.Macedo transigiu comigoumas vinte vezes. Infelizmente voltou para São Paulo sem concluir o curso.Desde então procuro avistar-me commoços ingênuos queme compram essesprodutos. Antigamente eram estampados em revistas, mas agora figuram emsemanários da roça, e vendo-os a dezmil-réis. O volume está reduzido a umcadernodecinquentafolhasamarelaseroídaspelosratos.

    Trabalhonumjornal.Ànoitedouumsaltopor lá,escrevoumas linhas.Oschefes políticos do interior brigam demais. Procuram-me, explicam osacontecimentos locais, e faço diatribesmedonhas que, assinadas por eles, vãopara a matéria paga. Ganho pela redação e ganho uns tantos por cento pelapublicação.Arrumodesaforosemquantidade,epararedigi-losnecessitolongasexplicações, porque osmatutos são confusos, e acontece-me defender sujeitosquedeviamseratacados.Alémdissorecebodecasaseditorasdesegundaordemtraduções feitas à pressa, livros idiotas, dessesqueMarina aprecia.Passoumavistanisso,alinhavonotasligeirasevendoosvolumesnosebo.Algunsrapazesvêmconsultar-me:

    —Fulanoébomescritor,Luís?QuandonãoconheçoFulano,respondosempre:—Éumabesta.Eosrapazesacreditam.Ora,foiumavidaassimcheiadeocupaçõescacetesqueJuliãoTavaresveio

    perturbar.Atravancou-meocaminho,obrigou-meaparadasconstantes,buliu-me

  • comosnervos.Às vezes eu estava espremendo o miolo para obter uma coluna de

    amabilidadesoudescomposturas.Éoquesei fazer,alinharadjetivos,docesouamargos, em conformidade com a encomenda. Moisés entrava, puxava umacadeira, sentava-se, abria o jornal. Vinha Pimentel, amarelo, triste, silencioso.Seu Ivo, bêbedo, acocorava-se a um canto e punha-se a babar, cochilando.Nenhuma dessas pessoas me incomodava. Trabalhava diante delas como seestivessesó,eninguémmeinterrompia.

    —RevoluçãonaChina,diziaMoisés.Pimentel estirava o pescoço e enrugava a testa, farejando assunto. E lá

    vinhamconfusamenteoschinesesdotelegrama.SeuIvoqueixava-sedacarestiados gêneros. Apertava o cinturão, bocejava, pedia comida. Eu dava respostassemperceberdireito asperguntas e sem interrompero trabalho.As frases iampingando no papel, umas traziam as outras, e no fim lá estava aquela prosamedida, certinha, que me enjoava. Quando a expressão fugia ou as ideias semisturavam, acendia um cigarro. E, enquanto desanuviava a cabeça, punha osolhos distraídos na figura aniquilada de seu Ivo, que ali estava no canto daparede,babando-se,aspálpebrascerradas.Asmãoseramdoiscalosescuros,ospésdescalçoserampatasachatadas.

    Seu Ivo nãomora emparte nenhuma.Conhece oEstado inteiro, julgo queviajaportodooNordeste.Entranascasassemseanunciar,comoumcachorro,dirige-seàspessoasfamiliarmente,sempreapedircomida.Passaalgunsmesesnuma cidade, some-se de repente; aboleta-se nas povoações, nas fazendas, nacapital. Frequenta as salas de jantar e as cozinhas. Quase não fala: balbuciafrases ambíguas, aperreado, sempre na carraspana. Faz o que lhe mandam,recebeoquelhedão,masnãoagradeceenãofaznadacomjeito.

    —SeuLuisinho,sinhaVitória,cadêaboia?Senãolhedamosatenção,conversacomogato,conversacomopapagaio,

    acabamexendonaspanelas,furtandoobjetosmiúdosquenãoutiliza.Depoisdeumanodeausência,pergunto-lhe:

  • —Comovai,seuIvo?Masestoupensandonoutracoisa.—Ruim,tudosafado,seuLuisinho.Abarrigatinindo.Epõe-seachorarcomoumdesgraçado.Continuoaconstruirmentalmenteo

    períodointerrompido.—Vácomer,seuIvo.Vitória,umpratoparaseuIvo.OhomemdoInstitutoatrapalhou-meavidaeseparou-medosmeusamigos.

    ...

    —Quediabovemfazerestesujeito?murmureicomraivanodiaemqueJuliãoTavares atravessou o corredor sem pedir licença e entrou na sala de jantar,vermelhoecommodosdecamarada.

    Soltei a pena, Moisés dobrou o jornal, Pimentel roeu as unhas. E assimficamosseismeses,roendoasunhas,ojornaldobrado,apenasuspensa,ouvindoopiniões muito diferentes das nossas. As de Moisés são francamenterevolucionárias;asminhassãofragmentadas,instáveisenumerosas;Pimentelàsvezesestácomigo,outrasvezesinclina-separaMoisés.

    Raramentediscutíamos.O judeucansava-seemdissertações longas,queeuaprovava ou desaprovava com a cabeça. Acontecia aprovar agora e reprovardepois.Quandobebia, tornava-me loquazediscordavade tudo,sóporespíritodecontradição:

    — História! Esta porcaria não endireita. Revolução no Brasil! Conversa!Quem vai fazer revolução? Os operários? Espere por isso. Estão encolhidos,homem.Eoscamponesesvotamcomogoverno,gostamdovigário.

    O que eu queria era convencer-me de que não tinha razão. Desejava queMoisésestirasseargumentoseseuIvoserevoltasse.

    —Números.Nadadetapeação.Estatística.O judeu falava em milhões de desempregados, em consciência de classe,

  • voltava-separaseuIvo,quenãocompreendiaalínguadele:—Nãoentendo.Vossemecêssãobrancos,lásearrumem.Eugritavaaoouvidodacriada:—EledizqueagentenãoprecisadeDeus.NemdeDeusnemdepadres.Vai

    acabartudo.—Credoemcruz!opinavaamulher.E ia para a cozinha. Julgo que nunca se ocupou comassuntos referentes à

    alma.Rezavaemvozalta.Ànoitesapecavaopadre-nossoeaave-maria,antesdassomas.Agoradizia“Credoemcruz!”eiaprepararocafé,lerosembarqueseosdesembarques,juntoàgaioladoCurrupaco.SeuIvometiaosolhosgulosospelosvidrosdoguarda-comidas:

    —SeuLuisinhovaibem.Tantopão!tantacarne!Escancarava a boca, mostrava os dentes brancos, estirava os braços

    musculosos.—Umaforçaperdida,diziaMoisés.Talvez houvesse também alguma inteligência perdida por detrás daqueles

    olhos mortos pela cachaça. Um sujeito inútil, sujo, descontente, remendado,faminto.

    O outro sujeito inútil que nos apareceu era muito diferente. Gordo, bem-vestido,perfumadoefalador,tãofaladorqueficávamosenjoadoscomaslorotasdele.Nãopodíamosseramigos.Emprimeirolugarohomemerabacharel,oquenos distanciava. Pimentel, forte na palavra escrita, anulava-se diante de JuliãoTavares.Moisés,apesardefalarcincolínguas,emudecia.Euqueviajeimuitoeseiquehádoutoresquartaus,metiatambémaviolanosaco.

    AlémdissoJuliãoTavarestinhaeducaçãodiferentedanossa.Vestiacasaca,frequentava os bailes da Associação Comercial e era amável em demasia.Amabilidade toda na casca. Ouvi-o, na festa de aniversário de um figurão,conversarcomumasirigaita.Euestavabebendocervejano jardim,eelesnumcaramanchãodiziambesteirashorríveis.Comofalavamalto,percebiclaramenteaspalavrasdeJuliãoTavares.Nãotinhamsentido.ComoodiscursodoInstituto

  • Histórico.Poisforamtolicesassimqueaqueletiponosveioimpingir.Horrível.Diante

    deleeumesentiaestúpido.Sorria,esfregavaasmãoscomestacovardiaqueavidaásperamedeuenãoencontravaumapalavraparadizer.Aminhalinguagemé baixa, acanalhada. Às vezes sapeco palavrões obscenos. Não os adotoescrevendoporfaltadehábitoeporqueosjornaisnãoospublicariam,maséaminhamaneiraordináriadefalarquandonãoestounapresençadoschefes.ComMoisésdá-secoisa semelhante.Apenas, se lheaconteceengasgar-se, recorrealocuções estrangeiras. As nossas conversas são naturais, não temos papas nalíngua.Abroumlivro,ficoalgunsminutosfazendocacoetes,derepentedouumgrito:

    —Quesujeitoburro!Putaqueopariu!Istoéumcavalo.Moiséstomaovolume,lêumapáginacomatenção,fungando:—Temcoisasboas,temideias.—Queideia!Istoéumsendeiro,nãosabeescrever.JuliãoTavaresveiotornarimpossíveisexpansõesassim.Dizia,referindo-sea

    umpoetamorto:—Eraumgrandeespírito,umnobre espírito.Quanta emoção!Alémdisso

    conhecimentoperfeitodalíngua.Artistaprivilegiado.Filho de uma puta. Esse artista privilegiado aperreou-me durante semanas,

    tirou-meoapetite.Narepartição,nocinema,nojornal,nocafé,perseguia-mealembrançadavozantipática:

    —Umgrandeespírito,umnobreespírito.Emoçãoeconhecimentoperfeitodalíngua.

    Filhodeumaputa.Nãopodiasernossoamigo.Encontrava-menarua:—Comovai,Silva?E ali, no outro lado da mesa, as pernas cruzadas, com a intenção de se

    demorar—sorrisos,patriotismo,agrandezadopoetamorto.Comecei a odiar Julião Tavares. Farejava-o, percebia-o de longe, só pelo

    mododeempurraraportaeatravessarocorredor.

  • —Canalha!E rangia os dentes, arrumava os papéis tremendo de raiva. Tudo nele era

    postiço,tudodosoutros.Seaquelepatifetivessechegadoaquinaturalmente,eunãomezangaria.Se

    metivesseencomendadoepagoumartigodeelogioàfirmaTavares&Cia.,euteria escrito o artigo. É isto. Pratiquei neste mundomuita safadeza. Para quedizerquenãopratiqueisafadezas?Seeuaspratiquei!Émelhorbotara trouxaabaixoecontarahistóriadireito.Teriaescritooartigoerecebidoodinheiro.Oque não achava certo era ouvir Julião Tavares todos os dias afirmar, emlinguagem pulha, que o Brasil é um mundo, os poetas alagoanos uns poetasenormes e Tavares pai, chefe da firma Tavares & Cia., um talento notável,porque juntou dinheiro. Essas coisas a gente diz no jornal, e nenhuma pessoamedianamentesensata liga importânciaaelas.Masnasalade jantar, fumando,depernatraçada,éfaltadevergonha.Francamente,éfaltadevergonha.

    ...

    —Boa-tarde,d.Adélia.Comovaiasenhora?—Assim, assim, respondeu amãe deMarina encostando-se à janela para

    esconderasaiaencardida.Hojeemdiaqueméquevaibem?Agora eu conhecia mais ou menos d. Adélia, falava com ela, parava na

    calçada às vezes:— “Bom-dia, boa-tarde, sim senhora, como tem passado?”Conhecia também o marido, seu Ramalho, sujeito calado, sério, asmático,eletricista da Nordeste. Não gostava de mim, provavelmente por causa dasminhaspalestrascomafilha.Perturbava-nos:

    —Marina,venhalavarospratos.Marina,venhacuidardaspanelas.Lugardemoçaéacozinha.

    Ora,seMarinalidavacompratosepanelas!—Velhopau!

  • Econtinuavanaprosa.—Cuidadocomosereno,Marina.—Seistoécoisaquesesuporte!Entravadandomuxoxos,arreliada.SeuRamalhoeraumacriaturasecapornaturezaehumildeporofício.Tinha

    um sorriso franzido, um ombro alto e outro baixo. D. Adélia, bamba, a vozsumida, os olhos assustados, parecia viver escondendo-se. Agora estavaresolvidaaconversar.Seriaa respeitodomeunamorocomMarina?Suspirou,mexeuosbeiços,tornouasuspirar:

    —Tudopelahoradamorte,seuLuís.—Éverdade,tudopelahoradamorte,d.Adélia.Asenhorajáreparounos

    preçosdosremédios?Afarmáciatemumagoela!D.Adéliafezumgestodedesalento:—Nemmefale.Agentenãopodeadoecermaisnão,seuLuís.Ficamosuminstantecalados,olhandoarua,constrangidos.—Simsenhora,murmurei esfregandoasmãose sorrindoparaomulherão

    sardento.—Éissomesmo,respondeud.Adélia.E,depoisdeumsilênciocomprido,enrolandoasmãosnobabadodaroupa:—Parasustentarumacasaagentetorceaorelha.Concordeicomalvoroço:— Torce, d. Adélia. Que dúvida! Depois do dia vinte é preciso que uma

    pessoasetranqueparaencurtaradespesa.Porquenaruaéocafé,obilhetedeteatro,asubscrição.Umhorror.

    —Eomercado,seuLuís!Querchova,querfaçasol,éalinoduro.Ninguémpodepassarsemcomer.

    — Perfeitamente, d. Adélia. Ninguém pode passar sem comer. O pior é oaluguel da casa. O aluguel da casa, d. Adélia! Quanto paga a senhora peloalugueldacasa?

    —Centoetrintamil-réis.Umroubo.

  • — Eu pago cento e vinte. Um roubo maior, que aquilo não é casa. Unsquartinhos escuros, sujos. E tanto buraco de rato como nunca se viu. Unsratinhosmiúdos,destetamanho,nãoseiseasenhoraconhece,danadospararoerpano.Nãotenhoumlençointeiro,tudofurado.

    —Aquiéomesmo,declaroud.Adélia.Deuumsuspiroqueelevouopeitovolumoso,curvou-semaisparafora:— Ó seu Luís, eu queria pedir-lhe um favor. Faz uma semana que estou

    matutandoesemcoragem.Hojeboteiavergonhadebanda.—Queéquehá,d.Adélia?D.Adéliareeditouosuspiro:—Estivepensando...Seosenhorpuder,ouviu?Pedirnãoédesonra.Agente

    fazdastripascoração.Necessidadetemcaradeherege.—Diga,d.Adélia.Avizinhabaixoumaisavoz,quetremia,eocarãosardentoficouencarnado

    comoovestidodechita:—ÉporcausadaMarina.Assimdesocupada,comasmãosabanando...Ela

    não é preguiçosa. Cose, borda, mas trabalho de mulher em casa não adianta.Gasta-se tempo sem fim num bordado e recebe-se uma ninharia. Se fossepossívelarranjarumempregoparaMarina...

    Acendi um cigarro, pus-me a contar os paralelepípedos, semme animar adesiludiravizinha.

    —Dêumapenadaporela.Coitadodemim.—Difícil.Éprecisopistolão.—Eusei,dissed.Adélia.Foiporissoquemelembreidosenhor,queébem

    relacionado.Sóconhecemososenhor.— Mas, d. Adélia, respondi aflito, a senhora está enganada. Eu sou um

    infeliz, não tenho onde cairmorto.Uma recomendaçãominha não serve.Masvoutentar,ouviu?

    SeuRamalhodobrouobecodausinaelétricaeveiovindo, lento,negrode

  • azeiteecarvão.—Boa-tarde.— Boa-tarde, seu Ramalho. Como vai essa gordura? Estávamos falando

    sobreacarestia.SeuRamalhoestirouobeiço:—Cadadiavaificandopior.Édefazerumcristãoendoidecer.Ora,eulhe

    conto.Masnãocontounada.Costumadeixarasfrasesemmeio.—Poisécomolhedisse,murmurei.Vamosver.Que,paraserfranco,nem

    seiseaMarinaseajeita.Elasabedatilografia?— Não sabe nada, atalhou seu Ramalho. Você foi amolar o rapaz com

    peditórios,mulher?Eunãolhetinhaditoquenãotocassenisso?—Queéquetem,seuRamalho?Elaquerqueamoçatrabalhe.Énatural.—Trabalharemquê,meuamigo?Sóseforempintaracara,queéoqueela

    sabefazer.D.Adélia,vexada,continuavaaenrolarosdedostrêmulosnovestido.—Eufaleiporfalar.Sefossepossível.Umordenadozinhoquedesseparaa

    roupa.Nãohátantasmoçasempregadas?Nostelefones,noscorreios...— São pessoas que sabem onde têm as ventas, criatura, interrompeu seu

    Ramalho.Ouquearranjaramproteção.Esuafilhaentrounaescolaesaiucomoentrou.Ouasescolasnãoprestamouelaébrutademais.Empregopararoupa.Temgraça.Cinquentamil-réisdesapatostodososmeses.Nãohádinheiroquechegue.

    —Osenhoréduro,seuRamalho,arrisquei.—Poissim,respondeuohomemarquejandoporcausadaasma.Équevivo

    notoco,roendoumchifre.Falava de cabeça baixa, os olhos no chão, osmúsculos da cara imóveis, a

    bocaentreaberta,avozbranda,provavelmentepelohábitodeobedecer.—Eufaleiporfalar,gaguejoud.Adéliacaindoparaumabanda,asbanhas

    derramadasnoparapeitodajanela,ondefincavaocotovelo.Foi,ameninacom

  • asmãosabanando...Seu Ramalho acendeu o cachimbo e pôs-se a esgaravatar as unhas com o

    fósforoqueimado:—Éisso.Euaquinãoseinada.Todoomundoderédeanopescoço.Casade

    Gonçalo. As mulheres mandam, e o corno velho é o último que temconhecimentodascoisas.

    Antônia,acriadaded.Rosália,passoubamboleando-se,foiatéaesquinadarua Augusta e esteve algum tempo conversando com um soldado de polícia.Voltou,sempreserebolandoecomaspernasabertas.

    Éumacriaturaingênua,meioselvagem.Acreditaemtudoquantolhedizemetemgrandenecessidadedemachos.Quandopegaum,entrega-seinteiramente.Nãoescolhe,éumarede.

    Todas as tardes, findoo serviço, arruma a louça, veste os traposmelhores,calçaossapatosdevernizesai.Searranjaalgumdinheiro,deixaoempregoeamiga-se. Erra sempre. Gasta as economias, volta ao trabalho, vai acumularnovo pecúlio para sustentar novos amantes, novas decepções. É doida pelascrianças:passaodiagritando,brincandocomelas.Masànoiteesquecetudoecorreparaacrápula.D.Rosáliaatura-aporcausadosfilhos.Quandolhefazascontas,diznumavozásperaqueouçoperfeitamentenasaladejantar:

    —Pegueoseuordenado,Antônia,esuma-se,nãotorneaapareceraqui.Antônia recebe o salário, entrouxa os cacarecos, beija as crianças e sai

    cantando,certadequeencontrouumhomem.Voltafaminta,commarcasnovasdeferidas.

    —Tuacabasnohospital,Antônia.Masascriançasfazemumberreirofeio—eAntôniafica.Apresençadessacriaturavagabundaegalicadatraz-mesentimentosbons.—Comovai,Antônia?A cabocla respondeu descerrando os beiços grossos emostrando os dentes

    largos num sorriso infantil. Seu Ramalho não a viu: estava de cabeça baixa,monologando, remexendo a cinza do cachimbo com o fósforo. D. Adélia

  • continuava encalistrada, bicuda, machucando o vestido. Senti-me leve, quasealegre,eespantei-medeveraquelascarasfúnebres.

    —Issonãotemimportância.Procurandobem...Hámuitasporaícavandoavida.Vamosversearranjamosalgumacoisa,d.Adélia.Vamosver.Depois lhedigo.

    — História, murmurou seu Ramalho com desânimo. Aquela não dá paranada.Ohomemquecasarcomelafaznegócioruim.

    ...

    Comoeragrandeo calor, abri a janeladoquintal.Umabaforadade arquentebateu-me no rosto. Debrucei-me e distraí-me acompanhando com a vista osmovimentos da mulher que lava garrafas. O gato pulou de um galho damangueira,saltouomuro,trepounummontedelixoecacosdevidro.Ohomemtristeandavaentreaspipas,debaixodotelheiro,aencherdornas.

    QueestariafazendoMarina?Penseiemd.Mercedes.Vidabemsossegadaadessagalega.Umsem-vergonhaofigurãoqueasustentava,umcaloteiro:deviaoscabelosdacabeçaedava festas,punhaautomóveis àdisposiçãodaamásia.Comodiabopodiaummachogostardaquelatipadecarnesbambas?

    —Ladrões,velhacos,porcos!Batiajanelacomforça.Depoisvolteiaabri-la.Amulhermagra,decócoras,

    a saia entalada entre as pernas, continuava a lavar garrafas. O homem tristepasseavaentreaspipas.

    Comcertezaaminhavizinhaàquelahorapintavaasunhas.Indignei-me:—ÓVitória, por que não varre esta casa direito? Cisco por toda a parte,

    montesdecisco.Tudocheiodepoeira.Vitórianãopercebeuarepreensão.Agarreiumatoalhaeesfregueicomelao

    guarda-louça:—Porcaria!

  • Peguei um livro, abri a porta e desci os degraus do quintal, furioso comoamanteded.Mercedes.Velhaco.Devianaslojas,devianasmercearias,deviaaoalfaiate. Atracado aos usineiros, aos banqueiros, aos homens da AssociaçãoComercial,numaadulaçãotorpe.Oscredoresmiúdosdeixavam-seesfolarcommedo;osgrandessangravamporconveniência:tinhaminteresses,arranjavamoquequeriam.EumsafadocomoaqueleeratroçonoEstado.Quedesgraça!

    Deitei-menaespreguiçadeira,acendiumcigarro,abriolivroecomeceialermaquinalmente. De quando em quando bocejava, suspendia a leituraincompreensível.

    O jardim, que a antiga inquilina vinha regar todas asmanhãs, estava sujo,maltratado,cobertodegarranchosefolhassecas.

    Solteio livroe fecheiosolhos,aborrecido.Masosolhosnão ficarambemfechados: através das pálpebras meio cerradas distinguiam-se as coisas queestavampertodochão,dezouquinzemetrosemredor—otroncodomamoeiro,omontedelixo,asflorinhasdesbotadas.D.Adélia,nobanheiro,lavavaroupa,eaáguaespumosacorriadelá,vinhaestagnar-senumapoçajuntoàcerca.

    Se aquela tonta prestasse, estaria ajudando a mãe, ensaboando panos.Preguiça.Estavaeralendobesteiras,arrancandocabelosdassobrancelhascomapinçaouraspandoossovacos.Aprincípioaindatrataradoscanteiros.Habituara-se depois a levar para ali um romance, que não abria. Conversava. E eu mezangavacomasconversasdela,que,comojádisse,erammalucas.Zangava-medeverdade.Masestavaalicomosolhosmeiofechados,espiandooscanteiroseesperandoqueamulherinhachegasse.

    Faziaumasemanaqueeuandavacavandoumacolocaçãoparaela.Arranjaremprego,comonãoignoram,édificuldade.Aspessoasaqueagentesedirigesorriem. Tudo fácil, às ordens, perfeitamente. Escutam as choradeiras compaciênciaeescrevemcartõesaoutraspessoas.Estasescrevemoutroscartões,eassimpordiante.Cadaumsedesaperta.Eufalaraaodiretordaminharepartição:

    —Doutor, tenho uma vizinha que faz pena,moça prendada.Mata-se paraajudara família,mas,comosabe, trabalhodemulheremcasanãorende.Seo

  • senhorpudesse,comasuainfluência...Odiretorresponderadistraído:—Estábem.Vamosver.Noutrasrepartições,amesmahistóriacompequenasvariantes:—Moçadecente,instruída,matando-separaauxiliarafamília.Ummodelo.

    Amãedoente...Enfimumacambadadementirasinúteis.Nosbancos:— Moça digna, alguns conhecimentos de escrituração mercantil e de

    aritmética.Nosarmazéns:—Muitopreparo,muitaleitura,excelentecalculista.Podiaencarregar-seda

    correspondência.Nasredações:—ÓFulano,vocênãomearranjaaínaexpediçãoqualquercoisaparauma

    moçaqueeuconheço?Umosso,umasinecuraquejustifiquedoisoutrêsvalespormês.

    AfinalforaencontrarparaMarinaumempregodecemmil-réisnumalojadefazendas.Ealiestavaespiandooquintalcomorabodoolho.

    Chap, chap, chap. Era o vascolejar da água nas garrafas. Líquido sederramava: o homem triste enchia dornas. D. Adélia tossia no banheiro,espremendo roupa. E Vitória, na cozinha, cantava:— “Currupaco, papaco. Amulher do macaco...” Um galo no galinheiro pôs-se a arrastar a asa a umafranga.Euestavafazendoaliamesmacoisa,apenascommaishabilidadeemaisdemora.A franga não aparecia.Quem se ligasse a ela faria negóciomau, seuRamalho tinha razão.Seele,queerapai, sustentavaopiniãoassim, imaginem.Sovaco raspado, unhas cor de sangue e sobrancelhas que eram dois traços.Mulherpelada.Paraquediaboumapessoaarrancarassobrancelhas?

    De repente a franguinha surgiu dentro do meu reduzido campo deobservação. Como disse, eu apenas enxergava uns dez ou quinze metros dojardim.Primeiramentedistinguiasbiqueirasvermelhasdeunssapatos,aqueles

  • sapatosque,segundoadeclaraçãodeseuRamalho,custavamcinquentamil-réiseduravamummês.Parairaoquintal,sapatodesairemeiadesedaesticadanopernão bem-feito. Ótimas pernas. As coxas e as nádegas, apertadas na saiaestreita,estavamcomvontadederebentarascosturas.

    Talveza franguinha ti