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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Montora, André Franco, 1916-1999. Introdução à ciência do direito / André Franco Montora. -- 26. ed. rev. e atual. pela equipe técnica da Editora Revista dos Tribunais -- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. Bibliografia. ISBN 85-203-2705-2 1. Direito r. Título. 04-8791 CDU-34 Índices para catálogo sistemático: 1. Direito 34.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Montora, André Franco, 1916-1999.Introdução à ciência do direito / André Franco

Montora. -- 26. ed. rev. e atual. pela equipe técnica da Editora Revista dos Tribunais-- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

Bibliografia.ISBN 85-203-2705-2

1. Direito r. Título.

04-8791 CDU-34

Índices para catálogo sistemático: 1. Direito 34.

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26.a edicâo revista e atualizada,

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12-INTERPRETAÇAO DAS,

NORMAS ]URIDICAS

SUMÁRIO: 1. Interpretação e hermenêutica: conceito - 2. Espécies deinterpretação: quanto à origem, ao método e aos efeitos - 3. Sistemas ouescolas de interpretação: sistemas tradicionais ou legalistas e sistemas mo-dernos - 4. Novas correntes - 5. A integração jurídica e o problema daslacunas da lei - 6. Outras formulações: 6.1 "A hermenêutica no Brasil",Carlos Maximiliano; 6.2 "Lacunas do direito", Paulo Dourado de Gus-

mão - 7. Bibliografia.

1. INTERPRETAÇÃO E HERMENÊUTICA: CONCEITO

As leis são formuladas em termos gerais e abstratos, para que se possam es-tender a todos os casos da mesma espécie.

Passar do texto abstrato ao caso concreto, da norma jurídica ao fato real, étarefa do aplicador do direito, seja ele juiz, tabelião, advogado, administradorou contratante.

Nessa tarefa, o primeiro trabalho consiste em fixar o verdadeiro sentido danorma jurídica e, em seguida, determinar o seu alcance ou extensão.

É o trabalho de interpretação, hermenêutica ou exegese.

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430 INTRODUÇÃO Ã CIÊNCIA DO DIREITO

É usual, em português como em outras linguas, 1 o emprego dos termos"interpretação" e "hermenêutica", como sinônimos. A rigor, entretanto, elesse distinguem.:

- interpretar é fixar o verdadeiro sentido e alcance de uma norma jurídica;"interpretação, diz Coviello, é a investigação e explicação do sentido da lei";"interpretar é determinar o sentido e o alcance das expressões do direito", ensi-na Carlos Maximiliano.2

- herrnenêutica, em sentido técnico, é a teoria científica da interpretação,ou, na palavra de Carlos Maximiliano, hermenêutica jurídica é a ciência que"tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para deter-minar o sentido e o alcance das expressões do direito". 3

Três elementos integram o conceito de interpretação:

- fixação do sentido

- e alcance

- da norma jurídica.

Fixação de "sentido", observa Torré,4 tem sua razão de ser, porque a nor-ma jurídica, como todo objeto cultural, possui uma "significação", "sentido"ou "finalidade". Por exemplo, a lei que estabelece a exigência de férias anuaisremuneradas tem a finalidade de assegurar um descanso para a saúde física emental do homem que trabalha. Este é o seu sentido. Realmente, interpretaruma norma não é simplesmente esclarecer seus termos de forma abstrata, mas,sobretudo, relevar o sentido apropriado para a vida real e capaz de conduzir auma aplicação justa. Não compete ao intérprete apenas procurar, atrás das pala-vras, os conceitos possíveis, mas, entre os pensamentos possíveis, o mais apro-priado, correto, jurídico."

Além do "sentido", cabe ao intérprete determinar o "alcance" do preceito.Duas leis com o mesmo sentido podem ter extensão ou alcance diferente. O

(1) "Entre eles (os alemães) se tornou comum o emprego de Hermeneutile e Ausleglil1g, comoentre nós o de 'Hcrmcnêutica' e 'Interpretação', na qualidade de sinônimos". Carlos Ma-ximiliano, Hennenêutica e aplicação do Direito, § 3, p. 14.

(2) Ob. cit., § 1, p. 13.

(3) Loc. cit.(4) A. Torre, Introducción ai Dereiho, p. 342: "Como consideración de orden general, cabe decir

que el vocábulo 'interpretación', se aplica a todo objeto que tenga un sentido y no solo a Iasnormas jurídicas; es decir que toda expresión o signo, pude ser interpretado. Por eso se ha-bla de interpretar un poema, un cuadro, um gesto, un sueno, una partitura musical, etc.".

(5) F. Geny, Science et technique en Droit Ptivé Positif, vol. 1, p. ISO/L

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INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS]URÍDICAS 431

Estatuto dos Funcionários Públicos Federais e a Consolidação das Leis do Tra-balho, por exemplo, ao estabelecer o preceito do descanso semanal remunera-do, adotam normas que têm o me SITIO "sentido", mas "alcance" ou extensãodiferente. A primeira estende-se aos servidores públicos federais. A segunda, aosempregados das empresas. Outras leis, com o mesmo "sentido", poderão "es-tender-se" aos funcionários de determinado Estado ou Município.

O conceito de interpretação se completa com a referência à "norma jurídi-ca". Muitos autores, como Coviello, preferem falar em interpretação das "leis".Mas a preferência não sejustifica. Não são apenas as leis que precisam ser inter-pretadas - embora sejam elas o objeto principal da interpretação -, mas tambémos tratados, acordos ou convenções, os decretos, as medidas provisórias, portarias,despachos, sentenças, usos e costumes, contratos, testamentos etc. Carlos Maxi-miliano enquadrou-os na denominação geral: "expressões do direito". Desig-nação muito vaga e pouco técnica.

A linguagem jurídica tem uma designação adequada: "Norma jurídica",que, como vimos, abrange, em sua acepção ampla, desde as normas constitucio-nais até as normas contratuais ou testamentárias, de caráter individual.

É esse o sentido estrito e próprio do termo "inter-pretação". Em sentido amplo, emprega-se, muitas vezes,o vocábulo "interpretação" para designar não apenas adeterminação do significado e alcance de uma norma jurídica existente, mas,também, a investigação do princípio jurídico a ser aplicado a casos não previstosnas normas vigentes.

Interpretação eintegração

A essa atividade dá-se, com mais propriedade, a designação de "integra-ção" da ordem jurídica ou preenchimento das lacunas da lei, da qual nos ocupa-remos adiante, no item 4.

As normas jurídicas necessitam sempre de interpreta-ção?A interpretação tem razão de ser quando a lei é clara?

Alguns pretendem não haver necessidade de interpre-tação quando a norma é clara.É o que diz o brocardo latino In claris cessat interpretatio.Outros, sob inspiração das concepções racionalistas, acreditaram que a interpreta-ção seria inútil porque os códigos e a legislação podem prever todos os casos."

Interpretação detodas as rrorrnas

(6) Alguns códigos, como o da 13aviera de 1812, proibiam expressamente aos juízes interpre-tar as leis. E, antes dele, o FueroJuzgo, no século 13, estabelecia a pena de açoite para quemo fizesse. Mas, como observa Torre, "essa ilusão racionalista se desvaneceu diante da reali-dade" (Ob. cit., p. 342).

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432 I TRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO

Não é exato. A interpretação é sem.pre necessária, sejam obscuras ou clarasas palavras da lei ou de qualquer outra norma. É sempre preciso determinar seusentido e alcance.

Naturalmente, quando o texto é claro, a interpretação é mais fácil e surgeespontaneamente. Mas quando o texto é obscuro a interpretação é mais dificil epor isso sua necessidade se evidencia.

Por outro lado, como adverte Coviello, a clareza de um texto é algo muitorelativo e subjetivo: o que parece claro a alguém pode ser obscuro para outrem.Ou, ainda, uma palavra pode ser clara segundo a linguagem comum e ter, en-tretanto, um significado próprio e técnico, diferente do seu sentido vulgar.

Daí a necessidade de interpretação de todas as normas jurídicas.

2. ESPÉCIES DE INTERPRETAÇÃO: QUANTO À ORIGEM, AO

MÉTODO E AOS EFEITOS

A interpretação pode ser classificada segundo diferentes critérios:

a) quanto à sua origern.;

b) quanto ao método utilizado pelo intérprete;

c) quanto a seus resultados ou efeitos.

Quanto à sua origem ou à fonte de que emana, a interpretação pode ser:

- judiciária ou usual;

-legal ou autêntica;

- administrativa;

- doutrinária ou científica.

A interpretação judicial, judiciária ou usual é a que realizam os juízes aosentenciar. Tem força obrigatória para as partes a que se aplica, quando se tratade sentença isolada. E, no caso de firmar jurisprudência, essa interpretação passaa constituir para os casos análogos, como vimos, uma fonte formal de direito.

A interpretação diz-se autêntica ou legal quando é dada pelo próprio legis-lador, através de outra lei, chamada "lei interpretativa". Por uma ficção, a lei in-terpretativa considera-se como tendo entrado em vigor na mesma data que a leiinterpretada. Essas leis interpretativas, que são raras hoje em dia, trazem algunsproblemas à doutrina, no que se refere à indagação de seu valor jurídico. Algunsvêem nelas simples conselhos dirigidos aos juízes. Mas, hoje, entende-se geral-mente que, incluídas, acertadamente ou não, em leis ou códigos, essas normas

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INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS 433

de interpretação adquirem força obrigatória, igual à das demais normas. Coviellochega mesmo a afirmar que esse tipo de lei não pode ser considerado como ver-dadeira interpretação, porque é uma nova forma jurídica autônoma e verdadei-ra, que tem força obrigatória pelo fato de ser norma, ainda mesmo que nãocorresponda àquilo que, segundo as regras da interpretação, seria o verdadeirosignificado da disposição declarada.

Interpretação doutrinária ou científica é a que realizam os juristas em suasobras e pareceres. É obra dos juristas que analisam os textos à luz dos princípios filo-sóficos e científicos do direito e da realidade social. Houve tempo, como vimos aoestudar "A doutrina como fonte do direito", em que tais interpretações receberamo caráter de relativa obrigatoriedade.' Hoje, como lembra Vicente Ráo, o valordessa interpretação resulta não da autoridade de quem a pratica, mas do seu carátercientífico e especulativo, da força de convicção do raciocínio que envolve.

Interpretação administrativa é a realizada pelos órgãos da administração, apartir do Presidente da República, até as autoridades de menor nível, mediantedespachos, instruções, portarias, ordens etc.

Quanto aos processos ou métodos de que se serve, a interpretação pode ser:

a) gramatical ou filológica;

b) lógico-sistemática;

c) histórica;

d) sociológica.

Interpretação gramatical ou filológica é a que toma por base o significadodas palavras da lei e sua função gramatical." Apoiando-se na gramática, contri-

(7) V. Capítulo 11, n. 6, p. 356.(8) Certa vez, Rui Barbosa aceitou uma condecoração estrangeira. Seus adversários políticos,

baseados no art. 72, § 29, da Constituição de 1891, entenderam que Rui havia perdidoseus direitos políticos. Realmente, dispunha aquele texto da Constituição: "Arr. 72 - § 29- Os que alegarem motivo de crença religiosa com o fim de se isentarem de qualquer ônusque as leis da República imponham aos cidadãos, e os que aceitarem condecorações ou tí-tulos nobiliárquicos estrangeiros perderão todos os direitos políticos". O grande mestrefez um longo trabalho, de valor realmente excepcional, para mostrar que a interpretação aser dada àquele dispositivo constitucional não era essa. Rui usou de todos os elementos deinterpretação para provar sua tese. Mas o principal foi justamente o elemento gramatical.Dizia ele: "Em face da gramática, quando temos dois adjetivos pospostos a dois substanti-vos, embora separados pela disjuntiva 'ou', ambos os adjetivos hão de se referir aos subs-tantivos. Ora, eu aceitei uma condecoração estrangeira, mas não nobilárquica, porque elanão me imprimiu nobreza. Portanto, não incorri na sanção constitucional, não tendo per-dido os meus direitos políticos".

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434 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO

bui, muitas vezes, para o aperfeiçoamento da redação das leis. É, sem dúvida, oprimeiro passo a dar na interpretação de um texto. Mas, por si só é insuficiente,porque não considera a unidade que constitui o ordenamento jurídico e suaadequação à realidade social. É necessário, por isso, colocar seus resultados emconfronto com os elementos das outras espécies de interpretação.

A interpretação lógico-sistemática leva em conta o sistema em que se inse-re o texto e procura estabelecer a concatenação entre este e os demais elementosda própria lei, do respectivo campo do direito ou do ordenamento jurídico ge-ral. Em suas diversas modalidades, o método lógico supõe sempre a unidade ecoerência do sistema jurídico.

A interpretação histórica baseia-se na investigação dos antecedentes danorma. Pode referir-se ao histórico do processo legislativo, desde o projeto delei, sua justificativa ou exposição de motivos, discussão, emendas, aprovação epromulgação. Ou, aos antecedentes históricos e condições que a precederam.Como a grande maioria das normas jurídicas constitui a continuidade ou modi-ficação de disposições precedentes, é de grande utilidade para o intérprete estu-dar a origem e o desenvolvimento histórico dos institutos jurídicos, para captaro significado exato das leis vigentes. No elemento histórico entra também o es-tudo da legislação comparada para determinar se as legislações estrangeiras tive-ram influência direta ou indireta sobre a legislação que se deve interpretar.

--.----- A interpretação sociológica baseia-se na adaptaçãoInterpretação

do sentido da lei às realidades e necessidade sociais. Essasociológicaadaptação está prevista no art. 5.° da Lei de Introdução

ao Código Civil, que prescreve: "Na aplicação da lei o Juiz atenderá aos fins so-ciais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

Quanto a seus efeitos ou resultados, a interpretação pode ser:

a) declarativa;

b) extensiva;

c) restritiva.

A interpretação é declarativa quando se limita a de-clarar o pensamento expresso na lei, sem ter necessidadede estendê-Ia a casos não previstos ou restringi-la median-

te a exclusão de casos inadmissíveis. É o tipo mais comum de interpretação, pois cpressuposto normal é de que o legislador saiba expressar-se convenientemente.

Interpretaçãodeclarativa

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INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS]URíDICAS 435

A interpretação é extensiva quando o intérpreteconclui que o alcance da norma é mais amplo do que in-dicam os seus termos. Diz-se que o legislador, nessecaso, escreveu menos do que queria dizer iminus saipsit quam voluit), e a lei deveaplicar-se a determinadas situações não previstas expressamente.

Paralelamente, diz-se que a interpretação é restriti-va quando o legislador escreveu mais do que realmentepretendia iplus scripsit qua111 voluit). O intérprete, nessecaso, vê-se forçado a restringir o sentido da lei, a fim de dar-lhe aplicação razoá-vel e justa.

Uma aplicação desses processos pode ser indicada no caso da norma: "Oproprietário tem direito de pedir o prédio para seu uso", constante da lei do in-quilinato. A interpretação corrente desse texto inclui o "usufrutuário" entre osque podem pedir o prédio para uso próprio, porque a intenção da lei é, clara-mente, a de incluir aquele que tem sobre o prédio um direito real de usufruto.Assim, devemos adotar no caso a interpretação extensiva, que amplia o entendi-mento da norma, de modo a dizer: "Tem direito de pedir o prédio para seu usoo proprietário e aquele que esteja nas condições de proprietário", o que abrangeo usufrutuário.

Interpretaçãoextensiva

Interpretaçãorestritiva

A mesma norma pode servir de exemplo para uma interpretação restritiva,no caso do nu-proprietário, isto é, daquele que tem apenas a nua-propriedade,mas não o direito de uso e gozo do prédio. Este não poderá beneficiar-se da dis-posição da lei. Apesar de proprietário (nu-proprietário), não poderá pedir oprédio para seu uso.

3. SISTEMAS OU ESCOLAS DE INTERPRETAÇÃO: SISTEMAS

TRADICIONAIS OU LEGALISTAS E SISTEMAS MODERNOS

O sistema tradicional ou legalista, que abrange diferentes tendências "dog-máticas" ou "legalistas", e ao qual se vinculam as escolas dos Glosadores, daExegese, e racionalistas em geral, caracteriza-se inicialmente:

a) por prender o direito aos textos rígidos, como se fossem dogmas, e

b) procurar aplicá-los rigorosamente de acordo com a vontade do legislador.

Daí uma série de práticas como a dos "glosadores"medievais e "comentaristas", que examinavam. artigo por

Glosadores

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436 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO

artigo, sob o ponto de vista gramatical, as palavras e frases da lei, isoladas do seucontexto, e indiferentes às modificações históricas e sociais."

Daí, também, em época posterior, o emprego deprocessos para descobrir a "intenção do legislador" e re-construir o seu pensamento, através do exame dos traba-

lhos preparatórios da lei, como os projetos e sua justificação, emendas, parecerese discussões parlamentares etc. 10 Exegese, do grego ex gestain, significa" condu-zir para fora". Em qualquer hipótese, o papel de intérprete se reduz a aplicarprecisa e mecanicamente a regra querida pelo legislador, ainda que há 100 ou200 anos antes.

Escola da exegese

o uso excessivo do Direito Romano acompanhou esse apego a um estilocheio de regras e brocardos. Eça de Queirós fixou esse procedimento na figuracélebre de João das Regras.

Esse fetichismo legal desenvolveu-se após a pro-mulgação do Código de Napoleão (1804), com feiçãonova, inspirada na concepção racionalista de que todo o

direito está contido na lei e que esta, uma vez promulgada, tem existência e sig-nificação próprias, independentemente do legislador que a fez.

O papel do intérprete é o de tirar dos textos legais, através de processos ló-gicos e racionais, a solução para todos os casos. Deve ficar rigorosamente dentroda órbita das leis, sem recorrer a outras fontes, como o costume, a jurisprudên-cia, as condições sociais etc. "Toda a lei, e nada mais do que a lei", dizia Aubry."Os textos acima de tudo", afirmava Demolombe. A Bagnet atribui-se a ex-pressão: "Não conheço o Direito Civil. Ensino apenas o Código de Napoleão".E Laurent ensinava: "Os códigos nada deixam ao arbítrio do intérprete; o direi-to está escrito nos textos da lei".

Escola racionalistaou legalista

(9) "Os glosadores medievais, encantados C0111 a redescoberta do Corpus juvis, não resistiram ànecessidade de interpretá-lo em glosas marginais e interlineares, embora primassem pelouso quase exclusivo do método gramatical ou filológico, temerosos de desnaturarem o es-pírito de um conjunto legislarivo sistemático que lhes caia nas mãos como um dom divi-no, numa época de fragmentação feudal do poder e, pois, de assistemática convivência desistemas jurídicos diversos e até contraditórios". Machado Neto, Compêndio de Introdução àCiência do Direito, p. 294.

(10) "Preceituava a Escola da Exegese em Direito Positivo, a corrente tradicionalista por exce-lência, que o objetivo do intérprete seria descobrir, através da norma jurídica, e revelar avontade, a intenção, o pensamento do legislador". Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 33.

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-INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS]URÍDICAS 437

Contra o exagerado legalismo dos sistemas tradicio-Sistemas modernosnais - que consideravam o texto legal a única fonte do

de interpretaçãodireito - sugiram críticas e reações em diversos países,dando origem aos chamados sistemas modernos de interpretação.

Entre eles devem ser mencionados:

- o sistema da evolução histórica de Saleilles;

- o sistema da livre investigaçâo de Geny;

- o sistema do direito livre de Kantorowicz;

- as novas correntes da lógica do concreto e da investigaçâo semiológicaou lingüística.

O sistema de evolução histórica, também chamadoSistema da evoluçãohistórico evolutivo ou escola atualizadora de direito,

históricatem em Saleilles seu maior representante.

A lei deve ser considerada como dotada de vida própria, de modo que cor-responda não apenas às necessidades que lhe deram origem, mas também a suastransformações surgidas através da evolução histórica.

Diante da lei, o intérprete deve observar não só o que o legislador "quis",mas também o que ele "quereria", se vivesse no meio atual. Deve "adaptar-se avelha lei aos tempos novos", e nào abandoná-Ia. E, assim" dar vida aos Códigos".

A jurisprudência francesa usou largamente esse método e manteve, atéhoje, vivo o Código de Napoleão, interpretando seus textos à luz de novas teo-rias, decorrentes das grandes transformações sociais provocadas pela RevoluçãoIndustrial, como:

a) a teoria da responsabilidade civil por riscos criados, que se impôs emconseqüência da proliferação de acidentes de automóvel, de aviação, de estradasde ferro, acidentes do trabalho etc.;

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b) a revisào judicial dos contratos (teoria da imprevisão ou da cláusula rebussic stantibusi;

c) a teoria do abuso dos direitos, todas incompatíveis com o liberalismo e oindividualismo jurídicos, que inspiraram o Código Civil francês.

Sobre a doutrina da livre indagação, escreveu Car-los Maximiliano: "Mais arrojada do que a doutrina vito-riosa da escola histórico-evolutiva, porquanto se nãocontentava com interpretar amplamente os textos; ia muito além, criava direitonovo. A cor-rente ultra-adiantada tomou em França por divisa, a 'Livre Indaga-

Sistema de livreindagação

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438 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO

ção' (libre recherche). Na Suíça, Áustria e Alemanha, 'Direito Justo' (RichtigesRecht), ou 'Livre Pesquisa do Direito' (Freier RechtifLndung). Chamavam-lhe es-cola do 'Direito Livre' (Freies Recht) os adversários; e alguns adeptos repetiam,tolerantes, a denominação.

O movimento inovador foi iniciado pelo francês Geny, segundo uns; peloalemão Ehrlich, segundo outros. O primeiro foi por excelência um sistematiza-dor da doutrina audaciosa; teve, porém, o outro maior séqüito de apologistas econtinuadores, entre os quais se distinguiu Stammler, por imprimir à escolauma orientação filosófica".

Em que consiste a originalidade dessa doutrina?

A lei, diz Geny, é a fonte mais importante do direito, mas não a única. Dian-te de uma lacuna na legislação, o intérprete deve recorrer a outras fontes, e nãoviolentar a lei para forçá-Ia a dizer o que ela não pôde ter previsto, como pre-tende a doutrina da evolução histórica.

Quais são essas" outras fontes"?

O costume, a jurisprudência, a doutrina. E, se essas forem insuficientes, in-certas ou contraditórias, cabe ao próprio intérprete criar a norma aplicável, comose ele fosse o legislador. Nesse trabalho ele usará o método da livre investigaçãocientífica, II procurando uma norma que corresponda à natureza das coisas.

"Pelo Código Civil, mas além do Código Civil" é a fórmula adotada porGeny para caracterizar sua doutrina, que autoriza o juiz a agir praeter legem e nãoapenas dentro da norma legal isecundum legem).

O sistema da livre indagação obteve notável vitória, com a consagração desua doutrina no Código Civil suíço (1907), que estabelece em seu art. 1.0:"Aplica-se a lei a todas as questões de Direito para as quais ela, segundo a sua le-tra ou interpretação, contém um dispositivo específico. Deve o juiz, quandonão encontra preceito legal apropriado, decidir de acordo com o Direito Con-suetudinário, e, na falta deste, segundo a regra que ele próprio estabeleceria sefora legislador".

As restrições que em geral se fazem a essa doutrina foram assim sintetizadaspor Carlos Maximiliano: "Não deixa de ser perigoso autorizar 'expressamente'o juiz a transpor as raias da sua competência de simples aplicador do Direito. Seo fazem também criador, embora com restrições severas, ele pouco a pouco as

(11) "Essa investigación es 'Iibre', puesto que, en principio, no se halla sujeta a Ias fuentes for-males, y 'científica', porque eljurista no debe fundar-se cn criterios subjetivos, sino obje-tivos, para que Sl1 labor sea verdaderamente científica". Torre, ob. cit., p. 370.

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INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS]URÍorCAS 439

irá solapando e suprimindo. Já Montesquieu observara que todos os poderesconstitucionais tendem a exagerar as próprias atribuições, e invadir o campo daalheia jurisdição. No Brasil, sobretudo, em que o Judiciário é o juiz supremo dasua competência, se fora autorizado a legislar em parte, não tardaria a fazê-lo emlarga escala. Há inúmeros exemplos de tentativa desse poder para se sobreporaos outros em todos os sentidos, até mesmo na esfera política; e a ditadura judi-ciária não é menos nociva que a do Executivo, nem do que a onipotência parla-mentar" (p. 96).

O que não o impediu de concluir: "Será talvez, entre os povos cultos, adoutrina do futuro ... ".

Em duas monografias famosas, "A luta pela ciênciado direito" e "Pela teoria do direito justo", Kantoro-wicz lançou as bases de uma concepção revolucionáriaem matéria de interpretação.

O sistema de livre indagação científica de Geny, Stammler e outros atribuíaao juiz, na falta de disposição escrita ou costumeira, competência para agir"além dos termos da lei" ipraeter legem). Kantorowicz advoga a absoluta liberda-de do juiz, inclusive a de decidir contra a disposição da lei (contra legem), na pro-cura do direito justo.

O juiz deve buscar o ideal jurídico do "direito justo" (Richtigesrecht) ondequer que se encontre, dentro da lei ou fora desta. Não se preocupe com os tex-tos e as construções interpretativas. Inspire-se, de preferência, nos dados da rea-lidade social. E tome como guias o seu sentimento e sua consciência jurídica.

Famoso exemplo histórico dessa orientação encontra-se nos julgados do"bom juiz Magnaud" (1889-1904), de Chateau- Thierry, na França. Contrarian-do muitas vezes os textos legais, desculpava os pequenos furtos, amparava as mu-lheres, os fracos, os menores. Atacava os privilégios e os erros dos poderosos.J2

A crítica fundamental que é feita à teoria do direitolivre pode ser assim resumida: substituir a "lei", que re-presenta objetivamente a vontade geral, pelo critério do"juiz", individual e subjetivo, significa retroceder no desenvolvimento do direi-to; a evolução realizou-se em sentido inverso, isto é, no de substituir o arbítriode um pela vontade coletiva, expressa na lei. A lei, apesar de suas limitações, égarantia de segurança para todos.

Sistema dodireito livre

Crítica

(12) Sobre o fenômeno Magnaud e a jurisprudência sentimental, v. Carlos Maximiliano, ob.CiL, §80ess.,p.l11 a 114.

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440 INTRODUÇÃO Ã CIÊNCIA DO DIREITO

A teoria trouxe, entretanto, o beneficio de denunciar os erros de uma in-terpretação rígida e dogmática dos textos legais e chamar a atenção para a neces-sidade de uma consideração atenta da justiça e da realidade social, na aplicaçãodo direito.

4. NOVAS CORRENTES

As novas tendências das doutrinas de interpretação podem ser sintetizadasna fórmula "doutrinas de pensamento problemático", em oposição às doutrinasdo "pensamento sistemático", que representam o dogmatismo jurídico.

Na mesma linha do pensamento de Geny e seus seguidores, essascorrentes,ao interpretar as normas e decisões jurídicas, procuram investigar as circunstân-cias concretas e problemáticas de cada caso, dando especial ênfase à linguagem eà "situação comunicativa". Daí as denominações de "lógica do concreto, dacontrovérsia, do provável" (Perelman), "lógica do razoável" (Recaséns Siches),"tópica" (do grego topos, lugar, situação) (Viehweg), "zetética" (do grego zetein,que significa "investigar" e se opõe ao "dogma" absoluto das correntes dogmá-ticas), nova retórica, análise semiológica, lingüística, pragmática, em que se des-tacam Olivecrona, Ross, Carrió e, no Brasil, Tércio Ferraz, Warat, FernandoCoelho e muitos outros."

5. A INTEGRAÇÃO JURÍDICA E O PROBLEMA DAS LACUNAS

DA LEI

o estudo da interpretação do direito nos leva naturalmente ao problemadas lacunas da lei.

Existem "vazios" ou "lacunas" no direito?

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INTERPRETAÇÃO DAS NORMASjUl<.ÍDlCAS 441

Para aqueles que reduzem o direito aos preceitos dos códigos e das leis es-.ritas, não há dúvida de que existem lacunas em qualquer ordenamento jurídi-:0, pois a lei não pode prever todas as situações presentes e futuras.

Houve época em que vigorou o preceito de que, na falta de disposição le-sal ajustada ao caso, o juiz devia abster-se de julgar. Non liquet era a fórmula a serentão empregada pelo magistrado, ao verificar que não dispunha de elementossuficientes para decidir.

Hoje essa solução é inadmissível. "Quando a lei for omissa - determina oart. 4.° da Lei de Introdução ao Código Civil-, o juiz decidirá o caso de acordocom a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito".

Podem existir lacunas na lei, mas não no sistema ju-rídico, porque este possui outras fontes, além dos textoslegais, e, por isso, fornece ao aplicador do direito ele-mentos para solucionar todos os casos. Na omissão da lei, cabe-lhe encontrar oumesmo criar uma norma especial para o caso concreto. Trata-se, então, nãoapenas, propriamente, da "interpretação" de uma norma preexistente, mas de"integração" de uma norma no ordenamento jurídico.

Esse processo é, particularmente, importante para a disciplina das relaçõesjurídicas decorrentes de novas descobertas, como a eletricidade, aviação, rádio,televisão, informática etc.

Integração jurídicae interpretação

Em síntese, podermos dizer que há "interpretação", em sentido estrito,quando existe uma norma prevendo o caso; recorre-se à "integração" quandonão existe essa norma explícita.

A moderna concepção do ordenamento jurídico, como um conjunto hie-rarquizado de normas escritas e não escritas," parece incompatível com a exis-tência de "lacunas" ou "vazios" jurídicos.

Teria a ordem jurídica previsto todas as situações possíveis?

Explicitamente, não. Mas contém elementos e fixou processos que permi-tem a solução de todos os casos, por "interpretação", propriamente dita, ou me-diante o recurso da "integração".

:14) V. Carlos Cássio, "La plenitud de! ordenamiento jurídico", D. Aires, 1947. As normas es-critas vão desde os preceitos constitucionais, legais e regulamentares até as sentenças, asnormas conrratuais, testamentárias e outras individualizadas, e particulares. As não-escritasincluem o costume e as demais normas decorrentes da realidade social, implícita ou expli-citamente ligadas aos princípios gerais do direito ou princípios da justiça.

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442 INTRODUÇÃO À eLE elA DO DIREITO

Em qualquer hipótese, o juiz está obrigado a decidir a questão que lhe é re-gularmente submetida, a exercer a "jurisdição", a dizer o direito (jurisdicere).

Qual o processo a ser seguido?

Se existe norma legal ou costumeira (costume jurídico) aplicável ao caso, atarefa do juiz é de simples interpretação e aplicação.

Não havendo essa norma, a tarefa do juiz é de verdadeira "integração" daordem jurídica; deve procurar e fixar a norma aplicável ao caso. Para isso deverecorrer a dois elementos: a analogia e os princípios gerais do direito.

A analogia consiste em aplicar a um caso não pre-visto a norma que rege outro semelhante. Por exemplo,aplicar à televisão um preceito legal referente ao rádio;

ou a uma empresa de transportes rodoviários uma norma relativa às companhiaferroviárias.

Analogia

Não basta, porém, a semelhança de casos ou situações. É necessário queexista a mesma razão para que o caso seja decidido de igual modo. Ou, comodiziam os romanos, onde existe a mesma razão da lei, cabe também a mesmadisposição (Ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio). No caso acima indica-do, a mesma razão que justifica o preceito da responsabilidade da companhiaferroviária, em relação à vida e integridade dos passageiros, aplica-se analogica-mente às empresas de transporte rodoviário. Mas não há a mesma razão paraaplicar analogicamente às empresas rodoviárias o preceito da responsabilidadedas ferrovias pela conservação do leito viário, representado pelos dormentes,trilhos etc.

Na ausência de preceitos análogos, as legislações modernas, inclusive a bra-sileira, remetem o aplicador da lei aos "princípios gerais do direito".

,Ao falar em "princípios gerais do direito", dissemos que esse conceito cor-responde aos princípios da justiça. A questão é, entretanto, campo de intensacontrovérsia. Para as doutrinas de inspiração positivista, "princípios gerais dodireito" são aqueles princípios historicamente contingentes e variáveis, que ins-piraram a formação de cada legislação concretamente considerada. Para as con-cepções racionalistas, pelo contrário, a expressão "princípios gerais de direito"refere-se não a valores historicamente contingentes e variáveis, mas a princípiosuniversais, absolutos e eternos, correspondentes aos princípios do direito natural.

Cada uma dessas concepções, excluídos seus radicalismos e excessos, trazsua contribuição positiva para a solução do problema.

Uma visão compreensiva e ol'ryetiva da matéria nos leva a concluir que, en-tre os princípios gerais do direito, devem ser incluídos os valores contingentes e

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INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS]URÍDICAS 443

-.-ariáveis, a que se refere a concepção positivista, e os princípios universais, refe-ndos pelas doutrinas de inspiração racionalista, desde que, uns e outros, estejam.levidamente fundamentados. No Brasil, por exemplo, são "princípios gerais"·)S valores correspondentes ao sistema republicano, federativo, municipalista, anossa formação histórica, latina, cristã etc. E, ao mesmo tempo, os princípiosabsoluros e permanentes de "dar a cada um o que é seu", "respeitar a dignidade?essoal do homem", "manter a vida social", "contribuição de todos para o bemcomum", e os demais princípios, materiais e formais, decorrentes do conceito.íe justiça. Concordam fundamentalmente com essa conclusão Carlos Maximi-liano," Vicente Ráo, Torré, e outros.

N essa tarefa de integração da ordem jurídica, divi-Métodos de.lem-se os juristas sobre o método a ser empregado.integração

Duas tendências, correspondentes aos sistemas de inter- ---.- __._. _pretação já examinados, podem ser indicadas como mais importantes:

a) a legalista, dogmática ou lógico-sistemática, que prefere o chamado"método das construções jurídicas", mediante processos indutivos ou deduti-vos, mas sempre com apoio nos textos legais;

b) a tendência sociológica, representada principalmente pelo "método dalivre investigação científica", defendido por Geny e escolas afins; diante das "la-cunas da lei", deve o jurista criar a norma aplicável, decorrente da natureza dascoisas, e revelada pelo processo da "livre" investigação "científica"; "livre",porque não sujeita aos textos ou fontes formais; "científica", porque deve fun-damentar-se em critérios objetivos e não subjetivos.

15) "Os Princípios Gerais do Direito abrangem, não só as idéias básicas da legislação nacional,mas também os princípios filosóficos, funda~entais do Direito sem distinção de frontei-ras", Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 356.

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444 INTRODUÇÃO À CLÊNCIA DO DIREITO

6. OUTRAS FORMULAÇÕES

6.1 A hermenêutica no Brasil

Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, pref., p. 7 ali.

Obra especial sobre Interpretação não se conhece, em português, nenhuma pos-terior à de Paula Batista, publicada há meio século. É um compêndio claro, conciso,digno do prestígio rapidamente granjeado na sua época. Em relação à atualidade, alémde falho, está atrasadíssimo. Nas sucessivas tiragens que mereceu, não o enriqueceramcom ampliações e retoques. Demais, o professor da Faculdade de Direito do Recifepreferiu filiar-se à corrente tradicionalista: resistiu ao influxo avassalador de um sol queesplendiajá no céu dajuridicidade - Frederico Carlos de Savigny. Não obstante isso etalvez por ser o compêndio único, o livrinho de Paula Batista ainda hoje goza de bas-tante autoridade no foro e nas corporaçôes legislativas; graças ao ascendente por eleexercido, ouvem-se, a cada passo, brocardos que a Dogmática prestigiava e a ciência mo-derna abateu: In claris cessat intetpretatio; Fiat justitia, pereat mundus; e assim por diante.

Quantos erros legislativos e judiciários decorrem da orientação retrógrada da exegese!

Na Europa, depois da doutrina que o professor do Recife cristalizou no seu com-pêndio, surgiu, prevaleceu e entrou em declínio, pelo menos parcial, a Escola Histórica.Depois de imperar por alguns decênios, sofreu modificações até na própria essência:adaptou-se às idéias correntes; foi-se transformando gradativamente no Sistema Histori-co-Evolutivo, ou só Evolutivo afinal, graças ao influxo do credo jurídico-filosófico evan-gelizado por Ihering e difundido pelos mestres contemporâneos mais preclaros.Despontou ainda, audaciosa e irresistivelmente sedutora, a corrente da Livre Indagaçãopraeter Iegem, talvez o evangelho do futuro. Enfim abrolhou, no mais formidávellabora-tório de filosofia jurídica destes últimos cem anos, na erudita Alemanha, a arrojadaconcepção da Freia Rechtsfindung, livre pesquisa do direito, praeter e contra legem.

Desse movimento evolucional, de proporções vastÍssimas, não se apercebe quemapenas compulsa a vetusta cartilha nacional de Hermenêutica.

Julguei prestar serviço ao País com escrever uma obra vazada nos moldes da dou-trina vigente, e dar conta de todas as tentativas renovadoras nos processos de interpreta-ção. Mais necessário se me antolha esse esforço vulgarizador onde os partidários daDogmática tradicional, embora não formem na vanguarda, todavia não constituem acorte retardatária por excelência: atrás ainda resistem, altaneiros, os vexilários do pro-cesso verbal, os que discutem. Direito com exclusivas citações de gramáticas e dicioná-rios das línguas neolatinas.

Versa a presente o~a acerca da interpretação do Direito Civil, escrito ou consue-tudinário. Completam-na sínteses dos preceitos que especialmente regem a exegese deAtos Jurídicos, Direito Constitucional, Comercial, Criminai e Fiscal.

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INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS]URrDICAS 445

Planejei trabalho sobre Hermenêutica. Os expositores da matéria sentem-se obriga-dos a tratar da Analogia que os tradicionalistas incluíam na esfera da Interpretação, e os con-temporâneos classificam em outro ramo do saber jurídico. Demais não se conseguemnoções completas de Hermenêutica, sem penetrar no terreno mais amplo da Aplica-ção, por guardarem vários assuntos íntima conexidade com um e outro departamentocientífico: é o que sucede relativamente ao Direito Excepcional, ao estudo das antinomias,bem como ao das leis imperativas ou proibitivas e de ordem pública. Por todos esses moti-vos, também eu fui forçado a expor, ao lado da Hermenêutica, alguns temas referentesà Aplicação do Direito propriamente dita, porém relacionados intimamente com a ciên-cia do intérprete.

Alvejei objetivo duplo - destruir idéias radicadas no meio forense, porém expun-gidas da doutrina triunfante no mundo civilizado, e propiciar um guia para as lides dopretório e a prática da administração. Por isso não me pareceu de bom aviso manter in-variável a preocupação de resumir, observada quando elaborei os Comentários ao esta-tuto fundamental.

Como no Brasil, em toda parte o foro é demasiado conservador; o que a doutrinahá muito varreu das cogitações dos estudiosos, ainda os causídicos repetem e juízes nu-merosos prestigiam com os seus arestos. Constituem exceções os tribunais ingleses, aCorte Suprema de Washington e, até certo ponto, a Corte de Cassação de Paris, no de-sapego ao formalismo, na visão larga, liberal, construtora, C 0111. que interpretam e apli-cam o Direito Positivo.

Pareceu-me obra de civismo concatenar argumentos contra as sobrevivências depreconceitos e credos vetustos: ligar o passado ao presente, e descortinar a estrada am-pla e iluminada para os ideais do futuro. Eis porque este trabalho ficou mais longo doque no Brasil e em Portugal costumam ser os tratados de Hermenêutica.

Como prefiro realizar obra de utilidade prática, expus as doutrinas avançadas, po-rém adotei, em cada especialidade, a definitivamente vitoriosa, a medianeira entre asestreitezas do passado e as audácias do futuro. Nas linhas gerais, fui muito além da Dog-màtica Tradicional; passei pela Escola Histórica; detive-me na órbita luminosa e segura doEvolucionismo Teleológico. Descrevi apenas, em rápida síntese, o esforço de Ehrlich eGeny, assim como a bravura semi-revolucionária de Kantorowicz e Stammler. Parausar de uma expressão feliz e limitadora, inserta no adiantado Código helvético: espo-sei a doutrina consagrada, vigente, aceita pela maioria dos juristas contemporâneos.

6.2 Lacunas do direito

Paulo Dourado de Gusmão, Introdução à Ciência do Direito,Rio, Ed. Forense, 1967, p. 157 e 55.

Pode-se dizer que nem sempre o caso submetido ao juiz tem disciplina previstaem texto legal. Assim, por exemplo, na França, no fim do século passado, em face de

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446 TRaDuçÃO à CIÊ CIA DO DIREITO

prescrever o art. 1.382 do Código Civil francês a responsabilidade civil, fundada 1L

culpa provada pelo lesado, muitos acidentes do trabalho ficaram, antes da lei de 9 C~abril de 1898, sem reparação, por não poder o operário acidentado provar a culpa d-::patrão. O que fez a jurisprudência francesa? Decidiu pela responsabilidade do patrãc.salvo se fosse por este provada culpa exclusiva do empregado. Vemos aí um caso e:que a lei, anterior a fatos criados pela industrialização, não dava solução para inúrneracidentes diários, deixando a parte economicamente fraca, desamparada, quase semp:·:-com sua capacidade de trabalho reduzida para toda a vida, quando permanente a lesàcAjurisprudência encontrou a solução invertendo o ônus da prova.

Assim, nem sempre o código ou a lei oferece solução jurídica para o caso sub judic:Quando tal ocorre, diz-se haver lacuna.

O problema da lacuna é na verdade um problema. Muitos autores negam-na .. ~lacuna, dizem eles, é da lei, dos códigos (lacunaJorma0, não do direito (lacuna materialBrunetti defende esta tese. No direito há sempre solução para o caso, pensam os defen-sores dessa opinião, enquanto outros pensam ser isso ficção, pois lacunas tem o direito.O Código Civil suíço de 1912, ao contrário dos demais, a admitiu expressamente.quando prescreve: "Nos casos não previstos, o juiz decidirá segundo o costume e, nafalta deste, conforme as normas que estabeleceria se legislador fosse, inspirado na dou-trina e na jurisprudência dominante". Huber, idealizado r desse preceito, estava sob ainfluência da libre recherche scientijique de Geny. Mas, outros códigos, como o nosso ou oitaliano de 1865 e de 1942, não dão essa margem de arbítrio ao juiz, mandando-o, pri-meiro, pela "analogia", depois, pelos costumes e, por fim, pelos "princípios gerais dodireito", decidir o caso não previsto. Assim, o legislador suíço admitiu a lacuna do di-reito, enquanto o nosso, que seguiu o modelo italiano, somente a da lei e não a do direi-to. Há, portanto, os que dizem ser completo o ordenamento jurídico, apesar de in-completos a lei e os códigos, enquanto outros preferem confessar a imperfeição do di-reito estatuído. O legislador, dizem estes últimos, não pode tudo prever, principalmentequando se vive épocas de grandes transformações, como a que vivemos desde 1914,enquanto aqueles acham que na letra da lei pode não e encontrar a solução para essescasos novos, mas no espírito dela ou nos princípios gerais do direito tudo se encontra.Estes defendem a "plenitude logicamente necessária do direito" (logische Geschchlosse-nheit des Rechts), enquanto os que consideram incompleto o ordenamento jurídico dãoliberdade ao juiz para decidir o caso não previsto, segundo a eqüidade, a natureza dascoisas ou a doutrina dominante. Aqueles acham que o juiz, no silêncio da lei, pode en-contrar uma norma com os meios fornecidos pela própria lei ou indicados pela herrne-nêutica. Zitelmann, seguido depois por Donati, disse haver implícito no ordenamentojurídico uma norma geral e complementar que considera lícito o que não for proibido.

A nosso ver, ~esde que se considere todo direito como positivo, temos que admitirlacunas. Há lacunas da lei, dos códigos, da doutrina, da jurisprudência e do próprio direi-to, porque este é um produto histórico, que não pode dar, muitas vezes, solução para ca-

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