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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS DAIANI CEZIMBRA SEVERO ROSSINI BRUM A ATUAÇÃO DE PALHAÇAS E PALHAÇOS: o hospital como palco de encontros NATAL/RN 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

DAIANI CEZIMBRA SEVERO

ROSSINI BRUM

A ATUAÇÃO DE PALHAÇAS E

PALHAÇOS: o hospital como palco de

encontros

NATAL/RN

2017

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DAIANI CEZIMBRA SEVERO ROSSINI BRUM

A ATUAÇÃO DE PALHAÇAS E PALHAÇOS: o hospital como palco de

encontros

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Artes Cênicas da

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte como requisito para obtenção do grau

de Mestre em Artes Cênicas.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karenine de

Oliveira Porpino.

NATAL/RN

2017

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Brum, Daiani Cezimbra Severo Rossini.

A atuação de palhaças e palhaços: o hospital como palco de encontros / Daiani Cezimbra Severo Rossini Brum. - Natal, 2017.

137f.: il.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de

Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em

Artes Cênicas.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino.

1. Atuação Cênica - Hospitais. 2. Teatro. 3. Risoterapia. I.

Porpino, Karenine de Oliveira. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792.02

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AGRADECIMENTOS

A soma de experiências, saberes, dizeres, ações e corações de muitas pessoas foi

fundamental na composição deste trabalho. Gostaria de destacar minha gratidão a Luiz

Inácio Lula da Silva e a Dilma Vana Rousseff. A partir das iniciativas tomadas por

ambos e através de muita luta, tive condições de subverter as limitações impostas pela

minha condição social e aqui apresentar essa pesquisa.

Sou grata à minha mãe, Janete Cezimbra Severo, e ao meu irmão, Matheus

Cezimbra Severo, queridos parceiros de jornada; assim como à companheira amada,

Flávia Maiara Lima Fagundes. Agradeço ao meu pai, Paulo Rossini Brum e família,

pelo apoio. Simone Cezimbra Severo, Martina Cezimbra Pereira e Schu Pereira:

agradeço-lhes pelas acolhidas e visitas. Tenho profundo agradecimento pelo meu

encontro com a Tainar Gavião Leal e com o Peterson Gavião Leal, com a Édna Gavião,

com o Paulo Leal, com a Raíne Gavião Pereira e com a Luna Leal Barbosa, família

amorosa, amiga e de costumeiros braços abertos. Obrigada aos irmãos do Teatro Porque

Não? pelas experiências compartilhadas na amizade e na entrega para o Teatro.

Sou grata também à ONG Esparatrapo, em especial à Kelly Lima, à Camila

Tiago e ao Xavier Ruiz, com os quais pude atuar nos palcos hospitalares, assim como à

Inaiá Correa, que neles nos recebeu; à Renata Marques, pela importante recepção em

Natal; à ONG Doutores da Alegria, sobretudo ao Wellington Nogueira, por receber esta

pesquisa; aos professores, funcionários e colegas envolvidos no PFPJ5, pelas vivências

intensas; aos entrevistados e entrevistadas pela disponibilidade em colaborar com a

pesquisa. Obrigada também à turma de mestrado pela parceria constante nos “aperreios”

e nos festejos.

Agradeço à Gabriela Amado e à Mariane Magno pelo profissionalismo na

orientação de pesquisas anteriores; à orientadora deste trabalho, Karenine Porpino, pela

sensibilidade, paciência e liberdade com que me recebeu; ao professor Robson

Haderchpek pela abertura e empenho; à professora Márcia Strazzacappa pela

disponibilidade e pelas suas contribuições. Agradeço ao Fundo de Apoio à Pesquisa do

Rio Grande do Norte (FAPERN) pela importante bolsa de mestrado e à Marina

Zampirolo por tecer os detalhes finais deste trabalho. Por fim, aos encontros, pois “Cada

ser é só, e ninguém pode dispensar os outros, não apenas por sua utilidade - que não está

em questão aqui -, mas para a sua felicidade.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 50).

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Existe uma vitalidade, uma força vital,

uma energia, uma vivacidade que é

traduzida em ação por seu intermédio, e

como em todos os tempos só existiu uma

pessoa como você, esta expressão é

única. Se você a bloquear, ela jamais

voltará a se manifestar por intermédio

de qualquer outra pessoa, e se perderá.

(Martha Graham)

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RESUMO

O presente trabalho trata-se de uma investigação em Artes Cênicas que teve

como mote algumas inquietações pessoais da autora ao atuar como palhaça em hospitais

de São Paulo e de Natal. A partir dessa experiência profissional, identificou-se que há

peculiaridades no trabalho de atriz e de palhaça próprias aos diferentes espaços da

sociedade. No contexto aqui pesquisado, destaca-se a necessidade que as figuras

palhacescas têm de engendrar uma abertura em que possam se relacionar com os seres e

com os acontecimentos do espaço e do tempo hospitalares. Por isso, pergunta-se: com

base na experiência de profissionais palhaças e palhaços que atuam em contextos

hospitalares, quais são os principais aspectos a serem considerados na atuação nesses

espaços? No intuito de responder a essa questão, objetiva-se investigar a atuação de

palhaças e palhaços em palcos hospitalares, contextualizando, para isso, tal atuação no

âmbito das práticas cênicas. Além disso, a partir da descrição de experiências nos

campos hospitalares, pretende-se identificar os principais aspectos que configuram essas

vivências artísticas em contato com o cotidiano do hospital. Com base numa

metodologia fenomenológica fundamentada em Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011),

buscou-se dialogar com experiências palhacescas hospitalares através de entrevistas

realizadas com sete membros da Organização Não Governamental (ONG) Doutores da

Alegria, bem como com o palhaço Ésio Magalhães, que fez parte do elenco da ONG até

o ano de 2003. Como resultados desta pesquisa propõe-se a discussão sobre o jogo

cênico a partir da mescla das técnicas de treinamento pessoal e das sensibilidades de

cada artista, como também a atuação palhacesca no hospital como geradora de

experiências de encontros teatrais. Para tanto o referencial teórico abrange a

Fenomenologia de Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011), o conceito de Jogo colocado por

Huizinga (2014) e os estudos brasileiros sobre o riso, o cômico e a palhacaria, tais como

os de Burnier (2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006), Kásper (2004), Wuo

(1999; 2011) e Sacchet (2009).

Palavras-Chave: Atuação Cênica. Teatro. Palhaçaria Hospitalar. Encontro.

Fenomenologia.

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ABSTRACT

This work is an investigation in Scenic Arts that had as motto some personal

concerns of the author when acting as a clown in hospitals of São Paulo and Natal.

From this professional experience, it has been identified that there are peculiarities in

the work of actress and clown in different spaces of the society. In the context

researched here, it is emphasized the need for the clowns to have to engender an

opening in which they can relate to beings and to the events of space and hospital time.

Therefore, it is asked: based on the experience of professional clowns who work in

hospital settings, what are the main aspects to be considered in acting in these spaces?

In order to answer these questions, the objective is to investigate the performance of

clowns in hospitals, contextualizing, for this, such action within the framework of

scenic practices. In addition, from the description of experiences in the hospital fields,

we intend to identify the main aspects that configure these artistic experiences in contact

with the daily life of the hospital. Based on a phenomenological methodology based on

Merleau-Ponty (2006, 2007, 2011), we sought to dialogue with hospital clownings

experiences through interviews with seven members of the Non-Governmental

Organization (NGOs) Doutores da Alegria, as well as the clown Ésio Magalhães, who

was part of the NGO's cast until the year 2003. As a result of this research, we propose

to discuss the scenic play based on the mixture of personal training techniques and the

sensibilities of each artist, as well as the performance of clown in the hospital as

experiences of theatrical meetings. In order to do so, the theoretical reference covers the

Merleau-Ponty Phenomenology (2006, 2007, 2011), the play concept posed by

Huizinga (2014) and the Brazilian studies on laughter, comics and palhacaria, such as

Burnier 2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006), Kásper (2004), Wuo

(1999; 2011) and Sacchet (2009).

Key-words: Acting Scenic. Theater. Hospital Clowning. Meeting. Phenomenology.

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1 - Palhaça Brum (Daiani Brum) desenhada. ............................................................... 13

Figura 2 - Corrida de cadeiras com Doutor Lui (Luciano Pontes). ......................................... 29

Figura 3 - Espetáculo O Não Lugar de Ágada Tchainik, ........................................................ 34

Figura 4 - Palhaço circense Chicharrão, José Carlos Queirollo .............................................. 34

Figura 5 - Joseph Grimaldi ...................................................................................................... 41

Figura 6 - Espetáculo Zabobrim, o rei palhaço, do Barracão Teatro. ..................................... 45

Figura 7 - Bess, o deus da alegria. ........................................................................................... 54

Figura 8 - Doutoras Juca Pinduca (Juliana Gontijo) e Greta Garboreta (Sueli Andrade). ...... 66

Figura 9 - PFPJ 5. .................................................................................................................... 72

Figura 10 - Doutora Xaveco Fritza (Val de Carvalho) pegando na mão de um bebê. ............ 76

Figura 11 - Doutora Lola (Luciana Viacava) no corredor hospitalar. ..................................... 90

Figura 12 - Doutores Dud Grud (Eduardo Filho) e Eu_Zébio (Fábio Caio). .......................... 99

Figura 13 - Aroldo, o porta-soro, e os Doutores Dus Cuais Carigudum (Henrique

Rímoli) e Sandoval (Sandro Fontes). ..................................................................................... 113

Figura 14 - Doutora Brum (2013). ........................................................................................ 121

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10

2 PALHAÇAS E PALHAÇOS: RISOS COLETIVOS.......................................... 23

3 PALCOS HOSPITALARES............................................................................... 51

4 CAMPO DE EXPERIÊNCIAS.............................................................................

4.1 JOGO DE TÉCNICAS E SENSIBILIDADES.....................................................

4.2 ENCONTROS TEATRAIS...................................................................................

77

85

103

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 118

REFERÊNCIAS......................................................................................................... 123

APÊNDICES..............................................................................................................

APÊNDICE A - LISTA DE FILMES........................................................................

ANEXOS.....................................................................................................................

ANEXO 1 - CARTA PARA OS DOUTORES DA ALEGRIA................................

ANEXO 2 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO..........

ANEXO 3 – EDITAL PFPJ.......................................................................................

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1 INTRODUÇÃO

Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos

anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão. Somos,

enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não

é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa

síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu

creio (GALEANO, 2015, p. 123).

Contraditória como o ser humano, que transita entre o profano e o sagrado, a fé na

mutabilidade da existência descrita por Galeano, pode ser digna de confiança. Aqui

contextualizada, essa fé acolheu incalculável soma de horas em desassossegos,

rascunhos, sonhos acordados, desacertos, recomeços. Em meio a contradições

inconstantes e descobertas, imergi no processo desta pesquisa. Com imensa alegria,

apresento aqui o fruto de uma jornada intensiva, tecido por constantes atos de

reinvenção e produto de investigações, práticas, reflexões e diálogos sobre a atuação

cênica de palhaças e palhaços1 em palcos hospitalares.

Contemporâneos espaços de atuação, esses palcos fornecem material para uma

discussão sobre novos pressupostos do ponto de vista da performance palhacesca, desta

feita voltada para o jogo com os novos tempo e espaço em que se estabelecem e para

com os seres que nesses ambientes habitam. Nos palcos hospitalares, os espectadores

não são o público decidido a ir ao teatro ou ao circo para assistir aos gracejos das

figuras palhacescas, como ocorre corriqueiramente. A plateia desses espaços é

composta, na maioria dos casos observados nesta pesquisa, por crianças hospitalizadas,

seus acompanhantes, equipe médica e funcionários do hospital, que muitas vezes

vivenciam situações delicadas e extremas, que podem envolver a vida e a morte.

A permeabilidade para com o encontro, assim, faz-se fundamental, pois o foco

desse público tão específico está normalmente voltado à interação com a doença e com

o cuidado. Parto, nesse sentido, da seguinte afirmação do encenador polonês Jerzy

Grotowski: “A essência do teatro é o encontro.” (GROTOWSKI, 2011, p. 44). Na

especificidade teatral manifesta no contexto hospitalar, os encontros significam uma

1 No primeiro capítulo deste trabalho a discussão tem início no entorno das palavras palhaça e palhaço,

sendo que por ora compreende-se que tais seres são aqueles que exercem o oficio cômico regularmente a

partir de pesquisas e práticas que desenvolvam uma atitude de jogo cênico; de autonomia do ponto de

vista criativo e de treinamento pessoal e de abertura para a alteridade. Independentemente das técnicas

empregadas, opções estéticas ou espaços de atuação, entende-se o trabalho palhacesco como aquele que

soma saberes e vivências que compõem, ao longo dos anos, as características pessoais de cada palhaça ou

palhaço.

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possibilidade de deixar-se afetar pelo outro, pelos seus dramas e suas proposições

cotidianas: constitui-se uma zona de convergência entre a arte e a natureza da vida.

Nos espaços hospitalares, fui acolhida como artista e pesquisadora através do

contato com a ONG Esparatrapo2, no ano de 2013. O encontro com a ONG, além de

trazer experiências de atuação contínua como palhaça no contexto hospitalar, levou-me

a viajar pelo nordeste brasileiro em 2014, onde pude, após percorrer dez cidades

atuando como palhaça em hospitais e escolas, fundar e manter atividades contínuas por

todo um ano, em 2015, na unidade da Esparatrapo em Natal (RN).

Anteriormente ao processo vivido com a ONG Esparatrapo, obtive formação na

arte da palhaçaria junto à Organização Não Governamental Doutores da Alegria,

importante grupo de palhaças e palhaços que atuam em contextos hospitalares, e que ao

longo de vinte e cinco anos destaca-se por realizar ações artísticas, de pesquisa e de

formação no campo das Artes Cênicas, dentro e fora dos contextos hospitalares. A

jornada de estudos da qual participei como aluna trata-se do Programa de Formação de

Palhaços para Jovens (PFPJ)3 dos Doutores da Alegria.

A investigação proposta nesta pesquisa, assim, não se aparta de minhas

anteriores travessias investigativas, mas decorre de seus fluxos. Experiências vividas

como estudante, atriz, palhaça, e especialmente como palhaça contextualizada no

hospital apresentam-se aqui como perspectivas sobre o fenômeno investigado.

Nestas páginas, compartilho alguns resquícios de vivências palhacescas

referentes aos encontros ocorridos em contextos hospitalares. Esses vestígios, ora mais,

ora menos palpáveis, são meus e de outras palhaças e palhaços que nos palcos

hospitalares se estabeleceram compondo múltiplas sensibilidades e experiências. Em

meio a esses fragmentos figuram fotografias, descrições de experiências e outras

recordações, como por exemplo, o retrato da Doutora Brum4, que foi desenhado a partir

2 A ONG Esparatapo atuou entre 2006 e 2015 no estado de São Paulo (SP) e no ano de 2015 em Natal

(RN), ano em que se encerraram suas atividades nacionalmente. Composta por palhaças e palhaços

profissionais, a organização surgiu, assim como diversas outras iniciativas no Brasil, através do campo

aberto pelos Doutores da Alegria. 3 O PFPJ foi criado em 2004 e mantém as suas atividades até os dias de hoje, formando a cada dois anos

25 palhaços que ingressam com idade entre 17 e 23 anos no grupo. Esses jovens vivenciam quatro horas

diárias de aulas ao longo de dois anos, sob a condução de artistas dos Doutores da Alegria e de

profissionais convidados, totalizando mais de 1650 horas de aula. O curso não tem por objetivo formar

artistas que atuem apenas no âmbito hospitalar, mas sim em diversos espaços da sociedade. 4 O retrato foi desenhado em 2015 por um menino de cerca de nove anos, hospitalizado no Hospital

Infantil Varela Santiago de Natal (RN).

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de seu característico procedimento do chá flutuante, forte aliado no tratamento de

“hipnose boboterápica”:

Figura 1 - Palhaça Brum (Daiani Brum) desenhada.

Fonte: acervo da pesquisadora.

O procedimento de “hipnose boboterápica”, frequentemente aplicado ao autor do

desenho acima, diz respeito à realização de um momento de concentração em que a

palhaça realiza um procedimento de ilusionismo que tem por objetivo fixar a atenção

dos espectadores. Curiosos com o funcionamento do “chá mágico”, os espectadores

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ficam como que hipnotizados. Ao final do procedimento, na maioria dos casos

observados, as crianças agitam-se, tentando desvendar o mistério, mas basta voltar o

ilusionismo para que elas retornem instantaneamente ao estado de concentração. Por ter

ficado marcado na memória do espectador, o tratamento de “hipnose boboterápica” foi

retratado. Outros encontros igualmente carregados de sensibilidade e prolongados pela

convivência se entrepuseram nesses caminhos, sendo que os resquícios da maioria deles

se encontram perpetuados na memória daqueles que os vivenciaram.

Ao atravessar intenso processo de formação na área de palhaçaria e atuar

profissionalmente como palhaça em hospitais do Brasil, sobretudo em São Paulo e

Natal, vivenciei experiências que me permitiram identificar peculiaridades desse espaço

de atuação palhacesca em relação a outros. Dentre elas, está o encontro entre artistas e

público, que se faz de maneira singular, agregando novas significações às figuras

palhacescas e aos contextos hospitalares.

Desse modo, este trabalho tem por objetivo investigar a atuação de palhaças e

palhaços em palcos hospitalares. Para tanto, buscamos contextualizar a atuação

palhacesca no âmbito das práticas cênicas, bem como descrever experiências de atuação

nos campos hospitalares e identificar os principais aspectos que configuram essas

vivências artísticas em contato com o cotidiano do hospital.

Tendo isso em vista, pergunta-se: comparado aos demais âmbitos de atuação

palhacesca, quais são as principais peculiaridades do hospital? Com base na experiência

de profissionais palhaças e palhaços que atuam em contextos hospitalares, quais são os

principais aspectos da atuação nesse espaço e nesse tempo de atuação?

No intuito de responder a essas questões, valho-me de referencial teórico

composto pela Fenomenologia de Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011), pelo conceito de

jogo proposto por Huizinga (2014) e pelos estudos brasileiros sobre o riso, o cômico e a

palhaçaria elaborados por Burnier (2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006),

Kásper (2004), Wuo (1999; 2011) e Sacchet (2009).

Ao mergulhar nos processos de pesquisa prática e teórica na área da palhaçaria

contextualizada ao hospital, deparei-me com um alto contingente de memórias,

experiências, encontros e sensibilidades, porém com baixos registros de estudos

acadêmicos que discutam esse fenômeno pelo viés das Artes Cênicas. Nesse âmbito,

pude identificar a pesquisa de doutorado da professora Ana Achcar (2007), que propõe

uma metodologia de formação para palhaços atuantes de contextos hospitalares.

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Esse fenômeno tem maior representatividade investigativo-acadêmica na área da

Saúde. No campo da Psicologia, por exemplo, há as pesquisas de Morgana Masetti

(1998; 2001; 2003; 2013; 2014), voltadas para a humanização das relações no hospital,

bem como para a busca por uma ética do encontro no contexto hospitalar, pensada por

meio da atuação de palhaças e palhaços nesses espaços. Na área da Enfermagem, tem

destaque a pesquisa de Antônio Sena (2011), que discute a arte da palhaçaria no

contexto hospitalar a partir da percepção das e dos cuidadores. Na área de Medicina,

existe a pesquisa de Arlene de Sousa Barcelos Oliveira (2014), que diz respeito à

investigação da arte palhacesca como ferramenta de ensino-aprendizagem na graduação

em Medicina. Na Educação Física, é possível encontrar as pesquisas de Ana Elvira Wuo

(1999; 2011), que desenvolvem o conceito de clown visitador de crianças hospitalizadas

como instrumento de lazer.

No âmbito da pesquisa sobre a atuação artística, há considerável número de

materiais produzidos pela ONG Doutores da Alegria, como a série de revistas Boca

Larga, lançada com periodicidade anual entre 2005 e 2008. Tais revistas contam com

entrevistas, depoimentos, relatos sobre o trabalho dos Doutores, textos e contribuições

de autores diversos direcionados às Artes Cênicas. Embora esta pesquisa não seja de

caráter documental, considerei relevante descrever o contexto dos Doutores da Alegria

pelos motivos já descritos.

Considero que o momento é propício para a realização de uma pesquisa

acadêmica sobre o fenômeno da atuação palhacesca hospitalar pelo viés das Artes

Cênicas, uma vez que são crescentes as iniciativas artísticas de cunho semelhante no

Brasil. Nas referências aqui investigadas, habitam experiências vividas por artistas

cênicos profissionais que podem contribuir para o aprofundamento dos estudos sobre

essa prática, assim como para o fomento de mais iniciativas semelhantes.

Valorizando as experiências vividas por mim e pelos entrevistados, tomo-as

como ponto de partida para a investigação aqui proposta. Busco, desse modo, propor

uma atitude metodológica que dialogue com as sensibilidades implícitas na atuação

palhacesca hospitalar, perpetuadas no corpo e no coração daqueles que a constituem

tendo como meio de expressão as Artes Cênicas.

Assim, dialogo com a Fenomenologia, discutida, sobretudo através dos estudos do

filósofo Merleau-Ponty, segundo o qual o corpo pode ser concebido em movimento,

envolvendo suas sensibilidades, como meio de entrelaçamento com o mundo e enquanto

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expressão criadora (MERLEAU-PONTY, 2006; 2007; 2011).

A Fenomenologia propõe sua investigação partindo da experiência. Em

consonância com essa perspectiva, foram realizadas entrevistas com oito profissionais

que atuam ou atuaram em palcos hospitalares: sete são pertencentes ao elenco da ONG

Doutores da Alegria e um atuou na organização entre 1998 e 2003, destacando-se

atualmente em outros espaços da sociedade. Os entrevistados foram: Wellington

Nogueira, Marcelo Marcon, Roberta Calza, Heraldo Firmino, Luciana Viacava, Raul

Figueiredo, Du Circo (Eduardo Pinheiro) e Ésio Magalhães.

Todos os sujeitos do grupo de entrevistados trabalham com a atuação palhacesca e

com a formação na arte da palhaçaria. Essa foi ponte central de conexão entre mim e os

entrevistados, uma vez que fui aluna de todas e de todos. A ONG Doutores da Alegria

permitiu que as atuadoras e os atuadores de seu elenco concedessem as entrevistas, e

estes forneceram os direitos de utilização de seus conteúdos nesta pesquisa. Tais acordos

foram firmados por meio da assinatura dos termos encontrados nos anexos 1 e 2 deste

trabalho. Os termos foram assinados pela direção da ONG e por cada entrevistada ou

entrevistado.

Com base nessas experiências e vivências, busquei produzir um diálogo sobre a

atuação palhacesca hospitalar e sobre a recente constituição desse campo artístico e

acadêmico, procurando estabelecer, assim, uma zona de convergência com a

Fenomenologia. A partir dessa perspectiva, houve a possibilidade de proceder a uma

investigação e descrição do fenômeno estudado do ponto de vista da experiência do ser

humano no mundo (MERLEAU-PONTY, 2006; 2007; 2011). Essa atitude demanda

uma suspensão (epoché) dos possíveis julgamentos e pressupostos sobre a natureza

investigada e propõe um retorno às “coisas mesmas”, tais como elas se apresentam

(MARTINS, 1992).

Frequentemente sujeito a intervenções críticas e a julgamentos, o olhar, a partir do

retorno às “coisas mesmas”, ou seja, à percepção de como o fenômeno se dá no mundo

vivido, busca desobstruir-se, na tentativa de visualizar o fenômeno tal como ele se

apresenta, valorizando a experiência (MARTINS, 1992). Buscando tomar o fenômeno

de atuação palhacesca hospitalar tal como ele se deu para as atuadoras e atuadores nele

envolvidos, suas vivências foram consideradas como parte fundamental na discussão

sobre os novos desafios da palhaçaria contextualizada aos palcos hospitalares.

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A atitude fenomenológica valoriza o Lebenswelt, palavra alemã que designa o

mundo vivido (HUSSERL, 2006). O retorno ao Lebenswelt refere-se à busca por um ato

transgressivo perante o cientificismo, dialogando com o universo das experiências, que,

segundo o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, antecede o universo das reflexões.

Nas palavras do autor:

Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao

conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao

qual toda determinação cientifica é abstrata, significativa e

dependente, como a geografia em relação à paisagem – primeiramente

nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho. Este

movimento é absolutamente distinto do retorno idealista à

consciência, e a exigência de uma descrição pura exclui tanto o

procedimento da análise reflexiva quanto o da explicação cientifica.

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 4).

Merleau-Ponty propõe uma retomada do engendro cognitivo corpóreo, ampliando

as possibilidades de intersecção do corpo com o mundo. Essa intersecção ou fricção é

capaz de produzir saberes sensíveis para além do campo do pensamento e das

reproduções conceituais. O autor não exclui a intersubjetividade, e coloca-a como

implícita nos processos de desenvolvimento humano e social, enfatizando as sensações

do corpo como fundamentais ao processo cognitivo.

A valorização do mundo vivido do ponto de vista fenomenológico possibilita a

compreensão de múltiplas experiências perceptivas, pois, como afirma o filósofo, “Tudo

aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de

uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer

nada.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 3). Aliada, portanto, à Fenomenologia, esta

pesquisa atrela-se às vivências de palhaças e palhaços que compõem sua gama de

saberes e sensibilidades a partir de suas experiências de atuação nos palcos hospitalares.

Para Merleau-Ponty, o saber se inscreve no corpo ao longo de nossa relação com

as experiências no mundo vivido. O corpo não é buscado fora do indivíduo ou

submetido a alguma relação com a dualidade entre corpo e mente; o indivíduo é um

corpo e uma mente, não os possui (MERLEAU-PONTY, 2001; 2006; 2007). O ser

humano entrelaçado ao mundo é capaz de abrir-se para a realidade sensível, que se dá

através do fluxo da vida, e do encontro com outros seres humanos. Para o filósofo, “[...]

é por meio de meu corpo que compreendo o outro, assim como é por meio de meu

corpo que percebo as ‘coisas’.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.253).

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Merleau-Ponty postula que o mundo fenomenológico considera “[...] não o ser

puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na

intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem umas das

outras [...].” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 18). Desse modo, uma atitude que se

pretende fenomenológica não se pode apartar da subjetividade, nem tampouco da

intersubjetividade, inerentes à presença do ser humano no mundo. Estas, para o autor,

formam a unidade do mundo fenomenológico, que se dá através da “[...] retomada de

minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, e da experiência do

outro na minha.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 18). Nessa perspectiva, destacam-se as

relações entre indivíduos no mundo, como traz o pesquisador brasileiro Joel Martins:

[...] somos uns para os outros, e ‘uns-com-os-outros’, precisamos,

necessariamente, ter uma aparência mútua. Não se trata de uma

aparência externa, mas de uma aparência ou perspectiva um do outro.

Minha visão dos outros e a (visão) que eles têm de mim é que

permitem nossa posição no mundo (MARTINS, 1999, p. 54).

O encontro entre os indivíduos é fator imprescindível na investigação

fenomenológica, assim como o encontro dos seres com o mundo e o seu caminhar em

direção a ele. Imprescindível também é esse encontro no contexto da investigação

palhacesca hospitalar aqui proposta, pois é em seus entornos que se encontram as

intersecções cênicas que são objeto desta pesquisa.

A descrição fenomenológica, aqui proposta, é constituída por três elementos: a

percepção, entendida com primazia no processo reflexivo; a consciência direcionada ao

corpo vida (ao corpo vivido) ou a “descoberta da subjetividade e da intersubjetividade”

(MARTINS, 1999, p. 58) e o “[...] sujeito, pessoa ou indivíduo que se vê capaz de

experienciar o corpo vivido por meio da consciência que é a conexão entre o indivíduo,

os outros e o mundo.” (MERLEAU-PONTY, 1945 apud MARTINS, 1999, p. 58). Aqui,

não se propõe uma explicação do fenômeno, mas sua descrição, tal como ele se

apresenta. A descrição fenomenológica, segundo a pesquisadora brasileira Maria

Aparecida Bicudo, “Se limita a descrever o visto, o sentido, a experiência como vivida

pelo sujeito. Não admite julgamentos e avaliações. Apenas descreve.” (BICUDO, 2000,

p. 77).

Aliada à descrição, a redução fenomenológica tem por objetivo, enquanto

momento de uma trajetória de pesquisa, investigar e sistematizar os componentes da

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descrição que fazem parte da essência do fenômeno estudado (MARTINS, 1999). É

dividida em três momentos: no primeiro, tem por objetivo colocar o fenômeno em

suspensão (epoché), buscando compreender a experiência vivida sem imprimir as

interpretações pessoais da pesquisadora.

O segundo momento é destinado à interpretação dos pontos focais, ou seja, as

descrições são separadas e organizadas em grupos temáticos chamados unidades de

significado. Esses grupos temáticos, no caso desta pesquisa, foram organizados em

relação às questões abordadas nas entrevistas e divididos inicialmente em oito unidades

de significados, destacadas a partir do conteúdo encontrado nas falas dos entrevistados.

São elas: (1) as experiências anteriores ao hospital; (2) como os entrevistados veem o

trabalho do palhaço; (3) os desafios e os objetivos da atuação; (4) a importância da

relação com o outro; (5) as diferenças e as semelhanças com outros contextos de

atuação; (6) as técnicas cênicas no preparo artístico; (7) as experiências no âmbito

hospitalar; (8) o impacto do trabalho sobre si.

Pretendendo compor uma compreensão fenomenológica acerca das referidas

unidades, primei por uma reflexão que decorresse do processo interpretativo do

fenômeno. A identificação de significações essenciais na descrição e na redução

fenomenológicas, como aponta Martins, são “[...] uma forma de investigação da

experiência.” (MARTINS, 1999, p. 60). Dessas oito unidades de significados, foi

realizada uma nova redução, em que elas foram sintetizadas em apenas três, que trago

para a discussão especialmente no capítulo quatro deste trabalho. São elas: (1) o jogo;

(2) as técnicas e sensibilidades e (3) o encontro.

A Fenomenologia é compreendida neste trabalho, ainda, enquanto atitude

metodológica capaz de valorizar a sensibilidade implícita nas experiências do mundo

vivido. Tais experiências, do ponto de vista investigativo em Merleau-Ponty, são

discutidas em conexão com as manifestações expressivas do corpo. Segundo a

pesquisadora brasileira Petrúcia da Nóbrega,

A dimensão expressiva do corpo é enfatizada por Merleau-Ponty

como comunicação da realidade sensível, dimensão poética da

corporeidade comunicada por meio do gesto. Por meio do logos

sensível, estético, coloca-se a experiência perceptiva como campo de

possibilidades para o conhecimento, investido de plasticidade e beleza

de formas, texturas, sabores, odores, cores e sons. O corpo e o

conhecimento sensível são compreendidos como obra de arte, aberta e

inacabada (NÓBREGA, 2008, p. 147).

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Esse sentido estético encontrado na corporeidade habita a experiência vivida do

indivíduo, possibilitando um conhecimento sensível sobre o mundo. Segundo Nóbrega,

encontra-se em Merleau-Ponty uma atitude de “[...] convivência poética com o corpo,

por meio do logos estético; convida a uma abertura ao mundo e às configurações

desenhadas pelas experiências dos sujeitos.” (NÓBREGA, 2008. p. 147). A

pesquisadora Petrúcia da Nóbrega enfatiza o caráter corpóreo abordado por Merleau-

Ponty e aproxima a Fenomenologia de um mundo voltado aos sentidos, situando a

Filosofia não como detentora da verdade, mas como geradora de possibilidades

oriundas da existência humana.

Concordo, dessa forma, com a percepção de Nóbrega, segundo a qual a

Fenomenologia habita o sensível e “[...] pensa o mundo a partir do contato com o

espaço, o tempo, a presença e a animação do corpo através do movimento que

transforma o mundo em obra de pensamento, obra de linguagem, obra de arte.”

(NÓBREGA, 2015, p.98). Voltam-se as atenções para um aspecto humano em contato

com o mundo, que necessita dialogar com o decorrer constante de situações e

acontecimentos tão imprevisíveis quanto implícitos no fluxo da vida, negando um

conhecimento que se dê de modo puramente racional.

Para a pesquisadora brasileira Karenine Porpino, esse conhecimento se dá

igualmente a partir da sensibilidade, da arte: “Participar da criação de um objeto estético

é também criar a si mesmo, é poder tornar sempre a um começo repleto de horizontes

ilimitados e poder apreender a simbiose entre vários fenômenos de existência.”

(PORPINO, 2001, p. 113).

Conhecer, então, é aderir ao eterno movimento de criação de si, de novas formas

de conceber os arredores, de outrem, do mundo. Nesse movimento, antes de engessar ou

sentenciar um potencial cognitivo, busca-se ampliar a compreensão do fenômeno

investigado, considerando as possibilidades transformadoras da arte, tão dinâmicas

quanto variáveis, humanas e passíveis de encontros. Coaduno, assim, com o pensamento

de Porpino:

A arte modifica nossa existência com seu encanto ou sua brutalidade,

nos faz leves ou estupefatos. De uma forma ou de outra, modifica

nosso olhar, ao mesmo tempo em que a modificamos com o sentido

que criamos para ela e compartilhamos com outros apreciadores.

Assim a arte enlaça o criador e o apreciador no mesmo espaço

poético, que é sempre interminável (PORPINO, 2012, p. 5).

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A arte, para a autora, é capaz de ligar os seres humanos através das diversas

maneiras possíveis de ser. Nóbrega, também de acordo, afirma que: “A experiência

estética amplia a operação expressiva do corpo e a percepção, afinando os sentidos,

aguçando a sensibilidade, elaborando a linguagem, a expressão e a comunicação.”

(NÓBREGA, 2010, p 93). É necessário, portanto, que os aspectos artísticos estejam

presentes no cotidiano, ampliando as possibilidades perceptivas dos seres humanos e

potencializando suas referências estéticas e culturais.

É pertinente, também, a percepção da pesquisadora Márcia Strazzacappa, quando

postula que:

[...] se a arte só se produz nas práticas sociais, também só pode ser

aprendida pela mediação de outras pessoas. Não é o simples contato

esporádico com algumas obras e muito menos a mera estimulação

sensorial que fará com que alguém desperte uma sensibilidade para

linguagens artísticas. Assim, mais que entrar em contato com, há a

necessidade de se apropriar de, presente no fazer, experimentar,

arriscar, testar, todas atividades inerentes à criação.

(STRAZZACAPPA; SCHROEDER; SCHROEDER, 2005, p.77).

A atuação palhacesca no hospital se aproxima dessa lógica, tendo em vista sua

frequência de acontecimento, bem como as possibilidades de fazer com que os

espectadores se apropriem das ações cênicas, experimentem-nas e as componham. No

âmbito das vivências de cada indivíduo em contato com os outros e com o mundo,

mesclam-se singularidades na composição da pluralidade artística. Tal pensamento vai

ao encontro da seguinte concepção de Grotowski: “A arte não é a fonte da ciência. É a

experiência a que nos entregamos quando nos abrimos para os outros, quando nos

confrontamos com eles para nos entender [...] no sentido elementar e humano.”

(GROTOWSKI, 2011, p. 46). No contexto do hospital, o contato entre individualidades

resulta em criações de cunho coletivo, compostas por seres que vivenciam uma situação

de encontro no momento em que elas ocorrem.

Dada a recente constituição da atuação palhacesca hospitalar, foi necessário

contextualizar o universo em que ela acontece. Assim, no primeiro capítulo deste

trabalho, trago elementos que compõem um diálogo sobre a atuação das figuras

palhacescas na história da humanidade, bem como sobre características recorrentes

dessas figuras ao longo dos milênios.

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No segundo capítulo, traço os possíveis percursos que conduziram, com base em

estudos bibliográficos, as figuras palhacescas até os palcos hospitalares, onde

contemporaneamente muitas se estabelecem. Nessa parte do trabalho, situo a ONG

Doutores da Alegria, contexto em que parte da pesquisa foi realizada. No capítulo

terceiro, debruço-me sobre as experiências de palhaças e palhaços em contextos

hospitalares; trazendo para a discussão as três unidades de significados encontradas a

partir da redução fenomenológica do conteúdo das entrevistas cedidas para esta

pesquisa, que são o jogo cênico, o treinamento pessoal mesclado com as sensibilidades

de cada artista e a abertura para o encontro. Por fim, trago as considerações finais acerca

desta investigação nos âmbitos artístico e acadêmico.

Aproximando-se de um processo artístico criativo, a composição desta pesquisa

revelou uma constante necessidade de nutrir-me de conteúdos. Entre eles compartilho,

ao fim deste trabalho, no Apêndice A, uma lista de filmes que têm, direta ou

indiretamente, ligação com a atuação palhacesca hospitalar, já que abordam o universo

da criança, da ludicidade, da fantasia, da palhaçaria, da comicidade, dentre outros. Do

mesmo modo, trago, ao longo da escrita, imagens que auxiliam a caracterização do

fenômeno investigado e as experiências por ele geradas.

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2 PALHAÇAS E PALHAÇOS: RISOS COLETIVOS

José Luis Castro, o carpinteiro do bairro, tem a mão muito boa. A

madeira, que sabe que ele a ama, deixa-se fazer. O pai de José Luis

tinha vindo lá de uma aldeia de Pontevedra para o Rio da Prata. O

filho recorda o pai, o rosto aceso debaixo do chapéu-panamá, a

gravata de seda no colarinho do pijama azul celeste, e sempre, sempre

contando histórias desopilantes. Onde ele estava, lembra o filho, o riso

acontecia. De todas as partes vinha gente para rir, quando ele contava,

e a multidão se amontoava. Nos velórios era preciso levantar o ataúde,

para que todos coubessem – e assim o morto ficava em pé para escutar

com o devido respeito àquelas coisas todas, ditas com tanta graça. E

de tudo o que José Luis aprendeu de seu pai, isso foi o principal:

- O importante é rir – ensinou-lhe o velho.

- E rir juntos (GALEANO, 2015, p. 215).

Frequentemente, ao vivenciar a atuação de palhaças e palhaços, seja como

palhaça, seja como espectadora, chama-me a atenção o fato de que as pessoas costumam

unir-se em momentos de riso ou de estranhamento, e, mesmo entre os desconhecidos

que compõem uma plateia, acabam trocando olhares para concordar, duvidar ou

simplesmente partilhar o riso existente. No fragmento narrado pelo escritor uruguaio

Eduardo Galeano, até mesmo um defunto se junta aos vivos para celebrar a lição do

velho homem: a importância de que o riso seja coletivo.

Nos picadeiros circenses, nos palcos teatrais, nas praças ou nos corredores

hospitalares, outros seres se assemelham ao pai de José Luis. Tais seres promovem o

riso onde quer que estejam desencadeando a constituição de um elo entre eles e o

público, expresso pelo olhar, pela maneira de colocar-se no tempo e no espaço, pela

abertura com que se dão aos outros.

Ao encontrarem-se com as possibilidades abertas pelas figuras palhacescas e com

seu fulgor, os espectadores vivenciam momentos em que estão juntos, compreendendo-

se como seres indivisíveis em momentos de riso. A interação com as figuras

palhacescas pode compor uma maneira de existir que é compartilhada através de

símbolos comuns, a ponto de os espectadores conectarem suas vidas com a coletividade

da existência.

Igualmente, por parte dos seres que desencadeiam o riso, faz-se necessária uma

abertura para a coletividade da existência, para a percepção de suas ações. Assim, o

velho homem, ao contar suas histórias, devia perceber a presença dos ouvintes,

conectando-se com eles. A composição artística das palhaças e dos palhaços não ocorre

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de modo individual, pelo contrário, desenvolve-se a partir do contato com outras

existências artísticas, humanas e sociais. No momento do encontro com espectadores;

com profissionais e mestres da palhaçaria e com base em uma memória milenar

constituída por figuras cômicas que perpassam a história da humanidade, constitui-se a

atuação palhacesca, propondo coletividades permeadas pelo riso.

É válido, nesse sentido, considerarmos o relato de Ésio Magalhães, criador do

Palhaço Zabobrim, quando diz que: “[...] palhaço não se faz sozinho, é o resultado de

muitos elementos. Tantos dos mestres que vieram antes como das suas referências

estéticas e de todo o trabalho dos palhaços que nos antecederam. É resultado do

imaginário do público e do seu senso de humor.” (Ésio Magalhães) 5

. Seja em palcos

convencionais, tais como os de rua, teatros e picadeiros circenses, seja em espaços

alternativos, como o hospital, destaca-se a coletividade atrelada à composição

palhacesca, bem como ao riso que ela gera, igualmente propenso às coletividades.

Assim, trago no presente capítulo um diálogo com a coletividade do riso

palhacesco, seguido de uma discussão sobre a etimologia das palavras palhaça, palhaço

e clown, utilizados nesta pesquisa nos sentidos que lhes são os mais atribuídos

contemporaneamente. Após esse levantamento, perpasso por traços históricos deixados

pelas figuras palhacescas ao longo de milênios, bem como por aspectos de sua

existência presentes na atualidade. Por fim, focalizo aquele que aqui é tido como um dos

principais aspectos das figuras palhacescas: a abertura que elas necessitam cultivar para

a alteridade, uma vez que que sua atuação busca desencadear risos coletivos.

Para a pesquisadora Karenine Porpino, a partir da arte,

[...] estamos atados ao outro mesmo quando sequer o conhecemos. O

artista sabe ou intui essa aproximação quando cria as suas obras a

exemplo e semelhança de si mesmo, a exemplo de seus modos de

habitar o tempo e o espaço. Todos vivemos essas possibilidades

diversas, e é o compartilhar desses modos diferentes de ser que nos

liga pela arte. (PORPINO, 2012, p.7).

As palhaças e os palhaços, considerados como existências coletivas, evidenciam

essas ligações humanas, uma vez que são as experiências advindas dessas relações que

compõem seu trabalho em qualquer âmbito de atuação.

5 A entrevista concedida por Ésio Magalhães será publicada na íntegra pela revista Urdimento, n.º 28 do

Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, com lançamento

previsto para julho de 2017.

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Nessa mesma direção, Grotowski salienta que “[...] o teatro é um ato engendrado

por reações e impulsos humanos, por contato entre as pessoas.” (GROTOWSKI, 2011,

p. 45). Sem o contato entre seres humanos, afirma o autor, torna-se impossível a

concretização do ato teatral, já que a arte é “[...] a experiência que adquirimos quando

nos abrimos para os outros, quando nos confrontamos com eles, a fim de nos

compreendermos melhor [...] num sentido elementar e humano.” (GROTOWSKI, 1971,

p. 43).

O Teatro pode acontecer sem a utilização de figurinos, cenários, iluminação,

maquiagem, porém um acontecimento teatral exige minimamente o encontro entre um

ator e um espectador (BROOK, 1999). Tal conjunção, em seus aspectos elementares, já

pressupõe uma coletividade, ao menos estabelecida entre dois seres que se encontram.

Ampliando as proporções cênicas do encontro, esse fator coletivo muitas vezes estende-

se ao posicionamento cotidiano dos espectadores, que se põem a olhar para os lados em

busca de compartilhar suas experiências momentâneas.

Os espectadores tornam-se cúmplices de um acontecimento que oferece certa dose

de transgressão ao cenário cotidiano. Essa transgressão, explica Bolognesi, dialoga com

os números cômicos, que “[...] ao explorar os estereótipos e situações extremas,

evidenciam os limites psicológicos e sociais do existir.” (BOLOGNESI, 2006, p.14). Ao

vivenciar a experiência da atuação palhacesca, os espectadores tornam-se aliados na

subversão da existência, pois compõem junto das palhaças e dos palhaços o risco de

extravasar a mecanicidade impregnada no cotidiano, criando novas possibilidades de

existir coletivamente.

As figuras palhacescas, uma vez que desconstroem as limitações impostas pela

repetição de ações cotidianas, encontram maneiras de reinventar as relações humanas, e

mesmo no ato de repetir realizam maneiras inovadoras de se relacionar. Nesse sentido, o

tom que o filósofo francês Gilles Deleuze dá para a repetição aproxima-se daquele

empregado pelas figuras palhacescas, que se afastam da rigidez mecânica, da

linearidade. O autor propõe que “[...] o evento repetido seja recriado em um sentido

radical: ele (re)surge a cada momento como Novo.” (DELEUZE, 1988, p. 11). Para as

figuras palhacescas, assim como para Deleuze, repetir não se trata de fazer igual.

O conceito de repetição em Deleuze diz respeito a uma repetição que se encontra

oculta, em que um diferencial sempre se desloca e disfarça. Implícito em toda a

repetição, esse diferencial é o seu correlato. O filósofo aponta que “[...] é a diferença

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que dá a ver e que multiplica os corpos; mas é a repetição que dá a falar e que

autentifica o múltiplo, que dele faz acontecimento espiritual.” (DELEUZE, 2003, p.

298).

Repetir, desse modo, no contexto das figuras palhacescas, pode ser também uma

forma de portar memórias milenares, conectar-se com a ancestralidade dessas

manifestações. A multiplicidade dos elementos cômicos, que brotam da historicidade

dos seres, caminha ao encontro do novo no mundo, multiplicando-se através da

diferença.

Deleuze, ao conceituar a diferença, ensina que ela não se dirige para a oposição ou

para a contradição, uma vez que não é compreendida como subordinada ao idêntico

(DELEUZE, 1988). Assim, mesmo na repetição há alguma diferença, haja vista o fluxo

constante de transformações a que estamos sujeitos no cotidiano.

Esse fluxo, a todo o momento, nos faz ultrapassar as fronteiras daquilo que

passou, ampliando-se, por conseguinte, as possibilidades de perceber para além do que

está dado, abrindo-se novos horizontes. Já não é o mesmo corpo que repete, tampouco a

mesma atmosfera que se instaura, o mesmo clima, a mesma luminosidade. Uma brisa

que ora adentra o espaço, antes poderia não existir. Estamos constantemente sujeitos a

novas configurações de existência, a novos horizontes, a novos encontros.

Ao trilharem seus horizontes, as figuras palhacescas têm um diferencial em

relação aos demais seres que habitam espaços hospitalares, e uma semelhança

primordial com o universo da criança: a liberdade do compromisso com o real. Esse

diferencial acaba por despertar a curiosidade daqueles que entram em contato com as

palhaças e os palhaços, aproximando-os destes e afastando-os do universo cotidiano. Se,

como afirma Merleau-Ponty, “[...] os fantasmas são fragmentos do mundo claro, e

tomam-lhe todo o prestígio que possam ter.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.387), a vida

cotidiana fornece resquícios daquilo que no corpo das palhaças e palhaços transforma-se

em arte, em teatralidade, em novas possibilidades de vida, em um movimento que

permite a coexistência entre repetição e diferença.

Incitando relações de cumplicidade, as figuras palhacescas utilizam-se de

ferramentas do riso, que ampliam a disponibilidade do espectador para a interação entre

si e os artistas. O riso, assim, pode significar uma das principais ferramentas das

palhaças e dos palhaços, e quiçá um de seus principais objetivos de existência, pois tem

o poder de conectá-lo com outrem. Para Bergson, o riso é tido como um fenômeno

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social, mas também psíquico: perante os olhos do espectador, a comicidade surge

através da observação das falhas humanas, em certo tom de correção (BERGSON,

2004).

Evidenciando essas falhas, as figuras palhacescas colocam-se na posição de

espelho, onde os espectadores veem refletidas vivências humanas distorcidas pelo filtro

do erro, do não convencional. Bergson privilegia as vivências pessoais no riso,

situando-o exclusivamente no âmbito humano, uma vez que, para ele, “[...] não há

comicidade fora do que é propriamente humano.” (BERGSON, 2004, p. 3). Sendo

assim, mesmo em se referindo a objetos inanimados ou a animais que façam rir, vale

salientar que um animal só será cômico quando encontramos nele uma atitude ou uma

expressão humana (BERGSON, 2004). O autor lembra ainda que o riso é um ato

coletivo, dado a partir de determinado grupo de pessoas (BERGSON, 2004).

Para Vladmir Propp, teórico russo, “[...] em poucas palavras, o riso nasce da

observação de alguns defeitos no mundo em que o homem vive e atua.” (PROPP, 1992,

p. 173, 174). O autor afirma que o riso é relativo ao ser humano, evidenciando que este

é passível a defeitos ou a distorções na ordem do mundo. Nas perspectivas de Bergson e

Propp, encontramos alguns dos que seriam os pressupostos criativos fundamentais da

comicidade, tais como a investigação e a observação do ser humano e de suas relações

com o erro, as falhas, o não habitual, com aquilo que pode surpreender.

Para Bergson, o riso pode acontecer de maneira precisa, como uma lei da

natureza: ou seja, sempre será desencadeado quando houver uma causa. Propp contesta

essa tese, afirmando que “[...] pode-se dar a causa do riso, porém é possível existirem

pessoas que não riem e que não é possível fazer rir. A dificuldade está no fato de que o

nexo entre o objeto cômico e a pessoa que ri não é obrigatório nem natural. Lá, onde um

ri, o outro não ri.” (PROPP, 1992, p. 31). Cada ser humano, imbuído das experiências de

seu mundo vivido, fará diferentes associações relativas ao que é risível para si. Essa

compreensão denota a subjetividade e a peculiaridade do riso, embora não exclua o fato

de que o riso também ocorre de modo coletivo.

Bergson, ao afirmar algumas leis que seriam matematicamente geradoras da

comicidade, fornece estofo para reflexões sobre a composição técnica da comicidade,

como, por exemplo, a inversão de séries, a repetição e a rigidez mecânica (BERGSON,

2004).

Propp salienta o fato de que o caráter singular de cada indivíduo deve ser levado

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em consideração, porém ampara a discussão a partir da presença de mecanismos que

levam ao riso, tais como o da paródia, da comicidade da semelhança/diferença, do

homem-coisa, entre outros. O autor se atém ao campo popular e folclórico, organizando

ampla gama de objetos risíveis, bem como os tipos de riso desencadeados por eles.

Propp, entre os diversos tipos de riso, focaliza o riso de zombaria (PROPP, 1992).

No mesmo âmbito, o pesquisador russo Mikhail Bakhtin identificou na

comicidade uma forma de inverter coletivamente os padrões estéticos e oficiais,

observando principalmente os aspectos grotescos da existência humana como

transformadores da realidade.

Na obra “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de

François Rabelais”, Bakhtin apresenta sua teoria sobre a cultura cômica popular na

Idade Média e no Renascimento. A concepção apresentada por Bakhtin coloca o

carnaval como espaço de inversão hierárquica, onde se instaura o privilégio dos

excluídos, marginalizados, periféricos, grotescos (BAKHTIN, 1999). Nesse contexto, o

autor afirma que a partir do riso carnavalesco: “[...] revoga-se antes de tudo o sistema

hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc., ou

seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra

espécie de desigualdade entre os homens.” (BAKHTIN, 1981, p. 105).

O riso libertador surge como forma de oposição ao tom sério e repressor da

sociedade, como um intento de libertação. Esse mesmo riso é capaz ainda de libertar o

indivíduo para além dos parâmetros exteriores, sociais, mas também, segundo o autor,

“[...] do censor interior, do medo do sagrado, da interdição autoritária, do passado, do

poder, medo ancorado no espírito humano há milhares de anos.” (BAKHTIN, 1999, p.

81).

Para o pesquisador Larrosa,

O riso destrói as certezas. E especialmente aquela certeza que

constitui a consciência enclausurada: a certeza de si. Mas só na perda

da certeza, no permanente questionamento da certeza, na distância

irônica da certeza, está a possibilidade do devir. O riso permite que o

espírito alce voo sobre si mesmo. O chapéu de guizos tem asas. E não

venham vocês me dizer que o riso é perigoso. O riso é, certamente,

ambíguo e perigoso. Como os livros, como as viagens, como os jogos,

como o vinho, como o amor (LARROSA, 2010, p. 181).

Atribuído historicamente ao aspecto coletivo, libertador, transgressivo, inovador, a

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aquilo que é fora do comum na vida das pessoas, o riso pode manifestar-se intermediado

por personagens ou figuras cômicas que permeiam a história da humanidade. A partir de

uma interação diferenciada com o mundo, tais figuras abrem espaços ficcionais onde os

espectadores tornam-se criadores de uma cena viva fundada no encontro.

Portadores de coletividades, os seres palhacescos promovem transgressões ao

cenário cotidiano e fornecem a quem com eles interage o poder da união entre seres

humanos em atos que extravasam a normalidade do dia a dia.

Haveria, por exemplo, possibilidades para uma corrida sobre rodas em um

corredor hospitalar? Segundo a lógica palhacesca, seria fácil. Basta haver os

competidores, a pista, a linha de chegada, os veículos e a criatividade dos artistas e

espectadores. No espaço permeado pela lógica palhacesca, rompem-se os

impedimentos, fortemente atrelados às convenções sociais. Dessa forma, poucas

são as situações impossíveis de se concretizar, como podemos ver na imagem a seguir:

Figura 2 - Corrida de cadeiras com Doutor Lui (Luciano Pontes).

Fonte: <http://www.kickante.com.br/campanhas/doutores-da-alegria-apoie-nosso-projeto>.

Acesso em 25/07/2016.

Diversas são as terminologias empregadas para denominar essas figuras que têm

por objetivo trabalhar profissionalmente com os aspectos risíveis e aglutinadores da

humanidade. Tendo por meio de expressão a menor máscara do mundo (LECOQ,

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1997), palhaças, palhaços, clowns, bobos, excêntricos, augustos, jograis, cômicos, entre

outros (VIVEIROS DE CASTRO, 2005) estão fortemente atrelados à subversão na

humanidade. Essas figuras transitam pelo mundo e parecem renovar-se ao longo dos

tempos, adaptando-se ao olhar da sociedade e assumindo novos espaços de atuação.

Buscando dialogar com o percurso que conduziu as figuras palhacescas até a

atuação em espaços hospitalares, foi realizada para esta pesquisa uma investigação

bibliográfica cujos principais marcos estão expostos a seguir. Inicialmente saliento que,

dentre as diversas denominações dadas ao longo da história para estas figuras cômicas,

mantenho o emprego dos termos mais utilizados contemporaneamente: palhaças,

palhaços e clowns.

A opção aqui tomada, de usar tais termos como equivalentes, coaduna com a

proposição do pesquisador Roberto Tessari, ao afirmar que: “[...] tanto na língua

comum quanto na linguagem especializada do teatro, hoje, não existe nenhuma

diferença entre a palavra palhaço e a palavra clown, pois as duas palavras se confundem

em essências cômicas.” (TESSARI apud DORNELES, 2003, p. 26).

Vale considerar, ainda, que contemporaneamente o trabalho das mulheres na

palhaçaria ganhou bastante destaque, sendo que hoje não é mais possível abordar esse

universo apenas a partir de um termo no gênero masculino. Compreendo que

historicamente o universo palhacesco esteve bastante atrelado ao masculino, mas

atualmente essa arte é igualmente desenvolvida por homens e mulheres, portanto, ao

referir-me à palhaçaria, refiro-me tanto às palhaças quanto aos palhaços.

O termo “clown”, que não apresenta marca de gênero, vem, segundo o

pesquisador Roberto Ruiz do inglês “clod”, termo diretamente relacionado à ideia de

rústico, de campo. A expressão de origem inglesa, ao que tudo indica, data do século

XVI (RUIZ, 1987). O pesquisador Mário Fernando Bolognesi, em seu livro Palhaços,

aponta essa palavra como referente a uma figura grosseira e desajustada (BOLOGNESI,

2006). O historiador John Towsen, por sua vez, afirma que o termo remete a “colonus”,

espécie de pessoa rústica, do campo (TOWSEN, 1976).

O termo palhaço adaptou-se do italiano “paglia”, traduzido ao português como

“palha”. Segundo Roberto Ruiz, tal associação deu-se pelo fato de que inicialmente a

roupa do “paglia” era feita do mesmo material utilizado na fabricação de colchões, que

também era utilizado para proteger os artistas das quedas empregadas como recurso

cômico (RUIZ, 1987).

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O termo “palhaça”, nesse sentido, significa o feminino de palhaço. Talvez essa

colocação seja bastante óbvia, porém percebe-se que embora atualmente o trabalho das

mulheres no universo palhacesco esteja bastante popularizado, a maior parte das

referências a essas figuras se dá no gênero masculino: “o palhaço”. Essa percepção

inquieta e mobiliza minha busca por uma atitude distinta, ao referenciar a palhaçaria

como uma arte também construída por nós, mulheres: as palhaças.

Historicamente a atuação de mulheres em palcos teatrais, de modo geral, foi

proibida. Dos saltimbancos greco-romanos aos atores de Shakespeare, todos os papeis,

inclusive os femininos, eram interpretados pelos homens. Os primeiros indícios da

inserção feminina nos palcos teatrais do Ocidente são encontrados na commedia

dell’arte. Contemporaneamente, as mulheres palhaças vivem um movimento crescente,

segundo Michelle Silveira, idealizadora e editora da revista Palhaçaria Feminina6. Para

ela, esse novo espaço organizativo das mulheres palhaças é “[...] forte e vem se

consolidando a cada ano, com iniciativas que se unem no movimento de valorização,

qualificação e profissionalização das mulheres palhaças.” (SILVEIRA, 2014, p. 01).

Cada vez mais inseridas nos espaços de atuação palhacesca, as mulheres trazem novas

contribuições para a arte da palhaçaria, através da pesquisa pela perspectiva feminina.

Segundo Nara Menezes, palhaça pela Companhia Animèe, de Recife (PE), “[...]

existem precursoras como Gardi Huter, Nola Era e Hilary Chaplain. Na América Latina

Lila Monti, Mariana Barbera, abriram caminho, e no Brasil as Marias da Graça

começaram a atuar como o primeiro grupo de palhaças [...].” (MENEZES, 2014, apud.

SILVEIRA, 2014, p. 22). Esse movimento mundial de busca por uma identidade das

mulheres palhaças desembocou na realização de importantes encontros e festivais

nacionais e internacionais de palhaçaria feminina, tais como o Encontro Internacional de

Mulheres Palhaças (SP), o Esse monte de mulher palhaça (RJ), o Encontro Internacional

de mulheres palhaças (DF) e o Clownin (Viena, Áustria).

A presença das mulheres nos contextos artísticos é tão inegável quanto constante,

sendo possível identificar uma forte onda de expansão da atuação feminina na arte da

palhaçaria. Se antes a presença das mulheres na construção da cena teatral era proibida,

atualmente é fundamental e contundente. Compreendendo assim as vastas contribuições

6 A Revista Palhaçaria Feminina foi criada em 2012 e é composta por artigos, textos, entrevistas e relatos

de mulheres palhaças do Brasil e do mundo. Atualmente, na sua terceira edição, a revista aborda os

espaços de atuação de mulheres no Brasil (SILVEIRA, 2014).

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das mulheres palhaças para a pesquisa palhacesca contemporânea, atribuímos também a

elas a construção desse ofício.

Reiterando a equivalência dos termos palhaça, palhaço e clown, o pesquisador

Luís Otávio Burner, fundador do grupo Lume de teatro, explica que “[...] clown e

palhaço são termos distintos para se designar a mesma coisa.” (BURNIER, 2001, p.

205). Apesar da afirmação, o autor reconhece diferenças em relação à linha de trabalho

dessas figuras cômicas, sendo que em seu trabalho específico atém-se ao termo clown:

Como, por exemplo, os palhaços (ou clowns) americanos, que dão

mais valor à gag, ao número, à ideia; para eles, o que o clown vai

fazer tem um maior peso. Por outro lado, existem aqueles que se

preocupam principalmente com o como o palhaço vai realizar seu

número, não importando tanto o que ele vai fazer; assim, são mais

valorizadas a lógica individual do clown e sua personalidade; esse

modo de trabalhar é uma tendência a um trabalho mais pessoal.

Podemos dizer que os clowns europeus seguem mais essa linha.

Também existem as diferenças que aparecem em decorrência do tipo

de espaço em que o palhaço trabalha: o circo, o teatro, a rua, o cinema,

etc. (BURNIER, 2001, p. 205).

Tendo estudado na França com os pesquisadores Etiene Decroux e Jacques

Lecoq7, Burnier desenvolveu seu trabalho voltado para o clown próximo de uma

concepção europeia. O grupo Lume de teatro, fundado por Burnier há trinta e um anos,

exerceu grande influência sobre as Artes Cênicas no Brasil, e consequentemente a

vertente do clown trazida por Burnier difundiu-se em nosso contexto. O artista Ricardo

Pucceti, ator do grupo, aprofundou sua pesquisa sobre o clown e atualmente é

considerado referência no país.

Como observou a pesquisadora Patrícia Sacchet, essas diferenças nas linhas de

trabalho também são vistas por Bolognesi. O autor as considera, sobretudo, no que

tange aos modos de interpretação. Bolognesi (2006 apud SACCHET, 2009)acredita na

diferença existente entre o palhaço circense e o palhaço teatral, afirmando que essa

distinção significaria uma nova etapa na história dos palhaços. O pesquisador afirma

ainda que existem diferenças significativas no âmbito de atuação e encenação: “[...] no

ambiente épico do circo e no dramático do teatro, talvez a diferenciação seja proveitosa,

pois demarca possivelmente uma nova história na vida dos clowns, desta feita voltada

7 Jacques Lecoq fundou em 1956, na França, sua escola. No ano de 1962 inseriu o estudo do clown. Esta

pedagogia difundiu-se, e atualmente, apesar de existirem muitas maneiras de trabalho com o clown, a

maioria está direta ou indiretamente relacionada com a pedagogia de Lecoq (SACCHET, 2009).

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para o palco teatral, seja ele em espaços fechados, em ruas ou praças.” (BOLOGNESI,

2006, p. 15 apud SACCHET, 2009, p. 22).

A partir dessa diferenciação, pode-se pensar que, no contexto brasileiro, as

palhaças e os palhaços estariam mais voltados para a atuação dentro dos parâmetros

circenses, e os clowns, aos teatrais. Essas duas linhas de trabalho têm especificidades

técnicas e estéticas. Buscando salientar tais diferenças, a pesquisadora Daniele Pimenta

postula que em relação aos palhaços circenses, a criação da figura palhacesca se dá

através de recursos exteriores, tais como o treinamento técnico de quedas, batidas,

acrobacias, sequências cômicas. Nesse âmbito, “[...] a escolha das roupas e da

maquiagem tem muitas referências de outros palhaços, e leva sempre em consideração o

efeito visual na relação picadeiro e plateia (com capacidade para cerca de 2000 pessoas

ou mais).” (PIMENTA, 2006, p. 23).

Em relação ao clown teatral, para Pimenta, o processo de composição se dá “[...]

de modo mais lento, interiorizado e, consequentemente, muito particular. Explora-se

uma gama de possibilidades expressivas que busca também um intimismo que não

caberia no picadeiro, o lirismo, e, portanto, uma emotividade mais delicada.”

(PIMENTA, 2006, p. 23). Os apontamentos levantados por Pimenta em relação às

especificidades na atuação de palhaças e palhaços circenses ou de clowns teatrais, como

vimos, dialogam com a realidade espacial como componente das técnicas de atuação,

bem como com os aspectos estéticos da cena.

Nos hospitais são outras as especificidades que movem a atuação palhacesca, uma

vez que se exige dos artistas uma postura de abertura para a proximidade com os

espectadores. Nestes ambientes as linhas adotadas por palhaças e palhaços podem

mesclar elementos dos palcos e dos picadeiros durante as atuações, porém lidam com a

necessidade de desenvolver técnicas e sensibilidades específicas no contexto hospitalar.

No espaço dos picadeiros circenses ou dos palcos teatrais exige-se uma postura

corpórea das figuras palhacescas que ora tendem a evidenciar aspectos mais visuais e

amplos, ora mais contidos e sutis. Esses espaços delimitam também a permeabilidade

das relações entre artistas e plateia. Nas imagens colocadas a seguir, trazemos de um

lado a clown construída pela atriz Naomi Silman e o palhaço circense Chicarrão, vivido

pelo artista José Carlos Queirolo. Nelas podemos perceber que são bastante distintas as

composições estéticas de um e de outro: na primeira percebemos mais sutileza, e na

outra o emprego de mais recursos visuais.

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Figura 3 - Espetáculo O Não Lugar de Ágada Tchainik, com a clown Naomi Silman (Lume Teatro).

Fonte: <http://www.sescsp.org.br/programacao/26863_o+naolugar+de+agada+tchainik>.

Acesso em 05/08/2016.

Figura 4 - Palhaço circense Chicharrão, José Carlos Queirollo

Fonte: <http://blogln.ning.com/profiles/blogs/em-2011-espaco-para-o-circo>. Acesso em

05/08/2016.

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O palhaço Chicarrão, acima retratado, nascido em família circense no ano de 1889

em Bagé, no Rio Grande do Sul, formou seu aprendizado a partir das apresentações

circenses e dos saberes transmitidos pela família e por artistas mais antigos nos Circos

do Brasil, Argentina e Uruguai, onde atuou com frequência. Naomi Silman, por outro

lado, atriz do grupo Lume Teatro, graduou-se em Artes Cênicas pelo Goldsmith’s

College, da Universidade de Londres, e aprofundou seus conhecimentos na arte de atriz

na École Philippe Gaulier e na École International du Théâtre, de Jacques Lecoq, ambas

em Paris. A partir da formação desses dois artistas, podemos pensar as bases da atuação

palhacesca contemporânea no Brasil, composta a partir dos saberes circenses portados

através de gerações, bem como das influências do clown da Europa.

Atualmente as distinções entre palhaças, palhaços e clowns, como percebemos a

partir dos comentários dos autores destacados, não estão restritas apenas à

nomenclatura, mas também à multiplicidade de referências, bem como à potencialização

do acesso às diversas maneiras possíveis de se trabalhar. Nota-se, ainda, constantes

espaços de fricção entre os ditos palhaços circenses e aqueles teatrais ou clownescos. As

diferenças estão, sobretudo, vinculadas às experiências de cada artista, que, em meio a

tantas e tão difusas técnicas, busca seus meios de atuação.

Heraldo Firmino, com sabedoria e simplicidade, conta que, no Brasil, “Você

chega na frente de uma criança, ela não vai olhar para você e falar: -Oi, clown! Ela vai

falar: -Oi, palhaço! Então palhaço é palhaço.” (Heraldo Firmino). Opto, assim, por

utilizar nesta pesquisa o termo “palhaço”, em português, acompanhado também do seu

emprego no gênero feminino, “palhaça”. No intuito de reconhecer que seres de ambos

os gêneros são de extrema importância para a constituição da palhaçaria, empregamos

também a expressão figuras palhacescas, capaz de contemplar as construtoras e os

construtores desse ofício.

Percebe-se, nos dias atuais, uma permeabilidade técnica capaz de reinventar a

composição artística e de alimentá-la de fontes diversas. Há, ainda, um livre acesso a

múltiplas vertentes palhacescas, assim como uma permissividade por parte dos artistas,

que podem utilizar-se de técnicas circenses, de técnicas teatrais e da cultura popular em

geral.

No âmbito palhacesco, vale a singularidade criativa de cada artista posta em jogo

com as circunstâncias do presente. Composta de uma memória ancestral e proposta em

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momentos de encontro com o público, essa singularidade de ação ao longo dos tempos

parece repetir-se tanto quanto renovar-se.

Não restritos aos palcos, picadeiros, praças e espaços convencionais da cena, as

palhaças e os palhaços fazem emergir suas contradições, mistérios e enigmas em

diversos âmbitos sociais. Aqui, a investigação tem foco no hospital, mas para isso foi

necessário desvelar as outras rotas perpassadas por essas figuras ao longo da história até

que nele pudessem se estabelecer.

Para Burnier, os tipos cômicos trazem consigo elementos de uma genealogia e

portam traços recorrentes na história da humanidade. Conforme a sua lógica, bufões e

bobos da Idade Média; personagens imortais da commedia dell'arte; o palhaço do circo

e o clown “[...] possuem uma mesma essência: colocar em exposição a estupidez do ser

humano, relativizando normas e verdades sociais.” (BURNIER, 2001, p.34).

Durante as celebrações e ritos religiosos, bem como nas representações cênicas

populares da Antiguidade, por exemplo, sempre esteve presente uma oscilação entre o

sagrado e o profano, fator que autoriza a convivência com a comicidade. Segundo

Burnier, essa alternância é um fato que se repete em povos distintos, “[...] dos gregos até

os aborígines da Nova Guiné, passando pelos europeus da Idade Média ou pelos

lamaístas do Tibete.” (BURNIER, 2001, p. 34).

A pesquisadora Alice Viveiros de Castro nos diz que o palhaço está presente em

todas as culturas e que “[...] a mais antiga expressão do personagem é a que se faz

presente nos rituais sagrados. Desde o início dos tempos, o riso foi e ainda é utilizado

como elemento ritual para espantar o medo, especialmente o medo da morte.”

(VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p.18).

A existência das figuras cômicas é milenar. Sua presença vibra em rituais tribais e

celebrações antigas, festividades religiosas, feiras populares, picadeiros circenses,

palcos teatrais, principalmente os enraizados na vida popular. De origem controversa, as

palhaças e os palhaços possuem facetas misteriosas. Segundo o pesquisador John

Towsen:

Sem dúvida os clowns foram aparecendo e desaparecendo desde o

início dos tempos, e sua tradição foi tirada do “ói nós aqui outra vez!”

evoca a chegada de todo um universo de clowns. Este mundo é tão

diversificado quanto a própria vida, já que o herói de nossa história

pode ser encontrado em um número surpreendente de disfarces, das

aulas de clown aos bobos da corte; do encantador povoado indiano de

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cheyenne “contrary”; no teatro, no rodeio e no circo. São todos

clowns, e, no entanto, as diferenças entre eles são tão completamente

fascinantes quanto suas similaridades (TOWSEN, 1976, p. 04 apud.

SACCHET, 2009).

Componentes do imaginário popular, essas figuras cômicas são calcadas na

humanidade, em suas fraquezas, quedas e erros, revelando-os através do filtro da

comicidade. Assim como salientou Towsen, o universo palhacesco é tão amplo como a

própria vida, e é impossível definir o surgimento das palhaças, palhaços e clowns. As

figuras cômicas certamente não são invenção ou descoberta de uma única pessoa, que

imortalizou sua forma, mas componentes de um conjunto social, pois na sociedade

sempre houve espaço para os fatores risíveis da existência. Essas figuras passaram e

passam por um perpétuo movimento de redescoberta, e, para Towsen, “[...] como bobo,

Jester ou Trickster – elas encontram razões suficientes nas necessidades humanas.”

(TOWSEN, 1976, p. 04 apud. SACCHET, 2009). Conservando traços recorrentes na

história da humanidade, palhaças e palhaços estabelecem-se nas sociedades gerando

risos coletivos e modificando, com elas, suas possibilidades de existência.

As figuras cômicas fazem parte de frondosa tradição, sendo que uma das suas

mais antigas manifestações no contexto ocidental pode estar situada na chamada farsa

atellana. Surgida na cidade de Atella, tal manifestação teatral é remetida ao século IV

a.C.. Nas farsas, histórias de fácil assimilação por parte do público que dialogavam com

sátiras sociais da atualidade, eram utilizadas máscaras que concerniam aos tipos físicos

nelas representados (DE FREITAS, 2008). Para a pesquisadora Nanci de Freitas, a farsa

atellana teria sido composta pelos seguintes tipos/personagens fixos:

Pappus, um velho libidinoso, bonachão e ridículo, constantemente

enamorado de mocinhas e vítima de pilhérias; Dossenus, um corcunda

astucioso, com pretensões de filósofo e linguajar empolado,

contrastando com a fala dos camponeses; Baccus e Maccus, uma

dupla de glutões, sendo Baccus um camponês grosseiro, idiota,

guloso, bêbado e infeliz nas aventuras amorosas, enquanto Maccus era

um tipo fanfarrão, esperto e avarento, sempre se vangloriando de suas

torpezas (DE FREITAS, 2008, p. 67).

O comediógrafo Plauto (255 a.C. – 185 a.C.), para a autora, “[...] tornou-se

célebre por conseguir dar forma literária a estas manifestações antigas do teatro popular,

dando-lhes feições de personagens.” (DE FREITAS, 2008, p. 67). Essas manifestações

teatrais populares apresentaram características que mais tarde foram reencontradas nos

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personagens da commedia dell’arte, tais como a conotação popular das ações cênicas, a

representação teatral, a sátira social e a sátira humana.

Surgida por volta do século XVI na Itália, a commedia dell’arte, assim como a

farsa atellana, utilizava-se de máscaras e tipos fixos em sua construção cênica.

Originalmente, a commedia dell’arte não se utilizava de textos dramáticos, mas sim de

roteiros de intrigas que serviam como suporte para as improvisações denominados

canovacchios ou sogettos (BERTHOLD, 2014). Ao longo de repetidas representações,

as atrizes e os atores dell’arte acumulavam um repertório pessoal de situações, recursos

cômicos e técnicas corporais, tornando-se mestres de seu ofício, como explica o

pesquisador Dário Fo:

Os cômicos possuíam uma bagagem incalculável de situações,

diálogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memória,

as quais utilizavam no momento certo, com grande sentido de timing,

dando a impressão de estar improvisando a cada instante. Era uma

bagagem construída e assimilada com a prática de infinitas réplicas,

de diferentes espetáculos, situações acontecidas também no contato

direto com o público, mas a grande maioria era, certamente, fruto de

exercício e estudo (FO, 1999, p. 17).

Esses cômicos, muitas vezes, desempenhavam ao longo de décadas o mesmo

papel nas representações, desenvolvendo profunda conexão com o personagem

interpretado. Podemos pensar a organização dos personagens ou tipos fixos da

commedia dell’arte hierarquicamente, e, ainda, dividi-los em três grupos centrais: os

servos, os nobres e os enamorados. No primeiro grupo encontram-se Arlecchino,

Briguella, Colombina, Punchinello, Zanni, entre vasta gama de personagens populares

de gênero feminino ou masculino, representantes das classes baixas da população. No

segundo, encontram-se Pantalone, Dottore e Capittano, representantes dos (pretensos)

ricos, letrados, cultos. Estes, normalmente vinculados ao “mundo das aparências”, são

constantemente ridicularizados em razão de seus defeitos, tais como a avareza, a gula, a

fome sexual, a covardia. No último grupo estão os enamorados, que figuram como

jovens pueris, movidos pela inocência e pelo intento de permanecer ao lado de sua

amada ou seu amado. Normalmente são filhas e filhos dos nobres Dottore e/ou

Pantalone e possuem índole bondosa, posta muitas vezes em oposição à índole dos

nobres e dos servos.

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A exacerbação dos defeitos e a busca pela comicidade sempre foram motrizes da

commedia dell’arte, fatores que “transpiram nos poros” de seus personagens tipificados.

Ridicularizando a própria estrutura social em que foram estigmatizados, repetem de

forma única os acontecimentos da vida humana, exagerando-os com o objetivo de trazê-

los para o presente. Os vícios, os defeitos, as escatologias, as quedas, os tropeços, e

também as virtudes, os malabarismos, as acrobacias, eram representados em praça

pública por meio de figuras cômicas fortemente atreladas à vida popular.

Esse gênero de teatro, que se difundiu pela Europa entre os séculos XVI e XVIII,

influenciou e ainda influencia diversas criações teatrais. O dramaturgo, comediógrafo,

ator e encenador francês Molière (1622 – 1673) foi fortemente influenciado por esse

movimento teatral, tendo sido reconhecido mundialmente por transpor a dramaturgia do

improviso popular para o gênero literário. Aprofundando a composição dos personagens

por meio de seus diálogos, assim como o fez Plauto a partir das farsas atellanas,

Molière retomou elementos recorrentes na história da comicidade.

O pesquisador José Fernando Marques de Freitas Filho afirma a existência de

traços cômicos recorrentes ao analisar as peças “A comédia da marmita”, do

comediógrafo romano Plauto, “O avaro”, do dramaturgo e ator cômico Molière, e “O

santo e a porca”, do escritor nordestino Ariano Suassuna (1927-2014). Esses textos,

segundo Freitas, demonstram a recorrência de recursos cômicos e o “[...] poder crítico

do gênero, que exagera e deforma o real com vistas a melhor representá-lo.” (FREITAS,

2012, p. 1).

Através dessa relação, traçada antes por Sábato Magaldi (1997), Freitas afirma

que “[...] denunciando os defeitos humanos, o gênero cômico mantém viva, atual, uma

tradição longa e coerente.” (FREITAS, 2012, p. 1). Essa tradição é revivida nas obras

dos três autores através da conexão com um defeito humano: a avareza; vivificada pelos

protagonistas Euclião (de Plauto), Harpagão (de Molière) e Eurico (de Suassuna). A

pioneira peça, de Plauto, que declaradamente inspirou os outros dois autores, teve

alguns de seus princípios mantidos e atualizados em criações cômicas posteriores, como

no mencionado caso de Molière e de Suassuna. Mas apesar das semelhanças, são

significativas também as diferenças entre as obras, que, por movimento de aderência, se

abrem aos novos tempos (FREITAS, 2012).

A partir da análise traçada por Magaldi e desenvolvida por Freitas, é possível

pensar na transformação e na conservação dos traços cômicos que acompanham as

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modificações ocorridas na sociedade. A análise de Freitas coaduna com a concepção de

historiadores que remetem a gênese e o desenvolvimento dessas figuras à comédia

greco-romana, à tradição da commedia dell’arte e ao vínculo com a cultura popular.

Essas três obras carregam sequências cômicas que parecem encontrar no curso da

História seus aspectos de mutação e de conservação.

Ainda sob o invólucro das influências atellana e posteriormente dell’arte,

encontramos a figura do ator popular londrino Joseph Grimaldi (1778-1837). Grimaldi

era filho do ator de commedia dell’arte italiano Giuseppe Grimaldi, filho do também

ator Giovanni Battista Nicolini Grimaldi, conhecido arlecchino do século XVIII.

Descendente dessa linhagem, Joseph Grimaldi é considerado o criador do clown

moderno (BOLOGNESI, 2006).

Alice Viveiros de Castro, acerca da atuação de Joseph Grimaldi, diz:

[...] suas graças, truques, apetrechos e maquiagem marcaram de tal

forma a arte da palhaçada que, por quase um século, sua imagem

passou a ser a imagem clássica do palhaço. O rosto pintado de branco,

grandes manchas vermelhas marcando as bochechas, a boca vermelha

dando a sensação de um sorriso rasgado à força e uma inusitada

peruca com os cabelos espetados produziam uma figura estranha,

estapafúrdia, com um toque de crueldade (VIVEIROS DE CASTRO,

2005, p.62-63).

A autora afirma que Joseph Grimaldi foi o maior responsável pela ascensão do

clown no contexto da pantomima inglesa. A partir de seu trabalho, foi capaz de galgar o

protagonismo para uma figura antes secundarizada, suplantando o Arlequim nas

representações cômicas denominadas Arlequinadas (VIVEIROS DE CASTRO, 2005).

Ganhando maior destaque, e de certo modo delineando-se esteticamente, o

palhaço, a partir de Grimaldi, nasceu de uma espécie de fusão entre o tipo cômico do

clown inglês e os personagens da commedia dell’arte. O resultado dessa conjunção foi o

maior potencial atrativo para o público, bem como a prolongamento da permanência do

palhaço nas cenas dos espetáculos (REIS, 2013).

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Figura 5 - Joseph Grimaldi

Fonte: <en.wikipedia.org>. Acesso em 26/07/2016

No ano de 1768, o sargento inglês Philip Astley construiu um anfiteatro a céu

aberto, destinado tanto ao ensino de equitação quanto à apresentação de espetáculos

equestres. Nesse mesmo período, em Londres, coexistiam também outras companhias

equestres, tais como as de Hayam, de Jacob Bates e de Price (VIVEIROS DE CASTRO,

2005).

Ao sargento Astley, porém, ocorreu mesclar em um picadeiro de 13 metros de

diâmetro, conforme Viveiros de Castro, “[...] exercícios equestres com as proezas dos

artistas de feira.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p. 53). Tal inovação ocasionou um

espetáculo, segundo a autora, “[...] baseado na disciplina militar e na valorização da

destreza e do perigo deixava a plateia muito tensa; era preciso criar um momento de

relaxamento, provocar a quebra da tensão, deixando o espectador aliviado, preparando-o

para as próximas emoções.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p. 53). É nesse contexto

que, para Viveiros de Castro, surge o palhaço de circo.

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A autora explica ainda que “Os primeiros espetáculos de circo eram uma mescla

de teatro e picadeiro de equitação, apresentando pantomimas, melodramas, burletas, que

aconteciam num palco montado ao fundo, e números circenses que se passavam no

picadeiro [...]” (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p. 55). A comicidade nos primeiros

espetáculos do circo moderno, para a autora, estava dividida entre duas figuras com

funções distintas: o palhaço a cavalo e o palhaço da cena.

Segundo Bolognesi, assim como “[...] o próprio circo, a arte clownesca deve sua

expansão às iniciativas britânicas e francesas do século XVIII e XIX.” (BOLOGNESI,

2006, p. 61). Essas sementes geraram frutíferos bosques, onde artistas múltiplos

floresceram, inserindo em seus jogos habilidades de alta perícia física, e expondo, ao

mesmo tempo, as vulnerabilidades humanas, ao realizarem de maneira torpe as façanhas

circenses. Diversas outras foram as possibilidades calcadas pela formulação do

espetáculo circense no universo de atuação das figuras cômicas, historicamente

presentes na humanidade.

O palco circense recebeu ainda os ditos palhaços brancos e augustos: um

representante do opressor, o outro do oprimido – grosso modo. Ambos compõem uma

dupla que perdura até os dias de hoje nos picadeiros circenses ou nos palcos teatrais. O

historiador francês Tristan Rémy, pesquisador da arte clownesca, usa o termo “clown”

para denominar a figura autoritária, e “augusto” para denominar a figura torpe,

subordinada. Ao referir-se, no plural, a “clowns”, o autor dirige-se à dupla de cômicos,

o branco e o augusto (RÉMY, 1945).

Em seu livro Les Clowns, Rémy aparta a origem e o desenvolvimento do clown

das figuras cômicas da commedia dell’arte. Tampouco relaciona o percurso do clown

às figuras dos bufões medievais ou dos mimos greco-romanos. Para ele, os registros

históricos carecem de comprovações e evidências que permitam qualquer afirmação

nesse sentido. O autor afirma que “[...] o clown de tradições recentes teve sua

constituição em poucas gerações.” (RÉMY, 1945, p. 14).

Para o historiador, há uma diferenciação dos clowns em relação às figuras

cômicas que perpassam a história da humanidade. Essas figuras ou tipos cômicos, para

o autor, “[...] nasceram todos da necessidade inerente dos seres humanos de rir e de

tornar ridículos alguns de seus semelhantes, esta é a única continuidade e a única razão

do aparecimento e do desaparecimento dos tipos cômicos através das eras.” (RÉMY,

1945, p. 14). O autor afirma ainda que a História, com suas especificidades, apenas nos

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permite cogitar sobre possíveis influências deixadas pelos cômicos populares na

composição do trabalho clownesco.

Embora, como sublinhou Rémy, os indícios históricos careçam de comprovações

suficientes para relacionar as figuras palhacescas como as concebemos hoje,

considerando a multiplicidade de vertentes que atualmente estão em processo de

floração, é inegável a recorrência de recursos relacionados com figuras cômicas de

tempos remotos. O próprio autor, apesar da ressalva, dedica um dos capítulos de seu

livro para analisar essas semelhanças e influências recorrentes.

De acordo com Viveiros de Castro,

Acreditar que a figura do palhaço é exclusiva do circo é negar uma

história de milênios em troca de uns meros cento e poucos anos de

circo clássico. O palhaço tem seu lugar de maior destaque no circo,

mas o próprio circo – a casa de espetáculos – é uma relativa novidade

(genial novidade!) que não detém a exclusividade como espaço de

apresentação das artes circenses (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p.

32).

As artes circenses, antes mesmo de serem configuradas no espaço do picadeiro

circular coberto, estão presentes na história das sociedades. A autora ensina que nos

primórdios das artes circenses encontram-se manifestações ligadas com a caça aos

touros, hipótese levantada após a descoberta de objetos arqueológicos de uma antiga

cidade turca datada de 8.000 anos atrás. Esses vestígios revelam a presença da arte de

realizar acrobacias e saltos sobre os touros. Viveiros de Castro explica ainda que, na

China, foram descobertas pinturas que retratam a existência de acrobatas,

contorcionistas e equilibristas com quase 5.000 anos de criação, e que há

aproximadamente 3.000 anos as pirâmides do Egito eram pintadas com imagens de

malabaristas, equilibristas e contorcionistas (VIVEIROS DE CASTRO, 2005). As

técnicas circenses são encontradas ainda nos espetáculos populares greco-romanos, bem

como nos exercícios atléticos da Grécia.

O circo tal como o conhecemos hoje foi formalizado por iniciativa do inglês

Astley, porém é inegável, ao longo da história das sociedades, a recorrência de alguns

elementos circenses. Assim, as palhaças, os palhaços e os clowns, talvez encontrando na

figura criada por Joseph Grimaldi uma possibilidade de existir, reinventam-se

perpetuamente com base em um passado milenar.

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No contexto do Brasil, o cavalo não teve a mesma importância do que na Europa,

onde foi considerado símbolo da consolidação do espaço circense. Segundo Bolognesi,

isso se deve ao fato de que o “[...] circo brasileiro não se instalou em uma sociedade

com valores aristocráticos consolidados.” (BOLOGNESI, 2006, p. 49). O autor afirma

que, nesse sentido, no nosso país “[...] prevaleceu a pluralidade artística dos

saltimbancos.” (BOLOGNESI, 2006, p. 49).

Essa pluralidade certamente advém do próprio contexto do país, inicialmente

habitado por indígenas e posteriormente colonizado por povos advindos da Europa, e,

sobretudo, da África. A mescla de culturas sempre foi uma das características do povo

brasileiro, contexto em que se mesclaram também os elementos cômicos ancestrais de

diversas nações.

Para Viveiros de Castro, “[...] pouco a pouco foi se formando um jeito brasileiro

de ser palhaço. A mistura de culturas que caracteriza o Brasil – somada a uma imensa

capacidade de rir de si mesmo e à bagunça institucionalizada – são a base do nosso

humor.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p. 103). A tradição do humor brasileiro,

como afirma a autora, teve seu fundamento nas festas e celebrações populares,

[...] seguindo a longa linhagem que atravessa os tempos e se espalha

por todos os povos e regiões desse planeta. Os palhaços dos folguedos

- Mateus, Bastiões, Biricos, Velhos, entre outros – cantam e falam

besteiras e safadezas o tempo todo. A habilidade para o improviso foi

sendo desenvolvida no Brasil ao longo dos séculos e em todas as

regiões do país temos uma riquíssima poesia regional, seja nas toadas

dos galpões do sul ou nos cordéis e desafios do nordeste (VIVEIROS

DE CASTRO, 2005, p. 103).

As palhaças e os palhaços brasileiros, assim como os cômicos greco-romanos,

saltimbancos, atores dell’arte, clowns, palhaços circenses, entre outras figuras cujo

objetivo é trabalhar com os aspectos risíveis da existência, conservam profunda ligação

com a vida popular. Dessa forma, a atuação palhacesca, portadora de uma tradição

milenar, renova-se e conserva-se também no Brasil.

No contexto brasileiro, percebemos inegavelmente a influência do clown advinda

da pedagogia europeia de Lecoq, ou seja, voltada para a descoberta do ridículo de cada

ator, de suas vulnerabilidades e particularidades (LECOQ, 1997). Como já apontado,

muito dessa difusão pelo Brasil deu-se através do trabalho desenvolvido a partir da

pesquisa de Luís Otávio Burnier no grupo Lume de teatro.

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Por outro lado, percebemos um constante movimento de intersecção entre as

formas de trabalho popular e aquela voltada para as particularidades do indivíduo.

Como exemplo desse fato, menciono o trabalho do brasileiro Ésio Magalhães: o palhaço

Zabobrim, do Barracão Teatro, de Campinas (SP). O artista utiliza-se de elementos

circenses, tais como equilibrismo, acrobacia, malabarismo, ilusionismo, reprises, entre

outras, mas, ao mesmo tempo, compõe uma figura extremamente particular, valorizando

sua singularidade em contato com os espectadores.

É possível notar, na atuação de Ésio, de um lado o cômico popular e seus recursos

visuais, e de outro o clown sutil e a exposição das fraquezas do indivíduo.

Recentemente, no ano de 2015, com a direção de Tiche Viana, também do Teatro

Barracão, Ésio atuou no espetáculo “Zabobrim, o rei vagabundo”. Nele, havia palhaços

e personagens da commedia dell’arte, como podemos observar abaixo:

Figura 6 - Espetáculo Zabobrim, o rei palhaço, do Barracão Teatro.

Fonte: <http://cartaodevisita.r7.com/conteudo/11091/sesc-santana-realiza-projeto-470-anos-

de-commedia-dell-arte>. Acesso em 05/08/2016.

A fusão entre palhaços e personagens da commedia dell’arte em um mesmo

palco, acima retratada, alude a uma história centenária. Nessa ocasião, as figuras

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cômicas dividiram o mesmo espaço remontando elementos ancestrais de sua

permanência no mundo enquanto revelavam extrema singularidade na feitura das ações,

feitas em consonância com o tempo e o espaço em que decorriam.

Não é possível, dadas as pluralidades de manifestações criadas a partir das

peculiaridades de cada atuador, encerrar em estreitas definições o percurso que integra o

surgimento e o desenvolvimento das figuras cômicas na história da humanidade. Uma

boa opção para “solucionar” o problema é, assim como o fez Alice Viveiros de Castro,

imaginar o surgimento dessas figuras cômicas a partir de uma ideia de comunicação

transgressiva com o mundo:

Imagino que o primeiro palhaço surgiu numa noite qualquer em uma

indefinida caverna enquanto nossos antepassados terminavam um

lauto banquete junto ao fogo. Em volta da fogueira, numa roda de

companheiros, jogavam conversa fora. Comentavam a caçada que

agora era jantar e falavam das artimanhas usadas, dos truques e da

valentia de cada um. É quando um deles começa a imitar os amigos e

exagera na atitude do valentão que se faz grande, temerário e risível

na sua ânsia de sobrepujar a todos. E logo passa a representar as

momices do covarde, seus cuidados para se esquivar do combate,

sempre exagerando os gestos, abusando das caretas, apontando tão

absurdamente as intenções por trás de cada ação e o ridículo delas que

o riso se instala naquela assembleia de trogloditas. E todos descobrem

o prazer de rir entre companheiros, de rir de si mesmo ao rir dos

outros... (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p.16).

A necessidade do riso atravessa a natureza humana e é inerente ao

desenvolvimento cognitivo e emocional dos indivíduos, sendo impossível precisar o

surgimento do riso. Sabe-se, entretanto, que através da ação das figuras palhacescas o

riso se manifesta coletivamente, pelo compartilhamento de vivências e pelas inter-

relações entre os seres humanos.

O clown russo Oleg Popov defende a necessidade de aproximação das figuras

palhacescas com os espectadores, alertando que “[...] o espectador é um amigo, mas

amigos precisam ser conquistados.” (POPOV, 1968, p. 26). Essa conquista ocorre de

maneira gradual, atrelada ao momento de encontro com os espectadores e também ao

passado de experiências vividas no âmbito humano e profissional de cada artista.

Segundo a proposição de Kásper, “[...] podemos pensar o palhaço/clown como

certa política de relação com a alteridade, presentificada performaticamente. O palhaço

só existe em sua relação com o outro – este é um de seus traços distintivos.” (KÁSPER,

2004, p. 18). Essas figuras, assim, dependem de abertura para deixar-se afetar pelos

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outros.

A troca de pensamentos e ações entre indivíduos ocasiona a criação de zonas de

convergência entre o universo das Artes Cênicas e aquele que se dá no cotidiano da

vida, como por exemplo, durante a atuação de palhaças e palhaças no contexto hospital.

Kásper corrobora esse ponto de vista, afirmando que “[...] o palhaço opera com a

abertura de mundos possíveis.” (KÁSPER, 2015, p.18). Para a autora, as palhaças e

palhaços atuam promovendo a criação de “[...] outras lógicas, outras possibilidades de

vida, modos de agir, pensar, sentir. O clown opera com a produção de tais modos. Um

dos campos explorados pelo clown é este: a produção de lógicas próprias.” (KÁSPER,

2004, p. 64). A vivificação dessas lógicas e possibilidades na ação palhacesca, dessa

forma, necessariamente inclui o outro, pois dele partem diversas proposições cênicas.

Isso implica uma atitude de abertura, de escuta, que demanda um treinamento

específico. Para a autora, um dos grandes desafios do palhaço, é “[...] Ao mesmo tempo,

abrir-se ao imprevisto, arriscar-se, mas tendo recursos para lidar com o que virá, com o

que acontecerá nesta abertura criada, sem se perder, sem se dissolver [...].” (KÁSPER,

2004, p. 70).As figuras palhacescas, ao trabalharem com as vulnerabilidades humanas,

suas fragilidades, seus momentos de fracasso, segundo Kásper, “[...] tem o privilégio de

reviver os erros, as loucuras, a estupidez.” (KÁSPER, 2004, p. 79). Em sua lógica, esses

aspectos da vida, ao contrário do que costuma ocorrer no cotidiano, não são evitados,

mas servem como “gatilho” para as ações, uma vez que as palhaças e os palhaços

valorizam tudo aquilo que se faz no momento presente, inclusive o erro, a loucura e a

estupidez. Tal compreensão ecoa com o pensamento de Miller, segundo o qual as

figuras palhacescas lidam com:

[...] todos os mal entendidos que são as chagas da raça humana. Ser a

própria inépcia, isto era algo que mesmo o rei dos imbecis podia

entender. Nada compreender, quando tudo é claro como o dia; não

pegar o truque, mesmo se lhe for mostrado cem vezes; tatear como um

cego, quando tudo lhe grita a boa direção: teimar e querer abrir a porta

errada, apesar do letreiro PERIGO; bater a cabeça no espelho, ao

invés de dar a volta; olhar pelo lado errado de um fuzil... de um fuzil

carregado! – Nunca o bom povo cansa desses absurdos, porque há

milênios os seres humanos erram o caminho, milênios que todas suas

buscas, suas interrogações levam-lhe ao mesmo beco sem saída

(MILLER, 1953, p.83 apud KÁSPER, 2004, p. 79).

Guiados pela composição de uma lógica diferenciada de ação, palhaças e palhaços

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são capazes de desestruturar o cotidiano, imprimindo nele aquilo que é torpe, avesso ao

esperado. Ao colocar em cena a falha, eles propõem uma nova ótica para uma questão

tão presente no cotidiano: o erro. Recordam que a vida não é, necessariamente, feita

apenas de acertos. Agindo dessa maneira, as figuras palhacescas ensinam-nos a rir de

nós mesmos, a conviver com os nossos erros (MILLER, 1953). Incorporando o erro em

momentos de atuação, esses seres conectam-se de maneira intensa com o momento

presente, seja ele feito de ações acertadas, seja o contrário disso. Miller, no sentido de

afirmar as ligações entre o clown e o fluxo da vida, coloca que:

A alegria é como um rio: seu fluxo é incessante. Acho que essa é a

mensagem que o clown tenta nos transmitir - a que devemos participar

através de um movimento e um fluxo contínuo, de que não

deveríamos parar para refletir, comparar, analisar, possuir, porém

prosseguir adiante, infinitamente, como a música (MILLER, 1953, p.

127 apud KÁSPER, 2004, p. 69).

Para o autor, a atuação palhacesca demanda uma capacidade de entrega, realizada

simbolicamente pelos clowns, que vivem para o momento presente. Isso não significa,

entretanto, que não haja preparação anterior, mas que as capacidades artísticas e

palhacescas, pesquisadas por atuadoras e atuadores, estão abertas para a intersecção

com a natureza da vida (MILLER, 1953).

É necessário coragem para despir-se das amarras cotidianas, lançar mão de

fortalezas e desnudar-se perante outros seres humanos. Se, por exemplo, uma palhaça

tropeça e cai, intencionalmente, sua relação com a queda será cômica, e uma fragilidade

será revisitada por quem a observa no momento do riso: cair também poderia ser

trágico, doloroso, até mesmo embaraçoso. No corpo treinado da palhaça, esse ato pode

tornar-se cômico, divertido e de uma intensidade leve: ela logo pode se levantar, pronta

para uma nova trapalhada.

As fragilidades e a busca por sua superação, atreladas intrinsecamente ao fluxo da

vida, são redimensionadas pelo filtro da comicidade. Os acontecimentos se dão através

de um jogo que é dimensionado pela ação cênica de palhaças e palhaços, em um

momento de encontro com o público. Trabalhando com sutilezas e elaborações

artísticas, essas figuras abarcam, por estarem atreladas ao fluxo incessante da vida, as

energias que nelas forem manifestas no momento de seu acontecimento. Isso implica

em um desafio para seus atuadores, que se colocam à disposição do tempo presente.

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Para Angela de Castro, palhaça brasileira radicada em Londres, “Clowning é uma

arte de coragem e disciplina. Temos que ser corajosos para expor nossa própria

vulnerabilidade.” (CASTRO, 2011, p.10). Colocar-se em situação de disponibilidade

para o desconhecido é um desafio para as artistas e para os artistas, na medida em que

não lhes é permitido ensaiar. Aprende-se a valorizar as pequenas coisas e os detalhes da

vida, que podem estar impregnados de sutilezas cênicas surgidas em encontros

cotidianos. Angela afirma ainda que a simplicidade é um dos principais recursos do

clown, e que algumas de suas melhores ideias sempre vêm daí (CASTRO, 1997).

Tal apontamento é também compartilhado pelo clown suíço Dimitri, para quem a

simplicidade é um dos principais recursos dos clowns, assemelhando o trabalho dessas

figuras ao do artesão. O artista afirma que, como clown, “[...] eu não represento um

papel: estou nu; o clown é o mais nu de todos os artistas porque ele coloca a si mesmo

em situação de jogo, sem poder trapacear.” (DIMITRI, 1982, apud FABRI; SALLÉE,

1982, p. 37).

O ato de entrega necessário ao clown requer uma intensa disponibilidade para a

abertura com o outro. Grotowski, sobre o teatro, explica:

A essência do teatro é o encontro. O homem que faz um ato de

autorrevelação é, digamos assim, aquele que estabelece contato com

ele mesmo. Isto é, uma confrontação extrema, sincera, disciplinada,

exata e total – não simplesmente uma confrontação com seus

pensamentos, mas a que envolve todo o seu ser, desde seus instintos e

seu inconsciente até seu estado mais lúcido (GROTOWSKI, 2011,

p.44).

Em busca de romper seus próprios bloqueios, bem como de alcançar

amadurecimento pessoal, o artista, no sistema do pesquisador polonês, se expressa “[...]

através de uma tensão elevada ao extremo, de um completo denudar-se, da exposição da

própria intimidade – e tudo isso sem nenhum traço de egoísmo ou deslumbramento”

(GROTOWSKI, 2011, p.13).

Desnudar-se, doar-se para a relação consigo, com o outro, com o espaço, exige

uma “[...] mobilização de todas as forças físicas e espirituais do ator, que deve estar em

um estado de prontidão total e disponibilidade passiva que permita uma partitura de

atuação ativa.” (GROTOWSKI, 2011, p.13). Essa atitude figura como um mergulho do

artista em si, em seus recursos pessoais e na constante busca por sua expansão, na busca

pelo rompimento das fronteiras entre a arte e a natureza da vida. Grotowski afirma ainda

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que o ator:

Não deve representar para a plateia, e sim se confrontar com ela, em

sua presença. Deve cumprir um ato autêntico, tomando o lugar dos

espectadores, experimentando participar de um ato de extrema

sinceridade e autenticidade, ainda que disciplinado. Ele deve doar-se,

e não controlar-se; abrir-se, e não se fechar [...] (GROTOWSKI, 1971,

p. 169).

O ato de entrega, para o autor, trata-se de um ato total, definido como “[...] o ato

de desnudar-se, de rasgar a máscara diária, da exteriorização do eu. É um ato de

revelação, sério e solene. O ator deve estar preparado para ser absolutamente sincero.”

(GROTOWSKI, 1971, p. 165). Para o encenador, através da arte, o ser humano pode

ultrapassar seus limites, promovendo o autossacrifício e o desnudamento de si.

Esse pensamento aproxima-se do universo palhacesco, uma vez que as palhaças e

os palhaços têm por característica a exposição de seu ser. Para Burnier, vale lembrar, a

máscara clownesca é aquela que “[...] que menos esconde e mais revela” (BURNIER,

2001, p.218).

Evidenciando defeitos e torpezas humanas, essa máscara carrega, através de

ampla gama de figuras cômicas, traços historicamente conservados e revisitados, que

perpassam pelos milênios, ressurgindo em novas vestes ao longo dos tempos.

Enraizados na sociedade em que vivem, palhaças e palhaços buscam constantemente

novas razões para existir, novos espaços para preencher e novos costumes para

transgredir a partir de seu olhar multifacetado pelo encontro. Contornados pelo espectro

do passado, carregam elementos genealógicos que são capazes de emergir

reconfigurados, gerando eternamente risos coletivos. Nesse eterno movimento de

reinvenção, e em completo contato com o seu tempo e espaço, as figuram palhacescas

rumaram ao longo de milênios até chegarem aos palcos hospitalares.

A seguir, apresento uma contextualização sobre o fenômeno da atuação de

palhaças e palhaços nos palcos hospitalares, dando ênfase ao contexto brasileiro. Nesse

âmbito, destaca-se mundialmente a atuação da ONG Doutores da Alegria, que conta

com vinte e cinco anos de existência e atualmente é tida como referência no que tange

ao trabalho de palhaças e palhaços em ambientes hospitalares. Abordo, dessa forma, os

aspectos artísticos, formativos e de pesquisa promovidos pela ONG no campo das Artes

Cênicas. Adiante, portanto, os palcos hospitalares.

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3 PALCOS HOSPITALARES

A gente sempre passa na ilha enfermagem e pergunta quantas

crianças têm e depois prestamos um relatório, e também para saber

se tem alguém em isolamento, se alguém não pode rir porque fez uma

cirurgia... E aí me informaram que a gente não podia entrar no

quarto 302 porque o H. estava falecendo, e a gente fez um cortejo no

corredor, tocando uma música e, justamente na porta do (quarto)

302, eu vi uma maçaneta mexendo e saiu o pai do H. chorando, bem

emocionado e falou:

-Doutores, eu gostaria que vocês entrassem no quarto para se

despedir do H. porque ele está indo embora e eu queria que vocês

tocassem uma música que ele gostava muito.

Nós entramos no quarto e começamos a tocar para ele. Quando

terminamos de tocar, ele foi embora, e o pai, muito comovido com a

situação, falou que ele não tinha melhor maneira para ir embora. E

ali foi muito forte para mim. Nós abraçamos o pai e a gente sabia que

qualquer intenção de falar ou consolar não teria nenhum efeito e a

gente foi embora. [...] É uma coisa que eu não sei como descrever.

Aquilo me marcou muito (Marcelo Marcon).

Nas tênues fronteiras entre a realidade e a fantasia, a urgência e a tranquilidade de

cada momento, a vida e a morte, constituem-se as experiências de atuação palhacesca

hospitalar. Como podemos constatar na descrição acima, em momento de total entrega

para o presente, Marcelo Marcon somou-se ao corpo do hospital e, aderindo ao

chamado do pai da criança hospitalizada, produziu um novo olhar sobre aquele

momento.

Os palcos hospitalares abarcam a coletividade dos risos palhacescos, porém

também revelam, como demonstra o relato de Marcelo Marcon, que o riso muitas vezes

não está presente nas relações que se dão entre palhaças, palhaços e espectadores, mas

sempre permanece o encontro entre seres humanos que vivenciam situações reais.

Buscando contextualizar essa prática contemporânea no campo das Artes Cênicas,

trago aqui colocações que integram o universo palhacesco nos palcos hospitalares, onde

é notável a presença da ONG Doutores da Alegria. Aqui constam também informações

embasadas nas entrevistas que foram cedidas para esta pesquisa, obtidas através de

vivências pessoais e de uma pesquisa bibliográfica sobre o tema da atuação palhacesca

nos palcos hospitalares.

Ao iniciar essa contextualização, vale a leitura da reflexão da pesquisadora Denise

de Sant’Anna sobre o universo do hospital:

O hospital é certamente um lugar de extremos, mas, dentro dele, há

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uma busca constante da “boa dose”, do comedimento entre medidas

radicais, entre os limites da vida e da morte. Trata-se, em suma, de um

lugar repleto de experiências difíceis de filmar ou representar, pois

elas emergem entre a ficção e a realidade, entre a guerra e a paz, entre

a audácia e o medo de errar. Afinal, é entre os extremos, e não apenas

diante de suas pontas vertiginosas, que se joga boa parte do destino

humano (SANT’ANNA, 2011, p. 20).

No espaço hospitalar, como vimos, propício aos extremos, palhaças e palhaços

podem criar uma ponte entre a fragilidade e o riso, compondo através da escuta do

espaço uma convivência cênica capaz de ocorrer entre os extremos. Com o ambiente

hospitalar, a existência palhacesca se entrelaça e se identifica, visto que ela também se

expressa em confronto e em contato com limites. Vivendo situações extremas, os seres

palhacescos atuam sempre em busca da “boa dose” nos momentos de atuação,

mesclando em seu jogo debilidades e fortalezas na busca por uma relação

transformadora, que se dê por meio encontro.

Tecendo uma conexão entre a ficção e a realidade, palhaças e palhaços inserem-se

em um lugar repleto de experiências, onde se destaca, em relação aos outros tempos e

espaços de atuação cênica, impreterivelmente, uma atitude extrema de abertura para o

outro. Segundo a pesquisadora Ana Achcar,

A instituição hospitalar desperta a força de provocação do palhaço

devolvendo-lhe o papel de verdadeira encarnação do festivo, que nos

possibilita, a todos, inclusive a ele, o exercício de existência

libertadora, que tanto nos falta na vida cotidiana. O palhaço de

hospital foge à empregabilidade superficial e desenfreada da

comicidade publicitária, e é aproveitado na promoção de uma idéia de

saúde e de bem estar geral, que está relacionada com a valorização da

humanidade nos indivíduos (ACHCAR, 2007, p.206).

A partir da valorização do tempo e do espaço das ações, as figuras palhacescas

estimulam a participação dos indivíduos que integram esses espaços, reconhecendo suas

experiências, disposições, proposições e reações, tendo como pressuposto a liberdade do

compromisso com o real. Corrobora essa ideia Morgana Masetti, segundo a qual a

atuação palhacesca se refere a uma “[...] proposta artística do teatro um passo além. Em

lugar da experiência estética contemplativa de uma plateia sentada na cadeira, propõe a

interação direta e individual em um contexto de crise.” (MASETTI, 2003, p.25).

Palhaças e palhaços contextualizados no hospital propõem, por meio de sua

ousada lógica de existência, encontros fundados na liberdade de expressão e na

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transformação da realidade. Em um âmbito que, de cotidiano, torna-se também artístico

e cênico, essas figuras visam construir maneiras harmônicas de intersecção entre a arte e

a natureza.

Nesse rompimento de fronteiras, as palhaças e os palhaços atuam, segundo a

pesquisadora brasileira Ana Wuo, “[...] subvertendo e burlando a ordem das coisas para

que a criança hospitalizada se adorne com a arte de rir da sua própria dor.” (WUO,

1999, p. 45). Essa subversão é espacial, física e sensível, pois as palhaças e os palhaços

colocam-se no espaço hospitalar como seres humanos imbuídos de ferramentas

artísticas que se deixam permear pelo fluxo circunstancial da vida.

A presença dessas existências palhacescas nos leitos, corredores e enfermarias

hospitalares propõem uma nova lógica tanto no âmbito das Artes Cênicas quanto no da

Saúde. Permeadas uma pela outra, essas áreas somam-se ainda com outras, tais como

Educação, Ciências Sociais, Filosofia, História, Artes Visuais, Música, todas atualmente

presentes nos contextos hospitalares. Para Ana Wuo, esse é um sinal de que as figuras

palhacescas abarcam as transformações da sociedade e com elas dialogam:

Os tipos cômicos e sua genealogia vêm sendo historicamente

transformados pelo tempo e pelas necessidades sociais de cada época.

Em consequência disso, o clown começa a abranger a sua área de

atuação, chegando à instituição de saúde (WUO, 1999, p. 16).

Pesquisando a inserção dos seres palhacescos nos palcos hospitalares, percebem-

se traços genealógicos que os vinculam ao espaço da cura. Por volta de 4.500 a.C., por

exemplo, na civilização egípcia, a figura de um cômico, Bess, o deus da alegria,

vivificava a busca pelo equilíbrio:

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Figura 7 - Bess, o deus da alegria.

Fonte: <http://egiptologia.com/consideraciones-acerca-de-la-

evolucion-iconografica-del-dios-bes/>. Acesso em

30/09/2016.

Já na cultura greco-romana, em 400 a.C., os atenienses buscavam a cura do corpo

e da mente no santuário de Asclépio, deus da medicina e da cura. Nesse espaço, os

pacientes recebiam através do humor os benefícios da cura (MASETTI, 2001).

Para o Doutor Peter Spitzer, palhaças e palhaços atuam em espaços hospitalares

desde o período em que viveu Hipócrates, porém, apenas em 1908 encontra-se registro

dessa forma de atuação teatral, em uma das edições do Le Petit Journal (SPITZER,

2002). Destaca-se também, neste contexto, a iniciativa do Doutor Patch Adams,

considerado por Spitzer como o pai da palhaçaria hospitalar (SPITZER, 2002). Há mais

de três décadas Patch Adams trabalha com a arte palhacesca no cuidado com seus

pacientes, história que está registrada no filme estadunidense Patch Adams, dirigido por

Tom Shadyac e estrelado pelo ator Robin Williams.

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Recentemente inseridas no espaço hospitalar, as figuras palhacescas despertaram

para uma nova fase em sua história. Essa etapa contemporânea diz respeito à

investigação da atuação palhacesca hospitalar por meio da paródia do médico, com a

criação do personagem do Doutor Palhaço, proposta pelo programa Clown Care a partir

de 1986.

O Clown Care é um programa comunitário da organização circense

norteamericana Big Apple Circus, que tem por objetivo levar a alegria do circo

tradicional às crianças internadas em centros pediátricos nos Estados Unidos. Um dos

fundadores do Big Apple Circus, Michael Christensen, criou o programa em 1986,

devido ao seu desejo de oferecer um serviço exclusivo para jovens em tratamento nas

instalações pediátricas (BIG APLLE CIRCUS, 2015). Ao Brasil, essa proposta foi

trazida por Wellington Nogueira, no ano de 1991, com a fundação da ONG Doutores da

Alegria.

No Brasil, há ainda outra linha de trabalho das figuras palhacescas no contexto

hospitalar, desenvolvida pela pesquisadora Ana Elvira Wuo, da Universidade Federal de

Uberlândia (UFU). Wuo apresenta uma abordagem distinta em relação aos Doutores da

Alegria, uma vez que propõe a figura do clown visitador, que realiza visitas a crianças

hospitalizadas, e não exames “besteirológicos”, como os Doutores da Alegria (TELLES,

2011 apud. WUO, 2011).

A proposição da ONG Doutores da Alegria traz para a cena a figura do médico

“besteirologista”, que atua visitando crianças leito a leito. Tomando como pretexto a

realização de procedimentos médicos, tais como “extração de miolo mole”, “apertar o

riso frouxo”, “afiar a língua”, realizar um “ultrassom musical”, “apertar parafusos

soltos”, entre outros procedimentos agregados ao léxico e à rotina hospitalares, os seres

palhacescos pedem licença para entrar nos leitos.

Wellington Nogueira afirma que, no momento em que ouviu falar sobre a atuação

palhacesca hospitalar, na década de 1980, nos Estados Unidos, foi acometido de

imediata aversão. Para ele, aquele tipo de trabalho parecia estapafúrdio, sem sentido.

Passado o período do choque, o então artista do Teatro Musical Wellington deixou-se

levar ao contexto hospitalar enquanto observador. Observou e, então, ficou fascinado

pela dimensão aberta por esse trabalho teatral:

Aí este meu preconceito todo caiu por água abaixo quando eu fui para

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o hospital. [...] Quando eu cheguei ao hospital, a primeira coisa que

me surpreendeu foi a força, você vê, dois palhaços. Porque eles

realmente promoviam uma interrupção muito grande na frequência.

Era que você pensasse, oi? O que foi aquilo que eu vi? E quando você

vai parar para pensar, eles já sumiram (Wellington Nogueira)8.

Ele relata que os artistas eram extremamente competentes e profissionais, e que,

ao contrário daquilo que imaginava, “[...] havia uma excelência no trabalho deles, uma

limpeza, que você via que era de gente que tem muita competência, e isto me

arrebatou.” (Wellington Nogueira).

Esse arrebatamento foi tão intenso que motivou Wellington a construir no Brasil

iniciativa semelhante, buscando sempre trabalhar com a excelência artística que

inicialmente o cativou. Tido como a primeira pessoa que acreditou e investiu seriamente

na atuação palhacesca hospitalar brasileira, Wellington coloca que:

O circo funcionou como um ventre de lona, porque ele gestou este tipo

de artista, que é o palhaço, que a gente conhece com o nariz

vermelho. O confinamento trouxe um refinamento técnico para este

artista, mas eu entendo que em 1986 ele sentiu falta daquele contato

direto de fazer parte da vida das pessoas, porque antes do teatro e do

circo, a arte era na rua, você cruzava com os artistas no caminho de

casa, e isto podia marcar você para sempre. Então, eu vejo que houve

um refinamento da sociedade e houve um refinamento deste artista,

em 86 ele sai do circo [...] (Wellington Nogueira).

Como vimos, as figuras palhacescas fazem parte de uma longa tradição, e, assim

como ocorre com as artes circenses, trazem resquícios históricos milenares para afirmar

e reinventar sua permanência no mundo. Essas figuras, para Wellington, fazem parte de

uma linhagem de subversores, em que o palhaço,

[...] é uma manifestação de um arquétipo milenar do bobo e este

arquétipo tem várias formas de materialização na história da

humanidade, seja como um bobo da corte, um palhaço no circo, uma

figura xamânica, uma divindade destas que vem para bagunçar, numa

dimensão folclórica quando você vê, por exemplo, o curupira ou o

Saci Pererê, todas estas figuras que vem para bagunçar as percepções

do homem, o curupira confunde os caçadores para salvar os animais.

De certa forma, o palhaço dentro do hospital, ele está fazendo o

trabalho dele, a arte dele, a palhaçada, e completamente integrada no

contexto em que ele está visitando, e ele está, sim, alterando a

8 A entrevista concedida por Wellington Nogueira será publicada na íntegra pela Revista Moringa de

Artes do Espetáculo v.7, n. 2, do Departamento de Artes da Universidade Federal da Paraíba, cuja

publicação é prevista para o segundo semestre de 2016.

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percepção das pessoas lá dentro (Wellington Nogueira).

Historicamente relacionadas aos curadores, as figuras palhacescas, segundo

Wellington, são capazes de “[...]abrir um canal de comunicação entre você e a doença,

você e sua enfermidade. Não é para acabar com ela, mas é para ouvir, dialogar, e

brincar com ela, para você poder ver que história vocês vão escrever juntos.”

(Wellington Nogueira).

Esse movimento foi forte o suficiente para se globalizar, e, segundo Wellington, as

figuras palhacescas surgiram para suprir necessidades emergentes:

Isto para mim é um sinal muito claro e concreto de um movimento, de

uma necessidade contemporânea sendo suprida pelo resgate de um

arquétipo milenar, através da arte. A saída do palhaço hoje do circo é

uma questão sociocultural muito forte, ele vem fazer uma ruptura no

teu cotidiano, e assim agindo, permite que você se emocione, acesse

emoções, percepções, que é isto que arte pode fazer. Se você for ver o

contexto social hoje, com o advento de tecnologias, traz a

humanidade para uma ampliação de seu conhecimento, e, ao mesmo

tempo, uma regressão nas capacidades relacionais. Somente na

relação com o outro, você é capaz de enxergar também a tua relação

com você mesmo. Qual é papel deste arquétipo ao longo da história

da humanidade? Buscar o outro ponto de vista, buscar o lado menos

visitado, menos explorado, avisar, comentar (Wellington Nogueira).

Atualmente existem mais de 1.080 grupos ou organizações de palhaças e palhaços

que atuam no contexto hospitalar de modo profissional ou amador no Brasil

(MASETTI, 2014). A consultora de pesquisa e psicóloga dos Doutores da Alegria

Morgana Masetti, ao realizar um panorama do ponto de vista mundial, aponta que:

O movimento de palhaços é um movimento muito forte, é uma coisa

que cresceu muito [...]. Existem divergências sobre como começou (a

atuação palhacesca hospitalar), mas uma referência forte é o Michael

Christensen (fundador do Clown Care) em Nova Iorque e ele estando

lá, a Caroline (Simonds) que depois foi para a França (e fundou do

grupo Le Rire Médicin), o Wellington (Nogueira) que veio para cá (e

fundou os Doutores da Alegria), Laura (Fernadez) que depois foi para

a Alemanha (e fundou o grupo Die Clown Docktoren) [...]. Outro ator

foi para a Itália, outro para a Espanha. Todos estes atores beberam da

mesma fonte e depois se espalharam um pouco pelo mundo e deram

uma continuidade para este trabalho com uma linguagem próxima,

claro, todos adaptando para sua realidade e depois fazendo novas

descobertas. Tem um diálogo que felizmente é possível entre todos

estes grupos. Então eu acho que isto ajudou a gente pensar que hoje

em dia o trabalho do palhaço no hospital está no mapa mundial, e cada

país está lidando com ele de um jeito (MASETTI, 2014, s.p.).

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A reflexão da autora nos faz pensar o contexto recente da edificação da atuação

palhacesca hospitalar. Para Viveiros de Castro, porém, a presença de figuras palhacescas

no ambiente hospitalar é antiga e tem ligações com a tradição circense, que desde

tempos remotos tem por pressuposto atos de solidariedade para com as comunidades em

que se estabelecem por períodos indeterminados de tempo, dentre eles, a realização de

espetáculos em hospitais. A autora afirma que a novidade é a proposta trazida ao Brasil

pelos Doutores da Alegria, que realizam a paródia do médico (VIVEIROS DE

CASTRO, 2005). Essa aproximação, para Masetti, foi uma forma de habituar o contexto

hospitalar brasileiro com a figura palhacesca. Referindo-se ao ano de 1991, em que a

ONG Doutores da Alegria iniciou seu trabalho cênico nos hospitais, a autora informa:

Naquela época, a figura do palhaço era algo absolutamente incomum

ao cenário das macas e enfermarias. Graciosamente destoante,

habilmente desconcertante e não ameaçador. Uma imagem que

propunha aos adultos que cruzavam seu caminho um tempo de

reflexão para tentar aproximar o mundo médico ao do circo

(MASETTI, 2003, p.9).

Nos dias de hoje, devido à crescente proliferação de iniciativas semelhantes no

Brasil e no mundo, cada vez mais essas figuras se aproximam com naturalidade das

pessoas situadas no hospital. Heraldo Firmino, ator, palhaço e formador nos Doutores da

Alegria, afirma que os avanços visualizados nos dias de hoje são frutos de laboriosa

empreitada e dá mostras de que o trabalho das palhaças e dos palhaços está sendo mais

reconhecido nos hospitais:

Hoje em dia as pessoas respeitam mais o trabalho nos hospitais. Hoje

muitas vezes as enfermeiras chegam quando a gente está trabalhando

com a criança e voltam em outro momento, respeitam nosso tempo

com a criança. A criança está sendo atendida pelo palhaço e ela sabe

que isto também é importante. Isto facilita o trabalho dela, é um

conjunto de ações sendo feitas (Heraldo Firmino).

Esse processo deu-se em função da constância de ações realizadas por

profissionais da área da palhaçaria, tornando a prática da atuação de palhaças e palhaços

junto a crianças hospitalizadas, seus acompanhantes, equipe médica e funcionários do

hospital uma realidade.

No campo das Artes Cênicas, o fenômeno da atuação palhacesca em contextos

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hospitalares gerou um movimento bastante representativo no cenário brasileiro e no de

diversos outros países, tais como os Estados Unidos, a França, a Itália, a Alemanha, a

Espanha, a Argentina, entre outros (MASETTI, 2014).

Recentemente, no ano de 2015, a Argentina deu um grande passo rumo ao

desenvolvimento da arte palhacesca hospitalar na América Latina. O país instituiu a Lei

14.726, que, conforme o seu artigo 1°, tem por objetivo: “[...] incorporar ao Sistema de

Saúde da Província de Buenos Aires o trabalho do Palhaço de Hospital.”9 (BUENOS

AIRES, 2015, p.2). Consta, no artigo 2° da mesma lei, que “[...] cada Serviço de Terapia

Pediátrica deverá contar com um trabalho de especialistas na arte de clown ou palhaços

hospitalares.”10

(BUENOS AIRES, 2015, p.2). Nesse sentido, a presença de

profissionais da arte da palhaçaria torna-se obrigatória em todos os hospitais infantis da

província de Buenos Aires, a maior do país. Esse fato foi amplamente divulgado pelos

meios de comunicação e pode ser considerado como significativo avanço para a área

como um todo, uma vez que possibilita o fortalecimento da profissionalização das

palhaças e dos palhaços que atuam no contexto hospitalar.

Podemos observar que esta manifestação cênica passou por um processo de

aceitação por parte do público hospitalar para que chegasse até a aceitabilidade dos dias

de hoje, a exemplo do que ocorreu em Buenos Aires. A própria combinação desajustada

e multicolor da figura palhacesca entra em contraste com o equilibrado e alvo semblante

hospitalar, podendo gerar momentos iniciais de estranhamento. A inserção de figuras

palhacescas no ambiente hospitalar, por isso, deu-se de modo gradual, passando por um

processo de desenvolvimento e transmutando-se com base no profissionalismo e na

escuta das necessidades do contexto de atuação.

Para a pesquisadora Morgana Masetti, a aproximação da arte com o contexto

hospitalar funda-se em um espaço e tempo de escuta e concretiza-se como uma “ética

do encontro”, como podemos ler a seguir:

O palhaço incorpora os fatos recusados ou pouco falados ao momento,

favorecendo a possibilidade de lidar com eventos geradores de tensão.

Ele ajuda a lidar com a vulnerabilidade da condição humana, em um

ambiente onde se exige a perfeição, com isso favorece a expressão de

conflitos e dificuldades. Leva-nos a entrar em contato direto com

nossos sentimentos, sem análises. Desse modo, estimula a capacidade

de experimentarmos nossas emoções e aceitarmos diferentes

9 Livremente traduzido.

10 Livremente traduzido.

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possibilidades de reações, expandindo os limites de nossos

comportamentos. Sua ação ensina que nada persiste e favorece nossa

ligação com o acontecimento presente. Através desta filosofia de ação

o palhaço propõe uma ética de encontro (MASETTI, 2013, p. 12).

Para a autora, essa ética busca estabelecer “[...] uma situação de cumplicidade e

confiança nas relações e gera as condições para que se estabeleçam espaços internos de

reflexão e aprendizado.” (MASETTI, 2013, p. 12). Objetivando “Pensar na ética das

relações como fonte de aprendizado, onde os afetos e o corpo são lugares importantes

de aprendizado.” (MASETTI, 2013, p. 12), Masetti enxerga o trabalho das figuras

palhacescas no contexto hospitalar como sempre passível de aprendizado, já que está

atrelada aos encontros humanos.

Para o Doutor Patch Adams, a atuação palhacesca hospitalar compõe

evidentemente um campo de aprendizados artísticos, porém abarca também a área

terapêutica, uma vez que há uma ação em favor do bem estar, que no caso das palhaças

e dos palhaços manifesta-se por meio da arte.

[...] a palhaçaria precisa ser um contexto, não uma terapia. É

engraçado este palhaço dizer "terapia de palhaço". Claro que é

terapêutico! Se uma estratégia de amor existisse em nossa sociedade,

ninguém precisaria de terapia palhacesca. Mas modernos hospitais e

consultórios médicos em todo o mundo gritam para se reconectar com

a prestação de cuidados à compaixão, alegria, amor e humor. Há mais

de 30 anos tenho ouvido milhares de estudantes de medicina, médicos,

enfermeiros e pacientes chorar por falta de amor em seu ambiente

médico (ADAMS, 2002, p. 447-448).11

Em busca de uma atitude distinta enquanto médico, Patch Adams aliou-se às

possibilidades transgressivas das figuras palhacescas. Agindo desse modo, o Doutor

Palhaço subverteu a “lógica de falta de amor”, como Adams compreendia, que costuma

operar no ambiente hospitalar.

Na pesquisa aqui realizada, o foco está na atuação de artistas cênicos

profissionais em contextos hospitalares, e não nos aspectos terapêuticos desse trabalho.

No contexto teatral, porém, não podemos afirmar que o encontro entre as figuras

palhacescas e as crianças hospitalizadas, seus acompanhantes, funcionários e equipe

médica se distancie da atenção, da escuta, da abertura e do cuidado para com os outros

que Patch Adams denomina como terapia. Implícitos na atuação das figuras palhacescas

11

Livremente traduzido.

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61

contextualizadas no hospital, esses princípios terapêuticos são direcionados por

profissionais das Artes Cênicas, que precisam aprender a bem empregá-los.

O emprego da energia transformadora da palhaçaria, para Du Circo, um dos

entrevistados dessa pesquisa, acaba retornando para o artista e modificando sua maneira

de estar no mundo:

Sem dúvida, ser palhaço tem dessas coisas, fazemos muitas pessoas

rirem no dia a dia; o rir faz essas pessoas mais felizes, essa felicidade

acaba voltando para o artista. (Preciso) Aceitar os momentos mais

difíceis após ver tanta gente hospitalizada e ver que muitas vezes

meus problemas são pequenos. Não sei se modifico minha maneira de

viver, mas acabo sendo modificado e realizado, com isso fico mais

feliz e vivo aceitando o mundo como ele está. O mundo está doente e

precisamos curar as pessoas. Uma coisa boa do meu trabalho é que

todo dia saio do hospital mais feliz do que quando entro (Du Circo).

As figuras palhacescas, ao saírem dos espaços convencionais como o teatro e o

circo, conforme Wellington, fazem-no “[...] não para abandonar aquele ventre, mas

para torná-lo mais amplo, e o primeiro lugar que ele encontra é o lugar onde estão as

crianças hospitalizadas [...]” (Wellington Nogueira).

Para a pesquisadora Ana Achcar, “[...] o mundo do palhaço é bem diferente

daquele do hospital, mas seu universo está muito próximo ao da criança.” (ACHCAR,

2007, p.24). Essa proximidade, segundo a autora, é capaz de facilitar uma conexão e

“[...] cria rapidamente uma grande cumplicidade entre eles.” (ACHCAR, 2007, p.24).

Achcar afirma que, no contexto hospitalar, a aproximação com os demais transeuntes do

hospital ocorre com base nessa relação de confiança.

Segundo Soraya Saíde, “[...] o palhaço é a máscara da inadequação do homem

frente ao mundo em que vive. O palhaço no hospital está no exílio, assim como uma

criança internada. Parceiros no estranhamento, na perplexidade, na vontade de brincar.”

(SAÍDE, 2005, apud DOUTORES DA ALEGRIA, 2005).

O encontro entre palhaças, palhaços e crianças é capaz de fazer que coexistam a

realidade e a brincadeira. Tanto as figuras palhacescas quanto as crianças estão

recentemente inseridas no hospital, e juntas inventam novas maneiras de viver nesse

espaço. Lá, crianças, palhaças e palhaços se depararam com novos desafios, que podem

ser também artísticos. Por trás dos narizes vermelhos dos palhaços existem seres reais

que, repletos de experiências vividas, sentimentos e emoções, atuam por meio de

saberes artísticos adquiridos através de pesquisas e de práticas constantes.

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Repleto de situações extremas, o ambiente hospitalar traz momentos delicados,

em meio aos quais os artistas deverão aproximar-se dos espectadores, protagonistas

desses momentos, considerando sempre aspectos artísticos, emocionais e éticos para

guiar sua atuação. Para manter, porém, a composição cênica, é necessário guardar certa

distância, sem a qual não é possível delinear as características palhacescas. É

elucidativa, assim, a reflexão de Achcar, que ressalta:

A ação do palhaço de hospital é audaciosa, arriscada e difícil; porque

para que ele atinja seus objetivos é preciso que ele se coloque próximo

ao seu público e nesse sentido, que ele esteja intimamente bem

disponível para o contato com o outro. Ao mesmo tempo em que é

necessária a proximidade, o palhaço é uma máscara e precisa tomar

certa distância para não se misturar às figuras cotidianas, para não se

tornar familiar; e conservar a característica de ser fora do comum. A

formação é indispensável porque possibilita ao estudante / palhaço

fazer o exercício de se aproximar e de se distanciar sem perder a

qualidade artística da forma e do conteúdo de sua ação (ACHCAR,

2007, p.192).

Além de um treino, essa atuação requer acompanhamento psicológico

especializado, e pode ser regido por um código de conduta, que visa a compor as

especificidades de atuação palhacesca em cada ONG ou grupo. Ao propor a constituição

de um código de ética, Achcar justifica que:

Na tentativa de responder às exigências da atuação no hospital e às

escolhas metodológicas que é preciso fazer em sala de aula, deparei-

me com uma intensa necessidade de reflexão ética acerca do trabalho.

A coerência na adoção de princípios do jogo cômico, a transparência

na avaliação do aproveitamento do estudante, a responsabilidade na

liberdade de ação do artista, chamaram a minha atenção para a

construção de um código normativo e prescritivo dos valores e

deveres do palhaço de hospital. Essa pesquisa também se baseou em

dois códigos de ética de palhaços de hospital, um do programa Le Rire

Médecin, da França, e outro do Pupaclown da Argentina (ACHCAR,

2007, p.135).

A busca pela criação de um conjunto de regras que abarcam a atuação palhacesca

hospitalar significa a constituição das especificidades dessa recente área de atuação nas

Artes Cênicas. Tomemos por exemplo, neste sentido, os artigos estabelecidos pela

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associação Pupaclown12

:

Artigo 1. Intervenção: o palhaço que faz intervenção num hospital é

um profissional, com formação específica na área do palhaço de

hospital, com experiência em atividades em hospitais. Tem formação

nas artes do espetáculo e tem vasta experiência neste campo. [...] Deve

respeitar e respeita a especificidade e deve adaptar se ao meio

hospitalar. Artigo 2. Exercício da atividade no hospital: o palhaço só

deve realizar atos/atividades relacionados com as suas competências

artísticas. O palhaço está presente no hospital para ajudar as crianças,

jovens e seus familiares a suportar melhor a hospitalização. Manifesta

a sua atividade através do humor e fantasia e pode também transportá-

las para o meio hospitalar. O palhaço deve estar sempre consciente de

que as suas intervenções devem ser no sentido de melhorar o bem

estar das crianças, jovens e seus familiares, em estreita colaboração

com toda a equipe médica. [...] Artigo 3. Duplas: o palhaço não deve

intervir solitariamente no ambiente hospitalar, deve trabalhar sempre

em duplas de palhaços. Artigo 4. Responsabilidade: o palhaço é

responsável pelos seus atos durante a sua atuação no hospital. Exerce

suas intervenções com respeito pela dignidade, personalidade e

intimidade das crianças, dos jovens e dos seus familiares e amigos.

Exerce todas as suas intervenções com a mesma consciência

profissional, sem ter em conta a sua procedência, sexo, raça,

nacionalidade, religião, costumes, situação familiar, status social,

educação e doença. Se pedirem a sua opinião deve abster-se de

qualquer comentário e/ou observação que possa ser inadequada e que

possa chocar ou magoar os doentes, familiares e amigos. Artigo 5.

Segredo Profissional: exige-se ao palhaço de hospital segredo

profissional e confidencialidade. Deve manter segredo sobre toda a

informação que lhe foi transmitida e também sobre tudo o que ouviu,

que leu, constatou e se apercebeu sobre a identidade, estado e saúde

das crianças e jovens. Exige-se descrição em todos os lugares tanto no

interior como fora do hospital. Artigo 6. Formação: para assegurar a

qualidade das suas intervenções, o palhaço deve estar em constante

formação, deve aperfeiçoar os seus conhecimentos com alguma

regularidade, fazendo cursos na área do clown e clown de hospital,

deve usar as técnicas e teorias de clown. Deve fazer formação nas

seguintes áreas: desenvolvimento da criança, formação sobre

patologias, vocabulário especifico de hospital, a dor, a morte, etc.

Artigo 7. Segurança: o palhaço de hospital deve sempre zelar pela

segurança física e psíquica das crianças e jovens. Não deve, nas suas

intervenções, jogos, atividades, nos seus “acessórios clownescos” e

nas suas deslocações, pôr em perigo as crianças, jovens, família e

restante pessoal médico. Artigo 8. Regulamento interno: o palhaço

deve conhecer, respeitar e acatar o regulamento interno. Deve cumprir

as regras de higiene e de segurança específicas de cada hospital.

Artigo 9. Imparcialidade: o palhaço não deve tomar partido ou

posições quando lhe transmitem queixas relativas ao serviço

hospitalar, problemas pessoais, problemas entre elementos da equipe

12

A Associação Pupaclown de palhaços que atuam em contextos hospitalares leva a arte do palhaço para

instituições de saúde de Murcia, na Espanha, desde o ano de 1998, além de realizar outras ações de

pesquisa, formação e geração de conteúdo cultural para a sociedade.

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médica/hospitalar, problemas entre familiares e seus problemas

pessoais. Não deve tomar partido relativamente também a questões

relacionadas com a gestão do hospital. Assuntos e situações ocorridas

dentro do hospital e/ou relacionadas com o hospital, pacientes e seus

familiares, equipe médica, etc. devem ser mantidos sempre em

segredo profissional. Artigo 10. Promoções: em nenhum caso, o

palhaço deve aceitar prendas, gorjetas ou remunerações pelas suas

intervenções. Não pode participar nem oferecer-se para participar em

operações/ações de promoção, de distribuição de objetos ou

publicidade com fins lucrativos. E o palhaço não deve fazer

afirmações ou participar em iniciativas em nome do hospital, equipe

médica ou outros elementos do hospital (PUPACLOWN, 2009, s.p.

apud CASSOLI, 2012, p. 128-130).

Esses dez artigos sintetizam de maneira bastante concreta os princípios comuns da

atuação palhacesca em ambiente hospitalar, onde, em meio a todo um conjunto de

elementos de conduta desejada, dão-se as ações artísticas. É possível afirmar que esses

artigos significam uma possibilidade de unificação ética necessária para guiar algumas

das ações palhacescas e situar artistas sobre aquilo que delas e deles se espera no

ambiente hospitalar.

3.1 DOUTORES DA ALEGRIA

O contexto brasileiro, no âmbito do fenômeno da atuação palhacesca hospitalar,

obteve expressividade e relevância mundial através do trabalho desenvolvido pela ONG

Doutores da Alegria, responsável atualmente por manter um dos mais completos

programas do gênero no mundo, e também por desenvolver ações artísticas, de

formação e de pesquisa referentes à área. Dada a dimensão profissional da ONG,

exponho aqui um registro sobre sua atuação, bem como a descrição de algumas de suas

ações, que dizem respeito não só ao contexto artístico hospitalar, mas também a outros

âmbitos da sociedade. Leiamos, pois, o posicionamento de Wellington Nogueira,

fundador da ONG Doutores da Alegria, sobre esse tipo de manifestação teatral:

O teatro para mim ainda é um templo, ainda é um espaço sagrado,

mas o que eu aprendi com isto é que quando você tem dois artistas

muito tranquilos e seguros no que eles estão fazendo, como eles estão

fazendo, o templo pode ser reproduzido em qualquer lugar, em

qualquer circunstância da vida, inclusive a cotidiana, para justamente

provocar no cotidiano uma ruptura e aí poder entrar a arte, entrar

outra forma de ver o mundo, de se relacionar com a vida (Wellington

Nogueira).

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O fenômeno a que se refere Wellington é capaz de reproduzir “templos sagrados”

até mesmo nos corredores de um hospital. Transformando o cotidiano artisticamente, as

figuras palhacescas podem propiciar perspectivas e maneiras distintas de relação tanto

no que diz respeito às Artes Cênicas, quanto no que tange ao contexto hospitalar.

Pesquisando essas maneiras singulares de tecer relações com os outros e com o

mundo, a ONG está presente na sociedade civil desde 1991, e atualmente mantêm

contratados cerca de quarenta palhaços profissionais, além de funcionários e equipe

técnica. Todas as palhaças e palhaços da Organização são profissionais com formação

cênica, advindos de contextos artísticos, tais como teatros, ruas e circos. O elenco da

ONG Doutores da Alegria é composto por profissionais atuantes na cadeia produtiva

local e nacional, sendo que alguns são artistas premiados dentro e fora do Brasil.

Ao se inserirem no contexto de atuação da ONG, os artistas já trazem consigo

experiências na atuação palhacesca, e ainda passam por um treinamento específico para

atuarem no âmbito hospitalar, conduzido por artistas mais experientes da ONG, tais

como Thaís Ferrara (nos Doutores da Alegria desde 1993), Soraya Saíde (nos Doutores

da Alegria desde 1992) e Wellington Nogueira, dentre outros profissionais

(DOUTORES DA ALEGRIA, 2007; 2008; 2009).

Os Doutores da Alegria cultivam um acervo de bibliografias, imagens, vídeos,

entre outros registros que contém palestras, oficinas, cursos, espetáculos, apresentações

de artistas da ONG, discentes da Escola e demais artistas do Brasil e do mundo. Nesse

espaço, também constam títulos clássicos do cinema mundial relacionados com o

universo cômico ou da palhaçaria, assim como livros, revistas, entre outros materiais de

cunho didático e de pesquisa.

A matriz da ONG está situada na capital paulista, porém os Doutores da Alegria

estão presentes também em Recife (PE), onde mantêm outra sede e equipe de

profissionais. Ambas as representantes estão fortemente integradas no cenário cultural

de suas localidades e em decorrência desse fato o acesso a suas ações se difundiu

também por interiores brasileiros. De norte a sul existem pessoas influenciadas pelo

trabalho dos Doutores no Brasil, que buscam na experiência desenvolvida pela ONG

uma referência. Segundo o fundador, Wellington, a ONG Doutores da Alegria optou por

não negligenciar as pessoas que de alguma maneira se inspiraram no trabalho, mas sim

propiciar oportunidades de desenvolvimento técnico, sensível e de profissionalização

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para pessoas que têm o intuito de realizar trabalhos semelhantes. Hoje, como

mencionado, estas pessoas somam-se em mais de mil e oitenta grupos no Brasil.

Sem fins lucrativos, a ONG “[...] promove a qualidade das relações humanas e

qualifica a experiência de internação em hospitais por meio da visita contínua de

palhaços profissionais especialmente treinados em São Paulo e no Recife.”

(DOUTORES DA ALEGRIA, 2014, p.54). Sua base de trabalho se define como o “[...]

o resgate do lado saudável da vida, mesmo em condições adversas, por meio da arte do

palhaço.” (DOUTORES DA ALEGRIA, 2014, p.15).

Figura 8 - Doutoras Juca Pinduca (Juliana Gontijo) e Greta Garboreta (Sueli Andrade).

Fonte: <http://sejamedeasy.com.br/doutores-alegria/>. Acesso em 05/08/2016.

No ano de 2013, os Doutores da Alegria computaram um milhão de visitas a

crianças hospitalizadas, seus acompanhantes, equipe médica e funcionários dos

hospitais atendidos, contadas desde 1991, ano em que passou a existir (DOUTORES

DA ALEGRIA, 2014). As visitas ocorrem de modo contínuo, com os palhaços

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compondo duplas e atuando duas vezes por semana no mesmo hospital, cerca de seis

hora em cada dia. As duplas, como é possível observar na imagem 8, desenvolvem um

vínculo entre si que é capaz de conectá-las com os espectadores.

O trabalho dos Doutores da Alegria, além de produzir grande impacto artístico e

social no Brasil, também é reconhecido internacionalmente e foi incluído duas vezes

pela Divisão Habitat da ONU entre as melhores práticas globais (DOUTORES DA

ALEGRIA, 2014, p. 57). As ações da ONG, que repercutiram fortemente no Brasil,

abriram espaço para que hoje existam milhares de outros grupos desenvolvendo

trabalhos semelhantes no país. Wellington afirma que a consciência de que ele estava

abrindo as portas desse trabalho no Brasil, desde o início, acarretou-lhe um forte senso

de responsabilidade, como podemos ver abaixo:

Você já pensou se eu entrar para história como o cara que ferrou com

este trabalho no Brasil? Eu vou responder eternamente por isso,

então eu tenho até hoje um medo muito grande, mas não é um medo

paralisante, é um medo que me faz ouvir com cuidado, e isto eu

aprendi com o palhaço que criou este trabalho, Michael (Christensen)

que dizia que o trabalho sabe para onde ele quer ir, você só tem que

ouvir e sair do caminho para não atrapalhar. Hoje eu vejo esta

contribuição em vários aspectos, no sentido de você fomentar a arte

do palhaço no Brasil, de uma maneira que acho que é incontestável

(Wellington Nogueira).

Guiado por uma busca pelo profissionalismo e consciência na realização do

trabalho, Wellington traçou as metas da hoje mundialmente reconhecida ONG Doutores

da Alegria, tendo contribuído fortemente no fomento da arte palhacesca brasileira. A

ONG se tornou uma referência no que tange à atuação de palhaças e palhaços em

contextos hospitalares e recebeu diversas honrarias, tais como:

[...] o prêmio Universidade de São Paulo de Direitos Humanos em

2005, o Stockholm Partnerships Award em 2002, o Prêmio Camargo

Correa em 2004, e o Prêmio de Dubai, outorgado pela Divisão Habitat

da Organização das Nações Unidas (ONU), que os classificou entre as

40 melhores práticas sociais do mundo, colocando os Doutores da

Alegria na lista das 100 melhores práticas globais em 1998 e 2000

(SENA, 2011, p. 34).

Através de suas publicações, a ONG atenta para a sistematização e difusão de

conhecimentos e tecnologias produzidas pelo seu trabalho. Além disso, os Doutores

realizam cursos e palestras que visam o “[...] estudo das relações entre arte e ciência e

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do universo do palhaço como um todo.” (DOUTORES DA ALEGRIA, 2008, p.

8).Embora seu trabalho esteja voltado para a “[...] atuação profissional de palhaços junto

a crianças hospitalizadas, seus pais e profissionais de saúde.” (DOUTORES DA

ALEGRIA, 2015), a ONG desenvolveu e desenvolve ações artísticas, formativas e de

pesquisa para além do contexto hospitalar. Os Doutores da Alegria se caracterizam

como “[...] a única organização no mundo que evoluiu do trabalho no hospital para

atividades que também priorizam a formação, a pesquisa e a geração de conteúdo para a

sociedade.” (DOUTORES DA ALEGRIA, 2015).

Atualmente as ações da ONG nos hospitais são compreendidas pelo Programa de

Palhaços Besteirologistas, que garante a visita dos palhaços aos hospitais atendidos, e

pelo projeto Plateias Hospitalares. Com esse último projeto, os Doutores da Alegria

pretendem viabilizar o acesso da comunidade hospitalar a apresentações cênicas, como

de teatro infantil e adulto, teatro de bonecos, intervenções, contos infantis,

apresentações circenses, musicais e de dança. Essa ação ocorre no Rio de Janeiro e se dá

através da abertura de um edital e seleção de propostas artísticas a serem apresentadas

nos hospitais parceiros da ONG naquele local (DOUTORES DA ALEGRIA, 2014).

Fora dos hospitais, os Doutores experimentam criações artísticas e desenvolvem

projetos como a Roda Besteirológica, conhecida anteriormente como Roda Artística,

que nasceu da necessidade de os artistas dos Doutores da Alegria se encontrarem para

avaliar o que realizam nos hospitais, trocar experiências e compartilhar processos de

trabalho. As criações apresentadas nas Rodas Besteirológicas, mesmo que em estado

bruto, são registradas e documentadas, conforme pode-se observar no arquivo dos

Doutores da Alegria, situado na sede de São Paulo. As Rodas Besteirológicas acontecem

desde 2008 a cada dois meses em São Paulo (DOUTORES DA ALEGRIA, 2014).

A ONG conta com um elenco de profissionais que se dedicam à criação e à

circulação de espetáculos cênicos em teatros, praças, empresas, hospitais e em outros

espaços da sociedade. Alguns desses espetáculos são “Midnight clown” (1995), “Senhor

Dodói” (2008), “O homem que fala” (2013), entre outros. Além dessas produções, os

Doutores da Alegria também realizam espetáculos temáticos anuais como o “Auto de

Natal” e a montagem de uma quadrilha junina, ambos itinerantes e realizados nos

diferentes hospitais atendidos. Os Doutores da Alegria também realizam intervenções

em empresas (palestras, oficinas, atuações).

Em determinado momento de sua história, por volta de 2004, a ONG decidiu que

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era o momento de difundir os conhecimentos e tecnologias desenvolvidas e investir na

organização da Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria. Desde sua abertura até os

dias de hoje, a Escola vem realizando um trabalho pioneiro no Brasil e na América

Latina13

, oferecendo cursos para pessoas interessadas em geral, desenvolvendo desde

2004 o Programa de Palhaços para Jovens, e desde 2007 o Programa Palhaço em Rede.

Nascido em 2007, o Programa Palhaço em Rede tem por intuito conectar os

diversos grupos no Brasil que surgiram após a iniciativa de Wellington Nogueira no

país. O Programa configura-se hoje como uma importante plataforma de cartografia on-

line dos grupos que atuam com palhaços em hospitais, bem como torna possível a

comunicação da ONG com outros grupos ou indivíduos que almejem envolver-se com

trabalhos semelhantes. O seu objetivo é, portanto, “[...] estabelecer uma rede de

cooperação entre indivíduos e grupos que atuam nos hospitais como palhaços, tendo

como foco a qualidade do que é levado para a criança ou adulto hospitalizado.”

(DOUTORES DA ALEGRIA, 2009).

O tutor do programa, Raul Figueiredo, é responsável por estimular a

comunicação dos Doutores da Alegria com outros grupos e desde 2009 tem a missão de

viajar pelo Brasil e pela América Latina ministrando cursos em nome dos Doutores da

Alegria. Com a mencionada nova lei da Argentina, que institui a presença de

profissionais palhaços nos hospitais da província de Buenos Aires, Raul, como relatou

em momento de entrevista, deslocou-se até o país para levar a contribuição dos

Doutores da Alegria nesse processo organizativo.

O Programa de Formação de Palhaços para Jovens (PFPJ), outro importante

projeto da Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria, foi o primeiro projeto

desenvolvido pela Escola, fator de conexão entre os entrevistados e esta pesquisa. O

PFPJ teve sua primeira turma aberta em 2004, sendo que no ano de 2013 eu, Daiani

Brum, ingressei na quinta turma. A Escola promove, através do PFPJ, uma experiência

formativa ímpar na realidade da pesquisa palhacesca brasileira e latino-americana.

Configurando-se como um importante espaço de pesquisa sobre a comicidade, bem

como sobre diferentes técnicas corporais empregadas na composição palhacesca, a

13

Existem diversas escolas de circo na América Latina, como a Escola Nacional de Circo (RJ), a Escuela

Nacional Circo Para Todos (Colombia), El Circo Del Mundo (Chile), entre outras. Porém, as escolas de

palhaço são uma realidade bastante recente. No Brasil, em 2013, dez anos após o surgimento da Escola de

Palhaços dos Doutores da Alegria, foi fundada a Escola Livre de Palhaços (ESLIPA, RJ) e em 2014

iniciaram-se as atividades da Escola de Palhaços do Circo da Dona Bilica (SC), fundada pelo palhaço

espanhol Pepe Nunéz, totalizando três escolas de palhaços no país.

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Escola serve de referência para outras iniciativas mais recentes. No anexo 3,

disponibilizo o edital de 2016, onde constam os objetivos do curso, as disciplinas

básicas a serem cursadas e demais informações sobre o PFPJ.

Atualmente, o Programa conta com 12 anos de existência, tendo formado cerca de

175 jovens na arte da palhaçaria. Mantém-se hoje com cerca de outros 25 em processo

de formação. Estudos realizados pela ONG comprovam que cerca de oitenta por cento

dos jovens formados pela escola estão inseridos no meio artístico profissionalmente.

Vale salientar o fato de que o PFPJ não tem como foco a formação de palhaços

que atuem, como os Doutores da Alegria, apenas em contextos hospitalares, mas sim em

diversos âmbitos da sociedade. Assim, a Escola oferece uma ampla gama de

possibilidades técnicas, estéticas e sensíveis na condução da formação cênica dos jovens

aprendizes. Cabe a cada aluno construir seu trajeto profissional, através da busca por

experiências que condigam com suas expectativas artísticas e humanas.

A cada dois anos, a Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria abre inscrições

para o processo seletivo do PFPJ. São selecionados, após cinco dias de oficinas práticas

guiadas por formadores dos Doutores da Alegria, vinte e cinco jovens com idade entre

17 e 23 anos. Esses jovens vivenciam diariamente, de segunda a sexta, entre 9h da

manhã e 13h da tarde, durante dois anos, uma experiência de formação na técnica e na

sensibilidade palhacescas e da comicidade em geral, sob a condução de artistas e

docentes dos Doutores da Alegria, totalizando 1.800 horas/aula. Os jovens aprendizes

são instigados a construírem de uma maneira particular a sua forma de serem palhaças e

palhaços, como se lê a seguir:

O objetivo do curso é oferecer formação na linguagem do palhaço e

gerar experiências artísticas com o foco na constituição da autoria, da

autonomia de criação, valorizando o permanente processo de

aprendizagem por meio do estudo, do treino e da pesquisa. O

programa também fornece instrumentos para formar artistas

implicados nas questões de seu tempo, propositivos a partir de uma

leitura crítica da realidade. É gratuito, financiado por leis de incentivo

à cultura e por instituições públicas e privadas que têm garantido a sua

continuidade (DOUTORES DA ALEGRIA, 2015).

Valorizando a autoralidade dos jovens estudantes, os mestres conduzem um

ambiente onde a pesquisa na arte da palhaçaria e da comicidade é o foco. Ao longo dos

dois anos, são ministradas disciplinas ou módulos de expressão corporal, jogo cênico,

máscara neutra, comédia humana, comédia Dell Arte, malabarismo, mágica, história do

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circo e do palhaço, corpo cômico, música, acrobacia, produção cultural, literatura,

danças populares brasileiras, maquiagem, laboratório de experimentação de figurinos,

filosofia, palhaço. Ao final do processo, os alunos realizam a montagem e a circulação

de um espetáculo/exercício cênico sob a direção de um ou dois docentes da Escola. Essa

estrutura curricular não é estanque e modifica-se a cada ano, conforme o perfil dos

discentes e seus anseios artísticos. Segundo relatou em momento de entrevista o

coordenador da Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria, Heraldo Firmino, a equipe

de formadores busca manter-se atenta às necessidades de cada turma.

Na minha turma, denominada FPJ5, intitulamos o espetáculo/exercício cênico de

“Nada de crachá, meu chapa!”. Ele foi dirigido por Thaís Ferrara, atriz, diretora,

formadora da Escola e palhaça na ONG desde 1992, e Roberta Calza, atriz, diretora,

formadora da Escola e palhaça na ONG desde 2002. “Nada de crachá, meu chapa!”, foi

apresentado em diversas cidades do interior de São Paulo, além de manter uma

temporada de um mês no Teatro FECAP, na capital de São Paulo, totalizando cerca de

25 apresentações.

A seguir, trago uma foto do elenco reunido no espetáculo “Nada de crachá, meu

chapa!”, onde a Doutora Brum ganhou seus contornos. Na fotografia, ela aparece

vestida de vermelho, com o pé para cima:

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Figura 9 - PFPJ 5.

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. Foto de André Stéfano.

Com o caráter empregado na construção do espetáculo pelas diretoras, capazes de

conduzir um ambiente de pesquisa em que as verdades preestabelecidas, os rótulos e os

“crachás” foram transgredidos pela experimentação, pela ação e pela proposição, a

conclusão é de que o título do espetáculo foi muito apropriado.

Ao longo dos dois anos de formação, fizeram-se alicerce para a minha experiência

a condução das diretoras; do diretor pedagógico Heraldo Firmino e da sempre presente

formadora da escola, a coordenadora de formação e palhaça da ONG desde 1991 Soraya

Saíde. Os docentes do PFPJ majoritariamente são ou foram palhaços profissionais do

elenco dos Doutores da Alegria, com exceção de alguns profissionais convidados para

ministrar aulas. As aulas, desse modo, tiveram um caráter de compartilhamento de

experiências, pois os professores ministraram-nas com base em uma prática artística

pesquisada dentro e fora do contexto hospitalar.

Encerro, assim, este registro sobre a Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria

com uma experiência descrita pelo idealizador e coordenador do PFPJ, Heraldo

Firmino:

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A gente fez um MOCREA (Mostra Criativa de Ex-alunos e alunos do

PFPJ) estes dias, e era uma MOCREA especial, só com alunos que já

se formaram, e a gente fez uma grande roda no teatro para passar as

músicas e eu olhei e estava todo o mundo com instrumento na mão e

eu pensei: Mas que bandinha é esta com trinta pessoas? Aí, eu fiquei

olhando, eles começaram a tocar e fazendo, e aí a gente combinou de

fazer um cortejo na rua, e eu fiquei olhando aquilo, e pensando como

artista a gente tem sonhos de grandes realizações, e eu acho que em

conjunto com os Doutores o PFPJ é minha maior realização enquanto

artista. Quando eu vi aquela moçada toda ali para entrar em cena, e

conhecendo a história de cada um, mesmo, porque a gente fica muito

perto e começa a dividir alguma coisa desta experiência. E quando eu

falei isto, foi uma choradeira deles, e eu também me emocionei muito.

E eu fiquei muito emocionado por eles terem ficado muito

emocionados com esta questão. Não quero louros por nada deste

negócio, mas eu posso olhar e dizer que muita coisa bonita foi feita e

a gente ainda tem muito que fazer. (Heraldo Firmino).

No relato acima, podemos perceber que o trabalho da ONG Doutores da Alegria

transgrediu as fronteiras dos palcos hospitalares, onde se propuseram inicialmente a

atuar. Esses palcos, permanentes espaços de pesquisa na área da palhaçaria, permitiram

que a experiência os ultrapassasse sem deixar de manter com eles a mesma e intensa

conexão. O trabalho desenvolvido pela ONG Doutores da Alegria, assim como o que

acontece em diversas outras organizações do mundo, constitui-se de uma prática

cotidiana que tem como veículo de expressão o corpo, as possibilidades artísticas e a

sensibilidade das atuadoras e dos atuadores.

Segundo a pesquisadora e psicóloga da ONG Doutores da Alegria Morgana

Masetti, a composição do trabalho do palhaço no contexto hospitalar é derivada do “[...]

esforço do homem em se entregar para a única condição possível de existência: a da

relação humana.” (MASETTI, 2013, p. 921). Masetti aborda as relações humanas pelo

viés das boas misturas, proporcionadas através dos bons encontros, ou seja, dos

encontros que ampliam a potência da ação humana (MASETTI, 2001). Para ela, o

palhaço profissional no contexto hospitalar é um promotor de boas misturas, e uma

importante figura na busca pelo que ela chama de “ética da alegria” no espaço

hospitalar:

Porque a alegria nos aproxima da ação. [...] Por meio dela buscamos

os bons encontros, que favoreçam a ampliação de nossa potência e

qualidade de relação. Já não se trata do profissional tecnicamente bem

preparado, capaz de separar sua vida profissional da emocional, mas

daquele que tem a coragem de abandonar o esforço para separá-las,

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misturando-se a cada novo olhar que encontra. Isso exige desafios do

ponto de vista educativo (MASETTI, 2013, p. 922).

Esses desafios também podem ser pensados no campo das Artes Cênicas, pois

somando o hospital à gama de espaços possíveis para a cena, surgem novos

pressupostos do ponto de vista da atuação. No contexto hospitalar, como vimos, as

palhaças e os palhaços constroem seu percurso através do jogo entre as situações reais e

circunstanciais da vida, deixando-as se misturarem com os olhares que encontram e com

a articulação simultânea de seu repertório artístico, técnico e sensível.

Wellington Nogueira relata que esse trabalho ocorre quando “Eu estou cocriando

uma cena com meu parceiro de cena, que é a criança, em tempo real. Um roteiro com

início, meio e fim, criado em tempo real pela criança e pelo palhaço.” (Wellington

Nogueira). A partir de uma abertura para o outro, artistas, crianças, acompanhantes,

profissionais da saúde e funcionários vivem situações de encontro entre seres humanos

que compõem teatralidades no cotidiano.

Esse jogo do tempo presente, para a pesquisadora Sayad, é calcado no improviso e

exige um preparo aliado ao estado de abertura:

Nós treinamos para o presente, não estamos prontos (no sentido de

acabados, finalizados), mas sim prontos (no sentido de prontidão, de

predisposição a adaptar-se, a transformar-se). Esta noção de presença,

que nos é tão cara, corre o risco de se perder, de ir por água abaixo se

o palhaço acreditar que ele tem que acertar: chegar ao hospital, fazer

algo de muito mágico ou engraçado, mudar o ambiente e sair. Para

transformar o outro é preciso, antes de tudo, transformar-se a si

mesmo. (SAYAD apud. DOUTORES DA ALEGRIA, 2008).

A transformação referida por Sayad refere-se ao aguçar da escuta e da percepção,

necessário à atuação palhacesca hospitalar, uma vez que cada micro acontecimento

cotidiano pode ser mote criativo para uma cena teatral. Wellington Nogueira, criador do

palhaço Dr. Zinho, afirma que o palhaço promove uma ruptura na realidade:

Ao entrar no hospital, sair do espaço sagrado do teatro, para mim, foi

como o que acontece quando acaba a peça e você não tira a

maquiagem e você sai do palco e você se encontra com a plateia no

ponto de ônibus ou no metrô. A vida continua e tudo mais, então para

mim aquilo trouxe todos estes questionamentos e campos de visão

(Wellington Nogueira).

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Esse teatro sobre o qual se questionou Wellington estava migrando dos palcos

para os hospitais, o que, através da figura palhacesca, propicia a diluição das fronteiras

entre artistas e público. Tal pensamento pode se aproximar novamente das experiências

documentadas no teatro de Jerzy Grotowski. Segundo o professor e pesquisador Robson

Haderchpek, “No Teatro Laboratório de Grotowski o acontecimento teatral é visto como

um ato de comunhão e de co-participação entre o ator e o espectador.”

(HADERCHPEK, 2016, p. 7). Esse ato de entrelaçamento aproxima as colocações de

Grotowski ao trabalho de atuação palhacesca no contexto hospitalar, uma vez que

igualmente valoriza o individual na composição do coletivo.

Habitado pela singularidade dos encontros, no espaço e no tempo do ambiente

hospitalar, palhaças e palhaços percorrem por corredores, quartos e salas, segundo

Wellington Nogueira, “[...] realizando o caminho inverso, eu estou pedindo licença

para entrar na sua vida em um momento de intimidade, existe esta força, este

compromisso.” (Wellington Nogueira).

Ao receber a permissão para entrar, as figuras palhacescas passam a buscar um

elo com a criança, seus acompanhantes, funcionários e equipe médica do hospital. Essa

ligação pode ser capaz de estabelecer uma relação de confiança mútua na qual os seres

em situação de encontro têm a possibilidade de desenvolverem suas potencialidades.

Assim, através da lógica palhacesca e em consonância com os acontecimentos

hospitalares, constituem-se cenas teatrais em tempos reais.

Nos tempos e espaços hospitalares, os menores gestos do cotidiano são materiais

para a composição palhacesca. As trocas entre sutilezas do dia-a-dia e elaborações

teatrais ocorrem, por vezes, de maneira orgânica, e um simples tocar de mãos pode

significar uma cena de poesia, onde os presentes compreendam certo tom de realidade

por trás da máscara palhacesca, e certo toque de palhaçaria na tessitura do cotidiano. O

íntimo contato entre a arte e a vida nos contextos hospitalares exige proximidade,

envolvimento e sensibilidade, como podemos pensar a partir da imagem 10:

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Figura 10 - Doutora Xaveco Fritza (Val de Carvalho) pegando na mão de um bebê.

Fonte: <https://www.doutoresdaalegria.org.br/blog>. Acesso em 04/09/2016.

A atuação palhacesca contextualizada ao hospital propicia a existência de um

movimento de aproximação entre espectadoras, espectadores e artistas. A situação

apresentada na fotografia não se trata de uma exposição da plateia ou imposição

performática, mas sim de uma troca de saberes e existências, que se estabelece entre as

Artes Cênicas e a natureza da vida. Ao estabelecer um momento de conexão com o

bebê, a palhaça gera experiências que não são necessariamente risíveis, mas que exigem

sensibilidade para perceber o que pode proporcionar o bem estar nos palcos

hospitalares. No encontro com o bebê, possivelmente as habilidades circenses, truques

de alto desempenho ou brilhantes interpretações teatrais talvez ficassem aquém de um

simples toque de mãos acompanhado de um olhar inteiro por trás de um nariz vermelho.

Através de um engendro alquímico que mescla sensibilidades e técnicas cênicas,

geram-se no corpo das palhaças e dos palhaços que atuam em palcos hospitalares

experiências e saberes que ultrapassam as fronteiras da racionalidade, que estão

enraizadas na pele e no coração. A partir desses registros corpóreos, passaremos a

conhecer algumas memórias sobre a palhaçaria hospitalar. No capítulo que se segue,

terão vez entrevistas que abordam vivências e experiências no âmbito da palhaçaria

hospitalar, cujos dados serão interpretados a partir de uma metodologia fenomenológica.

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4 CAMPO DE EXPERIÊNCIAS

Merleau-Ponty considera que “As coisas estão ali, de pé, insistentes, esfolando o

olhar com suas arestas.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 450). Tal pensamento nos leva

a refletir sobre o campo das experiências, em que por meio do contato se dão os

conhecimentos sobre o mundo. Antes da reflexão, as coisas encontram-se situadas no

mundo, apresentando-se tal como são. Basta que nosso olhar se volte para elas e perceba

seus contornos. Esse olhar, porém, deve ser constituído a partir de uma atitude

interrogativa, sem inferir significações ao fenômeno observado (MERLEAU-PONTY,

2006).

Ao investigar referências bibliográficas aliadas às experiências vividas por

palhaças e palhaços profissionais, é possível compreender que essas existências, bem

como suas características técnicas, não estão puramente vinculadas ao campo reflexivo,

mas são permeadas pelo contato com o corpo e com o coração dos artistas que as

vivenciam, bem como com o dos espectadores que com eles entram em contato. Para a

pesquisadora Márcia Strazzacappa, aquilo “[...] que me toca o corpo, o coração registra

e o que é falado ao coração, mesmo que em segredo, o corpo escuta.”

(STRAZZACAPA, 1994, s.p.). Essa colocação reflete uma impossibilidade de

separação das técnicas corpóreas com a sensibilidade de cada artista.

No contexto da atuação palhacesca encontra-se, ainda, a inviabilidade de se

aplicar técnicas de maneira arbitrária ou estanque. É necessário constituir uma conexão

entre o corpo e o coração daqueles que vivem no tempo e no espaço presentes os

encontros teatrais.

Essa atuação registra recordações significativas no processo de composição

palhacesca, que no contexto de nossa investigação podem gerar saberes e sensibilidades.

Para Grotowski, “[...] as recordações são sempre físicas. Foi a nossa pele que não

esqueceu, nossos olhos que não esqueceram. O que escutamos pode ainda ressoar

dentro de nós.” (GROTOWSKI, 1971, p. 172). Ou seja, perpetuam-se no corpo as

recordações. Nessa mesma perspectiva, o escritor Eduardo Galeano lembra que o verbo

recordar vem do “[...] latim re-cordis, voltar a passar pelo coração.” (GALEANO, 2015,

p. 11), abarcando um campo para além da racionalidade e vinculado às sensibilidades

corpóreas.

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Se tudo aquilo que vivemos passa pelo corpo e pelo coração, é fulcral percorrer

por essas rotas para investigar o fenômeno da atuação palhacesca hospitalar. Sendo

assim, dialogo, nas linhas que se seguem, com algumas experiências vividas e

compartilhadas através das memórias de oito entrevistados, escolhidos por terem vivido

experiências no âmbito da palhaçaria e especialmente da palhaçaria hospitalar. O

objetivo do presente capítulo, portanto, é trazer de maneira mais explícita os relatos das

entrevistadas e dos entrevistados. Tais relatos trazem importantes vivências do campo

da atuação cênica hospitalar, proporcionando também uma profunda possibilidade de

investigação do campo das experiências.

Os entrevistados, sete membros e um ex-membro da ONG Doutores da Alegria,

são: Wellington Nogueira (ator, palhaço e fundador dos Doutores da Alegria), que

cedeu uma entrevista de 58 minutos na sede dos Doutores da Alegria (SP), no dia 31 de

agosto de 2015; Heraldo Firmino (palhaço e coordenador da Escola de Palhaços dos

Doutores da Alegria, na ONG desde 1998), que cedeu uma entrevista de 42 minutos no

dia 18 de setembro de 2015, através da plataforma digital do Skype; Raul Figueiredo

(palhaço, músico, formador, nos Doutores da Alegria desde 1995), cuja entrevista,

realizada no dia 22 de setembro de 2015, durou cerca de 50 minutos e também foi

realizada através da plataforma do Skype; Roberta Calza (atriz, palhaça e formadora,

compõe o elenco dos Doutores da Alegria desde 2002), que foi entrevistada durante

cerca de 30 minutos no dia 18 de setembro via Skype; Marcelo Marcon (palhaço,

mágico e formador, na ONG desde 2010), que foi entrevistado presencialmente ao

longo de 49 minutos no dia 1 de setembro de 2015, na sede dos Doutores da Alegria

(SP); Du Circo (palhaço, malabarista e formador, nos Doutores da Alegria desde 2006),

que entregou um questionário respondido para esta pesquisa no dia 29 de setembro de

2015; Luciana Viacava (atriz, palhaça e formadora, profissional da ONG desde 2006),

que respondeu a algumas questões através de um questionário poucos dias antes de ter

sido entrevistada ao longo de 40 minutos, no dia 28 de setembro de 2015, via Skype.

Essas entrevistas foram, com exceção daquela em formato de questionário, gravadas em

áudio e integralmente transcritas.

A oitava entrevista foi realizada em junho de 2016, através de um questionário

respondido pelo palhaço Ésio Magalhães, que já trabalhou no elenco da ONG Doutores

da Alegria, entre 1998 e 2003, e atualmente se destaca artisticamente no Brasil e em

outros países. Os sujeitos entrevistados foram selecionados pelo fato de terem

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experiências vividas nos palcos convencionais e em hospitais, sendo que todos os

referidos profissionais cederam os direitos de utilização do conteúdo das entrevistas

nesta pesquisa.

Optei por realizar entrevistas com membros da ONG Doutores da Alegria por ser

essa uma referência tanto nacional quanto internacional na formação de palhaças e de

palhaços em hospitais do Brasil ao longo de seus vinte e seis anos de atuação

ininterrupta em palcos hospitalares. Nesse sentido, além da pesquisa qualitativa

realizada a partir das entrevistas, também realizei uma pesquisa documental sobre os

Doutores da Alegria. Trago descrições encontradas no blog dos Doutores da Alegria, no

livro Soluções de Palhaços, de Morgana Masetti, e na coleção Boca Larga, composta

por revistas sobre a palhaçaria publicadas pelos Doutores da Alegria. Aqui também

figuram relatos de experiências minhas enquanto palhaça inserida no hospital,

experiências tais que voltaram a ser sentidas em momentos de escrita e reflexão.

Como mencionado anteriormente, participei como aluna da Escola dos Doutores

da Alegria, frequentando diariamente a sede da ONG ao longo dos dois anos do curso

no Programa de Formação de Palhaços para Jovens. A partir dessa experiência, tive a

oportunidade de conviver e de me relacionar com profissionais da ONG, tecendo

diálogos sobre a atuação palhacesca.

Desses diálogos e experiências de pesquisa teatral surgiu a vontade de vivenciar a

atuação palhacesca no contexto hospitalar. Ao entrar no elenco da ONG Esparatrapo,

percebi diferenças bastante significativas em relação à estrutura observada nos Doutores

da Alegria. A ONG Esparatrapo apresentava, naquele ano de 2012, indícios dos

problemas formativos, organizacionais, administrativos e financeiros que a obrigariam,

em 2015, a fechar as portas de maneira definitiva.

Apesar dos problemas citados, a ONG Esparatrapo contava com uma

aconchegante equipe artística, composta por profissionais extremamente dedicados, o

que resultava em uma ótima relação de confiança com os hospitais parceiros. Em função

dos esforços do elenco de artistas, a ONG percorreu diversos palcos hospitalares de São

Paulo e do Nordeste brasileiro, fixando-se por um ano na cidade de Natal. Entre os

hospitais, tive a oportunidade de trabalhar como palhaça no Hospital das Clínicas de

São Paulo; na Assistência à Criança Deficiente (AACD) de São Paulo; no Hospital

Infantil Cândido Fontoura, de São Paulo; no Hospital São Camilo de Balsas, no

Maranhão; no Hospital Infantil de Teresina, no Piauí e, por fim, no Hospital Infantil

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Varela Santiago, de Natal (RN).

Desse modo, a partir do campo das experiências de profissionais que atuaram e

atuam em palcos hospitalares, somaram-se os materiais que compõem este capítulo. O

que registram, com base em suas experiências vividas, as palhaças e os palhaços que

transfiguram espaços hospitalares em palcos cênicos? Quais são suas vivências? No

intuito de tentar compreender essas questões, tem início agora uma jornada pelas

sensações, percepções e saberes dos artistas que compõem os palcos hospitalares. Com

base, portanto, nos procedimentos metodológicos de descrição e de redução

fenomenológicas, bem como no diálogo com as unidades de significados encontradas

nos registros de experiências, procuro elaborar uma compreensão fenomenológica sobre

a atuação de palhaças e palhaços em palcos hospitalares.

Nesses registros, a tríade composta pelo jogo cênico, pelo treinamento pessoal

mesclado com as sensibilidades de cada artista e pela abertura para o encontro gerou as

unidades de significado encontradas recorrentemente no conteúdo das entrevistas. Após

trazer uma discussão metodológica voltada para a Fenomenologia, abordo essas três

unidades no capítulo presente, subdivididas nos itens 4.1. e 4.2. do trabalho.

Caminhando nessa direção, compactuo com Merleau-Ponty, quando este afirma

que o mundo “[...] não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto

ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é

inesgotável.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.14). A partir de minhas vivências,

aberturas e comunicações com o mundo da palhaçaria hospitalar, concretizou-se um

ponto de partida para a investigação, sempre aberto para intersecções com os saberes e

sensibilidades de outros seres humanos que igualmente experimentaram vivências nesse

âmbito.

As figuras palhacescas contextualizadas ao hospital, como pude perceber ao

tornar-me uma delas, compõem um campo de atuação onde se valoriza a singularidade

de cada artista, suas experiências vividas, assim como suas intersecções com as

vivências de cada espectadora e espectador.

Para Merleau-Ponty,

[...] um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são

indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a

expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um contato

direto, e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar

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temporal e espacial. É nesse sentido que nosso corpo é comparável à

obra de arte (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 209-210).

O corpo, para o filósofo, é tido como obra de arte aberta e inacabada

(NÓBREGA, 2015). Podemos aproximar esse pensamento à arte da palhaçaria no

contexto hospitalar, uma vez que as figuras palhacescas expressam aquilo que elas são

tendo como ponto de partida seu contato com o mundo. No hospital não há uma

estrutura de ação linear, de acontecimentos preestabelecidos, todas as cenas teatrais são

criadas a partir da relação com o tempo e espaço em que ocorrem.

Segundo Nóbrega, a filosofia de Merleau-Ponty “[...] habita o sensível, e pensa o

mundo a partir do contato com o espaço, o tempo, a presença e a animação do corpo

através do movimento que transforma o mundo em obra de pensamento, obra de

linguagem, obra de arte.” (NÓBREGA, 2015, p. 98). Essa abertura para o inacabamento

do mundo pressupõe indubitavelmente uma abertura para outras existências, igualmente

inacabadas e em eterno processo de construção.

Merleau-Ponty questiona: “[...] enfim, o que é viver a unidade do objeto ou do

sujeito, senão fazê-la?” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.320). Ao corpo palhacesco que

habita o espaço hospitalar, viver é a ação de abrir-se para o outro, transgredir com ele a

lógica cotidiana em busca de uma construção teatral. Para o filósofo, ainda, apenas “[...]

posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida em que

sou um corpo que se levanta em direção ao mundo.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.

114).

Aproximamo-nos assim do mundo vivido, que, segundo as proposições de

Merleau-Ponty, considera o sentir no processo cognitivo e compreende nosso olhar

como sempre posicionado para perceber o mundo, para misturar-se com ele

(MERLEAU-PONTY, 2006). Como esclarece Nóbrega, o filósofo francês intentou “[...]

atingir o espaço sensível do coração, aquele onde estamos situados, e que é heterogêneo,

tendo relação com nossas particularidades corporais, nossos desejos, preferências,

memórias. É preciso então, questionar o dogmatismo, a coerência do mundo [...]”

(NÓBREGA, 2015, p. 101).

Em consonância com o pensamento de Merleau-Ponty, alio-me às palhaças e aos

palhaços como questionadores primordiais, propositores de novas coerências no mundo.

Através das figuras palhacescas contextualizadas no hospital, é possível visualizar um

espaço heterogêneo, posto em relação, passível de ser habitado por tudo aquilo que foge

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ao cotidiano linear, capaz de dispor no mundo outras coerências concebíveis, invertendo

certa lógica enraizada de pensamento. Essa lógica, no contexto de Merleau-Ponty, é

uma proposição frente ao racionalismo, psicologismo e cientificismo predominantes em

sua época.

Para o autor, a experiência vivida sempre está presente e é passível de construir

saberes, como um horizonte permanentemente em posição de ser reaberto, em ato de

recordação. Esse ato, no campo fenomenológico, é tomado como tema de

conhecimento, percebendo-se, porém, que ele pode deixar fatos à margem das

recordações. Merleau-Ponty atenta de igual modo para o fato de que esse a

rememoração fornece, sempre que desencadeado, “[...] uma atmosfera e uma

significação presentes.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 47), motivada pelo estado

presente de quem rememora. A rememoração sempre está imersa em uma situação

temporal, de onde, segundo o filósofo, jorram “[...] de uma constelação de dados um

sentido imanente sem o qual nenhum apelo às recordações seria possível.”

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 47).

Para Merleau-Ponty, uma lembrança é capaz de inscrever-se no ser como um

bloco: “Assim um grande livro, uma grande peça de teatro, um poema está em minha

lembrança como um bloco. Posso perfeitamente, revivendo a leitura ou a representação,

lembrar-me de tal momento, de tal palavra, de tal circunstância, de tal mudança de

ação.” (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 38). Esses blocos abarcam os significados, em

diferentes indivíduos, que compreendem ações, gestos, palavras de distintas maneiras.

Sem a necessidade da descrição minuciosa de detalhes, a memória permanece,

segundo o autor, “[...] tão singular e evidente como uma coisa viva.” (MERLEAU-

PONTY, 2007, p. 38). Antes de um recorte estanque do passado, a memória é acessada

enquanto fluxo, condizente com os conjuntos de significações que com ela fazem-se

presentes em cada momento.

Esses conjuntos não fragmentados de experiências vividas podem ser pensados

segundo a proposição do filósofo, pois quando um diálogo entre duas pessoas se dá de

maneira justa, de modo que os sujeitos saibam exprimir-se e serem compreendidos,

“[...] os signos são imediatamente esquecidos, só permanece o sentido, e a perfeição da

linguagem é de fato passar despercebida.” (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 38). Do

mesmo modo como triunfa a linguagem ao secundarizar-se em prol da expressão e da

compreensão do pensamento, sobrepõe-se a memória ao ser compreendida como

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conjunto de significações, e não como pequenas réstias estanques do passado.

No presente contexto, o sentido do encontro cênico prioriza-se em relação à

atuação palhacesca hospitalar, sua mediadora. As descrições de experiências figuram

aqui como diálogos com as percepções e recordações de palhaças e palhaços que

descortinam palcos hospitalares, valorizando a sensibilidade do corpo na composição do

conhecimento.

Concordo ainda com Merleau-Ponty, que afirma não haver outra forma de

conhecer os segredos do mundo, a não ser pelo contato com ele: a partir da experiência

compreende-se o mundo (MERLEAU-PONTY, 2006; 2007; 2011). Situadas em

determinados tempo e espaço, essas experiências perceptivas, como discorre o filósofo,

[...] se encadeiam, se motivam e se implicam umas às outras, a

percepção do mundo é apenas uma dilatação de meu campo de

presença, ela não transcende suas estruturas essenciais, aqui o corpo

permanece sempre agente e nunca se torna objeto (MERLEAU-

PONTY, 2006, p. 408).

Esse corpo deslocado de uma compreensão mecanicista, e não compreendido

enquanto puro objeto, mas sim como nosso meio de habitar o mundo, para o filósofo,

retém uma experiência que “[...] está aquém da afirmação e da negação, aquém do juízo

– opiniões críticas, operações ulteriores -, é mais velha que qualquer opinião [...].”

(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 37).

As experiências, assim, são como uma espécie de comunhão ou comunicação,

enlace de nosso corpo com o mundo, habilitando-o e agindo nele. Como diz o filósofo,

“[...] a consciência do corpo invade o corpo, a alma se espalha em todas as suas partes

[...].” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.114). O ato perceptivo da experiência, nesse

âmbito, trata-se de um olhar em fluxo, plenamente em contato com o mundo, que para

ele caminha.

Assim como propôs Merleau-Ponty, pensa-se o ser não como simples objeto

mundano, mas como forma de nossa comunicação com o mundo, e vê-se o mundo não

apenas como uma conjunção de objetos, mas sim como um “[...] horizonte latente de

nossa experiência, presente sem cessar, ele também, antes de todo o pensamento

determinante.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 136). Nesse mundo que preexiste ao

pensamento, vasto horizonte de nossas experiências, desenvolvem-se os encontros

humanos.

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Esses encontros representam, em nosso contexto, a busca por uma efetiva abertura

para o outro, que se dá a partir da composição de uma cena teatral viva, criada sob as

pistas do cotidiano hospitalar. O outro é capaz de penetrar na figura palhacesca a ponto

de assegurar-lhe novas perspectivas, como ilustra Merleau-Ponty: “[...] esse outro que

me invade é todo feito de minha substância: suas cores, sua dor, seu mundo,

precisamente enquanto seus, como os concebia eu senão a partir das cores que vejo, das

dores que tive, do mundo em que vivo?” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 22). A partir de

nossas experiências é que podemos alcançar a dimensão do outro, tomando por base os

espectros exteriores, visíveis e em zona de convergência com nosso corpo.

Ao viverem momentos de abertura para o outro, mesmo que isso implique lidar

com suas fragilidades, as figuras palhacescas profissionais, contextualizadas no

hospital, passam por uma ampla gama de experiências, desenvolvendo a habilidade de

articular seus saberes ao sabor de cada encontro hospitalar, na ocasião do acontecimento

cênico. O exercício de atuação dessas figuras assemelha-se com o expresso no

pensamento de Merleau-Ponty, quando afirma que: “Meu corpo toma posse do tempo,

ele faz um passado e um futuro existirem para um presente, ele não é uma coisa, ele faz

o tempo em lugar de padecê-lo.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.322).

Para o filósofo, é graças ao tempo, do qual nosso corpo se apossa, que temos “[...]

um encaixe e uma retomada das experiências anteriores nas experiências ulteriores, mas

em parte alguma uma posse absoluta de mim por mim, já que o vazio do futuro se

preenche sempre com um novo presente.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.323). Desse

modo, o mais nu dos artistas (DIMITRI, 1982), ao fazer do hospital um palco de

encontros, pressupõe uma abertura, um vazio enquanto espaço de criação que caminha

em direção ao outro.

O corpo que faz o tempo, e especialmente o corpo palhacesco e situado em um

espaço hospitalar, viveu em seu passado uma rotina de treinamentos específicos e

vislumbra em um futuro próximo um ato de jogo artístico mediado pela abertura para a

potência da criança hospitalizada (e/ou seus acompanhantes, equipe médica e

funcionários). Articulando o passado e o futuro em existência, as palhaças e os palhaços

vivenciam um presente de maneira ativa, construindo-o a partir do jogo, da abertura

para o outro e de um treinamento pessoal específico, aliado às sensibilidades de cada

artista.

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4.1. JOGO DE TÉCNICAS E SENSIBILIDADES

Eu estava ensaiando um espetáculo, tocou meu celular, atendi e

alguém falou:

-Por favor, o Doutor Mingau?

Aí eu dei risada e falei:

-Quem está falando?

-Aqui é do Hospital das Clínicas, eu queria falar com o Dr. Mingau.

Aí eu falei (modificando a voz):

-É ele que está falando.

-Oi eu sou a Val aqui do Hospital das Clínicas, da parte

administrativa, e a gente está entrando em contato com você por que

tem o I., menino de quatro anos que recebeu alta e não quer ir

embora, falou que você é o médico dele, você não tem como vir aqui?

Era um dia que eu não podia, estava no meio do ensaio, então ela

perguntou se eu poderia falar com ele no telefone mesmo. E falei que

claro. Aí ela passou para ele e ouvi aquela vozinha (carinhosamente).

-Oi Doutor Mingau?

-Oi I. Tudo bem?

E fui conversando com ele até que ele me perguntou:

- Onde você está?

-Eu estou dentro do guarda roupa, preso em um cabide para não

amassar, e me trancaram, eu não consigo sair. Já pedi pra chamar o

chaveiro e até agora nada. Mas eu fiquei sabendo que você recebeu

alta, e não quer ir embora. Vamos fazer o seguinte, vou fazer um

exame pelo telefone para você poder ir embora para casa. Fala 33.

Aí ele falou “33”, eu falei para ele falar 33 vezes 33, aí ele falou:

-33 vezes 33.

-Pronto! Você está de alta! Pode ir embora para casa! E pode falar

para os seguranças que quem te deixou ir embora foi o Doutor

Mingau (Marcelo Marcon).

Na descrição de experiência relatada acima, destacada da entrevista concedida

pelo palhaço Marcelo Marcon, o Doutor Mingau, pode-se identificar o estabelecimento

de uma relação entre um palhaço e uma criança. Mesmo que por telefone, essa relação

aproxima-se da constituição de um jogo teatral, no qual se percebe a presença de

técnicas cênicas aliadas com a sensibilidade do artista e da equipe do hospital.

Inicialmente vale buscar a compreensão da palavra “jogo”, orientada pelos

pensamentos do pesquisador Johan Huizinga, segundo o qual:

Numa tentativa de resumir as características do jogo, poderíamos

considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como

não séria e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de

absorver o jogador de maneira intensa e total (HUIZINGA, 2014,

p.16).

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Concordando com este pensamento, aproximo-o do que ocorre a partir do

encontro entre as figuras palhacescas e os públicos hospitalares. Na descrição feita

por Marcelo, por exemplo, podemos perceber a constituição de um jogo entre o

palhaço e o menino na medida em que nessa relação encontramos a liberdade do

espectador e do ator; trata-se de uma atividade tomada como diferente da vida

cotidiana, que, por fim, é capaz de manter a atenção dos jogadores de maneira

intensa.

No jogo proposto em contextos hospitalares, as palhaças e os palhaços

revelam ações e espaços desconhecidos, aliando sua subversão a um universo

hospitalar fortemente atrelado ao mundo de jogo da criança.

Para o pesquisador Tiago Cassoli,

Os jogos cênicos realizados pelos palhaços acrescentam uma novidade

na rotina hospitalar. Esta começa a se compor também por um

dispositivo que traz à tona, ou confere contornos, a conteúdos internos

do indivíduo. Nesse sentido tais jogos acabam por emergir como uma

tática de comunicação entre as pessoas que frequentam este

estabelecimento, pois a intervenção convoca os indivíduos a expressar

seus conteúdos internos (CASSOLI, 2012, p. 155).

O prazer de brincar com as figuras palhacescas, muitas vezes, pode contrastar com

sentimentos e situações vivenciadas no contexto hospitalar, onde a liberdade fica restrita

e os conteúdos internos por vezes são suprimidos. Médicos e enfermeiras muitas vezes

entram nos leitos a qualquer momento para aplicar remédios, realizar exames e

procedimentos sobre o corpo da criança, que acaba perdendo o domínio sobre si, sobre

suas vontades, sobre sua liberdade de escolha. Em situações de jogo com as figuras

palhacescas, as crianças passam também por momentos de revelação, onde arriscam

vivenciar a lógica dos inexplorados universos de suas vontades e, consequentemente, do

teatro.

Sobre o universo das crianças, concordo com as colocações feitas pelas

educadoras Karenine Porpino e Ruth Lima, quando dizem que:

Crianças são sujeitos históricos, criadores de cultura, seres sociais que

vivem e possuem um papel no grupo social, cidadãos de direitos que

apresentam formas singulares de viver e ver a realidade, seres

inteligentes, capazes de interagir ativamente por via de diferentes

linguagens – dança, música, teatro, artes plásticas entre outras

(PORPINO e LIMA, 2011 apud JALLES e ARAÚJO, 2011, p. 117).

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As crianças, repletas de peculiaridades e possibilidades de interação, revelam-se

parceiras bastante próximas às figuras palhacescas, já que entregam-se ao prazer do

jogo com grande intensidade. Na descrição que se segue, encontramos um diálogo entre

uma palhaça e quatro crianças, onde é possível perceber a proximidade desses seres e a

naturalidade com que jogam entre a vida cotidiana e a fantasia:

Quebra-quebra no Pronto Socorro (PS):

- (Palhaça) Doutora Juca: Nossa! Ele quebrou o braço! E você? Já

quebrou alguma coisa?

- Criança 1: Já, a perna.

- Criança 2: Eu já quebrei o pé.

- Doutora Juca: E você?

- Criança 3: Eu quebrei um copo lá em casa.

- Criança 4: Eu quebro o vento (e começa a agitar os braços no ar)

(DOUTORES DA ALEGRIA, 2008, p. 130).

Percebe-se, a partir das experiências, seja nas apreendidas nos palcos

hospitalares, seja nas encontradas nas entrevistas, que a maioria dos hospitais onde a

atuação palhacesca se instaura estão repletos de seres infantis. As entrevistadas e os

entrevistados relataram de forma recorrente seu contato com as crianças, aproximando

esse universo do universo da atuação palhacesca.

Aliadas à força criativa da criança, as figuras palhacescas são capazes de revelar

novas situações a partir do cotidiano, através de uma interação que ocorre de modo

diferente do habitual, e que no contexto hospitalar é uma das poucas coisas sobre as

quais a criança pode decidir. A criança sabe que na relação com as figuras palhacescas

sua decisão será respeitada e aceita, pois um dos principais propósitos da presença

desses seres no hospital é gerar o bem estar de seus espectadores.

Du Circo aponta, nesse sentido, que é necessário sempre “[...] saber sair se a

criança não te aceita naquele momento, perceber se a família está com muitos

problemas e não está a fim de palhaçada.” (Du Circo). A percepção espacial e temporal

do artista deve buscar compreender os sinais oferecidos pelos espectadores na

composição de seu jogo teatral.

Pelo fato de a interação com as figuras palhacescas ocorrer respeitando-se a

liberdade de escolha da criança, o que difere de outras práticas realizadas no domínio

hospitalar, a criança pode se sentir valorizada e desejar empregar seu potencial decisivo.

Quando uma criança diz não e os palhaços vão-se embora, há uma ruptura na lógica

cotidiana de modo que suas possibilidades de escolha são ampliadas. Sabendo que será

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respeitada em suas decisões, a criança muitas vezes estabelece uma relação de domínio,

exercendo um papel de autoridade sobre as figuras palhacescas.

No exemplo abaixo, que descreve um jogo cênico entre uma palhaça e uma

criança ocorrido no hospital, a primeira, a partir da percepção do seu entorno, encontrou

no “não” inicial da criança havia margem para a tentativa de um jogo. Nesse caso, a

negativa inicial significou um convite à brincadeira:

Ao perguntar se podia entrar em um quarto de hospital recebi imenso

não de um menino com cerca de cinco anos de idade. Acreditei ser

aquele não tão amplo quanto propositivo, e para mim soou como

convite para uma brincadeira, um jogo do NÃO. Ao concordar em ir

embora, NÃO consegui fechar a porta pelo lado de fora, ela se

chocou contra meu nariz. Percebi escapar um risinho e, animada,

perguntei novamente se podia entrar:

-NÃO!

Na segunda tentativa de fechar a porta, minha mão é que NÃO

conseguiu sair. Ao tentar retirá-la fiquei presa do lado de dentro.

Envergonhada, me escondi atrás de um porta-soro. O menino

contestou com toda a certeza:

-NÃO! Eu te vejo, palhaça!

Apavorada, tentava me esconder em outros lugares pouco ou muito

secretos, até que, cansada de desaparecer, decidi fazer outros objetos

caírem no desaparecimento, e reaparecerem em outros lugares, até

mesmo:

-Na orelha da minha mãe?! NÃÃÃÃO!

Caímos todos na gargalhada. Ao despedir-me e tentar ir embora,

NÃO consegui sair. Amassei o nariz na porta, prendi a mão e fui

arremessada para o lado de fora do quarto. Perguntei de fora se

podia voltar outro dia, caso ele ainda estivesse ali. Imediatamente

balançaram-se as cabeças de mãe e filho, dizendo que sim. Ao fechar

a porta, ainda ouvi em alto e bom som:

-NÃÃÃÃO (Descrição da autora, ano de 2015).

O jogo presenciado na descrição acima ocorreu a partir do respeito à liberdade da

criança, uma vez que as palhaçadas tiveram como mote de criação a compreensão de

que a palhaça tinha de ir embora, em contraste com a torpeza de suas ações, que a

conduziam para dentro do quarto. A partir desse pretexto, surgido da proposta da

criança: a negação. Como palhaça, participei de uma relação com a criança, onde ela

exerceu sua autoridade. Para ela este encontro foi prazeroso por se tratar de um jogo que

transgrediu as relações hierárquicas do cotidiano, e permitiu que ela adentrasse em

outras esfera de comunicação.

Huizinga considera que: “Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária

[...] as crianças e os animais brincam porque gostam de brincar, e é precisamente em tal

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fato que reside sua liberdade.” (HUIZINGA, 2014, p.10). No contexto hospitalar,

diferentemente da medicação, do exame, dos procedimentos médicos, o jogo não pode

ser imposto, a criança antes de tudo decide jogar, entregar-se para a brincadeira.

Conforme o autor, em situação de jogo:

A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais

nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um

príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou um tigre. A criança fica

literalmente transportada de prazer, superando-se a si mesma a tal

ponto que quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela

coisa, sem, contudo perder o sentido da realidade habitual. Mais do

que uma realidade falsa, sua representação é a realização de uma

aparência: é imaginação, no sentido original do termo (HUIZINGA,

2014, p.17).

Enveredando no universo imaginativo da criança, e tomando-o por real, as figuras

palhacescas agem como uma espécie de sacerdotes e sacerdotisas, realizando um ritual

de passagem para outras dimensões de existência, fundadas na percepção da criança, de

sua própria e dos demais transeuntes do contexto hospitalar, que também se abrem para

novas lógicas de relação. Esse processo, para Ana Achcar, se concretiza:

Pois o palhaço quando traz no seu corpo, e na sua ação, o indício de

uma temporalidade e de um lugar diferente daqueles nos quais ele se

encontra, abre um mundo novo no ambiente hospitalar: propõe outra

lógica, redimensiona lugares, desestabiliza relações estruturadas de

poder, estimula a comunicação e chama a atenção para a ligação entre

corpo e indivíduo, entre forma e conteúdo, entre exterior e interior,

porque movimenta imaginação e crença numa perspectiva física,

concreta (ACHCAR, 2007, p. 25-26).

A partir de sua experiência, Ésio Magalhães tece considerações que caminham

nesse sentido. Para ele, o palhaço “[...] de certa forma, humaniza as relações, uma vez

que os papéis se transformam e o imaginário vem à tona para fazer o paciente virar

médico, o médico assistente e o acompanhante alguém que precisa de cuidados para

tirar a água do joelho...” (Ésio Magalhães). O jogo proposto pelas figuras palhacescas,

para Ésio, “[...] alivia tensões, deixa mais leve o ambiente, pois traz momentos de

alegria, em que o foco não está na enfermidade e sim no encontro entre as pessoas e o

palhaço.” (Ésio Magalhães).

No contexto hospitalar as figuras palhacescas realizam um movimento distinto

daquele da vida cotidiana, como diz Achcar: “O palhaço se dirige ao que é saudável

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numa criança que está doente, no intuito de manter vivas as suas possibilidades de criar,

de sonhar, de rir.” (ACHCAR, 2007, p. 24). Na imagem 11, podemos perceber um

momento de conexão entre a palhaça e a menina no corredor hospitalar.

Figura 11 - Doutora Lola (Luciana Viacava) no corredor hospitalar.

Fonte: <doutoresdaalegria.com.br> Acesso em 09/08/2016.

O encontro registrado na imagem acima demonstra a abertura criada entre a

palhaça e a criança, como ocorre com tantas outras pessoas. A arte manifesta pelas

palhaças e pelos palhaços, para a autora, é capaz de acionar “[...] processos criativos

carregados de uma liberdade interior inexplicável e com enorme poder de transformação

da realidade exterior.” (ACHCAR, 2007, p. 190).

Ao penetrarem na lógica de ação proposta pelas figuras palhacescas, as crianças

entregam-se ao movimento de reverter qualquer acontecimento em jogo, em

brincadeira. Por vezes deixando-se afastar, mesmo que por breves momentos, da

atmosfera da doença ou dos problemas que as conduziram ao contexto hospitalar, as

crianças podem acessar uma realidade distinta, conectada com as Artes Cênicas, a

exemplo do visto na imagem.

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Segundo Huizinga, “Em toda a parte encontramos presente o jogo, como uma

qualidade de ação bem determinada e distinta da vida comum.” (HUIZINGA, 2014,

p.6). Para o autor, “[...] o jogo não é vida corrente nem vida real. Pelo contrário, trata-se

de uma evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade com orientação

própria.” (HUIZINGA, 2014, p.11).

As crianças, seus acompanhantes, a equipe médica e os funcionários presentes

no contexto hospitalar muitas vezes anseiam por momentos em que seja possível agir

fora dos padrões da realidade, ter a opção de aliviar a tensão durante breves instantes.

Essa possibilidade é ofertada pelo jogo palhacesco quando ele propõe a constituição de

uma esfera de atividade temporária, que se oriente de maneira própria.

Em convergência com esse pensamento, é válido explorar um conceito

apresentado em 2012 pela pesquisadora sueca Lotta Linge, tratando da criação de uma

“área mágica segura”, criada a partir do encontro de palhaças e palhaços com crianças

hospitalizadas. Essa “área mágica segura” configura-se, para a pesquisadora, como um

espaço simbólico onde coabitam a fantasia e a realidade (LINGE, 2012).

Esse espaço orientado pelas lógicas da criança e das figuras palhacescas, para a

autora, faz-se através da escuta que uma existência obtém com a outra, tendo em vista o

desenvolvimento de uma relação de confiança e espontaneidade que transporte ambos

para essa “área mágica segura”, onde todos são protagonistas do jogo cênico.

Para realizar essa proposição, as figuras palhacescas necessitam de um preparo

técnico e sensível, capaz de habilitá-las a lidar com as situações hospitalares de

encontro, que se dão em tempo real. Uma vez instaurada a situação de jogo, encaminha-

se para seu desenvolvimento e pela busca de um desfecho coerente com a lógica criada.

Para Huizinga,

O jogo tem, por natureza, um ambiente instável. A qualquer momento

é possível à vida quotidiana reafirmar seus direitos, seja devido a um

impacto exterior, que venha interromper o jogo, ou devido a uma

quebra das regras, ou então do interior, devido ao afrouxamento do

espirito do jogo, a uma desilusão, um desencanto (HUIZINGA, 2014,

p.24).

Visando o preparo para a instabilidade do jogo em um contexto em que diversas

são as interrupções surgidas do cotidiano externo, as figuras palhacescas

impreterivelmente passam por um processo de treinamento específico, individual,

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coletivo ou a mescla de ambos. Esse treinamento pessoal conduz a uma técnica pessoal

fundada na sensibilidade de cada artista. A qualidade do jogo intermediado pela arte da

palhaçaria ao longo do encontro entre seres humanos contextualizados no hospital faz

com que o jogo se fixe de maneira imaterial naqueles que dele participam. Acerca do

tempo no jogo, reflete Huizinga:

Joga-se até que se chegue a um certo fim. Enquanto está

decorrendo, tudo é movimento, mudança, alternância, secessão,

associação, separação. E há, diretamente ligada à sua limitação no

tempo, uma outra característica interessante do jogo, a de se fixar

imediatamente como fenômeno cultural. Mesmo depois de o jogo

ter chegado ao fim, ele permanece como uma criação nova do

espírito, um tesouro a ser conservado pela memória (HUIZINGA,

2014, p.12-13).

Ao passar por um processo de treinamento artístico, as palhaças e os palhaços

preparam-se para o jogo nos contextos hospitalares, onde urgem as mudanças e

movimentos no entorno da vida e da morte. Esse preparo, para o pesquisador Demian

Reis, diz respeito à constituição de um corpo cênico, que envolve “[...] a prática de

exercícios específicos, vivências corporais, técnicas corporais, o treinamento e a

pesquisa; todas estas experiências confluem para o desenvolvimento de uma memória,

consciência e vida muscular próprias de e para cada ator.” (REIS, 1999, p. 63).

Porém, como coloca Ésio Magalhães, o treinamento por si não basta, é necessário

reafirmar “[...] a ideia do exercício, creio que o profissional se define não pela sua

formação somente, mas muito mais pelas experiências que tem à medida que exerce seu

trabalho em contato com o público para o qual ele se destina.” (Ésio Magalhães).

Assim, um jogo bem realizado, isto é, onde é implícita a liberdade dos jogadores,

propicia a criação de uma situação que foge aos parâmetros do cotidiano e é capaz de

absorver integralmente a atenção daqueles que jogam, ficando registrado na memória e

compondo parte do saber palhacesco. Do mesmo modo, um jogo que não deu certo, ao

longo do contato com o público, saberá produzir suas lições.

Segundo Soraya Saíde, o preparo das palhaças e dos palhaços para o contexto

hospitalar é bastante complexo, e visa liberar os artistas de maneirismos vagos, criando

uma concretude, vida e estofo na atuação cênica. Esse preparo, para a formadora, não se

restringe a momentos de ensaio, mas também de prática. Trata-se de um mergulho na

máscara e requer momentos de entrega artística, bem como disponibilidade para a

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prática profissional e a busca pelo aperfeiçoamento das técnicas e sensibilidades em

diferentes espaços da sociedade (SAIDE, 2005, apud DOUTORES DA ALEGRIA,

2005).

O hospital, também, para a palhaça e formadora Roberta Calza, exige um

treinamento bastante singular, e trata-se de “[...] um espaço caótico, um lugar de

trânsito. A gente tem um treinamento muito específico, desde você trabalhar olhar

periférico, entendimento do espaço, a figura do médico, que é a paródia que os

Doutores da Alegria propõem.” (Roberta Calza). Esse treinamento pessoal, que conduz

a uma técnica pessoal, compreende uma dilatação corpórea e sensorial no sentido de que

os artistas possam desenvolver um estado de abertura para o jogo teatral.

A artista relata que “[...] a gente tem técnicas, tem repertório, mas a construção é

feita mesmo em conjunto. Eu me deparei com a efemeridade da arte, com o escavar da

arte, o contato com existências possíveis, ou formas de ser diferentes.” (Roberta Calza).

Roberta afirma ainda que “[...] cada artista é muito autônomo do ponto de vista da

criação Besteirologista, que é uma criação cênica.” (Roberta Calza), e que é somente a

partir das relações interpessoais que a transposição das técnicas cênicas trabalhadas

enquanto artista faz sentido.

Trazidas para o hospital, as técnicas artísticas requerem abertura para uma

proximidade, pois muitas ações são realizadas ao lado dos espectadores, que podem

estar com a atenção voltada para uma situação mais urgente, que envolva sua saúde ou a

de seus entes queridos. No contexto hospitalar, assim, não se pode pensar na realização

de um show de habilidades. Nesse espaço, a maior habilidade que as artistas e os artistas

poderão dominar é a de relacionar-se, como podemos observar na descrição abaixo:

Ontem mesmo, eu estava na U.T.I. do Instituto da Criança, e lá estava

uma menina que você fala nossa ela não vai conseguir reagir! A gente

foi ali na cama dela, estava chorando meio triste e daqui a pouco ela

virou para mim e me deu um susto. Aí, eu me assustei e ela começou a

rir. Como assim, sabe? Então, no último do último ela está brincando,

né? Isso é muito legal. Isto é um grande aprendizado, eu acho

(Luciana Viacava).

No relato de Luciana, podemos perceber que a artista não precisou empregar

técnicas especificas, tais como o malabarismo, por exemplo. Sua técnica pessoal de

palhaça aliou-se à sensibilidade de perceber a proposição da menina: assustar, bastando

esse fato para garantir o início do jogo entre as duas. Deixando por um momento seu

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sofrimento de lado, a menina do relato se permitiu jogar com a palhaça. Essa situação

comprova que através da permanência das figuras palhacescas nos contextos

hospitalares, torna-se possível a coexistência de movimentos distintos e muitas vezes

opostos, tais como o riso e a dor.

Abarcando o fluxo dos acontecimentos em suas ações e palavras, as figuras

palhacescas são capazes de ampliar as possibilidades de ação de outrem. Nesse âmbito,

Masetti esclarece que “[...] o sorriso resultante do encontro com o palhaço revela que,

de alguma forma, o paciente percorreu seu sofrimento e suas dificuldades e pode

transformá-las.” (MASETTI, 2003, p.50).

Nessa relação perpassada pelo jogo cênico pode haver espaços para o surgimento

de técnicas artísticas surpreendentes, oriundas de estudos e práticas constantes. A partir

da busca pelo aprimoramento pessoal de cada artista, torna-se possível desenvolver uma

boa relação. Em busca de qualidade no jogo, as figuras palhacescas dependem da lida

com técnicas cênicas específicas, sempre filtradas por sua sensibilidade para com cada

momento.

Como lembra Achcar, os seres que descortinam os palcos hospitalares são atrizes

e atores, estudantes de teatro, artistas circenses,

[...] que tem como propósito específico estender sua arte para além

dos limites da cena espetacular. Se o instrumento de expressão de um

ator é sua própria pessoa, isto é, seu corpo, sua voz, sua personalidade

e sensibilidade, a formação do ator para uma ação, nesta arte, permite

que se ampliem objetivos de modo a habilitar o ator a ultrapassar os

limites da atuação artística quando deseja refletir e discutir seu próprio

papel fora do seu lugar habitual de atuação (ACHCAR, 2007, p. 20-

21).

Nos palcos teatrais ou picadeiros circenses, prevalece o caráter espetacular, que

dirige a atuação das figuras palhacescas. No contexto hospitalar essa atuação é regida

pela transformação dos saberes corpóreos vividos em contextos teatrais ou circenses,

bem como de seu diálogo com os espaços e momentos presentes. Assim, quanto mais

vasto for o repertório cênico de cada artista, mais possibilidades ele terá de articular o

teatro com a natureza da vida, uma vez que sua arte se compõe dessas duas dimensões.

Heraldo Firmino afirma, nesse sentido, que, para o artista cênico que trabalha no

contexto hospitalar, além de domínio da expressão teatral, são necessárias ferramentas

artísticas, tais como malabarismo, ilusionismo, acrobacia, dança, música, entre outras.

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Essas ferramentas, para Heraldo, “[...] devem estar a serviço do jogo que foi iniciado a

partir da relação. Muitas vezes você não utiliza nenhuma destas habilidades, a não ser

o jogo, o olhar, a escuta sobre o que a criança propõe.” (Heraldo Firmino).

Marcelo Marcon também tece consideração semelhante, e exemplifica a potência

do domínio de dinâmicas corporais ou técnicas de atuação a partir da música e da

mágica, trabalhadas por ele enquanto palhaço: “[...] se você entra em um cortejo no

hospital, é impressionante. Se eu passo tocando cavaquinho, no corredor a gente já vê

todas as cabecinhas do lado de fora para ouvir. E a mágica surpreende, traz uma nova

lógica, que é a função do palhaço também.” (Marcelo Marcon). Marcon explica que

essas técnicas funcionam como ferramentas para o artista se “defender” no contexto

hospitalar.

O palhaço e malabarista Du Circo também afirma que, embora a prática de

técnicas cênicas vindas do teatro, do circo e da dança sejam imprescindíveis no preparo

do artista que atua no hospital, o aspecto mais importante não é o virtuosismo técnico,

mas sim a abertura para se relacionar com o outro, e afirma que é necessário: “[...]

tomar cuidado com o tom de voz, chegada rápida, sentir a aceitação dos pequenos para

ser bem recebido e poder criar grandes palhaçadas sem o medo do seu espectador.”

(Du Circo).

Com base em sua trajetória artística, Raul Figueiredo aponta que o treinamento

desenvolvido no hospital significa que se deve trazer em seu ser um conjunto de

dinâmicas corpóreas e dispô-las para a potencialização de encontros cênicos. Para o

artista, as figuras palhacescas entram em um local sem saber o que acontecerá, se haverá

jogo ou não, colocando-se em uma zona de incertezas.

Esse jogo que se dá, muitas vezes, na contramão das proposições lógicas do

mundo, para Heraldo, também é fundamental:

O palhaço tem que saber jogar em qualquer instância, as habilidades

estão a serviço deste jogo. Esta habilidade de você poder jogar com

as coisas que acontecem. Você entra no quarto, você tem mais ou

menos dez segundos para decidir o que vai acontecer, o mote que

você vai trabalhar. Se eu entro no quarto com uma mágica que eu sei

fazer, com um malabares ou com uma música, não é muito diferente

do que você vê no palco, e este trabalho pede uma postura

completamente diferente (Heraldo Firmino).

A postura exigida no contexto hospitalar é desenvolvida com base no jogo, que

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constitui uma relação entre aqueles que jogam, além de produzir significações para

aqueles que de longe observam. Heraldo, nesse sentido, revela que o trabalho no

contexto hospitalar: “[...] aprimorou muito a minha sensibilidade, minha escuta, meu

olhar para o que está do lado, para fazer pequeno, não fazer coisas desnecessárias, por

respeitar o outro, respeitar seu espaço.” (Heraldo Firmino).

Heraldo afirma ainda que o hospital pede um olhar estrangeiro, pois a cada visita

traz novas pessoas, novas experiências de vida, novos encontros. Para o artista, esse

olhar significa uma urgência de humanidade, visto que não se permite mecanizar,

sempre está atento ao fluxo da vida humana, em direção ao mundo.

A artista Roberta Calza igualmente afirma que “[...] a linguagem do palhaço no

hospital pede este contato vivo, não tem muito ensaio. Você tem um treino de improviso,

mas a linguagem se relaciona com o tempo real [...].” (Roberta Calza). Roberta

enxerga a realidade cotidiana como matéria de criação a ser trabalhada no sentido de ser

revelada pelo ato artístico. Para ela, “[...] às vezes a gente tem uma dinâmica social

onde a própria realidade está escondida, nela mesma.” (Roberta Calza).

Essa percepção aproxima-se do pensamento da pesquisadora Marilena Chauí, ao

afirmar que:

É a obra que explica a vida e não o contrário, pois a obra é como o

artista transforma, num sentido figurado e novo, o sentido literal e

prosaico de sua situação de fato. A obra de arte é existência, isto é, o

poder humano para transcender a facticidade nua de uma situação

dada, conferindo-lhe um sentido que, sem a obra, ela não possuiria

(CHAUÍ, 2010, p. 273).

Luciana Viacava, corroborando com a percepção de que a técnica artística está

impregnada de sensibilidades, acredita que “[...] depois de tanto tempo trabalhando

com isso no mínimo duas vezes por semana, a técnica fica impregnada e deixa de ser

técnica para ser relação.” (Luciana Viacava). Para a artista, a experiência desenvolvida

pelos Doutores da Alegria, com periodicidade de duas vezes por semana, ao longo de

cinco ou seis horas seguidas, é de um grande aprendizado enquanto palhaça:

Eu digo não só no hospital, pode ser em outro lugar também, mas no

hospital, esta periodicidade, duas vezes por semana, você estar lá no

improviso, e aberto, é um grande exercício para o palhaço. E você se

propor a coisas novas, você está o tempo inteiro se treinando, e

também acho que enfim trabalhando com várias pessoas, vindas de

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diferentes escolas, você vai aprendendo novas abordagens de

palhaço, desenvolvendo um repertório, você vai criando,

improvisando. Então esta experiência artisticamente eu acho muito

rica mesmo (Luciana Viacava).

Afirmando o hospital como importante espaço de formação, Luciana diz que, a

partir dessa vivência no hospital, foi levada a buscar novos desafios, como a atuação no

circo e na rua. Para a artista, ao sair do contexto hospitalar, o palhaço “[...] vai para

outros lugares, acontece de diferentes maneiras, mas com a mesma essência. Então eu

me sinto mais segura hoje para fazer em outros lugares por que eu tenho esta prática,

esta experiência.” (Luciana Viacava).

Para ela, sua vivência como palhaça situada em hospitais também intensifica suas

relações com seus parceiros de cena, pois se estabelece uma relação de cumplicidade

entre artistas que partilharam experiências e momentos marcantes. Luciana aponta ainda

que, entre seus objetivos enquanto besteirologista, estão desenvolver uma relação

intensa “[...] com todos: meu parceiro, as crianças, os acompanhantes, os funcionários,

médicos, enfermeiros, levando ao cotidiano desse contexto um olhar diferente sobre a

realidade. Levando arte, leveza, beleza e graça.” (Luciana Viacava).

Para Luciana, “Não existe palhaço de hospital, existe palhaço no hospital.”

(Luciana Viacava). O espaço da atuação, para ela, pode modificar as técnicas

empregadas, porém não a essência palhacesca de cada artista. Por exemplo, o volume da

voz empregada na rua é necessariamente distinto do volume utilizado em um hospital,

pois na rua existe uma competitividade sonora e de atenção bastante latente, ao passo

que em um leito hospitalar o espaço é mais restrito, e assim por diante. Modifica-se o

emprego da técnica, porém conserva-se a potência corpórea palhacesca pessoal.

Olhar e escutar os acontecimentos, desse modo, são ações imprescindíveis ao

trabalho das figuras palhacescas que atuam em contextos hospitalares. Ao penetrar num

leito hospitalar, é necessário dar atenção aos objetos, pessoas e acontecimentos

presentes, tudo o que houver pelos arredores é passível de converter-se em mote para o

jogo. O artista Raul Figueiredo equipara esses olhares e escutas atentas a um “scanner”

que se passa no espaço. Raul chama atenção para o fato de que, no jogo palhacesco, é

necessário ter uma noção de espacialidade que habilite o artista para perceber:

As crianças que estão dormindo, as que estão acordadas, as que estão

com medo, as interessadas, as enlouquecidas. Os pais, os

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acompanhantes, os que estão a fim, os que não estão a fim, aqueles

que estão querendo dormir. A enfermeira que entra no quarto, o

médico, a televisão ligada, o que está passando. É um scanner que a

gente passa, esta espacialidade que o hospital te dá, esta noção de

espacialidade, quando eu vou para a cena, quando eu vou para a rua

ou para o palco, é uma retroalimentação (Raul Figueiredo).

Faz-se necessária uma dilatação da atenção por parte das figuras palhacescas,

assim como uma forte conexão com as possibilidades de transformação dos resquícios

cotidianos em jogo cênico. Esse ato de entrega ao momento presente, como afirmou

Raul, é capaz de impregnar o trabalho do artista em outros contextos da sociedade. Raul

afirma que “Esta questão de você entrar em um lugar sem saber se vai dar jogo ou se

não vai, isso é o treino do hospital.” (Raul Figueiredo). Esse ponto de vista vai ao

encontro da concepção de que as técnicas treinadas são potencializadas pela

sensibilidade de cada artista, bem como de sua abertura para o jogo.

A atenção é aqui compreendida em consonância com o pensamento de Merleau-

Ponty, segundo o qual: “A atenção supõe primeiramente uma transformação do campo

mental, uma nova maneira, para a consciência, de estar presente aos seus objetos.”

(MERLEAU-PONTY, 2006, p.57). Isso indica que:

[...] a atenção não é nem uma associação de imagens, nem o retorno a

si de um pensamento já senhor de seus objetos, mas a constituição

ativa de um objeto novo que explicita e tematiza aquilo que até então

só se oferecera como horizonte indeterminado. Ao mesmo tempo em

que aciona a atenção, a cada instante o objeto é reapreendido e

novamente posto sobre sua dependência (MERLEAU-PONTY, 2006,

p.59).

Essa atenção está sempre em posição de perceber as circunstâncias e os objetos

vindos de diferentes formas, uma vez que as concepções se transformam com o tempo e

o espaço. Ligada a uma temporalidade e espacialidade próprias da atuação palhacesca

no contexto hospitalar, a atenção abarca as transformações de cada momento e de cada

local.

Segundo Morgana Masetti,

Uma das características da atuação dos clowns doutores é transformar

qualquer acontecimento em um recurso para o seu trabalho: um

enganchar na porta, um tropeço, um não, tudo é incorporado como

oportunidade, é canalizado para a linguagem humorística. Essa

capacidade carrega em si uma metáfora importante, em se tratando de

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doença e hospitalização: a de que é possível transformar a dor e o

sofrimento (MASETTI, 1998, p. 56).

Não é possível prever a entrada de sujeitos no espaço de ação cênica hospitalar,

nem tampouco a reação de uma criança, ou de muitas delas, caso a ação se passe em

uma brinquedoteca, ou mesmo num corredor hospitalar, portanto uma constante

abertura para a transformação faz-se presente. Marcelo Marcon, nessa direção, afirma

sentir-se um palhaço tridimensional, ou seja, visto por muitos ângulos. Nesse espaço

onde é possível se ver as figuras palhacescas por todos os ângulos, para Marcelo

Marcon,

[...] Você é palhaço todo o tempo. Em um espetáculo, eu apresento,

tiro a maquiagem e vou embora. Lá não. No hospital, eu saio do

quarto e não deixo de ser palhaço. No corredor, eu também tenho que

ser. Geralmente, a gente olha para trás e sempre tem alguém olhando.

(Marcelo Marcon).

Podemos perceber na imagem a seguir um exemplo dessa afirmação:

Figura 12 - Doutores Dud Grud (Eduardo Filho) e Eu_Zébio (Fábio Caio).

Fonte: <doutoresdaalegria.com.br> Acesso em 09/08/2016.

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Na imagem 12, encontrada no site dos Doutores da Alegria, percebemos essa

tridimensionalidade: os palhaços estão expostos em altura, largura e profundidade reais

perante os olhos dos espectadores. De todos os lados é possível que em momento de

relação surjam intersecções do público com a ação cênica. O trabalho tridimensional,

segundo Marcelo, das figuras palhacescas, exige que o artista dispa-se de si enquanto

ser social para lidar com a energia do palhaço em tempo integral, mantendo o estado de

atenção dilatada.

Ésio Magalhães realiza apontamentos semelhantes quando afirma que:

O palhaço está a todo o momento vendo e jogando com as reações do

público, então é fundamental que ele tenha um olhar aberto a ele.

Mais que tudo, o palhaço dialoga com a plateia. A comunicação se

faz com fala e escuta, ação e reação. Por isso, o olhar para o público

tem muita importância, já que através dele eu tenho um forte radar

para captar as reações e escutar o que se passa na plateia. E com

esta escuta, posso dimensionar os melhores caminhos para a

interação (Ésio Magalhães).

Essa escuta e esse olhar voltados para o público, para a palhaça e formadora

Luciana Viacava, estão presentes no trabalho das palhaças e dos palhaços

independentemente do lugar da atuação: “[...] a percepção do espaço, a escuta, o olhar

estão presentes em todos os espaços e conforme o contexto você muda o modo de

atuação, mas nunca perde o palhaço, o estado, o corpo, a voz, o raciocínio, a

subversão.” (Luciana Viacava). Para a artista, não é possível segmentar palhaças e

palhaços por espaços de atuação, mas sim contextualizá-los nos palcos onde atuam. A

partir de suas experiências, Luciana afirma que a essência palhacesca permanece em

todos os contextos de atuação, “[...] o que muda é o tamanho do gesto, o volume da voz,

o olhar, pois muitas vezes no hospital você atua para uma pessoa, enquanto que no

circo você está para 400 pessoas ao mesmo tempo” (Luciana Viacava).

Outra diferença significativa, para Luciana, é que no contexto hospitalar as

relações podem se prolongar, uma vez que existem crianças que permanecem por dias,

meses ou anos em situação de internação. A palhaça explica que “[...] quando você

trabalha assim, você visita sempre a mesma criança, faz uma amizade, conhece a

família inteira, sabe como anda a vida e tudo mais.” (Luciana Viacava). Nesse contexto

intensificam-se as relações, prolongam-se no tempo e no espaço da realidade e da ficção

a permanência dos encontros, perpetuam-se as liberdades, a quebra de mecanismos

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cotidianos, a entrega para um momento de jogo. Luciana afirma que entre suas

memórias mais significativas de encontros ocorridos entre crianças, seus

acompanhantes, profissionais da saúde e funcionários do hospital, estão aquelas onde há

um envolvimento nascido da constância dos encontros.

A recorrência de encontros, para Heraldo Firmino, também é um fator importante,

que potencializa o jogo cênico, porém ele afirma que isso pode significar um grande

desafio, pois é necessário ter vasto repertório artístico para impedir que a relação torne-

se mecânica, cotidiana ou desinteressante: “[...] ao trabalhar com uma criança, você

tem um repertório, vamos dizer para umas dez visitas, mas tem crianças que ficam anos

dentro do hospital. Então você tem de se reinventar sempre e aí uma coisa muito

importante é o improviso, a abertura para o jogo.” (Heraldo Firmino).

Para Luciana, desenvolver a potência desse jogo demanda muita prática e

reflexão, além de representar grandes desafios dos pontos de vista artístico e humano. A

artista aponta que a dificuldade habita em “[...] lidar com diferentes formas de jogo,

dos parceiros com quem vou trabalhar. Cada palhaço tem um jeito, e encontrar uma

boa escuta, um bom jogo que traga encontros potentes no dia a dia, não é tão evidente,

leva tempo e é uma conquista.” (Luciana Viacava). Podemos perceber também no

discurso de Du Circo essa necessidade de abrir-se para o jogo cênico, ação em que é

necessário “[...] saber jogar e criar com a criança, transformar ela no terceiro

palhaço, construir um jogo com entrada, começo, meio e fim.” (Du Circo).

Assim, as capacidades técnicas praticadas pelos artistas podem ampliar sua gama

de possibilidades no jogo cênico, que atende, primeiramente, às necessidades do

momento presente. Desse modo, o malabarismo, a mágica, a manipulação de fantoches,

a música, as técnicas de tropeços e quedas, a dança e sejam quais forem as outras

práticas sobre as quais os artistas tenham domínio, podem somar-se ao seu trabalho no

contexto hospitalar, transgredindo a lógica cotidiana e gerando comicidade, surpresa,

porém sempre são secundarizadas em prol da relação, do jogo.

Para Luciana, “[...] primeiro a gente se relaciona com a criança, com a pessoa

que estiver nem sempre através da comicidade, às vezes tem que ser num

estranhamento mesmo, ou conversando.” (Luciana Viacava). A partir desse contato,

através da sensibilidade de cada palhaça ou palhaço, percebe-se a conveniência ou não

do emprego das técnicas pessoais pesquisadas, sejam elas típicas do teatro, do circo, da

dança ou da música.

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Achcar afirma que “[...] o princípio de comicidade que rege a ação do palhaço no

hospital abrange além do riso e suas gradações de expressão, do sorriso à gargalhada;

outras manifestações expressivas que indicam uma comunicação bem realizada, mas

não necessariamente risível.” (ACHCAR, 2007, p. 114). Nos palcos hospitalares,

diferentemente dos palcos teatrais ou picadeiros circenses, a comicidade não é o

principal objetivo das figuras palhacescas, mas sim, como dissemos, o desenvolvimento

de uma relação de qualidade fundamentada no jogo cênico que, como vimos, nem

sempre é risível.

Ésio Magalhães, nesse sentido, comenta que:

Depois que fui para o hospital, entendi que o trabalho pode ser mais

sutil, mais delicado e pontual. Ali, compreendi a pausa e o silêncio.

Assim, Zabobrim teve que lidar com situações em que o riso não era o

primeiro canal de cumplicidade e nem a ação o seu maior atrativo.

Vivenciei a força da escuta do palhaço, a importância da passividade

na relação com o público e experimentei muito esta outra ligação com

os espectadores. Para mim, o trabalho no hospital me fez aproximar,

não só espacialmente, do público. Foi neste contexto que meu palhaço

se humanizou. A partir desta humanização, tive outro olhar para o

mundo e comecei a interagir de outra forma (Ésio Magalhães).

O contexto hospitalar exige uma postura de atenção para as emergências e

calmarias de cada momento. A ação das palhaças e dos palhaços requer uma intensa

necessidade de conexão com o público, de onde provém sua força de intervenção na

realidade. Como bem pontuou Ésio, a escuta dos artistas, nesse contexto, é um canal

para a humanização da figura cômica, e a partir dela entrelaçam-se a técnica e a

sensibilidade pessoais no trabalho palhacesco hospitalar. Para Beatriz Sayad:

A palavra do palhaço revela multiplicidade de camadas por onde

transita. Ser palhaço no hospital é, ao mesmo tempo, vontade de

brincar, de fantasiar e de ser atravessado pela realidade que, de

brincadeira e de fantasia não tem nada. Mas é importante (e assunto

recorrente entre nós) que não haja um muro intransponível entre a

criação do palhaço e a realidade na qual ele atua. E sim que se tenha

um tecido transparente, poroso, que faça com que estes mundos sejam

permeáveis (SAYAD apud DOUTORES DA ALEGRIA, 2008, p.

129).

A permeabilidade desses mundos depende do desenvolvimento da abertura para

o outro, capaz de somar, a partir de sua realidade, elementos para a composição de um

jogo cênico que mescla elementos extremos, tais como a fantasia e a realidade, a dor e o

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riso, a vida e a morte. Nesse jogo torna-se impossível delimitar aquilo que é vida

cotidiana ou realidade teatral. Tanto artistas quanto espectadores revelam-se em

momentos de conexão, abrem-se uns aos outros, escutam, expressam-se e juntos

constroem uma nova realidade, que para Sayad trata-se de “[...] uma breve viagem no

tempo, mas longa na imaginação. Para isso, temos que ter paciência, modéstia, escuta,

generosidade para acolher os sins e os nãos.” (SAYAD apud DOUTORES DA

ALEGRIA, 2008, p. 129).

Esse jogo sempre ocorre, como expressa a autora, em uma imaginação que “[...]

não estava pronta. Foi uma construção que envolveu o palhaço, a criança, o espaço, os

móveis, os objetos, todos estes seres que não eram mais do que eles mesmos, mas que

estavam aptos a serem redescobertos.” (SAYAD apud DOUTORES DA ALEGRIA,

2008, p. 87). O jogo palhacesco hospitalar desestabiliza e é desestabilizado pela

estrutura do cotidiano em que se insere, constituindo um novo olhar sobre o tempo e o

espaço hospitalar, bem como sobre si e sobre os seres que nesse espaço transitam.

Nesse âmbito, o jogo palhacesco situado no contexto hospitalar pode ser

pensado a partir da mescla das técnicas cênicas pesquisadas por cada artista, bem como

por sua sensibilidade em cada momento de encontro. Abrindo em si um espaço para as

outras existências componentes do espaço do hospital, as palhaças e os palhaços

deixam-se permear pelos encontros, tornando-os teatrais em momentos de jogo.

4.2 ENCONTROS TEATRAIS

Um palhaço e uma criança se encontram [...] há aparelhos

computadorizados e luzes que piscam, ligadas a um incontável

número de fios que dão ritmo ao andar das pessoas que ali trabalham.

O espaço da cama da criança delimita esse encontro. Envolta pelos

lençóis arrumados dentro das grades que a protegem, a criança tem um

desafio: viver. Ele está sendo cumprido no ritmo dos aparelhos, na

velocidade dos homens e dentro do mistério da vida que habita seu

pequeno corpo. O palhaço acredita na força dessa união. Acredita que

brincar é a melhor forma de encontro e que este não tem tempo

definido para acontecer: depende da intensidade dos olhares e da

permissão para o jogo. E aqui o jogo já começou e nele é difícil dizer

quem brinca com quem. É tão intenso que brincar, nesse cenário, é

sinônimo de viver (MASETTI, 1998, p. 14).

Na citação acima, da pesquisadora Morgana Masetti, encontramos a descrição de

um encontro situado no espaço hospitalar. Permeado por situações de jogo, esses

encontros podem ser compostos, como vimos, a partir da técnica e da sensibilidade de

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cada artista que para ele se coloca em estado de abertura. Na descrição de Masetti, o ato

de brincar torna-se a melhor maneira de efetivar o encontro entre um palhaço e uma

criança.

Optei, neste trabalho, por me referir a esses encontros, promovidos pelas figuras

palhacescas nos contextos hospitalares, como encontros teatrais, uma vez que ocorrem

tendo como parâmetro de relação o Teatro. Aproxima-se esse fazer artístico de uma

“arte do encontro”, termo criado pelo encenador Jerzy Grotowski. Para o pesquisador

Robson Haderchpek, “Pesquisar a ‘arte do encontro’ é promover um encontro do

homem consigo mesmo, é descobrir a arte que pulsa dentro de nós.” (HADERCHPEK,

2015, p. 7).

Buscando descobrir o pulsar da arte palhacesca, deparamo-nos com a recente

trajetória das palhaças e dos palhaços nos palcos hospitalares, que propiciou novas

lógicas de encontros entre seres humanos no espaço e no tempo em que transitam.

Nesse movimento permite-se ainda observar espectadores desavisados em contato com

direto com a arte.

A professora e pesquisadora Josette Féral considera que a teatralidade não está

restrita ao campo do teatro e pode ser reconhecida em qualquer área do conhecimento,

estando presente em diálogos artísticos e na vida cotidiana. Abarcando rituais,

celebrações carnavalescas, cerimônias religiosas, coroações, atividades de moda,

esportes, entre outros, o alcance da teatralidade, para a pesquisadora, está muito além de

uma esfera puramente teatral. É no campo do teatro, contudo, que melhor se efetuam as

experimentações sobre a teatralidade (FÉRAL, 2003):

Teatralidade não emerge passivamente a partir de um conjunto de

objetos teatrais, cujas propriedades se poderia enumerar em um

relance, mas como parte de um processo dinâmico, pertencendo para

ambos, o ator e o espectador, que toma posse da ação que ele assiste.

(FÉRAL, 2002, p. 103, tradução da autora)14

.

Esse processo em movimento em que se concretiza a teatralidade seria canalizado

pela figura do ator: “O ator é simultaneamente o produtor da teatralidade e o canal por

onde ela passa.” (FÉRAL, 2002, p. 102, tradução da autora)15

. Porém essa teatralidade

14

“Theatricality does not emerge passively from an ensemble of theatrical objects whose properties one

could enumerate at a glance, but as part of a dynamic process belonging to both the actor and the

spectator, who takes possession of the action he watches”. 15

“The actor is simultaneously the producer of theatricality and the channel through which it passes.”

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não é exclusivamente de seu domínio, uma vez que o espectador também é responsável

por sua constituição. Na descrição abaixo, feita por Wellington Nogueira ao narrar seu

primeiro contato com a atuação palhacesca hospitalar, ainda enquanto observador,

podemos perceber a constituição da teatralidade por meio de um encontro no hospital:

Aí eu fui seguir a dupla, que eu tinha combinado de seguir, e logo no

primeiro quarto, o que eu vi foi muito marcante, porque me lembro de

que era uma menina de uns nove ou dez anos e ela estava bem

prostrada no leito dela. Quando eles chegaram à porta, eles não

entraram no leito. Eles se apresentaram e ela fez isso (gesto de

esquivar-se), mas quando ela viu quem estava na porta, ela já fez isso

(gesto de curiosidade), aí eles, da porta, se apresentaram. Eu sou

Doutor Fulano, Doutora Fulana. Como vocês sabem estamos aqui no

hospital e só queremos fazer uma esterilização, uma coisa simples,

não pode ter micróbios e tal. E ele (o palhaço) começou a soltar

bolhas de sabão. E ele era um mágico habilidoso, e daquelas bolhas

de sabão, ele começa a fazer truques de mágicas completamente

fascinantes. Eu fiquei completamente enredado nas mágicas e a outra

parceira dele era engraçadíssima, e a menina foi ganhando tônus, ela

sentou no leito, e foi ficando fascinada com aquilo (Wellington

Nogueira).

Esse encontro cênico foi qualificado pelo preparo técnico e sensível proposto no

jogo pelos artistas, capaz de modificar o cotidiano da espectadora, sua postura corporal,

sua relação com o espaço e o tempo. No relato de Wellington, a teatralidade emerge do

encontro para ambos, artistas e espectadora.

Essa relação é próxima do que afirma Féral, para quem há uma dupla perspectiva

que o termo teatralidade abarca: a de quem produz, e a de quem recebe a ação teatral

(FÉRAL, 2003). O ator, produtor de teatralidade, não interpreta e tampouco representa a

si, sendo que se torna uma constante fonte de “produção e deslocamento” (CARLSON,

1997).

Féral aponta ainda que a teatralidade não depende das formas artísticas ou

estéticas, mas sim do estabelecimento de um consenso entre artistas e público. Em

momento de encontro cênico, o espectador aceita jogar o jogo proposto pelos artistas de

modo que uma situação teatral se estabeleça e a ficção perpetue-se na realidade

(FÉRAL, 2003).

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Na constituição desses mundos fictícios, que têm como pano de fundo os

resquícios da realidade, é necessária uma atitude de abertura das figuras palhacescas

para o encontro cênico. Nesse sentido, o palhaço Ésio Magalhães explica que:

[...] a abertura para o outro é fator fundamental para o trabalho do

palhaço. Não só no hospital, mas onde quer que ele interaja. O

palhaço conquista a cumplicidade com o público pelo riso e para isso

precisa abrir o seu trabalho, compartilhar com o outro. Como a

improvisação está muito presente no contexto hospitalar, o palhaço

precisa estar muito atento a todas as possibilidades para sua atuação

(Ésio Magalhães).

Ésio considera que, como palhaço contextualizado no hospital, sempre buscou

perceber os elementos que o cercavam, aproveitando as possibilidades surgidas a partir

do encontro com outros seres humanos. Para o artista, esse encontro é o fator mais

importante na arte palhacesca, independentemente do palco em que ocorrer.

Nesse cenário, Wellington Nogueira igualmente afirma a importância do encontro

na arte palhacesca que ocorre nos espaços hospitalares, que, para ele, revelaram um

novo palco:

Eu fui fazer teatro porque amava o risco do ao vivo, mas lidava com

este risco após dois meses de ensaio, oito horas por dia, cenas,

marcas, figurinos, o luxo de ter um diretor te olhando, dando

retornos, quer dizer, toda uma estrutura criada para te jogar na vida

real, e te jogar no contato com o público. A tua plateia é muito mais

espectadora do que qualquer outra coisa, no hospital não,

quebraram-se todas as barreiras, vieram todas as licenças

(Wellington Nogueira).

Nesses palcos, nem mesmo a composição espacial pode ser definida previamente,

tendo em vista que a atuação palhacesca hospitalar ocorre a partir da composição de

palcos itinerantes, criados em cada espaço cotidiano (corredores, quartos, enfermarias).

Com base nos seres que habitam cada um desses espaços é que se constituem as ações e

relações que pulsam no ritmo de cada encontro cênico.

Marcelo Marcon também assinala que no contexto hospitalar faz-se necessária

uma abertura para a relação com outras pessoas, pois, para ele, no hospital “A criança

está perguntando por que o seu sapato é assim grande? por que você tem nariz

vermelho? por que você usa jaleco sendo que você é palhaço?” (Marcelo Marcon). A

criança dialoga com as figuras palhacescas, diferente dos palcos convencionais, onde

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predominantemente ela observa com determinada distância as ações. O mesmo ocorre

com os adultos presentes nos hospitais: percebem que essa figura está aberta para

intersecções, e com elas se somam na modificação do espaço hospitalar.

Para Soraya Saíde, componente dos Doutores da Alegria desde 1992, esse contato

direto em termos de enlace com o público é visto como fator fundamental na arte

palhacesca hospitalar. No hospital, para ela, “[...] é preciso ter disponibilidade para o

outro, para o jogo, olhar e escutar as situações, as circunstâncias, criatividade para

transformá-las e mais que tudo é preciso ter vontade de mergulhar na máscara.”

(SAIDE, 2005, apud DOUTORES DA ALEGRIA, 2005, p.24).

Nesse espaço, a partir da fala dos entrevistados, podemos perceber que a abertura

para os outros seres humanos, fortemente aliada ao jogo de técnicas e sensibilidades, é

considerada fator primordial na arte da palhaçaria. Como percebemos em algumas das

descrições fornecidas para esta pesquisa, essa disponibilidade muitas vezes está situada

entre tênues fronteiras e extremidades da existência. Para a pesquisadora Ana Achcar,

extremidades são intrínsecas ao trabalho das figuras palhacescas em contextos

hospitalares: “[...] o palhaço que atua para crianças em hospitais inventa uma maneira

de fazer coexistirem norma e rebeldia, semelhança e diferença, vida e morte.”

(ACHCAR, 2007, p.213).

Wellington Nogueira afirma que igualmente se faz necessária uma atitude extrema

por parte do artista que se insere nos hospitais, apontando que: “Imagina para você

enquanto artista, ir de encontro a sua plateia, e ser autorizado a fazer parte de

momentos de extrema intimidade e de respeito.” (Wellington Nogueira). Esse ato de

encontro quebra com barreiras e rompe divisões entre artistas e público, sequência de

ações e marcações definidas, trata-se de um ato de extrema entrega para o encontro com

o outro.

Tal perspectiva de acontecimento teatral aproxima-se da concepção de Grotowski

de um ato total, visto como “[...] o ato de desnudar-se, de rasgar a máscara diária, da

exteriorização do eu. É um ato de revelação, sério e solene. O ator deve estar preparado

para ser absolutamente sincero.” (GROTOWSKI, 1971, p. 165). Nesse ato, os artistas

entregam-se para o encontro com os espectadores, sem defesas previamente calculadas e

disponíveis para criar uma cena viva, que emerge do encontro cênico entre artistas e

espectadores e suas experiências vividas, como podemos identificar no relato abaixo:

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Teve uma experiência com um menino quando eu trabalhava no Itaci,

que é um hospital de crianças com câncer, com Ju (Juliana) Gontijo,

e ele tinha câncer, e devia ter uns doze anos. A gente brincava que ele

era meu noivo que eu queria casar com ele, e ele vivia tirando sarro,

e a mãe dele ficou super amiga nossa e falava:

-Ai, eu não quero esta nora pra mim!

Então, ela brincava com a gente nesta coisa né? E aí lá para frente o

menino ficou bem mal, sabe? E parece que teve uma história que

parece que o pai dele, enquanto a mãe estava no hospital, ele estava

com outra. Ela descobriu e ficou brava e tal. E um dia ela chegou

para mim e falou assim: Lola! Vem aqui! Aí ela pegou minha roupa,

pegou minha saia e começou a rasgar, e aí eu tirei a saia e dei para

ela rasgar, aí sei lá, ela descontou toda a raiva dela e pouco tempo

depois também o filho morreu e eu nunca mais a vi. (Luciana

Viacava).

Em um momento intenso de entrega para o encontro com a mulher, a palhaça

assumiu uma relação de cumplicidade que permitiu que se tomassem atitudes extremas,

desprovidas de julgamentos e fundadas na interação verdadeira entre seres humanos.

Naquele espaço, a palhaça se percebeu enquanto uma “[...] pessoa de confiança, sabia

que ela podia fazer isto comigo, que não seria uma loucura, que a gente tinha um

código de transgressão já e isso para mim ficou muito marcado.” (Luciana Viacava). O

estreitamento dos laços entre a palhaça e a mãe possibilitou um encontro que talvez não

fosse possível entre mais ninguém naquele ambiente.

Ana Achcar, ao afirmar a importância do encontro na arte da palhaçaria

hospitalar, salienta que nos palcos teatrais ou picadeiros circenses, “[...] o palhaço é o

centro das atenções, e o riso depende da sua performance ridícula. No hospital, embora

ele ainda seja o instrumento do risível, é a criança, ou o profissional de Saúde, ou ainda

o acompanhante, a razão de sua presença e de sua existência” (ACHCAR, 2007, p.

193).O encontro com esses indivíduos no contexto hospitalar é muitas vezes o pretexto

da interação, e pode ser compreendido em concordância com as proposições de Masetti.

A autora se refere aos pensamentos da ética do filósofo Spinoza (2005), em que o corpo

pode afetar e ser afetado a partir dos encontros, e afirma:

Os encontros são feitos das mais diversas químicas, às vezes

construídos simplesmente a partir de um olhar, ou da soma de

pequenas ações cotidianas, que mudam a direção de nossas vidas.

Pouco podem ser medidos ou avaliados cientificamente. Só o contato

com a reconstrução da nossa experiência de vida, e um diálogo

interno, pode validar sua importância (MASETTI, 1998, p. 13).

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Existem diversos tipos de encontros. Aqueles com as figuras palhacescas podem

criar novas realidades, pois palhaças e palhaços são capazes de incorporar, segundo a

autora, “[...] a coexistência das realidades opostas da vida, sem tentar reconciliá-las. Isso

dá ao nosso ego a possibilidade de absorver outra lógica e, consequentemente, maior

equilíbrio.” (MASETTI, 1998, p. 18). Capazes de concretizar mundos fictícios,

palhacescos, esses encontros cênicos abrem canais onde se potencializam a criação de

outras estruturas de relação, desconstruindo muitas vezes lógicas racionais, chamando a

atenção para as possibilidades do corpo humano, que se coloca sempre em posição de

encontrar-se com outros em situações de jogo.

Esse pensamento aproxima-se do engendrado por Merleau-Ponty no que tange à

noção de corpo. Ainda sobre esse aspecto, explica a pesquisadora Mirian Rabelo:

Postular a imbricação necessária entre corpo e consciência não é para

Merleau-Ponty retirar o corpo de seu lugar consagrado na natureza,

para jogá-lo no terreno da subjetividade. Trata-se antes de redefinir os

dois termos a partir desta sua “imbricação”. Perpassado pelo subjetivo

(“todo ele psíquico”), o corpo não é mais matéria inerte ante o

espetáculo da cultura, é “corpo vivido”. Ancorada no corpo, por sua

vez, a subjetividade já não pode mais ser tomada como interioridade,

locus de onde emanam e onde são armazenados representações acerca

do mundo. O corpo nos enraíza no mundo da cultura e da história

(mas também dos sensíveis), nos enreda nas ações de outros e faz os

outros inevitavelmente participarem de nossas ações (RABELO, 2008,

p. 109).

Essa concepção de corpo enraizado no mundo assemelha-se ao trabalho

palhacesco que ocorre nos palcos hospitalares. Nesses espaços, como afirmado ao longo

do trabalho, é igualmente possível pensar na noção de um corpo que, para além de

perceber outrem, forma com esse outro um sistema de coexistência.

A noção de experiência, nesse sentido, é vinculada ao corpo, e propõe o retorno ao

mundo vivido, onde impreterivelmente se dão os encontros. Para Merleau-Ponty,

Sinto meu corpo como potência de certas condutas e de certo mundo,

sou dado a mim mesmo como certo poder sobre o mundo; ora, é

justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem, e ele encontra

ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias

intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como

as partes de meu corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de

outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único

fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada

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momento o rastro que habita doravante estes dois corpos ao mesmo

tempo (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 474).

Assim como a corporeidade tem certo poder sobre o mundo, a junção de

corporeidades exerce sobre ele uma tensão que revela novos sistemas de vida. Palhaças

e palhaços, assim, constituem o verso e o reverso das situações cotidianas, propondo

para elas pontos de vista teatrais, do universo da criança, do inesperado. Para que o

corpo palhacesco esteja apto ao desenvolvimento de certas condutas, faz-se necessário

criar experiências artísticas e sensíveis capazes de ampliar seu “poder sobre o mundo”,

neste caso, cênico e hospitalar.

Assim, os encontros teatrais proporcionados pelas figuras palhacescas expandem a

gama de possibilidades, situações e ações realizadas nos espaços hospitalares por meio

do jogo.

Não se pode, no entanto, precisar a potência desses encontros, nem mesmo prever

como eles irão reverberar em outrem. O que se sabe é que, para as figuras palhacescas

situadas no contexto hospitalar, os encontros são primordiais; para os demais

transeuntes desse espaço, esses encontros representam uma possibilidade de sentir-se

bem, de distrair-se da enfermidade, e, mesmo que por um breve momento, de deixar-se

mesclar com a figura palhacesca, formando com ela um único sistema de

transformações.

Merleau-Ponty considera que “[...] nós não conhecemos nosso corpo, a potência, o

peso e o alcance de nossos órgãos como um engenheiro conhece a máquina que ele

construiu peça por peça.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 421). Essa corporeidade que

se encontra com outras, antes de sujeita à sapiência racionalista, trata-se de nosso meio

de comunicação e de presença no mundo. O autor afirma ainda que “[...] cada atitude de

meu corpo é de um só golpe certa potência de um espetáculo [...] porque diante das

coisas, meu corpo está permanentemente em posição para percebê-las [...].”

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 421). Além de percebê-las, meu corpo também é

percebido a cada atitude, em cada ação, e complementado por outros corpos.

Esse perceber, no caso da atuação palhacesca hospitalar, pode ser pensado como

um perceber-agir. Na medida em que as palhaças e os palhaços percebem a lógica

cotidiana hospitalar, agem no sentido de fazer emergir suas possíveis teatralidades.

Embora haja sempre um estado de abertura para as proposições dos espectadores, na

atuação das palhaças e dos palhaços são necessárias atitudes propositivas ao longo dos

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encontros cênicos, para que tais atitudes possam desencadear a manifestação de outros

encontros. Aqui, cabe também a definição de “ativo”, descrita por Spinoza:

Digo que somos ativos [agimos] quando se produz em nós ou fora de

nós qualquer coisa de que somos a causa adequada, isto é, quando, em

nós ou fora de nós, decorre da nossa natureza alguma coisa que se

pode conhecer clara e distintamente tão-somente pela nossa natureza

[...] (SPINOZA, 2005, p. 197).

As palhaças e os palhaços próximos a esse pensamento são seres ativos nos

contextos hospitalares, uma vez que produzem neles e fora deles a abertura para o

teatro, o circo, a música, a dança, da qual podem ser causas adequadas em espaços e

tempos hospitalares. As cenas geradas a partir dessa abertura se produzem também pela

natureza de outros, mas sempre a partir de uma proposição das figuras palhacescas,

mesmo que tal proposição se restrinja a existir em sua peculiaridade, direcionar um

olhar.

Na descrição abaixo podemos perceber um encontro cênico. Envolvendo uma

criança, uma enfermeira e uma palhaça, tal encontro foi constituído a partir de um jogo

de técnicas e sensibilidades no contexto hospitalar.

Estávamos terminando uma rotina com a D., quando a enfermeira veio

colocar o soro. D. pediu que eu segurasse sua mão e começou a berrar

durante várias tentativas frustradas de encontrar a veia. A enfermeira

desistiu, [...] pois a pequena estava sofrendo muito. D. pediu que a

colocasse em pé. Ajudei-a calçar os sapatos e, quando ela se sentiu

pronta, falou, como se nada houvesse acontecido:

-Faz mais bola!

E assim nos teletransportamos para uma realidade mágica e

começamos a brincar. (ABBUD, 1998, apud MASETTI, 1998, p.60).

Podemos perceber, na descrição da palhaça Doutora Emily, vivida pela atriz Vera

Abbud, que no contexto hospitalar faz-se imprescindível um estado de atenção e

disponibilidade, que podem conduzir a um encontro cênico potente, muitas vezes capaz

de auxiliar os pacientes a superarem traumas da experiência de internação, bem como

auxiliar os artistas a lidarem com a realidade latente. Esse contato intenso com o outro

no contexto hospitalar gera encontros cênicos que estão para além da comicidade, do

espetáculo de habilidades, dos aplausos. A partir de suas atividades nos palcos

hospitalares, as figuras palhacescas desencadeiam situações teatrais ao longo de cada

encontro no cotidiano.

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No campo das Artes Cênicas, artistas e público comunicam-se através de uma

situação ficcional convencionada, mediada pelo jogo teatral, e penetram numa lógica

distinta da vida cotidiana. No contexto hospitalar, devido à proximidade entre artistas e

espectadores, essa teatralidade ocorre de maneira intensa, permitindo às palhaças e aos

palhaços a invenção de mundos fictícios condizentes com o universo imaginativo das

crianças hospitalizadas, de seus acompanhantes, da equipe médica e dos funcionários do

hospital no momento do encontro teatral.

Para a palhaça, atriz e pesquisadora Beatriz Sayad, “[...] o hospital é o cruzamento

da rotina com o imprevisível. Do mesmo com o inusitado. Da mesmice com a urgência.

Do tédio com a iminência da morte.” (SAYAD, 2008 apud DOUTORES DA ALEGRIA,

2008, p. 16). Nesse local propício às modulações extremas, palhaças e palhaços agem

de acordo com os encontros, impregnando-se também de uma atitude extrema: a de

abrirem-se, sem amarras, para o outro.

Ao propor novas lógicas de existência, as figuras palhacescas realizam uma ponte

entre a concretude do espaço hospitalar e o espaço imaginário. Nesse pensamento que

também é ação, aquilo que era um porta-soro, por exemplo, pode tornar-se um porta-

chapéus, um porta-palhaços e até mesmo tal Dr. Aroldo, como percebemos na descrição

que se segue:

Andando pelos corredores do Hospital Universitário, o Dr. Dus Cuais

Carigudum e o Dr. Sandoval encontraram um solitário porta soro. Um

olhar e uma ideia surgiram. Reviraram os seus bolsos, pegando uma

coisa aqui e outra ali, e então um simples porta soro foi ganhando

cabelo, barba, olhos, nariz, jaleco, vida… De porto soro agora é um

besteirologista! O Dr. Aroldo! E o Dr. Aroldo trabalhou o dia inteiro

junto aos palhaços, foi um sucesso. Exames exatos, diagnósticos, altas

médicas, tudo na ponta da língua! Paqueras, brigas… Realmente o trio

deu o que falar! (DOUTORES DA ALEGRIA, BLOG, 2014).

A partir do fato descrito, há que se concordar com Merleau-Ponty: “Se o mito, o

sonho, a ilusão devem poder ser possíveis, o aparente e o real devem permanecer

ambíguos no sujeito, assim como no objeto.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.395). A

interação dos seres componentes do espaço hospitalar com o Dr. Aroldo caracteriza a

convivência do ser humano com os aspectos lúdicos e irreais da vida, mesclando-os

concretamente com a realidade, como nos prova a imagem 13:

Andando pelos corredores do Hospital Universitário, o Dr. Dus ‘Cuais

Carigudum e o Dr. Sandoval encontraram um solitário porta soro. Um olhar e

uma ideia surgiram. Reviraram os seus bolsos, pegando uma coisa aqui e outra

ali, e então um simples porta soro foi ganhando cabelo, barba, olhos, nariz,

jaleco, vida…

De porto soro agora é um besteirologista! O Dr. Aroldo!

E o Dr. Aroldo trabalhou o dia inteiro junto aos palhaços, foi um sucesso.

Exames exatos, diagnósticos, altas médicas, tudo na ponta da língua! Paqueras,

brigas… Realmente o trio deu o que falar! (DOUTORES DA ALEGRIA, BLOG,

2014).

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Figura 13 - Aroldo, o porta-soro, e os Doutores Dus Cuais Carigudum (Henrique

Rímoli) e Sandoval (Sandro Fontes).

Fonte: <https://www.doutoresdaalegria.org.br/blog/aroldo-o-porta-soro/>. Acesso em

04/08/2016.

A realidade compreende objetos como um porta-soro interagindo com seres

humanos em situação cotidiana, quando se trata de uma interação cênica com figuras

palhacescas. A partir da subjetivação de um objeto inanimado com a atribuição de

características de palhaços, nasceu o Dr. Aroldo, promovendo uma transgressão da

realidade a partir de elementos do cotidiano concreto.Ao pensar a arte em seus

postulados filosóficos, Merleau-Ponty sugere que ela:

[...] fala no silêncio dos gestos, com sua imensa capacidade de criar

sentidos, de significar e de admitir uma verdade que não se assemelhe

às coisas, que não tenha modelo exterior, nem instrumentos de

expressão predestinados, e que seja, contudo, verdade (MERLEAU-

PONTY, 2006, p. 59).

Desse modo, ao surgir nos corredores hospitalares, Dr. Aroldo tornou-se um

doutor de verdade. Palhaças e palhaços, portadores de certa ambiguidade, tornam-se

seres ativos na construção de mundos fictícios, onde realidades cotidianas – reais – e

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realidades cênicas – aparentes – se entrecruzam, promovendo a criação de novos

mundos, novas verdades. Constituído de elementos concretos, vindos do vestuário e de

objetos cênicos dos palhaços, Dr. Aroldo representa um mundo ficcional em completo

diálogo com a realidade, transformando-se, de um porta-soro, em médico

besteirologista.

Achcar afirma que, principalmente por meio do seu corpo, o palhaço “[...]

transporta outras realidades, propõe novas configurações físicas, arquiteta movimentos

surpreendentes e impensados: é o espaço lúdico, lugar praticado pelo jogo e pelo

imaginário, pela memória, pela experiência de presença daqueles que o ocupam.”

(ACHCAR, 2007, p.68).

O artista e formador Heraldo Firmino, em consonância com essa proposição,

afirma que o hospital é um palco onde o artista mescla-se com o público na composição

da ludicidade, e que “[...] você está lidando com pessoas que estão em uma situação

complicada. [...] te olham de uma maneira diferente, te contam coisas, sorriem para

você, só pelo fato de você estar trajado de palhaço, já existe esta premissa. [...].”

(Heraldo Firmino). Para ele, a maioria das pessoas está disposta a jogar com as figuras

palhacescas e aceitar suas proposições, por mais estranhas que pareçam à normalidade.

Para Ésio Magalhães, essa composição teatral e lúdica tem suas raízes no

encontro:

[...] as principais diferenças de atuação entre apresentar um

espetáculo para um público que te espera e interagir num contexto

hospitalar têm duas naturezas: a espacial e a artística. Dentro da

natureza espacial, vejo a questão da dimensão da atuação como uma

diferença, pois num espetáculo a adequação espacial se dá antes que

o público chegue, ou seja, o artista prepara os locais de atuação,

percebe onde estará o público e faz previamente a adaptação do seu

material ao espaço possível. Já no hospital, por mais que se conheça

o espaço, o artista deve o tempo todo estar atento às suas

modificações, pois é um espaço móvel, de passagem, por conseguinte,

transitório. O público também se desloca e se move no espaço, então

o artista deve ajustar o seu repertório ao mesmo tempo em que se

apresenta. Desta forma, o palhaço no hospital deve redimensionar

todo o tempo suas possibilidades de interação para preservar o

campo de atuação possível e seguro (Ésio Magalhães).

O artista lembra, ainda, que o contexto hospitalar pode apresentar certa hostilidade

em relação à apresentação artística: “[...] a finalidade do hospital não é propiciar uma

experiência com as artes para seu público, mas buscar a cura para quem dela

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necessita.”(Ésio Magalhães).Voltada para os cuidados com a saúde, a atenção do

público pode, a qualquer momento, ser levada para longe da atuação palhacesca. Ésio

afirma que:

Esta diferença espacial se reflete em outra diferença de atuação, mas

de natureza artística. O artista dentro do hospital está a serviço da

disponibilidade e possibilidade do público. Não é o público que deve

se adequar ao contexto do espetáculo, mas o artista que deve estar

atento ao ambiente em que adentra para saber desde o que vai propor

até o tempo de duração de seu trabalho que pode ser até interrompido

por qualquer questão mais urgente. Neste sentido, o artista deve, se

colocando a serviço, ter um permanente desapego ao que veio fazer

para poder criar o melhor caminho para a interação. O público no

hospital não está, a princípio, disponível ou interessado na interação

e o palhaço deve conquistar a atenção da plateia antes de começar

sua atuação. Paradoxalmente, há uma leve semelhança com a

atuação espontânea do artista na rua, que também deve chamar a

atenção do público antes de começar a atuar e deve manter a atenção

do público até o final de sua atuação (Ésio Magalhães).

Atentas às possibilidades de jogo propiciadas pelo momento e pelo espaço,

partilhados sempre com outros seres, as figuras palhacescas realizam uma chamada para

o fluxo da vida, abrem-se aos seus mínimos detalhes. Uma corrente de ar, uma brisa,

uma trovoada, um diálogo, um telefone que toca, uma mão que se move, um choro que

irrompe, um riso que escapa: todos os fatos que se passam no momento de atuação

palhacesca hospitalar têm o poder de determinar seus rumos, compor caminhos de

criação cênica ao longo de cada encontro.

A palhaça Luciana Viacava, em consonância com essa reflexão, relata que, no

contexto hospitalar,

[...] a primeira questão mesmo eu acho que tem que ser a relação.

Então, muitas vezes, eu vejo que primeiro a gente se relaciona com a

criança, com a pessoa que estiver lá, nem sempre através da

comicidade, às vezes tem que ser num estranhamento mesmo, ou

conversando, e uma vez que você estabelece este contato, aí sim a

gente vai procurar a comicidade (Luciana Viacava).

Essa comicidade, em outros contextos de atuação, é intrínseca à atuação

palhacesca. No contexto hospitalar, como vimos, nem sempre a comicidade se faz

presente, e, quando há, é derivada de uma relação. Nesse contexto, o impacto dos

artistas sobre o público e vice-versa torna-se evidente, tendo em vista a proximidade das

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relações. De acordo com a pesquisadora Ana Achcar:

A relação que o palhaço estabelece com seu público é direta e

imediata, pois ele só pode existir se mediado pelo olhar do outro. No

hospital, não é diferente. A menor reação, um gesto, uma risada, uma

palavra, vindos do outro, são para o palhaço uma oportunidade de

jogo e relação (ACHCAR, 2007, p. 113).

Ao referir-se a essa maneira de fazer teatro, completamente vinculada aos

acontecimentos do cotidiano, Wellington Nogueira observa que, no contexto hospitalar,

existem “[...] cenas que são criadas pelas crianças, a criança dá o mote da

improvisação, outras nós, outras a gente vai construindo juntos.” (Wellington

Nogueira).

Na atuação palhacesca contextualizada no hospital, para Wellington, “[...] eu

estou cocriando uma cena com meu parceiro e com meu outro parceiro de cena que é a

criança em tempo real. É isso. Um roteiro com começo, meio e fim, criado em tempo

real pela criança e pelo palhaço.” (Wellington Nogueira). Esse processo, para ele, gera

uma autonomia criativa arrebatadora, calcada em um compromisso, pois uma vez que as

palhaças e os palhaços pedem permissão para entrar e a obtém, não têm por intuito

submeter a criança a alguma performance. O artista explica que a ação palhacesca se

trata de “[...] estar a serviço da criança para construir junto com ela uma

performance.” (Wellington Nogueira). Esse trabalho, dessa forma, pode ser visto como

“[...] uma intervenção cênica na vida real, para construção de cenas, uma dramaturgia

da vida real.” (Wellington Nogueira).

Revelando a realidade através de novos filtros perceptivos, a dramaturgia da vida

real mencionada por Wellington é mediada pelas figuras palhacescas, que podem criar,

a partir de sua dimensão cênica, novas possibilidades para os encontros teatrais. Quanto

a isso, Masetti salienta:

A surpresa da presença de um palhaço, como conceito aparentemente

tão oposto à realidade hospitalar, tem a capacidade de brecar, ou

suspender a lógica dos pensamentos e a dinâmica de sentimentos

vividos por pacientes, familiares e profissionais. Isso abre espaço para

que essas pessoas percebam novos processos que acontecerão a partir

da visão de mundo do palhaço (MASETTI, 1998, p.18).

A busca por uma relação cênica é o pretexto fundamental e razão de existência de

palhaças e palhaços em contextos hospitalares. Para Masetti, o palhaço “[...] é movido

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pela curiosidade e flexibilidade, pela capacidade de aceitar erros e transformá-los em

recursos, pela postura de enobrecer a atitude do outro, por mais absurda que ela seja ao

olhar racional.” (MASETTI, 2003, p. 36).

As figuras palhacescas, assim, fazem um chamado para a percepção da realidade

através dos sentidos e das sensações do corpo, que por breves momentos supera a

racionalidade cotidiana, cria novas maneiras de existir no espaço. O palhaço, para

Achcar,

[...] nos ensina a rirmos de nós mesmos. Ele aceita seu próprio

ridículo, e se expõe, tornando inútil a pretensão de sermos uns

melhores do que os outros. O palhaço nos lembra a nossa própria

humanidade. E é nessa perspectiva humana que a experiência do

humor, que ele traz para dentro do ambiente hospitalar, acaba

possibilitando a transformação da realidade das relações que nele se

estabelecem (ACHCAR, 2007, p. 19-20).

Em uma cena construída no contexto hospitalar, é difícil delimitar as margens

entre aquilo que é cênico e aquilo que é real. Ambas as dimensões existem no mesmo

espaço e são constituídas de humanidades em movimento e atenção. Os acontecimentos

são recebidos no ato de sua chegada, através de uma atitude de entrega do artista para

com o tempo e o espaço.

A constituição de uma corporeidade aberta ao mundo e que caminha em direção

ao encontro torna-se, nesse âmbito, um dos principais desafios de cada artista. Heraldo

Firmino, nessa direção, afirma que “A criança tem que olhar para você e perceber que

ela pode te acessar, e aí ela vira o terceiro palhaço e entra no jogo.” (Heraldo

Firmino). Tal premissa vale não somente para as crianças, mas também todos os

adolescentes, jovens, adultos e idosos que compõem o espaço hospitalar.

O encontro com as proposições das palhaças e dos palhaços se dá de maneira

opcional para as espectadoras e espectadores no contexto hospitalar. Aos artistas, como

vimos, encontrar-se é condição essencial, para a qual há inevitavelmente o impulso a

um estado de abertura para o encontro com o outro.

Palhaças e palhaços, desse modo, oferecem-se enquanto portais de acesso ao jogo

cênico, restando saber se cada espectador tem interesse em nele ingressar, e que história,

a partir de suas vivências, trará para compartilhar. Os encontros teatrais, promovidos

pelo jogo entre as circunstâncias da vida e a realidade peculiar do hospital, constituem-

se, assim, como cenas que emergem no tempo e no espaço corrente das ações.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi possível constatar a partir das experiências palhacescas e da pesquisa

bibliográfica realizada, a atuação palhacesca nos palcos hospitalares depende da

abertura para a interação com as características do espaço, dos seres que o habitam, e

mesmo das variações que se dão entre os diferentes polos presentes no contexto

hospitalar, como a vida e a morte. Compreendido como imprescindível na atuação de

palhaças e palhaços em palcos hospitalares, a arte do encontro figura é mote criativo

central e é percebida como determinante na criação cênica hospitalar. A teatralidade,

assim, emerge da abertura para a relação entre artistas e espectadores.

Foi possível perceber, ainda, que no contexto dos hospitais se faz necessário um

treinamento pessoal no âmbito das Artes Cênicas por parte de cada artista, bem como no

campo das especificidades de atuação nos palcos hospitalares. Esse preparo, como

observado, alia-se às situações presentes por meio da sensibilidade das palhaças e dos

palhaços, que, ao se encontrarem com crianças hospitalizadas, seus acompanhantes,

equipe médica e funcionários do hospital, desenvolvem relações de jogo no tempo e no

espaço da ação.

O jogo cênico criado no contexto hospitalar valoriza a singularidade dos

indivíduos envolvidos, intensificando-se nesse espaço. Palhaças e palhaços de diferentes

formações artísticas, com distintas técnicas e experiências de vida são convidados pelo

próprio espaço a articular seus saberes e vivências no momento do encontro com os

espectadores, que se tornam ativos na constituição das cenas. O jogo cênico com os

integrantes dessa plateia, assim, não permite uma relação que desconsidere as suas

subjetividades, pois muitas vezes é composta apenas pela figura palhacesca e uma

pessoa em situação cotidiana. As peculiaridades de ambos é que, nestes casos,

determinam as ações.

Assim a atuação das palhaças e dos palhaços no contexto hospitalar aproxima-se

de um jogo mediado pelo encontro entre seres humanos, ao passo que se distancia de

uma forma espetacular convencional de teatro, da rua ou do circo. Nesses palcos

permeados pela lógica e pelo universo hospitalar, percebeu-se uma quebra de

paradigmas na atuação palhacesca, de modo que palhaças e palhaços passaram a

desenvolver suas ações mais sobre o pressuposto de encontrar-se do que de apresentar-

se.

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As regras desse jogo são distintas, já que, no picadeiro circense ou nos palcos

teatrais, os espectadores estão concentrados em um só espaço, onde uma apresentação

ocorre para que todos a vejam ao mesmo tempo. Nos palcos hospitalares, as cenas

emergem de cada encontro, que, por sua capacidade de transgredir o cotidiano,

surpreendem os espectadores com suas proposições. Subvertendo as limitações de

tempo e espaço cênicos, esse tipo de atuação compromete-se fundamentalmente com as

circunstâncias presentes, distanciando-se delas apenas para promover novas lógicas de

ação, que ainda assim são por elas impregnadas.

Portando recursos e memórias milenares, as figuras palhacescas têm por

característica a geração de risos coletivos, favorecendo a troca entre seres humanos e, a

partir dessa troca, estabelecendo situações de jogo. Dialogando com o tempo e o espaço

em que vivem, palhaças e palhaços tanto se repetem como se renovam ao longo dos

milênios, e em decorrência desse movimento passaram a ocupar os contextos

hospitalares. Neles, compuseram palcos de atuação onde a vida e as Artes da Cena se

fundem de maneira intensa.

Neste trabalho, busquei, a partir da valorização das experiências de profissionais

que atuaram ou que atuam em espaços hospitalares, além da minha própria experiência

vivida como Doutora Brum, constituir uma atitude metodológica que abarcasse esses

saberes, concebidos em momentos de treinamento e de atuação. Buscando dialogar com

uma sabedoria fundada no corpo, em suas sensibilidades e em sua sabedoria, entrei em

contato e propus a compreensão da filosofia de Merleau-Ponty para fundamentar estas

reflexões.

Situando as sensibilidades do corpo enquanto importante meio de investigação do

fenômeno da atuação de palhaças e palhaços em palcos hospitalares, pude, ainda,

ingressar no campo das experiências de profissionais da palhaçaria. Nessas

experiências, estiveram sempre presentes o diálogo com o jogo, com as técnicas e

sensibilidade palhacescas, bem como com os encontros teatrais, nos quais há uma

imprescindível abertura dos artistas para com a alteridade. Essas unidades de

significados propuseram-se como importantes caminhos na investigação da atuação

palhacesca que acontece em contextos hospitalares.

Com base na experiência de profissionais palhaças e palhaços que atuam ou

atuaram em contextos hospitalares, busquei identificar os principais aspectos desse

espaço e tempo de atuação. Quais sejam: a elaboração de uma atitude de abertura para o

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outro e para as circunstâncias do cotidiano, a constituição de jogos que envolvem

técnicas e sensibilidades de cada artista ao longo dos encontros teatrais gerados no

hospital.

Partindo desta investigação, na qual me debrucei com intensidade, assumo a

impossibilidade de definir em sua totalidade as figuras palhacescas, bem como suas

significações materiais e imateriais. Profundamente vinculadas às manifestações

humanas do corpo, essas figuras geram conteúdos internos e externos que se fazem num

perpétuo movimento de mudança.

Espero que, com esta pesquisa, eu possa aderir a esse movimento de mudança,

somando meus pensamentos a um campo que é repleto de transformações. Antes de

sentenciar afirmações ou elaborar um manual de atuação palhacesca hospitalar,

pretendi, aqui, ampliar as possibilidades de discussão desse fenômeno a partir da

experiência de profissionais das Artes Cênicas, assim como de minhas vivências

sensibilidades em relação a este tipo de trabalho.

A “[...] intervenção cênica na vida real.” (Wellington Nogueira) traz vasta gama

de contribuições para a área das Artes Cênicas e é capaz de ligá-la a diversas áreas do

conhecimento, redimensionando suas possibilidades e gerando imbricações para além

dos campos do Teatro e do Circo. Dialogar sobre a atuação palhacesca hospitalar, assim,

pode significar uma possibilidade de pensar a arte em contato direto com a vida, com

diversos campos e saberes.

Nos palcos hospitalares observou-se ainda o desenvolvimento de importantes

espaços formativos, onde se desenvolvem pesquisas na arte da atuação palhacesca. As

peculiaridades reveladas por este tipo de espaço ampliam saberes e experiências, que

influenciam no trabalho artístico em diversos espaços da sociedade. Influenciam

também no desenvolvimento da sensibilidade humana, como colocado aqui, elemento

essencial a ser desenvolvido no campo da palhaçaria hospitalar. Seja na área das Artes

ou no cotidiano, o hospital revelou-se como um potente local de ensino e aprendizagem.

Para mim, a atuação palhacesca hospitalar trouxe novas maneiras de estar em

contato com arte e com a vida, novos pensamentos e ligações com áreas antes pouco

conhecidas, como por exemplo, a da saúde. Posso afirmar com segurança que atuar

como palhaça em hospitais infantis foi um dos maiores desafios que, até hoje, encontrei

na arte e na vida – como se possível fosse apartá-las. Foi também o desafio pelo qual

me apaixonei em desmedida e ao qual dediquei largas horas do dia e da noite entre

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sonhos e realidades.

Em ato de entrega para a atuação palhacesca hospitalar, ocorreu-me contextualizar

a composição milenar dessas figuras, bem como enveredar pelas experiências de artistas

que as compõem diariamente, compreendendo que o passado e o presente se tornam um

só neste campo de trabalho. Ao propor esta discussão por meio das linhas aqui escritas,

saliento que o tempo aqui empregado foi capaz de dilacerar e reinventar este ser que vos

escreve.

Vejo-me em cada letra deste trabalho, que para mim é espelho e avesso. Ao tecer

estas linhas, senti sabores, cheiros, sons, cores e texturas que vivi nos palcos

hospitalares. Os mesmos nós que insistem em fechar a minha garganta foram os que

conduziram esta escrita. Minhas experiências, desse modo, não estiveram presentes

apenas ocupando o tempo e o espaço deste trabalho, mas compuseram-no e

compuseram-me de maneira vital.

Consta abaixo, para finalizar esta dissertação, uma das primeiras imagens minhas

como palhaça atuando em palcos hospitalares. Nela podemos perceber uma tentativa de

interação entre as Artes Cênicas e a natureza da Vida:

Figura 14 - Doutora Brum (2013).

Fonte: Arquivo pessoal. Foto de Bruno Ferreira.

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Posso concluir que, nesse campo de atuação, se não se dissolvem por completo,

muito se atenuam as fronteiras entre a arte e a vida. Com este trabalho, concluo

importante ciclo como artista e pesquisadora, desejando oferecer contribuições para

outras trajetórias que são artísticas e também cotidianas. Anseio que essas intersecções

se ampliem no Brasil e no mundo, somando novos saberes tanto para as Artes Cênicas

quanto para o cotidiano hospitalar.

Por acreditar na potência do encontro do Teatro com o cotidiano das pessoas, foi

possível tecer estas linhas, alimentadas de múltiplas experiências. Desejosa de que se

ramifiquem os diálogos entre a Arte e a Vida, ofereço este trabalho, que de algum modo

se propôs a investigar e a contribuir para a construção dessas tão necessárias relações.

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APÊNDICES

APÊNDICE A

LISTA DE FILMES

I clowns (Os palhaços), direção de Federico Fellini, Itália, 1970.

Amarcord, direção de Federico Fellini, Itália, 1973.

Doutores da Alegria - O filme, direção de Mara Mourão, Brasil, 2005.

Patch Adams - O amor é contagioso, direção de Tom Shadyac, Estados Unidos, 1998.

O palhaço, direção e atuação principal de Selton Mello, Brasil, 2011.

Hotxuá, direção de Letícia Sabatela, Brasil, 2009.

Clown in' Kabul (Palhaços em Cabul), direção de Enzo Balestrieri, Cabul, 2002.

Il viaggio di Capitan Fracassa (Viagem do Capitão Tornado), direção de Ettore Scola,

Itália, 1990

Le bal (O baile), direção de Ettore Scola Itália, 1983.

Brutti, sporchi e cattivi (Feios, sujos e malvados), de Ettore Scola, Itália, 1976.

L'armata Brancaleone (O incrível exército de Brancaleone), direção de Mário Monielli,

Itália, 1966.

The General (O General), direção e atuação principal de Buster Keaton, Estados

Unidos, 1926.

Sherlock Jr., direção e atuação principal de Buster Keaton, Estados Unidos, 1924.

Modern Times (Tempos Modernos), direção e atuação principal de Charlie Chaplin,

Estados Unidos, 1936.

The kid (O garoto), direção e atuação principal de Charlie Chaplin, Estados Unidos,

1921.

The gold rush (A corrida do ouro), direção e atuação principal de Charlie Chaplin,

Estados Unidos, 1925.

The Great Dictator (O grande ditador), direção e atuação principal de Charlie Chaplin,

Estados Unidos, 1940.

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The circus (O circo), direção e atuação principal de Charlie Chaplin, Estados Unidos,

1928.

Duck Soup (Diabo a quatro), direção de Leo McCarey, estrelando os Irmãos Marx,

Estados Unidos, 1933.

Bean: The Ultimate Disaster Movie (Mr. Bean - O filme), direção de Mel Smith, Reino

Unido, 1997.

Little Miss Sunshine (Pequena Miss Sunshine), direção de Jonathan Dayton e Valerie

Faris, Estados Unidos, 2006.

Black Cat, White Cat (Gato preto, gato branco), direção de Emir Kusturica, Jugoslávia,

1998.

Zivot Je Cudo (A vida é um milagre), direção de Emir Kusturica, Sérvia, 2004.

The King of Comedy (O rei da comédia), direção de Martin Scorsese, Estados Unidos,

1982.

Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan

(Borat - O segundo melhor repórter do glorioso país Cazaquistão viaja à América),

direção de Larry Charles, Estados Unidos, 2006.

Forrest Gump, direção de Robert Zemeckis, Estados Unidos, 1994.

Big Fish (Peixe grande), direção de Robert Zemeckis, Estados unidos, 2003.

Antonia (A Excêntrica Família de Antônia), direção de Marleen Gorris, Países Baixos,

1995.

La cité des enfants perdus (O ladrão de sonhos), direção de Jean-Pierre Jeunet, Marc

Caro, França, 1995.

L'Extravagant Voyage du jeune et prodigieux T. S. Spivet (Viagem extraordinária),

direção de Jean-Pierre Jeunet, França, 2013.

Noviembre (Novembro), direção de Rodrigo Bento, Espanha, 2011.

Le Petit Nicolas (O pequeno Nicolau), direção de Laurent Tirard, França, 2009.

Los colores de la montaña (As cores da montanha), direção de Carlos César Arbeláez,

Colombia e Panamá, 2010.

Chocolat (Chocolate), direção de Roschdy Zem, França, 2016.

千と千尋の神隠し (A viagem de Chirriro), direção de Hayao Miyazaki, Japão, 2001.

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ANEXOS

ANEXO 01

CARTA SOLICITANDO PERMISSÃO À DIREÇÃO/COORDENAÇÃO DA ONG

DOUTORES DA ALEGRIA – SÃO PAULO PARA A REALIZAÇÃO DA

PESQUISA.

São Paulo, 31 de agosto de 2015.

Prezada Direção,

Como aluna do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGARC da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, tendo como orientadora a Prof.

Dra. Karenine de Oliveira Porpino, venho solicitar a autorização a Vossa Senhoria para

aplicar um estudo sobre a história da ONG, bem como realizar entrevistas com

membros do elenco e formadores da organização. A pesquisa trata-se da investigação

sobre a comicidade do palhaço que atua no contexto hospitalar. A participação neste

estudo não oferece danos ou prejuízos ao grupo e aos participantes do estudo em

questão, mas pretende dialogar com suas contribuições enquanto profissionais das Artes

Cênicas.

A pesquisa pretende contribuir para um maior entendimento sobre a comicidade

do palhaço no contexto hospitalar, assim como contribuir para futuras pesquisas e

colaborar no sentido de perceber a importância de se investigar as especificidades deste

trabalho cênico. A identidade dos entrevistados poderá ser mantida em sigilo, caso

solicitado pelo entrevistado. Gostaria de contar com a valiosa ajuda de Vossa Senhoria

para a realização deste trabalho. Caso deseje mais informações, pode dirigir-se a Prof.

Dra. Karenine de Oliveira Porpino, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas –

PPGARC da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Desde já agradeço

sua cooperação.

___________________________________________________________________

Prof. Dra. Karenine de Oliveira Porpino

_________________________________________________________________

Mestranda Daiani Cezimbra Severo Rossini Brum

___________________________________________________________________

Direção dos Doutores da Alegria

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ANEXO 02

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Fui informado (a) de que a pesquisa “A atuação de palhaças e palhaços: o

hospital como palco de encontros”, desenvolvida como trabalho de mestrado pelo

Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN tem como objetivo investigar

os processos artísticos que envolvem a composição da palhaçaria no contexto

hospitalar.

Fui informado (a) também de que a coleta de dados envolve entrevistas

semiestruturadas a serem realizadas presencialmente, e registradas através da gravação

do áudio. As gravações de áudio terão fim científico e acadêmico. Fui esclarecido (a)

também de que a participação neste estudo não oferece danos ou prejuízos à pessoa

participante do projeto em questão. Fui informado também de que a identidade dos

entrevistados será mantida em sigilo, caso solicitado pelo entrevistado.

Os pesquisadores responsáveis pela pesquisa são a Professora Dra. Karenine de

Oliveira Porpino, professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a mestranda Daiani Cezimbra Severo

Rossini Brum, aluna do referido Programa. É estabelecido o compromisso por parte dos

pesquisadores de aclarar quaisquer dúvidas e demais informações que sejam necessárias

no momento da realização do estudo ou posteriormente, por meio do telefone (84)

3342-2340 (ramal 9) do PPGARC da UFRN.

Após ter sido devidamente informado (a) dos aspectos relacionados à pesquisa e

ter elucidado todas as minhas dúvidas, eu

________________________________________, portador de Identidade

n.°________________, declaro para os devidos fins que concedo os direitos de minha

participação por meio de depoimentos apresentados para a pesquisa realizada na

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), desenvolvida pela mestranda

Daiani Cezimbra Severo Rossini Brum, com a orientação da Profa. Dra. Karenine de

Oliveira Porpino, para que sejam utilizados integralmente ou em parte, sem condições

restritivas de prazos e citações, a partir desta data. Da mesma forma, dou permissão e o

uso das referências a terceiros, ficando o controle das informações a cargo desses

pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN.

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Renunciando voluntariamente aos meus direitos autorais e os de meus

descendentes, dou consentimento para a presente declaração, São Paulo,....../....../ de

2015.

_________________________ _________________________

Ass. do participante da pesquisa Ass. da Pesquisadora

Carta de Cessão de direito

Eu, _________________________________________, portador de Identidade

n.º_____________, declaro, para os devidos fins, que cedo os diretos das entrevistas

realizadas no período de setembro de 2015, revisadas por mim, para Daiani Cezimbra

Severo Rossini Brum, Identidade 580834566 SSP/SP, podendo esta utilizá-las

integralmente ou em parte, sem restrições de prazos e citações, desde a presente data.

Dessa forma, autorizo o uso das citações e imagens. Abdicando igualmente dos direitos

dos meus descendentes sobre a autoria dos ditos dados, subscrevo o presente

documento.

São Paulo, _______________de 2015.

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ANEXO 03

EDITAL PFPJ

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