DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

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DANIEL BRASIL JUSTI A CONSTRUÇÃO DE PAULO DE TARSO COMO HOMEM DIVINO (THĔIŎS ANĒR) EM ATOS DOS APÓSTOLOS: as culturas mediterrânicas e paleocristãs em perspectiva comparada. Rio de Janeiro 2015

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DANIEL BRASIL JUSTI

A CONSTRUÇÃO DE PAULO DE TARSO COMO HOMEM DIVINO (THĔIŎS

ANĒR) EM ATOS DOS APÓSTOLOS: as culturas mediterrânicas e paleocristãs em

perspectiva comparada.

Rio de Janeiro

2015

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Daniel Brasil Justi

A CONSTRUÇÃO DE PAULO DE TARSO

COMO HOMEM DIVINO (THĔIŎS ANĒR) EM ATOS

DOS APÓSTOLOS: as culturas mediterrânicas e

paleocristãs em perspectiva comparada.

Tese de doutorado apresentada

ao Programa de Pós-Graduação

em História Comparada, Intituto

de História, Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como

requisito parcial à obtenção do

título de Doutor em História.

Orientador: André Leonardo Chevitarese

Linha de Pesquisa: Poder e Discurso

Rio de Janeiro

2015

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iii

Ficha Catalográfica

CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos

pelo autor.

Justi, Daniel Brasil.

J96c A construção de Paulo de Tarso como homem divino

(thĕiŏs anēr) em Atos dos Apóstolos: as culturas mediterrânicas

e paleocristãs em perspectiva comparada / Daniel Brasil Justi. -

- Rio de Janeiro, 2015.

xii, 259 f.: il.

Orientador: André Leonardo Chevitarese

Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Instituto de História, Programa de Pós Graduação em

História Comparada, 2015.

1. História Antiga. 2. Paleocristianismos. 3. Homens

Divinos. 4. Paulo de Tarso. 5. Cultura e Sociedade Helenística.

- Teses. I. Chevitarese, André Leonardo, orient. II. Título.

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iv

Banca Examinadora

Titulares

André Leonardo Chevitarese (Orientador)

Doutor - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em História Comparada

Leila Rodrigues da Silva

Doutora - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em História Comparada

Flávio dos Santos Gomes

Doutor - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em História Comparada

Renata Rozental Sancovsky

Doutora - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em História

Gabriele Cornelli

Doutor - Universidade de Brasília

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Suplentes

Marta Mega de Andrade

Doutora - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em História Social

José Costa D'Assunção Barros

Doutor - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em História Comparada

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v

Ao meu pai, Lucio Andrade Justi, amigo e sustento

em toda minha vida.

À minha doce e querida mãe, Maria Emília Brasil

Justi, amiga e amorosa em toda minha vida.

À minha irmã, Mônica Brasil Justi, pela fidelidade,

proteção e abrigo em toda minha vida.

À Caroline Alves Marques Mendes a quem me

ensinou verdadeiramente o que é o amor.

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vi

Agradecimentos

À minha família. Nunca deixaram de me aceitar, ajudar e apoiar em momento algum

de minha vida. Permitiram-me fazer escolhas, nunca me julgaram por isso e sempre

me apoiaram em todos os momentos. Desde que saí de casa em 2002 nunca me senti

sozinho. Maria das Graças e Tio Airton, me sinto filho de vocês! Silvinha e Sandro,

vocês também são meus irmãos!

À família que ganhei por conhecer Carol. Nunca me senti tão amparado, amado e

respeitado desde que saí de casa no momento em que me acolheram. Em especial à

Cláudia e Alice, que me permitiram saber que é possível ter uma segunda mãe e uma

segunda irmã no espaço em que antes meus parentes co-sanguíneos eram mais que

suficientes.

Ao meu orientador, André Leonardo Chevitarese, a quem já chamei de "segundo pai".

Encontrei em sua sabedoria e intelectualidade um exemplo perene de vida

profissional. Obrigado ao mestre que me acolheu, orientou e esteve presente nos

momentos alegres e difíceis dessa difícil trajetória acadêmica.

Aos meus amigos. Alguns distantes, outros próximos. Tantos outros novos. Mas,

sempre decisivos em me fazer acreditar que a vida vale à pena. Sami, Billy e Felinto,

desde a infância, amo vocês, camaradas! Queridos companheiros da "Fix", aquele

"corredor cultural" sem vocês nunca teve graça e estará para sempre na lembrança!

Amigos do STBSB, saudades! Companheiros do LHER, especialmente Lair e Vitor

Almeida, mais chegados que irmãos, como é bom saber que não somos loucos

acadêmicos solitários! Cris, Carol, Bruno e Otávio, melhor do que tê-los conhecido só

mesmo é ter a Carol comigo!

À quem me propiciou sustento material ao longo do doutorado: José Mauro Filho e

Luís Alexandre "Leleco", muito obrigado por tudo!

À CAPPES, que financiou este projeto no último ano de pesquisa.

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vii

Resumo

Este estudo tem por objetivo analisar a construção de Paulo de Tarso como um

homem divino (thĕiŏs anēr) no documento Atos dos Apóstolos. Os estudos

acadêmicos que relacionam magia e paleocristianismos enfrentam basicamente dois

desafios: os filtros de leitura impostos pela ciência moderna em polarizar

artificialmente religião (civilizada) e magia (selvagem) e religiosos comprometidos

com suas respectivas confissões de fé em inviabilizar tais estudos.

Marcado por esses obstáculos, mas igualmente comprometido em superá-los,

o modelo de homem divino (thĕiŏs anēr) responde por unificar algumas

características comuns a determinadas personagens antigas em diálogo com o

ambiente mágico. O esforço em unifica-los quer indicar que (i) não são singulares ou

únicos em cada cultura mediterrânica; (ii) essas culturas mediterrânicas estão em

constante interação, por isso mesmo dialogando e se aproximando em termos de

experiências místicas; e, (iii) a formulação de um modelo geral permite, por meio da

comparação, enquadrar essas personagens em seus ambientes místicos específicos,

bem como observar em que pontos se assemelham ou divergem com outras

experiências históricas.

Para tanto, o primeiro passo é analisar o conceito e construção do modelo

thĕiŏs anēr ao longo da história de sua interpretação, bem como propor um novo

modelo para interpretação centrado no poder (dynamis) que é marca distintiva dessas

personagens. A seguir, o milieu mediterrânico antigo em que foi possível tal

categoria é analisado, as figuras mediterrânicas que podem ser tomadas como homens

divinos são estudadas comparativamente e estudos de cultura e semântica

relacionadas à magia elucidam como este trabalho entende o ambiente em que os

homens divinos surgiram e se desenvolveram.

Por fim, Paulo de Tarso é observado em interação com esse ambiente, sua

descrição em Atos dos Apóstolos é posta à prova de acordo com o modelo formulado

por este trabalho e os resultados confirmam uma ―invenção de tradição‖ efetuada

pelo(s) autor(es) do documento bíblico a fim de inserir o apóstolo em uma tradição

corrente no mediterrâneo antigo. Dessa forma, aquele movimento místico que se

originou e se desenvolveu na periferia do Império Romano chega a sua capital.

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viii

Abstract

This study aims to analyze the construction of Paul of Tarsus as a divine man

(thĕiŏs anēr) in the document Acts of the Apostles. The relationship between magic

and paleochristianity in academic studies basically face two challenges: reading filters

imposed by modern science in artificially polarize religion (civilized) and magic

(savage) and those religious people who are committed to their respective religious

confessions of faith in derail such studies.

Marked by these obstacles, but also committed to overcoming them, the divine

man model (thĕiŏs anēr) accounts for some unifying characteristics common to some

ancient characters in dialogue with the magical atmosphere. The effort to turn them

united above the same pattern helps on indicate that (i) they are not singular or unique

to each Mediterranean culture; (ii) these Mediterranean cultures are in constant

interaction, because of that, dialoguing and approaching each other in terms of

mystical experiences; and (iii) the development of a general model allows, by

comparison, framing these characters in their specific mystical environments and

observe that points are similar or differ with other historical experiences.

Therefore, the first step is to analyze the concept and construction of thĕiŏs

anēr pattern throughout the history of its interpretation as well to propose a new

model for interpretation statement centered in power (dynamis) which is distinctive of

these characters. Then, the ancient Mediterranean milieu in which it was possible that

category is analyzed, those Mediterranean figures that can be taken as divine men are

studied comparatively and culture studies and semantics related to magic elucidates

how this work understand the environment in which the divine men emerged and

were possible to be developed.

Finally, Paul of Tarsus is observed in interaction with that environment, its

description in Acts is tested according to the pattern formulated for this work and the

results confirm an "invention of tradition" made by the author of the Bible document

to insert the apostle on a chain in the ancient Mediterranean tradition. Thus, that

mystical movement that originated and developed on the outskirts of the Roman

Empire reaches its capital.

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ix

Sumário

Lista de Figuras ........................................................................................................ xi

Lista de Tabelas ...................................................................................................... xii

Introdução ............................................................................................................... 13

1. Quinze anos depois, quatro anos mais tarde ..................................................... 13

2. Mas, afinal, como se faz ciência da magia? ...................................................... 17

3. A escolha por estudar a figura de Paulo ............................................................ 25

4. A construção da presente tese........................................................................... 27

5. Algumas breves definições ............................................................................... 29

I. O conceito de thĕiŏs anēr: história e análise crítica .............................................. 31

1. Panorama ......................................................................................................... 31

2. O homem divino da antiguidade ....................................................................... 33

3. Fins do século XIX e primeiras décadas do XX: da pré-história à consolidação

do modelo thĕiŏs anēr .......................................................................................... 37

4. A "pseudo-ortodoxia" dos anos 50 e a proposição de autenticidade .................. 47

5. À maturidade? Anos 60 e a reafirmação do modelo thĕiŏs anēr....................... 50

6. O grande fôlego dos anos 70: entre a crítica e a permanência do modelo thĕiŏs

anēr ..................................................................................................................... 57

7. Reação e contra-reação dos anos 80 ................................................................. 69

8. Anos 90 e 2000: crepúsculo ou alvorecer de uma nova onda? .......................... 77

10. As escolhas na formulação do modelo thĕiŏs anēr ........................................ 102

II. O ambiente (milieu) mágico mediterrânico: visões sobre poder e magia antigos 106

1. Panorama ....................................................................................................... 106

2. Algumas definições necessárias sobre semântica, cultura e teologia ............... 106

2.1. Milagre .................................................................................................... 107

2.2. Os "sinais": Sēmĕîon, Tĕras e Ĕrgŏn ........................................................ 111

2.3. O "Poder": Kratŏs, Ischýs, Ĕxŏysía e Dýnamis ........................................ 117

3. Magia, práticas mágicas ou o imaginário da magia: a falsa dicotomia povo

(pobres) x elites (ricos) ...................................................................................... 130

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x

4. O Mediterrâneo entre os períodos helenístico e romano: a temporalidade e a

espacialidade das práticas mágicas ..................................................................... 144

4.1. Curas ....................................................................................................... 149

4.2. Daimŏn e histórias de exorcismos ............................................................ 160

4.3. Controle dos elementos naturais e interação com os mesmos ................... 165

4.4. Visões sobre a magia ............................................................................... 169

5. Experiências religiosas judaicas: as interações mágicas ou o Judaísmo esquecido

.......................................................................................................................... 175

6. Magia e paleocristianismos: o "entorno" religioso? ........................................ 182

III. Paulo de Tarso: o legítimo homem divino em Atos dos Apóstolos .................... 191

1. Panorama ....................................................................................................... 191

2. O documento Atos dos Apóstolos .................................................................. 195

2.1. Dados preliminares .................................................................................. 195

2.2. Autoria .................................................................................................... 197

2.3. Data e local de composição...................................................................... 198

2.4. Linguagem, estilo e forma literária .......................................................... 201

2.5. Unidades, estrutura, personagens ............................................................. 203

3. O Paulo de Atos e a "invenção das tradições" ................................................. 217

(a) As práticas mágicas................................................................................... 219

(b) Curas e ressurreição dos mortos: ............................................................... 228

(c) Daimŏnĕs e Exorcismos: ........................................................................... 230

(d) Domínio da natureza e interação com a mesma ......................................... 234

Conclusão ............................................................................................................. 238

Documentação e Bibliografia ................................................................................ 242

Documentação ................................................................................................... 242

Dicionários e Manuais ....................................................................................... 244

Obras Modernas................................................................................................. 246

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xi

Lista de Figuras

Figura Página

1a: Amuleto cristão, anverso - cavaleiro 137

1b: amuleto cristão, reverso - olho

2a: Amuleto cristão, anverso - cavaleiro 138

2b: amuleto cristão, reverso - olho

3: Choús ático de figuras vermelhas 140

4: Choús ático de figuras vermelhas 141

5: Estátua de falo no Templo de Dionísio em Delos 143

6: Herma de uma oficina de Boetos 144

7: Relevo em pedra de um falo de uma casa em Pompéia

8: Filactéria de proteção contra daimŏnĕs, fantasmas e todo tipo de

doença e sofrimento 164

9: Amuleto contra febre 174

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Lista de Tabelas

Tabela Página

1: Datação de textos canônicos em torno da documentação sobre Paulo 25

2: Os quatro "Paulos" 26

3: Documentos não canônicos com tradições paulinas 26

4: Breve histórico da formação canônica do Novo Testamento 27

5: Ocorrências de thĕiŏs anēr na literatura antiga 35

6: O tenso debate entre Smith e Kee - aretologia como forma literária? 64-65

7: Sistematização de dados sobre a origem e consolidação do conceito thĕiŏs

anēr 100-101

8: Comparação entre as versões latina e grega para os termos

associados a milagres no Novo Testamento 110

9: Ischýs ("poder", "força") em perspectiva comparada nos evangelhos

sinóticos 119

10: Ocorrências de ĕxŏysía no Evangelho de Lucas 125

11: Ocorrências de ĕxŏysía em Atos dos Apóstolos 126

12: Ocorrências de ĕxŏysía no Evangelho de João 127

13: Ocorrências de dýnamis no Evangelho de João 127

14: As informações arqueológicas e textuais em perspectiva comparada 133

15: Textos judaicos do período helenístico e as práticas mágicas 177

16: Proposta de estrutura do texto de Atos dos Apóstolos levando-se em

consideração o modelo thĕiŏs anēr 206-215

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Introdução

1. Quinze anos depois, quatro anos mais tarde

Após a leitura do título deste trabalho, especialmente para o público

acadêmico brasileiro, necessariamente, é preciso fazer um recuo no tempo. Mais

precisamente, há quinze anos. No ano 2000, Gabriele Cornelli, corajosamente,

inaugurou um campo de estudos na academia brasileira, ou seja, a abordagem que dá

conta de relacionar magia e paleocristianismos. Naquele ano seria defendida sua tese

de doutorado que versava sobre os homens divinos. Uma comparação entre Jesus de

Nazaré e Apolônio de Tiana.

Até então, o saber no estudo das práticas mágicas era domínio de autores em

idiomas estrangeiros ou tangencialmente monopólio de religiosos que produziam ou

traduziam textos para o português. Para o último caso, leitores monoglotas do idioma

brasileiro, estavam reféns de visões negativas sobre a magia ou tinham suas leituras

mediadas por filtros ideológicos que afastavam esse ambiente dos textos

paleocristãos.

Felizmente, uma geração de intelectuais rompeu algumas barreiras e

inaugurou um campo de estudos sobre paleocristianismos no Brasil. A tese de

Cornelli teve sua gênese ainda em ambiente religioso, no programa de pós-graduação

em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Mas, em espaços

laicos e sem amarras ideológicas do ponto de vista religioso, André Chevitarese e

Pedro Paulo de Abreu Funari, respectivamente, na Universidade Federal do Rio de

Janeiro e na Universidade Estadual de Campinas, ampliavam os espaços de

tratamento heurístico das experiências religiosas paleocristãs.

Essa geração de intelectuais foi responsável pela guinada nos estudos

acadêmicos em contexto brasileiro, bem como no mercado editorial em terras

tupiniquins. Desde que se lançaram aos estudos históricos, arqueológicos,

antropológicos e filosóficos das experiências religiosas cristãs, especialmente, na

antiguidade, o mercado editorial brasileiro especializado no tema forçosamente

conheceu novas traduções de obras que dessem conta desses aspectos.

Esse processo nunca deixou de ser tenso. O monopólio do discurso sobre

paleocristianismos, outrora detido por instituições teológicas confessionais, se tornou

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um campo fértil para diversos outros candidatos que começaram a percorrer a estrada

pavimentada pela primeira geração. Embora haja uma ou outra exceção nesse

processo até aqui descrito, para o caso dos homens divinos antigos no mediterrâneo,

Cornelli foi absolutamente pioneiro. Seu trabalho de qualidade e erudição

inquestionáveis tornou possível o presente estudo.

A tese do autor ítalo-brasileiro não precisa de revisão. Não foi retomada para

refutação. Continua atual, bem documentada e do ponto de vista teórico-

metodológico de altíssimo padrão científico. Quinze anos depois, o trabalho serviu

como ponto de partida para este que agora se apresenta. A abordagem, no entanto, é

outra.

Há seis anos os primeiros estudos que se desdobraram no presente trabalho

tiveram origem na Graduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Dois anos mais tarde, portanto, há quatro anos, a dissertação sobre práticas mágicas

nos paleocristianismos - especificamente a respeito da crença no sistema do "mau-

olhado" por parte do apóstolo Paulo em Gálatas - foi defendida pelo autor do presente

trabalho sob valiosa supervisão do mesmo orientador que viabilizou esta tese de

agora no Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro.

Os desdobramentos desde aquela dissertação até esta tese de doutoramento se

fizeram necessários para ampliação de um estudo sobre os paleocristianismos em

perspectiva histórica. Não somente histórica, mas interdisciplinar, conforme os

capítulos seguintes apresentarão. Conquanto o fio condutor seja a perspectiva

comparada de história, a geração anterior e pioneira nesses estudos no Brasil se

empenhou e deixou como legado a necessidade de tal estudo que congregue as

diferentes epistemologias na observação de fenômenos religiosos antigos.

O estudo se fez necessário, pois os trabalhos que se ocupam dessa relação

entre práticas mágicas e paleocristianismos, mesmo para o contexto internacional,

demandam ainda uma ampliação e contínuo avanço. É um trabalho em curso.

Passados esses anos acima mencionados e avaliando o que está disponível

atualmente, por exemplo, se vê que a presença dos homens divinos na antiguidade

nunca conheceu uma análise sobre o apóstolo Paulo.

As razões para essa ausência são diversas, mas, indubitavelmente, a principal

delas é a incômoda ou tensa relação em se associar práticas mágicas e

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paleocristianismos. De imediato, se pode observá-la em um trabalho que pretendia

estudar a magia e "superstição" nos paleocristianismos em finais do século passado.

A definição do termo magia já indicava a postura que o autor1 adotava:

[magia é] ―como uma ameaça constante de decadência e presente

em toda parte como uma perversão da religião e da fé cristã‖.2

(BROX, 1974, p. 157 apud AUNE, David Edward, 1980:1507).

Por essa definição de magia em relação ao cristianismo antigo já se observa

que nem sempre esse tema gozou de boa índole em meio acadêmico. Ainda, autores

de muitos artigos do ―Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament3‖, os quais

se consideravam como teólogos bíblicos, escreveram artigos como se estivessem

envolvidos em uma conspiração para ignorar ou minimizar o papel da magia no Novo

Testamento e na literatura cristã originária. (AUNE, David Edward, 1980:1508).

Postura ligeiramente diferente, porém cautelosa (quase temerosa), é possível

ler na nota explicativa que aparece no capítulo referente a amuletos mágicos cristãos

em um dos mais completos e respeitados catálogos de cultura material ligada,

principalmente, mas não só, à magia das culturas greco-egípcia:

―Acredito que nenhuma ofensa será tomada no uso das palavras ‗amuletos Cristãos‘ nesse capítulo ou em outro lugar. Cristãos e

pagãos muitas vezes usavam sobre seus corpos objetos feitos em

formas similares e do mesmo material, o pensamento adornado com diferentes imagens e símbolos. Entre o pensamento espiritual de

ambos os campos não havia pensamento de magia. Mas a idéia de

proteção derivada de uma fonte de força sobre-humana está associada com muitas pedras-anéis e pingentes, não importa se é

pagão ou cristão. Não era de se esperar que todos os portadores de

tais objetos iriam manter suas mentes claras do sentimento que tal

1 É importante notar que nesse trabalho Brox ocupa-se em refutar a magia baseando-se nos textos de

Orígenes, Crisóstomo e Agostinho afirmando a teimosia persistente de práticas mágicas entre os

cristãos (atribuído à natureza do Volksglaube) apesar da oposição do cristianismo oficial. Além de ser

muito bem referendado, o artigo deve ser lido à luz de ENGEMANN, J. Zur Verbreitung magischer

Übelabwehr in der nichtchristlichen und christlichen Spätantike. Jahrbuch für Antike und

Christentum, 18 (1975), p. 22-48; onde as evidências de práticas mágicas em meio aos círculos

clericais são discutidas. (AUNE, 1980, p. 1509). 2 Tradução pessoal de: ―als ständig drohende Dekadenz und als überall anwesende Perversion von

Religion und auch von christlichem Glauben‖. 3 Editada por Gerhard Kittel (et alli.) em alemão (Theologisches Worterbuch zum Neuen

Testament. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1966-1973.) originalmente, mas, entre outras traduções, para o

inglês (Theological Dictionary of the New Testament. Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co.,

1972), italiano (Grande lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia, 1975.) e a versão resumida

em português (COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário internacional de teologia do novo

testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000).

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poder passou da coisa em si, independentemente da atitude religiosa

do portador. O termo ‗amuletos cristãos‘ é livremente usado por

Dom Leclercq, o qual deu a melhor avaliação deles em seu artigo

‗Amuletos‘ no Dicionário de arqueologia cristã. ‖4 (BONNER,

1950:208, nota 1).

Chama muita atenção o cuidado do autor em se eximir da culpa por tratar do

tema, e mais, o cuidado em pronunciar as palavras relativas à relação entre magia e

cristianismo que o que deseja estudar não fira doutrinas cristãs, mas ao mesmo tempo

enuncia o uso que se faz dos amuletos mágicos bem como a crença no poder que

continham. O fato de encerrar sua justificação remetendo o leitor à outra obra quer

também absolvê-lo de possíveis julgamentos.

Ora, no mesmo capítulo em que Bonner justifica-se no início, em nota, o

estudo prossegue tratando livre e amplamente do tema da magia em contexto dos

paleocristianismos. A leitura de tal justificativa é intrigante do ponto de vista

acadêmico, pois uma obra de referência aborda a temática de amuletos, braceletes,

pingentes, anéis, entre outros, sob a ambiência da magia e, quando se depara com o

meio paleocristão, o recuo.

Os esforços de intelectuais contra a corrente de seu tempo contribuíram

significativamente para perceber que o Novo Testamento, à luz das evidências das

tradições mágicas greco-romanas, é mais bem entendido em sua totalidade. Também

outros estudos de menor abrangência5 trouxeram contribuições para o estudo, muito

embora alguns deles adotavam a defensiva em tratar do assunto rejeitando as

influências mágicas no Novo Testamento.

Em meio a todos os debates, o que se pode notar com toda convicção é a

emergência e cada vez mais intensa preocupação dos estudos dessa época em debater

os temas que relacionavam os paleocristianismos com a magia. A diversidade de

4 Tradução pessoal de: ―I trust that no offense will be taken at the use of the words ‗Christian amulets‘

in this chapter or elsewhere. Christian and pagans alike often wore upon their bodies objects made in

similar forms and of the same materials, thought adorned with different images and symbols. Among

the spiritual minded of both camps there was no thought of magic. But the idea of a protection derived

from a super human force source is associated with many rings stones and pendants, whether pagan or

Christian. It was not to be expected that all wearers of such objects would keep their minds clear of the

feeling that power proceeded from the thing itself, regardless of the wearer´s religious attitude. The

term ‗Christian amulets‘ is freely used by Dom H. Leclercq, who has given the best survey of them in

his article ‗Amulettes‘ in the Dictionnaire d´archéologie chrétienne.‖ 5 MOMIGLIANO, A. The Conflict between Paganism and Christianity in the Fourth Century.

Oxford: Clarendon Pres, 1963. DOUGLAS, M. Witchcraft: Confessions & Accusations. London:

Tavistock, 1970.

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abordagens também se fazia patente em meados do século XX para a análise do

assunto.

O crescimento e desenvolvimento de uma estrutura teórico-metodológica do

campo da ciência moderna ampliaram a pluralidade de olhares sobre os objetos

históricos, antropológicos, sociológicos, enfim, sobre os elementos de estudo que a

ciência moderna fragmentou cartesianamente para análise, contribuindo

significativamente para conclusões mais acuradas:

―A ascensão do método estrutural-funcional em sociologia e

antropologia e o método fenomenológico em religiões comparadas

têm fornecido aos estudiosos modelos teóricos em que os juízos de

valor dos observadores são considerados como uma intromissão indevida na problematização do assunto. Por isso, é cada vez menos

intelectualmente respeitável considerar, em magia do Mediterrâneo

antigo (não inferior a magia das modernas sociedades primitivas),

aspectos pejorativos‖.6 (AUNE, 1980, p. 1509).

Uma diferença de perspectiva fundamental também ocorreu na forma com que

os estudos históricos e culturais dos acadêmicos do Novo Testamento passaram a

interpretar o ambiente e literatura nos paleocristianismos. Os desdobramentos dessa

perspectiva menos negativa sobre a relação entre práticas mágicas e

paleocristianismos se seguiram, mas os detalhes serão mais bem aprofundados no

primeiro capítulo a seguir.

2. Mas, afinal, como se faz ciência da magia?

No período pré-iluminista, a magia não era estudada como um assunto

histórico, pelo menos não no sentido moderno que é dado à idéia de História. Isto

implica dizer que o tema da magia tinha apenas dois tratamentos: proibição, por parte

de elites religiosas do contato e prática da magia, portanto, de cunho oficial ou

6 Tradução pessoal de: ―The rise of the structural-functional method in sociology and anthropology and

the phenomenological method in comparative religions have provided scholars with theoretical

frameworks in which the value judgments of the observers are regarded as an improper intrusion into

the subject matter. Hence it is becoming increasingly less intellectually respectable to regard ancient

Mediterranean magic (no less than the magic of modern primitive societies) pejoratively‖.

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práticas escondidas e proibidas em âmbito privado7. Assim, em nível acadêmico, nos

termos entendidos no pré-iluminismo, se observava, majoritariamente, a magia,

porém, sob um ponto de vista de fé cristã.

Após o Iluminismo, a Europa, do ponto de vista econômico, conseguiu

desvincular suas bases da agricultura. Essa base, sem dúvida alguma, foi a que

sustentou durante um largo período de tempo não apenas a civilização européia, como

também a islâmica e a médio oriental. Isso quer dizer que todas dependiam de

variáveis, tais como safras, colheitas, clima e erosão do solo. Não havia como fugir,

pelo nível tecnológico, das limitações dos recursos regionais (ARMSTRONG, 2002,

p.295-296).

No entanto, as conquistas do recém-industrializado e eficiente Ocidente

mudaram o curso da história mundial. Inevitavelmente, elas iriam afetar a percepção

ocidental do papel e da natureza de Deus (ARMSTRONG, 2002, p.295). A

especialização tornou-se crucial a essa sociedade técnica: todas as inovações nos

campos econômico, intelectual e social exigiam uma especialização particular em

muitos campos diferentes (ARMSTRONG, 2002, p.296).

Os cientistas, por exemplo, dependiam de uma maior eficiência dos

fabricantes de instrumentos; a indústria exigia novas máquinas e fontes de energias,

bem como de insumos da ciência. Seguia-se que todo grande intelectual se via menos

como um conservador da tradição do que como um pioneiro. Ele era um explorador,

como os navegadores que penetravam nas novas partes do globo (ARMSTRONG,

2002, p.298). A experiência de especialização significou que as pessoas envolvidas

no processo eram cada vez mais incapazes de ver o quadro todo.

Um número cada vez maior de pessoas de todas as categorias era atraído para

o processo de modernização, em cada vez mais esferas. Civilização e realização

cultural não eram mais apanágios de uma elite minúscula, mas dependiam de

operários, mineiros de carvão, impressores e escriturários, não apenas como

trabalhadores, mas também como compradores no mercado em constante expansão.

No fim desse processo, iria tornar-se necessário que essas camadas inferiores se

alfabetizassem e partilhassem – em certa medida – a riqueza da sociedade, já que se

queria manter a avassaladora necessidade de eficiência (ARMSTRONG, 2002,

p.297).

7 Muito embora, seja possível recuperar inúmeros dados da intensa disseminação nessa crença ou

pensamento mágico em âmbito popular, a partir das obras de GINZBURG, 1988, 1991, 2007.

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As pessoas passaram a acreditar que uma melhor educação e melhores leis

podiam trazer luz ao espírito humano. Não mais sentiam que precisavam depender da

tradição herdada, uma instituição ou uma elite – ou, mesmo, uma revelação de Deus –

para descobrir a verdade (ARMSTRONG, 2002, p.298).

O grande aumento na produtividade, a acumulação de capital e a expansão dos

mercados de massa, assim como os novos avanços na ciência, levaram à revolução

social. O poder da nobreza latifundiária caiu e foi substituído pela força financeira da

burguesia. A idéia de lei, entendida como imutável e divina, foi substituída pelo

pressuposto de que ela precisava ser dinâmica para acompanhar o constante

desenvolvimento e progresso (ARMSTRONG, 2002, p.296-297).

Diante desse quadro social que se configurava de maneira inédita no Ocidente

é que o Iluminismo teve seu lugar. Sobre ele, cinco características básicas podem ser

apontadas:

(a) tratava-se de um movimento europeu que exaltava o uso da razão

como a melhor forma para se chegar à verdade;

(b) enfatizava o ordenamento e domínio sobre a natureza, ao mesmo

tempo em que encorajava uma erudição bem ordenada que aderisse a

métodos bem definidos para teste e verificação de hipóteses;

(c) favorecia a aquisição de conhecimento e o desenvolvimento do

pensamento crítico;

(d) embora ele fosse inicialmente um movimento de características

filosóficas, essa nova orientação levou um tremendo avanço da ciência. O

seu impacto também foi sentido nos campos da política e da religião; e,

(e) muito provavelmente, um dos legados mais preciosos para o

pensamento ―Ocidental‖ foi jogar por terra o pressuposto que alguns

pontos e / ou aspectos da vida não poderiam ser objetos de verificação.

Já a partir do século XVIII, esse paradigma transformado de se conhecer a

vida e a experiência no mundo, sempre sob os desígnios da razão, fez com que

Reimarus (1694-1768) produzisse um primeiro discurso sobre a vida de Jesus (situa-

se aqui um dos primeiros movimentos ―filhos‖ da racionalidade moderna em

aproximar o rigor científico do estudo das narrativas neotestamentárias). Esse

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20

arrazoado se deu, porém, a partir de uma discussão em torno da humanidade de Jesus,

não mais enfocando sob uma perspectiva mística ou doutrinária, mas sujeitando-a ao

escrutínio da razão. Conforme Armstrong (2002:308) observou, a obra de Reimarus

marca a época moderna do ceticismo.

Em trechos de sua obra, Reimarus observou que nos evangelhos Jesus jamais

afirmara ter vindo expiar os pecados da humanidade. Tal afirmação deveria ser

atribuída a Paulo, o verdadeiro fundador do cristianismo (!). Nesse sentido, começa-

se a observar e explorar a imagem de Paulo como um douto representante do

pensamento racional cristão, porém, não a partir de Paulo, mas a partir de leituras e

reinterpretações do contexto antigo tendo em vista as questões ideológicas

contemporâneas à modernidade.

Do ponto de vista da relação de Jesus com a magia, Heinrich Eberhard

Gottlob Paulus, no século XIX, em sua obra ―A Vida de Jesus como a Base de uma

Narrativa puramente Histórica do Cristianismo Antigo‖, em dois volumes, publicada

em 1828, buscava atingir dois objetivos centrais: distinguir o cristianismo verdadeiro

do cristianismo ortodoxo, por um lado, e o cristianismo verdadeiro da história do

cristianismo radicalmente reconstruída de Reimarus, por outro. Para Paulus, esse

último autor teria se equivocado ao separar Jesus do cristianismo, na medida em que

teria existido uma perfeita continuidade entre um e outro, no sentido de entender o

cristianismo como uma religião racionalmente constituída. (Apud CHEVITARESE,

2010).

Paulus também buscou explicar, pelo crivo da razão, o que hoje soaria como

um argumento por demais ingênuo, as histórias de milagres presentes nos evangelhos.

Ele era da opinião de que Jesus curava pessoas pelo uso de práticas terapêuticas,

médicas (Mc 8:23; Jo 9:6), ou simplesmente pelo seu poder de sugestão (STRIMPLE,

1995, 22. Apud CHEVITARESE, 2010). Assim, por exemplo, quando Jesus estava

andando sobre as águas, ele na verdade estava andando ao longo da costa, de uma

forma que os seus pés estariam cobertos da vista dos seus observadores; ou ainda a

ressurreição de Lázaro teria se dado pelo fato de que ele na verdade estaria em uma

espécie de coma, e não propriamente morto.

Na seqüência (não necessariamente cronológica) dos intelectuais modernos

que se ocuparam do tema do cristianismo, primordialmente, a partir de Jesus, Ernest

Renan, na segunda metade do século XIX, com seu aclamado estudo ―Vidas de

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21

Jesus‖ (Vie de Jesus), de 1863, ao escrever sua obra, dizia que somente o norte de

Jerusalém produzira o cristianismo, pois Jerusalém era o lar de um judaísmo

obstinado que, por estar fixado no Talmude e fundado por fariseus, atravessou a Idade

Média e chegara até os dias atuais (RENAN, E. The Life of Jesus. Prometheus

Books, 1991. Apud FREYNE, 2008:9).

No mesmo viés de desqualificação do judaísmo, bem como a partir de

critérios científicos, David Friedrich Strauss dizia que os judeus estavam totalmente

corrompidos pela casta sacerdotal e pelo farisaísmo (STRAUSS, D. F. The Life of

Jesus Critically Examined. Londres: SCM, 1972, p.264. Apud FREYNE, 2008:19).

Essa postura, bem como a de Renan revelava outras facetas acopladas ao pensamento

moderno: o imperialismo e o anti-judaísmo.

Além de calçados pelo pensamento racionalista forjado na Europa, essa faceta

imperialista da ideologia pós-iluminista moderna estava profundamente

comprometida com o colonialismo e a submissão de outras partes do mundo

historicamente subjugadas pelo projeto europeu de hegemonia. Assim, Renan e

Strauss, bem como outros intelectuais, compartilhavam de falsas suposições de seus

próprios tempos em relação à identidade étnica e localidade geográfica.

Renan escreve sua obra no momento em que estava em missão por um projeto

patrocinado pelo governo francês de mapear a Fenícia (atual Líbano) e emite seus

juízos sobre os judeus baseado em uma premissa muito comum da etnografia do

século XIX que estabelecia uma relação causal entre geografia e o caráter dos

habitantes de uma região (FREYNE, 2008:9).

Strauss também se valia de máximas ―científicas‖ para, cada vez mais,

enunciar seus pressupostos analíticos e contribuir para um pensamento anti-semita e

de raciação (bem entendido: movimentos de evolucionismo e superioridade européia

em relação a outros povos; também a eugenia, posteriormente). As atitudes

colonialistas se dirigiam também às regiões do Egito, Mesopotâmia e Palestina que

eram sistematicamente depreciadas juntamente com seus habitantes (FREYNE,

2008:9).

Tudo isso fazendo parte

―da mentalidade profundamente anti-semita da ciência européia da

época, especialmente dirigida contra os judeus e o judaísmo,

conforme exemplificado na caricatura traçada por Renan, que servia igualmente como uma descrição-padrão dos judeus de seu próprio

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tempo, que se recusavam a assimilar os valores do iluminismo

europeu‖ (FREYNE, 2008:9).

Já no século XX, a partir dessa mesma postura colonial e imperialista, muitos

estudiosos também se inseriram nos debates acerca dos paleocristianismos, bem como

de estudos clássicos (greco-romanos) a fim de delimitar fronteiras bem claras entre o

que se definia por religião e o que se definia por magia. Essa preocupação moveu

antropólogos a estudarem as origens religiosas nas sociedades mais primitivas.

O primeiro estudo destacado sobre esse assunto que cuidou estabelecer uma

relação não conflituosa entre os fenômenos da magia e religião, foi o de E. E. Evans-

Pritchard (Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande. Oxford, 1937. ver,

AUNE, 1980:1510 e COLLINS, 2009:32-33) no qual o autor defendia a distinção do

uso dos termos magia e religião como fenômenos perfeitamente intercambiáveis e

claramente definíveis.

Essa postura considerou a distinção ou dicotomia entre magia e religião, não

como enganosa, mas como totalmente impraticável. Porém, essa não foi a regra que

prevaleceu entre os antropólogos modernos com seus interesses etnológicos8.

Distinguir conceitos entre magia e religião, significava purificar, limpar todo o

conteúdo da fé cristã originária e traçar fronteiras bem delimitadas do que seria uma

configuração de fé plenamente mediada pela racionalidade e pureza étnica que

simplesmente não cabia para o contexto originário dos cristianismos, antes era uma

projeção do presente moderno para um passado que não reconstruíram, mas, sim,

fabricavam à luz de suas experiências próprias daquele tempo.

Para alguns deles a magia era ―um vestígio de um estágio primitivo no

desenvolvimento da religião humana9‖, para outros era ―uma perversão e corrupção

da religião10

‖, ou ainda, ―a magia é o inverso da religião11

‖.

Aune, ao citar tais posições frente ao tema da magia faz questão de sublinhar a

competência inquestionável desses intelectuais, porém, também enfatiza que há uma

inclinação forte a colocar a magia em descrédito frente à religião. Ato contínuo

desenvolve quatro parâmetros sobre os quais quer entender o estudo da magia

8 Um sumário bastante completo e elucidativo pode ser encontrado em COLLINS, 2009:17-50. 9 WILAMOWITZ-MOELLENDORF. Der Glaube der Hellenen, I Berlin, 1931. Apud AUNE, 1980, p.

1511. 10 EITREM, S. I‘apyri Osloenses, Fasc. I. Oslo, 1925. Apud AUNE, 1980, p. 1511. 11 FESTUGIÈRE, A. J. L‘idéal religieux dês Grecs ET L‘Évangelie, Paris, 1932. Apud AUNE, 1980,

p. 1511.

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aplicado ao cristianismo primitivo, bem como a relação que há entre a própria magia

e a religião (passos esses que moldaram as reflexões deste trabalho):

―(1) magia e religião estão intimamente imbricadas que se torna

praticamente impossível considerá-las como discretas categorias

sócio-culturais; (2) a análise estrutural-funcional dos fenômenos mágico-religiosos proíbe uma atitude negativa em relação à magia;

(3) a magia é um fenômeno que existe apenas dentro da matriz de

determinada tradição religiosa, a magia não é religião apenas no sentido de que a espécie não é o gênero. Um sistema mágico

particular adere dentro de uma estrutura religiosa, no sentido em

que ela partilha da construção religiosa de realidade do contexto religioso. (4) a magia parece ser como uma característica universal

da religião, assim como o comportamento desviante é das

sociedades humanas12‖. (AUNE, 1980:1516).

Cumpre, por conseguinte, explicitar a partir de qual definição de magia se

entende neste trabalho. Definir, quase sempre, é fazer escolhas. Fazer escolhas, por

sua vez, é incluir algo, mas também excluir outras coisas. Magia é um termo geral

designado a compreender um conjunto de práticas sobrenaturais de diferentes

naturezas. Esse é, portanto, o elemento fundamental que se deve ter em conta: o

sobrenatural. É a partir desse aspecto básico que o entendimento sobre o que seja

magia - a alteração e subversão de leis naturais, físicas, imanentes - este trabalho se

constituiu.

Por se tratar de parte constitutiva e inseparável da religião e do mito, a magia

tem um conceito difícil de ser delimitado com precisão ou particularidade. O segundo

capítulo empreenderá discussões em níveis semânticos, culturais e teológicos para

que se percebam os desdobramentos que uma definição de magia pode ter.

Chevitarese e Penna (2004) propõem essa definição básica de magia, mas vão além a

demonstrar, por meio de análise de caso, que religião, mito e magia não se distinguem

separadamente.

O elemento básico, ou seja, sobrenatural que primeiramente define o que é

magia, contudo, se torna mais facilmente perceptível nos níveis de sua tipologia.

12 Tradução pessoal de: ―(1) magic and religion are so closely interwined that is virtually impossible to regard them as discrete socio-cultural categories; (2) the structural-functional analysis of magico-

religious phenomena forbids a negative attitude toward magic. (3) magic is a phenomenon wich exists

only within the matrix of particular religious traditions; magic is not religion only in the sense that the

species is not the genus. A particular magical system coheres within a religious structure in the sense

that it shares the fundamental religious reality construction of the contextual religion. (4) magic

appears to be as universal a feature of religion as deviant behavior is of human societies.‖

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Luck (2006: Introdução Geral) estabelece discussões pormenorizadas no que diz

respeito aos diferentes níveis e correlações com demais campos do saber sobre o

conceito de magia. No que compete ao presente trabalho, entretanto, dois passos são

decisivos para o entendimento e emprego geral do que se entende por magia.

O primeiro deles é o sobrenatural. O segundo, partindo das propostas e

conclusões de Chevitarese e Penna, é a intercambialidade entre religião, mito e magia

como absolutamente inseparáveis. Por essa razão, adota-se, daqui por diante, o termo

"mística". Justifica-se o emprego desse termo a partir de sua etimologia latina: do

verbo múō - fechar a boca e/ou os olhos, por derivação, enxergar com outros sentidos

que não perceptíveis segundo as leis naturais ou físicas; o que é sobrenatural

(HOUAISS, 2001. Mística, místico).

Em todos os momentos em que for empregado deve ser compreendido nesse

contexto exposto até aqui. Por fim, relativo às questões de definições, é necessário

esclarecer o uso do termo grego dýnamis como central na definição de homens

divinos no particular e como elemento pertencente (e decisivo) nas práticas mágicas,

no geral. A antropologia moderna, citada acima, identificou o dýnamis com a criação

da categoria de mana (LUCK, 2006:6).

Não se constitui aqui o espaço para a discussão sobre essa construção da

ciência moderna ou identificação semântica dos termos. No entanto, essa

identificação semântica causou polêmica bastante significativa e acabou por impactar

os estudos sobre homens divinos a partir da segunda metade do século XX. Como

será exposto no capítulo primeiro, a primeira intelectual a definir o homem divino

pela categoria de poder (dýnamis) foi Corrington (1986).

Decorrente dessa definição, duras críticas foram feitas ao aparato conceitual

da autora, pois sua definição central, presumidamente, dialogava com a ciência

moderna imperialista e etnocêntrica. Koskenniemi foi o mais ferrenho deles nessa

crítica, seguido por Cornelli e Pilgaard. Entretanto, trata-se de um equívoco, pois a

autora norte-americana nunca menciona o termo mana, antes, opera exclusivamente

pela categoria de poder (dýnamis) e sua carga semântica em ambiente cultural e

semântico grego na Bacia Mediterrânica.

Associar o uso que a antropologia moderna construiu para mana com o

trabalho de Corrington é incorrer em grave falha de leitura e interpretação da proposta

da autora norte-americana. Para o momento, convém apenas pontuar esse aspecto

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tendo em vista a breve exposição da história de estudos sobre magia e sua definição

conceitual, pois pareceu oportuno mencionar também nesse contexto. Mas, no

capítulo 1, certamente, o tema será profundamente abordado e discutido com todas as

nuances e referências apropriadas.

3. A escolha por estudar a figura de Paulo

Paulo é, talvez, a segunda figura histórica associada aos paleocristianismos e

cristianismos de que mais se ocuparam intelectuais das mais diferentes áreas do saber.

Disso decorre que a ele muitos títulos foram atribuídos: "fundador do cristianismo",

"apóstolo dos gentios", "fundador de igrejas", "pai da 'racionalidade' cristã", etc.. A

ele, também, foram associados muitos preceitos éticos e morais formativos das

sociedades ocidentais e que repercutem até a atualidade: "legalista", "homofóbico",

"escravocrata", "machista", etc.

Mas, imperiosamente, uma pergunta deve estar adiante de todos esses rótulos:

Que Paulo? Existe um Paulo a quem seja possível atribuir tantos rótulos ou

impropérios? De fato, todas essas características podem ser verificadas no apóstolo

ou cada uma delas é decorrente de construções científicas, religiosas ou do senso

comum pertinentes aos contextos contemporâneos de cada enunciado?

A última parte da indagação final parece mais adequada para se começar a

tratar da problemática. Pelo menos quatro grandes etapas precisam ser esclarecidas

quanto a esse aspecto. De imediato, do ponto de vista dos documentos canônicos,

Crossan e Borg (2009:13-16) estabelecem quatro diferentes datações para os textos

que têm tradições paulinas, conforme sistematizado na tabela a seguir:

Categoria/Data Documento

―História‖ (anos 100-120 e.c.) Atos dos Apóstolos

Autênticas (anos 50 e.c.) Romanos, 1ª e 2ª Coríntios, 1ª Tessalonicenses,

Gálatas, Filipenses e Filemon

Disputadas (entre 50-100 e.c.) Efésios, Colossenses e 2ª Tessalonicenses

Não paulinas (pós 100 e.c.) 1ª e 2ª Timóteo, Tito Tabela 1: Datação de textos canônicos em torno da documentação sobre Paulo

Logo, a partir dessa distinção cronológica, mas também de ordem semântica,

estrutural, teológica e vários outros critérios apresentados pelos autores e aceitos

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majoritariamente pela bibliografia especializada existem, pelo menos, 4 "Paulos"

distintos (no que se refere a Atos a classificação é original deste trabalho):

Categoria/Data Imagem sobre Paulo

―História‖ (anos 100-120 e.c.) Paulo "inventado"

Autênticas (anos 50 e.c.) Paulo "radical"

Disputadas (entre 50-100 e.c.) Paulo "conservador"

Não paulinas (pós 100 e.c.) Paulo "reacionário" Tabela 2: Os quatro "Paulos"

As tabelas demonstram um número significativo de textos que reivindicam

tradição ou autoridade paulina, tal era sua relevância no contexto dos

paleocristianismos observados na antiguidade. Não se constitui escopo deste trabalho

discutir as classificações ou distinções sobre essas categorias, exceto aquela relativa a

Atos que será demonstrada no terceiro capítulo. Mas, tantos outros círculos

paleocristãos reivindicaram a memória paulina em suas bases:

Forma literária Documento (datados pós anos 100 e.c.)

Epístolas 3ª/4ª Coríntios, Laodicenos, Coríntios a Paulo, Alexandrinos.

Atos Paulo e Thecla, Pedro e Paulo.

Apocalipses Paulo, Copta de Paulo

Outro À Sêneca, o jovem.

Tabela 3: Documentos não canônicos com tradições paulinas

De igual forma, por meio de escolhas específicas e motivações particulares, a

Patrística também produziu, em seus comentários e/ou apologias, muitos textos que

sistematizavam idéias fundamentadas em suas respectivas interpretações sobre Paulo.

Por essas razões, propuseram cânones sustentados por textos paulinos13

:

13 A tabela sistematiza dados apresentados e discutidos a partir dos seguintes estudos: Koester, 2005:6-

15. Barrera, 1995:175-235.

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Autor (data e.c.) Cânone

Marcião (100-120) Rejeitou o AT + Lucas + 10 cartas paulinas

Cânon Muratori (170) 4 evangelhos + 13 de Paulo + 3 cartas de João + Judas +

Apocalipse

Irineu (190) Exceto Filemon, Tiago, 2Pedro, 2João e Judas. Inclui Pastor de

Hermas. (13 de Paulo)

Clemente (215) Canônicos atuais + 1Clemente, Didaquê, Carta de Barnabé,

Pastor de Hermas, Apocalipse de Pedro e pregação de Pedro

Tertuliano (220) Todos os livros do NT, exceto 2Pedro, 2 e 3João e Tiago

Orígenes (250)

Aceitou os 27 livros do NT, mais as cartas de Barnabé,

Didaquê e Pastor de Hermas. Teve dúvidas quanto a Hebreus,

2 e 3João e Judas

Eusébio (270) 4 evangelhos, Atos, 14 epístolas de Paulo (incluindo Hebreus), 1Pedro, 1João, Apocalipse; Tiago, 2Pedro, 2 e 3João e Judas;

Barnabé, Didaquê e Pastor de Hermas

Concílio de Niceia (325) Estabeleceu o cânon atual Tabela 4: Breve histórico da formação canônica do Novo Testamento

É notável a centralidade de Paulo na documentação antiga, bem como no

material canônico que consolidou uma auto-proclamada ortodoxia cristã em 325 e.c.

no Concílio de Nicéia. Decorrente dessa centralidade e variedade de construções

sobre Paulo se torna imperativa a constante delimitação e definição sobre a que Paulo

se está a considerar quando a personagem é mencionada. Para cada documento,

construção textual ou canônica um tipo diferente de Paulo é operacionalizado.

Portanto, deve-se observar que esta tese se ocupará do Paulo "inventado" em

Atos. É a essa tradição que se busca definir e analisar aqui. Não se está falando, então,

do Paulo histórico, conservador ou quaisquer outros. Essa é uma definição central

para o que se segue nos capítulos adiante. Logo, as etapas na pesquisa sobre Paulo, as

discussões bibliográficas e olhares lançados sobre a personagem terão sempre em

consideração essa definição primária.

4. A construção da presente tese

O trabalho está organizado em três grandes etapas analíticas. No capítulo

primeiro o conceito, história do surgimento, críticas e consolidação do modelo thĕiŏs

anēr (homem divino) será considerado. As seções propostas cobrem períodos

cronológicos que vão desde a antiguidade aos últimos estudos sobre a temática. O

recorte ou abordagem é cronológico e com atenção especial ao período moderno, pois

é onde se deve situar a origem do modelo e sua conceituação.

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O procedimento não será tipicamente de uma revisão bibliográfica ou status

quaestionis propriamente ditos. Antes, buscar-se-á apresentar as idéias presentes nos

diferentes modelos de homens divinos propostos pelos estudiosos e inseri-los em seu

tempo e espaço a fim de perceber de forma surgiram e se tornaram possíveis, bem

como perceber as críticas centrais ou corolárias que cada modelo conheceu. Ao final

dessa exposição e avaliação dos modelos, um balanço sistematizado seguirá com os

passos decisivos na consolidação do modelo bem como uma proposta tanto original

quanto possível que este trabalho quer oferecer como forma de contribuição ao debate

acadêmico.

Estabelecidas as críticas, análises e proposta oferecida por este trabalho, o

capítulo segundo empreenderá discussões pertinentes à possibilidade de se falar sobre

homens divinos tendo no horizonte a expectativa da audiência mediterrânica antiga. O

milieu próprio em que se tornou possível tal conceito será explorado por meio de

discussões de natureza semântica e cultural seguida de exposição documental. Os

temas que este trabalho considera propedêuticos à análise perfazem os dois primeiros

tópicos do capítulo.

A seguir, os demais, aprofundarão a dinâmica cultural da mística

mediterrânica antiga e proporá categorias de análise para o entendimento do ambiente

místico observado na Bacia Mediterrânica antiga. No bojo desse percurso delimitar-

se-á tempo e espaço para as questões pertinentes do capítulo e formar-se-á uma base

documental que sustentará o modelo proposto de thĕiŏs anēr no primeiro capítulo,

bem como apontará para a demonstração do mesmo modelo quando a figura de Paulo

será central.

O terceiro e último capítulo será de caráter bastante demonstrativo. Tomar-se-

á o documento Atos dos Apóstolos e, logo após discussões introdutórias acerca da

natureza, autoria e outros dados preliminares no trato com o documento, o

procedimento será unificar as discussões dos capítulos precedentes para demonstrar

como Paulo foi "inventado" como homem divino pelo autor de Atos dos Apóstolos.

Adverte-se o leitor, por fim, de que (i) o caráter empírico do capítulo se

justifica tendo em vista seu ineditismo; e, (ii) não será levado em conta se o Paulo de

Atos é histórico ou se os eventos narrados são exclusivamente factuais, pois o

interesse está muito mais em perceber como e porque o autor de Atos construiu Paulo

como homem divino e de que maneira essa construção foi eficaz a sua audiência.

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5. Algumas breves definições

Ao longo de todo o trabalho far-se-á referência aos "paleocristianismos". O

termo em questão não depende, necessariamente, de nenhum estudioso específico.

Trata-se muito mais da compreensão do autor deste trabalho quanto ao que vem ser o

surgimento do(s) Cristianismo(s) na Bacia do Mediterrâneo, no geral, e, mais

especificamente, seu start na Palestina Judaica do século I e.c., a partir do movimento

de Jesus de Nazaré e seus desdobramentos e recepções nos séculos seguintes.

Esse termo quer fazer referência a um tipo de Judaísmo, multifacetado como

sempre foi (e o é!) que adotou os pressupostos e experiências místicas advindas do

movimento em torno de Jesus. É referente ao que costuma se chamar de

"protocristianismo", "cristianismo antigo", "cristianismo originário" ou, como querem

os mais religiosos cristãos, simplesmente "cristianismo". Está sempre empregado no

plural, pois experiências místicas são plurais, nunca monolíticas ou singulares, elas

são sempre objeto de múltiplas percepções e recepções.

Foi um movimento que, em sua origem, se iniciou judaico e permaneceu

assim até meados do II século e.c., somente passou a ser mais "cristão" e menos

judaico no decurso do tempo e das controvérsias irremediáveis entre aquele ambiente

primevo e seus posteriores desdobramentos. Esse processo foi longo e de contínua re-

significação, como tem sido até os dias de hoje.

Assim, o que se pretende aqui é rejeitar a visão exclusivista e singular do que

a Tradição Cristã sempre se empenhou em construir. Em muitos momentos,

igualmente, os termos "teólogos em missão" ou "criptoteólogos" também serão

observados. Nesse sentido se pretende fazer referência a intelectuais que tomam suas

experiências de fé como determinantes nos estudos heurísticos que desenvolvem.

Estão em missão ou "escondidos", pois pretendem fazer com que suas

conclusões - repletas de confissões de fé - inviabilizem avanços heurísticos que, na

visão deles, deturpam a mensagem de Deus ou Jesus. Por se tratarem de pressupostos

de fé não devem fazer parte de modelos centrados em aparatos teórico-metodológicos

pertinentes ao campo científico.

Essa não é uma bandeira positivista, mas um empreendimento necessário para

que se tenha clareza de que, em alguns momentos, as esferas da confissão religiosa e

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da ciência precisam mesmo tomar rumos distintos e buscar um diálogo posterior, mas

nunca confundidos em seus princípios epistemológicos.

Por fim, a menção ao termo "experiência(s)" permeia todo o trabalho. Esse

sim é um conceito ou uma categoria epistemológica importante. Seu emprego

depende do historiador inglês Edward Palmer Thompson (1981:180-200). A noção

epistemológica de história que este trabalho carrega consigo é inteiramente tributária

do que expõe Thompson.

Ou seja, a história é um processo, não uma sucessão teleológica de

acontecimentos que guardam entre si relações causais. Muito menos é a história um

conjunto de análises sobre grandes feitos ou instituições. História é um processo,

vivenciada e construído por agentes dotados de expectativas que sequer controlam as

variáveis desse sistema.

Exatamente o que Thompson critica é a ausência da experiência nos estudos

históricos. Sejam governos, instituições ou categorias de pensamento são construídas

por seres humanos - agentes históricos - que, em suas experiências tornam possíveis

os "grandes temas" mencionados. Portanto, operacionalizar a ciência histórica é

observar as agências de homens e mulheres no tempo, suas expectativas e o cotidiano

de suas experiências.

No mais íntimo intento de se produzir um trabalho como este é,

fundamentalmente, o objetivo de dar voz a essas experiências cotidianas, banais,

corriqueiras, ordinárias que, de fato, constroem o que se costuma chamar de ciência

histórica.

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I. O conceito de thĕiŏs anēr: história e análise crítica

1. Panorama

Ao examinar, detalhadamente, o conceito de thĕiŏs anēr (homem divino)

constata-se que é, certamente, uma das idéias que mais polêmica trouxe aos estudos

heurísticos que se ocuparam de experiências religiosas mediterrânicas, no geral, e

paleocristianismos e Novo Testamento, no particular. Dentre os mais de trinta

autores14

que, de uma forma ou de outra, se ocuparam deste tema específico,

estudando-o nas diferentes experiências religiosas mediterrânicas, a maioria deles, de

um lado, estabeleceu duras críticas quanto ao uso dessa categoria explicativa e, por

outro lado, um número menor desse universo a assumiu como um modelo explicativo

consistente e relevante para analisar as mesmas experiências religiosas.

As críticas oscilam entre duas posições: (a) não há atestação documental desse

modelo explicativo detalhado e empregado como categoria de atribuição e/ou

percepção de lideranças religiosas em contextos de século I-IV e.c.. Como

desdobramento, (a.1) aceitar o modelo de homem divino como uma categoria

demandaria um rigoroso critério de classificação e evidências concretas de que, a

algumas figuras religiosas do período, fosse atribuído, literalmente, o conceito, bem

como o líder em questão o reivindicasse ou se assumisse como tal, bem entendido:

homem divino.

Para além desse primeiro aspecto, (b) o emprego de thĕiŏs anēr para inserir

Jesus nesse modelo helenístico-romano em pé de igualdade com os tantos outros

homens divinos da antiguidade mediterrânica é "impróprio" e "inútil". Como

desdobramento dessa idéia ou mesmo o sentido dela, (b.1) para tais autores, implica

em equívoco assumir que os evangelistas tomaram o modelo de cristologia, para

Jesus, desde a já existente categoria de homem divino, difundida na antiguidade

mediterrânica, para aplicá-lo às "coleções de milagres" (uma das supostas fontes

utilizadas pelos autores evangélicos neotestamentários) que estaria por trás dos textos

canônicos estabelecidos.

14 Optou-se por trabalhar com as idéias desses autores tratando caso a caso, por essa razão, não estão

mencionados nesses primeiros parágrafos, mas cada um deles comparecerá ao longo da discussão aqui

proposta com suas respectivas posições quanto ao tema em debate.

Page 32: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

32

Se não todos, pelo menos boa parte dos críticos ao modelo de homem divino,

estabelecem suas reticências a partir de um lugar de fala muito bem localizado: são os

"teólogos em missão". Para essa categoria de intelectuais, aqui inventada, a origem de

tamanha celeuma se dá no sentido de explicar que Jesus não pode ser enquadrado na

mesma categoria que outros homens divinos, magos, curandeiros, semi-deuses, etc.,

muito menos que está próximo ao campo da magia15

.

Esse conjunto de autores, que rejeita o modelo explicativo thĕiŏs anēr, está

bastante preocupado, incansavelmente, em encontrar nas fontes a literalidade, ou seja,

a expressão exata que se refira ao homem divino em questão. Ainda,

preferencialmente, uma explicação detalhada por parte do escritor do documento

antigo, que critério utilizou para empregar tal expressão e o que entendia por ela. Esse

aspecto ficará mais evidente quando os trechos coletados forem, mais adiante,

expostos.

Por outro lado, ainda que para a minoria deles, o modelo existe e é bastante

útil para inserir não somente Jesus, mas as demais personagens paleocristãs sob o

conceito de homem divino a fim de percebê-las em seu ambiente originário. Para

esses intelectuais, os paleocristianismos e suas personagens não são transplantados do

Paraíso para o mundo real, antes, estão em completa interação com o ambiente que os

cercam e vivenciam suas experiências histórico-místicas como produto dessa

realidade histórica no Mediterrâneo antigo.

A constatação de que não é, necessariamente, imprescindível a ocorrência das

palavras thĕiŏs anēr, bem como a descrição exata dessa definição, critérios e

explicações pormenorizadas se torna argumento metodológico fundante para este

trabalho (para isso, ver BETZ, 1961:102 e 1983:235; bem como KUHN, 1971:195.

Como já mencionado, essas posições serão cotejadas e explicitadas mais adiante em

seus detalhes). O eixo conceitual é expandido e as classificações rígidas demais são

pulverizadas no entendimento do modelo, o que parece ser mais factível quando o

assunto é experiência histórica cotidiana.

15 Em outro momento (JUSTI, 2011:31-66.107-115) essas discussões sobre estudos bíblicos e magia,

modernidade e o afastamento do paradigma "irracional" da história e cultura modernas e as

experiências religiosas antigas foi discutido. Cabe ressaltar que as discussões aqui travadas, derivam

daquele estudo e devem ser sempre relacionadas a esse incômodo da intelectualidade moderna com o

campo mágico nas investigações heurísticas e suas relações com as experiências religiosas paleocristãs

em especial.

Page 33: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

33

O conjunto desses autores, incluindo aí teólogos (obviamente, não aqueles em

"missão"), opta por entender o conceito de thĕiŏs anēr articulando-o com o universo

cultural helenístico em contato com culturas autóctones que forneceram ou

construíram esses homens divinos. Não há temor em perceber as experiências

místicas (categoria que, aqui, engloba religião, mito e magia), pois no horizonte

epistemológico não está um corpus doutrinal eclesiástico.

De fato, a abordagem é científica, portanto, rigorosa quanto às regras do jogo

científico. Assim, a partir da percepção desses autores na abordagem do fenômeno,

critérios e classificações deslocam-se para a compreensão e análise epistemológica do

objeto e não, como a maioria procede, entendendo esses critérios e classificações

como constituintes do objeto per se, pois a epistemologia já foi dada: cartilha

teológica missionária.

2. O homem divino da antiguidade

A presença dos homens divinos ou, ao menos, o que se reconhece aqui como

modelo thĕiŏs anēr data do que se convenciona chamar de Antiguidade. A crítica de

que a expressão thĕiŏs anēr ou o conceito associada a ela não ocorre na antiguidade,

ganha maior expressão, dentre os autores analisados neste trabalho, nas palavras do

intelectual norueguês Aage Pilgaard:

"O debate a respeito das críticas a theios aner tem sido focado sobre a relação entre o termo theios aner e o conceito theios aner, um

debate que demonstra que a definição do conceito precisa ser

considerada. Tem sido defendido que o termo theios aner nunca ocorre na

Septuaginta e Novo testamento, e no que diz respeito ao mundo

greco-helenístico, W. von Martitz demonstrou que nas fontes pré-cristãs o termo theios aner não é usado como um título, e também

que não há conexão próxima entre theios e o carismático até a

literatura neo-platônica e neo-pitagórica16

." (PILGAARD,

1997:103).

16 Tradução pessoal de: " In the debate concerning theios aner critics have focused upon the relation between the term theios aner and the concept theios aner, a debate which demonstrates that the

definition of the concept needs to be considered. It has been argued that the term theios aner never

occurs in the Septuagint and the New Testament, and as regards the Greek-Hellenistic world, W. von

Martitz has shown that in pre-Christian sources the term theios aner is not used as a title, and also that

there is no close connection between theios and the charismatic until New-Platonic and New-

Pythagorean literature."

Page 34: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

34

O parágrafo citado aponta para o pormenor que o autor norueguês imprime ao

seu trabalho. O rigor que emprega na análise do tema diz respeito ao uso de thĕiŏs

anēr como modelo por trás da composição do Evangelho marcano. Como já

explicitado (ver item I.1 deste texto), trata-se de um "teólogo em missão" visando

imobilizar a pesquisa no que se refere ao estudo dos homens divinos em articulação

com os paleocristianismos. A afirmação é sustentada pelos trabalhos de Otto Betz

(1972) e Martitz (1972) que, aqui, serão posteriormente considerados.

Essa constatação não é definitiva, pelo contrário, há outro ponto de vista (e

com provas) para essa tese: Hans Betz (1983) e o monumental texto de Windisch

(1934). Chama atenção, ainda, o fato de que Pilgaard (1997:103, nota 7) cita a obra

de Hans Betz, ou seja, ele a conhece, mas prefere não adotá-la, apenas mencioná-la

como contraponto ao que afirma Martitz (1972). No texto, ele não menciona

Windisch (1934), fato esse que, diante da revisão bibliográfica extensa e acurada que

perpetra em seu artigo, levaria a três suposições do por que a ausência dessa menção:

(i) não conhece a obra; (ii) não domina o idioma alemão; (iii) não concorda com o

autor alemão.

Para a primeira suposição, não parece provável, pois a revisão bibliográfica

que desenvolve em seu artigo é muito extensa e detalhada, fica difícil acreditar que

ele não teria acesso a essa obra de Windisch. À segunda suposição, basta dizer que

Pilgaard discute muitos autores alemães, em detalhe, como por exemplo, o próprio

Hans Betz. O suposto desconhecimento do idioma germânico não parece ser o caso

para essa ausência na bibliografia. Por fim, para a terceira suposição, parece ser a

idéia precisa que justifique a ausência do trabalho de 1934.

Ainda, para evitar o risco de cometer injustiça com o autor norueguês, outro

intelectual, desta fez finlandês, Erkki Koskenniemi afirma que não encontrou uma

compilação completa de evidências sobre thĕiŏs anēr. Mas, acrescenta que Windisch,

a esse respeito, fez o trabalho mais sólido, mesmo sem pretender ser exaustivo, e, em

parte, através de seu próprio estudo das fontes (KOSKENNIEMI, 1994:99). Bem

entendido esse comentário: o que Koskenniemi quer sinalizar é que ele não concorda

com o juízo de Windisch, mas reconhece o mérito do autor alemão ter efetuado o

estudo e coletado o que, para ele, seriam provas da presença do homem divino na

antiguidade.

Page 35: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

35

De fato, na obra de Windisch, na primeira parte, há uma extensa exposição

(WINDISCH, 1934:24-101) em que o autor alemão aponta ocorrências do termo na

antiguidade. De igual forma, Cornelli (2001:26-27) menciona a existência do debate

entre apologistas a partir do século IV e.c. situando a existência do modelo/conceito

thĕiŏs anēr em escritores proeminentes daquele tempo. E, tanto o alemão quanto o

brasileiro também não estão sozinhos. Hans Betz (1983:248) e Holladay (1977) a esse

respeito também elencam episódios documentais que atestam a presença do homem

divino.

Holladay estabeleceu em seu estudo três autores judeus em cujos trabalhos é

possível encontrar referências ao tema na antiguidade: Josefo (1977:47-102), Fílon

(1977:103-98) e Artápano (1977:199-232). Embora o autor norte-americano seja

crítico ao uso da categoria thĕiŏs anēr, especificamente, quando assumida como

background para a cristologia neotestamentária, procede a interessantes avaliações

nas fontes disponíveis para o trabalho que desenvolve.

Abaixo, à guisa de sistematização (ver tabela 1), segue uma lista não exaustiva

da ocorrência de termos exatos (thĕiŏs anēr) e/ou declinados/conjugados:

Autor17

Obra Data18

Trecho

Homero (2004) Ilíada IX-VIII a.e.c. 16,798

Hesíodo (1914) Os trabalhos e os dias VIII-VII a.e.c. 731

Platão

(1967)

República

V-IV a.e.c

1,331e

Mênon 99d

Sofista 216b

Filebo 18b

Leis 2,666d

Leis 1,642d

Aristóteles (1934) Ética a Nicômaco IV a.e.c. 7,1145a

Josefo (1991) Antiguidades Judaicas I e.c. 3,180

Plutarco (1874) Moral I-II e.c. 24a

1119c

Crisóstomo (1951) Discurso I-II e.c. 33,4

Iamblico (1919) Vida de Pitágoras II e.c. 11,56

Filostrato (1970) Vida de Apolônio II-III e.c. 8,15

Porfírio (1984) Abstinência III e.c. 2,45,2

Justino (1983) Primeira Apologia II e.c. 21-27

Origenes (1969) Contra Celso III e.c. 2.49; 3.3; 42ss; 6.8-

11; 7.9; 53ss.

Eusébio (1986) Contra Hiérocles IV e.c. 1.6 Tabela 5: Ocorrências de thĕiŏs anēr na literatura antiga

17 As datas entre parêntesis referem-se às edições modernas dos documentos presentes na bibliografia

que está ao final deste trabalho. 18 As datações mencionadas nesta tabela, para alguns casos, é bastante controversa e/ou difícil de

determinar quanto à origem das obras escritas. Por esse motivo, optou-se por indicar apenas as datas

prováveis de existência/atuação dos autores aqui elencados.

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36

Algumas considerações devem ser feitas após a exposição dos dados na tabela

acima:

(a) já foi advertido anteriormente que essas ocorrências não perfazem um estudo

exaustivo da literatura antiga. A honestidade intelectual demanda que se diga que ela

foi sistematizada a partir dos dados coletados em Windisch (1934:24-101),

Koskenniemi (1994:99-100) e Cornelli (2001:26-27);

(b) Martitz (1972) defende que nas fontes pré-cristãs thĕiŏs anēr não é usado como

um título, e também que não há conexão próxima entre thĕiŏs anēr e o carismático

até a literatura neo-platônica e neo-pitagórica (334-40). A esse respeito, Windisch

(1934) discordaria19

, sustentado pelos dados que expôs em seu texto e Holladay

(1977:241) tenderia a concordar com Martitz se, e somente se, o assunto for thĕiŏs

anēr como base para a cristologia neotestamentária;

(c) Holladay encontra em Josefo a expressão apenas uma vez (1977:55), em Fílon

duas vezes (1977:174.183ss.) e em Artápanos nenhuma vez. Para ele isso é suficiente,

obviamente acompanhado de uma análise sistemática, para defender que não encontra

nesses autores a intenção de divinizar os heróis de quem eles tratam;

(d) Pilgaard (1997:103) está correto em dizer que a expressão não ocorre na

Septuaginta e no Novo Testamento;

(e) De maneira singular, Cornelli (2011:26-27) reconhece não somente os thĕîŏi

ándrĕs na antiguidade, como também descreve os debates entre autores cristãos da

patrística com seus "adversários". Assim, Justino defende Jesus ao perceber que tem

notado uma tentativa por parte dos pagãos de imitá-lo. Orígenes argumenta contra

Celso, que entende Jesus como um charlatão. Eusébio responde a Hiérocles,

inclusive, dizendo que a nenhum homem é possível realizar milagres. Na visão dele,

somente Jesus o faria, naturalmente, pois é o próprio Deus encarnado.

De acordo com Windisch (1934), a presença dos homens divinos esteve

muitas vezes e em diferentes períodos na antiguidade atestada, ainda que não como

uma categoria solidificada. Smith (1971) também não tem dúvidas em reconhecer a

presença desses homens divinos na Bacia Mediterrânica antiga. Sua análise sobre as

19 Esse "concordar" não quer dizer, necessariamente, que o autor alemão defende que a categoria thĕiŏs

anēr é difundida, conhecida e amplamente aceita na antiguidade, mas quer sinalizar que o modelo para

estudo do homem divino não foi inventada na modernidade, antes, encontra bases suficientes na

documentação antiga para a formulação do conceito explicativo que quer entender determinadas

personagens da antiguidade.

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aretologias e o modelo thĕiŏs anēr soam como muito facilmente identificáveis e

inteligíveis. Porém, será com Betz (1961:102; 1983:235) que essa questão atingirá

seu êxito (cf. também, a esse respeito, a concordância de Kuhn, 1971:195).

De acordo com o autor alemão, a ocorrência do termo não pode ser decisiva

para a questão da existência do conceito. Essa proposição de Betz, considerada aqui

como precisa, e a partir da qual este trabalho encontra base fundante e sólida para

construção de seu objeto, não ficou sem resposta (ou distorção!). Pilgaard (1997:103)

considera que, a partir da afirmativa de Betz, o modelo thĕiŏs anēr deixa de ser algo

que, de fato, era conhecido e usado na antiguidade e passa a ser apenas uma categoria

científica moderna para o estudo de personagens históricas do passado.

Tendo em vista que o objetivo central deste trabalho é o estudo do modelo

thĕiŏs anēr aplicado a personagens da antiguidade mediterrânica, no geral, e, a Paulo,

no particular, essa discussão ainda ocupará muitas páginas do presente estudo. Seja

na análise de outros quadros interpretativos desse modelo, a seguir neste capítulo,

seja nas demais seções desta tese, as discussões até aqui apresentadas não serão as

únicas.

Obviamente, as discussões em torno do emprego dessa categoria de homens

divinos na antiguidade não serão aqui esgotadas. O esforço é no sentido de analisar,

sistematizar e apontar debates bibliográficos, a partir de obras seminais, em torno do

tema. Com esse objetivo no horizonte, avançar-se-á nesse mister sem, contudo, tornar

cada segmento deste texto como estanque. É justamente entre as idas e vindas dessa

análise bibliográfica que se pretende construir um cenário em que as posições

seminais sobre thĕiŏs anēr foram concebidas e, feitas determinadas escolhas,

empreender o próprio modelo que servirá de plataforma teórica para perceber o

homem divino - Paulo - na antiguidade.

3. Fins do século XIX e primeiras décadas do XX: da pré-história à

consolidação do modelo thĕiŏs anēr

Uma pergunta sufocada, um não-dito20

, que surge na divisão de tópicos deste

capítulo seria o porquê de se saltar do tópico anterior "o homem divino na

20 Para uma discussão teórica em torno da idéia de um ―não-dito‖ na documentação, ver: CERTEAU,

Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (orgs.). História: Novos

Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. p.17-48.

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antiguidade" para este, ou seja, qual seria o motivo de tamanho salto cronológico?

Cornelli (2001:27) parece responder adequadamente à questão: "com o sucesso

histórico - por assim dizer - do cristianismo, perde-se interesse na questão

apologética, e conseqüentemente, na comparação de Jesus com as grandes figuras de

thĕîŏi ándrĕs da época."

Em meados do século XIX, um renovado interesse no estudo de experiências

religiosas mediterrânicas surge com muito fôlego e desdobramentos decisivos para

que se chegue, já na década de 30, do século XX, à consolidação do modelo thĕiŏs

anēr. Esse impulso, contudo, deve ser entendido à luz de dois momentos marcantes

nos estudos de Novo Testamento e paleocristianismos: a assim chamada "escola

mitológica" e, de igual forma, a assim nomeada "escola de história das religiões".

Nenhuma dessas duas "escolas" deve ser entendida como movimentos

organizados ou premeditadamente estruturados, no sentido de se inaugurar uma

percepção dos paleocristianismos. Elas têm em comum duas características básicas:

(i) intelectuais, individualmente, interessados nos estudos de experiências religiosas

mediterrânicas e marcados por interesses nas culturas greco-romanas desenvolveram

seus trabalhos rumo a um mapeamento da mística antiga e seus respectivos

desdobramentos; (ii) ao perceberem seus objetos de estudo em um cenário mais

amplo, lançaram possíveis interpretações heurísticas sobre os fenômenos religiosos

greco-romanos e, por extensão, inferiram idéias sobre os paleocristianismos.

E, por outro lado, todavia, se afastam em suas conclusões e desdobramentos

quanto ao método de estudo. Ao passo que a escola mitológica assume, em primeiro

momento, a palavra "mito" como algo inverossímil, fantasioso ou falso, a escola de

história das religiões toma as experiências religiosas mediterrânicas em perspectiva

comparada e, através da diacronia, estuda as bases e ideologias por trás dos mitos de

cada experiência religiosa sem, contudo, duvidar de sua historicidade. Ou seja, os

próprios mitos já são história.

Outro aspecto que afasta as percepções dessas escolas reside no fato de que, a

escola de história das religiões busca a inserção dos paleocristianismos no ambiente

cultural em que estavam interagindo com as mais diferentes culturas, a escola

mitológica, por sua vez, entende que os mitos (portanto, invenções) paleocristãos são

influenciados pelas culturas que os cercam. Assim, as narrativas paleocristãs não

passam de projeções fantasiosas de seus autores e/ou comunidades na construção de

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suas personagens. Com isso, a experiência histórica paleocristã é anulada e a

realidade que pretendem descrever nada mais é do que um conjunto de molduras

literárias greco-helenísticas preenchidas com acontecimentos supostamente

verdadeiros de suas percepções religiosas.

A escola mitológica causou bastante impacto em suas conclusões, pois como

ponto de partida, adotou o senso primário da palavra "mito" como sendo algo não

histórico, ficcional, por assim dizer. Com isso, o elemento fundante da fé cristã -

Jesus - recebeu tratamentos de lenda inventada no século I e.c.. A esse respeito, Jones

(1924:61-64) os apresenta como fortemente marcados por uma percepção

radicalmente cética quanto à possibilidade de Jesus ter, de fato, existido. Expoentes

dessas idéias, em 1904: Loisy, 1905: Pfleiderer e 1909: Conybeare (JONES, 1924:61-

64).

Anos antes em Tübingen, Strauss21

, em 1835, já publicara suas idéias sobre

Jesus e, como facilmente se nota (segundo Jones, 1924:60), deixou um legado

marcante quanto às leituras de um Jesus mitológico. Essa leitura já denota os

antecedentes da escola mitológica a partir de Baur (1832) com a aproximação que fez

entre Apolônio de Tiana e Jesus (CORNELLI, 2001:27). Anos depois, em 1872, os

estudos de Rohde (1901:102-172) sobre Pitágoras revelariam que as histórias de

milagres pré-aristotélicas já precediam o filósofo pré-socrático (CORNELLI,

2001:27).

As dúvidas em torno da autenticidade das narrativas paleocristãs nunca foram

novidade, conforme Jones observa (1924:60). Para além dessas desconfianças

modernas a esse respeito, a história de desenvolvimento de comunidades paleocristãs

conheceu profundas críticas externas quando do início de seu estabelecimento na

bacia mediterrânica. Basta notar que boa parte dos textos evangélicos, nas suas

respectivas origens, precisou responder a ataques externos quanto à formulação de

suas teologias da história22

.

Os paralelos entre personagens das culturas grega, romana e helenística, em

meados do século XIX são bases fundantes para o que a escola mitológica tem a dizer

sobre Jesus e os paleocristianismos. Elemento cultural decisivo para esses retratos de

21 STRAUSS, David Friedrich. The Life of Jesus Critically Examined. Philadelfia: Fortress Press. 22 Os exemplos dessas respostas que precisaram ser dadas a ataques externos quanto à veracidade de

acontecimentos se multiplicam no estudo da história da composição de narrativas evangélicas. Os

textos de Chevitarese (2011) e, juntamente com Cornelli (2007), são extensos casos explicativos desse

aspecto.

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Jesus de inícios do XX é, também, a cultura hebraica e, fundamentalmente, os

paralelos com as demais culturas semíticas que os circundavam. Assim, para

Robertson (JONES, 1924:68-69), em 1901, Jesus seria a personificação de uma

antiga divindade semítica.

Por sua vez, Kalthoff, (JONES, 1924:68-69), em 1903, a partir de paralelos,

também, com histórias do Antigo Testamento, desenha um Jesus como produto da

projeção de consciência das comunidades por trás dos evangelhos que tiveram por

escopo objetivar e personificar uma idéia latente desde a antiguidade

veterotestamentária. Para demonstrar como esse era um tema caro aos intelectuais de

então, Wendland (1904) promove uma ampla comparação entre literaturas antigas a

partir do verbete grego sotér (salvação ou salvador) e as articula com os temas vetero

e neotestamentários (ver, também, a esse respeito, CORNELLI, 2001:27).

Dois anos depois, Jensen, em 1906, afirma que os ensinos de Jesus presentes

no Novo Testamento são resultado de um formado israelita de parênese advindo da

Epopéia de Gilgamesh (JONES, 1924:65-67). Uma inserção diferente, porém, da

anterior, ou seja, a escola de história das religiões, em 1908 com Reitzenstein (1978)

e Weinreich (1909), através de um método distinto, propõem um olhar comparativo

das experiências religiosas mediterrânicas. Inclusive, será a partir de Reitzenstein

(1978), com a expressão thĕiŏs anthōpŏs, que se pode localizar a origem do que virá a

ser o modelo thĕiŏs anēr. É com esse autor alemão que a expressão primeiramente

aparece no sentido de se organizar uma categoria única que atenda a tantas

personagens antigas operadoras de milagres, extremamente sábias ou portadoras de

uma presença divina marcante em seus atos e ditos.

"[uma] concepção geral de qei/oj a'nqrwpoj [ser humano divino] ...,

segundo a qual um homem tão divino combina dentro de si mesmo, com base em uma natureza grandiosa e santidade pessoal, o

conhecimento mais profundo, a visão e o poder para operar

milagres23

." (REITZENSTEIN, 1978:26).

A religionsgeschichtliche Schule (escola de história das religiões), originada

em meio a um grupo de intelectuais na Alemanha em fins do XIX e início do XX,

será decisiva em aproximar os estudos de Novo Testamento e paleocristianismos com

23 Tradução pessoal de: "[a] general conception of the qei/oj a'nqrwpoj [divine human] ..., according to

which such a divine man combines within himself, on the basis of a higher nature and personal

holiness, the profoundest knowledge, vision, and the power to work miracles."

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o ambiente místico (magia, religião e mito) (AUNE, 1980:1508). Nomes como A.

Dieterich, A. Deissmann, W. Heitmüller, Hermann Gunkel, Johannes Weiss, Wilhelm

Bousset, Rudolf Otto, Albert Schweitzer, Otto Weinreich e Richard Reitzenstein,

entre Göttingen e Tübingen desenvolvem estudos no sentido de perceber

comparativamente os contatos entre culturas que interagem na Bacia do Mediterrâneo

e o resultado dessas aproximações.

Cumont (1913), da escola mitológica, entende como "influência" as religiões

orientais naquela romana, Weinreich (1909), por sua vez, "quer demonstrar a

intercambialidade das histórias dos curandeiros e taumaturgos da tradição helenística

e, ainda, Fiebig (1911) pretende provar que tais histórias encontravam paralelos e

eram muito comuns na literatura rabínica" (CORNELLI, 2001:28). Uma distinta

concepção metodológica ainda que sensivelmente relevante. Holl (1912) propõe uma

idéia inovadora ao revelar a "relação teológica e estrutural entre as histórias de

milagres e as vitae, enquanto ambas seriam demonstrações, provas, da divindade dos

homens divinos" (CORNELLI, 2001:28).

A tese de Holl se revelará polêmica, anos depois, pois será seu estudo um dos

principais a fornecer bases teológicas para a hipótese de enquadramento que Marcos,

o evangelista, teria dado às coleções de milagres de Jesus na composição cristológica

de seu retrato sobre o nazareno. Esse será o principal fator de crítica de Pilgaard

(1997:103-106) à Betz (1961 e 1968). Convém mencionar, ainda, o artigo de Eitrem

(1912) que, ao traçar a história do conceito de "herói" no mundo antigo, contribuiu

para "sustentar historicamente o estudo das vitae dos homens divinos". (CORNELLI,

2001:28).

Como resultado da metodologia empregada na escola de história das religiões,

por contraste àquela desenvolvida pela escola mitológica, Bousset (1970), em 1913, é

responsável pela primeira aplicação direta dos resultados de estudos precedentes à

exegese do Novo Testamento. Essa aplicação, ou seja, a assunção de que Jesus seria o

kyrios (Senhor) tipicamente helenista, ao lado de Wetter (1916), que faz estudos no

sentido de empregar títulos para Jesus, torna-se seminal para ampliar o leque de

possibilidades de se enxergar Jesus como, também, um homem divino além, claro,

das demais personagens paleocristãs.

Considerando, nesse cenário, a eclosão da I Grande Guerra (1914-1918), os

estudos diminuirão em volume, mas a herança que deles se extrai não passa

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42

despercebida. Será o caso de Martin Dibelius (1984) em 1919 e Rudolf Bultmann

(2000) em 1921. Tomando como referência o estudo das formas24

do Novo

Testamento, serão eles os responsáveis por trazer à discussão os antecedentes do

modelo thĕiŏs anēr para o cenário de análise das histórias de milagres de Jesus.

Nesses dois casos, a presença dos autores da escola de história das religiões é

amplamente atestada no que diz respeito ao emprego de idéias e, conseqüentemente,

bibliografia.

Tanto Dibelius quanto Bultmann buscaram a compreensão de que por trás das

narrativas de milagres atribuídas a Jesus, estava a forma da aretologia, forma literária

típica para descrever grandes feitos de personagens com poder divino e sabedoria

incomuns. Servindo-se majoritariamente de Reitzenstein (1978) e Weinreich (1909),

Dibelius faz extensa análise dessas coleções de milagres para fundamentar sua

percepção de que ao construir a história de Jesus nos evangelhos, o modelo da

aretologia serviu de padrão (DIBELIUS, 1984:60.81.86.90-91.97.99.163.166.171).

Eis um exemplo lapidar para entender essa análise de Dibelius:

"O culto de Serapis oferece um exemplo muito mais claro nesse

sentido, pois esse deus não tem genealogia e nem mito próprio; a

mitologia é substituída pela aretologia e, posto que não haja mitos, se contam milagres [a última frase é citação de Weinreich]. 'As

prateleiras das estantes repletas de livros sagrados contêm

inumeráveis exemplos dele. Os mercados, os portos e os fóruns

mais amplos das cidades estão repletos deste tipo de narrativas' [citando documentação referente a Aristides]. Quem desejava

propagar o culto de Serapis tinha à sua disposição tais histórias. A

narração de milagres se convertia assim em instrumento para a missão.

As narrativas curtas [forma literária que Dibelius identifica na

antiguidade] do Novo Testamento podem ser entendidas também como uma ajuda deste tipo em ordem à propagação do culto cristão.

Tão pouco de Jesus se pode contar mitos propriamente ditos, mas

sim suas ações. A pregação faz propaganda da salvação e

demonstra seu conteúdo valendo-se dos 'paradigmas'. Frente a este gênero, as narrativas curtas relatadas pela comunidade desdobram-

se em força propagandística por si mesma. De um modo ou de outro

24 A Formgeschichte (história das formas) aplicada aos estudos de Novo Testamento, deixam

importante contribuição na pesquisa dos escritos neotestamentários, pois busca uma análise textual

sobre a história da composição dos textos do ponto de vista linguístico e de gêneros literários. Essa concepção está fortemente marcada pela perspectiva de estudo que toma por base o texto como

construto linguístico, semântico e sintagmático como testemunha de acontecimentos registrados de

forma escrita, mas prescinde de dados arqueológicos e imagéticos para tal feito. Revela-se

imprescindível (e para isso ela existe) na análise textual, mas falha em demonstrar em suas conclusões

uma história mais ampla em que o texto está inserido, justamente por tomar como parte de toda

realidade o aspecto particular que é o registro escrito.

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43

vai-se ganhando aderentes para Jesus 'o Senhor'. Resulta lógico, por

conseguinte, que em sua obra Marcos faça uso tanto de paradigmas

como narrativas curtas25

". (DIBELIUS, 1984:99).

Dessa forma, segundo Dibelius, na construção da história de Jesus, não resta

outro modelo senão aquele tipicamente helenístico da aretologia. A coleção de

milagres e realizações é decisiva para a propagação da mensagem da divindade.

Dibelius não adota a expressão thĕiŏs anēr e nem faz uso explícito de qualquer

referência aos termos. Mas, não há dúvida que a começar por uma das explicações

fundamentais para que se reconheça tal modelo dos homens divinos - a aretologia -

abre caminhos para a compreensão de uma possível associação de Jesus com o thĕiŏs

anēr helenista.

Dois anos depois de Dibelius, em 1921, Bultmann também reconhece o

modelo - aretologia - sem, contudo, aplicar a expressão thĕiŏs anēr através das

histórias de milagres. Ele faz uso da expressão thĕîŏs ànthŏpōs (ser humano divino)

(BULTMANN, 2000:295) sem, contudo, afirmar que Jesus o é. Ao contrário, quando

analisa a narrativa em que Jesus acalma a tempestade, diz que não conhece nenhum

exemplo de thēîōs ànthŏpōs (ser humano divino) que tenha feito o mesmo.

O autor alemão entende que Jesus é um pregador de arrependimento e

salvação na fonte Q e, em Marcos, reconhece que a aretologia pode ter sido usada na

base de composição do Evangelho tais quais as personagens assim entendidas em

ampla coleção de histórias de milagres que disponibiliza. (BULTMANN, 2000:267-

302).

O período histórico imediatamente ligado a I Grande Guerra reduziu em

volume o conjunto de publicações que exploraram a temática das experiências

religiosas antigas do Mediterrâneo como uma fase, aqui estipulada, como a pré-

história do modelo thĕiŏs anēr. Porém, é nesse intervalo, a última metade da década

25 Tradução pessoal de: "El culto de Serapis ofrece un ejemplo mucho más claro en este sentido, pues

este dios no tiene ni genealogía ni mito propio; la mitología es sustituida por la aretología y, puesto que

no hay mitos, se cuentan milagros. 'Los sacros estantes repletos de libros sagrados contienen

innumerables ejemplos de ello. Los mercados, los puertos y amplios foros de las ciudades están llenos

de este tipo de narraciones'. Quien deseaba extender el culto de Serapis tenía a su disposición tales

historias. La narración de milagros se convertía así en instrumento para la misión.

Las narraciones cortas del Nuevo Testamento pueden entenderse también como una ayuda de este tipo en orden a la extensión del culto cristiano. Tampoco de Jesús pueden contarse mitos propiamente

dichos, pero sí sus acciones. La predicación hace propaganda de la salvación y demuestra su contenido

valiéndose de los 'paradigmas'. Frente a este género, las narraciones cortas relatadas por la comunidad

despliegan una fuerza propagandística por sí mismas. De un modo u otro se van ganando creyentes

para Jesús 'el Señor'. Resulta lógico, por consiguiente, que en su obra Marcos haga uso tanto de

paradigmas como de narraciones cortas".

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44

de 10 até início dos anos 30 do século XX, que fez com que o modelo thĕiŏs anēr

conhecesse sua origem literal.

Literal, porque foram os trabalhos de Wetter (1916), Weinreich (1926),

Windisch (1934) e Bieler, em 1935 (1967) que transformaram o então corrente thĕiŏs

anthōpŏs de Reitzenstein (1978:26) em thĕiŏs anēr. Uma mudança terminológica

sensível que veio acompanhada de uma percepção mais ampla do que sejam as vidas

desses homens divinos antigos. Para Wetter (1916:153), por exemplo: "O Evangelho

segundo São João aparenta ser a conseqüência necessária para o fato de que a fé cristã

é agora confessada por tais pessoas que tiveram previamente se reunido ao redor de

Simão, Dositheu e outros como eles."

Será, por fim, com o extenso trabalho de Bieler (1967), em 1935, através de

uma "larga seleção de materiais, entre eles: Luciano, vários filósofos e sofistas, poetas

e monges lendários, o Novo Testamento, Suetônio e Heliodoro" (CORNELLI,

2011:29) que o termo thĕiŏs anēr se tornará comum (PILGAARD, 1997:101). O que

Bieler pretendeu em seu trabalho foi o de criar um "tipo ideal" - a quem chamou

homem divino - para classificar e analisar personagens antigas.

Bieler chegou a mencionar que na sua concepção, thĕiŏs anēr tratava-se de

uma idéia platônica (1967:19-20), seria, portanto, muito mais um padrão para

explicar diferentes ações de personagens históricas, do que um modelo consolidado

em si. O modelo de Bieler parte, decisivamente, do Jesus dos evangelhos canônicos e

de Apolônio de Tiana. Esse ponto de partida, para que depois se busque outros

exemplos na documentação antiga, motivou muitas críticas ao seu trabalho em anos

posteriores, notadamente na década de 70 do século XX, como mais à frente, neste

texto, será demonstrado.

Para o autor alemão, o núcleo do modelo é: o nascimento do homem divino é

profetizado, com o seu nascimento o milagre é realizado; desde sua iminente

juventude, ele é um professor com autoridade que atrai multidões de pessoas e realiza

grandes milagres; ele é tido como filho de deus, desta maneira, as pessoas o

respeitam, mas, de igual forma, ganha inimigos por esses mesmos motivos; acusado

de práticas mágicas, é morto e, após isso, ressuscita de forma miraculosa e aparece

aos seus discípulos.

As similitudes desse modelo com a história de Jesus são evidentes. Por essa

razão, muitos estudiosos o considerarão como problemático para entender como Jesus

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45

teria sido construído com base em um modelo de thĕiŏs anēr já existente na cultura

helenística, se o próprio modelo parece ter sido pensado a partir de Jesus. Como se

verá mais adiante será essa crítica que permitirá aos "teólogos em missão" criticar a

categoria de homem divino para a cristologia de Jesus, inclusive, defendendo esse

modelo de Bieler como único e exclusivo para o caso de Jesus, mas, naturalmente,

sem adotá-lo, apenas invalidando-o como categoria que não estava na cultura

helenística e impossível de usá-la como parâmetro para quaisquer outras personagens.

O trabalho de Bieler, como uma primeira tentativa de sistematizar e propor

uma análise de diferentes personagens antigas e pensá-las em conjunto, foi

impactante e marcante em seus objetivos. Porém, as duras críticas que recebeu de

autores posteriores o colocaram em dúvida. Koskenniemi (1998:462) aponta para o

fato de que o modelo de Bieler "entra em colapso" se o material sobre Apolônio e

Jesus dos evangelhos canônicos sai de cena. Ou seja, a proposta de Bieler não é capaz

de englobar outras personagens antigas. Essa crítica é completada por Smith

(1971:191-92) quando afirma que às vezes, as referências documentais que Bieler

fornece são falsas e a escolha do material é questionável.

Embora se consiga extrair do período até aqui analisado, como modelo,

apenas o que Bieler desenvolveu, as discussões em torno das histórias de milagres e

aretologias específicas de personagens da bacia mediterrância, lançaram bases

heurísticas em torno das documentações antigas. Esses esforços acabaram por se

tornar decisivos na consolidação de plataformas, a partir das quais, os estudos em

torno dos homens divinos fossem consolidados.

Mesmo com as posteriores críticas ao modelo de Bieler, a percepção de que

figuras proeminentes da antiguidade operavam a partir de uma alegada (e na maioria

das vezes reconhecida!) presença divina em suas existências históricas se tornou

fundante para a história do conceito thĕiŏs anēr. Inclusive, é exatamente essa

presença divina, decorrente dela: o ato de a todos maravilhar, que a atuação desses

thĕîŏi ándrĕs casou é o lugar em que se localiza o centro da tese de Bieler.

Após essa publicação de Bieler, em 1937 o livro de Pfister, Hércules e Cristo,

contribuiu para que se desacreditasse do método, mas em 1938, Rose, com seu

Hércules e os Evangelhos eliminou os males que a leitura de Pfister causaram26

.

Antes da II Grande Guerra, duas publicações ainda ampliaram o leque de estudos

26 As referências bibliográficas e o juízo sobre as mesmas, aqui, dependem de Smith (1971:192).

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sobre os homens divinos da antiguidade: Aristóteles e os sábios judeus, de Lewy, no

qual o autor

"não só coletou dados sobre judeus escalados no papel de homens

divinos, mas também lançou luz aos círculos de discípulos de

Platão e discípulos dos discípulos - Heraclides, Filipe de Opus, Xenocrates, Clearco de Soli - que parecem ter transmutado a

filosofia platônica em engano popular27

." (SMITH, 1971:192).

E, finalmente, Les mages hellénisés, de Bidez e Cumont que, segundo Morton Smith,

"arrastaram à luz esse suspeito homem divino28

".

Resistência a esse processo de perceber estudos neotestamentários à luz do

ambiente místico greco-helenístico já se observava desde os anos 30, quando, a partir

de 1933, Gerhard Kittel, reconhecido antissemita29

, fundou e dirigiu a edição dos

cinco primeiros volumes do Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament:

"... o surgimento do movimento de teologia bíblica foi

acompanhado por uma forte reação contra a noção que a magia

mediterrânica antiga influenciou o cristianismo antigo de modo

substantivo. Os autores de muitos artigos presentes em 'Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament', muitos dos

quais se consideravam a si mesmos como teólogos bíblicos,

escreveram como se eles estivessem envolvidos em uma conspiração para ignorar e minimizar o papel da magia no Novo

Testamento e na literatura antiga cristã. Entretanto, para aqueles

que sabem o caminho dos pássaros, existem sinais em abundância de que a magia greco-romana está de novo sendo considerado um

assunto potencialmente frutífero que pode iluminar aspectos

importantes da religião dos antigos cristãos30

." (AUNE,

1980:1508).

27 Tradução de: "not only collected data on Jews cast in the role of divine men, but also threw light on

the circles of Plato's disciples and disciples' disciples Heraclides Ponticus, Philip of Opus, Xenocrates,

Clearchus of Soli - who seem to have transmuted Platonic philosophy into popular flimflam." 28 Tradução de: "which dragged out into the light these shady divine men." 29 Tendo se filiado ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães em 1933 desenvolveu,

como professor de Novo Testamento em Tübingen, estudos científicos depreciando o povo judeu. 30 Tradução de: "... the rise of the Biblical theology movement was accompanied by a strong reaction

against the notion that ancient Mediterranean magic could have influenced early Christianity in any substantive way. The authors of many of the articles in the 'Theologisches Wörterbuch zum Neuen

Testament', most of whom consider themselves Biblical theologians, write as if they were involved in a

conspiracy to ignore or minimize the role of magic in the New Testament and early Christian literature.

However, for those who know the ways of birds there are signs in abundance that Graeco-Roman

magic is again being considered a potentially fruitful subject which may illuminate important aspects

of the religion of early Christians."

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47

Como a pré-história (segunda metade do século XIX e duas primeiras décadas

do século XX) demonstrou, o aparecimento da categoria thĕiŏs anēr teve sua origem

bastante investigada no seio das experiências religiosas mediterrânicas e tornou-se

intrínseca a essa investigação a pertença de personagens antigos associados ao

ambiente da magia, sem que isso precisasse de qualquer discussão. Essas evidências

causaram incômodo, posteriormente, quando da sua consolidação como modelo

heurístico.

Esse contexto tenso sofreu abrupta interrupção com o limiar da II Grande

Guerra (1939-1945), razão pela qual não se tem discussões bibliográficas a esse

respeito na década de 40 do século XX. À luz do que se desenvolveu nesse período,

entre, a aqui nomeada, pré-história do conceito thĕiŏs anēr até o seu estabelecimento,

é que a ampliação dos estudos de mística antiga no mediterrâneo, levando-se em

conta o cenário cultural amplo em que essas experiências religiosas, mágicas e

míticas tiveram lugar, foi decisiva para que a percepção de um modelo geral acerca

dos homens divinos se tornasse definitiva de uma vez por todas.

4. A "pseudo-ortodoxia" dos anos 50 e a proposição de autenticidade

Desde a reação dos teólogos alemães na década de 30, a partir do Dicionário

de Teologia do Novo Testamento, passando pelo silêncio bibliográfico imposto pela

guerra, até os anos 50, tanto a relação entre magia e paleocristianismos quanto o

modelo thĕiŏs anēr conhecerão novas retaliações desde a segunda metade do século

XX até os dias de hoje. O cenário belicoso europeu não ficaria somente nos campos

de batalha daquela época, antes, ele foi expresso nas tentativas de autores dos anos 50

em reclamar autenticidade e "demonstrar substancial diferença entre Jesus e todas as

outras figuras" (CORNELLI, 2001:29) antigas.

Nesse cenário, o qual Smith nomeou como "pseudo-ortodoxo31

" (1971:192),

os trabalhos que, de imediato, mais se destacaram por seu fôlego e contribuições para

o estudo dos homens divinos antigos e possíveis relações com a literatura paleocristã

foram os de Dölger, em 1950, sobre Apuleio, a respeito de Hércules, em 1955, por R.

31 Para esse momento das discussões bibliográficas dos anos 50, tanto a bibliografia, quanto os

encaminhamentos críticos, dependem de Morton Smith (1971:192-194). Porém, algumas observações

próprias deste trabalho comparecem na discussão sobre como se percebe, aqui, os estudos

mencionados.

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48

Simon, em 1951, o admirável texto de McCasland - Pelo dedo de Deus - que coletou

importante material sobre exorcismos em curas religiosas na Palestina, aquele de

Festugière: La Révélation d'Hermès Trismégiste (4 volumes, entre 1950-54) e o de

co-autoria, também do francês com Nock, entre 1945-1954, quando da publicação da

edição do Corpus Hermeticum.

Para além desses estudos de destacada relevância, outros tantos surgiram sem

muito impacto para a percepção do ambiente de reconhecimento de Jesus como um

homem divino e, por conseguinte, para a composição do conceito. Foi assim com

Bieneck, em 1951, quando disse que o conceito de "Filho de Deus (ui`o.j qeou/)"

aplicado a Jesus não deve ser entendido com o significado grego, pois ocorre em

ambiente judaico. O ambiente é judaico, mas o idioma é grego, logo, parece óbvio

que os autores dos evangelhos entenderam Jesus como judeu e o usaram para

propósitos no interior dessa mesma cultura judaica.

E a intenção de retirar a compreensão de Jesus como homem divino a partir

dessa idéia é pouco útil, pois, assim como o uso do idioma e a referência conceitual

que se que denotar são gregos, o modelo de Jesus como homem divino era do idioma

grego, mas elencar em que língua ou que cultura se adota no uso do vocabulário,

ajuda pouco ou quase nada em determinar a procedência do padrão ao qual o homem

divino se originou.

Em 1952-53, Preisker defendeu que a ressurreição de Lázaro não possuía as

mesmas características dos milagres realizados por homens divinos, pois os

elementos "Reino de Deus" e "fé em Jesus" seriam distintivos e inéditos de Jesus. A

isso, objeta Smith (1971:193, notas 124-25) argumentando que as histórias de

milagres por trás do Evangelho de Marcos, sobretudo, não traziam essas

compreensões mais elaboradas. E mesmo que esses elementos lá estivessem não

serviriam de base para tais afirmações, pois as histórias de milagres poderiam ter sido

facilmente adaptadas pelos autores bíblicos para seus próprios intentos.

Buscando uma origem mais primitiva para o emprego dos termos filho de

Deus (hyiŏs thĕŏû) para Jesus, em 1953, Maurer infere que, para Marcos (13,1 em

diante), em que está a expressão filho de Deus, o correspondente palestino mais

antigo seria servo de Deus (paîs thĕŏû), que, por sua vez, depende de Sabedoria

(2,13.18) e de Isaías (42, 50, 53 - o "servo sofredor"). Com essa pré-história palestina

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49

originária, para Marcos, segundo, Maurer, Jesus estaria fora do modelo homem

divino, pois seu título de "servo de Deus" o tornaria mais antigo.

Essa tentativa fracassa, pois a leitura dos termos em Sabedoria depende das

comunidades falantes do idioma grego, fora a constatação de que Sabedoria usa as

duas expressões. Além disso, o termo filho teria mais sentido aplicado ao Cristo

ressuscitado do que o de servo, constata o próprio Maurer, assim, eis o porquê de se

ter usado um em detrimento do outro: os objetivos eram diferentes, logo, nem os

termos, nem as idéias de cada um podem ser os mesmos. Para além dessas

constatações, Maurer entende que o helenismo tem resistência ao conceito alguém

servindo a um deus, sem, contudo, indicar o que quer dizer com isso.

Maurer depende do trabalho de Joachim Jeremias e Zimmerli, 1954, para suas

idéias. No mesmo ano, contudo, é que Jeremias propõe seu estudo sobre o termo,

segundo ele, aramaico Abba. A idéia é a mesma da qual parte Maurer, ou seja,

alguma reminiscência pré-helenística em Jesus o tornaria mais original. Porém, como

o próprio Jeremias dizia, o uso do termo pressupõe uma experiência psicológica

individual de Jesus para com Deus no uso desse termo. Dessa maneira, nenhuma

prova é possível para qual sentido o nazareno histórico teria atribuído ao termo.

Dentre os autores representativos que se pode observar na década de 50

discutindo o tema está, sem dúvidas, Rudolf Bultmann. Em 1958, em sua Teologia do

Novo Testamento, o autor alemão dialoga com o modelo thĕiŏs anēr, mas resiste em

usá-lo aplicado a Jesus. Antes, entende que o conceito de "Filho de Deus" está acima

do de homem divino e que havia compreensão helenística sobre essa categoria

(BULTMANN, 1985:131). O curioso é que ele reconhece a presença desses thĕîŏi

ándrĕs como reconhecidos no mundo helenístico, mas a eles Jesus não está associado.

Em outro momento, a tese thĕiŏs anēr é refutada quando Bultmann aborda a

questão do Espírito (pnĕyma). Aqui, ele descreve o homem divino como um

indivíduo de natureza mais elevada que os mortais comuns e detentor de uma

misteriosa potência divina que o faz capaz de conhecimento e ações prodigiosas. Mas,

logo em seguida complementa que essa potência que está no homem divino é o poder

(dýnamis), não o Espírito (pnĕyma) que está no cristianismo primitivo

(BULTMANN, 1984:156).

Na mesma seção, mais adiante, quando a personagem tratada é Paulo, o autor

alemão adverte que o apóstolo não conhecia tal expressão de thĕiŏs anēr e, inclusive,

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50

relega ao material apócrifo tal designação (BULTMANN, 1984:161). Em todos os

casos Bultmann rebate a presença do modelo de homens divinos helenísticos

argumentando em favor de maiores e mais poderosos títulos em contexto

paleocristão. Fato marcante, contudo, é a necessidade de resposta por parte do autor

alemão ao modelo, o que sugere que o "perigo" de se associar as personagens

paleocristãs ao ambiente mágico é algo a se preocupar.

Sistematizando esses dados, o que se vê na década de 50 não é tanto um

esforço em se produzir estudos sobre o modelo thĕiŏs anēr, mas, sim, (i) retirar Jesus

do contexto em que outras personagens extraordinárias estão inseridas. A idéia de se

retirar Jesus desse cenário tem um não-dito interessante: (ii) não se notou

preocupação dentre os autores dessa época em refutar o modelo thĕiŏs anēr ou,

alternativamente, propor outro. Por meio de estudos periféricos ao tema deste

trabalho, ou seja, nos pilares da discussão, outros estudos foram desenvolvidos no

intuito de demolir todo o bloco conceitual até então consolidado.

Em conjunto, esses dois dados serão os que, certamente, motivaram estudos

consistentes e seminais na consolidação ainda maior do modelo thĕiŏs anēr entre os

anos 60 e 70. Embora os anos 70 conhecessem, também em número, maiores

formulações teóricas - a favor e contra - sobre o modelo, não há como negar que

foram nos anos 60 que sedimentaram com mais força o conceito de thĕiŏs anēr. Esse

fato é comprovado pela historiografia que discute o tema: dentre os trabalhos que

revivem a história do modelo sobre os homens divinos, alguns poucos vão ao século

XIX ou início do XX, mas, absolutamente, todos eles recuam, no mínimo até os

textos de Hans Dieter Betz (1961 e 1968).

5. À maturidade? Anos 60 e a reafirmação do modelo thĕiŏs anēr

Cerca de 30 anos de modelo thĕiŏs anēr em curso nos debates acadêmicos e

círculos intelectuais, seja quando o tema é proposto em torno das experiências

místicas mediterrânicas, seja quando os paleocristianismos estão em paralelo,

interagindo com elas, a idade adulta do modelo aparece como afirmação e maturação

do conceito. É nesse cenário que primeiro se observa uma tentativa consistente de se

abordar o modelo thĕiŏs anēr desde o criticado trabalho de Bieler, em 1935. É

exatamente no curso dos anos 60 que dois trabalhos decisivos de Betz irão refundar

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51

os estudos sobre homens divinos. A tese geral e fundamental é que a ocorrência da

expressão não pode ser decisiva para a questão da existência do conceito, pois o

conceito pode ser expresso através de variadas formas (BETZ, 1961:102; 1968:117).

Assim, em seu estudo sobre Luciano de Samósata, de 1961, Betz dedica

metade do livro rumo a uma detalhada, porém clara apresentação do material em

Luciano e das histórias de milagres freqüentemente associadas a ele. Nota-se,

vivamente, que o horizonte de investigação do autor alemão nesse primeiro momento

é a análise documental. Betz pretende colher evidências documentais precisas e

organizar um paradigma seguro de histórias de milagres a fim de situar Luciano como

um homem divino. O que está por trás desse procedimento é um cuidadoso manejo

heurístico pautado no pressuposto de que a aretologia é ponto de partida para se

advogar a pertença de uma personagem ao modelo thĕiŏs anēr.

Em 1963, Schulz desenvolve um estudo bastante interessante, se o que se tem

no horizonte é a maturidade da pesquisa em torno do modelo dos homens divinos32

.

Segundo o intelectual alemão, nem o título "Filho do Homem", muito menos o de

"Messias", aplicados a Jesus, têm uma história pregressa. Ao lado disso e como

sustentação, defendeu que o farisaísmo e Qumran nunca tiverem por pretensão a

produção de material histórico. Muito menos Paulo, Q e o Evangelho de Tomé, pois

esses últimos apresentaram os ditos de Jesus sem uma moldura histórica.

Dessa forma, para Schulz, teria sido o autor de Marcos a introduzir a moldura

histórica à narrativa sobre a vida de Jesus tomando por base as vidas de homens

divinos helenísticos. Essa proposta de Schulz está muito alinhada com aquela de

Dibelius (ver o item I.3 deste texto, inclusive com a citação em DIBELIUS, 1984:99),

pois o que se pressupõe no desenho dessa teoria é o fato de que a aretologia

desempenha papel decisivo na percepção desses homens divinos.

Para o entendimento do presente trabalho, compreende-se que a proposta do

autor alemão contribui na maturação do conceito, mas não é decisiva, pois aceitar a

idéia de que a aretologia é central na configuração do modelo thĕiŏs anēr é apenas

parte do que se pretende encaminhar como conclusão deste estudo. Ainda, Morton

Smith observa (SMITH, 1971:194), que há muito material pseudo-histórico na

literatura apocalíptica que está presente nos documentos analisados por Schulz.

32 As informações tomadas de Schulz estão em diálogo com Smith (1971:194).

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52

No ano seguinte, em 1964, Dieter Georgi em seu estudo sobre os adversários

de Paulo em II Coríntios assumiu o conceito de homem divino quando analisou os

oponentes ao apóstolo. Segundo o autor alemão, eles eram judeus helenistas que

viajavam como missionários itinerantes e reivindicavam ser servos de Cristo

pregando em nome de Deus seguindo a tradição de Moisés. Georgi argumenta que a

característica principal desses adversários de Paulo era a realização de milagres. A

partir da coleta e exposição de materiais, a percepção em Georgi é que a realização de

milagres e a reivindicação de serem servos de Deus seriam suficientes para a

assunção do conceito de homens divinos.

Ainda na mesma linha da exposição documental e coleta de material

vinculado a aretologia para tentativa de elaboração de um modelo thĕiŏs anēr, em

1965, Moses Hadas e Morton Smith discutem a formação e percepção dos homens

divinos na antiguidade. Hadas traça o desenvolvimento do conceito de herói,

especialmente a transição desde o heroísmo físico e moral para aquele moral e

espiritual, Smith busca determinar o contexto histórico das aretologias que serviram

de base para a construção do modelo de homem divino como um único padrão

(SMITH, 1971:195).

À medida que os debates em torno das figuras de homens divinos avançam, a

questão da cristologia de Jesus retorna aos meios de disputas intelectuais. É o caso de

dois artigos de 1965: Keck (1965:341-58) e Luz (1965:9-30). No que diz respeito à

questão de se atribuir uma cristologia de homem divino para Jesus, Keck entende que

o importante é que, na formulação do conceito, não exista conflito com os judeus (ou

cultura judaica) e apenas conexões periféricas com a mensagem de Jesus em sua

configuração original sejam feitas. A presença, então, que essa cristologia de thĕiŏs

anēr desempenha é um papel quase imperceptível no quadro geral de uma fé em

Jesus.

Talvez essa percepção de Keck faça ecoar a necessidade de se manter Jesus

atrelado ao Judaísmo de seu tempo. Momentos antes da II Grande Guerra e alguns

anos depois, viu-se aparecer na Europa movimentos intelectuais fortemente anti-

judaicos, em que a construção de Jesus passava, necessariamente, por percebê-lo

como um ariano33

. Sendo assim, uma parte dos intelectuais engajados no estudo da

33 Sobre a leitura de Jesus como ariano, o anti-judáismo europeu, os impactos nos estudos de Novo

Testamento e a formatação de um cristianismo ocidental com fortes elementos racializados, cf.

Page 53: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

53

vida de Jesus estava atento a toda e qualquer teoria que não tivesse em conta uma

pertença radical de Jesus ao Judaísmo. O modelo thĕiŏs anēr nunca conheceu uma

fase de pesquisa em que o horizonte de suas conclusões fosse o anti-judaísmo ou a

percepção de um Jesus ariano, mas, por ser controverso em sua aproximação entre

paleocristianismos e magia, alertava a quem desse modelo discordasse para essa

possibilidade.

Já para Luz, ao analisar as fontes e vida de Jesus, a cristologia thĕiŏs anēr foi

superada. A questão de um homem divino na qualidade de sábio/professor e operador

de milagres ou apenas um desses tipos, tendo o outro como subtipo, só é relevante

para cenários em que Jesus é apresentado como professor e operador de milagres ao

mesmo tempo, o que, segundo Luz, não se observa. Seguindo a mesma linha de

análise dos dois autores precedentes, em 1967, Schille defendeu que as histórias de

milagres dos evangelhos não foram influenciadas pelo padrão ou conceito de homem

divino, antes, vieram de um movimento missionário galileu que já estava em curso no

tempo de Jesus.

A esses últimos estudos, em 1968, reagiu Hans Betz. O autor alemão propôs

uma cristologia de homem divino a Jesus em relação com outras cristologias

neotestamentárias, descrevendo-as, indicando passagens nas quais podem ser

encontradas e mostrando como os evangelistas, de diferentes modos, adaptaram essas

passagens para seus próprios pontos de vista. Dessa maneira, se Betz está correto,

segue que a cristologia do homem divino era mais originária, e depois disseminada,

para a composição de qualquer Evangelho existente.

O modelo dessa cristologia proposta por Betz está assentado na constatação de

que muitas cristologias diferentes aparecem no Novo Testamento (BETZ, 1968:114-

15). Assim sendo, o autor alemão parte do pressuposto de historicidade de Jesus

enunciado por Käsemann (p.114ss.) para encontrar uma base comum do que ele

entende ser possível recuperar através do Jesus histórico. As diferentes cristologias do

Novo Testamento se contradizem, isso é explicado pelos distintos propósitos que

cada autor do cânon neotestamentário tiveram ao compor seus retratos de Jesus

(p.115.130).

Com essa questão no horizonte de investigação, Betz identifica três

cristologias diferentes no material do Novo Testamento: (i) a cristologia do "Filho do

CHEVITARESE, 2013:21-46; 2011:31-40; 2006:212-30, inclusive com extensa bibliografia nesses

textos para o estudo da questão.

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Homem" da tradição evangélica; (ii) o conceito de um redentor pré-existente visto na

tradição pré, paulina e pós paulina (dêutero-paulinas), epístolas pastorais, Hebreus,

cartas Católicas e aquela do Apocalipse; e, por fim: (iii) a cristologia do Logos

joanino. O que Betz vê nessas três etapas é, justamente, a base comum do modelo

helenístico thĕiŏs anēr (p.116).

Descrevendo o que entende como modelo thĕiŏs anēr, Betz afirma que o

conceito deve ser visto de acordo com uma antropologia helenística, em que o

homem não é meramente um ser. Antes, oscila entre duas possibilidades de natureza:

é divino (thĕiŏn) e animal (thĕriŏdes). Assim, somente o homem divino é homem no

sentido pleno, logo, essa humanidade se torna a epifania do divino. Ele é

excepcionalmente repleto de dons e extraordinário em todos os sentidos. Ele detém,

assim, uma sabedoria revelada e poder divino (dýnamis) para realizar milagres. Por

fim, acrescenta o intelectual alemão, o homem divino não é idêntico à divindade, mas

pode ser visto como uma "mistura entre o humano e divino", "um ser elevado" ou

"superhumano" (p.116).

É essa a antropologia que constitui o conceito. Mas, conforme entendimento

de Betz, dependendo do contexto histórico-religioso, o conceito de homem divino

está aberto para consideráveis variações. Betz reconhece que o termo não é aplicado a

Jesus no Novo Testamento, mas como esses homens divinos na antiguidade podem

receber diferentes títulos, entende que foi uma variação (ou variações) do conceito

helenístico que esteve por trás das narrativas construídas pelos autores dos

evangelhos. Essa variação (ou variações) dependeu de cada autor que se valeu dela.

Isso é sustentado pelos diferentes títulos que Jesus recebe na documentação

neotestamentária. Por conseguinte, é necessário que cada camada mais antiga dos

evangelhos seja considerada para que se perceba o padrão comum em que se encontra

o modelo thĕiŏs anēr.

A lista dessas camadas, segmentadas conforme a datação, é exposta (pp.117-

20) e tida, por Betz, como as mais antigas que remeteriam ao modelo de homem

divino tomada pelos evangelistas e demais autores do Novo Testamento. Com isso, a

cristologia thĕiŏs anēr pode ser vista nas histórias de milagres, diálogos controversos,

lendas, paixão e ressurreição; também, a autoridade como professor, o impacto de

poder de sua morte e seu chamado para os discípulos (pp.120-24). Portanto, Marcos

(assim como Q e Paulo) não rejeitou a cristologia do homem divino, mas a

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55

reinterpretou a partir do kerygma da cruz e ressurreição de Jesus e desenvolveu um

conceito mais sofisticado e complexo de thĕiŏs anēr do que o que tinha disponível em

suas fontes, tendo Jesus como "Filho de Deus".

Para o caso de Mateus, defende Betz, o desenvolvimento do conceito se deu

outra forma. O título que mais predomina no segundo evangelista é o de kyrios, mas

reforçado também por "christos", "Filho de Deus", "profeta", "professor", "Filho de

Davi" e "Filho do Homem". O mais fundamental, no entanto, é o de Messias, ou seja,

o Filho de Davi esperado por Israel. Em todo o Evangelho, Jesus é apresentado como

o cumprimento da promessa do Antigo Testamento.

A compreensão de Mateus sobre Jesus, nas camadas mais antigas, revela a

concepção de um homem divino - com isso se aproxima de Marcos - mas difere

daquele evangelista quando compreende o nazareno como mais divinizado que

Marcos e portador de uma sabedoria sobre as coisas futuras mais intensa do que

aquele primeiro evangelista. Em síntese: Jesus em Mateus é menos humano do que

em Marcos, mas seu ponto de partida, se visto nas camadas e tradições pré-sinóticas

mais antigas, a base thĕiŏs anēr é a mesma dos dois autores (pp.125-26).

Para o caso de Lucas, o modelo thĕiŏs anēr é modificado tendo em vista uma

história universal da salvação. O autor de Lucas divide a história em dois períodos: (i)

a Lei e os Profetas como válidos até João, o Batista; e, (ii) a instauração do "Reino de

Deus" a partir de Jesus. Assim, o homem divino Jesus de Lucas é diferente de Deus,

mas atua em nome dele, inclusive, após sua ascensão, através do Espírito, continua a

agir por meio do "nome de Jesus Cristo" e dos apóstolos que, de acordo com Atos,

atuam como thĕiŏi anthōpŏi (p.126).

João, por sua vez, incluindo aí também as cartas, de forma programática insere

o hino do Logos em sua abertura do retrato que desenha de Jesus. Com isso, combina

o homem divino (expresso nas suas fontes mais antigas por meio de vários títulos

honoríficos) com os dois conceitos do hino: o mediador da criação pré-existente e o

revelador do Logos. O que parece ser excludente, em João, é combinado.

De um lado há o conceito pré-existente de Filho de Deus e Logos que deixa

para trás sua divindade, se torna homem, é crucificado, ressuscita dos mortos e, então

se torna o kyrios. Por outro lado, é Jesus de Nazaré, o histórico, humano, que é

deificado. Do ponto de vista cristológico, essa combinação opera de duas maneiras:

(i) o Jesus histórico, humano (homem divino), deificado é a quem os não crentes

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(judeus) não acreditam e (ii) o revelador do Logos e criador pré-existente estão

encarnados em Jesus. (pp.127-28).

Diante dessas análises, Betz resume o que entende como papel do modelo

thĕiŏs anēr no desenvolvimento das cristologias do Novo Testamento (pp.128-130).

O autor reconhece que Jesus não se via como um homem divino de acordo com o

padrão helenístico, mas muitas de suas características o aproximam desse modelo. E

mais, sobre o Jesus histórico e seu posterior desenvolvimento, entende que o

sofrimento e crucificação não se enquadrariam no modelo de homem divino antigo.

Assim, tanto a paixão quanto crucificação seriam catástrofes, por isso esses eventos

causaram tanto debate entre seus seguidores e outros que desse assunto se ocuparam.

Essa é a razão pela qual as camadas mais antigas sobre Jesus decidiram não retratá-lo

como crucificado, mas como um thĕiŏs anēr.

Essas fontes mais antigas que serviram de base para os autores

neotestamentários, precisaram ser revistas. Assim, Paulo e os evangelistas apontaram

que o elemento central do kerygma deveria ser a morte e ressurreição de Jesus. Essa

concepção faria com que os aderente a Jesus participassem de sua salvação. Apenas

Lucas, nesse sentido, continua por não entender que a morte de Jesus foi um evento

salvífico (Deus o ressuscitou!), mas toda a história universal de salvação do homem,

concebida por Deus, que desempenha o papel de redenção. Desta maneira, Jesus

instaurou o "Reino de Deus", ensinou a vivência como homem divino e delegou aos

seus seguidores o mesmo comportamento de thĕiŏi anthōpŏi. Com esse

procedimento, assegura Betz, Lucas manteve a concepção cristológica inicial de suas

fontes (pp.130-31).

O modelo thĕiŏs anēr desenvolvido por Betz, como já mencionado, refundou

os estudos sobre o tema. Mais do que isso: colocou impactantes questões para a

compreensão do Jesus Histórico e suas recepções. Quando advoga que as camadas

mais antigas dos textos neotestamentários recepcionaram Jesus como um homem

divino helenístico34

e, através de suas próprias intenções, cada autor modificou esse

34 "Embora ele não se visse como tal" (BETZ, 1968:128). O fato de Jesus não parecer se ver como

homem divino pouco muda o cenário no contexto do estudo dos homens divinos. Na medida em que, do ponto de vista arqueológico nada restou sobre o Jesus histórico, a pessoa em si, e o material mais

abundante sobre a pessoa, em si, para conhecer ou buscar Jesus são as recepções de materiais

canônicos ou dêutero-canônicos em torno da figura do nazareno, decorre que a imagem que se fará

dele virá acompanhada dessas percepções. Além do que, o modelo thĕiŏs anēr é muito mais um

construto moderno de análise e classificação de figuras extraordinárias da antiguidade do que algo

formulado e criteriosamente exposto nas fontes antigas.

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material mais tardio, além de apontar para a diversidade (e contradições!) de

compreensões sobre a pessoa de Jesus no período de produção neotestamentária,

sugere que dois tipos distintos de aderir e seguir Jesus tiveram lugar no século I e.c..

Esse dois modelos estão assentados nas seguintes questões, ou seja, aderir e

seguir Jesus: (i) é estar, já, além da morte e participando do "Reino de Deus" como

realização histórica do plano de salvação universal idealizado e cumprido por Deus

agindo como thĕiŏi anthōpŏi (humanos divinos); ou (ii) participar do sofrimento e

morte de Jesus, como entendem Marcos, Mateus, João e a idéia paulina de imitar

Jesus? (BETZ, 1968:130).

Essa questão fulcral não ficará sem resposta ou retaliações. O modelo de

homem divino construído por Betz ocupará muitos e muitos estudos nos anos

subseqüentes. Na década de 60 do século XX o que se observa são esforços no

sentido de se consolidar a figura do homem divino dando muita ênfase às coleções de

milagres a eles associados e/ou à centralidade das aretologias na composição do

conceito-padrão. Esses estudos, daí por diante, servirão de base para que se entenda a

presença definitiva dos homens divinos na antiguidade e/ou motivarão novos

trabalhos no esforço de ampliá-los, servir-se deles ou contestá-los.

Porém, o que permanece como mais sólido nesse período histórico é a

retomada da discussão sobre cristologia baseada no modelo thĕiŏs anēr e de que

forma ela moldou o Novo Testamento. Assim, ver-se-á muito menos em cena estudos

que tomem como ponto de partida as experiências místicas mediterrânicas isoladas

das experiências bíblicas, por assim dizer. Mesmo quando esses estudos

comparecerem serão muito mais para entender a aproximação do modelo thĕiŏs anēr

com as histórias e personagens bíblicas, do que para se analisar outras realidades

históricas não paleocristãs ou judaicas.

6. O grande fôlego dos anos 70: entre a crítica e a permanência do modelo

thĕiŏs anēr

Ainda como desdobramentos do que se estudava nos anos 60, autores que se

dispuseram a analisar os homens divinos ou histórias variadas de feitos

extraordinários de personalidades antigas, acabaram por aprofundar ou criticar

profundamente o modelo thĕiŏs anēr. Se o que se deseja é apontar uma época em que

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o modelo sofreu mais críticas, sem dúvidas, esses são os trabalhos desenvolvidos nos

anos 70 do século XX. Foi nessa década em que os estudiosos oscilaram entre duas

posições básicas: (i) aqueles que aprofundaram e ampliaram as discussões, seja para

formular novos conceitos, seja para sedimentar os precedentes; e, (ii) aqueles que

negaram completamente seu emprego em contexto de paleocristianismos ou

buscaram a desconstrução completa do modelo como um todo.

No fim dos anos 60 e com publicação em 1970, os volumes III a V da História

dos Judeus na Babilônia, de Neusner, contribuíram para o primeiro estudo

consistente e estendido de se perceber o Rabbi judaico como homem divino e a

taumaturgia rabínica. Desde o século XIX essas histórias talmúdicas foram coletadas,

mas foi mesmo essa obra de Neusner que primeiro explorou a figura do Rabbi com

um papel social, em seu ambiente, como um centro de poder sobrenatural (SMITH,

1971:195).

A década de 70 viu nascer o trabalho que mais desenvolveu, detalhou e

solidificou a categoria thĕiŏs anēr como base para o Evangelho marcano, em

particular. Trata-se de dois textos escritos por Paul Achtemeier (1970 e 1972) no

Journal of Biblical Literature (Revista de Literatura Bíblica). No primeiro deles

(1970), Achtemeier lança bases documentais, em Marcos, para, a seguir, em seu texto

de 1972 analisar com detalhes como as histórias que serviram de fonte para Marcos

servem como provas da percepção antiga de Jesus como homem divino.

A proposta, então, de Achtemeier no primeiro artigo (1970) é resumida nas

primeiras linhas de seu segundo trabalho (1972:198):

"O background mais provável a partir do qual as catenae35

foram

formadas deve ser encontrado nas tradições do judaísmo (-helenístico) sobre Moisés; os grupos que formaram as catenae

extraíram dessas tradições caminhos similares àquelas em que os

oponentes a Paulo em Corinto atraíram sobre eles; as catenae foram

formadas separadamente como parte da liturgia que celebrava uma

Eucaristia epifânica baseada no pão repartido com o qei/oj avnh,r,

Jesus, durante sua carreira e depois de sua ressurreição; Marcos

35 Uma possível tradução seria "correntes", ou seja, como empregado no artigo: "correntes de milagres". A intenção de Achtemeier ao usar esse termo está explicada em seu artigo de 1970:266,

nota 2. Trata-se de uma discussão terminológica que se iniciou em Smith (1965 e 1971) e avança até

hoje rumo às tentativas de analisar aretologias ou narrativas que contenham milagres. Achtemeier

busca termos que já não tenham sido utilizados na bibliografia de então para designiar os modelos que

quer analisar. Assim, ele usa "ciclo" para designar a seqüência de material narrativo sobre atos de Jesus

e "correntes de milagres" para se referir à fonte específica de Marcos que ele pretende isolar.

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buscou superar aquela visão sobre Jesus e a Eucaristia por meio do

qual ele usou as catenae na sua própria narrativa36

."

De imediato, é preciso reconhecer o trabalho genial do autor norte-americano:

trata-se de reconstruir, paralelamente à metodologia utilizada pela teoria da Fonte Q,

uma possível origem para as histórias de milagres que são usadas por Marcos em seu

Evangelho. Assim, enuncia duas séries de milagres que teriam sido retrabalhadas por

Marcos em seu texto. Seriam elas que explicariam um ambiente narrativo originário

de Jesus como homem divino. Esse procedimento é um eco evidente do que Betz

propusera anteriormente em sua formulação de Jesus como um homem divino. (Cf.

ACHTEMEIER, 1972:205, nota 41).

Os dois artigos do autor norte-americano, inéditos e brilhantes, conheceram

outras discussões por parte do próprio autor e respostas acadêmicas de peso. Crossan

(1994:349ss.) aceita a idéia geral de Achtemeier, mas entende que ao invés de duas

narrativas, na verdade, seriam cinco, recebidas, na mesma ordem, por Marcos e João.

Por sua vez, Cornelli (2001:87-92) ora se aproxima de Achtemeier, ora se distancia,

mas procede, a partir da idéia geral de Achtemeir e do refinamento da teoria por parte

de Crossan, rumo à classificação desse material evangélico como aretologia, portanto

com conteúdo propriamente dito de homem divino.

Por fim, convém mencionar que Achtemeier aceita o conceito geral de homem

de homem divino proposto por Bieler e faz poucos acréscimos. Ele o faz indicando

bibliografia que discute e aprofunda o tema, mas não parece preocupado em elaborar

um modelo explicativo próprio ou, sequer, se deter nele. Antes, assume na inteireza a

conceituação proposta por Bieler (1935, cf, acima) e os desdobramentos propostos

por Betz (1968, cf. acima).

Entre os dois artigos de Achtemeier, em 1971, Morton Smith apresenta uma

discussão bastante densa (embora não exaustiva, cf. SMITH, 1971:188, nota 94)

sobre aretologia em relação com homens divinos e evangelhos. O historiador ocupa

boa parte de seu texto buscando uma definição para aretologia. Embora discuta e

enuncie as idéias correntes do que venha a ser o conceito da palavra grega, em

36 Tradução de: "The most likely background out of which the catenae were formed is to be found in

(hellenistic-) Jewish traditions about Moses; the groups which formed the catenae drew from those

traditions in ways similar to those in which Paul's opponents in Corinth drew upon them; the catenae

were formed as part of a liturgy which celebrated an epiphanic Eucharist based on breadb roken with

the qei/oj avnh,r, Jesus, during his careera nd after his resur-rection; and Mark sought to overcome that

view of Jesus and of the Eucharist by the way in which he used the catenae in his own narrative."

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momento nenhum propõe uma definição tácita da palavra. Antes, prefere assumir que

os feitos extraordinários de homens na antiguidade possuem variadas formas e

distintas recepções.

Para Smith, as coleções de milagres advindas da antiguidade são poucas

(1971:177, nota 27) e mais, não parecem ser, como coleções, muito similares

literariamente aos evangelhos canônicos (1971:178-79). Nesse sentido, o historiador

reabilita Justino para identificar, nos textos bíblicos, um modelo diferente: herói. Esse

modelo distinto às aretologias também dão conta de homens divinos, mas não negam

a existência das aretologias, apenas limitam os exemplos que ele encontra para

homens divinos (1971:179). Um bom exemplo desse enunciado é dado quando

Orígenes, respondendo a Celso, não diz que homens divinos não existem, mas apenas

diz que esses tais homens não fizeram nada, se comparado ao que fizeram os profetas

do Antigo Testamento (SMITH, 1971:180).

Para o caso dos homens divinos, Smith reconhece pelo menos cinco modelos:

heróis, deuses que tiveram aventuras como homens, pessoas que aparentavam ser

deuses, semi-deuses que se tornaram deuses e homens que se viam e se consideravam

como deuses (SMITH 1971: 181-82). Mais adiante, o autor norte-americano sustenta

essa variedade de modelos defendendo que, por trás dessa "ralé" de homens divinos

ou deificados, está a noção grega de que homens sendo como deuses, possuindo

virtudes humanas em alto nível e dons extraordinários dialoga com o que os homens

desejavam sobretudo: imortalidade e juventude eterna (SMITH, 1971:184).

A complicação que essas noções trazem quando se tem o estudo do Novo

Testamento por objetivo é que o modelo de homens divinos era complexo e instável,

sendo, assim, difícil de estabelecer um padrão único para classificação (SMITH,

1971:184). Contextualizando esse dado, Smith sugere que o desenvolvimento da

figura de homem divino no mundo greco-romano estava em diálogo com a

imaginação de mundo e desejos que esses homens aspiravam (SMITH, 1971:186),

isto é, torna-se volátil para qualquer tentativa de padrão.

Por fim, Smith ainda lembra algo que ficou patente em todo seu texto, ou seja,

as dificuldades no aproximar-se das fontes para estudo, o que contribuiria, também,

para o complexo de modelos não unívocos (SMITH, 1971:187-88). O que se segue,

na segunda metade do texto é um vigoroso estado atual das discussões bibliográficas

nesse tema até então. Desse seminal trabalho, mais à frente, este texto indicará como

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partilha, quase que integralmente, das posições de Smith no sentido de se analisar o

modelo thĕiŏs anēr na antiguidade.

Ainda no ano de 1971, Peter Brown, se posicionou relativamente contrário ao

estudo dos homens divinos, inclusive, questionando o modelo. Para ele, o interesse

nessas figuras de espetaculares performances taumatúrgicas teve como conseqüência

a negligência do background social em que estavam inseridos. Segundo Brown, os

taumaturgos ganharam seus poderes através de um árduo trabalho pelas suas próprias

respectivas localidades.

Esses taumaturgos locais, por assim dizer, constituíram um tipo particular, que

deve ser diferenciado dos primitivos thĕîŏi ándrĕs helenísticos, cuja fonte de poder

foi a sabedoria ocultista. Outra diferença é que os primeiros (homens divinos

helenísticos) vieram de fora (por meio de patronagem – instituições), ao passo que os

taumaturgos locais foram desenvolvidos dentro de sua própria sociedade. A tese de

Brown foi desconstruída, pois em 1976, D. Georgi provou que o conceito de homem

divino (thĕiŏs anēr ou os thĕîŏi ándrĕs) teve sua origem no interior das diferentes

póleis gregas.

E, mais ainda, levando-se em conta os aspectos sócio-econômicos de ambiente

urbanizados, o autor alemão situa a ideologia por trás do conceito de homem divino

como um decisivo componente de coesão social nos centros urbanizados helenísticos.

Assim, não faz sentido que homens divinos sejam externos aos espaços de cidades,

mas que sejam próprios deles para que a atração para esses espaços seja eficaz e a

estrutura se mantenha (GEORGI, 1976:34).

Permanecendo (ou voltando a ele) ainda no ano de 1971, Kuhn entende que o

conceito de homem divino pode e deve ser aplicado à cristologia marcana, consoante

Betz (1968, cf. análise acima). Para ele, o critério decisivo no modelo thĕiŏs anēr é a

elevada importância que os milagres desempenham na narrativa evangélica no sentido

de se situar Jesus e seus propósitos. A ele, se contrapõe Otto Betz (1972), pois o

modelo thĕiŏs anēr não é empregado na literatura paleocristã. Essa posição de Betz é

também articulada com a de Martitz (1972).

No mesmo ano de 1972, Tiede desenvolve uma tipologia de análise dos

homens divinos centrada em uma preocupação mais criteriosa. O critério de

autenticação de status divino. Através de análise diacrônica, segundo ele, é possível

demonstrar a existência de dois critérios para classificar um homem divino: (1)

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virtude moral e sabedoria; (2) feitos ou eventos miraculosos. Existiriam, portanto,

esses dois tipos de thĕîŏi ándrĕs que devem ser percebidos distintamente: (1) tipo

filosófico, recuperado desde Sócrates; (2) operador de milagres divinos.

A discussão de Tiede conhece sua origem na abordagem da obra de Plutarco -

De Genio Socratis. Daí então, Teocrito e Pilimnis disputam sobre qual seria a

grandeza de Sócrates. Teocrito atribui ao filósofo uma natureza divina, pois estaria

guiado por seu daímon. Mas, Pilimnis, por sua vez, nega esse aspecto em Sócrates,

afirmando que suas ações dependiam de sua sabedoria moral e rigor de sua correção e

julgamento (CORNELLI, 2001:30).

A dicotomia apresentada por Tiede, nesse aspecto parece referir-se mais a

uma disputa de memória quanto a quem foi Sócrates do que a uma percepção

conceitual do que é ser um homem divino. Considera-se, neste trabalho, essa crítica

ao modelo de Tiede, tendo em vista o contexto histórico dessas disputas no que diz

respeito a uma virada racionalista na Grécia Antiga por oposição à magia (cf. a

fundamentação dessa crítica aqui proposta em DODDS, 1988:194-222).

Quanto a esse modelo, partindo dessas duas variantes para os thĕîŏi ándrĕs,

Cornelli (2001:30), endossa essa proposta de Tiede e afirma que o autor luterano

apresenta duas formas literárias distintas de homem divino. Assim, de acordo com

Cornelli (2001:30), "enquanto Marcos utilizaria uma tradição que desenha Jesus

como milagreiro divino, por ouro lado Mateus e Lucas iriam mais em direção de um

ideal de sabedoria filosófica". Essa posição, para o encaminhamento que este trabalho

quer oferecer em direção à análise dos homens divinos, parece inadequada se o que se

toma por referência são as discussões presentes em Betz (1968:130, cf. item I.5

acima).

Porém, antes mesmo de assumir na sua inteireza a proposta de Tiede, o autor

brasileiro evidencia as lacunas abundantes no texto do autor norte-americano: no que

diz respeito ao seu teor metodológico, acompanha Smith (ver CORNELLI,

2001:31.35), quanto à análise de homens divinos antigos, segue o irlandês Doods (ver

CORNELLI, 2001:36) e, no que diz respeito à definição geral de homem divino, não

acompanha e, ainda, critica Meier (ver CORNELLI, 2001:45).

No que concerne à obra de Tiede, pouco resta. O esforço do autor luterano em

categorizar as figuras de homens divinos de acordo com um critério dicotomizado

parte da crítica fundamental que faz ao modelo de Bieler (1935, ver item I.3 acima),

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em que afirma que a definição do autor alemão é por demais generalizante. A tese de

Tiede é que, se empregada a definição de Bieler, as tantas características postas pelo

autor alemão ao homem divino típico, seria difícil encontrar algum herói da

Antiguidade a quem não se pudesse atribuir, no mínimo, várias dessas qualidades, e é

talvez igualmente difícil encontrar uma descrição de alguém, anterior ao século III

e.c. que confira a seus heróis a lista completa dessas características (TEIEDE,

1972:246).

Avançando ao ano de 1973, Howard Kee publica um artigo sobre aretologia e

Evangelho em que faz duras críticas ao que Smith havia produzido em 1965 (cf. item

I.5 acima) e em 1971 (cf. neste mesmo item, acima). Esse artigo está inserido em uma

série de debates com (ou contra!) Smith, assim, esquematicamente:

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Trabalho - Autor (ano) Conteúdo

Heróis e Deuses - Smith e Moses (1965)37

Hadas traça o desenvolvimento do conceito de herói, especialmente a transição desde o heroísmo

físico e moral para aquele moral e espiritual, Smith, por sua vez, busca determinar o contexto

histórico das aretologias que serviram de base para a construção do modelo de homem divino como

um único padrão (SMITH, 1971:195). Hipótese de que o gênero literário evangelho é uma adaptação

de uma forma literária conhecida como aretologia (KEE, 1973:402).

Paper oral na Society of Biblical Literature

- Kee (1970)38

Intelectuais que trabalham no campo da retórica antiga buscam na cultura literária Greco-Romana

um protótipo para o Evangelho como forma literária (KEE, 1973:402).

Prolegomena - Smith (1971)39

"O termo 'forma literária' é ambíguo..." (p.195); "[para a aretologia] não há definição formal precisa

definida, mas é determinada pelo seu conteúdo" (p.196); "A partir de quais strata de material

tradicional o elemento aretológico dos evangelhos veio? Aqui está uma discussão focada em

Marcos" (p.197). "Nessa consideração, pode ser considerado útil seguir Kee [cita a obra de Kee,

1970, aqui mencionada na nota imediatamente abaixo] em que distingue diferentes tipos de histórias

de milagres..." (198).

Aretologia - Kee (1973)40

Marcos utilizou pequenas formas retóricas que conheceu e as adaptou em termos de perceber a

preocupação escatológica como consumação de eventos salvíficos de Deus; atestar o poder de Deus

através de atos miraculosos; e, a escolha de Deus por alguns de seus agentes vem trazer uma Nova

37 Conferir a apresentação desse trabalho no item I.5 acima e a respectiva obra na bibliografia ao final deste texto. 38 Recupera-se esse trabalho - não publicado como artigo - em quatro momentos: (i) o livro de Kee, H. Jesus in History. New York, 1970 (com a observação de que

essa obra já havia sido publicada por Kee antes da apresentação desse paper, portanto, a apresentação oral é posterior, e como resultado, do livro). Reeditado em

1995; (ii) nos comentários de Smith (1971:195-198); (iii) na reafirmação das suas posições em Kee (1973:402-22); e, finalmente, em Smith (1978:335-45),

reeditado em 1996 por Cohen (1996:37-8). O debate também foi lembrado por Cornelli (2001:86), mas sem mencionar, nesse contexto, o quarto trabalho aqui

listado. Porém, ele o conhecia, pois o analisa em outras partes do texto (CORNELLI, 2001: 31, nota 46; 35, nota 62). Acrescenta-se, ainda, nesse contexto, a

resposta de Smith a Tiede (SMITH, 1996:37-8). 39 Conferir a apresentação desse trabalho neste mesmo item I.6, acima e a respectiva obra na bibliografia ao final deste texto. 40 A apresentação dessa obra comparece no presente quadro e a referência bibliográfica ao final deste trabalho.

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Era à terra (1973:416.422).

History of divine Man - Smith (1978)41

Smith quer alertar os leitores contra Kee sobre pressuposições que nunca fez (cita Kee, 1973:402):

(1) havia, no tempo helenístico-romano uma forma literária fixa chamada aretologia - isso é falso.

Smith diz que nunca afirmou isso; (2) desde que se perceba que histórias de milagres são

ingredientes essenciais nas aretologias, a presença de histórias de milagres é um sinal da presença da

aretologia - "totalmente absurda", são as palavras de Smith (1996:37); (3) a intenção da tradição de

milagres evangélicos é para representar Jesus como homem divino. Entre outros impropérios, Smith

diz que o artigo de Kee contém tantos não-fatos e non-sequiturs (ou seja: "isso e aquilo") que nem

suas realizações são objetivas e nem merecem refutações.

Tabela 6: O tenso debate entre Smith e Kee - aretologia como forma literária?

O que está em jogo nesse debate acalorado, e Cornelli (2001:85-86) tem razão, é a presença da aretologia como possível

antecedente à composição dos Evangelhos. Cornelli entende que sim, a aretologia está por trás dos evangelhos (2001:85) e, inclusive

assume os sinóticos como aretologias (2001:87-92). Nesse aspecto, o presente texto se afasta do autor brasileiro, pois (i) os Evangelhos

contêm narrativas de milagres, mas não somente. Seguindo Betz (1968, ver item I.5 acima) eles adaptam prováveis histórias de milagres

pré-marcas e, inclusive, pré-Q para seus respectivos propósitos e, também, trazem elementos teológicos que aretologias nem sempre

trazem; e mais, (ii) Smith é categórico e, por vezes, repetitivo em dizer que não é possível classificar aretologias como gênero literário

formal e estável. Assim, o mais adequado parece ser seguir Betz, quando assume que há formas literárias antigas aos propósitos

evangélicos e Crossan (ver este mesmo item acima, quando da articulação de suas idéias com as de Achtemeier) que as segmenta e

demonstra como elas foram adaptadas nos evangelhos.

41 A versão consultada neste texto é aquela de 1996, reabilitada por Cohen (ver bibliografia, ao final deste texto, sob o nome de Smith).

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Os encaminhamentos à discussão de Smith e Kee precisam ser observados no

que diz respeito a assunção de que Jesus seria um homem divino. Esse é o tema que

perpassa toda a crítica de meados dos anos 60, década de 70 e as vindouras até o

presente momento, nos anos 2000.

Ora, se o que move tantos "teólogos em missão" a se ocupar desse tema a respeito do

modelo thĕiŏs anēr é justamente a repulsa em associar Jesus ao campo mágico

mediterrânico, a discussão se a aretologia é um gênero ou forma literária por trás dos

evangelhos e/ou se a aretologia, por si mesma, é a base para construção dos modelos

de homens divinos antigos, torna-se central! É justamente essa a forma em que este

trabalho percebe a imensa maioria dos debates bibliográficos aqui presentes.

Como exemplos (outros de muitos aqui já mencionados e demais que virão)

dessa discussão acima mencionada e o teor que as perpassa, dois textos comparecem

nessa discussão: Schenke (1974) e Meeks (1976). Ambos os autores entendem que

Marcos, por meio de minimizar as histórias de milagres, enfatiza a figura de Jesus

como um professor de elevada sabedoria (SCHENKE, 1974:105), por isso, a

categoria thĕiŏs anēr ou sua cristologia, tornam-se insatisfatórias para explicar o

contexto e vida originários de Jesus (MEEKS, 1976:43).

Essas afirmações carecem de demonstração heurística em seus textos,

configuram-se mais como protestos veementes de se perceber Jesus associado ao

campo mágico do que um estudo minucioso das fontes para tal conclusão. Isso fica

evidente quando se percebe que os textos são construídos com base em citações de

fontes antigas (cuidadosa ou intencionalmente selecionadas em um período não muito

próximo ao ambiente de produção dos evangelhos, por exemplo) sem articulação com

uma bibliografia crítica aos mesmos documentos que mencionam.

Ou esses autores se entendem como fontes primárias e, portanto não dialogam

com a bibliografia especializada, ou preferem que suas análises sejam embasadas por

suas intuições na interpretação de dados documentais sem o diálogo com modelos já

em curso para análise de homens divinos, o que por si só já constituem um problema,

pos sequer elaboram modelos heurísticos de se abordar os homens divinos. Essas

lacunas nos textos dos dois intelectuais, entretanto, não serão observadas nas duas

últimas análises que se seguirão aqui como conclusão das produções bibliográficas

dos anos 70.

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É o caso do primeiro deles, Charles Talbert que, em 1975 articula sua análise

do modelo thĕiŏs anēr com o conceito de imortais na antiguidade mediterrânica.

Segundo Talbert, o critério decisivo para a definição dos homens divinos é a posição

no que diz respeito ao binômio: moralidade-eternidade. Assim, distingue dois tipos de

thĕîŏi ándrĕs: (i) aquele que mostra/revela presença divina em sua vida histórica; e,

(ii) um grupo mais seleto que, alcançando imortalidade, se distingue dos que são

eternos (TALBERT, 1975:429-32).

Nesse caso, Jesus aparece como um homem divino por excelência, pois as

realizações históricas que desenvolveu e no contexto social em que se inseriu,

transformou radicalmente sua experiência terrena e dos demais que dele se

aproximaram. De igual forma, a narrativa marcana do túmulo vazio é um não-dito,

segundo Talbert, que revela a quem a conheceu que ele foi mesmo imortal

(TALBERT, 1975:432-36). Talbert, por vezes, vale-se de modelos de homens divinos

já sistematizados na documentação como, por exemplo, do de Tiede (ver exposição

acima) para integrar a sua própria percepção do que entende em seu próprio esquema

explicativo (TALBERT, 1975:431).

Concluindo as reflexões dos anos 70, de forma consistente, aparece, em 1977,

o trabalho de Carl Holladay. Através de um percurso em textos de Josefo, Fílon e

Artapano, um interessante caminho é feito pelo autor para evidenciar o uso da

categoria thĕiŏs anēr no Judaísmo Helenístico como possível background para uma

cristologia thĕiŏs anēr nos paleocristianismos. A conclusão de Holladay é negativa

sobre esse aspecto. De imediato, a hipótese thĕiŏs anēr é analisada (1977:15-18) e o

autor norte-americano identifica a tese geral de que homem divino era uma figura

reconhecível no mundo helênico.

Ainda, segundo essa tese geral, essas figuras eram conhecidas por tais

características "divinas", como realização de milagres, pronunciamentos oraculares,

habilidade retórica, e assim por diante. Ele também percebeu, no curso da revisão

bibliográfica que operou, que o Judaísmo da diáspora, como resultado do impacto da

helenização, reinterpretou heróis bíblicos como Moisés e os patriarcas, conformando-

os, assim, com a imagem thĕiŏs anēr.

Dessa maneira, conforme enunciaram os autores anteriores a Holladay, o

alicerce é assentado no background cultural do cristianismo para o surgimento de

uma cristologia tipicamente thĕiŏs anēr em que Jesus e os apóstolos por vezes são

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apresentados como homens divinos de acordo com esse suposto tipo ideal existente.

Essas são as conclusões de Holladay quando as apresenta de uma forma muito sucinta

em seu primeiro capítulo ("O Debate thĕiŏs anēr", 1977:1-45). Convém mencionar,

ainda, que nessa análise de Holladay, ocupa papel mais central os pontos de vista dos

estudiosos que defendem a apropriação do "homem divino" como construto do

judaísmo helenístico.

Para refutar essas noções iniciais, Holladay dedica um capítulo a cada autor

antigo para debater se o modelo thĕiŏs anēr é mesmo decisivo para se perceber a

recepção dele em autores paleocristãos e para além deles (Josefo: 1977:47-102; Fílon:

1977:103-98; e Artapano: 1977:199-232). O que está em jogo para o autor norte-

americano é em que medida esses autores judeus pretendiam deificar seus heróis

bíblicos e acaba por enunciar que há muita reserva nesse sentido por parte dos

documentos antigos.

Na última seção de seu texto, Holladay (1977:233-42) resume o que concluiu

de seu estudo inferindo que a expressão thĕiŏs anēr, independentemente do sentido

que tenha no mundo helenístico, não quer dizer "operador de milagres" em suas

fontes, no particular, e no século I em especial. Com isso, defende que o modelo

thĕiŏs anēr é uma categoria "inutilizável para a discussão cristológica"

(HOLLADAY, 1977:241). No que diz respeito ao estudo desenvolvido por Holladay,

alguns aspectos precisam ser ressaltados.

O modelo thĕiŏs anēr não é frontalmente analisado. As discussões que

desenvolve no centro de suas reflexões dizem muito mais respeito ao grau de

helenização da Palestina - justamente para tentar refutar o modelo thĕiŏs anēr como

presente naquela cultura - (HOLAADAY, 1977:6.15-17.237-38) do que um estudo

sobre o impacto que tal fenômeno tenha causado. O olhar dele está muito mais

voltado para as particularidades da interação cultural e menos para os impactos que

tenham causado.

A escolha dos autores como fontes do estudo parece lhe conceder indulgência

para enunciar o significado que o modelo thĕiŏs anēr tenha em todo o século I e.c..

No livro mencionado, em momento algum uma discussão, por exemplo, sobre as

fontes dos evangelhos compareceram, a despeito de extensa bibliografia existente

sobre o assunto. Com isso, o valor de Holladay está em como disseca as fontes

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escolhidas, mas, por outro lado, peca pelos silêncios, não ditos e ausência de

confrontação conceitual do modelo a que se propõe rotular como "inutilizável".

Os anos 70 do século XX foram marcantes no estudo do modelo thĕiŏs anēr.

Um fôlego profundo refinou, sedimentou ou tentou sepultar o uso da categoria como

válida para os contextos paleocristãos. Segue-se que muita discussão ficou por fazer.

Mais perguntas do que respostas foram postas, se o que se tem no horizonte é uma

definição mais precisa e positiva para o modelo thĕiŏs anēr.

7. Reação e contra-reação dos anos 80

Os anos 80 do século XX foram pródigos em mostrar como as críticas ao

modelo thĕiŏs anēr podem ser radicalmente aceitas, rejeitadas ou (re) formuladas.

Aceitar e (re) formular, pois Hans Betz (1983) volta ao cenário dos debates, 15 anos

depois para aprofundar, sistematizar, provar e buscar consolidação do que entende ser

uma categoria decisiva para se entender as experiências místicas mediterrânicas. E,

ainda, Gail Corrington (1986) formula um modelo de análise para thĕiŏs anēr

marcadamente ligado à literatura popular e uma convincente metodologia para

unificar a tão esparsa categoria thĕiŏs anēr.

Rejeitar, pois nessa década diversos intelectuais de projeção no cenário

acadêmico propuseram críticas contundentes ao modelo thĕiŏs anēr. De novo, a

rejeição em perceber os paleocristianismos como integrados e partícipes das

dimensões mágicas e míticas foi central nessa não aceitação dos homens divinos

antigos, pelo menos não quando o tema era Jesus. No entanto, concernente a essas

críticas, nenhum modelo alternativo consistente foi proposto nesse sentido.

Foi o caso, em 1980, de Eugene Galagher. De imediato, o próprio título da

dissertação já indica a posição que o autor quer assumir: Divine Man or Magician?

Celsus and Origin on Jesus. Como já mencionado anteriormente (ver item I.2 deste

texto), Orígenes é responsável por defender que a nenhum homem é facultado o poder

ou direito de realizar feitos extraordinários, somente ao Filho de Deus. A resposta

extremamente racionalista que endereça a Celso é absolutamente impactante no

século IV e.c..

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Galagher, portanto, assumindo o papel de Orígenes, elege o seu Celso: ―sua

estratégia [de Betz] interpretativa ecoa aquela de seus predecessores de um modo

perturbador‖ (GALAGHER, 1980:15). Nesse cenário, Hans Betz, como um legítimo

Celso, não fica sozinho, as palavras do Orígenes contemporâneo se voltam, também,

contra Helmut Koester. Para Galagher, nem Betz, muito menos Koester, entenderam

a proposta de Bieler, por isso perpetraram um anacronismo histórico no estudo do

thĕiŏs anēr. (GALAGHER, 1980:16).

As críticas não ficam apenas nessas sutilezas:

"Não existia concepção nativa de homem divino, pelo menos não no sentido em que esse termo tem sido usado recentemente. Não

havia dispositivo ou padrão pré-existente, mas preferencialmente a

tentativa de situar, seja lá por que propósito, um candidato específico dentro de um espectro de possíveis avaliações."

(GALAGHER, 1980:174).

A razão é que "não havia acordo unânime quanto a uma única ‗imagem‘ de

sociedade, atividade humana e natureza divina" (GALAGHER, 1980:178). Isso

dizendo respeito a uma leitura cultural mais ampla de que esses homens divinos

estavam disseminados e amplamente aceitos na bacia mediterrânica. Sequer, para o

autor, havia "conexão entre homem divino, aretalogia e propaganda religiosa". Pois,

continua ele, "não é possível isolar propaganda religiosa da apologia, pois o cenário

missionário na Antiguidade Tardia era muito complexo." (GALAGHER, 1980:173).

Assim, desferindo os últimos golpes fatais no modelo, Galagher afirma que os

homens divinos podem ser encontrados "em largo alcance de textos, não

especificamente em formas biográficas." (GALAGHER, 1980:174). Portanto, sinaliza

Galagher, que o critério decisivo para a classificação de thĕiŏs anēr deve ser

encontrado em um nível ético: para o homem ser um thĕiŏs anēr deve ser um bom

homem e comunicar coisas boas aos homens, mas o critério para o que é bom pode

variar radicalmente (GALAGHER, 1980:175).

As propostas de Galagher quanto ao modelo thĕiŏs anēr e seu debate com

autores precedentes se assemelham muito com a postura de Celso quando ataca

duramente o cristianismo. Com um raso entendimento das propostas de Betz (1968),

por exemplo, e pouco demonstrando consistência em suas refutações metodológicas

(quando faz!) é um trabalho que precisa de pouca refutação.

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No ano seguinte, Kingsbury talvez impactado pelas palavras de Galagher e

revisando a bibliografia que discute o modelo thĕiŏs anēr por trás da narrativa

marcana, coloca a pergunta se, de fato, investigar a aretologia como precedente a

Marcos é uma era que já se encerrou. Aliando-se àqueles "teólogos em missão"

carregou firmemente o estandarte programático que via no modelo thĕiŏs anēr uma

categoria extremamente inútil para o estudo da cristologia marcana.

A essa segunda onda de "pseudo-ortodoxia", Betz (1983) responde com uma

extensa e sólida exposição documental que sustentaria o modelo iniciado nos anos 60.

Os argumentos, bem como provas desse caminho serão mais adiante expostos

quando, no último capítulo deste trabalho, as escolhas e modelo próprios da presente

pesquisa serão sistematizados.

Em 1984 outro trabalho de fôlego é publicado na Alemanha e Estados Unidos,

em edição conjunta, em que Klaus Berger se posiciona no que diz respeito ao debates

do modelo thĕiŏs anēr aplicado, especialmente, a Marcos. Em dois artigos do ANRW

(1984) Berger rejeita o modelo quando aplicado a Marcos (BERGER (a), 1984:1031-

1032; BERGER (b), 1984:1831-1835). Para o público brasileiro, uma edição

resumida desse artigo do ANRW (um artigo aqui citado, pois o outro é apenas o

registro de documentação antiga trabalhada no primeiro texto) é publicada em 1998

(BERGER (c), 1998) traduzido do original alemão também de 1984.

Para o que é relevante neste trabalho, Berger elenca algumas questões iniciais:

"evangelho" é um gênero literário? Mas, quais suas especificidades? Que relações

conceituais, como gênero, guarda com a literatura sincrônica (e até mesmo

diacrônica) da época em que foi produzido? Para o autor alemão, "evangelho" não é

"o" gênero literário, assim, como uma categoria, mas precisa ser repensada e reescrita

sua especificidade na qualidade de modelo de estudo (BERGER (c), 1998:321).

Quanto ao tratamento das fontes, os argumentos de Berger pulverizam a ideia

de classificação rigorosa de grandes modelos explicativos para enquadrar esse ou

aquele gênero literário, essa ou aquela categoria "comum". No que diz respeito a

"coleções ou narrativas de milagres", (BERGER (c), 1998:276-280) elas não servem

como um gênero específico para análise heurística de documentação. Por esse

motivo, "o conceito do homem divino é totalmente problemático do ponto de vista do

método e inútil para a determinação do gênero literário dos Evangelhos" (BERGER

(c), 1998:313).

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São afirmações um tanto contraditórias que postula o autor alemão. Se, por

um lado, ele desconstrói o gênero evangelho e, inclusive, até diz que eles devem

muito mais ser percebidos como um gênero biográfico helenístico do que algo

próprio ou particular dos paleocristianismos, por outro, afirma que, por ser de difícil

enquadramento e categorização, o modelo thĕiŏs anēr não ajuda na determinação do

gênero literário dos evangelhos.

Ora, seria exatamente esse o argumento que sustentaria, do ponto de vista do

método, a existência do modelo em diálogo com os textos evangélicos. Se os

esquemas rígidos e generalizantes de classificação devem ser pulverizados e formas

literárias (como indica o título do livro) menores e mais articuladas com os estilos

helenísticos de escrita que circulavam na bacia mediterrânica devem ser identificadas,

porque abrir mão de uma forma literária que serviu de base para a construção de Jesus

como homem divino em Marcos?

A resposta a essa pergunta não foi evidenciada pelo autor alemão. Talvez

porque ele julgasse um risco o conceito de aretologia ou não tivesse percebido bem,

ainda, com incluir as tais "narrativas de milagres" que optou por abrir mão. A

pergunta anterior ficou mesmo sem resposta. Cornelli (2001:89, nota 218) percebeu o

mesmo desconforto e optou por seguir Berger no que diz respeito a não perder o lugar

de classificação das "narrativas de milagres evangélicas".

Mas, em contrapartida, o autor brasileiro é mais ousado e assume que as

narrativas evangélicas de milagres contaram com a forma mais antiga da aretologia

em sua pré-configuração original, por isso mesmo entende que, por meio da

aretologia, de alguma forma presente nos evangelhos canônicos, pode-se falar de

Jesus como um homem divino. Uma vez que, segundo Cornelli (2001:89) "falar de

aretologia é falar de homem divino".

Não será tanto por essa conclusão que este trabalho prosseguirá em seus

próximos capítulos. Aqui, entende-se que o estudo de formas literárias não quer,

necessariamente, provar a dependência entre textos semelhantes ("biografias"

presentes em Plutarco e Evangelhos, por exemplo) ou que um foi "influenciado" por

outro. Mas, quer sinalizar que a presença de diferentes formas literárias circulando na

bacia mediterrânica pode ter servido de base para a composição dos textos do Novo

Testamento.

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Uma vez que os autores bíblicos não estavam isolados, mas interagindo com

seu universo cultural mediterrânico helenístico usaram (prova de dependência) ou

moldaram suas narrativas (ou seja, compartilhavam técnicas de escrita de seus

contemporâneos ou técnicas presentes em seu universo cultural) de acordo com as

formas de escrita que tinham conhecimento. É, sobretudo, um processo de interação

cultural que determinaria ou explicaria a intercambialidade das histórias de homens

divinos presentes em textos de diferentes espaços e tempos (aqui já está o indicativo

preliminar das discussões teóricas e "factuais" a partir das quais o último capítulo

deste trabalho será construído).

Como última obra de destaque a ser mencionada nos anos 80 aparece a de

Gail Corrington que, em 1986, lançou um estudo em que buscava analisar as origens

e funções do modelo thĕiŏs anēr nas religiões populares mediterrânicas. De acordo

com a pesquisadora, está para além de qualquer dúvida que pregadores de salvação

itinerantes que autenticavam suas mensagens através de poderes miraculosos

abundavam no século I e.c. na bacia mediterrânica (CORRINGTON, 1986:159-81).

Corrington está segura em afirmar que os paralelos entre essas figuras e o

material neotestamentário devem ser vistos nas fontes que evidenciam a crença

popular nesse fenômeno a partir de buscas em fontes documentais de caráter menos

"oficial", como Josefo e Fílon, por exemplo. Assim, em Artápano, "[em seu retrato

sobre Moisés] encontramos o retrato popular de um herói nacional judeu que combina

virtude filosófica com poderes maravilhosos: resumindo, um thĕiŏs anēr

(CORRINGTON, 1986:143).

Para o caso de Jesus, consoante Betz (1968), Corrington afirma que se podem

encontrar traços de thĕiŏs anēr no próprio entendimento que o nazareno tinha de si

mesmo como mensageiro escatológico e alguém que era representante de Deus e

inspirado pelo Espírito de Deus na realização de milagres e curas (CORRINGTON,

1986:128).

Incluindo, ainda, a literatura Hermética, os Papiros Mágicos Gregos (pp.110-

30) e os evangelhos canônicos (p.35) Corrington estabelece bases consistentes para

apontar a presença dos homens divinos na antiguidade. O que permite a intelectual

norte-america conceber tal fenômeno e unificar a difusa categoria thĕiŏs anēr sob

uma única rubrica é o conceito de poder (dýnamis).

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A escolha conceitual que efetuou - estabelecendo o conceito de poder

(dýnamis) como eixo referencial para conceber a figura de homem divino - fez com

que o trabalho dela fosse comparado ao de Wetter (ver I.3 acima). Essa comparação

é operada por Pilgaard. Segundo o autor dinamarquês, tomando a pesquisa de Wetter

como referência, Corrington assimila o conceito advindo do comparativismo de

história das religiões de início do século XX e entende que é essa a idéia que permite

a autora norte-americana traçar o conceito de thĕiŏs anēr para diferentes períodos e

espaços em torno de figuras de destaque (PILGAARD, 1997:113).

Essa é uma afirmação polêmica e merece discussão mais detalhada para se

chegar à melhor compreensão. Eis as três hipóteses:

(i) Pilgaard não entendeu a leitura do trabalho da norte-americana;

(ii) buscou um argumento para refutação da tese de Corrington e

aproximou-a de Wetter de maneira programática;

(iii) ele sequer leu o texto de Corrington.

Para cada hipótese listada há uma justificativa:

(i) Corrington nunca mencionou Wetter quando construiu seu próprio

entendimento sobre homens divinos. Na primeira parte do primeiro

capítulo do seu livro ela traça um status quaestionis do conceito thĕiŏs

anēr, menciona Wetter, mas, na segunda metade do primeiro capítulo, em

que constrói seu próprio conceito de homem divino, Wetter não é

reclamado como fonte de inspiração conceitual.

(ii) o conceito de mana utilizado por Wetter nunca foi discutido,

apropriado ou utilizado por Corrington. Ao associar mana - conceito já

refutado como sendo imperialista e preconceituoso no estudo de religiões

não cristãs, especialmente as de matriz africana ou com cunho mágico por

excelência (segundo definição de um tipo de antropologia e etnografia

modernas que visam à diminuição e estigmatização de grupos religiosos

de terras colonizadas pelos europeus) - Pilgaard praticamente desqualifica

toda a obra de Corrington. É um argumento de autoridade. Como se o que

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fosse dito estivesse assentado nas seguintes bases: "partindo de um

conceito como esse, essa obra não deve ser levada a sério"...

(iii) sequer é mencionado pela autora norte-americana, em seu texto, a

palavra mana! Não existe no texto de Corrington o verbete mana! Ou

Pilgaard não o leu ou, ao fazê-lo, equivocou-se na interpretação.

O modelo desenvolvido por Corrington, bem como sua aplicação, será mais

explorado nos capítulos seguintes, pois como é o caso do material de Hans Betz, este

trabalho encontra as bases fundamentais para o tratamento que quer dar à análise

documental que irá proceder e vinculação dos paleocristianismos em diálogo com o

modelo thĕiŏs anēr em contexto de século I e.c.. Porém, de todo o exposto até aqui,

no que diz respeito às reflexões de Corrington, o que chama mais atenção é o

tratamento que o estudo da norte-americana recebeu pela bibliografia especializada ao

longo dos anos 90 e 2000.

Como trabalho consistente e sólido, foi bastante citado tanto nas revisões

bibliográficas, quanto em algumas discussões a partir do início dos anos 90. O que

mais impressiona é que o modelo nunca foi refutado. Sequer uma mínima seção

dedicada ao trabalho dela foi exposta no sentido de endossá-la ou refutá-la. No

entanto, os não-ditos é que deixaram, com eloqüência, a evidência de imposturas

intelectuais observadas na bibliografia especializada. Rapidamente, dois exemplos

merecem ser expostos: Koskenniemi (1998) e Blackburn (2008).

O primeiro caso: (i) vê-se no artigo de Koskenniemi (1998:458-59) uma

crítica veemente ao uso do termo mana para estudo dos homens divinos, por tratar-se

de um modelo "Imperialista" e "Ocidental" em que se percebem as religiosidades de

outros povos como primitivas. Segundo o finlandês, o emprego desse termo deve ser

refutado por evocar um darwinismo social maléfico e nefasto nos estudos de história

das experiências religiosas. Cornelli concorda com o autor finlandês e ainda

acrescenta observações pertinentes sobre estudos de magia que têm apresentado forte

teor machista e epistemologicamente positivista "por excluir do horizonte de

experiência religiosa tanto o irracional quanto o feminino." (CORNELLI, 2000:44).

Ambos os autores aqui apresentam uma justa crítica ao modelo de estudos

sobre experiências mágicas a partir de um viés distorcido por certa ciência praticada

nos pós-iluminismo. No entanto, no que se refere a Koskenniemi, um não dito é

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extremamente explícito, qual seja, se ele elabora uma crítica tal como fez, porque não

ofereceu ao leitor o modelo alternativo de Corrington à concepção de poder (dýnamis,

da autora norte-americana e não mana, de Wetter) no estudo e compreensão dos

homens divinos?

Isso se torna assombroso se levado em conta que um artigo de 12 páginas e

com 66 notas de rodapé, com exaustiva revisão bibliográfica do tema, não mencione a

obra de Corrington. A opção visível foi rotular intelectuais da década de 10 do século

XX como darwinistas sociais, mas nunca entrar na discussão sobre o conceito, em si,

de thĕiŏs anēr; E mais: porque não enfrentar o problema de definição sobre homens

divinos sob a perspectiva de poder (dýnamis), ao invés de simplesmente descartá-lo

em contexto de paleocristianismos? O modelo proposto por Corrington parece dar

conta desse "detalhe".

Avançando ao segundo exemplo: (ii) Blackburn (2008:7775) cita o trabalho

de Corrington em sua brevíssima bibliografia quando comenta o verbete thĕiŏs anēr

no dicionário sobre o Jesus Histórico. Há que se sublinhar que o exíguo espaço para

exposição do verbete permite menção apenas ao que de mais significativo já se

produziu sobre o tema até então: 2008, último registro bibliográfico encontrado por

este trabalho sobre o tema. Ao longo das páginas da exposição de Blackburn, nunca a

obra de Corrington é mencionada com intenção de análise ou crítica.

Sequer para desqualificar ou apontar conclusões do estudo da autora norte-

americana existe algum espaço. Esse fato é ainda mais estranho se o que se considera

é que todas as obras mencionadas na bibliografia final são comentadas no verbete,

exceto a de Corrington. Parece ficar claro, portanto, que ao longo dos debates

bibliográficos, quando se associa, por meio de provas documentais e modelos

epistemológicos consistentes, os paleocristianismos ao campo da magia

mediterrânica, as críticas oscilam entre aspectos periféricos ao modelo

epistemológico proposto, sem nunca se atingir o núcleo da argumentação ou, o que se

vê é o simples silêncio e negligência quanto ao assunto.

Outros exemplos são numerosos a esse respeito, mas, pela economia da tese,

adotar-se-á o procedimento de expor, como tem sido feito até aqui, as posições dos

autores que discutiram a temática e deixar que as escolhas por esse trabalho na

adoção da análise do tema também anunciem seus não-ditos e caminhos pelos quais

irá trilhar no estudo do thĕiŏs anēr que, como se sabe, está longe de ser o mais

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adequado, perfeito e acabado modelo de estudo, mas apenas uma contribuição

heurística no campo das experiências místicas mediterrânicas antigas.

8. Anos 90 e 2000: crepúsculo ou alvorecer de uma nova onda?

O último recorte bibliográfico deste trabalho irá cotejar contribuições mais

recentes ao que se tem proposto em torno da figura dos thĕîŏi ándrĕs. Assim, sob a

adjetivação, em forma de pergunta, se é o fim do estudo do modelo ou novos

caminhos que virão, pretende-se discutir de que forma o modelo tem sido

desacreditado ou reabilitado no sentido de se compreender a presença dos homens

divinos na antiguidade ou que relação guardava com os paleocristianismos em sua

conformação originária.

De imediato, o leitor poderia supor, que o modelo e as relações com os

paleocristianismos seria definitivamente sepultado tendo em vista as primeiras

exposições sobre o assunto já entre os anos 1991-4. Trata-se de três vigorosas críticas

ao uso de thĕiŏs anēr como modelo explicativo em contexto de paleocristianismos.

São os casos de Blackburn (1991), Pilgaard (1997, original de 92) e Meier (1996,

original de 94).

Dentre eles, Blackburn, talvez ainda hoje (BLACKBURN, 1992, 2006 e

2008), seja um dos mais críticos ao estudo dos homens divinos em contextos de

paleocristianismos. Em seu livro inicial (1991), já na introdução ao primeiro capítulo,

propõe um exame bibliográfico do termo thĕiŏs anēr e o articula com as tradições de

milagres marcanas (BLACKBURN, 1991:1ss.). Sua posição é bastante clara, pois ao

retomar Gallagher (p. 1, nota 1) dá o tom de como entende a questão. A seguir (p.3),

retorna a Bultmann para localizar onde e quando o modelo thĕiŏs anēr se articulou

com os estudos de cristologia marcana.

Dos autores que menciona em seu primeiro capítulo para se inserir no debate,

todas as menções que faz de levantamento bibliográfico incluem autores críticos ao

modelo. É essa sustentação que encontra para refutar a tese dos homens divinos na

antiguidade (BLACKBURN, 1991:4-10). As distinções que opera em seu texto são

muito mais teológicas do que históricas, pois a todo o momento faz questão de

ressaltar que quaisquer atos de Jesus são diferentes dos demais de seu entorno.

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78

O autor norte-americano também examinou fontes desde Homero a Filostrato

sobre thĕiŏs anēr a quem milagres são atribuídos. Vários paralelos em vários níveis

podem ser traçados entre os operadores de milagres presentes nessas fontes, tanto

quanto ao seu status (seres divinos), quanto aos seus tipos de ações miraculosas

(exorcismo, cura, ressuscitar mortos, poder sobre os elementos naturais, provisão

miraculosa de alimento, predição, conhecimento sobrenatural e atividade pós morte)

(BLACKBURN, 1991:92-96).

Quanto ao gênero do material, há poucos pré-cristãos e muitos pós-cristãos

que têm muita semelhança com as narrativas de milagres presentes nos Evangelhos

(BLACKBURN, 1991:92). Porém, segundo o autor, a posição e atividade miraculosa

dessas personagens variam muito, logo não podem ser agrupadas em uma única

categoria. Assim, nem os thĕîŏi ándrĕs podem ser agrupados sob um único critério,

mas devem ser divididos em sub tipos a partir de um critério relevante e rigoroso.

O que faltou, no entanto, para essa análise, foi exatamente a formulação de um

modelo ou tipologia a partir da qual a classificação que julgou ser necessária fosse

realizada. O mais perto que chega desse aspecto é a pergunta se Marcos realmente

assimilou Jesus como um thĕiŏs anēr (BLACKBURN, 1991:96).

Tanto nessa obra, quanto nas subseqüentes (1992, 2006 e 2008): todos artigos

em dicionários, em que a ele coube o verbete thĕiŏs anēr, o procedimento segue os

parâmetros acima assinalados. Torna-se impressionante o fato desse autor ter-se

tornado uma referência nas discussões recentes a respeito dos homens divinos, pois:

(i) nunca formulou um modelo para explicar a presença dos thĕîŏi ándrĕs na

antiguidade, ou até mesmo um paradigma que refutasse tal presença;

(ii) o verbete que apresenta nos diferentes dicionários mencionados, pouca ou

quase nenhuma atenção é dada àqueles autores que defendem o modelo thĕiŏs

anēr, antes, são apresentados e, imediatamente, após serem citados,

argumentos de demais autores são apresentados, nos termos acima descritos,

para "camuflar" as teorias de intelectuais que se valem do referido modelo;

(iii) decorrente da segunda: dicionários devem ter um caráter elucidativo ou,

no mínimo, informativo nos termos de uma pesquisa. Não é o que se encontra

nos trabalhos de Blackburn. São discursos programáticos no sentido de,

praticamente, imobilizar a pesquisa de incautos que iniciam a busca por meio

de tais verbetes.

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79

Assim, como um "teólogo em missão", Blackburn contribui para a extinção da

pesquisa em torno dos homens divinos na antiguidade. Sequer pode-se esperar um

teor diferente se somente autores não vinculados aos paleocristianismos fossem

estudados pelo pesquisador norte-americano, pois a sua postura indica um diálogo

muito mais evidente com o que propunha círculos da teologia alemã em reação à

religionsgeschichtliche Schule (ver item I.3 acima):

[magia é] ―como uma ameaça constante de decadência e presente

em toda parte como uma perversão da religião e da fé cristã‖.42

(BROX, 1974, p. 157 apud AUNE, David Edward, 1980, p.

1507).

Ainda com a mesma postura da anterior, apareceu em 1997 uma publicação

norueguesa de Aage Pilgaard. O artigo é resultado de uma conferência proferida na

Faculdade de Teologia da Universidade de Aarhus, entre 08-10 de fevereiro de 1992.

Originalmente, esse material foi publicado, em 1995, pelos editores, na

gráfica/editora da própria universidade dinamarquesa. A versão aqui consultada é

outra edição de 1997, desta vez em Massachusetts. O tema do congresso foi "O Novo

Testamento e o Judaísmo Helenístico", celebrando o quinquagésimo aniversário do

estabelecimento da Teologia como uma Faculdade independente (BORGEN, 1997:

Prefácio).

No que diz respeito ao estudo da locução thĕiŏs anēr, Pilgaard adverte o

estudioso com as palavras de um antigo professor do departamento de teologia da

universidade de Aarhus, Johannes Munck:

"Não se pode, no entanto, ser muito cuidadoso quanto ao vocabulário científico se o que se quer é realmente continuar uma

investigação e alcançar resultados duradouros." (MUNCK,

1961:192 Apud PILGAARD, 1997:101);

Com essa abertura, Pilgaard já indicaria a que linha de pensamento estaria

vinculada sua proposta no estudo dos homens divinos. O que se segue é a melhor (ao

lado de SMITH, 1971) revisão bibliográfica com quem o presente trabalho dialogou

no início dos estudos sobre os homens divinos. O autor norueguês retoma o debate

para discutir a cristologia marcana de Jesus.

42 Tradução pessoal de: ―als ständig drohende Dekadenz und als überall anwesende Perversion von

Religion und auch von christlichem Glauben.‖

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80

Segundo ele, o emprego da expressão thĕiŏs anēr entre estudiosos bíblicos

tem mostrado claramente que essa locução tem sido vista como ponto focal para

problemas a respeito das relações entre Judaísmo e Helenismo (Judaísmo Helenístico

/ Judaísmo Palestino) e entre Judaísmo e Cristianismo Primitivo (Cristianismo

Judaico Palestino / Cristianismo Judaico Helenístico) (PILGAARD, 1997:102).

De maneira muito honesta o autor define o que entende por thĕiŏs anēr:

"designa um conceito bem claro personificado em muitas figuras

históricas do período Romano-Helenístico. O que é substancial no

conceito é que o homem pode participar na divindade e, essa qualidade divina, é demonstrada primariamente através de poderes

miraculosos e sabedoria extraordinária. Sociologicamente, homens,

classificados sob o conceito, eram pregadores itinerantes de salvação (ou eram assim pregados por meio de seus aderentes), um

status que era enfatizado pelo apelo (primeiramente) aos seus

poderes miraculosos. Os feitos miraculosos do homem divino eram comunicados através de um gênero específico, a aretalogia. O

conceito, bem como a atividade missionária foram tomadas pelo

Judaísmo Helenístico da Diáspora para defender e promover a

religião judaica. Assim, o judaísmo helenístico funcionou como meio de transferência do conceito para o Cristianismo Judaico

Helenístico43

". (PILGAARD, 1997:102).

Ainda na mesma página, o autor explicita como entende a questão e oferece

uma conclusão definitiva para a forma como entende a aproximação entre o conceito

de thĕiŏs anēr e sua relação com os paleocristianismos:

"Por meio desse conceito, uma cristologia específica se desenvolveu: a cristologia thĕiŏs anēr. Isso explica a origem de

coleções de histórias de milagres (=aretalogias) funcionando como

manuais para os missionários. Teologicamente, essa cristologia é classificada como theologia gloriae por oposição a theologia

crucis. Foi como o objetivo de combater ou modificar a theologia

gloriae em favor da theologia crucis que Marcos escreveu seu

43 Tradução pessoal de: designates a rather clear concept personified in several historical figures in the

Hellenistic-Roman period. The substantial element in the concept is that men can participate in

divinity, and that this divine quality is demonstrated primarily through miraculous power and

extraordinary wisdom. Sociologically, men, classified under the concept, were itinerant preachers of salvation, or they were by their adherents preached as divine saviours, a status which was emphasized

by appeal (primarily) to their miraculous power. The miraculous deeds of the divine men were

communicated through a specific genre, the aretalogy. The concept as well as the missionary activity

were taken over by Hellenistic Judaism in the Diaspora to defend and promote the Jewish religion.

Hellenistic Judaism so functioned as medium for the transfer of the concept to early Hellenistic Jewish

Christianity.

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81

Evangelho. Para atingir esse objetivo ele usou o segredo

messiânico44

." (PILGAARD, 1997:102).

A partir de sua tese evidenciada e como compreendeu a questão, o autor

norueguês corretamente explica que o conceito pode ser expresso através de variadas

expressões e termos. Então, prossegue, está claro que a expressão thĕiŏs anēr é um

termo científico que é usado para explicar e classificar certas figuras no mundo

antigo. Mas, entende que é preciso buscar uma definição melhor da expressão. Mais

importante, então, seria perguntar a carga semântica contida na expressão e buscar

uma definição mais precisa (PILGAARD, 1997:103).

A exposição de diversos autores aqui já apresentados é realizada, bem como

as críticas ao que postulam tais teóricos. Assim, convém destacar o que Pilgaard

entende do que expôs de obras seminais no estudo de homens divinos. Para ele, se a

antropologia é decisiva para o conceito de thĕiŏs anēr, conforme Betz (1968) como

pode haver uma variante do conceito quando aplicada ao Novo Testamento?

Pilgaard entende que a humanidade plena e dom divino já fazem parte do

pensamento judaico do Antigo Testamento. Assim, a tese de Betz explica o homem

divino sem levar em conta o pensamento judaico do Antigo Testamento. Logo, o fato

de existir fontes que não mencionem a expressão thĕiŏs anēr não parece ser tão

injustificável assim (PILGAARD, 1997:104). Dessa maneira, como termo científico,

deve ser definido de maneira que permita diferentes antropologias serem classificadas

como subtipos sob o tipo básico. Por isso, uma definição de thĕiŏs anēr como termo

científico para ser usado em estudos comparados de religiões, baseado em uma

antropologia específica não é muito útil (PILGAARD, 1997:105).

As críticas à proposta de Betz se baseiam no texto de 1968 e não nos textos de

1961 e 1983. Muito embora sejam citados (PILGAARD, 1997:103, nota 8), não há

qualquer discussão sobre as idéias contidas nesses dois outros trabalhos, a saber,

Betz, 1961 e 1983. Isso quer reforçar o pressuposto que o autor norueguês pouco se

importa com o que esteja para além da relação entre thĕiŏs anēr e paleocristianismos.

Especialmente, se o assunto for Jesus, pois é exatamente no texto de 1968 que Betz

aplica a proposta de homem divino a Jesus.

44 Tradução pessoal de: By means of this concept a specific christology developed, a theios aner

christology. This explains the origin of collections of miracle stories (= aretalogies) functioning as

handbooks for the missionaries. Theologically, this christology is classified as a theologia gloriae in

opposition to a theologia crucis. It was in order to combat or modify this theologia gloriae in favour of

a theologia crucis that Mark wrote his gospel. To achieve this goal he used the Messianic secret.

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Esse aspecto fica evidente quando Pilgaard explica que a definição de thĕiŏs

anēr envolve a relação entre humano e divino e vice versa. Nessa definição, o

humano ocupa um polo e o divino o oposto e a relação entre esses dois polos em

ambas as direções são decisivas para cada polo. A definição antropológica deve levar

em consideração a teologia subjacente: se ela é politeísta, panteísta, cosmológica ou

uma dinâmica monoteísta (PILGAARD, 1997:105). A última frase explica muito bem

que tipo de relações entre Jesus e cultura helenística preocupa o autor norueguês.

Com isso, Pilgaard oferece a leitura com a qual ele mais está de acordo. Ao

retomar Gallagher, uma precaução contra qualquer mal entendido pode ser resolvida.

Concordando com Gallagher, o norueguês entende que definir o conceito de thĕiŏs

anēr tem um aspecto ético que pontua para a ambigüidade dessas figuras. Um thĕiŏs

anēr precisa de veridicção: ele pode ser aceito ou desmascarado, por exemplo, como

um mago. Assim, Gallagher demonstrou que o uso tradicional da expressão thĕiŏs

anēr é um conceito bastante estreito (PILGAARD, 1997:106-7).

Betz e Gallagher ocupam papel de destaque na crítica ao modelo thĕiŏs anēr

estudado por Pilgaard. Tantos outros autores e suas críticas, de alguma maneira, já

foram aqui explicitadas. O que chama a atenção é que Pilgaard parece criterioso

demais na definição de termos ou critérios. Vale a indagação: todo esse rigor

conceitual estava na mente de escritores do século I e.c. (ou outros séculos) quando

da produção de textos para suas personagens?

E mais: as diferenças entre os variados homens divinos não seriam tributárias

de suas respectivas épocas e contextos em que seus materiais relacionados foram

produzidos? Se fossem comparadas as descrições de Jesus nos diferentes textos em

que ele é apresentado, será que seria possível enquadrá-lo em um único conceito ou

definição? Os diferentes títulos que recebe (Messias, Filho de Deus, Filho do

Homem, etc.) se enquadram em um tipo característico comum?

Se, para o caso de thĕiŏs anēr, as fontes são problemáticas e não há como

estabelecer uma categoria que englobe todas as personagens a quem se atribui o

título, como proceder a essa classificação no caso de Jesus, valendo-se dos

Evangelhos? Todas essas questões já foram respondidas pelas diversas pesquisas

sobre o Jesus Histórico, mas a retórica delas diante do trabalho de Pilgaard

funcionariam bem para revelar sua verve apologética e prosélita.

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Aliás, não se pode mencionar as duas últimas palavras do parágrafo anterior

sem que a lembrança do nome de John P. Meier compareça. A sua monumental obra

sobre o Jesus Histórico, original de 1994 e rapidamente traduzida em 1996 para o

português, com um belíssimo Imprimatur da Igreja Católica Apostólica Romana em

sua folha de rosto, vem acompanhada com uma pá de cal recheada no que tange ao

modelo thĕiŏs anēr.

Meier assim questiona o assunto:

"Que benefício um conceito fluido, destituído de qualquer rótulo

identificador especial, traz para uma discussão sobre o Jesus

Histórico ou a cristologia do Novo Testamento, não está bem claro para mim. Portanto, não creio que afixar o rótulo de 'homem divino'

a esse conceito multiforme e depois usá-la como instrumento

analítico para entender o Jesus da história seja de valia para os

objetivos de Um Judeu Marginal - ou, no caso, a qualquer busca pelo Jesus Histórico. Isto não quer dizer que outros estudiosos não

possam considerar o rótulo útil em outros contextos. Meu objetivo é

apenas explicar a meus leitores por que ele não é empregado nesta

obra." (MEIER, 1996:108).

O terceiro livro do segundo volume de sua obra magna, inclusive, traz o

subtítulo "milagre", em que toda e qualquer referência ao tema discutida, sem dúvida

alguma, traz uma especificidade para o caso de Jesus o que, como era de se esperar, o

torna único diante de quaisquer outras figuras que se tenha notícia de algum milagre a

ele (ela) (s) atribuído(s).

No mesmo ano, o autor finlandês Erkki Koskenniemi (1994) em um estudo

sobre Apolônio de Tiana em relação com a exegese neotestamentária, sentencia que

thĕiŏs anēr em nada contribui para os estudos de Novo Testamento a partir de quatro

eixos:

"Devido a opiniões diferentes, muitas questões histórico-religiosas ainda estão à espera de uma resposta clara. O objetivo deste

trabalho é definido mais adiante no decurso dos seguintes critérios:

(i) [thĕiŏs anēr] não é um termo e nenhuma categoria antiga, mas uma tentativa hipotética moderna para entender um fenômeno

antigo;

(ii) A expressão thĕiŏs anēr tem um significado amplo, que é apenas parcialmente consistente com a visão dos gregos sobre a

qual um homem pode ser adorado como divino.

(iii) O culto divino de um homem - um herói ou um governante -

não significa necessariamente que os milagres foram atribuídos a ele. Há duas questões diferentes [culto ao homem e o fato de terem

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sido atribuídos milagres a ele] que, pelo menos inicialmente, devem

ser consideradas individualmente, após décadas de confusão.

(iv) O mais significativo para a hipótese de thĕiŏs anēr é que são os

milagres a coisa mais importante no caso de Apolônio, desde o início. Portanto, a evidência de milagres pagãos deve ser verificada

na continuação da discussão em primeiro lugar. Aqui, é atribuída

uma tarefa particular à pesquisa sobre Apolônio45

"

(KOSKENNIEMI, 1994:99-100).

Quatro anos mais tarde, em 1998, publica ainda um artigo discutindo se

Apolônio de Tiana é mesmo um homem divino. A resposta positiva a essa questão,

auxilia o autor finlandês em separar definitivamente o ambiente dos

paleocristianismos originários àquele da magia nos quais os thĕîŏi ándrĕs

desempenhavam papel de destaque. As críticas por ele formuladas nesse artigo já

foram aqui sumarizadas (ver itens I.3 e I.7 deste texto).

Como contraponto a todas essas aproximações ao tema dos anos 90, em 2001,

o brasileiro Gabriele Cornelli propôs uma consistente tese de doutorado aproximando

Jesus de Apolônio de Tiana. Para além do fato de que a corajosa e robusta tese de

Cornelli discordou de muitos autores aqui recentemente expostos, o trabalho traz uma

novidade no estudo dos homens divinos: propõe o conceito de "equivocidade" (isso é,

oposto ao de "univocidade).

Com acurado estudo e crítica das fontes, de forma definitiva, Cornelli

estabelece comparações precisas entre Jesus e Apolônio, mais ainda, a difícil e

estreita relação entre as fontes: Filostrato e Evangelhos Sinóticos. A discussão

bibliográfica que propõe sobre a história do conceito thĕiŏs anēr está em estreito

diálogo com o que aqui foi exposto. O campo semântico da magia nos documentos

analisados também servirá de base para o que este trabalho entende como útil para a

45 Tradução pessoal de: "Wegen unterschiedlicher Meinungen warten viele religionsgeschichtliche

Fragen noch auf eine eindeutige Antwort. Die Aufgabe dieser Arbeit wird im weiteren Verlauf von

folgenden Gesichtspunkten festgelegt:

(i) theios aner (anthropos) ist kein fester Begriff und überhaupt keine antike Kategorie, sondern ein

moderner, hypothetischer Versuch, ein antikes Phänomen zu verstehen.

(ii) Das Wort theios aner hat eine weite Bedeutung, die sich nur teilweise mit der Anschauung der

Griechen deckt, dass ein Mensch göttlich verehrt werden konnte.

(iii) Die göttliche Verehrung eines Menschen - eines Heros oder eines Herrschers - bedeutet nicht

unbedingt, dass ihm Wunder zugeschrieben wurden. Es geht um zwei verschiedene Fragestellungen, die nach dem jahrzehntelang herrschenden Durcheinander wenigstens zunächst je für sich betrachtet

werden müssen.

(iv) Am bedeutsamsten für die theiosAN hypothese sind von Anfang an die Wundertäter, von denen

Apollonios der wichtigste ist. Darum muss in der Weiterführung der Diskussion zunächst die Evidenz

der heidnischen Wundertäter überprüft werden. Dabei fällt der Apollonios-Forschung eine besondere

Aufgabe zu."

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construção da presente tese, por essa razão, os paralelos entre aquele trabalho e este

serão, nos capítulos vindouros, amplamente expostos e explorados.

Por fim, ao lado de Blackburn (2008), Almeida (2008), em seu artigo

publicado na revista NEARCO, do Núcleo de Estudos da Antiguidade da

Universidade Estadual do Rio de Janeiro, perfaz o que de mais recente se encontra

nos debates acadêmicos sobre o tema dos homens divinos. Com discussões

sistematicamente travadas tendo por base Cornelli (2001), Betz (1968) e Morton

Smith (1971), Almeida situa a historiografia brasileira com o que de mais relevante

sobre o modelo thĕiŏs anēr está disponível.

9. Um balanço e sistematização de dados decisivos sobre a construção dos

modelos de thĕiŏs anēr

A essa altura das reflexões analíticas em torno dos modelos, críticas e debates

no que diz respeito ao conceito de thĕiŏs anēr, convém empreender um balanço

conclusivo a respeito do que se levantou até aqui. Como dito na abertura deste

capítulo, as obras cotejadas para esse estudo não esgotam o tema - não é a pretensão

aqui, muito menos se pensa ser possível tal feito -, mas, seguramente, no que diz

respeito ao debate thĕiŏs anēr, as obras clássicas estão aqui presentes. Por "obras

clássicas", bem entendido, quer-se referir àquelas que (i) foram fundantes para o

debate; (ii) a partir delas, tantas outras surgiram; e, finalmente, (iii) foram

consolidadas, por parte dos estudiosos do tema, como referência nas discussões

centrais sobre o conceito/compreensão dos homens divinos assim como a temas

corolários46

.

Gail Corrington (1986:2-4) estava correta em afirmar que o debate estava

longe de ter um fim. Essa idéia pode ser sustentada ainda nos dias de hoje. Inclusive,

deve-se concordar com ela que esse debate carece de mais definições e maior

precisão. O impasse em definir thĕiŏs anēr ficou marcado, fundamentalmente por

46 As obras aqui mencionadas, bem como os comentários adicionais aqui realizados, têm por objetivo

mapear e sistematizar quais foram os passos decisivos na construção do conceito thĕiŏs anēr ao longo da história de sua interpretação. Se nas seções precedentes o foco foi ambientar o cenário mais amplo

em que os modelos de homens divinos tiveram lugar e que debates circundaram o tema, bem como

suas aceitações, críticas ou rejeições, aqui, esse passo se faz necessário a fim de que se construa a

trajetória de origem até o momento atual em que está o debate acadêmico exclusivamente enfocando

os modelos de thĕiŏs anēr. Esse percurso servirá de base para sustentar o modelo conceitual de thĕiŏs

anēr que este trabalho quer sugerir no tópico seguinte e final desse capítulo.

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86

vincular a figura de Jesus, em Marcos, aos demais homens divinos da antiguidade.

Inclusive, foi precisamente essa operação que desenrolou tamanha polêmica e disputa

em vincular ou não Jesus a esse "título".

A singularidade de Jesus como um messias ou salvador da humanidade

começou a ser questionada no bojo da reação que a religionsgeschichtliche Schule

(escola de história das religiões) alemã marcou em seus debates com obras da escola

mitológica. Como já mencionado (ver item I.3), em 1913, Bousset (1970), adotando o

título de kyrios (senhor) a Jesus terminou por demonstrar a irreversível "helenização"

do nazareno e aproximou-o das religiões de mistério helenísticas. Mas, para não

incorrer em repetição do que foi exposto no item I.3 deste trabalho, de forma

decisiva, foi Reitzenstein, em 1908, que primeiramente deu voz à forma como se

entende a figura do homem divino na antiguidade:

"[uma] concepção geral de qei/oj a'nqrwpoj [ser humano divino] ...,

segundo a qual um homem tão divino combina dentro de si mesmo,

com base em uma natureza grandiosa e santidade pessoal, o conhecimento mais profundo, a visão e o poder para operar

milagres." (REITZENSTEIN, 1978:26).

A definição primeva do intelectual alemão ao postular que esse homem divino

helenístico era alguém portador de (i) natureza humana grandiosa e santa; (ii)

conhecimento vasto e profundo; e, (iii) visão e poder para operar milagres;

estabeleceu as bases para se organizar em quais características uma personagem

histórica deveria ser enquadrada para dialogar com o modelo recentemente

formulado.

Esse primeiro e inédito passo rumo à definição do que viria a se tornar o

debate acerca dos thĕîŏi ándrĕs encontrou repercussão entre os estudiosos bíblicos a

partir das contribuições de Dibelius, em 1919 e Bultmann, em 1921. Dessa forma,

ambos também inseriram, nos mesmos estudos, a idéia de que uma aretologia deveria

estar por trás de personagens potencialmente classificados como homens divinos.

Embora não o fizessem, no caso de Jesus, por exemplo, de forma definitiva

consolidaram a categoria nos trabalhos de "crítica e história das formas"

(Formgeschichte) de textos do Novo Testamento.

Anos mais tarde, em 1935, será por meio de Bieler que o modelo thĕiŏs anēr

conhecerá sua mais extensa, controversa e duradoura definição. Para além do que já

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foi mencionado aqui, anteriormente, convém destacar a lista a partir da qual o autor

alemão entende o modelo thĕiŏs anēr47

:

(i) sua relação com um deus é especial seja por testemunhar aquele deus,

ser inspirado por ele ou receber conhecimento secreto da parte dele;

(ii) o thĕiŏs anēr é legitimado por meio da realização de milagres, eles

provam que o homem divino possui a virtude divina (göttliche Kraft);

(iii) seu nascimento e morte são acompanhados, legitimados ou

evidenciados por prodígios e maravilhas;

(iv) a vida do homem divino é errante, acompanhado de poucos

discípulos leais, os quais mantêm sua memória viva após sua morte;

(v) sua morte é quase sempre o resultado de um martírio com seu próprio

consentimento e é acompanhado, legitimado ou evidenciado por meio de

prodígios e maravilhas;

(vi) após sua morte, freqüentemente, o então homem divino se torna deus.

Ressurreição e aparições corpóreas são características de sua vida após a

morte.

Foi a essa lista, ou conjunto de características, que, dos anos 30 até a

atualidade, diferentes intelectuais, das mais variadas vertentes buscaram objetar,

analisar, criticar ou endossar a presença e permanência do modelo thĕiŏs anēr na

antiguidade como um paradigma científico moderno para o estudo e entendimento

dessas figuras extraordinárias. Esse extenso percurso de críticas ou idas e vindas em

torno do modelo thĕiŏs anēr já foi aqui previamente exposto. Até aqui, Corrington

(1988:24-26) chama a atenção para duas distintas gerações que "buscaram" o

entendimento dessas figuras de homens divinos: a (primeira) situada entre fins do

século XIX até os anos 30 do século XX e aquela (segunda) entre os anos 60-80

também do século XX.

As pesquisas posteriores - leia-se, entre os anos 60 e 80 - reacenderam a

polêmica. Os quase 30 anos que motivaram esse silêncio poder-se-ia ser entendido

por conta de alguns fatores: (i) dificuldade na contestação do modelo proposto por

Bieler; (ii) um longo tempo até que se digerisse a proposta do autor alemão e, no

47 Lista extraída da excelente sistematização de Corrington (1986:23) a partir da obra de Bieler

(1967:31-47;140-143).

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retorno às fontes primárias, novas análises para construção de um debate qualificado

a partir da tese de Bieler; ou, ainda, (iii) por conta do interregno nas pesquisas

causado pela II Guerra Mundial.

É mais razoável, ao que parece, considerar a terceira opção. Dada a polêmica

que esse estudo provocou e as implicações drásticas que atingiam aspectos centrais da

fé cristã - singularidade de Jesus e seus discípulos e/ou apóstolos - o contexto de

guerra e pós-guerra pode ter sido decisivo em tão longo espaço de tempo nas

pesquisas. Ora, em um cenário de Europa devastada pela guerra, os projetos

intelectuais de civilização plenamente contestados pelo conflito mundial e o

devastador ambiente de desilusão frente ao que se seguiu antes, durante e depois do

conflito já era, por si só, suficientemente polêmico para que se seguisse com

contestações centrais à fé de muitos naquele momento.

Em fins dos anos 50 Rudolf Bultmann em sua monumental Teologia do Novo

Testamento refuta a tese de thĕiŏs anēr ao discutir a noção do que hoje se conhece

por "Espírito Santo" (pnĕyma). O que é central para a discussão aqui desenvolvida e

que possibilitou este trabalho desenvolver o próprio conceito de homem divino é

como o autor alemão entende o thĕiŏs anēr. Trata-se de um indivíduo de natureza

mais elevada que os mortais comuns e detentor de uma misteriosa potência divina que

o faz capaz de conhecimento e ações prodigiosas. Além disso, complementa

Bultmann, essa potência que está no homem divino é o poder (dýnamis), não o

Espírito (pnĕyma) que está no cristianismo primitivo (BULTMANN, 1984:156).

Dessa maneira, o autor alemão reconhece a figura poderosa (dýnamis) do

homem divino, muito embora o distinga dos discípulos e apóstolos seguidores de

Jesus, estes, portadores do Espírito (pnĕyma). Aliás, não é incomum esse

comportamento de Bultmann. É notória em suas obras a piedade confessional cristã

que o pastor luterano opera nos seus tratados em (i) singularizar a experiência

religiosa cristã em meio ao existencialismo "galopante" europeu; e, (ii) por meio de

argumentos científicos pós-metafísicos "desmitologizar" (título de um de seus livros)

as narrativas neotestamentárias.

A finalidade última, então, de um lado, é ganhar a audiência da racionalidade

moderna europeia e, por outro, manter como original e singular o kerygma

cristológico para sua audiência eclesiástica. Contudo, talvez sem esperar o resultado

que se viu posteriormente, é justamente o poder (dýnamis) desses homens divinos que

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unificará experiências religiosas mediterrânicas e os paleocristianismos em estudos

sobre os thĕîŏi ándrĕs. Trata-se, fundamentalmente, do trabalho de Corrington e a

presente tese.

Quando o tema é retomado, na figura de Betz ( especialmente 1961 e 1968,

mas, posteriormente, 1983) a tese geral e fundamental é que a ocorrência da

expressão thĕiŏs anēr não pode ser decisiva para a questão da existência do conceito,

pois o conceito pode ser expresso através de variadas formas (BETZ, 1961:102;

1968:117). Partindo de Luciano de Samósata - detrator de figuras popularescas (sic),

isto é, personagens "mágicas" em contexto de piedade popular - e as críticas do autor

do II século e.c., Betz demonstra como seus enunciados acabam por conformar topoi

ou termini technici ao satirizá-los rumo à percepção de que se poderia identificar

como homens divinos (BETZ, 1961:6-9; 114-115).

Para além do que já foi exposto no item I.6 precedente, quase que

contemporaneamente a Betz (1961), Smith e Hadas (1965), em 1963, lançaram uma

ideia que, para muitos, consolidou-se como central na discussão sobre homens

divinos: a aretologia. Segundo os autores (1965:63) esse gênero biográfico de

exaltação teve como modelo inicial o Sócrates de Platão que acabou por converter-se

em "fonte para todas subseqüentes aretologias, pagãs e cristãs48

". Assim definiram

aretologia (SMITH; HADAS, 1965:3):

"Nós podemos definir isso como uma descrição formal da carreira

notável de um impressionante mestre que foi usada como base para

instrução moral. Os dons sobrenaturais do mestre freqüentemente incluem o poder de realizar maravilhas; freqüentemente seu ensino

trouxe a ele a hostilidade de um tirano, contra o qual ele confrontou

com coragem e pelas mãos de quem sofreu o martírio. Freqüentemente as circunstâncias de seu nascimento envolvem

milagres49

."

Essa definição de Smith e Hadas, no entanto, não é tácita, como os debates já

descritos no tópico I.6 demonstraram e, muito menos, trata-se de um consenso

científico entender aretologias como um gênero literário. Mas, a identificação dessa

48 Tradução pessoal de: "the source for all subsequent aretalogies, pagan and Christian." 49 Tradução pessoal de: "We may define it as a formal account of the remarkable career of an

impressive teacher that was used as a basis for moral instruction. The preternatural gifts of the teacher

often included the power to work wonders/ often his teaching brought him the hostility of a tyrant,

whom he confronted with courage and at whose hands he suffered martyrdom. Often the circumstances

of his birth involve the miraculous."

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aretologia em documentações, a partir daqui, passou a ser mais identificada como um

documento base para que se conheça um homem divino na antiguidade. Assim

entende Cornelli (2000:87-92) quando declara que "falar de aretologia é então falar

de homem divino." (2000:89). Não será por meio dessa conclusão do autor ítalo-

brasileiro que este trabalho abordará a figura de um thĕiŏs anēr, os passos seguintes

(especialmente terceiro capítulo) indicarão o trato apropriado com a documentação

sobre homens divinos.

Assim como mencionado anteriormente, para Smith, as coleções de milagres

advindas da antiguidade são poucas (1971:177, nota 27) e mais, não parecem ser,

como coleções, muito similares literariamente aos evangelhos canônicos (1971:178-

79). Nesse sentido, o historiador reabilita Justino para identificar, nos textos bíblicos,

um modelo diferente: herói. Esse modelo distinto às aretologias também dão conta de

homens divinos, mas não negam a existência das aretologias, apenas limitam os

exemplos que ele encontra para homens divinos (1971:179).

As discussões detalhadas de três autores parecem posicionar o debate sobre as

aretologias de forma mais adequada. Koester (1971:216-219) assume que a teologia

thĕiŏs anēr está, indubitavelmente, por trás de uma das quatro formas de aceitar e

acreditar em Jesus nas bases formativas dos cristianismos antigos. Segundo ele, as

histórias de milagres presentes no evangelhos canônicos são o resultado de uma

leitura de Jesus como homem divino anteriores a um dos materiais que serviram de

base para a composição dos evangelhos. De igual forma, Achtemeier (1970 e 1972),

como já mencionado (I.6, acima), percebe esse primeiro estágio sobre a crença em

Jesus na forma de um thĕiŏs anēr.

Por fim, Tiede (1972), através de análise diacrônica, postula que é possível

demonstrar a existência de dois critérios para classificar um homem divino, não

através de um exclusivo gênero, ou seja, a aretologia: (1) virtude moral e sabedoria;

(2) feitos ou eventos miraculosos. Existiriam, portanto, esses dois tipos de thĕîŏi

ándrĕs que devem ser percebidos distintamente: (1) tipo filosófico, recuperado desde

Sócrates; (2) operador de milagres divinos.

Desse núcleo de discussões acerca da aretologia, duas posições contrárias ao

modelo thĕiŏs anēr surgem. Aquela analisada por Holladay e a sistematização de

Pilgaard. Em Holladay, o modelo thĕiŏs anēr não é frontalmente analisado. As

discussões que desenvolve no centro de suas reflexões dizem muito mais respeito ao

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grau de helenização da Palestina - justamente para tentar refutar o modelo thĕiŏs anēr

como presente naquela cultura (HOLLADAY, 1977:6.15-17.237-38) - do que um

estudo sobre o impacto que tal fenômeno tenha causado. A contundente crítica que

faz está em negar que em autores específicos (Artapano e Josefo) exista o gênero

aretologia e, por conseqüência, o modelo thĕiŏs anēr.

Pilgaard, por sua vez, sistematizando de que forma o modelo foi construído ao

longo da história da interpretação, acaba por enunciar dados parciais, incompletos ou

intencionalmente selecionados, pois negligencia - nesse resumo, não no artigo como

um todo - uma série de elementos problematizados ao longo dos estudos como

aqueles aqui já apresentados. Segundo ele, o modelo thĕiŏs anēr:

"designa um conceito bem claro personificado em muitas figuras

históricas do período Romano-Helenístico. O que é substancial no conceito é que o homem pode participar na divindade e, essa

qualidade divina, é demonstrada primariamente através de poderes

miraculosos e sabedoria extraordinária. Sociologicamente, homens,

classificados sob o conceito, eram pregadores itinerantes de salvação (ou eram assim pregados por meio de seus aderentes), um

status que era enfatizado pelo apelo (primeiramente) aos seus

poderes miraculosos. Os feitos miraculosos do homem divino eram comunicados através de um gênero específico, a aretologia. O

conceito, bem como a atividade missionária foram tomadas pelo

Judaísmo Helenístico da Diáspora para defender e promover a

religião judaica. Assim, o judaísmo helenístico funcionou como meio de transferência do conceito para o Cristianismo Judaico

Helenístico50

". (PILGAARD, 1997:102).

Fundamentalmente, para Pilgaard, o modelo thĕiŏs anēr aplicado a Jesus,

segundo o evangelho de Marcos, nada mais é do que a correção (sic) da theologia

gloriae (milagres e feitos extraordinários) em termos da theologia crucis

(PILGAARD, 1997:102). Essa posição do autor norueguês se justifica à medida em

que a vida do Jesus Histórico, marcada que foi pela crucificação, gerava uma

contradição em relação ao projeto de instauração do Reino de Deus. O projeto estava

50 Tradução pessoal de: designates a rather clear concept personified in several historical figures in the

Hellenistic-Roman period. The substantial element in the concept is that men can participate in

divinity, and that this divine quality is demonstrated primarily through miraculous power and

extraordinary wisdom. Sociologically, men, classified under the concept, were itinerant preachers of salvation, or they were by their adherents preached as divine saviours, a status which was emphasized

by appeal (primarily) to their miraculous power. The miraculous deeds of the divine men were

communicated through a specific genre, the aretalogy. The concept as well as the missionary activity

were taken over by Hellenistic Judaism in the Diaspora to defend and promote the Jewish religion.

Hellenistic Judaism so functioned as medium for the transfer of the concept to early Hellenistic Jewish

Christianity.

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derrotado na cruz. A imagem que ficara era de mais um "milagreiro" itinerante que

tivera seu caminho interrompido pela morte.

O contraditório fora, então, superado pela morte, agora, redentiva de Jesus.

Pilgaard rechaça o modelo thĕiŏs anēr. No entanto, Betz o adota, mas identifica que

as cristologias neotestamentárias oscilam entre duas percepções: aderir e seguir Jesus

é (i) estar, já, além da morte e participando do "Reino de Deus" como realização

histórica do plano de salvação universal idealizado e cumprido por Deus agindo como

thĕiŏi anthōpŏi (humanos divinos), segundo a visão lucana; ou (ii) participar do

sofrimento e morte de Jesus, como entendem Marcos, Mateus, João e a idéia paulina

de imitar Jesus. (BETZ, 1968:130).

Entre as críticas ao modelo thĕiŏs anēr de Holladay (1977) e Pilgaard (1997),

nos anos 80, há uma análise que parece ser a mais consistente já proposta na história

da formação e consolidação do conceito de homem divino. Trata-se do modelo

proposto por Gail Corrington (1986). De imediato, a autora norte-americana retoma

Betz (1961:102; 1968:117) concordando que a ocorrência do termo em fontes antigas

não é decisiva para a existência/validade do conceito e, indo adiante, enuncia que a

audiência para quem os thĕîŏi ándrĕs se dirigiam é absolutamente decisiva para

compreensão do fenômeno. Preliminarmente, formula a autora norte-americana

(CORRINGTON, 1986:43):

"O que coletamos [da revisão bibliográfica feita até este ponto] é

que o termo theios anēr, mesmo não ocorrendo muito

freqüentemente como um termo na literatura antiga, é uma forma de categorizar ou classificar olhares por parte de certa audiência,

especificamente uma audiência missionária, e conseqüentemente,

lidar com a resposta daquela audiência a certas características da propaganda missionária, com mais ou menos resultados definitivos

baseados nos pressupostos daquela mesma audiência51

."

O que há de inédito (talvez), mas certamente, do ponto de vista conceitual,

interessante é agregar a ideia de uma recepção do homem divino à análise e/ou

construção do modelo thĕiŏs anēr. Ou seja, é fundamental que se trate de uma

definição conceitual do objeto de estudo, mas, fundamentalmente, que se considere

51 Tradução pessoal de: "What we have gathered is that the term, theios anēr, while not occurring very

often as a term in ancient literature, is a way of categorizing or classifying the views of a certain

audience, specifically a missionary audience, and therefore, of dealing with the response of that

audience to certain characteristics of missionary propaganda, with more or less definite results based

upon that audience's presuppositions."

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também a recepção que a formulação do conceito conheceu no(s) momento(s) de

sua(s) experiência(s) histórica(s). Ora, se um dos aspectos decisivos da formulação do

conceito e compreensão da existência e atuação dos homens divinos é a demonstração

de seus poderes (sejam eles quais forem) e, por conseguinte, aderência de seguidores,

nada mais oportuno do que perceber de que forma a audiência desses homens divinos

o compreendia.

Outro fator preponderante na análise e/ou construção do conceito, segundo

Corrington, é a comparação dos modelos, obviamente, após a formulação desse "tipo

ideal", "padrão" ou, conforme este trabalho vem adotando a terminologia, "modelo":

"No entanto, o que já foi tentado na pesquisa sobre theios anēr

parece apontar para a construção de um 'tipo' ideal, um padrão de pensamento ou de uma trajetória para a qual se conforme o discreto

fenômeno, mas que não precise ser manifestada em sua totalidade

por todos os fenômenos que pertencem a ela. Este 'tipo' pode, então, servir de base para comparação com outros 'tipos' ou trajetórias

52."

(CORRINGTON, 1986:43-44).

A armadilha que decorre dessa tentativa de formulação de um "tipo ideal" ou

"modelo", segundo Corrington, é que muitos dados terminam por ser coletados que,

ao fim, o modelo então se expande demais para encaixar todos esses dados. Esse, ao

que parece, foi o caso de Bieler e Wendland.

Esse enunciado da autora norte-americana também passou a ser usado como

crítica à análise de Holladay, pois o referido autor falhou em dois aspectos: (i) o fato

de que palavras empregadas no tempo moderno foram usadas para entender figuras da

antiguidade não implica na inexistência do conceito em épocas antigas; e, (ii) ele

falhou em reconhecer que, para compreensão de homens divinos antigos, um modelo

ou "tipificação ideal" foi utilizada de forma geral, não em casos muito específicos

como o estudo de Hollady quis enfatizar (CORRINGTON, 1986:44).

De forma resumida, Corrington (1986:45) entende que todas as ocorrências do

modelo ("tipo ideal") devem ser vistas como pontos ao longo da mesma trajetória.

Esse é um enunciado bastante semelhante ao que Cornelli (2000) proporá em sua tese

quando advoga a "equivocidade" na recepção dos homens divinos Jesus de Nazaré e

52 Tradução pessoal de: "Nevertheless, what has already been attempted in theios anēr research seems

to point to the construction of an ideal 'type', a pattern of thought or a trajectory to which discrete

phenomena conform, but which need not be manifested in its totality by all phenomena which belong

to it. This 'type' can then serve as a basis for comparison with other 'types' or trajectories."

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Apolônio de Tiana53

. O que está em jogo para o autor ítalo-brasileiro é a fluidez e

mobilidade do conceito de homem divino a figuras extraordinárias na antiguidade

(CORNELLI, 2000:41-46). A convergência dessas idéias torna-se ainda mais

interessante quando se observa que Cornelli não teve acesso ao material de

Corrington!

Tendo no horizonte essa perspectiva de "tipo ideal" ou modelo, Bryan Wilson

é convidado por Corrington para sustentar a discussão. O sociólogo da religião aponta

dois elementos decisivos que apóiam a construção do conceito de homem divino: (i)

na "tipificação ideal" há a possibilidade de divergências dentro da estrutura do

fenômeno, não diretamente do "tipo" propriamente dito (WILSON, 1973:21); (ii) o

"construto tipológico" deve estar relacionado ao milieu onde ocorre (WILSON,

1973:135).

Para a primeira afirmação, observa-se uma resposta direta ao que Holladay

propôs em seu trabalho de análise particular que, conforme já mencionado,

Corrington objeta54

. Para a segunda afirmação, que relaciona o modelo ao milieu em

que ocorre, implica dizer que a resposta com que determinada audiência enxerga e

percebe o mundo, determina como um fenômeno tal qual thĕiŏs anēr ocorre e é

percebido. Assim, por exemplo, um grupo com cosmovisão taumatúrgica vive dentro

de um horizonte no qual são necessários feitos extraordinários de poder personalistas

e realizações mágicas para que se crie a expectativa de um messias operador de

milagres (WILSON, 1973:135).

Nesse contexto, um grupo que aguarda um Jesus escatológico, o "senhor do

futuro" será mal interpretado por aqueles que aguardam um mediador de salvação

53 Cornelli (2000:31, nota 45) deixa claro que o uso que faz da palavra está em oposição a "univocidade", e não que ela esteja ligada ao campo semântico do "equívoco". Esclarecimento bastante

pertinente especialmente se o que se tem em vista é a celeuma que a construção e análise do modelo de

homem divino causaram na bibliografia especializada. 54 Partido dos argumentos de Wilson, Corrington objeta Holladay. Para além dessa resposta da autora

norte-americana, pode-se também construir uma crítica a Holladay a partir de três elementos: (i) ele

falha ao exigir que um modelo geral atenda a todo e qualquer caso particular mencionado no interior

desse mesmo modelo. Do ponto de vista da ciência moderna, o procedimento de Holladay tem valor,

no entanto, os dois outros aspectos seguintes explicam melhor o porquê de ter adotado tal

procedimento; (ii) Holladay é bastante zeloso para com a fé cristã ortodoxa, por assim dizer. A

assunção do conceito de homem divino, em alguma medida, destitui Jesus e demais líderes dos

movimentos paleocristãos de suas posições unívocas e singulares. Tal como já mencionado, essa postura de "teólogo em missão" pretende muito mais inviabilizar a investigação heurística do que

submeter o modelo thĕiŏs anēr à investigação criteriosa dos diferentes modelos epistemológicos da

ciência moderna. Logo, (iii) a inexistência da aplicação de um termo técnico "thĕiŏs anēr" na

documentação antiga mais o tensionamento do conceito e limites do que seja a helenização do

judaísmo perfazem o arcabouço teórico-metodológico que o levam a refutar o conceito de homem

divino quando aplicado a Josefo, Artapano e Fílon.

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como uma fonte presente e atual de obtenção de empoderamento para as questões de

seu tempo presente (CORRINGTON, 1986:45). Essa dinâmica pode ser observada no

período pós-iluminista, de igual forma, quando as diferentes denominações cristãs,

mediada em suas experiências pela razão, passaram a aceitar uma experiência

religiosa muito mais guiada pela "pregação da Palavra" do que pela realização de

feitos extraordinários.

Por meio dessa operação, as lideranças das auto-proclamadas ortodoxias

cristãs encontraram meios e subterfúgios para não perderem seus aderentes para

"qualquer pregador carismático" que aparecesse. É claro que o fenômeno é bastante

mais complexo, uma vez que a próprio catolicismo apostólico romano se valeu (e

funciona até hoje!) das figuras dos (homens) santos como referenciais de virtude e

veneração.

A explosão neopentecostal no Brasil, especialmente, foi (ou tem sido) um

reflexo de fiéis que demandam mais provas concretas de poder (milagres) do que

meramente a crença na "Palavra" somente. Esses são fenômenos complexos e que

terão mais atenção posteriormente quando propostas as conseqüências e/ou

conclusões do que vem a ser a assunção do conceito de homem divino para

discussões de experiências religiosas.

Alternativamente, mas de alguma maneira complementar ao quadro geral,

Corrington lembra a noção de "trajetória", presente em Koester/Robinson como uma

forma de entender a interação entre os documentos neotestamentários com o mundo à

volta deles. Consoante Robinson (1971:10), na noção de trajetória um fenômeno

particular pode ser visto como "expoente de movimentos inteligíveis" oferecendo um

meio a partir do qual a fluidez do conceito pode ser percebida enquanto que a mesma

atenção é prestada ao seu desenvolvimento cronológico e horizonte ou horizontes em

que o fenômeno ocorre.

Disso decorre que a dinâmica cultural em que o fenômeno thĕiŏs anēr

conhece seu desenvolvimento deve ser esquematizada a fim de perceber de que forma

os diferentes fenômenos podem ser reunidos sob a categoria/termo/trajetória thĕiŏs

anēr e como tiveram sua origem e desenvolvimento. Nesse mister, Corrington

(1986:46) entende que deve ser demonstrado como o conceito de homem divino se

desenvolveu no mundo helenístico como uma "resposta a" e "entendimento de": o

conceito de poder (dýnamis).

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Após estabelecer a noção que está por trás do homem divino como um

modelo, a autora norte-americana define propriamente o que entende por thĕiŏs anēr

(p.46):

(a) controla poderes (dýnamis) do universo e estabelece as relações a

partir das quais os demais seres humanos têm com esse poder - essa é

uma atribuição de um ser divinizado;

(b) as descrições de poderes e atributos da divindade a qual se relaciona o

homem divino - descritas em aretologias e dynámĕis - paulatinamente

vão sendo designadas a quem possui o mesmo controle e habilidade de

manipulação desses poderes;

(c) o taumaturgo é tido como uma epifania ou revelação do deus a quem

representa. Àqueles que são capazes de demonstrar tais feitos - portanto,

homens divinos - podem ser: filósofos dotados de sabedorias (sōphŏí);

governantes que possuem muitos poderes sobre o mundo; figuras

religiosas; mágicos (mágŏi), que são vistos por seus oponentes como

charlatães (gŏētai) ou feiticeiros (pharmakŏi).

Do ponto de vista da documentação, Corrington (1986:46-49) entende que o

milieu próprio para se buscar as figuras de homens divinos sejam aqueles de origem

mais "popular", de cunho menos rebuscado e com intenções de atingir as massas

menos privilegiadas de instrução: uma "audiência menos qualificada" (p.46). A

categoria "popular" para a autora norte-americana está diretamente ligada à baixa

instrução e menor poder econômico. Esse seria, então, o alvo preferencial em que se

poderiam encontrar mais informações sobre homens divinos.

Inclusive, os evangelhos canônicos e Atos dos Apóstolos seriam textos

direcionados àquela audiência menos qualificada e, portanto, por excelência

documentos "populares" (p.47). O que definiria o conteúdo desses materiais como

"populares" e os qualificaria como destinados a audiências menos sofisticadas seriam

as refutações e sátiras que receberam de outros autores contemporâneos ou

imediatamente posteriores a eles, defende Corrington (pp.47-48).

Para essa audiência, os apologistas - esses, sim, intelectualizados e mais

sofisticados, Josefo, Fílon, dentre outros - empenhavam-se em demonstrar as

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diferenças entre mágicos (mágŏi), charlatães (gŏētai), feiticeiros (pharmakŏi) ou

milagreiros (tĕratĕía). Pois, para a leitura "popular", os atos, procedimentos e

métodos de realização de feitos extraordinários, embora realizados a partir de meios

ou naturezas diferentes, tinham o mesmo efeito, portanto, arrebanhavam aderentes

com base em suas "enganações". (pp.47-48).

Essa dicotomia entre "audiência menos sofisticada" ou "popular" - a quem,

por exemplo, foram direcionados evangelhos canônicos - e "apologistas" ou "círculos

mais refinados ou sofisticados" apresenta-se como uma categorização quanto à

natureza dos documentos por demais artificial, preconceituosa e imaginária.

Corrington não se mostra diferente da literatura corrente em fins do século XIX e no

XX (e ainda hoje, como o segundo capítulo demonstrará) que criou essas falsas

dicotomias.

É certo que em contexto mediterrânico, os níveis de alfabetização eram

baixíssimos,55

mas ela parece ignorar o fato de que textos produzidos nessa bacia

mediterrânica dificilmente circulavam para serem lidos ou reproduzidos amplamente

para distribuição e leitura indiscriminada.56

Tanto a redação de tais textos, quanto sua

circulação, em sua maioria, estavam restritas a grupos muito pequenos de elites

letradas. E, quando se tornavam de conhecimento mais amplo, eram lidos com boa

dose de representação e "performance" por parte dos leitores.

Ao proceder tal classificação dos documentos e definir, socialmente, que

grupos tinham acesso a qual tipo de leitura da realidade, a autora norte-americana

falha em reconhecer as dinâmicas a partir das quais as culturas mediterrânicas eram

informadas cotidianamente. Sobretudo pelas imagens, modelos arquitetônicos,

55 Discussões e evidências deste fato são tratadas de forma mais aprofundada em Crossan (2004), Faria

(2009 e 2011), Gamble (1995), Kloppenborg (2000), e Young (1998 e 1998a). Aqui estão apenas

indicados, mas no item II.1 a seguir (II capítulo do presente trabalho) serão detalhados e

problematizados para atender a essa mesma discussão. 56 O mesmo pode ser observado o que está na nota 55. Para do que já foi dito, uma perspectiva mais

recente, ou seja, a "escola" da performance (o movimento não iniciou como uma "escola", mas acabou

por se consolidar e tomar forma de um grupo específico nessa abordagem - www.biblicalperformancecriticism.org) busca reconstruir as narrativas antigas, no geral, e bíblicas, no

particular, sob o ponto de vista da maneira com a qual esses textos eram "desempenhados" em leituras

ou recitações públicas. Essa performance ou desempenho constitui-se no esforço em reconstruir um

cenário no qual textos que não foram produzidos para leitura - dada a altíssima taxa de não letrados na

bacia mediterrânica -, mas para ritualização coletiva. Esse tema também voltará a ser abordado no item

acima apontado - segundo capítulo deste trabalho.

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numismática, monumentos públicos ou representações imagéticas em espaços

públicos ou privados de pinturas, por exemplo.57

Torna-se muito difícil julgar a que tipos de materiais ou pesquisas sobre

culturas mediterrânicas a autora teve acesso e, proporcionalmente, mais cômodo,

desde o tempo presente, estabelecer falhas ou críticas ao trabalho dela, por essa razão

é que o tema não se alongará aqui, mas será retomado no início do segundo capítulo,

quando outro olhar sobre essa dicotomia será mais justamente lançado. O fato é que,

para concluir, certamente o trabalho da autora norte-americana, que é valioso em

múltiplos aspectos, ganharia bastante com um olhar transdisciplinar para as culturas

mediterrânicas.

O modelo mais recente que analisa os homens divinos no mediterrâneo é

aquele já mencionado de Cornelli (2000). Por meio da comparação entre as

personagens Jesus de Nazaré - presente nos evangelhos canônicos - e Apolônio de

Tiana - de Filostrato - o autor ítalo-brasileiro constrói o conceito de equivocidade na

recepção de homens divinos antigos sustentado por uma arguta exposição documental

de outros exemplos de thĕîŏi ándrĕs.

De forma inédita e com muito valor heurístico, Cornelli traz inovação em seu

trabalho, bem como qualidade científica em contexto brasileiro que até então teve os

assuntos relacionados a estudos de paleocristianismos como monopólio quase

exclusivo de estudiosos religiosos confessionais. Embora tenha produzido sua tese em

um programa de pós-graduação em Ciências da Religião de uma universidade

Metodista, o conteúdo de sua análise revela um padrão e abordagem digna de mesmo

status de relevância internacional em círculos não religiosos.

57 Dois excelentes referenciais para sustentar essa realidade em culturas mediterrânicas são Bonner

(1950) e Balch (2003). Bonner elaborou um sistemático catálogo de amuletos, moedas, entre outros

artefatos de cultura material que testemunham a ampla disseminação de elementos mágicos presentes

nos mais diferentes espaços cotidianos - casas e cemitérios, por exemplo, para o espaço público e

amuletos de uso pessoal (espaço privado, mas também de exposição pública) - que perfazem um

conjunto significativo de elementos "informativos" que impossibilitam a classificação social de seus

portadores na dicotomia entre o que é de acesso por parte de uma audiência mais ou menos

"sofisticada". Balch também expõe um espectro de afrescos no interior de casas e templos em Pompéia

que dão conta do amplo uso da iconografia material como elementos informativos da audiência mediterrânica, de igual modo, impossíveis de determinar sua procedência quanto a uma classificação

social no que diz respeito ao acesso de uns em detrimento de outros. Trata-se de evidências incontestes

de que o acesso a temas mágicos vão muito além de textos. Torna-se, assim, impossível afirmar que

textos ou imagens têm alvos específicos, especialmente se o que se leva em conta é a condição social

ou de letramento de grupos sociais na plêiade de experiências culturais cotidianas mediterrânicas. No

próximo capítulo, também, esse tema voltará a ser explorado.

Page 99: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

99

Sem dúvida alguma este trabalho dificilmente teria um estrado consistente

para propor outro olhar para a questão dos homens divinos se não fosse por este

estudo de Cornelli. Como se trata de uma obra de referência no tema e, até então,

atualíssima em perspectiva bibliográfica, o presente estudo está irremediavelmente

em dependência do que fora desenvolvido por Cornelli. Por esta razão, até aqui (e nas

páginas que ainda virão), aquele trabalho vem sendo basilar para o avanço das

propostas que se quer elaborar neste texto e tem sido um pilar sempre presente em

guiar as perspectivas abordadas, logo uma exposição mais alongada não se faz

necessária no momento.

Ao finalizar essa breve sistematização e balanço crítico dos elementos

fundamentais na construção do modelo thĕiŏs anēr, de forma mais pragmática ou

didática, a tabela a seguir elenca, passo a passo uma espécie de genealogia do

conceito de homem divino destacando os elementos fundamentais de cada autor

envolvido no processo. Após essa exposição o capítulo será concluído com o

encaminhamento conceitual que esse trabalho quer propor para o estudo dos homens

divinos.

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100

Autores / Data / (Obra) Conceitos básicos

Reitzenstein / 1908 (1978) Primeiro a mencionar o conceito e identificar algumas características; usa a

expressão thĕiŏi anthōpŏi;

Dibelius / 1919 (1984)

Bultmann / 1921 (1985)

Atribuíram a ideia de dýnamis (poder) aos homens divinos como meio a

partir do qual sua ação era concebida; a temática foi inserida em estudos de

Novo Testamento (inclusive com as discussões sobre aretologias);

Bieler / 1935 (1967) Primeira sistematização refinada e mais extensa sobre o conceito de thĕiŏs

anēr;

Betz (1961)

Propõe que a ocorrência do termo na documentação antiga não é decisiva

para a existência do conceito e distingue as cristologias evangélicas de

acordo com "herança" do conceito de homem divino aplicada a Jesus

(Lucas) ou não (Marcos, Mateus, João e Paulo);

Hadas e Smith / 1963 (1965) Discutem aretologias e vitae como possíveis (não exclusivas) fontes para se

conhecer a vida e realizações dos homens divinos;

Betz (1968) Identifica que a cristologia do homem divino é a mais antiga e originária.

Teria servido de base para os autores neotestamentários;

Achtmeier (1970 e 1972) Isola as catenae mais antigas em Marcos e as identifica como resultado de

um modelo de homem divino;

Smith (1971) Reafirma a posição de que aretologias e histórias de milagres não são

exclusivas para falar de homens divinos e que esses modos de narrar não se

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constituem "gêneros" literários tácitos e decisivos para conhecê-los;

Koester (1971) Reafirma a posição de que o conceito de homem divino está por trás das

cristologias neotestamentárias como camada mais antiga;

Tiede (1972) Entende homens divinos como duas possíveis categorias: mestre de

sabedoria e operador de milagres;

Corrington (1986) Obra mais sistemática, densa e completa sobre homens divinos. Enfatiza a

questão central de reconhecimento dos homens divinos: o poder (dýnamis).

Cornelli (2000)

Defende a equivocidade na recepção de homens divinos. Uma vez atendidos

alguns critérios centrais no estudo das fontes sobre personagens antigas, no

que diz respeito ao conceito de thĕiŏs anēr, elas devem ser percebidas da

mesma maneira conceitualmente.

Tabela 7: Sistematização de dados sobre a origem e consolidação do conceito thĕiŏs anēr.

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10. As escolhas na formulação do modelo thĕiŏs anēr

Uma vez percorrida a trajetória de formação e consolidação do conceito thĕiŏs

anēr na bibliografia especializada e, de forma comparativa, levado em conta os temas

centrais e corolários da definição de um tema polêmico como esse, convém, agora,

traçar um modelo a partir do qual este trabalho entende a figura dos homens divinos

mediterrânicos antigos. É, sem dúvida, um trabalho árduo para um historiador definir

um modelo geral para enquadrar determinadas figuras históricas em uma categoria de

análise.

Assumindo a história como a ciência do particular, que opera na investigação

da ação do homem no tempo e no espaço, é cada vez mais difícil sistematizar dados

conceituais para aplicar a diferentes agentes históricos em distintos tempos e espaços

a fim de que um modelo sirva como ponto de partida para investigações científicas.

Mas, é justamente ciente dessa dificuldade que o modelo parece ganhar validade

enquanto indicativo para início de análise comparativa.

Cornelli parece correto em defender a fluidez e mobilidade do conceito para

se estudar homens divinos na antiguidade, pois o não engessamento de um único

conjunto de critérios para estudar fenômenos ou personagens históricos confere

sustentação heurística para flexibilizar percepções analíticas que se enquadrem em

diferentes tempos e espaços para o tratamento dessas mesmas personagens históricas.

É óbvio, em se tratando de estudos históricos, que especificidades locais e

temporais devem ser levadas em conta, desde que isso não imobilize uma formulação

mais ampla que permita um olhar comparativo de fenômenos humanos sob

perspectiva histórica. Formular, então, um modelo próprio para o estudo dos homens

divinos é uma tarefa dupla:

(i) comparar diferentes personagens em seus respectivos tempos e espaços

e buscar extrair elementos gerais de suas ações e recepções rumo a uma

sistematização mais ampla;

(ii) tendo no horizonte essas características gerais de personagens ao

longo da história, analisar se, especificamente ou na particularidade de

suas existências, o mais amplo espectro possível de características

particulares tornam possíveis sua leitura (ou enquadramento) naquele

modelo geral.

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O passo mais primordial nesse mister é, de imediato, aceitar o pressuposto de

Betz (1961:102; 1968:117) de que a ocorrência do termo ou expressão thĕiŏs anēr na

documentação antiga não é decisiva para a percepção do modelo. Não é, em hipótese

alguma, embaraçoso admitir que thĕiŏs anēr raramente tenha sido usado como um

título na documentação antiga, mas se trata de um construto científico moderno para

o estudo daquelas personagens antigas que atendam a este ou aquele modelo. O que

se faz central é a coerência interna e clareza nas opções na construção de tal modelo.

A advertência de Corrington (1986:43-44) sobre os modelos de Bieler e

Wendland parece muito pertinente nesse sentido, pois ampliar por demais as

características básicas do que venha a ser um homem divino acaba por fazer com que

o modelo se deforme para abarcar todos os dados. Não são os dados que devem

moldar o modelo, mas a observação deles, enquanto modelos gerais nos diferentes

casos comparados, é que devem construir um modelo epistemológico consistente a

partir de um conceito bem delimitado.

A necessidade de um modelo epistemológico deve obedecer a um criterioso

método de conceituação e verificação empírica, na documentação, para seu

estabelecimento. Caso contrário, o critério de classificação se assemelharia a um

mero procedimento burocrático como comprar um automóvel, uma casa ou emitir um

documento legal: reúne-se uma lista de documentos exigidos e submete-os ao

escrutínio de um burocrata que conferirá item a item para observar se todos os

elementos exigidos foram anexados a um formulário. Não deve ser esse o caso.

O que se observou em boa parte das discussões em torno do modelo thĕiŏs

anēr foi precisamente esse procedimento. Expandiu-se demais um conjunto de

características necessárias ao cumprimento de um "padrão" que, obviamente, levou à

imobilização do objetivo final. Em alguns casos (Blackburn, por exemplo), essa

operação não passou de uma intenção programática de anular a validade de um

modelo epistemológico em que equalizasse Jesus e demais seguidores com tantas

outras personagens religiosas mediterrânicas. Em outros casos (Holladay, por

exemplo), o rigorosíssimo exame das particularidades mínimas acabou por criar

fissuras em um "tipo ideal".

Elaborar, portanto, um modelo coerente para classificar homens divinos

demanda, primeiramente, a assunção de um conceito-chave a partir do qual essas

personagens serão entendidas. Nesse sentido, Corrington parece correta em adotar o

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poder (dýnamis) como eixo central para agrupar essas diferentes experiências

místicas. É o poder de controlar ou manipular forças divinas, por parte de um ser

humano, que primeiramente o qualifica com uma natureza superior aos demais seres

vivos58

.

A partir desse núcleo fundamental, a expectativa (demanda) da audiência pela

realização histórica e concreta, material, portanto, desse poder que motivará a

personagem na realização de algum feito admirável, maravilhoso, fantástico. O

homem divino deverá exercer esse poder como prova visível de que o conhece e tem

meios para manipulá-lo. Trata-se da performance, demonstração ou manifestação do

poder propriamente dito.

Por conseguinte, o último e imprescindível passo para a consolidação do

modelo será a reação da audiência. O ato de poder realizado pelo homem divino pode

gerar seguidores ou detratores. Mas, o fim último da ação desses homens divinos é

gerar credulidade e aderência por parte daquela audiência. Eis o modelo graficamente

representado:

A - Audiência

B - Expectativa, demanda, intervenção voluntária

C Agente de poder (candidato ou o homem divino propriamente dito)

B' - Performance, demonstração, manifestação material

A' - Aderentes ou detratores

A hierarquia social desses candidatos a seres divinizados será dada a partir

dessa dinâmica específica. Ou seja, sua credibilidade em realizar feitos

extraordinários (sēmĕîon, tĕras, ĕrgŏn, dýnamis) é que fará com que seguidores ou

detratores os qualifiquem, positiva ou negativamente, como praticantes de magia

58 A questão semântica e a forma como esse "poder" deve ser entendido será objeto de análise no

capítulo seguinte. Há distintas formas de se usar o termo "poder" em grego, logo o conceitoassociado a

cada uma dessas diferentes formas de poder precisa ser analisado. Dýnamis é o preferido para essa

classigicação, pois, como será exposto mais adiante, é através desse "poder" (concedido ou adquirido)

que os atos mágicos propriamente ditos acontecem.

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(magĕia), charlatanismo (gŏētĕia), feitiçaria (pharmakĕia) ou o reconheçam

soberanamente como um homem divino (thĕiŏs anēr). E, sem sobre de dúvidas,

somente aqueles que forem capazes de "vencer" essas disputas é que receberão o

título de homens divinos.

As demandas e lógicas culturais em que está inserida cada personagem ou

candidato à divinização atribuirão os títulos respectivos a essas figuras divinas. Isso

explica o porquê das múltiplas titulações e divergências de rótulos conferidos a cada

personagem. Esse aspecto está relacionado à particularidade do tempo, espaço e, por

conseguinte, cultura que acolhe esses homens (divinos ou não). É precisamente nesse

aspecto que o modelo teórico thĕiŏs anēr ganha sua validade como uma categoria

científica, pois se empenha em agrupar tanto quanto possível essas experiências

místicas, classificá-las e, de igual forma, entendê-las em suas mesmas especificidades

culturais.

É as partir desse modelo que este trabalho buscará definir o Paulo construído

em Atos dos Apóstolos no terceiro capítulo. Por meio de análise cuidadosa da

documentação o modelo será testado. Pois, entendendo que o modelo geral é

construído a partir da extração de princípios gerais de cada caso particular, quando

analisados os casos particulares, a sua (quase, pelo menos) inteireza deve

corresponder ao modelo geral, caso contrário, o modelo não serve ou houve algum

erro no percurso.

A opção feita em analisar a personagem Paulo levará em conta

exclusivamente aquele construído em Atos dos Apóstolos. Não faz parte do escopo

deste trabalho discutir o Paulo histórico, das pseudo-paulinas ou cartas disputadas. A

pergunta, em cada documento, é absolutamente pertinente quanto à auto-percepção do

apóstolo como homem divino ou as construções posteriores.

No entanto, a análise documental de cada um desses corpora implica em

estudo muito mais aprofundado do que meramente indicativo. Por essa razão foi

realizada uma escolha, mas, indubitavelmente, o estudo para os outros documentos

deverá ser efetuado em momento posterior. Mas, antes, a contextualização do

ambiente (milieu) em que esses homens divinos surgiram precisa ser realizada. Esse é

o objetivo do capítulo a seguir.

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II. O ambiente (milieu) mágico mediterrânico: visões sobre poder e

magia antigos

1. Panorama

No capítulo precedente foi discutido a partir de que bases o modelo thĕiŏs

anēr (homem divino) foi construído do ponto de vista da história de sua interpretação.

Cumpre, porém, observar em qual contexto se tornou possível tal construção. O ponto

central neste capítulo é demonstrar como a audiência mediterrânica estava

absolutamente familiarizada com práticas mágicas e, mais além, na suas experiências

místicas, magia, religião e mitologia eram fundamentalmente interligadas e

interdependentes.

Duas questões preliminares, porém, tornam-se imprescindíveis para o avanço

ruma à demonstração documental e historiográfica das experiências místicas

mediterrânicas: (i) a semântica adequada, a partir da qual se pode discutir esse milieu;

e, (ii) a falsa dicotomia, criada pela ciência moderna, que polariza as experiências

mágicas (ou místicas) entre "povo" e "elite".

Como será discutido a seguir (e de alguma forma já explicitado na introdução

da presente tese), analisar o ambiente mediterrânico antigo, a partir da documentação,

nos termos semânticos adequados, é atentar para a pluralidade das experiências

religiosas - elas nunca são singulares - e romper com a noção da ciência moderna de

que magia é "coisa do povão" - pobre - convém sublinhar, enquanto que religião é

algo civilizado, próprio de camadas sociais mais intelectualizadas e socialmente mais

prósperas.

2. Algumas definições necessárias sobre semântica, cultura e teologia

O ponto de partida para a questão das definições pode ser iniciado através das

observações de Georg Luck. Em uma obra originalmente de 1985, mas reeditada em

2006, no capítulo que dedica a discutir os "milagres", de imediato ele define o termo:

"(...) eventos extraordinários presenciados por testemunhas, mas que não podem ser

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explicados como efeitos do poder humano ou pelas leis da natureza59

." (LUCK,

2006:177). A seguir, problematizando a definição que acabara de oferecer, atesta a

dificuldade da mesma, pois,

"a definição, que pode ser provisória, mostra a dificuldade de

separar os milagres do poder de fazer magia (a palavra grega

dýnamis abarca ambas as coisas), posto que a magia produz efeitos milagrosos e os milagres podem ser atribuídos à magia.

60" (LUCK,

2006:177).

Ora, dada a questão problemática da definição do termo "milagre" e sua

relação intrínseca com a magia, como é possível falar de milagres, magia, homens

divinos e tantos outros termos que se referem às experiências místicas

mediterrânicas? O próprio Luck sugere um caminho: "O problema é, em parte,

semântico, em parte, cultural e, em parte teológico61

." (LUCK, 2006:177). Convém

agora voltar a atenção para o problema semântico.

2.1. Milagre

A acepção do vocábulo no dicionário (HOUAISS, 2001):

"substantivo masculino ( século XIII)

1 ato ou acontecimento fora do comum, inexplicável pelas leis

naturais; 2 acontecimento formidável, estupendo;

3 evento que provoca surpresa e admiração;

4 história do teatro: tipo de drama medieval edificante, baseado na vida dos santos e seus milagres;

5 religião: qualquer indicação da participação divina na vida

humana;

6 religião: indício dessa participação, que se revela especialmente por uma alteração súbita e fora do comum das leis da natureza;

7 objeto de madeira ou cera, freqüentemente, a reprodução de uma

parte do corpo, oferecido aos santos em cumprimento de uma promessa;

59 Tradução pessoal de: "(...) extraordinary events that are witnessed by people but cannot be explained

in terms of human power or by the laws of nature." 60 Tradução pessoal de: " The definition, tentative as it may be, shows us how di˜cult it is to separate

miracles from the power of performing magic (the Greek word dynamis covers both), because magic

does produce miraculous evects, and miracles can be attributed to magic." 61 Tradução pessoal de: " The problem is partly semantic, partly cultural, partly theological."

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8 representação pictórica legendada do fato que originou a

promessa, oferecido aos santos como pagamento de seu

cumprimento;"

A partir de sua definição e extensão de sentido, convém observar sua

etimologia (HOUAISS, 2001):

"latim: miracŭlum,i 'prodígio, maravilha, coisa prodigiosa,

extraordinária'; ver mir-; evolução: século XIII: miragres; século

XIV: milagre; século XIV: melagre; século XIV: millagre; século

XIV: mjlagre; século XV: milagros".

Ainda na etimologia, conforme sugerido pelo dicionário trata-se de uma palavra que

tem sua origem no antepositivo mir-:

"antepositivo, do latim mīrus,a,um 'admirável, maravilhoso,

espantoso'; derivação e composição latinos: miror,āris,ātus

sum,āri: 'admirar-se, espantar-se', miro, as, āvi, ātum, āre 'id.' (panromânico): 1) 'espantar-se' romn. mira; 2) 'ver, olhar'

mirare [francês mirer], friulano zmirá, provençal mirar; mirabundu

, a, um 'muito admirado', miratĭo, ōnis 'admiração,

espanto', mirātor, ōris 'admirador', miracŭlum, i 'prodígio, maravilha (italiano miracolo, francês miracle, espanhol milagro,

português milagre), mirabĭlis, e 'admirável, maravilhoso', donde

o plural mirabilĭa, ĭum: italiano meraviglia, maraviglia, friulano maraveye, francês merveille, provençal meravelha,

catalão meravella, espanhol maravilla, português

maravilha; admīror, āris, ātus sum, āri 'admirar, venerar', admirabĭlis, e 'admirável, venerável', admiratĭo, ōnis

'admiração; assombro, espanto', mirifĭcus, a, um 'admirável,

maravilhoso', mirifĭco, as 'glorificar', miridĭcus, a, um 'que diz

coisas maravilhosas';"

Com base no exposto acerca da acepção do termo e na sua etimologia,

algumas observações fazem-se necessárias:

(i) trata-se de um termo amplamente ligado a um ambiente mágico-

religioso (esse trabalho vem adotando o termo "mística" para essa

realidade). Embora sua etimologia remeta à experiência do "ver", ato

contínuo esse mirar, olhar, ver, está associado ao espanto, à admiração ao

que é maravilhoso; a relação entre "ver", "olhar" ou a presença do "olho"

no contexto mágico será mais adiante exposta;

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(ii) a palavra milagre é de difícil etimologia, em sentido moderno,

derivado do latim (somente) tardio. Situada sua origem no século XIII,

passou a designar um conjunto de atos sobrenaturais, metafísicos, aqueles

que extrapolam os limites da física (phísis) e dizem respeito a uma esfera

para além da "natural";

Usualmente é dito que a literatura do Novo Testamento, especialmente os

evangelhos que contam a vida de Jesus, está repleta de histórias e realizações

miraculosas. De igual forma, a tradição literária grega, egípcia, romana, helenística,

etc., estão repletas dessas histórias que narram milagres. É absolutamente impossível

encontrar qualquer indivíduo ocidental que não saiba a que se refere o vocábulo

"milagre". Independentemente de sua confissão religiosa, fatalmente, qualquer um

está a par do assunto quando o vocábulo é mencionado.

No entanto, para o que compete a este trabalho discutir, se o que se tem no

horizonte são experiências místicas mediterrânicas, testemunhadas epigráfica,

arqueológica ou literariamente em documentos no idioma grego, em vasto período

cronológico (a referência é desde a Grécia homérica até o período helenístico), o

termo "milagre" não deve ser empregado.

A razão é bastante simples: ele não existia! Somente pós século XIII é que

traduzirá, linguisticamente, um conjunto de outros termos - no caso aqui delimitado -

gregos. Um exemplo se faz adequado aqui. Para o estudioso de cristianismos, o

primeiro documento que vem às mãos é o - assim chamado - Novo Testamento. Nas

diferentes traduções em língua portuguesa, invariavelmente, as histórias evangélicas

sobre Jesus virão acompanhadas com o vocábulo "milagre" para descrever alguns

episódios extraordinários atribuídos ao nazareno.

O passo seguinte, para compreender o emprego do vocábulo "milagre", em

alguns contextos e, "poder", "força" ou "sinal" em outros, será o de buscar os mesmos

termos no idioma original em que o material foi escrito, em grego. Ao proceder tal

busca, o pesquisador deparar-se-á com um espectro mais abrangente de termos

naquelas narrativas em que as traduções para o português inseriram o verbete

"milagre": thaûma (ou formas declinadas, como thaymatós), dýnamis, sēmĕîa, tĕras

ou ĕrgŏn.

A seguir, uma simples busca ao dicionário grego levará o estudioso a perceber

que as acepções primárias das palavras acima listadas não será "milagre". Por

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extensão de sentido ou segundas acepções, possivelmente sim, mas o sentido

primeiro, nunca. Intrigado por tal incongruência, se ainda lhe restar apetite para

seguir as pistas, o pesquisador buscará, na Vulgata (tradução latina da Bíblia

realizada entre fins do século IV e início do V e.c.) de que forma os termos gregos

levantados anteriormente foram traduzidos do grego para o latim.

Se não estiver ciente da história e etimologia do termo "milagre" conforme

exposto acima, estará ávido por identificar esse termo em todas as respectivas

ocorrências gregas também já mencionadas. Qual será sua decepção ao não encontrá-

lo, pois assim procedeu a edição latina (cf. Luck, 2006:177):

Termo grego Tradução latina Português sēmĕîa signum Sinal tĕras prodigium Prodígio dýnamis virtus Poder Tabela 8: Comparação entre as versões latina e grega para os termos associados a milagres no Novo

Testamento

Não parece estranho ou surpreendente que exista tanta dificuldade em

entender a relação entre milagres e magia ou os significados de cada ação atribuída a

Jesus. Trata-se, de fato, de uma questão semântica. Mas, não somente. Conforme

citação acima, Luck (2006:177) tem razão ao enunciar que se trata de um problema

semântico, mas também cultural e teológico. Cultural, pois "(...) a religião de uma

pessoa pode ser a magia de outra62

." (LUCK, 2006:177). Conforme ficará evidente

mais adiante, nos tópicos imediatamente subseqüentes, o emprego deste ou daquele

termo indicará maior ou menor grau de envolvimento no campo das práticas mágicas,

bem como seus significados e conseqüências.

E, mais ainda, os diferentes graus de proximidade com o campo mágico,

através, primária, mas não exclusivamente, da semântica são evidentes na própria

documentação, seja ela de natureza paleocristã ou não. A questão da semântica,

contudo, não deve se limitar apenas a esse passo, pois outros termos carecem de

definição e delimitação adequada se o que se pretende é prestar a devida atenção à

questão do criterioso emprego da terminologia63

e seus desdobramentos.

62 Tradução pessoal de: "(...) To rephrase it, one person‘s religion may be another person‘s magic." 63 A seguir, será continuada a discussão e análise que envolve a questão semântica no estudo das

experiências místicas mediterrânicas e práticas mágicas. Cumpre, porém, observar que não se trata de

um estudo exaustivo dos termos e fontes na literatura grega e paleocristã, por extensão, pois (i) esse

estudo exaustivo não faz parte do escopo do capítulo; e, (ii) não se julga possível um estudo tão

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Optou-se, aqui, por agrupar a discussão semântica em trono de dois grupos de

termos referentes ao campo de práticas mágicas: (i) os "sinais": sēmĕîon, tĕras e

ĕrgŏn; e, (ii) o "poder": ischýs, ĕxŏysía e dýnamis. A razão pela qual esse

agrupamento foi delimitado tem a ver, diretamente, com seus respectivos

significados. Pois, para o primeiro grupo de termos, seus sentidos dizem mais respeito

ao indicativo quanto ao que fazem, mas não ao ato mágico per se64

.

Já para o segundo grupo, a relação é mais direta. Como será demonstrado a

seguir, aquele que é capaz de compreender, atuar ou realizar feitos poderosos detém

uma "força" ou mesmo um "poder" que os distingue dos demais. O portador desse

poder é o próprio agente da divindade ou de forças cósmicas capazes de atuar em uma

esfera sobre-humana. É precisamente a distinção no emprego dos termos desses dois

grupos de palavras que esclarecerá o grau de atuação de um mago, homem divino ou

outro agente dessas forças cósmicas.

2.2. Os "sinais": Sēmĕîon, Tĕras e Ĕrgŏn

Para o caso de sēmĕîon (sinal), de imediato, convém observar a acepção do

vocábulo em sua definição do dicionário (LIDDEL & SCOTT, 1997) e suas

respectivas ocorrências.

(a) do ponto de vista da etimologia e evolução do termo65

:

aprofundado e detalhado a ponto de analisar cada ocorrência em toda literatura grega e paleocristã no

que se refere ao emprego e estudos dos termos. No entanto, apontamentos cuidadosamente

selecionados e amplos quanto possíveis terminarão por relacionar os termos e articulá-los entre si para

atingir o que se pretende neste estudo. 64 Um esclarecimento no que diz respeito à escolha desses dois grupos de palavras se faz pertinente. Os

seis termos mencionados são os que fazem parte do campo semântico do que a literatura

neotestamentária e da Tradição Cristã se utilizam para relatar "milagres" e quem os realiza. Feito um

levantamento nos Evangelhos Sinóticos, João e Atos, esses termos são decisivos nesse contexto, não

há outros. No interior do corpus neotestamentário há outros termos e menções ao ambiente e práticas

mágicas, obviamente. Porém, o que se deseja aqui é perceber muito mais uma questão de nomenclatura (milagres em si e quem é capaz de realizá-los) do que um levantamento exaustivo de episódios

contidos nas narrativas bíblicas que atestem as próprias práticas mágicas ou seus respectivos contextos.

O mesmo levantamento não foi realizado em toda literatura grega (ver nota 63), mas, para os seis

termos aqui relacionados, sempre que possível, estabelecer-se-á as relações entre os seus usos na

literatura paleocristã e naquela que não o é. 65 Para testemunhar a história da evolução do termo, Liddel & Scott lançam mão de três importantes

corpora epigráficos gregos: IG (Inscriptiones Graecae), IPE (Inscripitiones orae septentrionalis) e

CIG (Corpus Inscriptionum Graecarum). Dos três, destaca-se aqui o IG. Trata-se de um conjunto de

inscrições advindos da Grécia e Ásia Menor cobrindo datação desde VI século a.e.c. até o VI século da

era comum. Algumas edições foram publicadas desse material, notadamente a de Wilhelm

Dittenberger, entre 1917-1920, com comentários em latim. Trata-se de um importante material

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"ζημεῖον, ηό: Jônico ζημήϊον, Dórico: ζα_μήϊον IG12(3).452 (Thera, iv século a.e.c.), ζα_μεῖον IPE12.352.25 (Chersonesus, ii

século a.e.c.), IG5(1).1390.16 (Andania, i século a.e.c.), ζα_μᾶον

CIG5168 (Cyrene): ζῆμα em todos os sentidos, e mais comum na prosa, mas nunca em Homero ou Hesíodo."

A evolução do termo, portanto, apresenta variações quanto à grafia e, apenas para o

caso do termo empregado no grego de dialeto dórico, altera-se o sentido. Para todas

as outras ocorrências a palavra tem o sentido de "sinal", mas, no caso dórico, também

é atestado o significado de "tumba". Esse testemunho está presente em apenas um

documento epigráfico (mencionado acima). Com a evolução do dialeto dórico,

entretanto, esse sentido acabou por cair em desuso.

(b) do ponto de vista de seu significado:

Há três significados principais para a palavra, nessa ordem de ocorrência,

sentido e relevância: (i) "marca", através da qual uma coisa é conhecida; "sinal" do

futuro; "traço", "rastro", "indício". (ii) "sinal", "símbolo", "indicação", de qualquer

coisa que é ou é para ser; (iii) sēmĕîon = stigmē: um "ponto matemático"; também

"ponto de tempo", "instante". Dos três, o terceiro é o menos freqüente, portanto,

menos usual, além disso, não guarda relação com o ambiente mágico.

A primeira (e principal) acepção da palavra tem um sentido mais geral,

portanto, suas derivações de sentido abarcam um conjunto maior de referências: (a)

"sinal que vem dos deuses", "maravilha", "prodígio", "constelações" (tidas como

sinais); (b) "sinal" ou "sinalizar", fazendo alguma coisa: sinal de uma bandeira, sinal

para a batalha, abaixar a bandeira como um sinal de encerramento de uma assembléia;

sinal para começar um trabalho...; (c) "estandarte", "bandeira", em um barco, por

epigráfico que testemunha diferentes situações cotidianas de regiões mediterrânicas que adotaram, em

algum momento, o idioma grego. As referências aqui cotejadas estão presentes em Liddel & Scott, no

entanto, quando mencionadas em outros momentos desse trabalho seguirão as indicações presentes em: "Searchable Greek Inscriptions" (disponível em: http://epigraphy.packhum.org/inscriptions/), um

projeto oriundo do "The Packard Humanities Institute", desenvolvido e mantido pela Cornell

University e Ohio State University; e, também, do "Attic Inscriptions Online", um projeto

desenvolvido e mantido pelas universidade de Cardiff (Inglaterra) e Utrecht (Alemanha). O primeiro

deles apresenta o material em grego, enquanto que o segundo traz as traduções disponíveis para o

inglês. Conquanto sejam poucas as traduções, no que diz respeito a este trabalho, tornam-se

significativos, pois, uma vez assentados os termos apropriadamente - de acordo com o objetivo acima

traçado de discutir a semântica dos termos gregos oriundos do ambiente mágico - será possível obter

evidências de seu emprego em contextos específicos, bem como as estatísticas pertinentes quanto ao

uso deles.

Entre parêntesis, os nomes das respectivas localidades que testemunham tais ocorrências.

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exemplo; (d) "demarcação de terra", "fronteira", "limite"; (e) "dispositivo", sobre um

escudo, um barco, por exemplo; (f) "sinete", como um toque; (g) "palavra de ordem",

"senha", "código", para uma batalha; (h) "sinal de nascença".

A segunda acepção, embora um pouco mais confinada a alguns contextos

específicos, ainda sim abarca um conjunto mais geral de sentidos: (a) "sinal" ou

"prova", "exemplo", para introduzir um argumento; (b) em Aristóteles: "sinal" usado

como "provável argumento que dá prova ou conclui"; entre os estóicos e epicureus:

"sinal" como base observável de inferência para o não observável; (c) em medicina:

"sintoma"; (d) "sinais taquigráficos"; (e) "marca crítica".

O termo grego sēmĕîon abarca um conjunto bastante amplo de significados. O

que se faz central na questão do emprego do termo é que, quando aplicado a

momentos relacionados a curas, exorcismos, adivinhações ou referências astrológicas,

ele quer fazer referência a algo ou alguém. Ou seja, não se trata de um ato, em si,

revestido de significado próprio, mas deve ser observado como aquilo que aponta

para outra coisa ou alguém. Em ambiente literário e epigráfico grego o uso do

vocábulo pode ser assim sumarizado:

"Em resumo, três coisas podem ser ditas. Em primeiro lugar, no ponto central, o uso grego antigo de ζημα é bastante uniforme,

mesmo onde parece ser divergente. Em segundo lugar, a palavra

sempre tem a ver com um objeto ou circunstância que torna possível ou é projetado para tornar possível uma percepção ou visão

específica. Em terceiro lugar, não é, desde o início, ligado à esfera

religiosa; ela adquire uma nuance religiosa apenas quando utilizado em um contexto religioso. Seu caráter é, em última análise, técnico

e funcional; isso não é refutado até mesmo quando o seu objeto é

uma verdade religiosa ou moral. Mesmo aqui, não tem nada a ver

com a revelação no sentido religioso; sua referência é à divulgação de que ele é o pressuposto indispensável de todo o conhecimento

66."

(RENGSTORF, 1995:203).

A seguir, é necessário abordar o verbete tĕras, pois além de estar associado ao

campo das práticas mágicas mediterrânicas, usualmente ele está vinculado ao termo

66 Tradução pessoal de: "By way of summary three things may be said. First, at the central point the

early Greek use of ζη̂µα is quite uniform even where it seems to be divergent. Secondly, the word

always has to do with an object or circumstance which makes possible or is designed to make possible

a specific perception or insight. Thirdly, it is not from the outset connected with the religious sphere; it

acquires a religious nuance only when used in a religious context. Its character is in the last analysis

technical and functional; this is not refuted even when its object is a religious or moral truth. Even here

it has nothing to do with revelation in the religious sense; its reference is to disclosure as the

indispensable presupposition of all knowledge."

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114

sēmĕîon. Sua definição no dicionário é mais simples (LIDDEL & SCOTT, 1997):

"sinal", "maravilha", "prodígio" - "sinal" de batalha iminente, "sinais" no céu. Do

ponto de vista da etimologia não foram observadas alterações em seu significado para

além do que acaba de ser mencionado.

Há, ainda, outros dois significados secundários: (a) em sentido concreto,

"monstro": de uma serpente, esfinge, etc., ou se referindo a "nascimento de um

monstro", "monstruosidade"; (b) em linguagem coloquial, "maravilhoso" ou

"incrível". Em termos de emprego quanto ao seu sentido concreto, observa-se uma

proximidade entre tĕras e pĕlōr ("terrível", "sinal miraculoso", "o monstro"), no

entanto, por fazerem parte do mesmo campo semântico, não se faz necessária outra

abordagem a esse respeito.

A forma mais pertinente de se compreender o emprego de tĕras é que ele

submete o que é percebido à questão do propósito para o qual é realizado, sempre,

vinculado a quem ou o que o realizou. (RENGSTORF, 1995a:124). Logo, em si, não

adquire valor miraculoso, mas aponta para tal ato e quem o realizou. Embora faça

parte do campo semântico de práticas mágicas, seu uso, primariamente reivindica o

propósito de sua realização, bem como aponta para o agente de tal ação.

No Novo Testamento tĕras aparece sempre acompanhado de sēmĕîon,

portanto, enquanto termo isolado, não desempenha papel significativo

(RENGSTORF, 1995:230). Nas ocorrências em Atos dos Apóstolos os dois termos

aparecem de duas formas: sēmĕîa kaì tĕrata (4,30; 5,12; 14,3; 15,12) e tĕrata kaì

sēmĕîa (2,19.22.43; 6,8; 7,36).

A alternância de termos parece indicar uma sutileza semântica interessante.

Nos casos em que aparecem sēmĕîa kaì tĕrata a ênfase recai sobre Deus, que é aquele

que, através de sua operação, confere um novo significado ao tempo presente. Ou

seja, os "sinais e prodígios" acontecidos são a prova ou expressão que apontam para a

iniciativa de realização da parte de Deus.

Agora, para o segundo caso, tĕrata kaì sēmĕîa, "os prodígios e sinais"

colocam a ênfase no ato que é realizado como demonstração do poder (dýnamis) de

Deus (ou Espírito Santo, em Atos 2, episódio do Pentecoste). A dinâmica é gerar o

espanto, maravilhamento (tĕrata), através de um sinal (sēmĕîa) que prova seu poder

(dýnamis) e gera adesão àquela fé. É o ato em si que aponta para o poder de Deus67

.

67 Deus (ou Espírito Santo) como agente divino de poder e sujeito da ação que envolve tĕras se

assemelha ao que vê-se em contexto de literatura grega. Para o caso de Homero, o emprego do termo

Page 115: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

115

O que se torna conclusivo a partir da análise dos termos sēmĕîon e tĕras é que

ambos desempenham função semântica de "sinalizar" ou "apontar" para a realização

de um feito por parte de alguma coisa ou alguém. Em todos os casos em que são

empregados (em muitos casos são usados em conjunto, como, por exemplo, no Novo

Testamento, em que só aparecem juntos) na literatura grega têm esse significado

primário. Ainda sim, devem ser percebidos em contexto de práticas mágicas, mesmo

quando sua ocorrência é carregada de valor teológico.

Por fim, outro termo significativo nesse contexto é ĕrgŏn. A definição

(LIDDEL & SCOTT, 1997) é bastante ampla e com significados não tão elaborados

em contexto de literatura não neotestamentária. Quanto à etimologia, em dialeto

dórico, conforme IG 4.800 (vi século a.e.c.), tem alteração apenas na grafia, mas não

em sentido primário: "trabalho". Inclusive, é esse seu sentido básico.

Por extensão de significado, entretanto, assume as outras formas: (i)

"trabalho", "feitos", "ações"; (ii) "trabalhos" ou "feitos" de tecelagem, na terra, em

batalhas, colheitas, pesca. Para além de sua acepção como "trabalho" em sentido mais

comum, será sua possibilidade de sentido enquanto "feitos" que implicará em usos

distintos na literatura paleocristã:

"É somente no NT, no entanto, que, juntamente com a referência às obras maravilhosas de Deus, temos uma consciência clara do seu

trabalho e atividade salvadora com base na vontade divina para

resgatar o que é constantemente comprovada em todas as obras

individuais. Se o conceito de θεοῦ ἔπγα corresponde a uma visão abrangente da obra de salvação, não é surpreendente que ele é, em

sua maior parte, ausente na tradição sinótica. Apenas em Mt. 11,2

lemos que João Batista na prisão ouve sobre os atos de Jesus (...). O Batista não pode avaliá-los como atos de Cristo (como na maior

parte dos manuscritos do ponto de vista dos leitores cristãos e,

possivelmente, o autor), e, portanto, ele não pode considerá-los

como a obra da salvação68

." (BERTRAM, 1995:640-641).

está sempre vinculado aos deuses, são os casos de Ilíada 4,398; 4,408 e 6,183 (HOMERO, 2004); na

Odisséia 12,394 (HENDERSON, 2014): Zeus é o único divino autor de tĕras e, eventualmente, o

concede a demais divindades do Olimpo. (BERTRAM, 1995:636). 68 Tradução pessoal de: "It is only in the NT, however, that along with the reference to the wonderful

works of God we have a clear awareness of His saving work and activity on the basis of the divine will

to redeem which is consistently attested in all the individual works. If the concept of the ἔπγα θεοῦ

corresponds to a comprehensive view of the work of salvation, it is not surprising that it is for the most

part lacking in the Synoptic tradition. Only in Mt. 11:2 do we read that John the Baptist in prison hears

of the acts of Jesus (...). The Baptist cannot evaluate them as acts of Christ (as in most of the MSS

from the standpoint of the Christian readers and possibly the author), and therefore he cannot regard

them as the work of salvation."

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116

Trata-se de uma distinção importante no que diz respeito à atestação do termo

ĕrgŏn na literatura grega, pois seu emprego adquire outro significado completamente

diverso daquele conhecido até então69

. A teologia paleocristã será responsável por

tornar os "feitos" e "obras" de Deus algo que deve ser compreendido em um contexto

mais elaborado e subjetivo e, acima de tudo, religioso. Especialmente, será o caso do

Evangelho de João.

O conceito de atos (ĕrga) salvíficos de Deus, através de Cristo, é muito

comum no Evangelho de João (5,20.36; 7,3.21; 9,3-4; 10,25.32.37-38; 14,10-12;

15,24). Como milagres (o termo correto aqui é ĕrgŏn) esses atos testemunham ou

provam que Jesus carrega a capacidade de salvação em parte delegada por Deus e em

parte efetuadas diretamente pelo próprio Deus, através de Jesus (Jo 9,3, por exemplo).

Nesse cenário, a participação que o homem tem no processo de salvação não é

realizando atos (ĕrga) miraculosos, mas tendo fé neles. E, mesmo que os realize, são

os atos (ĕrga) de Deus que devem ser vistos como um todo enquanto a totalidade da

ação salvífica. (BERTRAM, 1995:640).

Em geral, os autores dos evangelhos sinóticos dialogam com o campo das

práticas e experiências mágicas em sintonia com o que se observa na bacia

mediterrânica, esse capítulo se propõe a deixar esse aspecto mais evidente ao longo

de seu curso. No entanto, em João há distinções fundamentais no que diz respeito a

essa relação.

O que essa tese defende, e pretende que fique bem elucidado no seu conjunto,

é que o conceito fundamental para se falar de homens divinos que conhecem e

manipulam as forças (dýnamis) cósmicas é o poder (dýnamis). Inclusive, é essa

palavra que mais foi usada para a tradução, em diversos idiomas, para "milagre". É

bastante evidente que na bacia mediterrânica a associação entre pessoas (homens

divinos, magos, etc.) e poder (dýnamis) conformou um imaginário da magia. É

exatamente essa associação que tornou conhecido o homem divino. Talvez por isso

João tenha evitado o seu uso.

69 Embora não se encontre atestação da palavra ĕrgŏn em sentido religioso fora do material

paleocristão, cumpre observar que na filosofia platônica e aristotélica seu uso adquire um sentido mais

complexo do que sua simples acepção ordinária. Em Platão está associado a tĕchnē (técnica). Bem

como a arĕtē (virtude). A palavra ĕrgŏn está ligada à esfera da civilização, não a uma natureza

orgânica. E mais, para o homem, a ĕrgŏn psuchēs é central. No caso de Aristóteles, o termo é aplicado

não só aos seres humanos, mas às espécies não humanas. Assim, a arĕtē (virtude) de cada criatura

consiste em cumprir o seu próprio e específico ĕrgŏn, por exemplo: o olho do cavalo de corrida deve

ver e guiar a corrida. O correto cumprimento dessa função (ĕrgŏn) resulta na sua arĕtē (virtude).

(BERTRAM, 1995:635).

Page 117: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

117

A palavra dýnamis não ocorre nenhuma vez no referido Evangelho. Em alguns

casos (At 2,22; Rm 15,19), a expressão sēmĕîa kaì tĕrata adquire o sentido de

dynámeis, como milagres, no plural, como também é o caso de Mateus, mas nunca

em João. Apenas duas vezes a raiz de dýnamis, na forma verbal de dýnasthai, ocorre

em João (3,2; 9,16), mas para se referir a Jesus como um "sinal produzido" por Deus.

A forma substantiva de dýnamis nunca ocorre (RENGSTROF, 1995:230).

No que diz respeito a ĕrgŏn, em João, para além do sentido já explicitado

acima, o texto a entende de forma conjunta com sēmĕîon e dýnasthai. Essas três

palavras, em João, representam um tipo de tripé relacional para se entender o

"miraculoso", "maravilhoso" ou "fantástico" (thaymatós). Dessa forma, compreender

de que forma João define Jesus em termos de alguém dotado de capacidade para ser

um ente poderoso depende da elucidação que sēmĕîon e ĕrgŏn guardam em seus

contextos. (RENGSTROF, 1995:230).

A advertência, aqui, é para que seja dada a devida atenção antes de se

harmonizar a visão dos sinóticos quanto a suas respectivas compreensões de sēmĕîon,

ĕrgŏn, tĕras e dýnamis, de um lado e a visão joanina de sēmĕîon e ĕrgŏn, por outro.

Uma vez posta a advertência sobre o risco da harmonização no emprego dos termos e

seus respectivos significados e conseqüências, observada há séculos de Tradição

Cristã, torna-se imperioso analisar que papel o conceito de poder desempenha na

questão semântica e, por conseguinte, na sua importância para compreensão de

experiências místicas mediterrânicas no geral e paleocristãs no particular.

2.3. O "Poder": Kratŏs, Ischýs, Ĕxŏysía e Dýnamis

No idioma grego, basicamente, quatro termos são usados para denotar "poder"

(dýnamis), "força" (kratŏs, ischýs) ou "autoridade" (ĕxŏysía). Nas culturas

mediterrânicas, é notório o ambiente de constante competição e conflito, o mundo é

visto como habitado por demônios e homens com poderes extraordinários, os quais

desempenhavam um papel regular e ameaçador na esfera humana. Um mundo em que

as misteriosas forças da magia estão atuando em toda parte (ELLIOTT, 2008:223).

Em tal contexto, manipular, conhecer ou interagir com essas forças tornam

indivíduos, além de protegidos, privilegiados por interagirem com forças complexas e

estranhas à maioria.

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118

Logo, quanto mais próximos ou inseridos, como agentes, nesse universo

místico, mais os indivíduos adquiriam e eram reconhecidos por suas distintas formas

de poder, força ou autoridade. Conclusivamente, a preocupação central passa a ser a

observação ou dinâmica sobre que tipo de poder se está falando, o que significa e

quais suas implicações. As fronteiras de significados entre eles são por demais

artificiais se o que se tem em vista é seu campo semântico. Todos, em última

instância, têm conotações que envolvem forças para além da humana e, obvimanete,

relacionam-se ao campo das práticas mágicas.

Com exceção de krátŏs, os demais têm seus sentidos primários derivados de

dýnamis: "ser capaz", "estar apto a", "habilidade". Na raiz das três palavras está esse

sentido fundamental. Por extensão de sentido é que adquirem a conotação de "poder".

Por sua vez, krátŏs, nas suas acepções70

, está mais perto do sentido de ischýs do que

dýnamis, denotando a presença e significado de força e, menos, o seu exercício

(MICHAELIS, 1995:905).

Trata-se de um termo comum tanto na literatura grega quanto na

neotestamentária e carrega, na esmagadora maioria dos casos, o sentido de força ou

poder em sentido mais concreto71

. Se comparado aos outros termos é o que menos

ocorre em contextos de práticas mágicas, entretanto, nem por isso deixa de ter como

sujeito divindades. Seu significado deve ser entendido à luz daquele que governa

todas as coisas por ter poder e autoridade sobre tudo e todos, porém ele é derivativo

de outras formas de poder, como, por exemplo, dýnamis (em sentido mais

sobrenatural) e ischýs (em sentido mais físico e concreto).

Por sua vez, a acepção de poder como ischýs está ligada à força mais física,

porém, em alguns casos, também é empregado em contextos sobrenaturais ou

concretos (governantes) com o sentido de autoridade (LIDDEL & SCOTT, 1997).

Um exemplo bastante interessante, em contexto neotestamentário, ajudará no seu

entendimento. Trata-se das seguintes passagens: Mateus 3,11; Marcos 1,7; Lucas 3,16

e 11,22.

Para as quatro passagens mencionadas, o termo ischýs é mencionado no grau

superlativo. As três primeiras referem-se a uma narrativa sinótica (Lucas e Mateus

que se serviram de Marcos) e contam a maneira pela qual os autores evangélicos

70 (i) "força" física, da tempestade, no trabalho; (ii) "poder" personificado, político, de propriedade,

autoridade; (iii) "senhorio", "vitória"; (iv) "ligamentos" do corpo humano, assim chamados pela

medicina; e, finalmente, (v) usado como numeral dez. (LIDDEL & SCOTT, 1997). 71 LIDDEL & SCOTT, 1997 e MICHAELIS, 19995.

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119

construíram a memória sobre João, o Batista e sua concepção de si mesmo e referente

a Jesus72

:

Marcos 1,7 Mateus 3,11 Lucas 3,16 E pregava, dizendo: Depois

de mim vem aquele que é mais poderoso do que eu,

do qual não sou digno de,

curvando-me, desatar-lhe as

correias das sandálias.

Eu vos batizo com água,

para arrependimento; mas aquele que vem depois de

mim é mais poderoso do que

eu, cujas sandálias não sou

digno de levar. Ele vos batizará com o Espírito

Santo e com fogo.

disse João a todos: Eu, na

verdade, vos batizo com água, mas vem o que é mais

poderoso do que eu, do qual

não sou digno de desatar-

lhe as correias das sandálias; ele vos batizará

com o Espírito Santo e com

fogo. Tabela 9: Ischýs ("poder", "força") em perspectiva comparada nos evangelhos sinóticos

A seguir, algumas observações preliminares:

(i) O Evangelho de Marcos é o mais antigo (em torno dos anos 66-70 e.c.)

vindo, a seguir, Mateus (década de 80 e.c.) e, posteriormente, Lucas (algo

em torno de 95-100 e.c.); de acordo com a "Teoria das Duas Fontes", o

que há de comum entre Mateus e Lucas, e não está em Marcos, provem

de Q (Quelle - a Fonte dos Ditos). Quanto ao que está em Mateus, Lucas e

Marcos, conclui-se que os dois primeiros utilizaram - e modificaram - a

memória contida no último (KOESTER, 2005:48-52);

(ii) os textos são bastante semelhantes entre si. Em comum: João é quem

fala, aquele que vem após João é mais poderoso (ischyrŏtĕrŏs) e João não

é digno de desatar as sandálias daquele que vem. Divergências: em

Marcos João prega, para Mateus e Lucas, enquanto realiza batismos, ele

fala, Marcos nada fala sobre batismo, mas Mateus e Lucas diferenciam o

batismo de João (água) para o que realizará aquele que vem (Espírito

Santo e fogo);

(iii) aquele que vem, em Marcos, e aquele que vem em Mateus e Lucas

tem algo que João não tem, pois ele é - segundo a tradução (ARA) aqui

utilizada - "mais poderoso".

Uma vez apresentadas as narrativas convém listar o único outro caso, nos

sinóticos, em quem alguém "mais poderoso" (ischyrŏtĕrŏs) aparecerá em cena, trata-

72 Optou-se aqui por inserir os textos em língua portuguesa, a partir da versão Almeida Revista e

Atualizada (ARA) de 1993. Mas, a discussão pertinente considerará o verbete grego em destaque.

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120

se de Lucas 11,22. A cena se passa em um momento em que Jesus está realizando um

exorcismo e, a seguir, um debate se instaura, eis a perícope:

"14 De outra feita, estava Jesus expelindo um demônio que era

mudo. E aconteceu que, ao sair o demônio, o mudo passou a falar; e

as multidões se admiravam. 15

Mas alguns dentre eles diziam: Ora, ele expele os demônios pelo poder de Belzebu, o maioral dos

demônios. 16

E outros, tentando-o, pediam dele um sinal do céu. 17

E, sabendo ele o que se lhes passava pelo espírito, disse-lhes: Todo reino dividido contra si mesmo ficará deserto, e casa sobre casa

cairá. 18

Se também Satanás estiver dividido contra si mesmo, como

subsistirá o seu reino? Isto, porque dizeis que eu expulso os demônios por Belzebu.

19 E, se eu expulso os demônios por

Belzebu, por quem os expulsam vossos filhos? Por isso, eles

mesmos serão os vossos juízes. 20

Se, porém, eu expulso os

demônios pelo dedo de Deus, certamente, é chegado o reino de Deus sobre vós.

21 Quando o valente, bem armado, guarda a sua

própria casa, ficam em segurança todos os seus bens. 22

Sobrevindo,

porém, um mais valente do que ele, vence-o, tira-lhe a armadura em que confiava e lhe divide os despojos.

23 Quem não é por mim é

contra mim; e quem comigo não ajunta espalha." (Almeida Revista

e Atualizada, 1993).

Observações pertinentes à discussão aqui travada presentes na narrativa:

(a) v.14: "as multidões se admiravam (ĕthýmasan, forma verbal no aoristo

de thaymázō)" indica um termo próprio de ambiente mágico, pois a cena é

de um exorcismo praticado por Jesus;

(b) v.16: após ser associado, por parte de alguns, a "Bĕĕlzĕbŏul", outros

pediram um sinal (sēmĕîŏn) do céu. Em se tratando desse contexto

mágico, o autor do Evangelho não somente emprega termos relativos a

esse ambiente, como também demonstra a dinâmica de atuação de um

"mago" / "homem divino" / "charlatão", etc.. Muito embora, no v.20 o

autor confirma a identidade Jesus, ou seja, ele expulsa demônios "pelo

dedo de Deus73

."

73 Um interessante paralelo aqui pode ser traçado com a dinâmica de exorcismo praticada por Salomão

presente no "Testamento de Salomão". Neste documento do século I o autor desenvolve a explicação e

atuação de Salomão de acordo com o poder que Deus o concedeu para o exorcismo. Por meio de um

anel oferecido a Salomão, através de um toque no possuído, um anjo correspondente ao demônio que o

possui é amarrado e o, agora, exorcizado trabalhará na construção do Templo. Essa a justificativa

apresentada pelo documento à destruição do Templo no ano 70 e.c.. Sobre essa dinâmica e a

conseqüente relação entre Salomão e Jesus como "Filho de Davi" (Mc 10,47), ver Pilgaard, 1995:72-

87 e Chevitarese e Cornelli, 2007:103-150.

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(c) após o desenrolar do episódio, o autor faz Jesus contar uma história e a

relacionar com o que acabara de acontecer. Nela, alguém "valente

(ischyrŏs)" protege sua própria casa (v.21). No entanto, quando alguém

"mais valente" (ischyrŏtĕrŏs) ataca a casa e vence o guardião ganha como

recompensa os bens daquela casa.

Sistematizando as informações até aqui nota-se que para os casos em que

ischýs, em sua forma superlativa, tem Jesus como sujeito as traduções para os idiomas

modernos, em geral, preferem entender o termo como "poder". Quando o sujeito é

indeterminado ou não é Deus, Jesus ou discípulos, a preferência é por "força". Essa

segunda opção parece mais adequada, pois indica uma forma de "poder", por meio de

uma autoridade exercida em um tempo presente e concreto. A natureza desse "poder"

ou "força", certamente, tem uma origem - que pode ser metafísica ou não -, mas que

confere uma autoridade exercida, também, por meio da força.

A melhor compreensão no emprego desse termo dever ser tomada a partir da

observação do significado de dýnamis que, inclusive, é pré-requisito para

compreender o conceito de poder presente em ischýs (GRUNDMANN, 1995:397)74

.

Mais uma vez, a advertência de Rengstrof (1995:230) citada no item II.2.2 acima é

importante de ser recuperada, pois a harmonização entre os evangelhos faz com quem

o emprego dos termos relativos a "sinais", "obras", "prodígios" ou "poder" sejam mal

compreendidas.

74 A consulta ao Dicionário de Teologia do Novo Testamento (TDNT, doravante) revela o estudo

analítico de cada verbete por parte de um autor específico. Em alguns casos, um mesmo autor assina

mais de um verbete. É o caso de ischýs e dýnamis, ambos assinados por Walter Grundmann. Essa nota

se justifica por conta da biografia do autor. Alemão que viveu na primeira metade do século XX, foi

um teólogo protestante e ativo colaborador do regime nazista. Não apenas atuou, como foi um

importante articulador da ideologia anti-judaica alemã nesse período estando à frente do "Instituto para

a pesquisa e eliminação da influência judaica na vida alemã". Dentre outras tarefas, esse instituto

liderado por Grundmann foi o responsável por (i) sistematizar idéias e teorias que defendiam um Jesus

ariano, não judeu, mas galileu; (ii) a tradução do Novo Testamento em que todas as referências ou

palavras de origem judaicas fossem eliminadas do texto; (iii) consolidou bases para um "novo espírito

religioso alemão" que sustentou a fé cristã durante o Terceiro Reich re-significando-a e atualizando-a de acordo com os preceitos do Regime. O aprofundamento dessas discussões podem ser vistas em

STEIGMANN-GALL (2004) e MENDES (2014), dentre outras presentes nesses textos. Para o caso

particular, aqui, convém ressaltar que sua análise dos verbetes coloca em evidência a contundente

repulsa em associar o movimento "cristão" desde Jesus até a patrística ao ambiente das práticas

mágicas mediterrânicas. A contextualização e razões para esse empenho, de alguma forma, já foram

apresentadas na introdução do presente trabalho. Por fim, convém observar que é praxe entre estudos

heurísticos a crítica e fundamentação de dados centrado no paradigma epistemológico da dúvida e

diálogo entre autores especialistas em temas de que se faz uso. Para este caso, porém, merece destaque

a rejeição, por parte desse trabalho, às conclusões do referido autor quando se trata de qualquer tema

ligado a inferências sobre as diferentes expressões dos judaísmos ao longo da história e um cuidado

bastante crítico quanto ao que conclui o autor sobre as experiências místicas mediterrânicas.

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122

Não restam dúvidas que o emprego desses termos denota uma atuação e

presença de uma esfera metafísica em seus respectivos contextos. No entanto, o

preciso entendimento semântico dos verbetes aplicados em cada contexto é que

fornecerá base para articular semântica, cultura e teologia no entendimento das

experiências místicas mediterrânicas de acordo com seu milieu próprio. Cumpre, por

conseguinte, avaliar outros dois termos importantes para essa discussão.

Ĕxŏysía tem, basicamente, quatro significados75

:

(i) "habilidade para performar um ato", na medida em que não existam

obstáculos no caminho, como é o caso de dýnamis, este, com sentido de

capacidade intrínseca;

(ii) "o direito de fazer algo ou sobre alguma coisa", ou seja, a

possibilidade concedida por uma lei absoluta ou corte constituída;

"autoridade", "permissão", "liberdade": (a) possibilidade de ação dada

autoritativamente pelo rei, governador ou conjunto de leis ou concedendo

autoridade, permissão ou liberdade para corporações em atividades

especialmente em assuntos legais. As traduções devem expressar os

diferentes lados de um termo que, em si mesmo, denota apenas a

possibilidade de ação; (b) derivado do sentido anterior (a), expressa o

direito de pais sobre os filhos, mestres em relação a escravos,

proprietários sobre propriedades e individualmente com respeito a

liberdade pessoal.

A autoridade aqui mencionada é, contudo, ilusória a não ser que esteja

precedida de um poder real, pois por trás da autoridade sempre deve haver

uma autoridade legal que sustenta o poder de um Estado e confere a ele

validade e direitos. Assim, não é sempre possível ou se constitui tarefa

fácil separar autoridade (ĕxŏysía) de poder (dýnamis). Entretanto, a

distinção ainda se mantém, pois dýnamis depende de um poder inerente

mais uma ação concreta, enquanto que ĕxŏysía é uma autoridade expressa

através de uma ordem pronunciada. Se o que se toma são culturas

mediterrânicas, nas quais governantes, por vezes, têm autoridade ou

comissionamento divino, a dificuldade em perceber as distinções torna-se

75 LIDDEL & SCOTT, 1997 e FOERSTER, 1995.

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123

ainda maior. Nesse sentido, dependendo do contexto, ĕxŏysía pode

englobar a autoridade e o poder (dýnamis);

(iii) pode também ser usado como antítese à lei no sentido de liberdade de

auto-afirmação (ĕxŏysía pŏiētikē, "liberdade poética") ou capricho. Aqui a

associação é evidente com hýbris ("descomedimento", "aquilo que excede

qualquer medida").

(iv) outros sentidos derivativos: "posição autoritária", "oficial de

governo", "governantes";

Tendo considerado os diferentes sentidos que ĕxŏysía pode adquirir, para o

caso do Novo Testamento, seus significados adquirem três nuances básicas:

"Primeiro, ao contrário de expressões íntimas, objetivas, físicas ou

de poder espiritual (κπάηορ, ἰζσύρ, δύναµιρ), denota poder que

decide, de modo que é particularmente bem adaptado para expressar o poder invisível de Deus, cuja Palavra é poder criativo.

A ἐξοςζία de Jesus e dos apóstolos tem o mesmo caráter. Em

segundo lugar, esse poder de decisão está ativo em um todo

juridicamente ordenado, especialmente no Estado e em todas as relações autoritárias por ele apoiadas. Todas essas relações são o

reflexo do senhorio de Deus em um mundo decaído, onde nada

acontece além de sua ἐξοςζία ou autoridade. Elas baseiam-se neste senhorio. Assim, a palavra ἐξοςζία pode referir-se ao fato de que a

vontade de Deus é feita no céu. Ele também pode indicar o fato de a

sua vontade prevalecer na esfera da natureza como uma totalidade ordenada (ἔπγον). Na verdade, ἐξοςζία é dada ao Anticristo para

sua atividade final, de modo que nada acontece além da ἐξοςζία ou

vontade de Deus. Especialmente na comunidade a palavra é

indispensável para expressar o fato de que não podemos ter nada, mas que tem que ser dado a nós. Assim ἐξοςζία descreve a posição

de Jesus como o Cabeça da Igreja, a quem todo o poder é dado e

que dá aos seus discípulos. Essa ἐξοςζία que é operativa em relações ordenadas, esta autoridade para agir, não pode ser separada

do seu exercício contínuo, e, por conseguinte, em terceiro lugar

ἐξοςζία pode denotar a liberdade que é dada para a comunidade76

."

(FOERSTER, 19995:566).

76 Tradução pessoal de: "First, unlike expressions for indwelling, objective, physical or spiritual power

(κπάηορ, ἰζσύρ, δύναµιρ), it denotes the power which decides, so that it is particularly well adapted to

express the invisible power of God whose Word is creative power. The ἐξοςζία of Jesus and the

apostles is of the same character. Secondly, this power of decision is active in a legally ordered whole,

especially in the state and in all the authoritarian relationships supported by it. All these relationships

are the reflection of the lordship of God in a fallen world where nothing takes place apart from His

ἐξοςζία or authority. They are based upon this lordship. Thus the word ἐξοςζία can refer to the fact

that God‘s will is done in heaven. It can also denote the fact that His will prevails in the sphere of

nature as an ordered totality (ἔπγον). Indeed, ἐξοςζία is given to Antichrist for his final activity, so that

nothing takes place apart from the ἐξοςζία or will of God. Especially in the community the word is

indispensable to express the fact that we cannot take anything, but that it has to be given to us. Thus

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124

A partir das três nuances básicas e, descontado o forte teor teológico

empregado por Foerster nesse trecho, é possível perceber que uma tradução e

entendimento bastante razoáveis para ĕxŏysía é mesmo "autoridade". Essa autoridade

deve ser percebida à luz do que a definição do termo enuncia e de duas advertências:

(i) por vezes ĕxŏysía se confunde com dýnamis, no entanto o entendimento acerca

desse poder tem seu caráter próprio e será, mais adiante considerado; e, (ii)

novamente a questão da leitura harmonizada de evangelhos.

Não se pode perder de vista que esse tipo de leitura harmonizada dos textos

neotestamentários realizada por cientistas incautos ou religiosos programáticos acaba

por interferir no entendimento semântico equivocado tendo em vista a intenção

original dos autores bíblicos e, mais, para o caso da proposta de modelo de homens

divinos que esse trabalho constrói, na maioria dos casos, torna-se um problema

conceitual.

Convém tomar dois exemplos para elucidar essa questão: os evangelhos de

Lucas e João, mais o texto de Atos dos Apóstolos. A escolha desses três textos se

justifica à medida que João é autor mais "teológico", por assim dizer, dentre os quatro

evangelhos. Ou seja, é o mais programático dentre eles e o que organiza suas fontes

do jeito mais rigoroso na intenção de imprimir um olhar muito divinizado para Jesus

e o movimento de seguidores decorrente dele77

.

No caso de Lucas-Atos a escolha se justifica por duas razões, a saber, (i) trata-

se de um autor bastante afeito ao diálogo entre seus textos e narrativas com o que é

amplamente disseminado na cultura literária mediterrânica; e (ii) é praticamente

consensual, com insignificantes exceções, que o autor desses dois documentos é a

mesma personagem. Quanto ao procedimento adotou-se a busca e verificação de

todas as passagens nesses três textos em que ĕxŏysía é mencionada e os sentidos que

assumem. Eis os dados:

ἐξοςζία describes the position of Jesus as the Head of the Church to whom all power is given and who

gives it to His disciples. This ἐξοςζία which is operative in ordered relationships, this authority to act,

cannot be separated from its continuous exercise, and therefore thirdly ἐξοςζία can denote the freedom

which is given to the community." (FOERSTER, 19995:566). 77 Talvez as sucessivas etapas de redação desse texto justifique sua organização tão refinada e

programática, pois, após 3 ou 5 etapas redacionais (a bibliografia especializada sobre o tema diverge

entre essas duas possibilidades) justamente na última um "homem eclesiástico" ordena e sistematiza o

material conferindo o formato conhecido hoje. Acerca dessas discussões e o que foi e será enunciado

sobre o Evangelho de João, ver: BROWN, 1999 e Haenchen, 1984 (Parte I).

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Evangelho de Lucas:

Texto Conteúdo 4,6 Diabo oferece a autoridade de controlar todos os reinos, pois essa autoridade lhe

foi dada; 4,32 Jesus tem autoridade para o ensino; 4,36 os que estavam na Sinagoga disseram que Jesus tinha autoridade de expulsar

demônios; 5,24 Jesus cura um paralítico e diz ter autoridade para isso, pois é o Filho do Homem; 7,8 Centurião diz ter autoridade sobre seus soldados; 9,1 Jesus deu autoridade aos discípulos para expulsar demônios;

10,19 Jesus dá autoridade aos discípulos para pisar em serpentes e escorpiões e contra

todo poder (dýnamis) do inimigo; 12,5 Jesus diz aos discípulos e à multidão que devem temer a quem tem autoridade de

lançar-lhes no Geena (parece indicar o Diabo); 12,11 discípulos não devem temer as autoridades (poderosos: governantes ou líderes

religiosos) na hora de falar. 19,17 Jesus conta uma parábola em que o bom servo, por seu bom proceder, terá

autoridade sobre dez cidades. 20,2 judeus questionam com que autoridade age. Quem o deu tal autoridade? 20,8 Jesus se recusa a dizer de onde vem essa autoridade.

20,20 escribas e chefes dos sacerdotes queriam entregar Jesus à quem tem autoridade

(governantes); 22,25 Jesus diz que os reis da terra exercem senhorio e autoridade sobre seus

governados; 22,53 Jesus diz aos chefes do Templo e à guarda do Templo, por ocasião de sua prisão,

que a autoridade das trevas chegou. 23,7 Pilatos envia Jesus a Herodes, pois é quem detinha a autoridade naquela

jurisdição (Jerusalém). Tabela 10: Ocorrências de ĕxŏysía no Evangelho de Lucas

Sistematizando os dados, observa-se que ĕxŏysía tem diferentes sujeitos

(Jesus, Diabo, governantes, discípulos) e que essa autoridade é reivindicada por ter

sido recebida de outrem e pode ser concedida por quem a tem. Em todos os casos

denota um passo anterior, ou seja, aquele que a exerce a autoridade a recebeu por uma

instância que é dotada de um poder maior que delega.

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Atos dos Apóstolos

Texto Conteúdo 1,7 Deus tem autoridade para determinar todos os acontecimentos; 5,4 sujeito é Hananias. Autoridade como forma de posse. (Pedro o acusa de estar

tomado por Satanás em virtude da ação enganosa dele em esconder parte dos

bens); 8,19 Simão deseja comprar a autoridade que está em Pedro; 9,14 O sujeito é Saulo. Ele tem poder, dado pelos romanos, para perseguir e matar.

Ananias é quem diz isso; 26,10 Paulo menciona que tinha a autorização dada pelos romanos para perseguir; 26,12 Paulo afirma que recebeu dos sacerdotes autorização para ir a Damasco; 26,18 Satanás é o sujeito. Paulo diz que prega para que as pessoas saiam da autoridade

de Satanás em possam ir em direção a Deus. Tabela 11: Ocorrências de ĕxŏysía em Atos dos Apóstolos

Os dados de Atos dos Apóstolos revelam que, de imediato, logo na abertura de

seu texto o autor já identifica a quem pertence a ĕxŏysía. O prólogo desse documento

é bastante indicativo para a ideia geral que constrói ao longo de toda a narrativa.

Tanto é verdade que nesse preâmbulo o autor sistematiza toda "história" sobre Jesus

desde o início do mundo até seus últimos ensinamentos antes da ascensão ao céu.

Assim, o início desse segundo texto visa à descrição de como suas regras e

ensinamentos (v.1: ērxatŏ e didáskĕin) conheceram continuidade.

Ora, a partir da autoridade (ĕxŏysía) de Deus (v.7) o poder (dýnamis) (Espírito

Santo) tomou os discípulos para que fossem testemunhas (v.8). A partir disso, vê-se

com clareza como o autor sistematiza autoridade de Deus e poder concedido aos

discípulos. Não por acaso, os momentos em que o poder (dýnamis) de Deus aparece

nos sucessivos episódios é proporcionalmente muito maior à ocorrência de momentos

em quem uma autoridade (ĕxŏysía) será demonstrada. As ocorrências de ĕxŏysía

revelam que seu sentido é muito mais ligado à autoridade (de Deus), propriedade

sobre alguma coisa ou concessão de direitos por parte de governantes. Não será o

verificado para o caso de João:

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127

Evangelho de João

Texto Conteúdo 1,12 Sujeito é Deus. Ele é quem tem o poder de determinar acontecimentos; 5,27 Sujeito é Deus. Ele deu autoridade para Jesus julgar a todos;

10,18 Sujeito é Jesus. Ele tem autoridade para dar ou tirar a vida; 17,2 Sujeito é Deus. Somente Deus tem autoridade para conceder vida eterna;

19,10 Pilatos é o sujeito. Ele declara que tem autoridade para crucificar ou libertar Jesus;

19,11 Jesus refuta a autoridade de Pilatos, pois Deus não a concedeu; Tabela 12: Ocorrências de ĕxŏysía no Evangelho de João

Os dados obtidos no Evangelho de João não deixam dúvidas: a ĕxŏysía é

exclusivamente de Deus. No máximo, ela é concedida a Jesus, pois quando

reivindicada por Pilatos é imediatamente refutada pelo próprio Jesus, pois Deus não

lho concedeu. O autor ou a comunidade de João - nesse caso assume-se a autoria

pelas mãos do redator final - faz com que somente Deus seja sujeito da autoridade. Os

atos prodigiosos (tĕrata) de Jesus são sinais (sēmĕîa) ou obras (ĕrga) designados por

Deus e, em última instância, apontam para Ele.

Se comparado a Atos dos Apóstolos, de imediato, João responde a quem

pertence toda autoridade já em seu prólogo, enquanto que para Atos a ĕxŏysía de

Deus confere o poder (dýnamis) aos seus seguidores. Não há espaço para dúvidas no

texto joanino e muito menos ambigüidades, pois a forma de poder (dýnamis) ocorre

somente 3 vezes e com sentidos bem definidos:

Texto Conteúdo 5,30 Jesus nada pode (dýnamai) fazer por si só, apenas aquele que o enviou; 13,37 Pedro não pode (dýnamai) seguir a Jesus quando este estiver morto; 14,5 Tomé não sabe para onde Jesus vai depois de morto, por isso não pode

(dýnamĕtha) saber o caminho; Tabela 13: Ocorrências de dýnamis no Evangelho de João

Em Jo 5,30, apenas observando o termo dýnamai poder-se-ia argumentar que

a forma de poder está associada a Jesus, no entanto, esse sentido é completamente

esvaziado pela sentença seguinte quando o autor de João faz Jesus dizer que Ele

mesmo, pelos próprios meios, nada pode fazer, apenas Deus. Nos outros dois casos, a

acepção está muito mais ligada ao campo semântico da dúvida, da possibilidade, do

que algo relativo a poder em si mesmo.

A escolha de João não é inocente. Não é por acaso. Certamente, o autor está

informado de que a forma de poder "dýnamis" está mais associada a uma concepção

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intrinsecamente mágica, particularmente ao homem divino, é o que o presente

trabalho quer defender. João é bastante cuidadoso no sentido de afastar Jesus de

qualquer acusação de práticas mágicas, mas revesti-lo de um caráter revelatório pela

ĕxŏysía de Deus.

Essa constatação que indicar que tanto ĕxŏysía quanto dýnamis são atributos

de Deus e Ele as concede de acordo com seus desígnios soberanos. A provável

distinção que o Evangelho de João cuida em realizar pode estar na base das

dificuldades de interpretação engendradas por uma leitura harmonizada dos

evangelhos. João entende que a ĕxŏysía é "superior" à dýnamis, portanto, essa última

somente pode existir se "autorizada" por Deus.

Logo, a referência mais fundamental para a leitura desse Evangelho é que

Jesus se torna único, pois recebeu da ĕxŏysía de Deus para realizar "poder"

(dýnamis), dessa maneira, todo aquele que reivindicar reconhecimento por ser dotado

do mesmo dýnamis não deve ser digno de confiança.

A validade, por assim dizer, dos seus atos deve ser investigada para que se

determine a sua origem: se não vier de Deus trata-se de um "falso profeta", mas, se

for concedida por Deus é verdadeira. Por meio dessa percepção, Jo 14,6 é mais bem

entendido em termos da exclusividade de Jesus em ser o caminho sem o qual

"ninguém vai ao Pai se não for por Mim (Jesus)."

Os sinais e prodígios (sēmĕîa kaì tĕrata), bem como os atos (ĕrga) no material

joanino estão associados ao ambiente das práticas mágicas, contudo a fortíssima

carga teológica empregada pelo autor se esmera em fazer com que o ouvinte-leitor

desse texto as diferencie. Trata-se de um filtro de leitura imposto pela argumentação

teológica de que a ĕxŏysía de Deus diferencia Jesus dos demais indivíduos

reconhecidos por feitos de poder (dýnamis) ou extraordinários (thayma).

Finalmente, a fim de completar a exposição e torno nas concepções de poder

observadas nas culturas mediterrânicas, cumpre analisar o termo dýnamis que, de

fato, semanticamente, carrega o sentido de poder sobrenatural per se, assim

(LIDDELL & SCOOT, 1997 e GRUNDANN, 1995:284-286):

- dýnamai (i) "ser capaz", "ser capaz de". É usado em um sentido mais

fraco. É muito comum na literatura grega desde os textos de Homero. É a

partir desse termo que há um desenvolvimento notável desde a

"habilidade", como meio de "capacidade" ao conceito de "poder" ou

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"força", "poderio" ou "potência". Com poucas variações, o termo aparece

em contexto de algo ou alguém que está ligado a alguma fonte de grande

poder; (ii) "ser capaz" também pode estar se referindo a um poder

subjetivo espiritual ou atitude moral que denota sua capacidade de agir

nesses sentidos. (iii) quando está aplicado a coisas, tem o sentido de "ser

igual a", "significar algo ligado à origem". (Lucas 11,7 e 14,20, a maioria

dos exemplos em Lucas-Atos deriva dessa palavra, mas o sentido é o mais

direto: "ser capaz de").

- dynatŏs: "alguém que tem habilidade, capacidade ou poder"; "alguém

que é poderoso". Trata-se de um adjetivo verbal de dýnamai. A natureza

do poder pode ser expressa de diferentes formas. Também, se estiver na

forma adjetiva neutra, pode significar "o que é possível" ou "o que pode

acontecer". Como substantivo também significa poder. (Lucas 1,49;

14,31; 24,19. E, Atos 7,22; 11,17; 18,24). O oposto de dynatŏs é

adynatŏs. (Atos 14,8).

- dýnamis: com o significado de "poder" engloba e pode ser aplicado a

todas as esferas da vida.

"Ao lado da física são poderes espirituais e intelectuais, de modo que toda a vida moral e espiritual, bem como a intelectual pode ser

rastreada até a δςνάμειρ do homem. As dςνάμειρ humanas são

apenas uma parte dos poderes do cosmos em geral. Animais, plantas e estrelas também têm os seus δςνάμειρ, e as forças físicas

subjacentes do cosmos, a capacidade de subsistência e de

movimento, também são chamados de δύναμιρ78

." (GRUNDMANN, 1993:285).

- dunástēs: geralmente em grego os sufixo -tēs indica o agente de uma

ação. Nesse caso específico de dýnamis é usado para governantes ou

aqueles que detêm algum tipo de autoridade, especialmente, política.

O poder sobrenatural, em si, é dado a partir da noção de dýnamis. Tendo em

vista essa crença disseminada pelas culturas mediterrânicas, o conhecimento e

78 Tradução pessoal de: "Alongside the physical are spiritual and intellectual powers, so that all moral

and spiritual and intellectual life may be traced back to the δςνάµειρ of man. Human δςνάµειρ are only

one part of the powers of the cosmos generally. Animals, plants and stars also have their δςνάµειρ, and

the underlying physical forces of the cosmos, the capacities of subsistence and motion, are also called

δύναµιρ."

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controle desse poder permitem que humanos participem da(s) divindade(s) e das

forças cósmicas que regem o mundo. Essa dinâmica que concebe o poder ou poderes

permeando a esfera humana desde sempre esteve ligado às concepções de religião

(CORRINGTON, 1986:65).

Conhecer, controlar e manipular os poderes cósmicos, originalmente

atribuição divina, são características e provas concretas da taumaturgia. Aquele que é

capaz de demonstrá-las, na antiguidade, era visto como uma epifania ou revelação dos

deuses a quem estavam vinculados, ou seja, o thĕiŏs anēr. Outros termos os designam

nas fontes, visto que thĕiŏs anēr é uma hipótese científica moderna: filósofos,

governantes com grande poder político sobre a terra, figuras religiosas, magos,

profetas ou feiticeiros - charlatães (gŏētai).

Obviamente que a terminologia empregada depende da fonte de que se serve.

Corrington (1986:46-48) defende a ideia (também em muitas outras passagens do

livro) de que o grau de sucesso ou hierarquia social é que determinada o "título" que

recebiam esses teurgos. E vai mais além dizendo que as camadas mais populares

(leia-se: pobres, iletrados, "povão", em resumo) não eram capazes de diferenciar um

charlatania (gŏētĕía), feitiçaria (magĕía, pharmakĕía), operação de prodígios

(tĕratĕía), etc., uma vez que os efeitos desses atos tinham o mesmo resultado.

Segundo ela, somente a literatura de caráter mais refinado era capaz de tal

operação e, portanto, é a partir dela que se devem observar as impressões antigas

sobre a magia (CORRINGTON, 1986:47). Cornelli (2001:34), consoante Smith

(1978:74) propõe a mesma ideia quando afirma que homens divinos são reconhecidos

por serem mais poderosos, ou seja, o "mago bem de vida", de "classe alta".

Entretanto, esse parece uma conclusão equivocada e que será objetada a seguir na

segunda e última etapa propedêutica antes de avaliar o milieu mágico mediterrânico.

3. Magia, práticas mágicas ou o imaginário da magia: a falsa dicotomia

povo (pobres) x elites (ricos)

O item anterior (II.2) estabeleceu a primeira das duas questões propedêuticas

necessárias antes que se aprofunde na contextualização do ambiente mediterrânico

propriamente dito em que a audiência mediterrânica percebia o mundo à luz de

questões metafísicas ou essencialmente mágicas. A segunda delas, de igual forma,

fundamental é a falsa dicotomia criada pela ciência moderna de que magia é algo

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próprio do "povo", de natureza "popular", "não civilizado" ou "pobre" por oposição à

religião praticada por "intelectuais", "ricos", membros da "elite".

Para além do que já foi discutido na introdução deste trabalho, acerca das

origens e razões a partir das quais essa ideia foi - e tem sido - formulada, convém

ilustrar e analisar mais detalhadamente esse enunciado:

"Há, provavelmente, um elemento de classe na mensagem expressa

na arte. Patronos que podiam construir sarcófagos eram provavelmente cidadãos de classe média ou de média alta, enquanto

que aderentes da magia situavam-se entre os das classes mais

baixas e não educados. [...] Parece lógico que o uso da magia estaria associado com os pobres

79." (JEFFERSON, 2014:149, nota

12).

A coerência interna do enunciado de Jefferson se assenta em uma premissa

verdadeira, qual seja, a de que pobres, de fato, não dispunham de recursos para erigir

construções ou artefatos duradouros que resistissem à ação do tempo. No entanto, o

que parece estar por trás de uma afirmação como essa é a compreensão parcial quanto

ao que seja a relação entre história e arqueologia, bem como à falta de atenção aos

filtros de leitura impostos pela ciência moderna no estudo do campo das práticas

mágicas mediterrânicas.

Logo, mesmo partindo de uma premissa verdadeira e internamente coerente,

sua conclusão é enganosa. Estabelecer as relações entre história e arqueologia no

estudo de culturas antigas é bastante importante nesse sentido, muito embora esse seja

um estudo que permeia todos os domínios da história. Refletir, portanto, acerca do

alcance dos diferentes tipos de documento e as coisas físicas como campo de

fenômenos históricos torna-se central na compreensão histórica no que diz respeito às

organizações humanas (MENEZES, 1983:103).

A cultura material entendida como um segmento do meio físico que é

socialmente apropriado pelo homem constitui-se em uma documentação

absolutamente imprescindível para a reconstrução dessas sociedades antigas

mediterrânicas. Ora, por apropriação social convém pressupor que o homem

intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos

79 Tradução de: "There likely is a class element to the message expressed in the art. Patrons who could

afford sarcophagi were likely middle- to uper middle class citzens, while aderents to magic were

among the lower, uneducated. […] It seems logical that magical use would be associated with the

poor."

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específicos. Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se alinha

conforme padrões, entre os quais se incluem os objetivos e projetos ideológicos

pertinentes às respectivas culturas em que estão inseridos (MENEZES, 1983:112).

Assim, o conceito pode tanto abranger artefatos, estruturas, modificações da

paisagem, como coisas animadas (uma sebe, um animal doméstico), e, também, o

próprio corpo, na medida em que ele é passível desse tipo de manipulação

(deformações, mutilações) ou, ainda, os seus arranjos espaciais (um desfile militar,

uma cerimônia litúrgica) (MENEZES, 1983:112). Se o que se toma é o enunciado de

Jefferson a respeito de algum tipo de cultura material inacessível a camadas

empobrecidas, ato contínuo, a pergunta que se impõe é acerca do alcance desse

material.

Para além disso, cumpre observar o potencial da documentação arqueológica,

pois (i) sua ubiqüidade não encontra paralelo na documentação textual; (ii) tem um

menor grau - em relação à documentação textual - de permeabilidade ideológica do

segmento material; (iii) a valiosa possibilidade de tratamento quantitativo e

comparativista: esse aspecto da serialidade fundamenta investigações sincrônicas e

diacrônicas de investigação semiológica; e, finalmente, (iv) o caráter

preponderantemente de anonimato (MENEZES, 1983:112).

Tal caráter de anonimato, associado à serialidade, à repetição, faz dos

artefatos excepcional veículo para estudo de um domínio para cuja importância

visceral os historiadores, nos últimos anos, têm chamado a atenção: o quotidiano, o

domínio do banal, da purificação do evento, das tendências quase em estado ―natural‖

(MENEZES, 1983:112). As razões para a equivocada alegação de Jefferson ou

Corrington, dentre tantos outros autores que se ocuparam das investigações acerca

das práticas mágicas ao longo dos diferentes momentos da história encontram eco na

ausência de diálogo entre as disciplinas história e arqueologia.

Praticamente por padrão, a postura de historiadores em relação à arqueologia

oscila entre três pressupostos: (i) a simples marginalização; (ii) o uso de aspectos da

vida material, mais precisamente, da informação arqueológica, de maneira puramente

instrumental; e, (iii) o uso ilustrativo (MENEZES, 1983:103-105). Não é difícil de

encontrar, por exemplo, em livros didáticos destinados ao ensino básico ou médio a

presença dessas três posturas.

Em geral, os capítulos destinados às experiências históricas de corte

cronológico modernas ou contemporâneas o elemento arqueológico não comparece.

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133

No que diz respeito às culturas antigas, na sua maioria, o uso é meramente ilustrativo

ou instrumental, pois as "figuras" oriundas de pesquisas arqueológicas desempenham

o papel de ilustrar o que o texto propôs ou apenas confirmar as conclusões advindas

de análises centradas na documentação textual.

As alegações para tal comportamento - como se não bastasse o equívoco

monodisciplinar, por si só - fundamentam-se em premissas igualmente descabidas,

como sistematiza a tabela abaixo (ver MENEZES, 1983:106-111):

Item Visão negativa quanto à

informação arqueológica Contraponto que relaciona dificuldades nas

informações textuais e arqueológicas

1

As coisas materiais

constituiriam uma parcela apenas – e bem reduzida – dos

fenômenos históricos;

Ressaltar o caráter parcial dos fenômenos

materiais é estabelecer uma distinção, carecedora de fundamentos, entre os

componentes materiais e não materiais da

cultura, dando a estes últimos uma autonomia que eles não podem ter;

2

A documentação material seria

aleatória, pois chega até nós

após triagens sucessivas e sem controle. Neste caso, o chamado

―depósito arqueológico‖ seria o

produto de inúmeros filtros culturais e naturais;

É preciso não confundir a natureza física do

suporte de informação com a natureza física de

um fenômeno. Nenhum historiador se depara, na primeira esquina, com uma instituição

política, um sistema sócio-cultural, um modo

de produção, uma formação histórica...

3

Haveria um fosso intransponível

ou, pelo menos, considerável,

entre sítio arqueológico e o sistema cultural, que o produziu;

Há muito avanço no sentido de se analisar os

objetos físicos;

Tabela 14: As informações arqueológicas e textuais em perspectiva comparada.

Faz-se necessária uma breve avaliação das informações paralelas (observar

que o elemento "item" na tabela corresponde ao número do comentário abaixo):

(i) Em outras palavras, haveria fenômenos fundamentais do universo

social (formas de organização social e política) que não se expressam

materialmente, de maneira imediata, nem têm sempre contrapartida na

realidade material. Essa afirmação encontraria, conclusivamente, eco no

que Jefferson propõe na afirmativa que fez, pois o universo social,

segundo ele, seria determinante para práticas sociais. É precisamente aqui

que se pode localizar a premissa verdadeira do autor, mas também, de

igual forma, seu equívoco;

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134

(ii) de fato, filtros culturais, pois o sítio arqueológico é composto de

"restos" das coisas materiais: o que sobrou como resultado de certos

padrões de rejeito, abandono, perda causal...; e, filtros naturais, na medida

em que, sobre essa deposição, há ainda a interferência de fatores

biológicos, clima, ação de animais e outros organismos, etc.. Também nos

textos, como na documentação material, se procede por inferência e

abstração, tendo em vista que o caráter fragmentário e parcial das fontes

disponíveis para o estudo de culturas antigas revela sociedades

aparentemente misteriosas e desconhecidas que deixam como legado uma

documentação composta por vestígios lacunares e não idôneos

(CHEVITARESE et alli., 2000:5-6);

(iii) Ora, ao levar em consideração o conceito de cultura material acima

proposto, em que segmentos materiais são socialmente apropriados pelo

homem, de imediato se deve entender que a semiologia ressalta que o

verdadeiro estatuto do objeto não deriva de uma teoria das necessidades e

sua satisfação, mas das prestações sociais e sua significação. E mais, a

sociologia do consumo supera com enfoque antropológico uma análise

estritamente econômica, definindo seu problema não como a apropriação

de bens materiais, mas a constituição e operação de um sistema de

comunicação.

A fim de avaliar o alcance que a cultura material atinge opta-se aqui pela

apresentação do sistema de crença no mau-olhado80

. Básica a essa crença era a noção

de que certas pessoas, animais, demônios ou deuses tinham o poder de ferir ou lançar

um feitiço (baskainein, katabaskainein, fascinare) sobre cada objeto, animado ou

inanimado, em que seu olhar fosse direcionado. Através do poder de seus olhos, que

poderia funcionar involuntariamente, bem como intencionalmente, os possuidores do

mau-olhado eram considerados capazes de danificar ou destruir, através de seus olhos

malignos, a vida e a saúde, os meios de sustentação e vida, a honra familiar e o bem-

estar pessoal de suas vítimas não-afortunadas.

A proteção contra o mau-olhado é, naturalmente, uma grande preocupação em

culturas que assimilaram essa crença, sejam as antigas ou as modernas

80 O trabalho completo (problemática, fontes, discussão bibliográfica, sistematização e análise dos

dados) que apresenta e analisa esse tema pode ser encontrado em Justi, 2011, Dissertação de Mestrado.

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135

(ELWORTHY, 1895, passim). Dispositivos e estratégias para desviar ou distrair o

mau-olhado foram numerosas e variadas. Todos os espaços e vias públicas, muros,

praças, locais de trabalho, locais sagrados, e as sepulturas eram protegidas por

dispositivos apotropaicos81

incluindo-se máscaras grotescas (por exemplo, imagens

de cabeça de Medusa), estátuas de fascínio enorme (falo e testículos) erguidas em

campos ou lojas. Chapas presas a portais inscritas com encantamentos anti-mau-

olhado e mosaicos também foram projetados para proteger a entrada de residências

domésticas (como é evidente, em Pompéia, Ostia, Antioquia e outras) (ELWORTHY,

1895:87-342; BALCH, 2003:24-55).

Medidas de proteção pessoal incluíam evitar o contato visual de todas as

formas, escondendo presentes recebidos, cobrindo esposa e crianças, negando

qualquer melhoria na situação econômica pessoal, e usando uma variedade de

dispositivos de proteção (cordas de nós, tecido tingido vermelho ou um pano de cor

azul, saches de ervas como a arruda ou alho, amuletos com jóias inscritas com

símbolos anti-mau-olhado como um olho sob ataque ou fascina em miniatura,

filactérias, chifres, luas crescentes, ou sinos) (DUNDES, 1992:107-123 e 257-312,

passim).

Nas interações sociais, os gestos manuais, tais como o digitus infamis (dedo

médio ereto), o mano fica (mão em forma de figa) e o mano cornuta (gesto manual

com polegar, indicador e mindinho eretos) eram empregadas como proteção. Cuspir

na presença de fascinadores suspeitos era considerado especialmente eficaz para isso.

Paulo faz referência direta a esse uso em sua controvérsia sobre o mau-olhado contra

seus oponentes gálatas (Gl 4,14). Cartas pessoais antigas freqüentemente incluíam o

desejo de que a família e entes queridos fossem mantidos seguros do olho mau.

As culturas que assimilaram a crença no mau-olhado também requeriam que a

própria pessoa não desse a impressão de ter ou lançar mau-olhado. Por conta disso,

era esperado que as pessoas fossem generosas com seus próprios bens, prontos para

doar aos necessitados, sem minimizar ou invejar o dom.

Elogio e admiração dos outros poderia ser tomado como um sinal de inveja

advinda do mau-olhado (MALONEY 1976:102-148). Portanto, a expressão de

elogios eram evitadas ou, quando emitida, precedidas, como entre os romanos, da

81 Derivado do verbo trŏpē, o termo designa algum elemento material capaz de reter o mau que lhe é

direcionado e devolvê-lo ao emissor original.

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136

expressão, praefiscini ... dixerim (ELLIOTT, 1994:58), que quer dizer ―nenhuma

fascinação/mau-olhado pretendido‖.

Um costume semelhante é encontrado entre os judeus de língua iídiche na

frase ―kein ayin horeh‖ (―olho mau não se destina‖), ou entre árabes e italianos que

precedem seus cumprimentos com as palavras ―Mashallah‖ (―Deus seja louvado‖) e

―Grazia a Dio” (―graças a Deus‖), assim reprovando qualquer inveja e agradecendo a

Deus pelas benções recebidas por outros.

É exatamente através desses meios de proteção contra o mau-olhado que se

pode perceber a ampla disseminação dessa crença, seja por meio de documentação

literária ou arqueológica. Algumas referências de natureza material contribuem para

atestação e amplitude de alcance dessa prática mágica:

(a) amuletos:

(a.1) Proteção contra o mau-olhado:

Em contexto cristão, amuletos eram amplamente usados com muitas

referências às práticas mágicas. Dois deles aqui exemplificados (os exemplos são

muitos, mas optou-se apenas por dois deles aqui) atestam a presença do olho como

objeto a ser subjugado, ver figura 182

:

82 Descrição do amuleto (por Newell, In: BONNER, 1950, p.302): anverso (figura 4a): cavaleiro

areolado galopando para a direita, transfixando uma figura feminina prostrada com uma lança. Leão

abaixo de pé virado para a direita. Inscrição: ―ei-j qeo,j o` nikw/n ta. Kaka,‖ (um Deus que vence o mal).

O mal, representado pela mulher, está imóvel em pingentes de bronze com o cavaleiro desenhado,

enquanto que nas hematitas, ela levanta sua mão em súplica. Reverso (figura 4b): Iaw Sabawq Micael bo,hqi, abaixo do qual está o desenho do olho mau. O olho mal é perfurado por cima por um tridente e

por uma unha (ou cabeça de uma lança) de cada lado dele. De baixo é atacado por cinco animais, da

esquerda para a direita, leão, cegonha, escorpião, cobra, cachorro manchado ou leopardo.

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137

O amuleto acima é feito de bronze, em uma placa oval (43x25cm) com uma

presilha suspensa, para que seja passada o laço que o prenderá. O anverso traz uma

figura igualmente conhecida na antiguidade, o cavaleiro (vitorioso) montado sobre o

cavalo, submetendo sua vítima83

. Já o anverso, traz a imagem do olho e as tentativas

de subjugá-lo. Trata-se de um amuleto proveniente da Palestina, datado por volta do

século III e.c., portanto, presente nas comunidades que primeiro experimentaram a

difusão do cristianismo (BONNER, 1950, p.211).

83 Para uma discussão desse modelo de cavaleiro sobre o cavalo entre os primeiros cristãos, ver

CHEVITARESE e CORNELLI, 2007.

Figura 1b: amuleto cristão, reverso - olho Figura 1a: amuleto cristão,

anverso - cavaleiro

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138

E, figura 284

:

Nos dois casos apresentados, em seus respectivos reversos, os amuletos

testemunham a necessidade de proteção contra o olho e a conseqüente ação de

subjugá-lo. O uso de amuletos mágicos não é novidade em ambiente cristão ou

palestino. As culturas mediterrânicas sempre lançaram mão desse recurso nos

diferentes contextos em que a proteção contra algum mal era imperiosa. Essa prática

84 Descrição do amuleto (BONNER, 1950, p.303): anverso (figura 2a): mesmo desenho que a

precedente, mas em uma placa maior, mas estreita em proporção à sua altura e com uma presilha

suspensa para o laço que a sustenta. Reverso (figura 2b): mesmo desenho e inscrição da precedente, as

letras são mais estreitas em proporção à sua altura. Material em bronze. Placa de altura oval, 61x30cm.

Figura 2a: amuleto cristão, anverso - Cavaleiro

Figura 2b: amuleto cristão, reverso - olho

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não sugere classe social, pois nada há no amuleto que indique pertencer a uma família

rica o pobre.

Para além desse fato, seu uso contínuo quer sugerir que o controle de acesso a

essa crença não parece estar confinado a um ambiente doméstico ou íntimo. Antes, o

uso desse artefato indica presença constante, em espaço público, da referência a

crença e práticas mágicas. O uso de amuletos também não sugere classificação etária,

como o exemplo a seguir demonstra.

(a.2) Festival das Anthestérias e a proteção contra os mortos:

Parte do calendário oficial políade ateniense o festival durava três dias e

honrava Dionísio (considerado o festival mais antigo celebrado em honra a essa

divindade, CHEVITARESE e PENNA, 2004: 17, nota 4) e Hermes Quitônico (o

condutor das almas). Seu nome pode ser entendido por: (i) ser derivado de ánthŏs

(flor) e celebrava a chegada da primavera no hemisfério Norte; (ii) por conta do

aparecimento das flores. Era um costume ateniense coroar com flores crianças entre 4

e 5 anos de idade, como referência ao desabrochar dos meninos na vida pública; ou

(iii) celebração dos frutos da vinha, já que os atenienses não tinham nenhuma grande

festa para celebrar a colheita da uva no verão anterior, logo, o festival estava

associado ao trabalho (CHEVITARESE e PENNA, 2004:10-11).

As fontes para reconstrução desse festival são fragmentárias, mas possíveis de

ser efetuada através do diálogo entre documentação textual e arqueológica. Quanto

aos dias festejados na celebração, pode-se organizá-los, basicamente, em três etapas:

(1º) Pithŏigía: abertura dos vasos de vinhos (lê-se como introdutório, devido a sua

pouca atestação); (2º) Chóĕs: ato da libação; bebida ou aspersão do vinho; e,

finalmente, (3º) Chýtrŏi: sacrifícios a Hermes Quitônico, com o fim de honrá-lo na

tarefa de conduzir as almas ao mundo dos mortos (CHEVITARESE e PENNA,

2004:10-11).

Os dois dias principais, Chóĕs e Chýtrŏi, eram considerados miaraí hĕmérai,

isto é, ―dias poluídos‖ (manchados ou profanados com sangue). A causa para essa

classificação era a presença das Kérĕs, que traziam as almas dos mortos ao mundo

superior. Constituía-se em problema, pois esse dias poluídos interrompiam a

comunicação entre homens e deuses do Olimpo. Os templos eram fechados e o rico

da contaminação era extremamente alto e perigoso. Toda essa dinâmica fazia com

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140

que a necessidade de proteção fosse absolutamente urgente (CHEVITARESE e

PENNA, 2004:12).

Diante desse fato, os pais protegiam as crianças com amuletos - os elementos

apotropaicos, ver figuras 3 e 4:

Figura 3: Choús ático de figuras vermelhas. Atenas, Collection G. Empedokles. Data: 420-10 a.e.c.

Bibliografia: VAN HOORN, 1951, n 25. Descrição: Menino nu, voltado para a esquerda, cabeça coroada. Ele está com ambos os braços

levantados. A sua mão direita segura um choús coroado, enquanto que a esquerda segura a parte

superior do seu carrinho. Ele se aproxima de uma pequena mesa com pão branco em forma piramidal e

um bolo redondo (ou uma fruta?). Há um cordão pendurado no seu ombro esquerdo com amuletos

cruzando o seu peitoral.

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141

Figura 4: Choús ático de figuras vermelhas. Atenas, National Museum. Inventário: 14528.

Proveniência: Atenas. Data: 420 a.e.c..

Bibliografia: VAN HOORN, 1951:102, n 26. Descrição: Menino nu, cabeça voltada para a direita, segura com a mão esquerda o seu choús,

enquanto que na outra mão ele tem uma pedra pronta para ser arremessada. Há uma faixa ao redor da sua cabeça e um cordão pendurado no seu ombro esquerdo com amuletos cruzando o seu peitoral. À

sua direita está um homem nu (ou uma das kéres?), calvo, voltado para a esquerda, tentando tomar o

choús do menino.

O chŏýs, pequeno cálice ou copo no qual o vinho era bebido, retrata cenas

bastante antigas que atestam a presença e uso de amuletos como forma de proteção.

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142

Nesses casos, a cultura material é decisiva no diálogo com o aparato textual para a

reconstrução do antigo festival. Também em espaço público, suas múltiplas

atestações de práticas mágicas dão conta de uma disseminação praticamente

impossível de determinar se pertencem a elites ou empobrecidos.

Como mensurar ou determinar que grupos sociais tivessem acesso a esse ou

aquele material? Se fosse ainda o caso, mesmo que pobres não dispusessem de

recursos para possuir esse tipo de material, o argumento de Jefferson fica ainda mais

comprometido. Pois, se apenas ricos tinham acesso a elementos materiais duráveis, e

magia era algo próprio de pobres, porque esses testemunhos materiais não seguem

aquela lógica?

Poder-se-ia argumentar, ainda, por amor ao debate, que amuletos poderiam ser

mais baratos, que a festividade ateniense, por seu caráter "global", ou seja, que

envolve toda a pólis servisse gratuitamente o chŏýs às crianças e, por conseguinte,

tratando-se de maioria campesina evidenciasse essa crença mágica em artefatos para

fazer dialogar política e "populares"... Os argumentos descabidos não teriam fim.

Entretanto, cumpre evidenciar mais testemunhas de que a leitura de Jefferson

(Corrington e tantos outros) está mesmo equivocada.

(b) monumentos públicos e privados:

A citação do texto de Jefferson inicia-se falando em arte. E que essa arte

carrega consigo um conceito de classe, qual seja, entre os "patronos", mais ricos, não

se verificaria a presença da magia. Abaixo, estátua de um falo no Templo de

Dionísio, em Delos (ver figura 585

):

85 Foto de Jonathan L. Reed (CROSSAN e REED, 2007:238). A descrição oferecida pelos autores

segue na citação a seguir.

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143

Figura 5: Estátua de falo no Templo de Dionísio em Delos.

O falo é um símbolo mágico de proteção e poder. Poder, pois está centrado em

uma sociedade romana patriarcal e falocêntrica (CROSSAN e REED, 2007:238).

Proteção, pois afasta ou desvia maus-olhados, protege casas de assaltos e assegura

prosperidade e fertilidade:

"Em Delos, por exemplo, enquanto o santuário de Apolo era

guardado por uma fileira de estátuas de leões, o Templo de Dionísio

era protegido por dois enormes falos eretos [Figura 5], símbolo de

prazer incontrolável e objeto sagrado dos mistérios. Outros santuários e ricas mansões ao longo do Mediterrâneo também se

protegiam com estátuas, quadros de bronze ou pilares de mármore

com o busto em cima e os genitais protuberantes na frente [Figura 6]. Era comum ver em casas particulares mais modestas, em

Pompéia, figuras do falo, gravadas ou desenhadas perto das portas

para afastar maldições ou para trazer sorte. Não se distinguia muito o seu poder e o prazer sensual, como testemunha esta inscrição ao

redor da figura do falo [Figura 7]: 'Hic habitat felicitas', 'Aqui mora

a felicidade'." (CROSSAN e REED, 2007:238).

Eis as figuras (586

e 687

) a que Crossan e Reed fazem referência na citação

acima:

86 J. Paul Getty Museum, Workshop of Boethos, Herm. 100-50 a.e.c., bronze com aplicação de

marfim; 79.AB.138. (Apud CROSSAN e REED, 2007:238 e 383). 87 Museo Archeologico Nazionale, foto de Scala, Art Resources, NY. (Apud CROSSAN e REED,

2007:240 e 383).

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144

Figura 6: Herma de uma oficina Figura 7: Relevo em pedra de um falo de uma casa em

de Boetos. Pompéia.

As discussões e dados apresentados até aqui querem indicar que a noção

estabelecida por parte de alguns intelectuais de que a magia pode ser percebida em

camadas populares (pobres), mas não em estratos sociais mais abastados é, do ponto

de vista documental, incongruente com os testemunhos advindos de um estudo

histórico centrado no diálogo entre história e arqueologia.

Percorrido, até aqui, esse caminho mais aquela problemática levantada em

torno da questão semântica que estabeleceu os termos apropriados a partir dos quais

as experiências místicas devem ser reconhecidas, cabe, agora, verticalizar a

abordagem quanto aos dados selecionados acerca das práticas mágicas em contexto

mediterrânico, no geral, e dos judaísmos e paleocristianismos, no particular.

4. O Mediterrâneo entre os períodos helenístico e romano: a

temporalidade e a espacialidade das práticas mágicas

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145

No tópico II.2, acima, indícios de práticas mágicas, a partir do campo

semântico foram coletados, a fim de não somente constatar a presença de

experiências místicas do ponto de vista da linguagem, mas também de evidenciar um

mundo "repleto de deuses88

" observado nessa bacia mediterrânica. A seguir, o

procedimento adotado será o mesmo com a documentação textual na busca pelos

"indícios" ou "sinais" que formem o "paradigma indiciário" a partir do qual é possível

afirmar que o mediterrâneo estava repleto e intensamente dialogando com o

pensamento mágico.

Para tanto, o modelo teórico-metodológico empregado é aquele proposto pelo

historiador italiano Carlo Ginzburg (2007:143-179). Quando se ocupa desse tema, ao

longo do capítulo, o historiador italiano percorre, etapa por etapa, se não de maneira

cronológica tácita, mas com detalhes minuciosos a partir de análises de casos, o

declínio da popularidade que gozava o saber indiciário e a consecutiva ascendência

do saber científico em termos modernos (GINZBURG, 1989, passim). Assim, de

maneira mais voraz, desenhou-se a distinção epistemológica entre o modelo

anatômico de um lado e, em outra direção, o semiótico.

A assimilação gradual, por parte das ciências humanas, do paradigma

indiciário da semiótica ocorreu de forma estanque e especializada em cada disciplina.

Porém, o ―paradigma indiciário‖ remete ―a um modelo epistemológico comum,

articulado em disciplinas diferentes, muitas vezes ligados entre si pelo empréstimo de

métodos ou termos-chave‖. (GINZBURG, 1989:170).

A metáfora do tapete é bem própria (e muito cara ao professor turinense) para

compreender o sistema, pois analogamente aos fios que, vertical e horizontalmente

dão forma total à peça, assim também os sinais ou indícios mínimos da investigação

histórica são assumidos como elementos reveladores de fenômenos culturais mais

gerais, como a visão de mundo de uma classe social, de um escritor ou de toda uma

sociedade.

Ao estudar a documentação antiga - de natureza textual, material, etc. - repleta

de filtros de leitura impostos historicamente por suas incontáveis interpretações

heurísticas, sem mencionar suas próprias especificidades internas, é preciso não se

88 Expressão empregada a partir do texto de Hopkins (1999), no livro em que mais crédito obteve pelo

seu brilhante título - "A World full of Gods" - do que por seu conteúdo propriamente dito. É um estudo

interessante, mas pelo caráter romanceado impresso na narrativa e interpretação dos dados históricos e

arqueológicos não foi adotado por este trabalho.

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146

basear, como normalmente se faz, em características mais gerais, portanto, mais

facilmente enganosas. É imprescindível examinar os pormenores mais

negligenciáveis, menos ―convencionais‖, a fim de buscar a reconstrução complexa de

seu ambiente altamente conflituoso e plural.

Quanto ao caráter mais ou menos objetivo do ponto de vista científico desse

modo de proceder analiticamente convém sublinhar que esse parâmetro

epistemológico se coloca na fronteira (não rigidamente definida) que une o rigor

cartesiano do método racionalista moderno, na base das ciências humanas, àquele

―instintivo‖, por assim dizer, do método das ciências naturais que colocaram um

impasse aos dois modelos epistemológicos:

―A orientação quantitativa e anti-antropocêntrica das ciências da

natureza a partir de Galileu colocou as ciências humanas num desagradável dilema: ou assumir um estatuto científico frágil para

chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto científico

forte para chegar a resultados de pouca relevância‖ (GINZBURG, 1989:178).

É precisamente nesse ponto de inflexão que o saber indiciário destaca-se na

sua posição dentro das ciências humanas, ou seja, em seu ―rigor flexível89

‖, sua forma

de saber ―tendencialmente muda‖ e suas regras não formalizadas nem ditas em

infindáveis arrazoados técnicos. Vale lembrar: ―O bom historiador se parece com o

ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça‖ (Marc Bloch).

Antes que teóricos ―pós-modernos‖ se arvorem em seus urros de repulsa a

qualquer objetividade científica, o paradigma indiciário é uma tentativa de resgatar a

totalidade de processos históricos, via transdisciplinaridade, porém,

―a existência de uma profunda conexão que explica os fenômenos

superficiais é reforçada no próprio momento em que se afirma que

um conhecimento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios –

que permitem decifrá-la‖. (GINZBURG, 19892, p. 177).

Buscar esses sinais ou indícios não é tarefa das mais simples de se realizar. É

demandado por parte do "investigador" alguns procedimentos para tornar seu objetivo

palpável. Dessa forma, optou-se por alguns critérios na exposição documental a

seguir:

89 Paradoxo creditado ao bem humorado (irônico, quem sabe) historiador italiano.

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147

(i) serão, prioritariamente, elencados eventos ou narrativas que

testemunhem a presença de homens divinos - dotados de dýnamis e/ou

feitos místicos que sinalizem (sēmĕîon, tĕras) a origem metafísica de tais

realizações (ĕrgŏn);

(ii) para os casos em que ações de divindades forem selecionadas, o

objetivo será o de ambientar a crença e práticas mágicas sobrenaturais de

acordo com a respectiva audiência mediterrânica;

(iii) em alguns casos optou-se por visões de autores antigos sobre a magia

a fim de, igualmente ao passo (ii), perceber a ambientação dessas práticas

e crenças sobrenaturais para a audiência mediterrânica;

(iv) a base teórica para dividir as seções encontra-se em Bultmann (2000).

O autor alemão encontrou na documentação bases para estabelecer a

seguinte tipologia de "histórias de milagres": (a) curas; (b) exorcismos;

(c) ressurreição dos mortos; (d) milagres naturais ou na natureza

(BULTMANN, 2000:267-301). A discussão inaugurada por Bultmann a

partir da "disciplina" história ou crítica das formas tem longa tradição e

controvérsias90

. Berger foi responsável por pulverizar a noção de gênero

literário e propor que pequenas formas literárias fossem encontradas nos

textos antigos para o estudo de modelos comunicativos apropriados pelos

diferentes autores antigos. A discussão decorrente das classificações de

Bultmann envolve proposição de formas como as creias ou apotegmas,

por exemplo, propostas por Berger (1998:76-88), uma vez que "histórias

de milagres" não se constituem como gênero, mas um rótulo moderno

para agrupar diferentes narrativas, com variadas formas literárias, que

identificam ali o elemento mágico ou sobrenatural (BERGER, 1998:276).

E é, precisamente, assentado na crítica de Berger que o modelo

bultmanniano será empregado aqui, pois:

90 Klaus Berger (1984 e 1998) foi, e ainda o é, a principal obra no estudo de formas literárias no

material neotestamentário. Diferentemente de Bultmann, Berger prefere não adotar a idéia de "gênero"

literário, mas de "formas" (BERGER, 1998:15). Segundo Berger, gêneros são construções muito mais

complexas e, quando se trata de documentação antiga (fragmentária), por vezes, esse gênero fica um

tanto comprometido. Além disso, uma concepção fundamental de Berger é que mesmo dentro da

definição de chamado gênero, muitas e variadas formas literárias comparecem sem, necessariamente,

terem sido construídas conscientemente por parte dos seus autores. Logo, é preciso que se faça um

levantamento das formas literárias para se perceber de que artifícios comunicativos lançam mão os

autores antigos em seus textos e qual relação guardam com seu contexto originário (BERGER,

1998:276-280).

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"Agora, Dibelius e Bultmann já haviam admitido que histórias

de milagres fossem "narrativas" ou "contos", e bem distinta de

apotegmas, que pertenciam aos 'ditos'. Eles precisavam

reconhecer que qualquer narrativa mantém automaticamente

uma possibilidade de representação, e, no caso das histórias

de milagres, ainda mais, uma vez que nenhum critério

objetivo era conhecido por eles no mundo antigo, exceto que

eles narravam um acontecimento milagroso. Qualquer autor

antigo estava livre para contar a sua história por seu próprio

caminho, transformando-a para qualquer fim que poderia

parecer mais atraente ou vantajoso. Temos que ver que essas

supostas 'semelhanças' entre apotegmas e histórias de

milagres, em relação à sua finalidade e foco, fossem

inteiramente artificiais. O escritor de histórias de milagres foi

um criador de uma história, e ele/ela estava livre de tais

restrições91

." (COTTER, 1999:3).

(v) as bases documentais para observação das fontes partirão,

fundamentalmente, de Cotter (1999), Klauck (2011), PGM (1992) e as

traduções da coleção Loeb Classical Library (versão digital92

).

(a) Cotter elaborou um manual de fontes antigas que estabelecem as

relações entre a documentação neotestamentária e as demais de língua

grega na bacia mediterrânica. A intenção da norte-americana foi

promover o diálogo entre a literatura bíblica e a literatura corrente em

diferentes tempos e espaços estabelecendo paralelos entre elas.

91 Tradução pessoal de: " Now, Dibelius and Bultmann had already admitted that miracle stories were

―narratives‖ or ―tales,‖ and quite distinct from apophthegms, which belonged to ―sayings.‖ They

needed to recognize that any narrative automatically holds a possibility for portraiture, and in the case

of the miracle stories, even more so, since no objective criterion was known for them in the ancient

world, except that they tell about a miraculous happening. Any ancient author was free to tell the story

his/her own way, turning it to whatever purpose might seem most attractive or advantageous. We have

to see that these supposed ―similarities‖ between apophthegms and miracle stories with respect to their

purpose and focus are entirely artificial. The ―miracle-story‖ writer was creating a story, and s/he was

free of such restraints." 92 A coleção Loeb, conhecido projeto da universidade de Harvard, com mais de 520 volumes de

documentação grega e latina bilíngüe (grego ou latim/inglês), desde Setembro de 2014, lançou a versão

digital de suas traduções. Disponível para compra no site

(http://www.hup.harvard.edu/catalog.php?isbn=9780674425088), a assinatura anual dá direito a

pesquisa no material, reprodução e citações em trabalhos acadêmicos. As referências à documentação

serão feitas de acordo com o autor do texto, número do livro e seção em que se encontra o trecho

escolhido. Portanto, as referências aqui expostas devem ser localizadas na coleção Loeb seja em sua

versão impressa ou naquela digital. Nas referências bibliográficas, ao final deste trabalho, a citação

poderá ser encontrada em HENDERSON, Jeffrey (2014). As demais referências à documentação

citadas neste trabalho, quando não retiradas daqui, seguirão a citação apropriada indicada

imediatamente no momento de seu respectivo uso.

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149

(b) Klauck publicou dois volumes em 1995 em que se propôs a coletar

referências do ambiente místico mediterrânico no tempo e espaço do

surgimento dos paleocristianismos (o tópico sexto, a seguir, examinará

mais detalhadamente essa obra).

(c) os Papiros Mágicos Gregos é um conjunto de documentos definido

pelos estudiosos como um corpus papirológico greco-romano-egípcio

incluindo ampla variedade de feitiços, fórmulas mágicas, hinos e rituais,

de autoria anônima e compreendendo o período do II século a.e.c. ao V

século e.c.. Trata-se de um pequeno número de ditos mágicos

remanescentes de uma documentação que foi muito maior93

(BETZ,

1992:xvli).

4.1. Curas

Muitos deuses e homens eram capazes de realizar curas milagrosas na bacia

mediterrânica. A atestação de tais curas cobre vasto período cronológico e regiões

espaciais. A popularidade de tais feitos era tamanha que muitos registros chegaram

aos dias atuais, seja por meio de documentos textuais, epigráficos ou de cultura

material. Entre essas divindades e homens, Hércules e Asclépio merecem

consideração especial não somente pela eficácia de suas ações, mas também por sua

ampla atestação documental.

(a) Hércules

No panteão grego, Hercules é famoso por sua enorme compaixão pela

humanidade. Outrora humano, ele foi eventualmente elevado ao status de deus.

93 Dois testemunhos dão conta de que hoje se conhece muito pouco do que uma vez já existiu sobre

esse material de caráter mágico. No material neotestamentário, em Atos 19:19 é relatada uma grande

queima de livros mágicos. Suêtonio, em Augusto 31.1, relata que Otaviano, no ano 13 a.e.c., ordenou

que mais de 2.000 rolos mágicos fossem queimados. Há, também, diversos relatos de que nos

primeiros séculos da Era Comum muitos outros livros mágicos - ou os próprios acusados de magia -

foram incendiados. Logo, o que hoje se conhece de testemunhos textuais, epigráficos ou de cultura

material representa apenas uma parcela do que já existiu desse material. No entanto, como se poderia

supor, o advento e disseminação dos cristianismos não fez com que essas práticas fossem extintas. Ao

contrário, há disponível significativo conjunto de testemunhos documentais de que essas práticas

persistiram continuadamente (BETZ, 1992:xli-liii).

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150

Ainda, ele nunca esqueceu as dores e problemas da condição humana. (COTTER,

1999:11).

. Aristides (século II e.c.), em Heracles, testemunha Hércules acima da natureza

humana:

―Porque, quando Hércules, purificado do modo dito, deixou a raça

humana, Apolo imediatamente proclamou o estabelecimento de templos para Hécules e que os sacrifícios fossem feitos a ele como

a um deus, e que ele revelou a Atenas, que era a cidade grega mais

antiga, e por assim dizer, um guia para todos os homens em matéria de piedade para com os deuses e a todas as outras atividades sérias.

Além disso ele também tinha muitos outros laços de amizade com

Hércules , incluindo o fato de que ele foi o primeiro estrangeiro a

ser iniciado, enquanto ele estava entre os homens. E a manifestação de zelo dos atenienses era tão grande e sua posição foi julgada

como tão superior que eles até mudaram todos os santuários

construídos em honra de Teseu ao longo dos demoi e fez-lhes santuários em honra de Hércules em vez de Teseu na crença de que

Teseu fora o melhor dos seus cidadãos , mas que Hércules foi além

da natureza humana.94

." (Aristides, Heracles, 40,11).

. Aristides (século II e.c.), em Heracles, testemunha que Hércules cura todas as

doenças:

―Mas porque deveríamos falar de história antiga. Para a atividade

do deus ainda é agora manifesto. Por um lado, como ouvimos, ele

faz maravilhas em Gadira e acredita-se ser o segundo de todos os

deuses. E, por outro lado, em Messene na Sicília ele liberta os homens de todas as doenças, e aqueles que escaparam do perigo no

mar atribuem o beneficiamento igualmente a Poseidon e Hércules.

Poderíamos listar muitos outros lugares sagrados ao deus e outras manifestações de seu poder.

95" (Aristides, Heracles, 40,12).

94 Tradução de: "For when Heracles, purified in the manner told, left the human race, Apollo

immediately proclaimed the establishment of temples to Heracles and that sacrifices be made to him as

to a god, and at that he revealed it to Athens which was the oldest Greek city, and as it were, a guide for all men in the matter of piety toward the gods and in all other serious activities. Further it also had

many other ties of friendship with Heracles, including the fact that he was the first foreigner to be

initiated, while he was among men. And the manifestation of the Athenians‘ zeal was so great and his

position was adjudged as so very much superior that they even changed all the shrines built in honor of

Theseus throughout the demes and made them shrines in honor of Heracles instead of Theseus in the

belief that Theseus was the best of their citizens, but that Heracles was beyond human nature." 95 Tradução de: "But why should we speak of ancient history. For the activity of the god is still now

manifest. On the one hand, as we hear he does marvelous deeds at Gadira and is believed to be second

to none of all the gods. And on the other hand, in Messene in Sicily he frees men from all diseases, and

those who have escaped danger on the sea attribute the benefaction equally to Poseidon and Heracles.

One could list many other places sacred to the god, and other manifestations of his power."

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151

Hércules também resgata e ressuscita dos mortos:

. Apolodoro de Damasco (século I e.c.), em Libary, relata a luta de Hércules contra

Hades pelo retorno de Alceste:

―Agora Pélias havia prometido dar a sua filha [Alceste] para aquele que colocasse um jugo em um leão e um javali, e Apollo juntou e

deu-lhes a Admeto, que os trouxe a Pélias e assim obteve Alceste.

Mas para oferecer um sacrifício em seu casamento, ele se esqueceu de sacrificar a Ártemis; portanto, quando ele abriu a câmara de

casamento, ele a encontrou enrolada em muitas cobras. Apolo

ordenou-lhe que apaziguasse a deusa e obtivesse, como um favor

das Parcas, que , quando Admeto estivesse prestes a morrer, ele poderia ser libertado da morte, se alguém escolhesse

voluntariamente morrer por ele. E quando o dia de sua morte

chegou nem o pai nem a sua mãe morreram por ele, mas Alceste morreu em seu lugar. Mas a donzela [Artemis] a enviou novamente

ou, como alguns dizem, Hércules lutou com Hades e trouxe-a até

ele.96

" (Apolodoro, Buiblioteca, 1.9.15).

Hércules é assumido em diferentes momentos da literatura grega como um

homem divino. Cornelli (2000:41) traça pistas da equivocidade em torno dessa figura

pelas diferentes tradições filosóficas gregas. Cumpre observar que o modelo de

homem divino proposto por este trabalho se verifica em Hércules, pois ele atende à

demanda de curas por meio do conhecimento na manipulação de poderes

sobrenaturais e, por conseguinte, gera um número incontável de aderentes por toda

bacia mediterrânica.

(b) Asclépio

Asclépio é adorado em todos os lugares, testemunha Apuleio (De Deo

Socratis 15.153). Em variadas e numerosas regiões do Mediterrâneo era possível

96 Tradução de: "Now Pelias had promised to give his daughter [Alcestis] to him who should yoke a

lion and a boar to a car, and Apollo yoked and gave them to Admetus, who brought them to Pelias and

so obtained Alcestis. But in offering a sacrifice at his marriage, he forgot to sacrifice to Artemis;

therefore when he opened the marriage chamber he found it full of coiled snakes. Apollo bade him

appease the goddess and obtained as a favour of the Fates that, when Admetus should be about to die,

he might be released from death if someone should voluntarily choose to die for him. And when the

day of his death came neither his father nor his mother would die for him, but Alcestis died in his

stead. But the Maiden [Artemis] sent her up again, or as some say, Hercules fought with Hades and

brought her up to him."

Page 152: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

152

encontrar templos dedicados a essa divindade para onde os necessitados de cura se

dirigiam e lá permaneciam para os banhos rituais.

A história das tradições sobre Asclépio dá conta que (i) em Epidauro foi

conferido a ele uma narrativa de nascimento tipicamente atribuída a heróis. (ii) Em

Delfos é moralmente educado e (iii) em Atenas torna-se um iniciado em mistérios

eleusinos. (iv) O estoicismo conjuga divindades com elementos naturais e o

transforma em ar. (v) Para os neoplatonistas, entretanto, é o próprio lógos, a alma do

universo. (vi) Em torno do século II e.c., quando os cultos solares estão bastante

difundidos, ele se torna o próprio Sol. (vii) Na Síria e Palestina é identificado com

deuses que atuam na morte e ressurreição (CORNELLI, 2000:39). (viii) Antigo físico

em Homero, atendeu aos argonautas e, ressuscitado pelo centauro tessálio Chiron,

Asclépio aprendeu dele as artes de cura. (ix) A união de sua mãe humana Coronis

com o deus Apolo, em algumas tradições, fez com ele fosse facilmente associado com

as curas, preservação da vida e prolongamento da mesma (COTTER, 1999:16).

A variabilidade e polissemia de histórias mitológicas dão conta de um homem

divino, ou o próprio deus Asclépio, como poderoso interlocutor entre os mortais e

aqueles que detinham os poderes de manipular e conhecer as forças cósmicas. As

testemunhas são bastante antigas quanto recentes, isso quer demonstrar a

permanência de uma crença e a força testemunhada por muitos de um homem divino,

ou mesmo deus, que ganhava cada vez mais notoriedade na bacia mediterrânica

através das narrativas de sucesso por parte de quem a ele se submetia ou aderia àquela

crença.

. Ambrosia, a mulher cega de um olho (Inscriptiones Graecae 4.1.121–122: Estela

1.4 - século IV a.e.c.):

―Ambrosia de Athenas, cega de um olho. Ela chegou como uma suplicante a Deus. Enquanto caminhava sobre no Templo ela riu de

algumas das curas como se fossem inacreditáveis e impossíveis,

que os coxos e os cegos devem ser curados simplesmente tendo um

sonho. Em seu sonho, ela teve uma visão. Parecia-lhe que deus ficou perto dela e disse que ele iria curá-la, mas que, em pagamento

iria pedir a ela para dedicar ao Templo uma porca prata como um

memorial de sua ignorância. Depois de dizer isso, ele cortou o

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153

globo ocular doente e derramou alguma droga. Quando o dia

chegou, ela saiu curada97

."

. Alcetas, o homem cego (Inscriptiones Graecae 4.1.121–122: Estela 1.18 - século IV

a.e.c.):

"Alcetas de Halieis. O homem cego viu um sonho. Pareceu-o que o deus veio até ele e com seus dedos abriu seus olhos, e que sua

primeira visão foram as árvores do santuário. Ao amanhecer ele

saiu sadio98

."

. Valerius Aper, o soldado cego (Inscriptiones Graecae 14.966 - século II e.c.):

"Para Valerius Aper, um soldado cego, o deus revelou que ele

deveria ir e dar o sangue de um galo branco, junto com mel e fazer

um colírio e por três dias deveria aplicá-lo aos olhos. E ele poderia ver de novo e foi e publicamente ofereceu graças ao deus

99."

. Arata, uma mulher com hidropsia é curada à distância (Inscriptiones Graecae

4.1.121–122: Estela 2.21 - século IV a.e.c.):

"Arata, uma mulher de Lacedônia, hidrópica. Para ela, enquanto ela

permanece em Lacedônia, sua mãe dorme no templo e sonha.

Parecia-lhe que o deus cortou a cabeça de sua filha e desligou seu corpo de tal forma que sua garganta estava virada para baixo. Para

fora dele veio uma enorme quantidade de fluido. Então ele tirou o

corpo e montou a cabeça de volta no pescoço. Depois que ela viu esse sonho, voltou para Lacedônia, onde encontrou sua filha em boa

saúde; ela tinha visto o mesmo sonho100

."

97 Tradução pessoal de: "Ambrosia from Athens, blind of one eye. She came as a supplicant to the god.

As she walked about in the Temple she laughed at some of the cures as incredible and impossible, that

the lame and the blind should be healed by merely seeing a dream. In her sleep she had a vision. It

seemed to her that the god stood by her and said that he would cure her, but that in payment he would

ask her to dedicate to the Temple a silver pig as a memorial of her ignorance. After saying this, he cut

the diseased eyeball and poured in some drug. When day came she walked out sound." 98 Tradução pessoal de: "Alcetas of Halieis. The blind man saw a dream. It seemed to him that the god came up to him and with his fingers opened his eyes, and that he first saw the trees in the sanctuary. At

daybreak he walked out sound." 99 Tradução pessoal de: "To Valerius Aper, a blind soldier, the god revealed that he should go and take

the blood of a white cock along with honey and compound an eye salve and for three days should

apply it to his eyes. And he could see again and went and publicly offered thanks to the god." 100 Tradução pessoal de: "Arata, a woman of Lacedaemon, dropsical. For her, while she remained in

Lacedaemon, her mother slept in the temple and sees a dream. It seemed to her that the god cut off her

daughter‘s head and hung up her body in such a way that her throat was turned downwards. Out of it

came a huge quantity of fluid matter. Then he took down the body and fitted the head back on to the

neck. After she had seen this dream she went back to Lacedaemon, where she found her daughter in

good health; she had seen the same dream."

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. Cura de um menino mudo (Inscriptiones Graecae 4.1.121–122: Estela 1.5 - século

IV a.e.c.):

"Um menino sem voz . Ele veio para o Templo como um suplicante

em favor de sua voz. Quando ele tinha realizado os sacrifícios

preliminares e cumprido os ritos habituais, o servo do templo, que traz o fogo para o deus, olhando para o pai do menino, exigiu que,

se ele tiver obtido a cura pela qual ele tinha vindo, ele deveria

prometer trazer, dentro de um ano, a oferta de agradecimento para a cura. Porém, o menino de repente disse: "Eu prometo." Seu pai

ficou assustado com isso e pediu-lhe para repetir. O menino repetiu

as palavras e depois ficou bem101

."

. Cura de um homem com problemas na garganta e estômago (Inscriptiones Graecae

3.11170 - cerca de 160 e.c.):

"Eu, M. Julius Apellas, fui enviado o deus, quando caí doente, e

estava ferido com indigestão. Na viagem a Egina, não aconteceu

muita coisa comigo. Quando eu cheguei ao santuário, aconteceu

que minha cabeça estava coberta de dois dias de torrentes de chuva. Queijo e pão foram trazidos para mim, aipo e alface. Tomei banho

sozinho, sem ajuda; fui forçado a me apressar; tomar cascas de

limão embebidas em água; nos akoai do banho eu me esfregava na parede; fui para um passeio na estrada; oscilante; sujei-me com

poeira; fui andar com os pés descalços; no banho, derramei vinho

sobre mim mesmo antes de entrar na água quente; para me banhar sozinho dei ao mestre de banho uma dracma Ática; fiz oferta

comum para Asclepio, para Epion [sua esposa], para a deusa de

Elêusis; tomei leite com mel. Eu usei o óleo e a dor de cabeça se

foi. Eu gargarejei com água fria contra uma dor de garganta, uma vez que este foi outro motivo que eu tinha buscado o deus. O

mesmo remédio, para as amígdalas inchadas. Tive oportunidade de

escrever isso. Com o coração agradecido e tendo melhorado, eu me despedi

102."

101 Tradução pessoal de: "A voiceless boy. He came as a supplicant to the Temple for his voice. When

he had performed the preliminary sacrifices and fulfilled the usual rites, thereupon the temple servant

who brings in the fire for the god, looking at the boy‘s father, demanded he should promise to bring

within a year the thank-offering for the cure if he obtained that for which he had come. But the boy

suddenly said, ―I promise.‖ His father was startled at this and asked him to repeat it. The boy repeated

the words and after that became well." 102 Tradução pessoal de: "I, M.Julius Apellas, was sent forth by the god, since I fell sick often and was

stricken with indigestion. On the journey to Aegina, not much happened to me. When I arrived at the

sanctuary, it happened that my head was covered for two days during which there were torrents of rain.

Cheese and bread were brought to me, celery and lettuce. I bathed alone without help; was forced to

run; lemon rinds to take; soaked in water; at the akoai in the bath I rubbed myself on the wall; went for

a stroll on the high road; swinging; smeared myself with dust; went walking barefoot; at the bath,

poured wine over myself before entering the hot water; bathed alone and gave the bathmaster an Attic

drachma; made common offering to Asklepios, to Epion [his wife], to the Eleusinian goddess; took

milk with honey. I used the oil and the headache was gone. I gargled with cold water against a sore

throat, since this was another reason that I had turned to the god. The same remedy for swollen tonsils.

I had occasion to write this out. With grateful heart and having become well, I took leave."

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Os seis casos listados até aqui testemunham evidências epigráficas de curas

atribuídas a Asclépio. Assim como em outros exemplos (COTTER, 1999:17-30;

LUCK, 2006:185-192) parece não haver limites para as curas de Asclépio, pois todo

tipo de doença, em vários lugares e em diferentes espaços de tempo seu poder alcança

a quem ao homem divino / deus se submete.

Levando-se em conta o complexo ritual a que se submete o doente e os

esforços empenhados em tal realização torna-se interessante notar que em nenhum

momento dos casos listados (ou os que não foram, mas podem igualmente assim

serem assumidos) a classe social é determinante para a crença ou desempenho da

cura. Poder-se-ia, inclusive, supor que seria demandado elevado custo de

deslocamento ou compra de oferendas para que se obtivesse a cura.

Entretanto, como os registros epigráficos parecem confirmar o elemento de

classe social não está em pauta nesse cenário. Igualmente notória é a ampla

disseminação dessas práticas em recortes de tempo e espaço variados. Prova da ampla

atestação de ser um costume místico de cura bastante difundido na bacia

mediterrânica. As referências textuais também confirmam esse aspecto.

. Asclépio ressuscita seis homens (Apolodoro, Biblioteca 3.10.3-4 por volta do I

século e.c.):

"Eu encontrei alguns, sobre quem foram relatados que teriam sido ressuscitados por ele [Asclépio], a saber, Capaneus e Licurgo;

conforme Steicoro relatou em Eriphyle; Hipólito, autor de

Naupactica também relata; Tyndareus, como diz Panyasis; Hymenaeus, conforme os relatos Órficos; e Glaucus, filho de

Minos, conforme Melasagoras relata. Mas Zesus, temendo que

aquele homem [Asclépio] pudesse também adquirir a arte da cura que tinha [Zeus] e viesse ao resgate do outro, o feriu com um

raio103

." (Apud COTTER, 1999:26).

Plínio, o velho, em História Natural 29-1.3, no primeiro século e.c. argumenta

que Asclépio teria sido morto por ressuscitar Tyndareus. De igual forma, Luciano, no

103 Tradução pessoal de: "I found some who are reported to have been raised by him, to wit, Capaneus

and Lycurgus, as Stesichorus [645–555 BCE] says in the Eriphyle; Hippolytus, as the author of the

Naupactica [sixth cntury BCE] reports; Tyndareus, as Panyasis [circa 500 BCE] says; Hymenaeus, as

the Orphics report; and Glaucus, son of Minos, as Melasagoras [fifth century BCE] relates. But Zeus,

fearing that men might acquire the healing art from him and so come to the rescue of each other, smote

him with a thunderbolt." Notas entre colchetes são inserções explicativas de Cotter.

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século II (120 e.c.) em Dança 45, confirmou a informação de Plínio afirmando que

Zeus ficara zangado com Asclépio pelo mesmo motivo. Em outra obra, Diálogos dos

Deuses: Zeus, Asclépio e Hércules 15, também por volta do ano 120 e.c., Luciano

conta que Zeus tivera que intervir nas disputas entre Asclépio e Hércules sobre quem

seria o maior.

Inclusive, mais uma vez, é Hércules quem lembra a Asclépio o castigo dado

por Zeus a ele por ser "médico" que ressuscita homens. Zeus coloca fim na disputa,

para que o jantar dos deuses siga em paz, dizendo a Hércules que Asclépio é maior

por ter conhecido a morte primeiramente. O conjunto desses testemunhos mitológicos

desempenha um papel social em seus respectivos contextos históricos.

Dois elementos, no entanto, são interessantes para destaque aqui. O primeiro

deles diz respeito à variabilidade e dinâmica dos mitos narrados nessa antiguidade

mediterrânica, pois mitos não são estáticos. Justamente por variar em seus conteúdos,

intencionalmente construídos e ritualizados com fins de intervenção social, esses

mitos são dinâmicos em seus propósitos e dificilmente conhecem versões monolíticas

ou singulares.

O que vai além dessa observação de ordem teórico-metodológica de analisar

narrativas mitológicas é o fato de que comumente Asclépio é bastante associado aos

episódios de ressurreição. A audiência mediterrânica é constantemente informada de

que há um deus a quem se deve recorrer quando da necessidade ou busca por

imortalidade. Dessa maneira, embora a variabilidade do mito deva ser levada em

conta, não há dúvidas de que, seja homem divino, seja uma divindade, Asclépio é

famoso na bacia mediterrânica por seus atos de cura, milagres ou ressurreições104

.

Pausânias, atuante no II século e.c., em sua Descrição da Grécia 1.26.4-5

busca sistematizar as tradições sobre Asclépio em Epidauro por meio de uma breve

apresentação das origens do mesmo. Esse relato dá conta do nascimento miraculoso

de Asclépio e suas peregrinações pela terra realizando curas e ressurreições.

É motivo, sem dúvida, de consideração as questões levantadas em torno do

material de Pausânias quanto ao seu grau de confiabilidade e precisão. No entanto,

não é essa a questão que está em pauta aqui. Mesmo ciente dessa problemática quanto

104 Chevitarese (2015:97, nota 24) ressalta uma importante afirmação feita por Jefferson (2010:229,

nota 14) e que está diretamente associada à questão semântica no caso de Asclépio quanto ao poder de

ressuscitar os mortos. Os relatos de Plínio e Luciano apontam que Asclépio foi morto por Zeus, logo

ainda que Asclépio tivesse o poder (dýnamis) de ressuscitar os mortos, o controle e autoridade

(ĕxŏusia) sobre a vida e a morte somente a Zeus pertencia.

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à natureza e conteúdo da fonte busca-se colocar em relevo a disseminação, atestação e

plausibilidade em se considerar a figura de Asclépio como detentor de poder

sobrenatural e, portanto, homem divino.

(c) Vespasiano

Há muitos outros homens divinos atuantes na bacia mediterrânica. A

bibliografia e a documentação citadas até aqui listam esses exemplos. Para finalizar

este tópico segue o caso do imperador romano Vespasiano. O interesse nessa escolha

é triplo:

(i) o corte cronológico de relatos de práticas mágicas associadas ao

imperador é muito relacionado ao ambiente dos paleocristianismos. Logo,

não parecerá difícil de associar suas práticas em ambiente mediterrânico

com aquelas que serão assumidas por personagens paleocristãs do ponto

de vista sincrônico105

;

(ii) o modelo thĕiŏs anēr é conceitualmente decisivo para percebê-lo. Os

limites desse modelo são bastante amplos, pois abarca em seu interior

desde divindades a pregadores itinerantes, ou desde personagens sem

aspirações políticas a imperadores. Assim, o que é central para essa

abordagem é reforçar a ideia de que não é uma lista de permissões ou

critérios tácitos que qualificam um homem divino, mas o conhecimento e

domínio de um tipo de poder sobrenatural;

(iii) mais uma vez, esse caso servirá de base para contestar a ideia de que

práticas mágicas são costumes "populares", uma vez que o príncipe ou

cidadão número um de um império, como o romano, é adepto de tais

práticas, como sustentar que somente em meios "populares" essas práticas

são verificadas?

A seguir, três testemunhas narrativas acerca de um mesmo evento dispostas

em ordem cronológica:

105 Nesta seção serão expostos três testemunhos relacionados a um único suposto evento, no entanto, na

seção seguinte, quando será analisado o ambiente mágico em contexto judaico, outra narrativa estará

presente.

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. Vespasiano cura um homem cego e outro coxo (Suetônio, Vidas dos Césares 7,2,

primeira metade do I século e.c.):

"Vespasiano, ainda estava sem prestígio e uma certa divindade, por

assim dizer, uma vez que ele fora um inesperado e ainda recém-

feito imperador; mas isso também foi dado a ele depois. Um homem do povo [isto é, em Alexandria], que era cego, e outro, que

era coxo, aproximaram-se dele quando ele sentou-se no tribunal.

Implorando ajuda para os seus problemas, que Serapis tinha

prometido em um sonho, declarando o deus, que Vespasiano restauraria-lhe os olhos se ele cuspisse sobre eles, e daria força para

a perna, se ele se dignasse a tocá-la com o seu calcanhar. Pensando

ele, sem fé de que poderia funcionar, hesitou até mesmo de fazer a tentativa, mas ele finalmente foi convencido por seus amigos e

tentou ambas as coisas em público diante de uma grande multidão,

e com sucesso106

."

A narrativa contada por Suetônio está também presente em Tácito, mas com

algumas diferenças em termos de detalhes do evento que teria acontecido e de uma

forma mais ampliada. No entanto, o sucesso em realizar as curas tem a mesma

verificação:

. Vespasiano cura um homem cego e a mão de outro (Tácito, Histórias 4.81, segunda

metade do I século e.c.):

"Durante os meses enquanto Vespasiano estava aguardando passar a estação regular do verão com ventos e mares perturbados, muitas

maravilhas aconteceram a fim de marcar o privilégio do céu e certa

parcialidade dos deuses em seu favor. Uma dentre as pessoas

comuns de Alexandria, bem conhecida pela sua perda de visão, se atirou diante dos joelhos de Vespasiano, rezando a ele com gemidos

para que lhe fosse curada a cegueira, sendo direcionada pelo deus

Serapis, aquela [Alexandria] que era a mais supersticiosa das nações dentre todas a adorá-lo; e suplicou ao imperador que se

dignasse a umedecer-lhe as bochechas e olhos com saliva. Outro,

cuja mão era inútil, impulsionado pelo mesmo deus, implorou ao Cesar para que pisasse sobre ele. Vespasiano, primeiramente,

106 Tradução pessoal de: "Vespasian as yet lacked prestige and a certain divinity, so to speak, since he

was an unexpected and still new-made emperor; but these also were given him. A man of the people

[i.e. in Alexandria] who was blind, and another who was lame, came to him together as he sat on the

tribunal, begging for the help for their disorders which Serapis had promised in a dream; for the god

declared that Vespasian would restore the eyes, if he would spit upon them, and give strength to the

leg, if he would deign to touch it with his heel. Though he had hardly any faith that this could possibly

succeed, and therefore shrank even from making the attempt, he was at last prevailed upon by his

friends and tried both things in public before a large crowd; and with success."

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ridicularizou os apelos e os tratou com desprezo; depois, quando o

homem persistiu, ele começou, por um lado, a temer pelo descrédito

do fracasso, mas, por outro lado foi inspirado com esperanças de

sucesso por parte dos apelos dos suplicantes e as ovações de seus cortesãos; finalmente, ele se dirigiu aos físicos buscando saber a

opinião deles se aquela cegueira e enfermidade poderiam se

superadas pela cura humana. Eles responderam tratando os casos diferentemente: eles disseram que no primeiro [o caso do homem

cego] o poder de visão não tinha sido completamente perdido e ela

poderia retornar se os obstáculos fossem removidos; para o outro caso [a mão inútil], afirmaram que as articulações tinham

escorregado e se deslocado, mas elas poderiam ser restauradas se

uma pressão de cura fosse aplicada. Isso, talvez, seria o desejo dos

deueses, e provavelmente o imperador poderia ter sido escolhido para essa tarefa; de qualquer modo, se a cura fosse realizada, a

glória seria do Cesar, mas, em caso de fracasso, o ridículo recairia

somente sobre os suplicantes. Então Vespasiano, acreditando que sua boa fortuna era capaz de qualquer coisa e nada mais era

inacreditável, com um semblante sorridente e em meio a intensa

excitação por parte dos espectadores, fez o que lhe foi pedido. A mão foi instantaneamente restaurada para uso, e o dia brilhou

novamente para o homem cego. Ambos os fatos foram contados por

testemunhas oculares mesmo agora quando a falsidade não traz

nenhuma recompensa107

."

Cassio Díon rememora o evento de cura realizado por Vespasiano e realça a

insatisfação dos alexandrinos por conta do episódio:

. Vespasiano cura um homem cego e a mão atrofiada de outro (Díon Cassio, História

Romana 65.8, início do III século e.c.):

107 Tradução pessoal de: "During the months while Vespasian was waiting at Alexandria for the regular

season of the summer winds and a settled sea, many marvels occurred to mark the favour of heaven

and a certain partiality of the gods toward him. One of the common people of Alexandria, well known

for his loss of sight, threw himself before Vespasian‘s knees, praying him with groans to cure his

blindness, being so directed by the god Serapis, whom this most superstitious of nations worships

before all others; and he besought the emperor to deign to moisten his cheeks and eyes with his spittle.

Another, whose hand was useless, prompted by the same god, begged Caesar to step and trample on it.

Vespasian at first ridiculed these appeals and treated them with scorn; then, when the men persisted, he

began at one moment to fear the discredit of failure, at another to be inspired with hopes of success by

the appeals of the suppliants and the flattery of his courtiers; finally he directed the physicians to give their opinion whether such blindness and infirmity could be overcome by human aid. Their reply

treated the two cases differently: they said that in the first [the case of the blind man] the power of

sight had not been completely eaten away and it would return if the obstacles were removed; in the

other [the useless hand], the joints had slipped and become displaced, but they could be restored if a

healing pressure were applied to them. Such perhaps was the wish of the gods, and it might be that the

emperor had been chosen for this divine service; in any case, if a cure were obtained, the glory would

be Caesar‘s, but in the event of failure, ridicule would fall only on the poor supplicants. So Vespasian,

believing that his good fortune was capable of anything and that nothing was any longer incredible,

with a smiling countenance, and amid intense excitement on the part of the bystanders, did as he was

asked to do. The hand was instantly restored to use, and the day again shone for the blind man. Both

facts are told by eye-witnesses even now when falsehood brings no reward."

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"Coincidente à entrada de Vespasiano em Alexandria, o Nilo

transbordou, tendo subido um palmo além do usual; tal

acontecimento, foi dito, somente outra vez teve lugar no passado. O

próprio Vespasiano curou duas pessoas, uma com a mão murcha e a outra pessoa cega, eles vieram a Vespasiano por causa de um sonho

que tiveram; ele curou um pisando em sua mão e o outro cuspindo

em seus olhos. Ainda, pensando que o Céu estava desta maneria o grlorificando, os alexandrinos, longe de se deliciarem com sua

presença, o detestavam tanto que se foram zombando e injuriando-

o. Pois, eles tinham a expectativa de receber dele grande recompensa por terem sido eles os primeiros a fazê-lo imperador,

mas, ao invés, eram taxados com contribuições adicionais108

."

Os feitos miraculosos de Vespasinao, certamente, o colocavam em outro

patamar, superior às medidas humanas. Ele foi, inclusive, um dos principais

responsáveis por desenvolver o culto imperial. Não somente o permitiu no Oriente,

como também o disseminou nas províncias ocidentais. É bastante discutido se esses

feitos extraordinários não teriam, em fim último, contribuído para a legitimação de

Vespasiano no governo do império romano (KLAUCK, 2011:72).

Sua conturbada ascensão ao poder somada à origem não aristocrática

poderiam ser elementos que o desfavorecessem, razão pela qual, possivelmente, sua

marca divina ou o fato de ter recebido o favor dos deuses se constituíssem como

elementos agregadores diante da audiência mediterrânica em torno de seu senhorio.

4.2. Daimŏn e histórias de exorcismos

A primeira impressão sobre exorcismos e/ou a presença de demônios ou

espíritos maus nas narrativas antigas depende da postura do narrador em questão. No

primeiro capítulo e nas seções iniciais deste segundo essa questão foi levada em

consideração quando discutidos os termos (títulos, nomes) aplicados a personagens

envolvidos em práticas mágicas. Assim, se a personagem é má vista seria acusada de

108 Tradução pessoal de: "Following Vespasian‘s entry into Alexandria the Nile overflowed, having in

one day risen a palm higher than usual; such an occurrence, it was said, had taken place only once

before. Vespasian himself healed two persons, one having a withered hand, the other being blind, who

had come to him because of a vision seen in dreams; he cured the one by stepping on his hand and the

other by spitting upon his eyes. Yet, though Heaven was thus magnifying him, the Alexandrians, far

from delighting in his presence, detested him so heartily that they were for ever mocking and reviling

him. For they had expected to receive from him some great reward because they had been the first to

make him emperor, but instead of securing anything they had additional contributions levied upon

them."

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161

feitiçaria, charlatanismo (gŏētĕía) ou, por oposição, se fosse bem vista ou salvadora

nesse contexto receberia o título de divindade, herói ou homem divino.

Portanto, a titulação de um exorcista ou praticante de magia que envolva

interação com espíritos de qualquer natureza, mais tem a ver com as disputas de

memória em torno de quem conta aquela história e que olhar imprime aos atos da

respectiva personagem, do que alguma implicação social. Carrega juízo de valor, pois

as disputas de memória em torno de um ou outro personagem (quase) sempre visam à

depreciação do antagonista à personagem central, por isso sua descaracterização109

.

Um passo anterior, portanto, na consideração sobre a presença do daimŏn na

documentação antiga deve ser perceber como essas entidades são concebidas na

documentação mediterrânica disponível àquela audiência. Plutarco, um autor do I

século e.c. reflete a leitura que se tinha sobre isso:

. Almas que perdem o controle de si mesmas podem tomar forma carnal novamente

(De Defectu Oraculorum 415C):

"Mas, com algumas dessas almas acontece que, se não mantiverem

o controle sobre si mesmas, mas cederem às tentações, elas

novamente podem adquirir roupagem de corpos mortais e ter uma vida sombria e escura, como a névoa ou o vapor

110."

No mesmo texto, agora no passo 416E-F, Plutarco informa que é impossível

imaginar o Cosmo sem daimŏnĕs:

"Agora, se o ar que está entre a terra e a lua fosse para ser retirado,

a unidade e associação do universo seriam destruídas, uma vez que ficaria um espaço vazio e desconectado no meio. Da mesma forma,

aqueles que se recusam em permitir a raça de semi-deuses

estabelecerem as relações entre deuses e homens remotas e

estranhas por acabar com a 'natureza interpretativa e ministratória', como Platão a chamou. Ou ainda, eles nos forçam à confusão

desordenada de todas as coisas, na qual nós trazemos deus às

109 Atentando para esses fatos e para a caracterização repleta de juízos de valores presentes nas

diferentes fontes que serão consideradas optar-se-á por entender o termo daimŏn presente na

documentação não exclusivamente como "demônio", pois trata-se de um rótulo eminentemente cristão.

Dependendo do contexto, a tradução aqui poderá manter o termo original ou traduzi-lo como "espírito"

ou "entidade". 110 Tradução pessoal de: " But with some of these souls it comes to pass that they do not maintain

control over themselves, but yield to temptation and are again clothed with mortal bodies and have a

dim and darkened life, like mist or vapour."

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emoções e atividades dos homens, extraindo-o para nossas

necessidades, como a mulher da Tessália diz ter extraído a lua.111

"

Nos trechos do mesmo documento (415A-B), Plutarco já informara que heróis

ou homens divinos, quando morrem, podem vir a se tornar um daimŏn. Apuleio de

Madaura, um poeta e filósofo, atuante na segunda metade do II século e.c. e nomeado

sacerdote chefe da província romana de Cartago, em 161 e.c., afirmava que toda

adivinhação e milagres daqueles praticantes de magia eram controlados pelos

daimŏnĕs (referência em Apuleio, Apologia, 43):

"Acredito em Platão quando ele afirma que há certos poderes divinos que exercem uma função de seres intermediários entre os

deuses e os homens, e que toda adivinhação e os milagres de magos

são controlados por eles112

."

Acerca da presença do daimŏn na documentação antiga os Papiros Mágicos

Gregos (PGM) testemunham que, por meio de rituais mágicos, é possível adquirir um

daimŏn assistente, se proteger deles ou exorcizá-los. O PGM I. 1-42, por exemplo,

instrui sobre como adquirir seu próprio daimŏn. Trata-se de um documento muito

bem preservado. São 347 linhas, dividas em 7 seções, de acordo com seus objetivos.

As seções 1 e 2 dizem respeito à aquisição de um daimŏn assistente, a terceira é uma

oração de louvor e parece indicar proteção contra ataques demoníacos. A quarta

ensina a ter invisibilidade até o por do sol, enquanto que a quinta orienta como

conseguir boa memória e a sexta se auto-proclama eficaz para conseguir

invisibilidade. Por fim, a sétima invoca e celebra diferentes divindades

mediterrânicas.

O objetivo de adquirir um daimŏn assistente é obter "revelação e clareza de

todas as coisas", assim inicia-se o papiro. Fundamentalmente, a preocupação é com a

onisciência. A datação parece indicar IV-V século e.c.. Não é possível, no entanto,

afirmar se o material tem proveniência de círculos cristãos ou politeístas. Ademais, a

111 Tradução pessoal de: "Now if the air that is between the earth and the moon were to be removed

and withdrawn, the unity and consociation of the universe would be destroyed, since there would be an

empty and unconnected space in the middle; and in just the same way those who refuse to leave us the

race of demigods make the relations of gods and men remote and alien by doing away with the

―interpretative and ministering nature‖ as Plato has called it; or else they force us to a disorderly

confusion of all things, in which we bring the god into men‘s emotions and activities, drawing him

down to our needs, as the women of Thessaly are said to draw down the moon." 112 Tradução pessoal de: "I believe Plato when he asserts that there are certain divine powers holding a

position and possessing a character mid-way between gods and men, and that all divination and the

miracles of magicians are controlled by them."

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visão positiva com que aborda e instrui na aquisição de um daimŏn assistente quer

evidenciar o risco em precipitações ao rotular o termo como algo demoníaco.

Por sua vez, no entanto, a postura positiva do PGM I não é observada no PGM

IV. Nas seções 86-87, 1227-1264 e 3007-3086 o daimŏn é algo negativo e precisa ser

combatido ou exorcizado. O PGM IV. 86-87 apresenta uma fórmula mágica:

"Filactéria contra daimŏnĕs: HOMENOS OHK KOURIĒK IAPHĒL, entregue,

EHENPEROOU BARBARCHAOUCHE." O papiro indica que seu uso deve ser feito

como uma filactéria (escrito em um pequeno pedaço de papiro ou pergaminho, colado

ou inserido em um recipiente e usado pendurado no pescoço). Os nomes grafados em

letras maiúsculas indicam os nomes de divindades correspondentes que protegerão o

portador da filactéria.

Nos trechos PGM IV. 1227-1264 e 3007-3086 outros rituais são formulados

para exorcizar o daimŏn. Eles têm em comum a invocação de deuses do panteão

judaico e paleocristão. Ramos de oliveira devem ser colocados diante do possesso e, à

frente dele, as divindades devem ser invocadas. São mencionados: deus de Abraão,

Isaque e Jacó; Jesus, Espírito Santo, Filho do Pai; Iao Sabaoth (provavelmente o

nome do deus hebreu - Javé). Satã é o responsável pela possessão. Após a recitação

das palavras mágicas, outra fórmula deve ser escrita em uma filactéria e usada pelo

possesso, agora liberto.

Digno de nota é que já no IV século Jesus e Javé são concebidos como

poderosas fontes de antagonismo aos poderes de Satã. Além do mais, nesse

documento, o significado de daimŏn, anteriormente conhecido especialmente nas

tradições filosóficas gregas tem seu significado alterado e uma nova conotação

aparece para o seu entendimento:

"Quando o movimento cristão empolgou todo o mundo ocidental,

nossa linguagem veio também a refletir um entendimento invertido,

e a palavra grega daimŏnĕs ('energias espirituais') se tornaria, em

inglês, demons (demônios). Assim, diz Justino: 'nós que, entre todas as raças, outrora adoramos Dionísio, o filho de Sêmele, e Apolo,

filho de Leto, que em suas paixões por seres humanos fizeram

coisas que são vergonhosas até em mencionar; que adoramos Perséfone e Afrodite... ou Asclépio, ou alguns dos outros que são

chamados deuses, agora, graças a Jesus Cristo, que desprezamos,

mesmo ao custo da morte, ... Temos pena dos que acreditam nessas

coisas, pelas quais sabemos que os daimŏnĕs são responsáveis'." (PAGELS, 1996:160-161).

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Alternativamente, ainda por volta dos séculos IV-V e.c., o PGM VII. 505-528

ensina como encontrar-se com daimnŏn de si mesmo. As invocações às divindades

apropriadas devem ser feitas. Após as invocações deve-se escrever uma fórmula

mágica em dois ovos que originarão galos (havia a crença na documentação antiga de

que, pelo formato do ovo, era possível determinar o sexo do animal, BETZ,

1992:132) e, com um deles, a pessoa deveria se purificar, ao fim de sete dias

repetindo a fórmula mágica anterior e, o outro, deveria ser ingerido ao fim do ritual.

Curiosamente, postura contrária em outra seção do papiro, PGM VII. 579-590,

testemunha que os daimŏnĕs também poderiam ser nocivos. Uma filactéria de

proteção serviria contra eles, fantasmas e todo tipo de doença e sofrimento. As

instruções orientam a pessoa a escrever a fórmula mágica ao redor e dentro de uma

oroboro (serpente que morde a própria cauda, conhecido símbolo mágico de

eternidade e proteção por evocar o círculo, forma geométrica perfeita e não

vulnerável, BETZ, 1992:134), logo em seguida, pronta a filactéria, deveria ser usada

com o nome de que a possuir (ver a sigla "NN" na figura, indicativo do local em que

o nome do portador deve ser escrito).

Figura 8: Filactéria de proteção contra daimŏnĕs, fantasmas e todo tipo de doença e sofrimento.

Por fim, dois outros exemplos dessa relação ambígua com os daimŏnĕs. O

PGM LXXXV. 1-6 é um material muito fragmentado, mas inteligível no que diz

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respeito à atestação de uma fórmula que visa adquirir ou afastar um daimŏn (o texto

não é conclusivo nesse sentido). O tradutor desse fragmento, Roy Kotansky (BETZ,

1992:301) argumenta que dois elementos tornam-se relevantes nesse material: (i) a

expressão "outro feitiço" indicaria que se tratava, em conjunto como os demais

fragmentos, de uma coleção de feitiços com esse teor, portanto, talvez, um manual de

feitiços; e, (ii) a datação provável do I século e.c. indicaria a ampla disseminação

desse tipo de crença e prática também nesse período.

Por sua vez, o PGM XCIV. 17-21, igualmente traduzido por Kotansky (BETZ,

1992:304), traz nitidamente as palavras "para aqueles possuídos por daimŏnĕs". Esse

fragmento constitui parte do PGM XCIV que propõe uma lista de feitiços para

variados fins. Digno de nota é a menção a "Salomão". Essa última referência faz

supor um rito de exorcismo propriamente dito de algum demônio.

4.3. Controle dos elementos naturais e interação com os mesmos

Divindades e homens divinos também eram reconhecidos por seu domínio

sobre a natureza. Fosse pelo controle efetivo dos elementos, fosse pela presença deles

desempenhando papel fundamental nas trajetórias de deuses e homens, a natureza

como parte integrante do Cosmo também era objeto de controle sujeitado ao poder

que essas personagens possuíam. Uma natureza divina era facilmente reconhecida

pela audiência mediterrânica em quem demonstrasse esse poder. Essas relações são

atestadas em vasto período cronológico e por toda bacia mediterrânica.

No Olimpo, certa vez, Afrodite foi responsável por salvar uma tripulação de

uma tempestade fortíssima, assim relata Athaneu, VII século a.e.c. (Apud COTTER,

1999:133):

"Assim que ele [Herostratus de Naucratis] aproximou-se do Egito,

uma tempestade de repente caiu por cima dele e era impossível ver

em que lugar no mundo eles estavam; então todos eles se

refugiaram na estátua de Afrodite, pedindo-lhe para salvá-los. A deusa , sendo amigável para os Naucratites, de repente, encobriu

tudo que estava ao lado dela com myrtle verde fresca, e encheu o

navio com um odor muito agradável, quando os homens navegam nela era porque estavam desesperados por sua segurança... então o

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sol brilhou e eles podiam ver a sua ancoragem, e assim chegaram a

Naucratis113

."

A deusa egípcia Isis também se tornou bastante popular no período

helenístico. Dois devotos daquela divindade, Isidoro (II século a.e.c.) e Apuleio (II

século e.c.) testemunham seu poder em viajar e controlar os mares e oceanos por

conta da busca por seu marido Osíris:

. Isidoro, Hino um, Os quatro hinos de Isidoro 1.39,43,49,50:

"―Eu sou senhora dos rios, dos ventos e do mar... Eu acalmo o mar e faço ele crescer ( ... ) Eu sou a Senhora da vela ( ... ) eu torno as

coisas inavegáveis, navegáveis, quando isso poderia ser a minha

glória 114

."

. Apuleio, Metamorfoses, 11.5:

"Contemple, Lucius, movido por suas orações Eu [Isis] vim, Eu, a

mãe do universo, amante de todos os elementos, e primeira cria de

todos os tempos; mais poderosa das divindades, rainha dos mortos, e acima de todos os seres celestiais. Minha única pessoa manifesta

o aspecto de todos os deuses e deusas. Com o meu aceno eu

governo as alturas do céu estrelado, as brisas do mar, e os silêncios plangentes do submundo

115."

Igualmente, a renomados filósofos, como Pitágoras, era atribuído o poder de

acalmar rios e mares:

. Iambilico (250-325 e.c.), Vida de Pitágoras 28:

113 Tradução pessoal de: "As he [Herostratus of Naucratis] approached Egypt a storm suddenly broke

out upon him and it was impossible to see where in the world they were; so they all took refuge at the statue of Aphrodite, begging her to save them. The goddess, being friendly to the Naucratites, suddenly

caused everything that lay beside her to be covered with fresh green myrtle, filling the ship with a most

plesant odour, when the men sailing in her were by this time despairing of their safety…then the sun

shone forth and they could see their anchorage, and so arrived in Naucratis." 114 Tradução pessoal de: "I am Mistress of rivers, and winds and sea…. I calm and swell the sea (…) I

am the Mistress of sailing (…) I render navigable things unnavigable when it might be to my glory." 115 Tradução pessoal de: "Behold, Lucius, moved by your prayers I [Isis] have come, I the mother of

the universe, mistress of all the elements, and first offspring of the ages; mightiest of deities, queen of

the dead, and foremost of heavenly beings my one person manifests the aspect of all gods and

goddesses. With my nod I rule the starry heights of heaven, the health-giving breezes of the sea, and

the plaintive silences of the underworld."

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"Muitas outras mais admiráveis características divinas são

igualmente por unanimidade e uniformemente relacionados ao

homem, tais como previsões infalíveis de terremotos,

extinções rápidas de pestes e furacões, cessações instantâneas

de granizo, e apaziguamento das ondas de rios e mares, a fim

de que seus discípulos possam passar mais facilmente por

cima deles116

."

Ainda nos círculos pitagóricos outro homem divino era capaz de realizar os

mesmos feitos de Pitágoras a ponto de ser conhecido pelo sobrenome de

"Apaziguador de Vento", trata-se de Empédocles:

. Iambilico (250-325 e.c.), Vida de Pitágoras 135-136:

"O poder de realizar milagres desse tipo [previsões de terremotos, a expulsão de doenças e furacões, cessações instantâneas de granizo e

apaziguamentos de mares e rios] foi alcançado por Empédocles de

Agrigento, Epimenes de Creta e Abaris Hiperbórea, e estes se apresentaram em muitos lugares. As suas obras eram tão claras que

Empédocles foi apelidado 'apaziguador de ventos', Epimenes o

'expiador' e Abaris um 'caminhante do ar''117

."

Apolônio de Tiana, segundo Filostrato, era mestre da tempestade e de perigos

de toda natureza:

. Filostrato, Vida de Apolônio de Tiana 4.13.5-13:

"Já era outono e o mar não era confiável. Todos [as pessoas navegando para Aeolia] eles consideravam Apolônio como alguém

que era mestre da tempestade e do fogo e pergios de toda sorte, e

muito desejavam ir a bordo com ele, e imploraram para permitir-

lhes partilhar a viagem118

."

116 Tradução pessoal de: "Many other more admirable and divine particulars are likewise unanimously

and uniformly related of the man, such as infallible predictions of earthquakes, rapid expulsions of pestilences, and hurricanes, instantaneous cessations of hail, and tranquillizations of the waves of

rivers and seas, in order that his disciples might the more easily pass over them." 117 Tradução pessoal de: "The power of effecting miracles of this kind [predictions of earthquakes,

expulsion of diseases and hurricanes, instantaneous cessations of hail and tranquilizations of seas and

rivers] was achieved by Empedocles of Agrigentum, Epimenes the Cretan and Abaris the

Hyperborean, and these they performed in many places. Their deeds were so manifest that Empedocles

was surnamed 'the Wind-Stiller', Epimenes an 'expiator' and Abaris an 'air-walker'." 118 Tradução pessoal de: "It was already autumn and the sea was not to be trusted. They [the people

sailing for Aeolia] all then regarded Apollonius as one who was master of the tempest and of fire and

of perils of all sorts, and so wished to go on board with him, and begged him to allow them to share the

voyage with him."

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Levando-se em consideração que a bacia mediterrânica estava rodeada de

culturas essencialmente agrárias e, portanto, dependendo das estações e elementos

naturais, não é difícil de supor que um líder político que tem poder - ou obtém favores

dos deuses - em controlar tais instâncias naturais seria privilegiado e amplamente

reconhecido pela demonstração clara de que nem mesmo a natureza lhe é obstáculo.

Cassio Díon (História Romana 46,1-4) relata que Julio "Cesar se revelou

como se pelo seu ato ele poderia parar a tempestade" dizendo para que o condutor

ficasse tranqüilo, pois "ele estava levando o Cesar em seu barco". Outras testemunhas

(Lucas, A Guerra Civil 5.476-699; Plutarco, Vidas: Julio Cesar 38.2-6 e Moralia: a

fortuna dos romanos 6; Apiano, História Romana 8.56-57 e 21.148; Suetônio Divus

Julius 58.2) relatam episódios semelhantes.

Andar sobre as águas ou se comunicar com os elementos também estava entre

os prodígios que homens divinos seriam capazes de operar. Porfírio, no final do II

século e.c., em Vida de Pitágoras 27 relata que Pitágoras saudou o rio que

atravessaria e, "com voz audível o rio o cumprimentou de volta". Crisóstomo Díon

em seu Terceiro discurso sobre Reinado 30-31 levanta a questão se Xerxes, o rei

Persa, não seria também divino pela capacidade em cruzar grandes extensões de água

e dominar reinos em toda parte.

Luciano, II século e.c., em O Amante de Mentiras, satiriza a crença em

poderes sobrenaturais e alega que quem realiza tais feitos não deseja nada mais além

de dinheiro. Em uma situação de diálogo com a personagem Cleodemos recupera a

crença dos pitagóricos em que Abaris, um hyperboreano (localidade fictícia), era

capaz de andar sobre as águas, a seguir, O Amante de Mentiras, 13:

"Disse Cleodemo, 'E mesmo era mais incrédulo que você no que diz

respeito a essas coisas [maravilhas]; pois eu pensava que de

nenhuma maneira possível essas coisas poderiam acontecer; mas, quando pela primeira vez eu vi um forasteiro voar - ele veio da terra

dos hiperboreanos, ele disse -, eu acreditei e fui conquistado após

longa resistência. O que estava eu a fazer quanto o vi planar através do ar em plena luz do dia e andar sobre a água e sobre o fogo em

com os próprios pés? 'Você viu isso?' disse eu - 'o hyperboreano

voando ou andando sobre a água?'

'Certamente', disse ele, 'com brogues nos pés, do jeito que essas pessoas do campo normalmente usam

119'".

119 Tradução pessoal de: ""Said Cleodemus, 'I myself was formerly more incredulous than you in

regard to such things [wonders]; for I thought it in no way possible that they could happen; but when

first I saw the foreign stranger fly - he came from the land of the Hyperboreans, he said -, I believed

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Muito embora a narrativa como um todo tenha por fim satirizar a crença em

poderes sobrenaturais, não deixa de ser notável a necessidade de se desconstruir

crenças em feitos prodigiosos naquele contexto por Luciano. O que está em jogo

nessa questão é a visão negativa sobre uma prática aceita em alguns ambientes ou na

mentalidade de certas audiências.

Como mencionado no tópico acima (4.2), muitas vezes, a intencionalidade de

autores se volta para a refutação ou confirmação de feitos sobrenaturais. Entretanto,

independentemente da crença ou não em realizações sobrenaturais, aqui, o que

interessa é que essas histórias circulavam com adeptos e detratores, mas circulavam e

tornavam a crença nas práticas mágicas ou homens detentores de poderes

sobrenaturais possíveis.

4.4. Visões sobre a magia

Conforme já foi mencionado em passos anteriores, a magia ou as práticas

mágicas são julgadas de acordo com as percepções da fonte que as mencionam.

Abaixo, dois exemplos desse aspecto ficam evidentes - Plínio, o Velho e Sêneca.

Mas, em contrapartida, outros três - Papiros Mágicos Gregos - refletem necessidades

das mais cotidianas em se adotar tais práticas. Se para Plínio e Sêneca a visão é

negativa quanto à existência de pessoas que delas se valem, para documentos

anônimos como os PGM elas são bastante úteis contras males que podem afetar as

experiências diárias.

De imediato, Celso (Orígenes, Contra Celso 1.68) censura praticantes de

magia:

"Feiticeiros professam realizar milagres maravilhosos, e realizações

que foram ensinadas pelos egípcios, por um punhado de moedas se

fazem conhecer no meio do mercado e expelem demônios de

homens e mandam embora doenças e invocam almas de heróis…

120"

and was conquered after long resistance. What was I to do when I saw him soar through the air in

broad daylight and walk on the water and go through fire slowly on foot?'

'Did you see that?' said I - 'the Hyperborean flying, or stepping on the water?'

'Certainly,' said he, 'with brogues on his feet such as people of that country commonly wear'.‖" 120 Tradução pessoal de: "Sorcerers who profess to do wonderful miracles, and the accomplishments of

those who are taught by the Egyptians, who for a few obols make known their sacred law in the middle

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O texto, recuperado a partir de Orígenes, dá conta que praticantes de magia

nada querem senão dinheiro. O olhar reproduzido por Celso acerca dessas práticas

mágicas quer ser uma denúncia contra Jesus que, segundo o autor é igual ou pior que

esses a quem ele denuncia (ver: Contra Celso 2.49, 3.3, 6.8-11, 7.9). A retomada de

Celso por parte de Orígenes em consonância com os escritos de Eusébio (Contra

Hiérocles, volume II da Loeb), revelam "claramente uma visão racionalista típica de

certos ambientes cristãos." (CORNELLI, 2000:26-27).

No século I e.c., Plínio, o Velho, em sua História Natural 28.6.30-33 e 30.1

descreve, respectivamente, práticas de cura para picadas de cobra ou mordidas de

outros animais de forma irônica e declara que as práticas mágicas devem ser sempre

denunciadas e censuradas por se tratarem das mais fraudulentas artes já conhecidas:

"Pessoas possuídas com poderes de bruxaria e do mau-olhado, juntamente com muitas características peculiares de animais, eu já

mencionei quando lidava com as maravilhas das nações; é supérfulo

voltar a essas coisas. Com certeza, homens de corpo fechado são beneficiados, por exemplo, os membros dessas famílias que

amedrontam serprentes. Eles, por mero toque ou sucção livram as

vítimas de picadas. Nessa categoria estão os Psylli, os Marsi e os Ophiogenes, como são chamados na ilha de Chipre. E um enviado

desta família, de nome Evagon, estava em Roma e foi lançado pelos

cônsules em um barril repelto de serpentes para um teste. Para

maravilhamento de todos o homem se lambeu completamente. Uma característica desta família, se é que ela ainda sobrevive, é o mau

cheiro de seus membros na primavera. Seu suor, bem como sua

saliva, têm poder curador. Mas, o nativos de Tentyris, uma ilha no Nilo, são tamanho terror aos crocodilos que apenas em ouvir a voz

deles os crocodilos fogem. Todas essas pessoas, com antipatia tão

fortes, podem, isso é bem sabido, efetuar cura somente por chegar

em algum lugar, assim como feridas crescem naqueles que já foram mordidos pelos dentes de cobra ou cachorro. Esses últimos também

são capazes de apodrecer ovos ou fazer o gado abortar; tanto

veneno resta do dano que uma vez receberam que os evenenados são convertidos em envenenadores. O remédio que têm em suas

mãos deve primeiro ser diluído em água para que depois sejam

aspergidos sobre seus pacientes. Por outro lado, aqueles que já foram uma vez picados por escorpião nunca mais serão atacados

por vespas, zangões ou abelhas. Ficará menos surpreedido com

essas coisas quem sabe que mariposas não tocam roupa que fui

usada em funeral e que as cobras dificilmente sairão de seus

of the market place and drive daemons out of men and blow away diseases and invoke the souls of

heroes…"

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buracos se for colada a mão esquerda neles121

." (História Natural

28.6.30-33).

"Na parte anterior de meu trabalho eu frequentemente refutei as

mentiras fraudulentas dos magos, não importa o assunto e que ocasião demande isso, e eu continuarei a expo-los. Em alguns

aspectos, no entanto, o tema merece ser ampliado, foi somente por

causa da mais fraudulenta das artes que o mundo tem se mantido

agitado122

." (História Natural 30.1).

Sêneca, também no século I e.c., em Hércules em Oeta 453-463, confirma que

as práticas mágicas são usadas para alterar a natureza. Sua percepção não parece ser

positiva quanto a esse aspecto:

"Pelas artes mágicas e orações conjugadas as mulheres frequentemente agarram-se aos seus maridos. Eu tenho ordenado

que as árvores cresçam verdes em meio às geadas do inverno e a luz

dos raios arremessado; Tenho suscitado das profundezas, pensando que os ventos lá estejam, e acalmado os mares revoltos; a terra seca

se abriu com fontes frescas; rochas se fizeram em movimento; os

portões eu tenho rasgado e as sombras de Dis, e sob minhas demandas de orações os espíritos falam, o cão infernal permanece;

a meia noite tem visto o sol, e o dia, a noite; o mar, a terra, o céu e o

Tártaro estão obedecem ao meu comando, é inútil se apegar à lei

contra meus encantamentos. Nos prostrarmos a ele iremos; meus encantamentos encontrarão o caminho

123."

121 Tradução pessoal de: "Persons possessed of powers of witchcraft and of the evil eye, along with

many peculiar characteristics of animals I have spoken of when dealing with the marvels of the

nations; it is superfluous to go over the ground again. Of certain men the whole bodies are beneficent,

for example the members of those families that frighten serpents. These by a mere touch or by wet suction relieve the bitten victims. In this class are the Psylli, the Marsi, and the Ophiogenes, as they are

called, in the island of Cyprus. And envoy from this family, by name Evagon, was at Rome thrown by

the consuls as a test into a cask of serpents, which to the general amazement licked him all over. A

feature of this family, if it still survives, is the foul smell of its members in the spring. Their sweat also,

not only their saliva, had curative powers. But the natives of Tentyris, an island on the Nile, are such a

terror to the crocodiles that these run away at the mere sound of their voice. All these peoples, so

strong their natural antipathy, can, as is well known, effect a cure by their very arrival, just as wounds

grow worse on the entry of those who have ever been bitten by the tooth of snake or dog. The latter

also addle the eggs of a sitting hen, and make cattle miscarry; so much venom remains from the injury

once received that the poisoned are turned into poisoners. The remedy is for their hands to be first

washed in water, which is then used to sprinkle on the patients. On the other hand, those who have once been stung by a scorpion are never afterwards attacked by hornets, wasps or bees. He may be less

surprised at this who knows that moths do not touch a garment that has been worn at a funeral, and that

snakes are with difficulty pulled out of their holes except with the left hand." 122 Tradução pessoal de: "In the previous part of my work I have often indeed refuted the fraudulent

lies of the Magi, whenever the subject and the occasion required it, and I shall continue to expose

them. In a few respects, however, the theme deserves to be enlarged upon, were it only because the

most fraudulent of arts has held complete sway throughout the world for many ages." 123 Tradução pessoal de: "By magic arts and prayers commingled do wives oft hold fast their husbands.

I have bidden the trees grow green in the midst of winter‘s frost, and the hurtling lightning stand; I

have stirred up the deep, though the winds were still, and have calmed the heaving sea; the parched

earth has opened with fresh fountains; rocks have found motion; the gates have I rent asunder and the

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172

O relato de Sêneca aponta para muitas situações que envolvem controle sobre

a natureza, mas o início da citação é bastante curioso, pois revela práticas mágicas

entendidas e utilizadas para fins eminentemente cotidianos, triviais. Essas

experiências místicas estavam absolutamente presentes na vida ordinária das

sociedades mediterrânicas e desempenhavam papéis extremamente úteis em contextos

nos quais a medicina no seu sentido moderno não estava amplamente difundida.

Ademais, "o conceito de 'medicina' era facilmente associado com 'magia124

'"

(COTTER, 1999:201). Logo, os escritores de histórias milagres tinham alguma idéia

da seriedade das queixas relativas a doenças e, inclusive, eles mesmos devem ter

testemunhado alguns tratamentos comuns aos males causados por elas. (COTTER,

1999:202). Entre as mais comuns que se tem notícia (ainda hoje) estão a febre, dor de

cabeça e desejo de excelente saúde desejado pelas pessoas em geral.

O PGM XCIV.7-9 prescreve uma fórmula para ser utilizada como amuleto a

fim de que se obtenha uma "excelente saúde: escreva em um amuleto: 'ABRAO

…ARON BARA BAR…A…O.'‖. Em caso de dor de cabeça, por exemplo, o PGM

VII.199–201 orienta: "Para dor de cabeça migratória: Tome olho em suas mãos e

profira a feitiço / 'Zeus costurou a semente de uva: ela não parte do solo; ele não a

semeou; ela não brota125

.‖ Aparentemente sem muito sentido ao leitor moderno, o

PGM VII tem em sua primeira parte um conjunto de 216 versos isolados de textos

atribuídos a Homero.

Esses trechos funcionariam como espécie de oráculo individual a quem

buscasse respostas para inúmeras questões da vida e existência. Funciona como um

manual de provérbios que orientam quem precisa de direcionamentos diversos quanto

a questões cotidianas da alma e do corpo físico. Nas seções seguintes, muitos e

variados feitiços são baseados nessa coletânea homérica e, além de responder às

questões individuais de natureza metafísica e corpórea, também prescrevem

sucessivas fórmulas para o bem estar do corpo. Amuletos, filactérias, receitas e outras

prescrições presentes no PGM VII constituir-se-iam em um importante manual ou

receituário geral para a vida ordinária de quem dele lançasse mão.

shades of Dis, and at my prayer‘s demand the spirits talk, the infernal dog is still; midnight has seen

the sun, and day, the night; the sea, land, heaven and Tartarus yield to my will, and naught holds to law

against my incantations. Bend him we will; my charms will find the way." 124 Tradução pessoal de: "the concept of 'medicine' was easily burred with 'magic'." 125 Tradução pessoal de: " For migraine headache: Take oil in your hands and utter the spell / ―Zeus

sowed a grape seed: it parts the soil; he does not sow it; it does not sprout."

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173

Muito semelhante aos dois anteriores é o PGM VII.211–212. Nele lê-se: "Para

febre com tremores: Pegue olho em suas mãos e diga sete vezes ―SABAOTH‖. E

espalhe o olho desde o início da coluna até os pés." Entretanto, com a menção de

"Sabaoth", nome identificado com a divindade hebréia Javé, o que parece ser uma

releitura de outras fórmulas mágicas em contexto de crença na divindade dos judeus.

Igualmente preocupado com esses temas, o PGM XVIIIb.1-7 oferece uma

fórmula mágica palíndromo para afastar as dores de cabeça:

―GORGOPHONAS 'Eu lhes conjuro todos pelo

ORGOPHONAS nome sagrado a curar Dionísio

RGOPHONAS ou Anys, a quem Heraklia aborreceu,

GOPHONAS para cada calafrio ou febre,

OPHONAS seja diária ou intermitente [febre]

PHONAS ao dia ou noite, ou febre quartã,

ONAS imediatamente, imediatamente, rápido,

NAS rápido.'

AS

S126

126 Tradução pessoal de: ―GORGOPHONAS ―I conjure you all by the

ORGOPHONAS sacred name to heal Dionysius

RGOPHONAS or Anys, whom Heraklia bore,

GOPHONAS from every shivering fit and fever,

OPHONAS whether daily or intermittent [fever]

PHONAS by night or day, or quartan fever,

ONAS immediately, immediately, quickly,

NAS quickly.‖

AS

S‖

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174

Figura 9: Amuleto contra febre

O texto reconstruído, deriva do formato com que deveria ser escrito e usado

para o ritual, e posterior aplicação, sobre a vítima da febre. O nome Gorgophonas

pode ser uma referência ao epíteto de Atená, a "assassina de Gorgo" (BETZ,

1992:255). Ou à filha de Peseu e Andromeda que teria sido a primeira mulher a se

casar com dois reis. Por esse motivo - e a forma de vagina da figura - podem indicar

as antigas referências homéricas à mulher como hábil em práticas mágicas e detentora

de tais poderes em âmbito principalmente doméstico.

Dessa exposição, enfim, o que se pretende deixar claro é que, do ponto de

vista das culturas mediterrânicas, a audiência quanto a práticas mágicas ou homens

capazes de manipulá-las era campo fértil para a comunicação eficaz. Inclusive, em

muitos casos, era decisiva para a eficácia dessa comunicação. Diante dessa

apresentação extensa realizada até aqui sem muitas fronteiras claramente definidas

cumpre, entretanto, verticalizar a abordagem e verificar de que forma esse milieu

mediterrânico afeito às práticas mágicas foi recepcionado em ambientes mais

específicos.

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175

Para efeito de contextualização, observar-se-á, primeiramente, o ambiente

judaico para, então, a seguir, verificar de que maneira os paleocristianismos

organizaram sua "estratégia" comunicativa com a referida audiência mediterrânica

nesse específico tema das práticas mágicas. Sempre que possível, os paralelos entre o

que foi exposto nessa seção de número 4 serão apontados com as quem vêm a seguir.

5. Experiências religiosas judaicas: as interações mágicas ou o Judaísmo

esquecido

Freqüentemente, o judaísmo é descrito e/ou estudado nas mais diferentes

análises que se ocupam da relação entre aquele e os cristianismos. O motivo é o mais

óbvio possível: os cristianismos originaram-se em ambiente judaico, muito embora

esse tenha sido um enunciado "esquecido", negligenciado ou obscurecido127

.

Contudo, é inegável a matriz cultural e religiosa imediatamente mais próxima do

local em que os cristianismos vieram a existir. Melhor seria, para a sentença anterior,

bem como para os estudos sobre cristianismos, que esses movimentos plurais fossem,

definitivamente, entendidos como essencialmente judaicos.

O enunciado que este trabalho aceita é que, oficialmente, somente no IV

século e.c., após o Concílio de Nicéia (ano 325) é que se pode falar de uma auto-

proclamada ortodoxia cristã. Entre os séculos I e II e.c. os movimentos religiosos que

vieram a ser conhecidos como cristianismos eram judaicos. Ou, flexibilizando o

máximo possível, experiências religiosas plurais distintas dentro do Judaísmo. A

distorção desse entendimento tem causado, em distintas pesquisas acadêmicas, uma

(re) construção parcial, falsa e por vezes programática de um Judaísmo que nunca

existiu.

Permeado por definições negativas, ou aquilo que é, por oposição ao que os

cristianismos não são, essas (re) construções incorrem na formulação de um

"Judaísmo-Frankstein". Em palavras mais objetivas: teólogos (e historiadores!)

cristãos assumem uma pureza conceitual monolítica e purista sobre o que seriam os

cristianismos - como o mais belo e pronto acabado exemplo de religião perfeita - para

definirem o Judaísmo como a antítese nefasta que precisava de superação128

.

127 Ver nota 74 acima. 128 Essa tradição não é recente. Conheceu sua origem a partir do cânon de Marcião (II século e.c.).

Derivado de uma leitura parcial e deformada dos textos paulinos, Marcião propôs que se

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176

Quando é proposto um estudo das experiências religiosas antigas (e modernas)

do ponto de vista de sua indelével pluralidade e amplamente permeado pela magia,

necessariamente, os estereótipos esvanecem-se. O hercúleo esforço em ambientar

essas experiências religiosas no seu tempo e espaço, do ponto de vista das diferentes

ciências sociais e humanas, consiste em aproximar-se de uma definição/descrição

mais honesta do que tenham sido essas plurais expressões de religiosidade, aqui, com

foco especial nas ênfases mágicas das quais estavam indissociadas.

Nesse mister é imperioso expor a documentação relativa a um Judaísmo

"esquecido", por assim dizer. Os exemplos se multiplicam em favor de ambientar os

diferentes judaísmos à intrínseca pertença mútua daquilo que a ciência moderna

logrou êxito em separar: religião e magia, conforme já analisado na introdução deste

trabalho. Do ponto de vista da cronologia, sejam os judaísmos mais antigos ou os

mais recentes - em conexão com os cristianismos - a documentação é abundante em

revelar a sempre presente constituição da religião em magia e vice-versa.

A atenção se volta, daqui para frente, no citado esforço para ambientar os

diferentes judaísmos, para a literatura judaica mais recente, que compreende aqui

desde o II século a.e.c. até o I século e.c.. Os autores judeus desse período lançaram

mão das tradicionais histórias do, assim chamado, Antigo Testamento e suas

personagens centrais para, no processo de recontá-las, construir sentido para seus

contextos imediatos e comunicação eficaz com suas audiências. As personagens

variam pouco: profetas, reis e líderes129

.

desconsiderasse do cânon cristão todo o "Antigo Testamento" (rótulo depreciativo à Bíblia Hebraica,

tida como a antiga ou ultrapassada aliança de Deus com os homens). Seus argumentos sustentavam que

o Deus do AT era violento e vingativo, portanto precisava da releitura, através de Jesus e o

conseqüente entendimento paulino. Para Marcião, o Deus (por meio de Jesus) cristão era superior ao

do AT e sua Revelação (Evangelhos) opunha a lei dos judeus àquela apresentada pelos evangelistas e

Paulo. Sustentado por essas idéias construiu um cânon somente com os Evangelhos (hoje canônicos) e textos de Paulo. Essa postura só conheceu refutações no início do III século e.c. com Tertuliano,

primeiramente, e depois com Justino, Eusébio e outros "pais" da igreja. No entanto, ganhou eco com

Celso ainda no II século. (BeDUHN, 2013:20-23). 129 A literatura judaica é vastíssima. Por essa razão, filtros precisaram ser aplicados na exposição a

seguir: (i) literatura que se ocupasse de contar histórias de milagres; (ii) articulado com o item anterior,

histórias que fossem contadas, mas que elegessem figuras centrais na tradição judaica e, portanto,

representativas, do ponto de vista da repercussão e circulação. Foram tomadas por base no caminho a

seguir duas obras centrais: (a) KOSKENNIEMI, 2005; (b) CORRINGTON, 1986. No entanto, tanto no

que diz respeito a comentários e/ou exposição de documentos, quanto comentários ou historiografia

aos temas apresentados, outras obras serviram de sustentação. Essas últimas, por conseguinte, serão

mencionadas em momento oportuno.

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177

As obras, no período cronológico mencionado, cobrem figuras centrais

presentes nas tradições judaicas. Um panorama pode ser sumariamente apresentado

da seguinte forma130

:

Referência Personagens Centrais Data

Sabedoria de Ben Sira Moisés, Josué, Elias, Eliseu, Isaías II século a.e.c.

Livro dos Jubileus Abraão e Moisés II século a.e.c.

Artapano Moisés II século a.e.c.

Ezequiel, o Tragediógrafo Moisés I século a.e.c.

Fílon Moisés I século e.c.

A Vida dos Profetas Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Elias

e Eliseu

I século e.c.

Livro Bíblico de

Antiguidades (Pseudo-Fílon)

Moisés, Josué, Kenaz, Sansão, Davi e

Elias

I século e.c.

Josefo Reconta toda a história dos judeus I século e.c.

Tabela 15: Textos judaicos do período helenístico e as práticas mágicas.

O texto de Ben Sira tem um caráter majoritariamente político e os milagres

faziam parte essencial daquele passado judaico como prova da presença de Deus. O

texto sugere que milagres não são mais necessários, mas a memória deles deve

permanecer em meio ao povo para que, um novo líder surgindo, os feitos de Deus

seja constantemente lembrado por ele de que a presença de Deus que se fez no

passado se concretize na atual liderança.

As histórias bíblicas são reinterpretadas e colocadas em um novo formato no

Livro dos Jubileus: a batalha cósmica entre Deus e os poderes do mal. A função das

narrativas de milagres, portanto, são multifacetadas. Se para o contexto de Moisés o

poder de Deus era comprovado através dos milagres realizados, no caso de Abraão a

visão era mais intimista para os judeus do II século a.e.c..

O grande líder e "pai do povo" judeu rejeitava os ídolos e mantinha

proximidade com Javé através de suas constantes orações. Também era corrente

naquele tempo o poder de alguns judeus em controlar espíritos (ou poderes de Satã -

130 O que se seguirá, daqui por diante, é uma discussão literária. No entanto, conforme outras seções

deste trabalho apontaram a atenção devida deve ser dada à questão semântica. Para uma completa

revisão e análise das relações entre thĕiŏs anēr e os correspondentes termos hebraicos (semanticamente

falando) associados ao conceito, ver HALLEVY, Raphael. (1958). Man of God. In: Journal of Near

Eastern Studies. Volume 17, Nº 4. pp. 237-244.

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178

demônios). Esse poder seria útil aos judeus de então, com o objetivo de controlar o

mau e ajudar a humanidade em se ver livre dele.

Ezequiel e Artapano são conhecidos por meio de fragmentos em outros

escritos, muitos deles, entretanto, cristãos, oriundos da Patrística. Em ambos os textos

os milagres desempenhavam papel decisivo na releitura da história do Êxodo. Os dois

autores sentiram-se bastante livres para reescrever e conferir novos formatos, bem

como inserir novas informações, àquela narrativa constante no texto homônimo da

Bíblia Hebraica. O que é central para esses autores é a constatação de que Moisés -

como um poderoso homem divino - era capaz de superar qualquer inimigo que se

interpusesse a ele, legítimo representante de Deus.

De todos os documentos mencionados, ao lado de Josefo, Fílon é o mais bem

preservado material dessa série. Para o autor residente e educado em Alexandria os

milagres realizados por Moisés e a conseqüente liberdade do povo judeu da

escravidão são provas incontestes da ação e favor de Deus. Inclusive, sem sombra de

dúvidas, esses feitos miraculosos foram decisivos em moldar a história nacional

judaica. O retrato pretendido por Fílon de Moisés é de um líder que carrega consigo

as evidências da presença de Deus - o poder dado a ele de realizar tantos milagres.

Em termos de crítica da forma, se comparado a um modelo tipicamente

helenístico e amplamente conhecido e usado nesse período, o texto As Vidas dos

Profetas é o mais próximo desse estilo literário. A coleção consiste em pequenas

biografias dos profetas repletas de histórias de milagres realizados por (ou por

intermédio) (d)eles. O tom apocalíptico que é dada às pequenas biografias é atestado

pela associação direta com a necessidade da realização de feitos extraordinários.

Igualmente aos demais textos, Deus é o agente dos feitos prodigiosos, mas confere

aos seus profetas a função de torná-los reais.

O Livro das Antiguidades Bíblicas está provavelmente ambientado no

contexto pós-destruição do Templo de Jerusalém. O sentimento que perpassa as

narrativas recontadas pode ser situado em um dilema tradicionalmente observado na

longa Tradição Judaica: Deus está distante ou pode ser concebido de forma pessoal,

próximo à esfera humana? A resposta para essa questão é dada pelo texto

comprovando que Deus está no céu, talvez em seu trono, mas intervém na história.

Prova incontestável de sua intervenção é o poder que concedeu às personagens

históricas que construíram a Nação Judaica. Os homens (divinos) enviados por Deus

estavam repletos do Espírito d'Ele e agiram poderosamente nesse sentido. Desde Ben

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179

Sira, no qual o passado da Nação é relembrado pelos heróis do povo, passando pelo

Livro dos Jubileus, em que as realizações miraculosas das personagens Abraão e

Moisés venceram a guerra entre as forças do mal e a bondade de Deus, até Fílon que,

consoante o Livro das Antiguidades Bíblicas viram em Moisés a eficaz e poderosa

intervenção de Deus por meio de feitos incríveis.

O material de Pseudo-Fílon é uma releitura e, fundamentalmente, atualização

de como o passado se faz presente no I século e.c.. O olhar desse autor ao passar em

revista toda a história judaica parece indicar que um novo líder brevemente virá para

cumprir a sempre constante ação de Deus em intervir e julgar justamente a história. É

com essa força de Deus, por meio de seus homens (divinos) enviados, que o material

revisa a história judaica e evidencia as recompensas e punições concretizadas nos

feitos miraculosos de Deus.

Flávio Josefo é um autor cercado de polêmicas. Seja pela acusação de traição

ao povo judeu, seja por fazer parte da corte de Vespasiano como historiador oficial, a

bibliografia especializada sempre está pronta para rotulá-lo de muitas maneiras. Três

posturas principais acompanham a interpretação sobre o historiador judeu quando o

assunto é sua relação com as histórias de milagres: (i) eles as racionaliza

freqüentemente; (ii) ele relaciona e constrói suas narrativas de milagres a partir de

seu particular ponto de vista político; (iii) ele constrói as personagens associadas a

milagres se utilizando do modelo de homem divino.

Não é a intenção aqui discutir as peculiaridades interpretativas a respeito de

Josefo, muito menos julgá-las. O que se faz central aqui é constatar que se trata de

mais um testemunho documental de que práticas mágicas ou feitos miraculosos são

corriqueiros e abundantes na bacia mediterrânica. Moisés, Josué, Sansão, Salomão,

Elias e Eliseu estão completamente identificados com esse aspecto no material de

Josefo. Não somente essas personagens da história judaica, mas Eleazar que,

igualmente, comprova que, entre os judeus, há quem domine perfeitamente essas

práticas:

"E esse tipo de cura [forma de exorcismo de Salomão] é de grande

poder entre nós até o dia de hoje, pois eu vi certo Eleazar, um homem do meu país [Josefo], na presença de Vespasiano, seus

filhos, tribunos e grande número de soldados, libertar um homem

possuído por demônios, e essa foi a forma de cura: ele pôs o anel, que tinha no selo uma das raízes prescritas por Salomão, sob o nariz

do possuído e, então, conforme o homem o inalava, expeliu o

demônio através de suas narinas e, quando o homem caiu,

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180

repreendeu o demônio para que nunca mais voltasse a possuí-lo

recitando o nome de Salomão e os encantamentos que ele tinha

composto. Então, desejando convencer os presentes e provar a eles

que tinha esse poder, Eleazar colocou um copo de água em uma bacia de lavar os pés bem perto do lugar de saída do demônio e o

ordenou que quando saísse, ele passasse por cima da água para que

os espectadores soubessem que houvera saído do homem. E quando isso foi feito, o entendimento e sabedoria de Salomão foram

claramente revelados, por isso é que temos sido induzidos a falar

dessas coisas, a fim de que todos os homens saibam como Deus o favoreceu, e que ninguém sob o sol seja ignorante a respeito da

virtude do Rei que supera a de outros reis de todos os tipos131

."

(Antiguidades Judaicas 8.46-49).

Como já exposto anteriormente, alguns elementos do ambiente mágico estão

presentes nesse relato: exorcismo, daimŏnĕs que caminham sobre as águas e a

decorrente reação de fazer com que as testemunhas fique maravilhadas com tais

demonstrações de poder. O que esse extenso conjunto de documentos judaicos quer

indicar, conclusivamente, é que as narrativas construídas em seus diferentes

ambientes e contextos históricos estão em sintonia e interação com os temas e

motivos do tempo presente de quem as escreve.

Corrington (1986:47) sugere que para se compreender de que forma a

literatura paleocristã constituiu suas narrativas e histórias que dão conta das práticas

mágicas deve-se observar qual foi o modelo adotado pela matriz cultural mais

imediatamente próxima a ela, ou seja, a cultura judaica. Segundo a autora norte-

americana, essa seria a trajetória para se compreender os movimentos literários

paleocristãos quando compuseram suas próprias sagas envolvendo a magia

mediterrânica.

Segundo Corrington, portanto, o conjunto documental de origem judaica

reagiu aos temas e questões presentes em seus respectivos contextos. Essa reação teve

131 Tradução pessoal de: "And this kind of cure [Solomon‘s forms of exorcisms] is of very great power

among us to this day, for I have seen a certain Eleazar, a countryman of mine [Josephus], in the

presence of Vespasian, his sons, tribunes and a number of other soldiers, free men possessed by demons, and this was the manner of the cure: he put to the nose of the possessed man a ring which had

under its seal one of the roots prescribed by Solomon, and then, as the man smelled it, drew out the

demon through his nostrils, and, when the man at once fell down, adjured the demon never to come

back into him, speaking Solomon‘s name and reciting the incantations which he had composed. Then,

wishing to convince the bystanders and prove to them that he had this power, Eleazar placed a cup or

foot-basin full of water a little way off and commanded the demon, as it went out of the man, to

overturn it and make known to the spectators that he had left the man. And when this was done, the

understanding and wisdom of Solomon were clearly revealed, on account of which we have been

induced to speak of these things, in order that all men may know the greatness of his [Solomon‘s]

nature and how God favoured him, and that no one under the sun may be ignorant of the king‘s

surpassing virtue of every kind."

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como fim formular apologias, missões e propagandas em que as tradições antigas

judaicas (re) atualizaram o passado com fins de legitimação e adesão à crença e

costumes tipicamente judaicos. A coletânea de artigos organizada por Fiorenza

(1976) segue a mesma tendência, porém com algumas nuances.

De acordo com Fiorenza o movimento literário do Novo Testamento estava

imbuído com o objetivo de atrair e convencer o mundo helenístico a aderir à fé

nascente. Se o milieu greco-romano não for mais considerado como um background

para se entender o movimento cristão antigo, mas ponto de partida religioso-cultural

inerente a ele, o material neotestamentário será compreendido como resultado do

movimento de busca pela adesão. (FIORENZA: 1976:2).

Para a norte-americana, inclusive, é por meio desse objetivo de apologia e

propaganda que o anti-judaísmo conheceu suas raízes mais antigas. Pois, motivado

pela helenização aquele judaísmo se viu obrigado a expandir suas fronteiras por meio

da divulgação de suas tradições. Justamente o sucesso nesse propósito é que motivou

a repulsa contra o próprio judaísmo, uma vez que, (i) a excessiva propaganda; (ii) o

estranho caráter religioso; e, (iii) os costumes morais e práticos, fizeram com que

houvesse um estranhamento por parte da audiência mediterrânica e provocasse sua

rejeição (FIORENZA, 1976:3).

Com base no que foi exposto até aqui acerca da literatura judaica e seus

propósitos de releitura, as teses de Corrington e Fiorenza precisam ser refutadas. O

sitz-im-Leben da literatura judaica acima mencionada parece indicar outras

motivações, bem como, obviamente, outras conclusões. Os textos são escritos em

flagrantes episódios de violentas tensões em meio ao povo judaico.

Desde os Macabeus até a queda do Templo em 70 e.c., o tema que perpassava

os escritos judaicos era a necessidade de um líder enviado por Deus. Esse líder,

invariavelmente, atestava seu comissionamento por meio de provas. De milagres.

Essa era a prova cabal de que escritores e audiência necessitavam para crer no

enviado de Deus que reuniria todo Israel e promoveria um Reino de Deus, à maneira

judaica.

Diferentemente do Reino de Deus proposto por Jesus, a expectativa de um

líder que emergia dos escritos judaicos era - dentre outros atributos - a de um líder

que demonstrasse - via sinais miraculosos - a presença de Deus. Nesse sentido, o

modelo do homem divino funciona eficazmente! Há uma expectativa, sinais que

provam o caráter divino e, portanto, a adesão de seguidores.

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Para que essa leitura se torne mais plausível e viável no entendimento da

questão, o que há de comum em todas as narrativas deve, primeiramente, ser levado

em consideração: o processo de helenização do mediterrâneo e a injunção de um novo

paradigma político de diálogo com a religiosidade local.

Ao que parece, a expansão do helenismo e a ameaça que representou aos

diferentes judaísmos as ações de governantes como Antíoco IV Epífanes, por

exemplo, fez com que escritores judeus reposicionassem suas respectivas audiências

quanto à teologia da história, sob domínio do Deus. Diante de um ambiente de

crescente pluralismo religioso e sucessivas catástrofes contra o povo judeu, a

ritualização da memória de acontecimentos passados teria papel fundamental naquele

contexto adverso que abalava pontos fundamentais da fé daquele povo. (NORTH,

1994:187-192).

6. Magia e paleocristianismos: o "entorno" religioso?

A observação do contexto judaico em que eminentes personagens do passado

passaram a ser relidas por meio da conotação mágica com fins de oferecer respostas

ao momento histórico conturbado para as experiências religiosas judaicas se

verificou, igualmente, nos movimentos paleocristãos - essencialmente auto-

entendidos como judaicos entre os séculos I e II e.c. - de maneira semelhante. No

entanto, as respostas oferecidas pelos autores do assim chamado "Novo Testamento"

acabaram por ser sensivelmente diferentes daquelas esperadas pelos autores

anteriormente mencionados.

A expectativa do surgimento de um líder carismático que reunisse as

esperanças religiosas e políticas - indissociáveis nas culturas mediterrânicas -

presentes na tradição judaica era crescentemente visível na província romana da

Palestina do I século e.c.. Candidatos e aspirantes ao posto de liderança que livraria a

Judéia do domínio romano eram tão numerosos quanto à alegada necessidade de

libertação por parte dos hebreus132

.

Coincidência, ou não, aquele que mais obteve sucesso (implica dizer: sua

memória perdurou com mais vitalidade ao longo da história) foi Jesus de Nazaré. As

132 Excelentes estudos nesse sentido estão, por exemplo, em SCARDELAI, Donizete. (1998).

Movimentos messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias. São Paulo: Paulus; e

HORSLEY, Richard A. & HANSON, John S. (1995). Bandidos, Profetas e Messias. Movimentos

Populares no Tempo de Jesus. São Paulo: Paulus.

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183

memórias construídas sobre ele pelos autores dos evangelhos - hoje canônicos - dão

conta das provas requeridas para um líder dessa natureza. Foi exatamente na interação

com esse milieu mediterrânico que as histórias sobre o nazareno conheceram sua

forma final.

A relação entre a fixação escrita dessas memórias - e conseqüente propagação

- com o milieu mediterrânico proposto até aqui deve ser entendida através da

perspectiva das interações culturais. Recentemente, no ano de 2011, a editora Loyola

lançou dois volumes de um estudo exaustivo sobre o ambiente (político, religioso,

mágico, social) no qual os paleocristianismos surgiram. Trata-se do excelente texto

do autor alemão Hans-Josef Klauck.

O título original da obra, Die religiöse Umwelt des Urchristentums: Stadt- und

Hausreligion, Mysterienkulte, Volksglaube, em tradução livre, O ambiente religioso

do cristianismo primitivo: Religião Civil e doméstica, cultos de mistério, crença

popular conheceu a versão em língua portuguesa sob o seguinte título: O entorno

religioso do cristianismo primitivo: Religião civil e religião doméstica, cultos de

mistérios, crença popular.

A diferença fundamental entre o título original e a tradução está na palavra

Umwelt, em alemão, para "entorno", em português. Por mais que se assemelhe a

preciosismo semântico, o entendimento dessa distinção tem conseqüências relevantes

para o tema aqui discutido. Para o vocábulo alemão, "ambiente" parece bastante

apropriado. O termo "entorno", em português, entretanto, traz a noção básica de que o

"cristianismo primitivo" (no singular e "primitivo" com a noção de "mais original")

apenas ficou à margem das práticas religiosas, mágicas ou de crenças populares na

bacia mediterrânica. Surgiu e se desenvolveu incólume aos acontecimentos

circundantes.

Essa noção deturpada das experiências místicas paleocristãs não se esgota na

questão semântica. O elemento cultural é decisivo para elucidar essa questão.

Conceber relações culturais vai muito além da perspectiva do "entorno", pois no

encontro entre culturas nenhuma delas permanece a mesma após a interação. Sahlins

(1990) teoriza essa interação e fornece elementos preciosos para a perspectiva a partir

da qual este trabalho apresentará as visões paleocristãs aplicadas às suas personagens.

Segundo o autor norte-americano, a cultura é historicamente reproduzida e

alterada na ação (1990:7). Portanto, se a cultura está inserida na história, ela está em

constante movimento, transformando-se. Logo, ela é, no tempo, a síntese de

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184

reprodução e variação, de estabilidade e mudança (SAHLINS, 1990:9). No caso

específico aqui tratado é de se esperar, segundo esse modelo teórico, que a cultura

judaica do I século e.c. ao se encontrar com a helenística nunca mais permaneceu a

mesma, de igual forma, a helenística.

A audiência mediterrânica estava informada sobre uma série de dados

culturais relativos a práticas mágicas como já demonstrado. Assim, Plutarco (ver

p.162 acima) dava conta de que toda magia e adivinhação eram controladas por

daimŏnĕs. É muito provável, então, que essa informação fosse conhecida por

escritores de textos neotestamentários. Igualmente, os rótulos negativos que

adquiriam essas práticas mágicas (cf. Celso, por exemplo, p.169 acima), talvez por

isso mesmo que Lucas (4, 16-30), por exemplo, tenha revestido os milagres de Jesus

como algo relativo ao cumprimento de profecias de Isaías.

A recepção dos milagres realizados por Jesus precisava conhecer elementos

identitários próprios da cultura judaica e ser justificado a partir da vontade soberana e

revelatória de Deus. Se assim não fosse, o risco de descrédito atribuído ao Jesus

homem divino era muito grande por parte de detratores contrários às práticas mágicas

ou àqueles adeptos a outros tipos de homens divinos. Se tomado o caso de Hércules,

que sabidamente curava todas as doenças (ver a citação de Aristídes acima, p.45), por

exemplo, o modelo de Jesus precisava, no mínimo, equiparar-se àquele atribuído ou

construído sobre o homem divino grego.

Para os redatores de textos neotestamentários interagir com a cultura

mediterrânica implicava em participar as suas respectivas personagens em um mundo

repleto de demandas e expectativas sobrenaturais. Esse processo não consistia em

mera imitação, mas em uma organização da situação contemporânea a eles em termos

do passado (SAHLINS, 1990:192).

Implica dizer que, ao produzir seus relatos sobre Jesus, por exemplo, as

categorias narrativas disponíveis para uso e aceitação da cultura mediterrânica se

organizavam em termos de torná-lo uma personagem do seu próprio tempo (coisa que

nunca deixaram de ser!). Tornar as personagens paleocristãs representativas consistia

em fazê-las dialogar com as experiências culturais típicas daquele contexto. Não

pareceu ser uma escolha, mas um procedimento narrativo disponível para aquelas

culturas.

Ou seja, Jesus não curava ou realizava milagres para ser aceito ou

reconhecido. Ele os fazia, pois se tratava de um dado inerente àquele período. Ora, se

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185

Asclépio curava a cegueira (ver inscrições sobre a cura de uma mulher e um homem

cegos acima, pp. 152 e 153 acima), Vespasiano de igual forma (ver Suetônio p. 158;

Tácito pp. 158-159 e Cássio Díon, p.160, acima), Jesus também possuía esse poder

(Mc 8, 22-26; Mc 10, 46-52 // Mt 20, 29-34 // Lc 18, 35-43).

Essa congruência de episódios, muito longe de parecer uma "paralelomania",

ambienta Jesus em um contexto em que, do ponto de vista sincrônico e diacrônico,

essas práticas era usuais a quem fosse tido como um homem divino. São exatamente

essas múltiplas atestações que tornam (i) homens divinos conhecidos e disseminados

na bacia mediterrânica; e, (ii) apresentam um Jesus que não está fora de seu tempo,

mas intensamente interagindo com ele.

Do ponto de vista da plausibilidade histórica cumpre observar essa questão da

epistemologia da história, em que homens e mulheres agem em seus respectivos

espaços ao longo do tempo. O tema não é, em absoluto, a discussão sobre

factualidade ou comprovação empírica da existência da personagem Jesus e suas

experiências históricas. O que se pretende com essa ambientação de Jesus em seu

tempo é notar como escritores paleocristãos lançavam mão de seus recursos culturais

na apresentação de suas personagens. Se históricas, precisas, verdadeiras ou não, a

discussão está muito além do que se pretende aqui.

A cultura, enquanto síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente,

de diacronia e sincronia (SAHLINS, 1990:180) revela que autores neotestamentários

narraram ou construíram suas personagens de acordo com a síntese cultural que

sistematizaram interagindo com a cultura mediterrânica. A adoção do modelo thĕiŏs

anēr, nesse sentido, foi central. A seguir, alguns exemplos na adoção desse modelo

para o caso de Jesus133

.

(a) Curas:

. Uma mulher com hidropsia (edema) é curada (Lc 14, 1-6), ver também o caso de

Asclépio p. 153:

133 Para a exposição que se segue convém atentar para as seguintes referências: os textos

neotestamentários foram reproduzidos a partir da tradução disponível na Bíblia de Jerusalém (BJ). A

documentação não bíblica que for mencionada indicará o número da página correspondente à citação

efetuada em outros momentos deste mesmo capítulo.

Page 186: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

186

"1Certo sábado, ele entrou na casa de um dos chefes dos fariseus

para tomar uma refeição, e eles o espiavam. 2Eis que um hidrópico

estava ali, diante dele. 3Tomando a palavra, Jesus disse aos legistas

e aos fariseus: "É lícito ou não curar no sábado?" 4Eles, porém,

ficaram calados. Tomou-o então, curou-o e despediu-o. 5Depois

perguntou-lhes: "Qual de vós, se seu filho ou seu boi cai num poço,

não o retira imediatamente em dia de sábado?" 6Diante disso, nada

lhe puderam replicar."

. Muitas curas realizadas por Jesus - Mt 15, 29-31 (// Mc 7, 31-37), ver também o

caso de Asclépio pp. 152-154; o caso de Hércules, pp. 150-151; Vespasiano, pp.158-

160, etc.:

"29Jesus, partindo dali, foi para as cercanias do mar da Galiléia e,

subindo a uma montanha, sentou-se. 30

Logo vieram até ele

numerosas multidões trazendo coxos, cegos, aleijados, mudos e muitos outros, e os puseram aos seus pés e ele os curou,

31de sorte

que as multidões ficaram espantadas ao ver os mudos falando, os

aleijados sãos, os coxos andando e os cegos a ver. E renderam glória ao Deus de Israel."

. Um homem coxo é curado134

(Jo 5,1-9), ver também Vespasiano, pp. 158-160:

"1Depois disso, por ocasião de uma festa dos judeus, Jesus subiu a

Jerusalém. 2Existe em Jerusalém, junto à Porta das Ovelhas, uma

piscina que, em hebraico, se chama Betesda, com cinco pórticos. 3Sob esses pórticos, deitados pelo chão, numerosos doentes, cegos,

coxos e paralíticos ficavam esperando o borbulhar da água. 4Porque

o Anjo do Senhor descia, de vez em quando, à piscina e agitava a

água; o primeiro, então, que aí entrasse, depois que a água fora

agitada, ficava curado, qualquer que fosse a doença. 5Encontrava-se

aí um homem, doente havia trinta e oito anos. 6Jesus, vendo-o

deitado e sabendo que já estava assim havia muito tempo,

perguntou-lhe: "Queres ficar curado?" 7Respondeu-lhe o enfermo:

"Senhor, não tenho quem me jogue na piscina, quando a água é agitada; ao chegar, outro já desceu antes de mim".

8Disse-lhe Jesus:

"Levanta-te, toma o teu leito e anda!" 9Imediatamente o homem

ficou curado. Tomou o seu leito e se pôs a andar. Ora, esse dia era um sábado."

. Uma mulher é curada da febre que a acometia - Mc 1, 29-31 (// Mt 4, 1-11 // Lc 4,1-

13), ver também PGM VII.211–212; PGM XCIV.7-9, pp.172-173:

134 Sobre esse episódio narrado no Evangelho de João, um interessante e profundo estudo pode ser

encontrado em: CHEVITARESE, A. L. (2013). Entre João e os atuais leitores de seu Evangelho: um

comentário sobre filtros de leitura. In: Gilvan Ventura da Silva e Leni Ribeiro Leite. (Org.). As

Múltiplas Faces do Discurso em Roma. Vitória: EDUFES. pp. 180-195. Entre outros assuntos, o

autor discute a relação entre Jesus e Asclépio no que diz respeito às práticas mágicas e curas atribuídas

às duas personagens.

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"29E logo ao sair da sinagoga, foi à casa de Simão e de André, com

Tiago e João. 30

A sogra de Simão estava de cama com febre, e eles

imediatamente o mencionaram a Jesus. 31

Aproximando-se Ele a

tomou pela mão e a fez levantar-se. A febre a deixou e ela se pós a servi-los."

(b) Ressurreição dos mortos:

. Jesus ressuscita um garoto - Lc 7, 11-17 (Mc 5, 21-34 // Mt 9, 18-26 // Lc 8, 40-48;

Jo 11, 1-46), ver também Asclépio, p. 155:

"11

Ele foi em seguida a uma cidade chamada Naim. Seus discípulos

e numerosa multidão caminhavam com ele. 12

Ao se aproximar da

porta da cidade, coincidiu que levavam a enterrar um morto, filho único de mãe viúva; e grande multidão da cidade estava com ela. 13

O Senhor, ao vê-la, ficou comovido e disse-lhe "Não chores!" 14

Depois, aproximando-se, tocou o esquife, e os que o carregavam

pararam. Disse ele, então: "Jovem, eu te ordeno, levanta-te!" 15

E o morto sentou-se e começou a falar. E Jesus o entregou à sua mãe. 16

Todos ficaram com muito medo e glorificavam a Deus, dizendo:

"Um grande profeta surgiu entre nós e Deus visitou o seu povo". 17

E essa notícia difundiu-se pela Judéia inteira e por toda a redondeza."

(c) Daimŏnĕs e Exorcismos:

Numerosas são as passagens em que Jesus está em cena realizando

exorcismos. No I século e.c. Plutarco informava que o mundo está repleto de

daimŏnĕs e que eles podem voltar a ter a forma carnal (p.161). É possível que esse

tenha sido o tema mais ressiginificado na literatura judaica e paleocristã. A semântica,

cultura e teologia sobre o assunto nesses ambientes conferiu transformação

significativa desde o II século a.e.c. até os períodos formativos dos cristianismos.

Embora os daimŏnĕs tivessem conotação positiva em alguns contextos (ver

item II.4 acima), numerosos casos atestam a posterior impressão negativa: PGM IV.

86-87, PGM IV. 1227-1264 e 3007-3086 e PGM XCIV. 17-21 (pp.163-165,

respectivamente). Em contexto judaico, algumas personagens eram elogiadas por

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188

dominar esses poderes de exorcismo (ver o episódio envolvendo Eleazar na corte de

Vespasiano, por exemplo, p.179-180).

Os autores neotestamentários também lançaram mão desse recurso ao

apresentar Jesus: Mt 8, 28-34 (versão de Mc 5,1-20); Mc 1,21-28; Mc 5,1-20 (Mt

8,28-34 // Lc 8, 26-39); Mc 7, 24-30 (Mt 15, 21-28); Mc 9, 14-29 (Mt 17, 14-21 // Lc

9, 37-43). Esse, inclusive, parece ser um dos temas mais significativos de

demonstração de autoridade (ĕxousia) e poder (dýnamis) atribuído a Jesus em sua

atuação.

(d) Domínio da natureza e interação com a mesma

Outro tema bastante relevante para o reconhecimento e aceitação de homens

divinos está ligado ao modo com que interagem com a natureza. Controlar as águas é

amplamente atestado na documentação. Afrodite outrora salvou uma tripulação de

uma terrível tempestade (ver pp. 165-166). Isis também foi celebrada por essa

façanha (ver p. 166), Pitágoras de igual forma (pp. 167) e tantos outros exemplos já

mencionados. Para o caso de Jesus, dois momentos exemplificam essa questão:

. A tempestade é acalmada, Mc 4, 35-41 (// Mt 8, 23-27 // Lc 8, 22-25), ver também

Apolônio de Tiana, p. 167 e Julio Cesar, p. 168:

"22Certo dia, ele subiu a um barco com os discípulos e disse-lhes:

'Passemos à outra margem do lago'. E fizeram-se ao largo. 23

Enquanto navegavam, ele adormeceu. Desabou então uma

tempestade de vento no lago; o barco se enchia de água e eles

corriam perigo. 24

Aproximando-se dele, despertaram-no dizendo:

'Mestre, mestre, estamos perecendo!' Ele, porém, levantando-se, conjurou severamente o vento e o tumulto das ondas; apaziguaram-

se e houve bonança. 25

Disse-lhes então: 'Onde está a vossa fé?' Com

medo e espantados, eles diziam entre si: 'Quem é esse, que manda até nos ventos e nas ondas, e eles lhe obedecem?'"

. Jesus caminha sobre as águas, Mc 6, 45-52 (Mt 14,22-32; Jo 6,15-21), ver também

Luciano, p. 168:

"45

Logo em seguida, forçou seus discípulos a embarcarem e

seguirem antes dEle para Betsaida, enquanto Ele despedia a multidão.

46E, deixando-os, Ele foi à montanha para orar.

47Ao cair

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189

da tarde, o barco estava no meio do mar e Ele sozinho em terra. 48

Vendo que se fatigavam a remar, pois o vento lhes era contrário,

pela quarta vigília da noite dirigiu-se a eles, caminhando sobre o

mar. E queria passar adiante deles. 49

Vendo-o caminhar sobre o mar, julgaram que fosse um fantasma e começaram a gritar,

50pois

todos o viram e ficaram apavorados. Ele, porém, logo falou com

eles, dizendo: ―Tende confiança. Sou Eu. Não tenhais medo‖. 51

E subiu para junto deles no barco. E o vento amainou. Eles, porém, no

seu íntimo estavam cheios de espanto, 52

pois não tinham entendido

nada a respeito dos pães, mas o seu coração estava endurecido."

No que diz respeito à interação com a natureza, Sêneca (p.171 ) dizia que a

magia alterava sua constituição. O episódio de Jo 2, 1-11, no qual Jesus transforma

água em vinho oferece um paralelo interessante. Plínio (p. 170) também menciona

picadas de animais como usualmente motivos de curas. Não deixa de ser interessante

observar a seguinte passagem do Evangelho de Marcos (16, 17-20):

"17

Estes sãos os sinais que acompanharam aos que tiverem

crido: em Meu Nome expulsarão demônios, falarão em novas

línguas, 18

pegarão em serpentes, e se beberem algum, veneno

mortífero, nada sofrerão; imporão as mãos sobre os enfermos,

e estes ficarão curados‖. 19

Ora, o Senhor Jesus, depois de lhes

ter falado, foi arrebatado ao céu e sentou-se à direita de

Deus. 20

E eles saíram a pregar por toda parte, agindo com eles

o Senhor, e confirmando a Palavra por meio dos sinais que a

acompanhavam."

O trecho de Marcos (16, 9-20) é um acréscimo posterior ao material original

do Evangelho. A inclusão desses quatro últimos versos torna bastante relevante o fato

de que algum tempo depois da fixação escrita das memórias da comunidade marcana

alguém identificou a necessidade de incluir tal passagem. Essa é uma evidência

conclusiva de que não somente Jesus, mas também os seus seguidores ao serem

reconhecidos como homens divinos ganhavam notoriedade.

A partir da exposição documental realizada até aqui, quatro apontamentos

conclusivos se seguem:

(i) o milieu mediterrânico revela que as práticas mágicas eram elemento

constituinte das experiências místicas cotidianas;

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190

(ii) as diferentes experiências místicas judaicas e paleocristãs estavam

completamente inseridas nesse milieu e interagindo intensamente com

ele;

(iii) para as experiências místicas mediterrânicas e, por conseqüência,

para aquelas judaicas e paleocristãs o modelo de homem divino

desempenhou papel preponderante na apresentação de personagens e na

forma com que interagiam e manipulavam as forças cósmicas que regiam

as vidas daquelas populações;

(iv) Lucas lança mão desse modelo de homem divino para apresentar

Jesus em seu primeiro volume (Evangelho) e prossegue em Atos dos

Apóstolos demonstrando como o movimento iniciado por Jesus ganhou

continuidade. É precisamente nese contexto, já no II século e.c. que Paulo

será "inventado".

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III. Paulo de Tarso: o legítimo homem divino em Atos dos Apóstolos

1. Panorama

O capítulo precedente apresentou o milieu mediterrânico antigo como um

espaço em que as respectivas audiências estavam completamente inseridas e

familiarizadas com as práticas mágicas como parte constituinte de suas experiências

místicas. O presente capítulo tem por proposta verticalizar essa abordagem a partir de

um recorte mais específico: a audiência específica a quem Atos dos Apóstolos foi

direcionada (e isso demanda uma resposta, ou seja, aderência à mensagem e projeto

de Jesus), no geral, e a construção de Paulo como thĕiŏs anēr nesse documento, no

particular.

Adotando, portanto, esse documento e com os alvos definidos imediatamente

acima é possível observar como a bibliografia especializada tem tratado do tema a

partir de uma conclusão básica: os textos e, por conseguinte, seus autores

paleocristãos, têm uma atitude negativa com relação à magia. Muitos desses autores

foram mencionados no primeiro capítulo e, como lá expostos, essa não é uma

percepção incomum. Ao longo das exposições e análises no presente capítulo,

novamente, aqueles ou outros aparecerão com essa mesma postura.

Cotter (1999:177) enuncia conclusão semelhante:

"não há sugestão em qualquer material cristão de que magia fosse

considerada nada além, mas completamente negativa, não importa onde ocorra. (...) Para a comunidade cristã, 'magia' era um rótulo

negativo para o empoderamento celestial que Jesus recebeu por

meio do Espírito Santo135

."

Segundo a autora, os elementos mágicos associados a Jesus ou seus discípulos

presentes nas histórias de milagres devem ser mais bem compreendidos à luz de

características comuns para a audiência mediterrânica advindos da cultura greco-

romana.

Logo, no entendimento de Cotter (i) os elementos mágicos greco-romanos são

"pano de fundo" para entendimento dos episódios de curas e milagres realizados por

135 Tradução pessoal de: " there is no suggestion in any Christian material that magic was considered as

anything but completely negative, no matter where it occurred. (...) For the Christian community,

―magic‖ was a negative label for Jesus‘ heavenly empowerment by the Holy Spirit."

Page 192: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

192

Jesus e seus discípulos, bem como (ii) esses elementos mágicos ganham outro

significado quando associados aos mesmos. A percepção de Cotter pode ser

parcialmente útil nos dois casos que se seguem: Atos 8, 9-13 e 19, 17-20.

Primeiramente, o texto de Atos 8, 9-13 (Bíblia de Jerusalém):

"9Ora, vivia há tempo, na cidade, um homem chamado Simão, o

qual, praticando a magia, excitava a admiração do povo de Samaria

e pretendia ser alguém importante. 10

Todos, do menor ao maior, lhe

davam atenção, dizendo: 'Este é o Poder de Deus, que se chama Grande'.

11Davam-lhe atenção porque ele, por muito tempo, os

fascinara com suas artes mágicas. 12

Quando, porém, acreditaram em

Filipe, que lhes anunciara a Boa Nova do Reino de Deus e do nome

de Jesus Cristo, homens e mulheres faziam-se batizar. 13

O próprio Simão, ele também, acreditou. E, tendo recebido o batismo, estava

constantemente com Filipe, admirando-se ao observar os sinais e

grandes atos de poder que se realizavam."

O trecho destacado está construído retoricamente de maneira intencional a fim

de "corrigir" uma percepção equivocada, obviamente da parte de seu autor, quanto ao

que sejam as práticas mágicas e como devem ser entendidas. Eis a estrutura da

perícope:

Segmento Evento Verso

A

Simão (magĕúō) a todos fascinava (ĕxistánōn)

9

B

Todos afirmavam ser Simão a manifestação do poder de Deus (hē

dýnamis tŏu thĕŏû)

10

C

Por muito tempo Simão os fascinava (ĕxĕstakĕnai) com suas artes

mágicas (magĕíais).

11

B‘

homens e mulheres creram na pregação de Filipea respeito do

Reino de Deus (basilĕías tŏu thĕŏû)

12

A‘

Simão (não mais magĕúō) crê e é batizado passando a ficar fascinado (ĕxistátō) pelos sinais e grande poder (dynámĕis

mĕgálas) de Felipe.

13

A essa estrutura textual dá-se no nome de "quiasmo" ou "anel". No núcleo (C)

está o problema a ser "corrigido". Paralelas e concêntricas estão as fases narrativas

Page 193: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

193

que tratarão da questão (A - A' e B - B'). Assim, Simão que era mago, deixa de sê-lo.

Aquele que fascinava, agora é o fascinado. Antes, possuía e era reconhecido pelo

poder, mas após o encontro com Felipe, não está mais centrado no poder de Deus,

mas no Reino de Deus, no qual Felipe é o legítimo portador do grande poder.

Outro caso presente em Atos e que tem servido para sustentar a idéia de que as

práticas mágicas são rejeitadas pelas comunidades paleocristãs é a referência de Atos

19, 17-20, eis a transcrição (Bíblia de Jerusalém):

"17

O fato chegou ao conhecimento de todos os judeus e gregos que

moram em Éfeso. A todos sobreveio o temor, e o nome do Senhor

Jesus era engrandecido. 18

Muitos dos que haviam abraçado a fé começaram a confessar e a declarar suas práticas.

19E grande

número dos que haviam exercido a magia traziam seus livros e os

queimavam à vista de todos. Calculando-se o seu preço, acharam

que seu valor chegava a cinqüenta mil peças de prata. 20

Assim, a palavra do Senhor crescia e se firmava poderosamente."

O contexto narrativo anterior dessa perícope é um episódio que dá conta de

judeus que praticavam exorcismo. Na história, um grupo de judeus - filhos do Sumo

Sacerdote da região - tentou exorcizar um "espírito mau", entretanto, o homem

possuído avançou contra eles e os dominou os deixando feridos e nus. Isso ocorrera

porque buscaram o exorcismo se valendo do nome de Jesus a quem Paulo

proclamava.

Diante do episódio, conta a perícope, todos da região temeram e começaram a

declarar suas práticas. O que se viu a seguir foi a grande queima de livros mágicos em

público. Isso seria, portanto, a prova de que o autor de Atos rejeitara a vinculação de

práticas mágicas, como exorcismos, no interior de sua comunidade, bem como

advertia aos seus ouvintes-leitores contra essas práticas danosas.

A partir das duas narrativas brevemente expostas, o que segue é a numerosa

construção bibliográfica de comentaristas a essas passagens, bem como aos temas que

relacionam magia e paleocristianismos. No entanto, esse argumento esvazia-se se

tomado todo o conjunto narrativo dos Atos dos Apóstolos em que as práticas de

exorcismo, curas e sinais prodigiosos acompanham cada uma das personagens

apresentadas no texto.

Essa abordagem, tomando o documento pelo todo - inclusive os trechos aqui

destacados - explica com mais profundidade o contexto em que tais práticas mágicas

Page 194: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

194

eram assimiladas e devem ser entendidas. A chave para essa compreensão está na

abertura do texto de Atos. Logo na abertura do documento o autor explica:

"6Estando, pois, reunidos, eles assim o interrogaram: 'Senhor, é

agora o tempo em que irás restaurar a realeza em Israel?' 7E ele

respondeu-lhes: 'Não compete a vós conhecer os tempos e os momentos que o Pai fixou com sua própria autoridade.

8Mas

recebereis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre vós, e

sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e a Samaria, e até os confins da terra'" (Atos dos Apóstolos 1, 6-8 -

Bíblia de Jerusalém).

Eis o que é central para a interpretação e análise de Atos dos Apóstolos -

inclusive tomando por objetivo a proposta principal do presente trabalho - o autor do

documento apresenta a natureza e orientação a partir da qual sua narrativa e

personagens devem ser entendidas: é a autoridade (ĕxŏysía) de Deus (v.7) que

concede o poder (dýnamis) para que os seguidores de Jesus sejam testemunhas em

todas as partes do mundo (v.8).

Nas seções precedentes deste trabalho já foram apontadas as discussões

semânticas a esse respeito. Logo, cumpre observar, que o "Espírito Santo" é o poder

(dýnamis) de Deus. É dele que se enchem os apóstolos enviados. Realizam poder por

intermédio dele. Esse "espírito" (pnĕyma: vento), que é "santo", segundo o

documento, cumpre a função de uma entidade que reveste os discípulos de Deus e

Jesus na realização de tantos feitos poderosos.

A audiência mediterrânica estava informada de que (i) é impossível imaginar

um Cosmo sem a presença de daimŏnĕs (cf. Plutarco, citado na página 162 acima);

(ii) o mesmo Plutarco (p. 161 acima) diz que heróis ou homens divinos podem vir a

se tornar daimŏnĕs após suas respectivas mortes; (iii) Apuleio também testemunha,

concordando com Platão, que há certos poderes que mediam as relações entre deuses

e seres humanos (p. 162 acima) os quais controlam toda adivinhação e milagres.

Poder-se-ia, fundamentado no capítulo precedente e na ampla atestação

documental mediterrânica antiga - PGM, IG ou tantos outros exemplos textuais - citar

vários exemplos contextuais de que a apresentação que Atos dos Apóstolos

engendram para suas personagens é extremamente familiar para a audiência

mediterrânica antiga. No entanto, se crê que o capítulo anterior deste trabalho já

propôs esses paralelos.

Page 195: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

195

Assim, nas seções seguintes, o que se segue é a apresentação, discussão e

análise do material narrativo presente em Atos dos Apóstolos com vistas a aprofundar

a tese que este trabalho quer defender. Primeiramente, far-se-á uma breve análise do

documento a partir de questões introdutórias para seu entendimento e

contextualização para, então, finalmente, demonstrar de que forma é possível

perceber Paulo como um homem divino construído no interior de Atos dos Apóstolos.

2. O documento Atos dos Apóstolos

2.1. Dados preliminares

As questões a seguir não são centrais ou decisivas para o capítulo. Discutir

questões introdutórias não devem se tornar o centro da abordagem aqui, pois o foco

principal está em analisar o modelo thĕiŏs anēr em diálogo com a estrutura do

documento e a construção de Paulo tendo por base esse modelo. Dessa forma, não se

faz necessária uma completa revisão bibliográfica sobre os tópicos a seguir, mas,

apenas, elementos-base para compreensão global do documento mais análises

específicas em alguns pontos que não estão diretamente relacionados ao contexto

paulino discutido com mais profundidade posteriormente.

Para esclarecer como os quatro tópicos a seguir foram roteirizados e

construídos, eis os três procedimentos adotados:

(i) para uma visão introdutória e panorâmica de qualquer documento

histórico, os itens a seguir constituem-se elementares para situar o

material em seu tempo e espaço. Não apenas de sua produção, mas

também de sua apropriação e eleição como documento por parte do

historiador;

(ii) uma vez estabelecidos os eixos elementares para análise do

documento, as informações investigativas propostas partem,

fundamentalmente, da leitura do texto com apontamentos indiciários (ver

item 4 do capítulo precedente) pertinentes a cada etapa metodológica

elencada;

Page 196: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

196

(iii) o passo seguinte se constitui no cruzamento das informações

indiciárias obtidas com a bibliografia especializada para diálogo e

sistematização dos dados. Conforme esclarecido anteriormente, por não

se tratar de um estudo exegético completo do documento enquanto

objetivo central assume-se, de imediato, as conclusões em cada item do

que foi enunciado pelo relatório final do estudo sobre Atos dos Apóstolos

publicado pelo Acts Seminar136

(SMITH e TYSON, 2013);

Portanto, o que se apresenta a seguir é o resultado dessas etapas

metodológicas. Uma última observação apenas de ordem prática se faz necessária

quanto às citações bibliográficas envolvendo o relatório publicado pelo Acts Seminar.

Por se tratar de um material que é produto de 10 anos de investigação e que envolveu

um conjunto significativamente grande de intelectuais e públicos de especialistas

envolvidos optou-se aqui por referendá-lo como uma obra conjunta, pois há várias

seções do texto que não têm autoria especificada.

Assim, preferiu-se referendar as citações como "ActsSem" mais o ano e

número da página. Essa opção visa dar crédito ao empreendimento como um todo e

não a este ou aquele especialista em particular. No entanto, ao final deste trabalho, na

136 O Acts Seminar, ou Seminário de Atos, em tradução livre, é uma organização norte-americana,

sediada no Weststar Institut, que ao longo de 10 anos promoveu reuniões regulares reunindo diversos

especialistas no tema para discutir e dissecar o documento em questão. Ao final desse período, o grupo publicou seus resultados no formato de um comentário a todo o texto de Atos com análises exegéticas e

breves ensaios sobre os temas considerados chaves para o entendimento do documento (SMITH e

TYSON, 2013:ix-x). Na introdução ao relatório, 10 conclusões básicas foram listadas como resumo ao

que o Seminário conseguiu realizar de mais importante na revisão bibliográfica e estudo de Atos

(SMITH e TYSON, 2013:1-4). Ato contínuo, as questões introdutórias foram sumariamente expostas

no entendimento do que deve ser ponto de partida para o estudo desse material, hoje, considerado

canônico no assim chamado Novo Testamento. O procedimento fundamental adotado foi o de, ao

longo dos 10 anos, passo a passo, (i) escolher o objeto de investigação; (ii) os diferentes intelectuais

envolvidos propunham suas investigações conclusivas sobre cada tema; (iii) os intelectuais e público

convidado votavam de acordo com os encaminhamentos sugeridos; (iv) a votação seguia o critério de

plausibilidade de acordo com as seguintes categorias: (a) o que era considerado provável ou plausível de se concluir sobre o documento era marcado na cor vermelha; (b) em rosa o que era possível de se

concluir; (c) na cor cinza aquilo que se percebeu como duvidoso; e, por fim, (iv) deixado em preto o

que se deliberou como improvável (SMITH e TYSON, 2013:4-5). Esse é um procedimento

amplamente estabelecido desde os estudos que envolviam a pesquisa sobre o Jesus Histórico,

desenvolvido desde a década de 80 do século XX pelo Jesus Seminar, sediado no mesmo Instituto. A

despeito das críticas e controvérsias em torno desse procedimento ele é aqui adotado, pois é o único

estudo sistemático, profundo e que visa o estudo completo da documentação neotestamentária que

apresenta critérios bem definidos, rigor heurístico e publicização dos dados. As críticas e rejeições aos

empreendimentos do Weststar Institut pairam sempre em particularidades mínimas ou censuras de

criptoteólogos, portanto, religiosos programáticos, interessados em inviabilizar um estudo acadêmico

centrado nos cânones científicos.

Page 197: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

197

seção correspondente às referências bibliográficas encontra-se este material citado

com os nomes dos editores, Dennis E. Smith e Joseph B. Tyson.

2.2. Autoria137

Em sua maioria os textos do assim chamado Novo Testamento são anônimos.

Na melhor das hipóteses receberam o nome de um autor específico a partir do II

século e.c.. O consenso em torno desse fato nunca foi menor que 99,9% dos

intelectuais acadêmicos especialistas nesse corpus literário. A fração deixada em

aberto para quem rejeitaria essa idéia é apenas para não ser tão absoluto e taxativo,

mas ela é, de fato, insignificante. Obviamente, os religiosos não estão sendo levados

em conta nesses números.

A questão de autoria de textos neotestamentários somente passou a ser um

dado significativo a partir da segunda metade do II século e.c. quando a maior

organização institucional dos diferentes paleocristianismos veio a acontecer138

. Não

por acaso: tratava-se de um importante dado que conferia autoridade apostólica aos

muitos de textos que se reivindicavam verdadeiros quanto à memória e ensinos sobre

Jesus139

.

Essa disputa pela memória oficial do que viriam a ser, mais tarde, os

cristianismos, para o caso de Atos, pode ser situada em fins do II século e.c., em

Lyon, por ocasião dos escritos de Irineu. Foi o bispo de Lyon o primeiro a identificar

a autoria de Atos como sendo de Lucas, companheiro de Paulo (Irineu, Contra as

137 Os dados a seguir são o resultado de sistematização dos seguintes textos: Pervo, 2009:5-7;

AcstSem, 2013:9-10; Fitzmyer, 2010:49-51. Os textos pouco divergem entre si por conta de um

considerável consenso acadêmico sobre o tema. Nos casos em que informações particulares de cada

autor forem relevantes elas serão indicadas apropriadamente. 138 Pervo (2009:6) argumenta que a autoria anônima do texto também se justificaria por conta da

onisciência do narrador ao longo da obra. Não parece um elemento central, mas se comparada essa

informação com outras narrativas mediterrânicas, Homero, por exemplo, esse argumento ganharia

força. No entanto, na segunda metade de Atos o autor se insere na história pelo uso do pronome "nós" em diferentes episódios. Alexander (2007:29-32 e PERVO, 2013:395, nota 79) vê aqui paralelos com a

literatura de historiadores gregos que se apresentam em seus respectivos prólogos como testemunhas

oculares, portanto, seus relatos seriam mais verídicos. Sobre esse último aspecto, desde as origens da

interpretação, Atos vem sendo posto lado a lado com a literatura grega oriunda de historiadores

antigos. Justino e Papias não viram problema em permanecer com o texto de Lucas-Atos no anonimato,

apenas Irineu é quem tematizou essa questão (PERVO, 2009:7). 139 Memória oficial, memórias subterrâneas, disputas de memórias e enquadramento delas são temas

absolutamente caros e decisivos na discussão de documentação antiga, especialmente aquela de

natureza cristã, criptocristã ou apócrifa. Não sem atenção a essa realidade este trabalho segue as

propostas teóricas de M. Pollak (1989 e 1992). Inclusive, toma deles os termos mencionados e sua

carga semântico-conceitual.

Page 198: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

198

Heresias 3,14:1). A referência para tal argumentação está localizada em: Carta aos

Colossenses 4,14, Filemon 24 e 2ª Carta a Timóteo 4,11. Em todos esses textos Paulo

se refere a um companheiro chamado "Lucas".

Inclusive, ao mesmo "Lucas" Irineu atribuiu a autoria do terceiro Evangelho,

hoje canônico (Irineu, Contra as Heresias 3,1:1). A referência é óbvia, pois nas

primeiras linhas de Atos o próprio autor menciona ter composto a primeira obra sobre

Jesus. Outro argumento para a atribuição de autoria lucana são as passagens em que o

narrador de Atos menciona "nós" no contexto das narrativas. Essas passagens serão

abordadas, aqui, posteriormente. A imensa maioria dos estudiosos concorda que o

autor de Lucas e Atos é a mesma pessoa, inclusive os religiosos. No entanto, a

maioria discorda que o autor de Atos tenha sido um companheiro de Paulo conforme

Irineu defendia.

O bispo de Lyon não dispunha dos dados heurísticos atuais que dão conta que

somente Filemon, das três mencionadas acima, fosse carta legítima de Paulo.

Ademais, muitos indícios apontam para o fato de que "Lucas" não poderia ser uma

pessoa próxima ao apóstolo. Um forte argumento é que a teologia, idéia e imagem

que o próprio Paulo tinha de si mesmo (advindo das suas cartas autênticas) não é a

mesma que aquela proposta pelo autor de Atos.

Para além da dificuldade cronológica (a próxima seção tratará disso) outras

divergências igualmente apontam para a impossibilidade de "Lucas" ter sido um

companheiro de Paulo. Por que nunca mencionou que Paulo era escritor de cartas?

Por que nunca nomeou Paulo como apóstolo conforme contínuos reclames do próprio

acerca de si mesmo? (ActsSem, 2013:10). E, acrescentando, por que "Lucas" relata

tantos feitos miraculosos operados por Paulo se o mesmo nunca os relatou?

As divergências são incontáveis. Porém, segue-se mencionando "Lucas" como

autor dos textos apenas por uma questão de comodidade e senso comum acadêmico

para evitar mal-entendidos. Mas, sabendo-se que (i) Atos dos Apóstolos é um

documento anônimo; (ii) seu autor ou autores nunca conviveram com Paulo ou outras

personagens relatadas no texto; (iii) o período cronológico de redação desse

documento aponta para outro contexto no qual seu(s) autor(es) quis(eram) intervir.

2.3. Data e local de composição

Page 199: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

199

Assume-se que Atos seja um documento datado por volta dos anos 110-120

e.c. e que tenha sido produzido em Éfeso (ActsSem: 2013:6). A controvérsia é maior

quanto à questão da datação. Há, basicamente, três propostas principais sobre essas

datas: (i) meados dos anos 60 e.c.; (ii) início do II século e.c., em torno de 100-130

e.c.; ou (iii) nas décadas entre 80-90 e.c. (FITZMYER, 2010:51-55). Trata-se de uma

questão razoavelmente polêmica, mas a opção aqui efetuada quanto aos dados básicos

acompanha as conclusões apresentadas pelo Acts Seminar pelas razões já

mencionadas.

Convém mencionar que um dos elementos centrais em torno dessa polêmica

está ligado à discussão sobre as fontes utilizadas pelo autor de Atos. Com certa

segurança é possível determinar que seu autor tenha se servidos de três fontes básicas:

(i) cartas de Paulo; (ii) Septuaginta; (iii) literatura grega clássica (ActsSem, 2013:10-

14). Os estudos contemporâneos têm atingido certo consenso quanto a isso. Muito

embora ainda exista quem questione tais dados140

.

A maior das polêmicas envolvendo a discussão sobre datação, local de

composição e fontes para Atos, porém, está em explicar o porquê de seu autor, na

primeira metade do documento, usar a primeira pessoa do singular (Eu) e, na segunda

metade, utilizar a primeira pessoa do plural (nós). Os comentaristas nomearam esses

últimos trechos como "we-passages" (passagens-nós) e não com pouca discordância

explicam as razões.

Pervo (2013:392-396) sistematiza bem as discussões a esse respeito. Dentre as

possibilidades apresentadas, a mais plausível, no entanto, parece ser a de que o "nós"

nessas passagens tenha relação com o local de composição do documento: Éfeso. A

explicação assumida por Pervo (2013:396) deriva de duas conclusões básicas: (i) Atos

é dividido em duas partes, capítulos 1 ao 14 e 16-28, logo, o capítulo 15 marca a

separação entre essas duas unidades; (ii) o emprego do "nós" marca a inserção da

comunidade por trás da autoria anônima de Atos.

A idéia geral é que o Evangelho de Lucas narra a fase de formação e

consolidação do movimento derivado de Jesus. A primeira parte de Atos (1-14)

delimitaria, dessa maneira, o movimento que se seguiu a Jesus e a disseminação da

mensagem e movimento atrelado a Jesus. Por fim, a parte final (16-28), orientado

140 Argumentos favoráveis a esse conjunto de fontes são apresentados nos seguintes trabalhos:

ActsSem, 2013:10-14; 116-117; Pervo, 2009:12-14. Argumentos contrários são apresentados em

Fitzmyer, 2010:80-88, muito embora o autor apenas enuncie sua discordância, mas não apresente as

razões para tal postura (ver, especialmente, p.88).

Page 200: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

200

pelas deliberações do Concílio de Jerusalém (capítulo 15) seria o período pós-

apostólico em que a comunidade em Éfeso, fundada por Paulo, está inserida e se

reivindica como herdeira daquelas idéias. Esse é o modelo que explica a intenção do

autor de Lucas-Atos em narrar uma "história" do movimento que viria a ser cristão.

Não por acaso, no momento de formação canônica do assim chamado Novo

Testamento, Atos figura antes do corpus paulino, pois faz a transição entre Jesus e o

movimento que se seguiu a partir dele. Trata-se de uma atitude ideologicamente

forjada, tendo em vista que o corpus paulino é bem mais antigo (entre os anos 40-60

e.c.) do que evangelhos e Atos.

Um último dado que merece consideração na ambientação do livro de Atos é,

possivelmente, a resposta que seu ator/comunidade pretendeu oferecer em

contraponto ao formulado por Marcião. Em outra seção deste trabalho (ver capítulo

II, item 5, nota 127) a leitura de um cristianismo marcionita foi mencionada. Essa

faceta cristã liderada por Marcião, provavelmente oriundo de Sinope, na região do

Mar Negro, conheceu vigoroso crescimento nas regiões da Ásia Menor e, depois, em

Roma, local, inclusive em que ele foi morto em meados do II século e.c. condenado

por acusar Roma de heresia.

No período compreendido entre o II - V séculos e.c. a expressão cristã

marcionita foi reconhecidamente compatível a uma "ortodoxia cristã" (ActsSem,

2013:7). Assume-se que tenha sido o primeiro cânon organizado do Novo Testamento

(BeDuhn, 2013: Introdução) que aceitou somente Lucas, modificado por Marcião da

versão que se conhece hoje do evangelho, e cartas paulinas. A visão parcial e

deturpada desse tipo de cristianismos gerou muitas reações na Patrística, já

mencionadas, bem como, possivelmente, a resposta contida no texto de Atos.

O teor do material lucano, portanto, visava, além de fazer convergir Pedro e

Paulo - tradições conflituosas entre os séculos I-II e.c. - corrigir a percepção errônea

de Marcião quanto à filiação e fidelidade de Paulo ao Judaísmo. As fontes

consultadas por Lucas foram sistematicamente alteradas de acordo com seus

propósitos, quanto a isso há pouca divergência nas pesquisas acadêmicas, mas o

horizonte fundamental era de inserir Paulo novamente em seu ambiente judaico e

evitar a cruzada anti-judaica do cristianismo de Marcião.

Importante ressaltar, ainda, que uma leitura superficial de Atos faria com que

o leitor desatento situasse a polêmica do documento em um embate entre "cristãos"

de um lado e "judeus" de outro. Essa conclusão é fruto de um filtro de leitura

Page 201: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

201

instaurado por uma longa Tradição Cristã que faz crer que desde o início do I século

e.c. Jesus e o movimento derivado dele são, já naquele momento, "cristãos". Visão

equivocada, pois em diferentes momentos é clara a pertença dessas lideranças a um

tipo de judaísmo particular, mas ainda sim judaico.

A controvérsia presente em Atos, portanto, é intra-judaica. Os escritores

neotestamentários não se vêm estranhos ao judaísmo, mas observantes da Lei. O que

está em jogo é de que forma se deveria entender o judaísmo após Jesus. Por

conseguinte, para os documentos neotestamentários, o problema não estava no

Judaísmo em si, mas na correta observância dele admitindo Jesus como o Messias.

Finalmente, Atos, em particular, será responsável por recolocar os rumos das

controvérsias e correta observação religiosa no interior do judaísmo e não à parte

dele, conforme Marcião. Cumpre, assim, observar que Atos opõe suas personagens a

um tipo de judaísmo equivocado por não se (re)configurar a partir do projeto de

Jesus, ou seja, não é o Judaísmo que deve ser superado, mas suas práticas é que

precisam ser conformadas de acordo com o evento Jesus (ActsSem, 2013:268-170).

2.4. Linguagem, estilo e forma literária

Ao longo da história da interpretação, Atos tem sido objeto de muitas

interpretações no que diz respeito ao seu gênero literário. Não é necessária longa

exposição para ressaltar o quanto a determinação de gênero literário é central na

leitura, análise ou estudo de qualquer fonte textual. Nesse longo processo, atualmente

em curso frenético - vide ActsSem (2013), Pervo (2009), Adams (2013), Aexander

(2007), para citar apenas os mais atuais - algumas tipologias de gênero literário são

majoritariamente tomadas para consideração.

Em 1980, em sua obra seminal, Martin Hengel (1980) discutia Atos em

perspectiva histórica. A abordagem empreendida por esse intelectual foi de grande

repercurssão e notoriedade, pois recolocou a ciência histórica no cenário de estudos

neotestamentários. O que se percebia nos anos precedentes à publicação da obra era

um ceticismo exagerado quanto à possibilidade de se utilizar o gênero "história" para

o texto de Atos.

As posturas oscilavam entre atribuir o conteúdo narrativo de Atos como

eventos factuais - leitura marcadamente religiosa ou de criptoteólogos - ou aquela em

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202

considerar que o material textual narrava apenas uma ficção. Hengel foi o responsável

por delimitar algumas fronteiras sobre as duas posturas. Se Atos não era mera ficção,

muito de seus episódios narrativos demandavam contextualização. Certamente, um

procedimento desde então é o de inserir o documento em suas culturas circundantes e

naquela em que teve origem para perceber melhor sua natureza. Esse procedimento já

foi amplamente discutido até aqui.

Decorrente desse outro patamar em que Hengel logrou êxito em propor para

Atos, por exemplo, e para o que interessa aqui neste trabalho, empenhou-se muita

discussão sobre ser Atos uma aretologia dos "heróis" paleocristãos. Essa discussão

ganhou muito mais fôlego concernente à atribuição desse gênero literário aos

evvangelhos, no contexto da vida de Jesus. Atos, nesse cenário, acabou por ficar

menos em foco.

Seja na discussão sobre homens divinos ou "heróis", Morton Smith (1971),

cuidadosamente, avaliava que aretologias são de difícil reconstrução e pouco do que

sobreviveu não é suficiente para a constituição de um gênero literário bastante

disseminado. Inclusive, em sua polêmica com Howard Kee em 1978 (SMITH, 1996),

textualmente, Smith afirma que essa forma literária fixa (aretologia) não existia.

De maneira mais profunda, ainda dizia que a presença de histórias de milagres

em quaisquer fontes não é, em absoluto, sinal da presença da aretologia. Logo,

consoante Smith, é altamente improvável que Atos tenha se servido de uma forma

literária como a aretologia para construir sua história e personagens. A defesa desse

modelo se assemelha mais a uma forçosa necessidade em constituir um contexto

literário para os textos bíblicos do que um procedimento exegético adequado.

Em tentativa mais recente e preocupada na contextualização documental de

Atos, Adams (2013) identifica que Atos pertenceria ao gênero "biografias coletadas"

(ADAMS, 2013:111-114). Dessa forma, o(s) autor(es) por trás do documento, estaria

interessado em reunir memórias de suas personagens e construir um realato unificado

e progrmático do que teria sido a origem do cristianismo.

Essa proposta falha, no entanto, no entendimento deste trabalho, em dar conta

da segunda metade do texto de Atos, em que algumas seções em prosa e de cunho

historiográfico antigo (obviamente, no sentido que se entendia historiografia naquele

contexto) não se encaixam no modelo. O próprio prólogo do Evagelho de Lucas e

Atos refutam naturamente essa idéia.

Page 203: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

203

Portanto, e conclusivamente, a proposta que se quer oferecer aqui é a partir do

próprio título do documento: práxis ou práxeis, atos, feitos, realizações. A estrutura

do documento (seção imediatamente a seguir) demonstrará que o(s) autor(es) parece

fornecer o que de fato importa para o movimento e origem desses paleocristianismos,

ou seja, sua correta prática e realização, a partir dos ensinamentos do mestre Jesus.

A ortopraxia proposta por Atos é muito evidente: Deus concede o poder, os

apóstolos realizam feitos extraordinários e a adesão se constitui. O tópico a seguir

porvará essa idéia. Antes, porém, convém salientar dois aspectos centrais para o

entendimento do que venha a ser essa "ortopraxia". Tendo em vista as diferentes e

numerosas tradições paulinas em curso no II século e.c. a comunidade de Éfeso

também objetivou reivindicar para si a memória "correta" sobre Paulo.

Nesse cenário, historicizar o movimento e estabelecer a correta memória sobre

Paulo, na visão dos efésios, constituíam-se em eficaz combate contra as

interpretações equivocadas, por exemplo, de Marcião, dêutero-paulinas e tantas outras

que estavam em curso. Portanto, a memória do apóstolo Paulo, que por muito tempo

esteve em Éfeso, e a história mitológica sobre as origens dos paleocristianismos

precisava de um registro "verdadeiro".

2.5. Unidades, estrutura, personagens

É bastante comum, quando se considera a bibliografia especializada em

documentos neotestamentários (igualmente é o caso com aqueles

veterotestamentários), que comentadores estabeleçam divisões ou unidades

estruturais para analisar o texto. Em geral, antes mesmo de adentrar a tradução e

comentários seguintes a cada "unidade" textual, uma proposta de esboço é delineada.

Ela sempre considera o documento como um todo e estabelece os menores passos

possíveis que presumidamente estavam por trás da idéia original do autor em

sistematizar suas fontes e construir um novo material a partir delas.

Essa proposta de estrutura é a tentativa de segmentar o texto para

imediatamente inferir, esquematicamente, qual a pragmática da obra. Pois, conforme

desvendada sua organização tanto mais fácil é elucidar com que propósito o(s)

autor(es) apresentou(ram) o texto naquela forma final. Em alguns casos (Gálatas,

Evangelho de João, por exemplo) é mais fácil essa organização. Seja porque as pistas

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204

estão evidentes no texto ou porque um estudo literário mais profundo e comparativo

com os demais modelos literários da época fornece os indícios para que tal estrutura

seja percebida. Esse não parece ser o caso de Atos.

De acordo com a revisão bibliográfica mais recente sobre o assunto (PERVO,

2009:20-21) uma enorme divergência tem promovido desacordo entre os estudiosos a

esse respeito. Eis as tentativas de se organizar uma estrutura para o documento:

(i) Unidades de diferentes tamanhos: ciclo das perseguições (cap. 3-7);

unidades individuais (cap. 19, 1-7) são exemplos para se considerar várias

pequenas unidades e de diferentes tamanhos no documento. Embora haja

algum padrão, segundo essa perspectiva, ele não é muito consistente ou

facilmente perceptível;

(ii) pequenos modelos inseridos no texto: quiasmo (Cap. 8, 9-13 seria um

exemplo), narrativas incluídas com moldura circular (cap. 13-14, por

exemplo) ou o padrão "para lá e de volta", inclui as seções que narram

viagens que sempre retornam a Jerusalém (Cap. 8, 14-25), embora esse

modelo se aplique também a Paulo em alguns casos, Cap. 27-28 são

rupturas nesse sentido, pois uma vez em Roma, Paulo não retorna a

Jerusalém. Essa ruptura parece mesmo indicar que o objetivo da missão

paleocristã atingiu êxito, ou seja, saiu das margens de um Império

(Romano) e atingiu sua capital;

(iii) situações de conflito: há muitas narrativas que expõem um ambiente

conflituoso, logo depois apresentam um relaxamento da questão e, a

seguir, um novo conflito emerge (Cap. 6,1-7; 4,32 - 5,11; 5,12-42; 8, 6-

13. 14-25; 11, 1-18; 15). A dificuldade aqui está nos capítulos 27 e 28,

pois a história termina sem tensões ou indicativos que outra venha a

ocorrer;

(iv) outras formas: narrativas temáticas, geográficas ou literárias. Mas,

novamente a falta de padrão, pois Lucas parece avançar de maneira fluida

em sua descrição e sobrepondo técnicas;

(v) sumários: em muitos trechos do material lucano uma sinopse do que

foi até o momento narrado aparecem como pontes para as seções

seguintes. Mais uma vez, o capítulo 15 aparece como dificuldade, pois se

Page 205: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

205

trata de um material que parece mesmo dividir a composição em duas

grandes seções.

Diante da celeuma criada em torno dessa discussão de estrutura torna-se difícil

assumir alguma das proposições acima elencadas. No entanto, parece razoável

oferecer uma proposta tomando como base o modelo thĕiŏs anēr formulado no

primeiro capítulo deste trabalho. Para que a estrutura do documento pareça plausível,

eis os critérios adotados para a proposta:

(i) O(s) autor(es) ou comunidade por trás do documento parece

sistematizar suas fontes e compor sua leitura da história paleocristã

tencionando apresentar a correta prática de discípulos e seguidores de

Jesus. Conforme analisado no item 2.4 acima, interessa contar uma

história a partir de como se deve entender e praticar os ensinos de Jesus e

poder (dýnamis) concedido por Deus aos discípulos. Logo, o modelo

thĕiŏs anēr proposto por este trabalho é adequado para compreender essa

finalidade estrutural do documento;

(ii) o capítulo 15 marca uma divisão de Eras para a história paleocristã.

Entre os capítulos 1-14 trata-se do período apostólico e 16-28 do período

pós-apostólico. O eixo demarcador para ser apostólico ou não é a vivência

com Jesus e passos imediatamente posteriores a sua ascensão ao Céu;

(iii) Paulo é o protagonista absoluto da segunda parte de Atos e é, através

dele, que o movimento sai da periferia do Império para sua capital.

Portanto, o padrão thĕiŏs anēr é mantido nos relatos que dizem respeito a

sua atuação, mas nos momentos em que episódios externos são decisivos

em sua trajetória (está a se falar aqui de sua prisão) o narrador abandona o

modelo thĕiŏs anēr propriamente dito para testemunhar os

acontecimentos. Entretanto, mesmo nesses momentos, a vida e feitos

desse homem divino são lembrados nos trechos descritivos.

Segue, finalmente, a proposta de estrutura para o livro de Atos:

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Trecho Situação / Demanda

Ação de Poder (dýnamis) / Confirmação /

Prova Resultado

Cap. Verso

1

1-5 Jesus foi morto Deus o ressuscitou Jesus apareceu a muitos

6-11 Discípulos desejam saber o que fazer Deus envia o poder (dýnamis): Espírito

Santo Discípulos empoderados para a missão

12-26 Judas morreu e um substituto é necessário Discípulos oram e lançam sortes sobre os

nomes É revelado o 12º do grupo

2

1-13 Reunidos, os discípulos precisam de prova

quanto ao poder dado por Deus

Um vento impetuoso toma o local e todos

falam em línguas inteligíveis a cada etnia

Todos que presenciaram o evento ficaram

surpresos, perplexos...

14-41 Quem presenciou o ato demanda explicações Pedro discursa Três mil pessoas se convertem e são

batizadas

42-47 Todos reunidos precisavam de comprovações

de poder

Muitos sinais e prodígios eram realizados

pelos apóstolos

A audiência partilhava os bens e louvava

com alegria

3 1-10 Um homem aleijado está à porta do Templo Pedro realiza a cura Todos ficam admirados e assombrados

11-26 O povo demanda explicações Pedro discursa Todos estão atônitos

4

1-4 (cont. cap.3) Explicações ao povo A pregação de Pedro e João Cerca de 5 mil pessoas abraçaram a fé

5-14 Sacerdotes questionam com que poder Pedro

e João atuam

Pedro lembra a cura do aleijado e a

ressurreição de Jesus Sacerdotes ficaram admirados

15-22 Sacerdotes reconhecem os sinais realizados e

os proíbem de pregar Pedro e João dizem que não se calarão

O povo glorificava a Deus pelos

acontecimentos

23-32 Discípulos reunidos oram e pedem a Deus

amparo contra os detratores

O local treme e todos ficam repletos do

Espírito Santo

A multidão que cria se transformara em

um só coração e uma só alma

33-37 No seio da comunidade a dinâmica da vida

prosseguia

Com grande poder os apóstolos davam

testemunho da ressurreição de Jesus

Quem possuía bens vendia e distribuía

entre todos da comunidade

Page 207: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

207

5

1-6

Membros da comunidade doam seus bens

para partilha. Ananias esconde parte dos

lucros

Pedro o repreende Ananias caiu morto. Todos se espantam e

o corpo é levado à sepultura

7-11

Safira, esposa de Ananias, sem saber o que

houvera, novamente, esconde os lucros com a

venda da propriedade do casal

Pedro a repreende

Safira cai morta. Todos se espantam e o

corpo levado à sepultura. Um grande

temor toma conta de toda comunidade

12-14 Os apóstolos ficam no pórtico do Templo Os apóstolos faziam muitos sinais e

prodígios

Multidões de homens e mulheres aderiam

à fé no Senhor

15-16

Doentes e atormentados por espíritos

impuros eram levados para as ruas de

Jerusalém

A expectativa era que, ao menos, a sombra

de Pedro os cobrisse. Todos eram curados.

Das cidades vizinhas uma multidão de

homens e mulheres continuava a chegar.

17-21 Sumo Sacerdote dos Saduceus prenderam os

apóstolos por conta de suas ações

O Anjo do Senhor abriu as portas do

cárcere

Os apóstolos entraram no Templo e

começaram a ensinar

21-24 Chefes mandaram buscar os presos Mesmo com o cárcere fechado e toda a

guarda a postos, o cárcere estava vazio

O oficial do Templo e os chefes dos

sacerdotes ficaram perplexos

25-33 Novamente os apóstolos são levados ao

Sinédrio para interrogatório

Pedro e os apóstolos respondem que

continuarão ensinando, acusa-os de terem

matado Jesus, mas que ele ressuscitara

Os membros do Sinédrio ficaram com

raiva e pretendiam matá-los

34-42 O fariseu Gamaliel intercede pelos apóstolos.

Eles são açoitados e liberados

Continuam a ensinar e ficam felizes por

sofrerem em nome de Jesus

No Templo e nas casas anunciavam as

Boas Novas de Jesus

6

1-7 Membros da comunidade (helenistas)

reclamam estar excluídos da partilha

Os apóstolos escolhem 7 homens, de boa

reputação, repletos do Espírito e sabedoria.

Impõem-lhes as mãos e os enviam

O número de discípulos se multiplicava

em Jerusalém e muitos sacerdotes

obedeciam à fé

8-15 Estrangeiros e judeus discutiam com Estevão.

Subornaram alguns para acusar-lhe

Cheio de graça e poder operava sinais e

prodígios entre o povo. Os membros do

Os estrangeiros e judeus não conseguiam

vencer o debate. Estevão é preso por

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208

Sinédrio viram o rosto de um anjo na face

de Estevão

causa do ensino

7 1-54 Sumo Sacerdote questionou as ações de

Estevão

Longo discurso passando em revista à toda

história de Israel relatando os feitos

miraculosos de Deus

Membros do Sinédrio tremiam de raiva

em seus corações e rangiam os dentes

contra Estevão

7/8 55-8,3 Houve grande perseguição. Saulo consentia

Estevão repleto do Espírito Santo declarou

ter visto a glória de Deus no céu, Jesus à

direita de Deus e, por fim, pediu o perdão

de Deus aos que o mataram

Todos os apóstolos se dispersaram.

Alguns homens piedosos enterraram

Estevão

8

4-8 Felipe chega à Samaria Felipe operava sinais. Exorcismos e curas

de paralíticos e coxos

Multidões atendiam unânimes e havia

grande alegria na cidade

9-13 Simão, o mago exercia magia na Samaria Felipe anunciou a Boa Nova do Reino de

Deus

Homens, mulheres e o próprio Simão

batizaram-se

14-17 Jerusalém "envia" Pedro e João à Samaria Eles impõem as mãos sobre os que

acolheram a pregação Eles recebiam o Espírito Santo

18-25 Simão ofereceu dinheiro para ter o poder de

impor as mãos e conceder o Espírito Santo Pedro o repreende e o ameaça

Simão suplica a Pedro que peça ao Senhor

que retire dele as ameaças

26-40 Movido pelo Espírito Santo Felipe encontra

um eunuco no caminho de Jerusalém a Gaza

Felipe anuncia-lhe a Boa Nova de Jesus,

logo depois é arrebatado

O eunuco é batizado e segue

disseminando o que ouviu de Felipe

9

1-9

Saulo está no caminho de Damasco para

pedir autorização para prender quem segue o

"Caminho"

Uma luz vinda do céu o envolve e o deixa

cego

Saulo ergue-se do chão é conduzido a

Damasco

10-19 O Senhor diz a Ananias em visão que vá ao

encontro de Saulo para devolver-lhe a visão Ananias impõe as mãos sobre Saulo

Saulo recobra a visão, é alimentado,

batizado e recebe o Espírito Santo

Page 209: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

209

20-31 Saulo começa a pregação nas sinagogas Saulo anuncia que Jesus é Filho de Deus

Todos ficam surpresos com o

comportamento de Saulo e buscam matá-

lo. Ele foge e é apresentado aos demais

por Barnabé. Todos o aceitam

32-43 Pedro segue por todas as regiões em

atividade missionária

Pedro cura um paralítico e ressuscita uma

mulher

Todos ficam maravilhados e crêem no

Senhor

10 1-48 Pedro vai à casa de um centurião romano

Pedro, através de uma visão e êxtase recebe

instruções de Deus para pregar a todas as

etnias, não somente judeus. Pedro discursa.

A todos os gentios que aceitaram a

palavra de Pedro o Espírito Santo é

concedido. Todos ficam estupefatos.

11

1-18 Pedro explica aos demais de Jerusalém sua

conduta

Pedro relata a visão e o êxtase e confirma

que Deus mandara anunciar a Palavra a

todos

Todos se alegram com a conversão e

batismo dos gentios

19-21

Os que foram dispersos após a morte de

Estevão pregavam somente a judeus em

outras regiões

A mão do Senhor estava com eles por todo

o caminho

Um grande número de pessoas abraçou a

22-26 Barnabé é enviado a Antioquia para verificar

o que estava em curso

A graça que vinha de Deus estava naquele

lugar e Barnabé os exortou a continuar

firmes. Ele juntou-se a Saulo em Antioquia

e lá ensinaram por um ano

Considerável multidão agregou-se àquela

comunidade. Em Antioquia foi a primeira

vez que os discípulos foram chamados de

cristãos

27-30 Uma grande fome sobreveio na Judéia Os de Antioquia enviaram contribuições

segundo suas posses Barnabé e Saulo levam as contribuições

12 1-19 Herodes mata Tiago e prender Pedro O anjo do Senhor liberta Pedro

Pedro se dirige à casa em que estavam os

demais discípulos e todos ficam

estupefatos com sua libertação

20-25 Herodes vai discursar na região de Tiro e O anjo do Senhor o feriu. Roído de vermes A Palavra de Deus crescia e se

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210

Sidônia ele morre multiplicava

13

1-3 Em Antioquia profetas e doutores mais Saulo

celebravam a liturgia e jejuavam

O Espírito Santo, em visão, pede que se

separe Saulo e Barnabé para a obra que

preparou. As mãos são impostas sobre eles

Saulo e Barnabé partem

4-12

Chegaram em Chipre. Lá estava Bar-Jesus

(Elimas), mago e falso-profeta judeu que

acompanhava o procônsul Sérgio Paulo

Durante a conversa entre Saulo (Paulo),

Barnabé e o procônsul, Paulo fixa o olho

em Elimas e este fica cego

O procônsul abraça a fé maravilhado com

a doutrina do Senhor

13-43 Paulo e Barnabé chegam na sinagoga de

Antioquia da Pisídia

Paulo passa em revista toda a história dos

judeus ressaltando as ações miraculosas de

Deus em favor de seu povo

Muitos judeus e prosélitos seguiram Paulo

e Barnabé e abraçaram a fé

44-52 Todos da cidade se reuniram para ouvir a

Palavra de Deus

Paulo e Barnabé, com intrepidez, anunciam

que a mensagem de Jesus é para todos

Os gentios se alegravam e glorificavam ao

Senhor. Todos abraçaram a fé. Os judeus

invejosos expulsaram Paulo e Barnabé

daquela terra, mas os discípulos

remanescentes estavam repletos de alegria

e do Espírito Santo

14

1-7 Nas sinagogas de Icônio Paulo e Barnabés

pregavam

Sinais e prodígios eram realizados por meio

deles

Grande multidão de gregos e judeus

abraçaram a fé

8-10 Um aleijado desde o ventre da mãe procura

Paulo Paulo fixa-lhe os olhos e ordena que ande Ele deu um salto e começou a andar.

11-18 O povo declarou que Paulo e Barnabé eram

Mercúrio e Júpiter, respectivamente

Sacerdotes de Júpiter trouxeram sacrifícios

às formas humanas dos deuses

Com muito curso impediram que os

sacrifícios fossem feitos

19-28 Alguns judeus de Antioquia e Icônio

apedrejaram Paulo

Paulo foi arrastado para fora da cidade

pelos discípulos, como se estivera morto, lá

chegando Paulo pôs-se de pé

Entraram na cidade e conseguiram fazer

bom número de discípulos

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211

15

Concílio de Jerusalém: alguns fariseus apontam para a necessidade de circuncisão dos gentios. Pedro discursa e Barnabé e Paulo relatam os muitos

sinais e prodígios que realizaram. Tiago discursa sobre a intervenção histórica de Deus em favor dos judeus. Foi deliberado que a circuncisão não

era necessária e que somente se evitasse carnes imoladas a ídolos, do sangue e carnes sufocadas, além das uniões ilegítimas. Todos os apóstolos

são dispersos para pregar em todas as regiões essas deliberações.

16

1-5 Paulo se dirige a Derbe e Listra Após escolher Timóteo o circuncida por

conta dos judeus da região

As comunidades cresciam em número a

cada dia

6-10 Impedidos pelo Espírito a anunciar a Palavra

em diversos lugares chegam a Trôade

O Espírito aparece em visão a Paulo e o

manda para a Macedônia

Após a visão de Paulo partimos para a

Macedônia

11-15 Chegando a Filipos (principal cidade da

Macedônia) fomos ao rio orar

Paulo pregava às mulheres que lá estavam e

o Espírito lhes abria o entendimento

Lídia é batizada e nos oferece

hospedagem

16-24

No caminho para a oração, Paulo e Silas são

surpreendidos por uma escrava que tinha

espírito de adivinhação

Paulo a exorcizou Na mesma hora o espírito se foi. Por conta

disso, Paulo e Silas são açoitados e presos

25-40 Paulo e Silas cantam na prisão Um terremoto abala os alicerces do cárcere

e todas as portas são abertas

O carcereiro, imaginando que os

prisioneiros tivessem fugido tentou

suicidar-se. Paulo o impediu, pregou a ele

e este foi batizado

17

1-9 Em Tessalônica Paulo e Silas vão à sinagoga Ensinam sobre Jesus

Alguns judeus, gregos e não poucas

mulheres da sociedade os seguiram, mas

outros judeus causaram tumulto contra

eles e os expulsaram da cidade sob

acusação de violação ao culto a César

10-15 Na Beréia Paulo e Silas foram para a

sinagoga Ensinaram na sinagoga durante um tempo

Muitos aderiram à fé, também gregos e

mulheres e homens de alta posição social

abraçaram a fé. Novamente os judeus de

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212

Tessalônica perseguiram os apóstolos

16-34 Paulo é conduzido ao Areópago em Atenas Paulo discursa apresentando o seu deus Muitos aderiram à fé, inclusive o líder do

Areópago e sua mulher

18

1-11 Paulo vai a Corinto e procura a sinagoga

Paulo prega na sinagoga. O Senhor aparece

a ele em visão e diz para que ele ali

permaneça, pois estará em segurança. Paulo

fica por um ano e seis meses naquela região

Crispo, o chefe da sinagoga coríntia e

muitos outros daquela região aderem à fé

12-17 Paulo é entregue à justiça em Acaia

O procônsul da região se recusa e julgá-lo

e, antes mesmo de Paulo apresentar sua

defesa, foi inocentado pelo procônsul

Os membros da sinagoga espancam Paulo

18-23 Paulo viaja por toda a Ásia Ensina e fortalece os discípulos Solicitaram a Paulo que alongasse sua

estadia, mas ele partiu

24-28 O judeu Apolo de Alexandria chegou a Éfeso Prsicila e Áquila pregam a ele Apolo abraça a fé

19

1-7 Paulo encontra judeus batizados por João

Explica-lhes que o batismo de João de

arrependimento, mas era em Jesus que

deveria crer

Paulo impõe as mãos sobre eles e todos

receberam o Espírito Santo começando a

falar em língua e profetizar

8-10 Paulo falou àquela sinagoga por três meses Paulo pregou por dois anos naquela região Todos da Ásia, judeus e gregos, puderam

ouvir a Palavra de Deus

11-12 Paulo permanecia em Éfeso

Deus operava tantos milagres que, apenas

por encostar nos lenços e aventais que

Paulo usava, todos eram curados

Doenças e espíritos maus eram expulsos

13-22 Alguns exorcistas judeus atuavam em nome

de Paulo e Jesus

Os demônios os espancaram, deixando-os

nus e feridos

O temor foi generalizado e todos que

praticavam magia confessaram suas

práticas e incendiaram muitos livros

mágicos. A Palavra do Senhor crescia e se

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213

firmava poderosamente

23-40 Os ourives de Éfeso protestam contra a

pregação de Paulo e seus companheiros

Gaio e Aristarco, companheiros de Paulo,

são arrastados para a Assembléia e ouvem

as declamações de que Ártemis é a grande

mãe e deus dos efésios

A assembléia é dispersada sob risco de

acusação de sedição por parte dos

romanos

20

1-6

Paulo deixa Éfeso, vai em direção à

Macedônia e chega à Grécia. Depois de três

meses vai à Síria e, por fim, volta à

Macedônia e encontra os discípulos em

Trôade

Em todas as viagens e por onde passava

Paulo exortava e ensinava os discípulos a

permanecerem firmes

A conspiração dos judeus contra Paulo

forçou-o a muitas viagens

7-12 Paulo prega por muito tempo e um menino

cai da janela e morre Paulo o toma pelos braços e o ressuscita

Paulo e os demais voltaram para o recinto,

partilharam do pão e os ensinamentos se

seguiram até o amanhecer

13-38

Paulo deseja ir à Jerusalém para a festa de

Pentecoste. No entanto, se revela preocupado

quanto ao que pode lhe acontecer quando lá

chegar

Em longo discurso, Paulo apresenta uma

defesa de si e de suas atividades como

exclusivas da pregação, principalmente,

sustento próprio.

Todos choram compulsivamente e o

beijam. Temem não ver mais a face de

Paulo, conforme próprias palavras do

apóstolo. Segue cortejo até o navio.

21

1-14 De Éfeso a Tiro e depois até Cesaréia

partiram Paulo e os demais em viagem

Em Tiro, os discípulos, movidos pelo

Espírito, diziam a Paulo que não fosse à

Jerusalém; Em Cesaréia, Ágabo profetiza,

em nome do Espírito Santo, que Paulo será

preso

Em todos os momentos Paulo recusa as

palavras e visões e diz que é a vontade de

Deus que ele siga até Jerusalém

15-26 Em Jerusalém, Paulo foi à casa de Tiago com

os demais discípulos e se reuniram

Paulo relata todas as atividades que

cumprira junto aos gentios

Todos glorificam a Deus. Os discípulos

propuseram a Paulo que se purificasse no

Templo para evitar acusações por parte

Page 214: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

214

dos judeus

27-40 Paulo é preso no Templo após ser

reconhecido por judeus da Ásia

Protegido pelos soldados e tribuno romano

Paulo é conduzido à prisão, mas antes

deseja discursar à multidão

Todos os judeus buscavam matá-lo

22

Paulo inicia um longo discurso em sua própria defesa. Ele relata entrar em êxtase após ter visto a luz que brilhou do céu e como cumpriu o

chamado de Deus para disseminar os ensinos sobre Jesus. Quando, porém, menciona que estendeu sua mensagem aos gentios a multidão se

revolta. Ao ser novamente preso, declara-se cidadão romano e o tribuno teme por decidir algo que não é de sua alçada. No dia seguinte leva-o ao

Sinédrio.

23

Paulo segue sua defesa e, diante dos judeus, argumenta ter recebido a missão do próprio Deus, por meio da aparição de um anjo. Na noite seguinte

o Senhor aparece a Paulo e diz a ele para que não temesse, pois era necessário que sua pregação atingisse Roma. Os judeus, irredutíveis,

comprometem-se em jejum até que Paulo esteja morto. O tribuno, temendo tomar decisão fora de sua competência decide transferir Paulo para

Cesaréia e entregá-lo ao governador da região.

24

Paulo defende-se diante do governador romano e estabelece como argumento principal sua missão a partir do entendimento de que justos e

injustos hão de ressuscitar dos mortos. O governador, no entanto, buscava encontros com Paulo na expectativa de conseguir algum dinheiro para

liberá-lo. Diante da esposa do governador, mulher judia, Félix temia as palavras de Paulo.

25 Diante do impasse com relação a sua prisão, Paulo apela para o julgamento de César. O rei Agripa, de passagem pela região, decidiu ouvir Paulo.

26 Paulo apresenta sua defesa diante de Agripa. Novamente Paulo relata sua experiência extática de chamado divino e diz cumprir as ordens divinas

que recebera. Agripa o considera inocente, mas diante a apelação de Paulo para ter com César ele ficou impossibilitado de libertá-lo.

27

Embarcaram, pois no navio em direção a Roma. Uma tempestade assolou a embarcação. Paulo parece ter controle da situação: v.10: Paulo adverte

que o navio deveria aportar em terra para aguardar a tempestade; v.15: o navio não resistia ao vento e ficou à deriva; v.18: a carga começou a ser

lançada ao mar; v.19: a tripulação lançou ao mar os apetrechos do navio; v.20: por vários dias não viam nem sol nem estrelas e as esperanças de

salvarem-se eram pequenas; v. 21:Paulo intervém, v.22: Paulo motiva os tripulantes para que tenham ânimo, pois a vida de todos será poupada;

v.23-26: Paulo relata uma visão de que Deus garantira a vida de todos, mas era necessária uma pausa na viagem. Diante da tentativa de fuga dos

marinheiros Paulo exortou-os a permanecer para que suas vidas fossem salvas. Também sugeriu que todos se alimentassem. Assim, v.34-35:

tomou do pão, partiu entre todos, deu graças a Deus e comeram. O capítulo se encerra com a chegada em Malta, todos conseguiram atingir terra

Page 215: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

215

firme. O centurião poupou a vida de Paulo diante de sugestão que a tripulação matasse a todos para que não fugissem.

28

1-6

Em terra firma, Paulo tomou alguns gravetos

ao que uma víbora prendeu-se a sua mão (os

nativos julgaram que se tratava de um

assassino, pois tendo sobrevivido ao

naufrágio, os deuses enviaram uma víbora

para atacá-lo)

Paulo sacudiu o animal ao fogo e não

sofreu mal nenhum

Os nativos mudaram o parecer e passaram

a vê-lo como um deus

7-10

Abrigados na propriedade de Públio, o mais

importante cidadão da ilha, Paulo foi

chamado, pois Públio tinha febre e disenteria

Paulo orou, impôs-lhe as mãos e o curou.

Tantos outros da ilha vieram ter com Paulo

e foram, também, curados

No momento da partida, uma embarcação

com todas as provisões necessárias foram

dadas para que chegasse a Roma

11-30

Chegado em Roma, após longa viagem e

algumas pausas e encontros com outros

discípulos no caminho, Paulo estabelece

contato com os judeus de Roma

Paulo discursou e contou da oposição que

vinha recebendo dos demais judeus. Falou

sobre o Reino de Deus e ficou mais dois

anos em Roma ensinando a quem o

procurasse

Os judeus declaram que não sabiam das

acusações, mas que a mensagem de Paulo

havia se espalhado por toda a parte.

Alguns abraçaram a fé e outros, no

entanto, recusaram-se. Mas, não

impediram que Paulo continuasse a atuar.

Tabela 12: Proposta de estrutura do texto de Atos dos Apóstolos levando-se em consideração o modelo thĕiŏs anēr

Page 216: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

Após a leitura do documento de Atos sob essa perspectiva, convém retomar

uma idéia de Klaus Berger enunciado no item 4 do capítulo II deste trabalho. Dizia o

autor alemão que "histórias de milagres" (categoria proposta por Bultmann) não se

constituem como gênero, mas um rótulo moderno para agrupar diferentes narrativas,

com variadas formas literárias, que identificam ali o elemento mágico ou sobrenatural

(BERGER, 1998:276).

De acordo com o entendimento de Berger, portanto, "histórias de milagres"

fariam parte de formas menores inseridas nos gêneros literários. E é a essas formas

menores que se deve recorrer para, do ponto de vista da análise formal (Crítica da

Forma), perceber que peculiaridades cada um tem para, somente após esse

procedimento, classificá-las e agrupá-las.

Essa operação está longe de ser o escopo deste trabalho no geral e nesta seção

no particular. Evocar esse entendimento tem um objetivo muito mais pragmático

aqui. Ou seja, pela natureza textual de Atos parece estar longe do horizonte de

expectativa do autor que forma, gênero ou categoria literária ele lançará mão para

empreender seu relato. Antes, cumpre oferecer um quadro bastante claro e objetivo

sobre que demanda ou situação existe, para cada respectiva situação, qual a

demonstração ou prova de poder (dýnamis) os discípulos repletos desse poder

oferecem e seus resultados convincentes.

Esse é precisamente o sitz im Leben (situação vivencial) de Atos: a realidade e

atuação dos homens divinos centrados na autoridade (ĕxŏusia) concedida por Deus

para intervir na história. A partir desse ponto de vista é que Atos deve ser entendido

como a história dos paleocristianismos. É essa a marca ideológica que orientou o uso,

alteração e invenção de dados por parte de quem está por trás dessa composição.

Pedro e Paulo são, majoritariamente, as personagens centrais em Atos. As

duas personagens dominam cerca de 90% do material lucano. Dos 28 capítulos do

documento, Pedro domina a cena em nove (32,14), enquanto que Paulo é protagonista

absoluto em dezesseis deles (57,14%). De acordo com a percepção de Lucas essas são

as duas personagens centrais para a formação, expansão e consolidação dos

paleocristianismos. A intenção do autor é, portanto, fazer com que a origem do

movimento seja mesmo em Jerusalém, a partir da centralidade conferida a Pedro.

Paulo, por sua vez, é visto como aquele que desempenha o papel do propagador das

idéias tanto a judeus como a gentios.

Page 217: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

217

No entanto, sobre as origens e disseminação dos paleocristianismos é muito

provável que uma origem singular em Jerusalém seja uma criação literária de Atos.

Dessa forma, Jerusalém funcionaria mais como um símbolo que estabelece

continuidade entre o Antigo Israel e a missão aos gentios. O não-dito dessa

construção de Lucas é que todo material oriundo de organizações paleocristãs na

região da Galiléia é omitido em favor da centralidade de Jerusalém (ActsSem,

2013:28).

3. O Paulo de Atos e a "invenção das tradições"

Uma das discussões controversas acerca da composição de Atos diz respeito à

hipótese de seu(s) autor(es) ter conhecido o corpus paulino. Questões infindáveis

emergem dessa problemática. Conforme mencionado anteriormente, não se quer aqui

reproduzir, analisar ou aprofundar esse debate. Anteriormente, as referências

bibliográficas sobre o assunto já foram fornecidas e a escolha dentre elas foi efetuada

por este trabalho.

Mas, porque então retomar essa questão? O fato é que independentemente de

Atos ter tido acesso às fontes paulinas ou não, em contexto de II século e.c., várias

imagens sobre Paulo eram conhecidas. Incontáveis imagens. Dois exemplos podem

ser aqui mencionados: aquela de Marcião, em outras partes do presente texto já

expostas, e aquela das dêutero-paulinas, citadas na introdução deste trabalho.

É certo que o nome de Paulo gozava de grande autoridade na bacia

mediterrânica em ambientes paleocristãos. O material genuinamente paulino era

conhecido, o cânon de Marcião é prova incontestável dessa disseminação e

conhecimento. Logo, por razões variadas, novas imagens de Paulo foram sendo

construídas. Para o caso de Atos ele é um homem divino e a audiência mediterrânica

o acolheu, conforme a expansão dos paleocristianismos comprova.

A pergunta, então, passa a ser em como entender a dinâmica dessa operação

organizada por Atos. O modelo teórico de Eric Hobsbawm é bastante apropriado para

lançar luz à questão. Segundo o autor inglês (mas, nascido em Alexandria), "muitas

vezes, 'tradições' que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes,

quando não são inventadas." (HOBSBAWM, 2008. p.9).

Page 218: DANIEL BRASIL JUSTI - UFRJ

218

Com o olhar particular, mas não exclusivamente, voltado para práticas e

costumes culturais de países da Ilha Britânica, o autor e seu companheiro, Terrence

Ranger, fornecem estudos de caso interessantes sobre costumes ou tradições que

parecem gozar de perenidade, mas podem não ser tão antigos ou originais quanto de

imagina. Este pode ter sido o caso das "tradições paulinas" em contexto de II século

e.c. na bacia mediterrânica.

Porém, cumpre observar imediatamente a definição que Hobsbawm oferece ao

termo:

"O termo 'tradição inventada' é utilizado num sentindo amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as 'tradições' realmente inventadas,

construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que

surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo (...) e se estabeleceram com enorme

rapidez". (HOBSBAWM, 2008. p.9)

Logo, por 'tradição inventada' entende-se um conjunto de práticas,

normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de

natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de

comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma

continuidade em relação ao passado. "Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer

continuidade com um passado histórico apropriado". (HOBSBAWM, 2008. p.9).

Há, portanto, dois elementos que precisam ser observados a partir da

perspectiva do historiador inglês quando se deseja aplicar seu modelo teórico ao

procedimento empreendido por Atos:

(i) a continuidade com o passado em relação a Paulo se dá na sua

vinculação a Jesus, pois este apareceu a Paulo, logo, a marca de

autoridade de testemunha ocular é conferida ao apóstolo; embora não

tenha caminhado ou vivido com Jesus, Paulo é legítimo, pois continua a

realizar o que seu "líder" fazia e ensinava;

(ii) os ouvintes-leitores de Atos são a audiência mediterrânica a que se fez

referência em todo o presente estudo. Logo, o conjunto de práticas

mágicas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas

e de natureza ritual ou simbólica inculca certos valores e normas de

comportamento através da repetição. É por essa razão que o modelo

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219

thĕiŏs anēr - embora construído conceitualmente no período moderno -

precisa ser observado em Paulo para que gere os resultados esperados

nessa mesma audiência.

Para além dessas duas aplicações diretas do modelo teórico de Hobsbawm, a

invenção de Paulo por parte de Atos depende de outros aspectos mais complexos e

demandam investigação mais acurada, pois:

"Mais interessante, do nosso ponto de vista, é a utilização de

elementos antigos na elaboração de novas tradições inventadas para

fins bastante originais. (...). Às vezes, as novas tradições podiam ser prontamente enxertadas nas velhas; outras vezes, podiam ser

inventadas com empréstimos fornecidos pelos depósitos bem

supridos do ritual, simbolismo e princípios morais oficiais (...)."

(HOBSBAWM, 2008. p.14).

Assim, para o leitor ou estudioso, intérprete, em uma palavra, contemporâneo

faz-se absolutamente imprescindível dispor dos dados contextuais em que tal

invenção foi possível. Por essa razão é que se assumiu, no capítulo precedente, que as

culturas mediterrânicas estavam em constante interação e, no tempo (bem entendido:

história!), constituindo-se em síntese de estabilidade e mudança (SAHLINS, 1990:9).

Conclusivamente, os episódios narrados em Atos no processo de construção da

personagem de Paulo, se lidos ambientados no seu tempo e espaço, revelarão como o

apóstolo passa a ser um homem divino. As categorias apresentadas a seguir

acompanham o que foi proposto no capítulo precedente com o objetivo intencional de

relacioná-los.

Assim, para cada episódio que constar nas listas abaixo, uma vez cruzado com

os expostos no capítulo anterior, serão elucidativos no que diz respeito à

expectativa/demanda da audiência x prova/demonstração de poder x resultado141

.

(a) As práticas mágicas

141 O procedimento de exposição documental foi assim organizado: (i) o texto de Atos é citado com

breve descrição; (ii) exposição do(s) texto(s) de Atos dos Apóstolos referendado no tópico; (iii) será

indicado em qual outra seção deste trabalho poder-se-á fazer o confronto entre os testemunhos

documentais (a referência se dará pela página correspondente neste texto). Todas as citações de Atos

dos Apóstolos foram retiradas da tradução oferecida pela Bíblia de Jerusalém (2002).

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220

(a.1) Conversão (9, 1-19): Paulo fica cego, mas é curado. Recebe o Espírito e é

batizado:

"1Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do

Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote. 2Foi pedir-lhe cartas para as

sinagogas de Damasco, a fim de poder trazer para Jerusalém, presos, os que lá encontrasse pertencendo ao Caminho, quer

homens, quer mulheres. 3Estando ele em viagem e aproximando-se

de Damasco, subitamente uma luz vinda do céu o envolveu de claridade.

4Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: "Saul,

Saul, por que me persegues?" 5Ele perguntou: "Quem és, Senhor?"

E a resposta: "Eu sou Jesus, a quem tu estás perseguindo. 6Mas

levanta-te, entra na cidade, e te dirão o que deves fazer". 7Os

homens que com ele viajavam detiveram-se, emudecidos de

espanto, ouvindo a voz mas não vendo ninguém. 8Saulo ergueu-se

do chão. Mas, embora tivesse os olhos abertos, não via nada. Conduzindo-o, então, pela mão, fizeram-no entrar em Damasco. 9Esteve três dias sem ver, e nada comeu nem bebeu.

10Ora, vivia em

Damasco um discípulo chamado Ananias. O Senhor lhe disse em visão: "Ananias!" Ele respondeu: "Estou aqui, Senhor!"

11E o

Senhor prosseguiu: "Levanta-te, vai pela rua chamada Direita e

procura, na casa de Judas, por alguém de nome Saulo, de Tarso. Ele

está orando 12

e acaba de ver um homem chamado Ananias entrar e lhe impor as mãos, para que recobre a vista".

13Ananias respondeu:

"Senhor, ouvi de muitos, a respeito deste homem, quantos males fez

a teus santos em Jerusalém. 14

E aqui está com autorização dos chefes dos sacerdotes para prender a todos os que invocam o teu

nome". 15

Mas o Senhor insistiu: "Vai, porque este homem é para

mim um instrumento de escol para levar o meu nome diante das nações pagãs, dos reis, e dos filhos de Israel.

16Eu mesmo lhe

mostrarei quanto lhe é preciso sofrer em favor do meu nome". 17

Ananias partiu. Entrou na casa, impôs sobre ele as mãos e disse:

"Saul, meu irmão, o Senhor me enviou, Jesus, o mesmo que te apareceu no caminho por onde vinhas. É para que recuperes a vista

e fiques repleto do Espírito Santo". 18

Logo caíram-lhe dos olhos

umas como escamas, e recobrou a vista. Recebeu, então, o batismo 19

e, tendo tomado alimento, sentiu-se reconfortado."

. Confrontar com:

(i) curas de cegos: Asclépio, p.153; Vespasiano, p.158-159; Jesus, p. 186;

(ii) receber um daimŏn: PGM, p. 162-164;

(a.2) Disputa com Elimas (13, 4-12): Elimas fica cego:

"4Enviados, pois, pelo Espírito Santo, eles desceram até Selêucia,

de onde navegaram para Chipre. 5Chegados a Salamina, puseram-se

a anunciar a palavra de Deus nas sinagogas dos judeus. Tinham

também João como auxiliar. 6Tendo atravessado toda a ilha até

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221

Pafos, aí encontraram um mago, falso profeta, que era judeu e se

chamava Bar-Jesus. 7Ele estava com o procônsul Sérgio Paulo,

homem prudente, o qual mandara chamar Barnabé e Saulo,

desejoso de ouvir a palavra de Deus. 8Elimas, porém, o mago —

assim se traduz o seu nome — começou a opor-se a eles,

procurando afastar o procônsul da fé. 9Então Saulo, que também se

chamava Paulo, repleto do Espírito Santo, fixando nele os olhos, 10

disse: "Homem cheio de toda a falsidade e de toda a malícia, filho

do diabo e inimigo de toda a justiça, não cessarás de perverter os

caminhos do Senhor, que são retos? 11

Pois agora, a mão do Senhor está sobre ti: ficarás cego, e por um tempo não verás mais o sol!"

No mesmo instante, escuridão e trevas caíram sobre ele, de tal sorte

que, andando à roda, procurava quem o levasse pela mão. 12

Então,

vendo o que acontecera, o procônsul abraçou a fé, maravilhado com a doutrina do Senhor."

. Confrontar com:

(i) os temas relativos à cegueira: Asclépio, p.153; Vespasiano, p.158-159; Jesus, p.

186;

(a.3) Ensino e discurso sobre intervenções de Deus na história judaica142

(13, 13-43;

17, 1-15; 19, 8-10; 20, 1-6; 21, 27-40; 22; 23; 25; 26; 28, 11-30).

Em virtude de serem muitas e extensas narrativas, elas não foram aqui

expostas. Mas estão adequadamente referendadas e devem ser confrontadas com as

estruturas dispostas em documentos trabalhados no item 5 do capítulo segundo (ver

páginas 175-182).

(a.4) Sinais e prodígios (14, 1-7):

"1Em Icônio, eles também entraram na sinagoga dos judeus. E

falaram de tal sorte que uma grande multidão de judeus e de gregos

abraçaram a fé. 2Mas os judeus que continuaram incrédulos

incitaram e indispuseram os ânimos dos gentios contra os irmãos. 3Quanto a Paulo e Barnabé, demoraram-se ali bastante tempo,

cheios de intrepidez no Senhor, que dava testemunho à palavra da

sua graça e concedia que se realizassem sinais e prodígios por meio de suas mãos.

4Dividiu-se, porém, a população da cidade: uns

estavam com os judeus; outros, com os apóstolos. 5Então,

formando-se uma conjuração de gentios e judeus, de acordo com os seus chefes, para ultrajá-los e apedrejá-los,

6eles, sabendo-o, foram

refugiar-se em Listra e Derbe, cidades da Licaônia, e nos arredores. 7E ali continuaram a anunciar a Boa Nova."

142 Sobre o tema constante em que Paulo é levado a julgamento, também é possível observar que se

trata de um aspecto comum em culturas mediterrânicas. Em muitos deles, a acusação é de magia ou

violação contra os desues. Para o aprofundamento da questão, ver: Pervo, 2009:196 e 592.

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222

. Confrontar com:

(i) Hércules curas todas as doenças, p. 150; Jesus também realiza muitos sinais e

prodígios, p. 186;

(ii) a magia deve ser vista como a mais fraudulenta das artes: Plínio, p. 171;

(a.5) Paulo é confundido com outra divindade - Mercúrio (14, 11-18):

"11

Vendo o que Paulo fizera, as multidões levantaram a voz em

língua licaônica, dizendo: "Deuses em forma humana desceram até

nós!" 12

E começaram a chamar a Barnabé de Júpiter, e a Paulo, de Mercúrio, porque era este quem tomava a palavra.

13Os sacerdotes

de Júpiter fora-dos-muros levaram às portas touros adornados de

guirlandas, pretendendo, de acordo com a multidão, oferecer um

sacrifício. 14

Ouvindo isto, os apóstolos Barnabé e Paulo rasgaram seus mantos e precipitaram-se em meio à multidão, clamando e

repetindo: 15

"Amigos, que estais fazendo? Nós também somos seres

humanos, sujeitos aos mesmos sofrimentos que vós, mas vos anunciamos a Boa Nova da conversão para o Deus vivo, deixando

todas essas coisas vãs! Foi ele que fez o céu, a terra, o mar, e tudo o

que neles existe. 16

Ele permitiu, nas gerações passadas, que todas as

nações seguissem os próprios caminhos. 17

No entanto, não deixou de dar testemunho de si mesmo fazendo o bem, do céu enviando-

vos chuvas e estações frutíferas, saciando de alimento e alegria os

vossos corações". 18

Mesmo dizendo estas palavras, a custo conseguiram impedir que a multidão lhes oferecesse um sacrifício."

. Confrontar com as divindades mediterrânicas seguintes:

(i) visões sobre Hércules, p.150;

(ii) visões sobre Asclépio, pp. 152-155;

(iii) visões sobre Afrodite, pp. 165-166;

(iv) visões sobre Ísis, p. 166;

O fato de que o(s) autor(es) de Atos faz Paulo e Barnabé serem confundidos

com divindades, quer indicar que a audiência mediterrânica estava informada sobre a

quem é dado o poder de realizar feitos extraordinários. A identificação dos apóstolos

com essas divindades, ainda, indubitavelmente, provoca um efeito retórico nos

ouvintes-leitores desse texto em termos de comprovação da grandeza de Paulo e

Barnabé.

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223

(a.6) A prisão é aberta para Paulo e Silas (16, 25-40)

"25

Pela meia noite, Paulo e Silas, em oração, cantavam os louvores

de Deus, enquanto os outros presos os ouviam. 26

De repente, sobreveio um terremoto de tal intensidade que se abalaram os

alicerces do cárcere. Imediatamente abriram-se todas as portas, e os

grilhões de todos soltaram-se. 27

Acordado, e vendo abertas as portas da prisão, o carcereiro puxou da espada e queria matar-se: pensava

que os presos tivessem fugido. 28

Paulo, porém, com voz forte

gritou: "Não te faças mal algum, pois estamos todos aqui". 29

Então

o carcereiro pediu uma luz, entrou para dentro e, todo trêmulo, caiu aos pés de Paulo e de Silas.

30Conduzindo-os para fora, disse-lhes:

"Senhores, que preciso fazer para ser salvo?" 31

Eles responderam:

"Crê no Senhor e serás salvo, tu e a tua casa". 32

E anunciaram-lhe a palavra do Senhor, bem como a todos os que estavam em sua casa. 33

Acolhendo-os, então, naquela mesma hora da noite lavou-lhes as

feridas, e imediatamente recebeu o batismo, ele e todos os seus. 34

Fê-los, então, subir à sua casa, pôs-lhes a mesa, e rejubilou-se

com todos os seus por ter crido em Deus. 35

Fazendo-se dia, os

estrategos enviaram os litores com a seguinte ordem: "Solta esses

homens". 36

O carcereiro transmitiu tais palavras a Paulo: "Os estrategos mandam dizer que sejais soltos. Agora, pois, saí e

prossegui vosso caminho". 37

Paulo, porém, replicou-lhes:

"Vergastaram-nos em público sem julgamento, a nós que somos cidadãos romanos, e lançaram- nos à prisão. Agora, é furtivamente

que nos mandam sair? Não será assim: eles mesmos venham retirar-

nos daqui". 38

Os litores transmitiram aos estrategos essas palavras. Ouvindo dizer que eram cidadãos romanos, ficaram com medo

39e

vieram pessoalmente insistir com eles para que se afastassem da

cidade. 40

Ao saírem da prisão, dirigiram-se à casa de Lídia e, vendo

os irmãos, confortaram-nos. Depois, partiram."

O tema que dá conta da libertação de encarcerados também não é estranho à

audiência mediterrânica. Muitos documentos dão conta de que homens poderosos

eram capazes de se libertarem da prisão ou terem deuses intervindo em seus

benefícios143

. Essas narrativas não estão aqui presentes ou nas seções precedentes do

segundo capítulo, pois não faziam parte dos critérios selecionados para a coleta de

documentação (ver os critérios na pp. 147-149). Trata-se apenas de uma opção

metodológica que este trabalho adotou, mas, para efeito de impacto na audiência a

quem é direcionado o relato de feitos de homens divinos, certamente, esses dados não

passavam despercebidos.

143 Conferir Pervo, 2009:409-411 e ActsSem, 2013:72.

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224

(a.7) Paulo discursa no Areópago (17, 16-34)

"16

Enquanto os esperava em Atenas, seu espírito inflamava-se dentro dele, ao ver cheia de ídolos a cidade.

17Disputava, por isso,

na sinagoga, com os judeus e com os adoradores de Deus; e na ágora, a qualquer hora do dia, com os que a freqüentavam.

18Até

mesmo alguns filósofos epicureus e estóicos o abordavam. E alguns

diziam: "Que quer dizer este palrador?" E outros: "Parece um pregador de divindades estrangeiras". Isto, porque ele anunciava

Jesus e a Ressurreição. " 19

Tomando-o então pela mão, conduziram-

no ao Areópago, dizendo: "Poderíamos saber qual é essa nova

doutrina apresentada por ti? 20

Pois são coisas estranhas que nos trazes aos ouvidos. Queremos, pois, saber o que isto quer dizer". 21

Todos os atenienses, com efeito, e também os estrangeiros aí

residentes, não se entretinham noutra coisa senão em dizer, ou ouvir, as últimas novidades.

22De pé, então, no meio do Areópago,

Paulo falou: "Cidadãos atenienses! Vejo que, sob todos os aspectos,

sois os mais religiosos dos homens. 23

Pois, percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até

um altar com a inscrição: 'Ao Deus desconhecido'. Ora bem, o que

adorais sem conhecer, isto venho eu anunciar-vos. 24

O Deus que fez

o mundo e tudo o que nele existe, o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos humanas.

25Também não é

servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, ele

que a todos dá vida, respiração e tudo o mais. 26

De um só ele fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, fixando

os tempos anteriormente determinados e os limites do seu habitat. 27

Tudo isto para que procurassem a divindade e, mesmo se às

apalpadelas, se esforçassem por encontrá-la, embora não esteja longe de cada um de nós.

28Pois nele vivemos, nos movemos e

existimos, como alguns dos vossos, aliás, já disseram: 'Porque

somos também de sua raça'. 29

Ora, se nós somos de raça divina, não podemos pensar que a divindade seja semelhante ao ouro, à prata,

ou à pedra, a uma escultura da arte e engenho humanos. 30

Por isso,

não levando em conta os tempos da ignorância, Deus agora notifica aos homens que todos e em toda parte se arrependam,

31porque ele

fixou um dia no qual julgará o mundo com justiça por meio do

homem a quem designou, dando-lhe crédito diante de todos, ao

ressuscitá-lo dentre os mortos". 32

Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, alguns começaram a zombar, enquanto outros diziam:

"A respeito disto vamos ouvir-te outra vez". 33

Foi assim que Paulo

retirou-se do meio deles. 34

Alguns homens, porém, aderiram a ele e abraçaram a fé. Entre esses achava-se Dionísio, o Areopagita, bem

como uma mulher, de nome Dâmaris, e ainda outros com eles."

A cena descrita dá conta do julgamento de Paulo no Areópago. Muito embora

o(s) autor(es) de Atos quisesse(m) fazer os ouvintes-leitores crer que Paulo fora

convidado, somenta são conduzidos àquele lugar pessoas que incorreram em dois

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225

crimes principais: crimes de sangue ou contra os deuses. Sobre essa temática de

julgamentos, o item a.3 imediatamente acima já elucidou alguns dados. Entretanto,

outro aspecto que convém ser mencionado é a polêmica que um novo culto estabelece

quando de sua origem e implementação. A esse respeito, Pervo (2009:691-693)

apresenta boa discussão para o caso do culto a Serapis em Delos.

(a.8) Judeus exorcistas não conseguem expulsar o espírito mal se servindo do nome

de Paulo e Jesus e são envergonhados. Os que ficaram com medo queimaram livros

mágicos e confessaram suas práticas (19, 13-20)

"13

Então, alguns dos exorcistas judeus ambulantes começaram a

pronunciar, eles também, o nome do Senhor Jesus, sobre os que tinham espíritos maus. E diziam: "Eu vos conjuro por Jesus, a quem

Paulo proclama!" 14

Quem fazia isto eram os sete filhos de certo

Sceva, um sumo sacerdote judeu. 15

Mas o espírito mau replicou-lhes: "A Jesus eu conheço; e Paulo, sei quem é. Vós, porém, quem

sois?" 16

E, investindo contra eles, o homem, no qual estava o

espírito mau, dominou a uns e outros, e de tal modo os maltratou que, desnudos e feridos, tiveram de fugir daquela casa.

17O fato

chegou ao conhecimento de todos os judeus e gregos que moram

em Éfeso. A todos sobreveio o temor, e o nome do Senhor Jesus era

engrandecido. 18

Muitos dos que haviam abraçado a fé começaram a confessar e a declarar suas práticas.

19E grande número dos que

haviam exercido a magia traziam seus livros e os queimavam à

vista de todos. Calculando-se o seu preço, acharam que seu valor chegava a cinqüenta mil peças de prata.

20Assim, a palavra do

Senhor crescia e se firmava poderosamente."

. Confrontar com:

(i) exorcismos: PGM, p. 163-165; Jesus, p. 188;

(ii) magia como arte fraudulenta: Plínio, p. 171;

(iii) uso de nomes com autoridade para exorcismos: PGM, p. 163-165; o uso do nome

de Salomão por parte de Eleazar, narrado em Josefo, pp. 179-180;

(a.9) Paulo não recebe dinheiro por praticar magia (20, 13-38)

"13

Nós, porém, seguindo à frente, embarcamos num navio rumo a Assos, onde devíamos recolher Paulo. Assim havia ele

determinado, devendo ele mesmo vir por terra. 14

Quando nos

alcançou em Assos, recolhemo-lo a bordo e prosseguimos para

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226

Mitilene. 15

De lá zarpando no dia seguinte, chegamos à frente de

Quio. Um dia depois, aportamos em Samos. Ainda um dia e, depois

de nos termos detido em Trogílio, chegamos a Mileto. 16

Efetivamente, Paulo decidira passar ao largo de Éfeso, para não lhe acontecer de prolongar demais sua estada na Ásia. Ele estava

apressando-se a fim de passar o dia de Pentecostes em Jerusalém, se

lhe fosse possível. 17

De Mileto, mandou emissários a Éfeso para chamarem os anciãos daquela igreja.

18Quando chegaram, assim

lhes falou: "Vós bem sabeis como procedi para convosco todo o

tempo, desde o primeiro dia em que cheguei à Ásia. 19

Eu servi ao Senhor com toda a humildade, com lágrimas, e no meio das

provações que me sobrevieram pelas ciladas dos judeus. 20

E nada

do que vos pudesse ser útil eu negligenciei de anunciar-vos e

ensinar-vos, em público e pelas casas, 21

conjurando judeus e gregos ao arrependimento diante de Deus e à fé em Jesus, nosso Senhor. 22

Agora, acorrentado pelo Espírito, dirijo-me a Jerusalém, sem

saber o que lá me sucederá. 23

Senão que, de cidade em cidade, o Espírito Santo me adverte dizendo que me aguardam cadeias e

tribulações. 24

Mas de forma alguma considero minha vida preciosa

a mim mesmo, " contanto que leve a bom termo a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus: dar testemunho do

Evangelho da graça de Deus. 25

Agora, porém, estou certo de que

não mais vereis minha face, vós todos entre os quais passei

proclamando o Reino. 26

Eis porque eu o atesto, hoje, diante de vós: estou puro do sangue de todos,

27pois não me esquivei de vos

anunciar todo o desígnio de Deus para vós. 28

Estai atentos a vós

mesmos e a todo o rebanho: nele o Espírito Santo vos constituiu guardiães, para apascentardes a Igreja de Deus, que ele adquiriu

para si pelo sangue do seu próprio Filho. 29

Bem sei que, depois de

minha partida, introduzir-se-ão entre vós lobos vorazes que não

pouparão o rebanho. 30

Mesmo do meio de vós surgirão alguns falando coisas pervertidas, para arrastarem atrás de si os discípulos. 31

Vigiai, portanto, lembrados de que, durante três anos, dia e noite,

não cessei de exortar com lágrimas a cada um de vós. 32

Agora, pois, recomendo-vos a Deus e à palavra de sua graça, que tem o poder de

edificar e de vos dar a herança entre todos os santificados. 33

De

resto, não cobicei prata, ouro, ou vestes de ninguém: 34

vós mesmos sabeis que, às minhas precisões e às de meus companheiros,

proveram estas mãos. 35

Em tudo vos mostrei que é afadigando-nos

assim que devemos ajudar os fracos, tendo presentes as palavras do

Senhor Jesus, que disse: 'Há mais felicidade em dar que em receber'".

36Após estas palavras, ajoelhou-se, e orou com todos eles.

37Todos, então, prorromperam num choro convulsivo. E, lançando-

se ao pescoço de Paulo, beijavam-no, 38

veementemente aflitos, sobretudo pela palavra que dissera: que não mais haveriam de ver a

sua face. E acompanharam-no até ao navio."

Esse longo relato de despedida de Paulo, em alguns momentos, indica uma

revisão biográfica da vida e realizações do apóstolo que o tornam ainda mais digno de

respeito. Um indício marcante aqui, quase imperceptível (ver as considerações

teóricas de Ginzburg a esse respeito nas pp. 145-146) é o que está descrito nos vv.33-

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227

34. Paulo (ou o texto o faz) declar que nenhum de seus atos ou atividades visavam

"ouro ou prata", pois o sustento pessoal ele conseguiu com as próprias mãos.

É bastante provável que a advertência de Celso (ver p. 169) e Orígenes (ver p.

170) sobre magos terem interesse somente em dinheiro por meio de seus feitos era

uma informação sabida da audiência mediterrânica. Assim, o apóstolo estaria

absolvido dessas acusações.

(a.10) Paulo relata aos discípulos suas ações prodigiosas entre os gentios (21, 15-26)

"15

Depois desses dias, tendo-nos preparado, começamos a subir a Jerusalém.

16Acompanharam-nos alguns dos discípulos de Cesaréia,

e nos levaram à casa de certo Mnason, de Chipre, antigo discípulo,

com quem nos deveríamos hospedar. 17

Ao chegarmos a Jerusalém, receberam-nos os irmãos com alegria.

18No dia seguinte, Paulo foi

conosco à casa de Tiago, onde todos os anciãos se reuniram. 19

Depois de havê-los saudado, começou a expor minuciosamente o

que Deus fizera entre os gentios por seu ministério. 20

Eles, ouvindo-o, glorificavam a Deus. Mas depois disseram-lhe: "Tu vês, irmão,

quantos milhares de judeus há que abraçaram a fé, e todos são

zeladores da Lei! 21

Ora, foram informados, a teu respeito, que ensinas todos os judeus, que vivem no meio dos gentios, a

apostatarem de Moisés, dizendo-lhes que não circuncidem mais

seus filhos nem continuem a seguir suas tradições. 22

Que fazer? Certamente há de aglomerar-se a multidão, ao saberem que

chegaste. 23

Faze, pois, o que te vamos dizer. Estão aqui quatro

homens que têm a sua promessa a cumprir. 24

Leva-os contigo,

purifica-te com eles, e encarrega-te das despesas para que possam mandar raspar a cabeça. Assim todos saberão que nada existe do

que se propala a teu respeito, mas que andas firme, tu também

observante da Lei. 25

Quanto aos gentios que abraçaram a fé, já lhes escrevemos sobre nossas decisões: que se abstenham das carnes

imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e das uniões

ilegítimas". 26

Paulo, então, levou os homens consigo. No dia seguinte purificou-se com eles e entrou no Templo, comunicando o

prazo em que, terminados os dias da purificação, devia ser

oferecido o sacrifício na intenção de cada um deles."

. Confrontar com:

(i) visões sobre Hércules, p.150;

(ii) visões sobre Asclépio, pp. 152-155;

(iii) visões sobre Afrodite, pp. 165-166;

(iv) visões sobre Ísis, p. 166;

(v) o relato de Plínio acerca de "nações" que tinham entre seus homens aqueles

capazes de realizar feitos extraordinãrios, ver p. 170-171;

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(vi) igualmente, Jesus concede poder àqueles que o seguem para realizar tais feitos

extraordinários, ver p. 189.

(a.11) Paulo é picado por uma víbora e nada lhe acontece (28, 1-6)

"1Estando já a salvo, soubemos que a ilha se chamava Malta.

2Os

nativos trataram-nos com extraordinária humanidade, acolhendo a

todos nós junto a uma fogueira que tinham aceso. Isto, por causa da

chuva que caía e do frio. 3Tendo Paulo ajuntado uma braçada de

gravetos e atirando-os à fogueira, uma víbora, fugindo ao calor,

prendeu-se à sua mão. 4Quando os nativos viram o animal pendente

de sua mão, disseram uns aos outros: "Certamente este homem é

um assassino; pois acaba de escapar ao mar, mas a vingança divina não o deixa viver".

5Ele, porém, sacudindo o animal ao fogo, não

sofreu mal algum. 6Quanto a eles, esperavam que Paulo viesse a

inchar, ou caísse morto de repente. Mas, depois de muito esperar, ao verem que não lhe acontecia nada de anormal, mudando de

parecer puseram-se a dizer que ele era um deus."

. Confrontar com:

(i) Plínio e o relato daqueles que nada sofrem diante de picadas de animais, ver. 189;

(ii) Sêneca, quando informa que a magia tem a capacidade de alterar elementos

naturais, ver p. 171;

(b) Curas e ressurreição dos mortos:

(b.1) Cura de um aleijado (14, 8-10)

"8Um homem aleijado dos pés vivia lá" sentado, coxo desde o seio

de sua mãe, sem jamais ter andado. 9Ele ouvira Paulo falar. E Paulo,

fixando nele os olhos e vendo que tinha fé para ser curado, 10

disse-

lhe com voz forte: "Levanta-te direito sobre teus pés!""

. Confrontar com:

(i) Vespasiano, p. 158 e Jesus, p. 186;

(b.2) Curas por meio das roupas de Paulo (19, 11-12)

"11

Entretanto, pelas mãos de Paulo, Deus operava milagres não

comuns. 12

Bastava, por exemplo, que sobre os enfermos se

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229

aplicassem lenços e aventais que houvessem tocado seu corpo:

afastavam- se deles as doenças, e os espíritos maus saíam."

. Confrontar com:

(i) curas à distância: uma inscrição grega que aponta para a cura de uma menina com

hidropsia à distância, pois é a mãe quem está no santuário de Asclépio, p. 153-154;

(ii) um interessante episódio é narrado em Marcos 5. Ao passar por uma cidade, em

meio à multidão, uma mulher que sofria de fluxo contínuo de sangue toca a roupa de

Jesus e é curada.

(b.3) Paulo ressuscita um menino (20, 7-12)

"7No primeiro dia da semana, estando nós reunidos para a fração do

pão, Paulo entretinha-se com eles. Estando para partir no dia

seguinte, prolongou suas palavras até a meia- noite. 8Havia muitas

lamparinas na sala superior, onde estávamos reunidos. 9Um

adolescente, chamado Eutico, que estava sentado no peitoril da

janela, adormeceu profundamente enquanto Paulo alongava a sua exposição. Vencido pelo sono, caiu do terceiro andar abaixo.

Quando foram levantá-lo, estava morto. 10

Paulo desceu, debruçou-

se sobre ele, tomou-o nos braços e disse: "Não vos perturbeis: a sua

alma está nele!" "Depois subiu novamente, partiu o pão e comeu; e discorreu por muito tempo ainda, até o amanhecer. Então partiu. 12

Quanto ao rapaz, reconduziram-no vivo, o que os reconfortou sem

medida."

. Confrontar com:

(i) ressurreição de mortos: Hércules, p. 151; Asclépio, p. 155; Jesus, p. 187;

(b.4) Paulo trabalha em nome da pregação sobre a ressurreição de mortos (24, 10-21)

"10

Então, tendo o governador feito sinal para que falasse, Paulo respondeu: "Ciente de que há muitos anos és o juiz desta nação, de

bom ânimo passo a defender a minha causa. "Tu podes assegurar-te do seguinte: não há mais de doze dias que subi a Jerusalém em

peregrinação. 12

Ora, nem no Templo, nem nas sinagogas, nem pela

cidade, viu-me alguém discutindo com outrem ou provocando motins entre a multidão.

13Eles não podem provar-te aquilo de que

agora me acusam. 14

Isto, porém, confesso-te: é segundo o Caminho,

a que chamam de seita, que eu sirvo ao Deus de meus pais, crendo

em tudo o que está conforme a Lei e se encontra escrito nos Profetas.

15E tenho em Deus a esperança, que também eles

acalentam, de que há de acontecer a ressurreição, tanto de justos

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230

como de injustos. 16

Eis porque também eu me esforço por manter

uma consciência irrepreensível constantemente, diante de Deus e

diante dos homens. 17

Depois de muitos anos, vim trazer esmolas

para o meu povo" e também apresentar ofertas. 18

Foi ao fazê-las que me encontraram no Templo, já purificado, sem ajuntamento e sem

tumulto. 19

Alguns judeus da Ásia, porém. . . são eles que deveriam

apresentar-se a ti e acusar-me, caso tivessem algo contra mim. 20

Ou digam estes, que aqui estão, se encontraram algum delito em mim

ao comparecer eu perante o Sinédrio. 21

A não ser que se trate desta

única palavra que bradei, de pé, no meio deles: 'É por causa da ressurreição dos mortos que estou sendo julgado, hoje, diante de

vós!'"."

Em diversos momentos menciona a morte de Jesus e sua ressurreição efetuada

por Deus. Aqui, mais uma vez, o tema da ressurreição é posto como central na

atividade do apóstolo. As referências a essa temática foram mencionadas no item

anterior, b.3;

(b.5) Paulo cura febre e disenteria de Públio e as doenças de todos os habitantes da

ilha de Malta (28, 7-10)

"7Nas vizinhanças daquele local estava a propriedade do Primeiro

da ilha, chamado Públio. Este nos recebeu e nos hospedou

benignamente durante três dias. 8Acontece que o pai de Públio

estava acamado, ardendo em febre e com disenteria. Paulo foi vê-lo,

orou e impôs-lhe as mãos, e o curou. 9Diante disso, também os

outros doentes que se encontravam na ilha vieram ter com Paulo e

foram curados. 10

Cumularam-nos, então, com muitos sinais de estima; e, quando estávamos para partir, levaram a bordo tudo o que

nos era necessário."

. Confrontar com:

(i) a preocupação em se ter boa saúde é atestada no PGM, p. 172;

(ii) amuletos também são usados na cura da febre, p. 172;

(iii) Jesus também curou a febre, p. 187;

(c) Daimŏnĕs e Exorcismos:

(c.1) Paulo tem uma visão do Espírito (16, 6-10; 18, 1-11; 22, 6-21; 23, 1-11)

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231

"6Atravessaram depois a Frigia e a região da Galácia, impedidos

que foram pelo Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia. 7Chegando aos confins da Mísia, tentaram penetrar na Bitínia, mas

o Espírito de Jesus não lho permitiu. 8Atravessaram então a Mísia e

desceram a Trôade. 9Ora, durante a noite, sobreveio a Paulo uma

visão. Um macedônio, de pé diante dele, fazia-lhe este pedido:

"Vem para a Macedônia, e ajuda-nos!" 10

Logo após a visão, procuramos partir para a Macedônia, persuadidos de que Deus nos

chamava para anunciar-lhes a Boa Nova." (Atos 16, 6-10).

"

1Depois disso, Paulo afastou-se de Atenas e foi para Corinto.

2Lá

encontrou um judeu chamado Áquila, natural do Ponto, recém-

chegado da Itália com Priscila, " sua mulher, em vista de Cláudio

ter decretado que todos os judeus se afastassem de Roma. Foi, pois, ter com eles.

3Como exercesse a mesma atividade artesanal, ficou

ali hospedado e trabalhando: eram, de profissão, fabricantes de

tendas. 4Cada sábado, ele discorria na sinagoga, esforçando- se por

persuadir a judeus e a gregos. 5Quando, porém, Silas e Timóteo

chegaram da Macedônia, Paulo começou a dedicar-se inteiramente

à Palavra, atestando aos judeus que Jesus é o Cristo. 6Contudo,

diante da oposição e das blasfêmias deles, Paulo sacudiu suas vestes

e disse-lhes: "Vosso sangue recaia sobre a vossa cabeça! Quanto a

mim, estou puro, e de agora em diante vou dirigir-me aos gentios". 7Então, retirando-se dali, dirigiu-se à casa de um certo Justo,

adorador de Deus, cuja casa era contígua à sinagoga. 8Mas Crispo, o

chefe da sinagoga, creu no Senhor com toda a sua casa. Também

muitos dos coríntios, ouvindo a Paulo, abraçavam a fé e eram batizados. "

9Uma noite, disse o Senhor a Paulo, em visão: "Não

temas. Continua a falar e não te cales. 10

Eu estou contigo, e

ninguém porá a mão sobre ti para fazer-te mal, pois tenho um povo

numeroso nesta cidade". 11

Assim, permaneceu ali um ano e seis meses, ensinando entre eles a palavra de Deus." (Atos 18, 1-11).

"6Ora, aconteceu que, estando eu a caminho e aproximando-me de

Damasco, de repente, por volta do meio-dia, uma grande luz vinda

do céu brilhou ao redor de mim. 7Caí ao chão e ouvi uma voz que

me dizia: 'Saul, Saul, por que me persegues?' 8Respondi: 'Quem és,

Senhor?' Ele me disse: 'Eu sou Jesus, o Nazareu, a quem tu estás

perseguindo'. 9Os que estavam comigo viram a luz, mas não

escutaram a voz de quem falava comigo. 10

Eu prossegui: 'Que farei,

Senhor?' E o Senhor me disse: 'Levanta-te e entra em Damasco: lá te dirão tudo o que te é ordenado fazer'.

11Como eu não enxergasse

mais por causa do fulgor daquela luz, cheguei a Damasco levado

pela mão dos que estavam comigo. 12

Certo Ananias, homem piedoso segundo a Lei, de quem davam bom testemunho todos os

judeus da cidade, 13

veio ter comigo. De pé, diante de mim, disse-

me: 'Saul, meu irmão, recobra a vista'. E eu, na mesma hora, pude vê-lo.

14Ele disse então: 'O Deus de nossos pais te predestinou para

conheceres a sua vontade, veres o Justo' e ouvires a voz saída de

sua boca. 15

Pois tu hás de ser sua testemunha, diante de todos os

homens, do que viste e ouviste. 16

E agora, que estás esperando? Recebe o batismo e lava- te dos teus pecados, invocando o seu

nome!' 17

Depois, tendo eu voltado a Jerusalém, e orando no

Templo, sucedeu- me entrar em êxtase. 18

E vi o Senhor, que me

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232

dizia: 'Apressa-te, sai logo de Jerusalém, porque não acolherão o

teu testemunho a meu respeito'. 19

Retruquei então: 'Mas, Senhor,

eles sabem que era eu quem andava prendendo e vergastando, de

sinagoga em sinagoga, os que criam em ti. 20

E quando derramavam o sangue de Estêvão, tua testemunha, eu próprio estava presente,

apoiando aqueles que o matavam, e mesmo guardando suas vestes'. 21

Ele, contudo, me disse: 'Vai, porque é para os gentios, para longe, que eu quero enviar-te'"." (Atos 22, 6-21)

"1Fixando os olhos no Sinédrio, Paulo assim falou: "Irmãos, é

inteiramente em boa consciência que eu me tenho conduzido

perante Deus, até o dia de hoje". 2Foi quando o sumo sacerdote

Ananias mandou a seus assistentes que lhe batessem na boca. 3Então lhe disse Paulo: "Deus vai ferir-te a ti, parede caiada! Tu te

sentas para julgar-me segundo a Lei, e violando a Lei ordenas que

me batam?" 4Os que estavam a seu lado observaram-lhe: "Tu

insultas o sumo sacerdote de Deus?" 5Paulo respondeu: "Não sabia,

irmãos, que este é o sumo sacerdote. Pois está escrito: Não

amaldiçoarás o chefe do teu povo". 6A seguir, tendo conhecimento

de que uma parte dos presentes eram saduceus e a outra parte eram fariseus, exclamou no Sinédrio: "Irmãos, eu sou fariseu, e filho de

fariseus. É por nossa esperança, a ressurreição dos mortos, que

estou sendo julgado". 7Apenas disse isto, formou-se um conflito

entre fariseus e saduceus, e a assembléia se dividiu. 8Pois os

saduceus dizem que não há ressurreição, nem anjo nem espírito,

enquanto os fariseus sustentam uma e outra coisa. 9Levantou-se um

vozerio enorme. Então, alguns escribas do partido dos fariseus puseram-se a protestar, dizendo: "Nenhum mal encontramos neste

homem. E se lhe tivesse falado um espírito ou um anjo?" 10

Crescia

em proporções o conflito. Receando o tribuno que Paulo viesse a

ser estraçalhado por eles, ordenou que o destacamento descesse e o subtraísse ao meio deles, reconduzindo-o à fortaleza.

11Na noite

seguinte, aproximou-se dele o Senhor e lhe disse: "Tem confiança!

Assim como deste testemunho de mim em Jerusalém, é preciso que testemunhes também em Roma!"." (Atos 23, 1-11)

. Confrontar com:

(i) em sonho ou presencialmente, outras pessoas viam a divindade ou o procedimento

da cura: Asclépio, p. 153-154;

(ii) daimŏnĕs podem adquirir forma carnal, p. 161;

(iii) o Cosmo está repleto de daimŏnĕs, pp. 161-162;

(iv) daimŏnĕs são intermediários ente os homens e os deuses, p. 162;

(v) as pessoas podem conseguir daimŏnĕs assistentes, pp. 162-163;

(vi) é possível encontrar-se com o daimŏn de si mesmo, p. 164;

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233

(c.2) O Espírito abre o entendimento das mulheres na pregação de Paulo (16, 11-15)

"11

Tendo embarcado em Trôade, seguimos em linha reta para

Samotrácia. De lá, no dia seguinte, para Neápolis, 12

de onde partimos para Filipos, cidade principal daquela região da

Macedônia, e também colônia romana. " Passamos nesta cidade

alguns dias. 13

Quando chegou o sábado, saímos fora da porta, a um lugar junto ao rio, onde parecia- nos haver oração. Sentados,

começamos a falar às mulheres que se tinham reunido. 14

Uma delas,

chamada Lídia, negociante de púrpura da cidade de Tiatira, e

adoradora de Deus, escutava-nos. O Senhor lhe abrira o coração, para que ela atendesse ao que Paulo dizia.

15Tendo sido batizada,

ela e os de sua casa, fez-nos este pedido: "Se me considerais fiel ao

Senhor, vinde hospedar-vos em minha casa". E forçou-nos a aceitar."

. Confrontar com:

(i) o Cosmo está repleto de daimŏnĕs, pp. 161-162;

(ii) daimŏnĕs são intermediários ente os homens e os deuses, p. 162;

(iii) as pessoas podem conseguir daimŏnĕs assistentes, pp. 162-163;

(c.3) Paulo exorciza o espírito de uma escrava (16, 16-24)

"16

Certo dia, quando íamos para a oração, veio ao nosso encontro

uma jovem escrava que tinha um espírito de adivinhação; ela obtinha para seus amos muito lucro, por seus oráculos.

17Começou a

seguir-nos, a Paulo e a nós, clamando: "Estes homens são servos do

Deus altíssimo, que vos anunciam o caminho da salvação". 18

Isto

ela o fez por vários dias. Fatigado com aquilo, Paulo voltou-se para o espírito, dizendo: "Em nome de Jesus Cristo, eu te ordeno que te

retires dela!" E na mesma hora saiu. 19

Vendo seus amos que findara

a esperança de seus lucros, agarraram Paulo e Silas e os arrastaram à agora, à presença dos magistrados.

20Apresentando-os aos

estrategos, disseram: "Estes homens estão perturbando nossa

cidade. São judeus, 21

e propagam costumes que não nos é lícito acolher nem praticar, porque somos romanos".

22Amotinando-se a

multidão contra eles, os estrategos, depois de mandarem arrancar-

lhes as vestes, ordenaram que fossem batidos com varas. 23

Depois

de lhes infligirem muitos golpes, lançaram-nos à prisão, recomendando ao carcereiro que os vigiasse com cuidado. 24

Recebida a ordem, este os lançou à parte mais interna da prisão e

prendeu-lhes os pés no cepo."

. Confrontar com:

(i) daimŏnĕs podem ser nocivos, p. 164;

(ii) deve-se evitar ser possuído por um daimŏn, p. 165;

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(iii) Jesus também expulsa daimŏnes, p. 188;

(c.4) Convertidos e batizados por Paulo recebem o Espírito e falam em línguas (19, 1-

7)

"1Enquanto Apolo estava em Corinto, Paulo, depois de ter

atravessado o planalto, chegou a Éfeso. Ali encontrou alguns

discípulos 2e perguntou-lhes "Recebestes o Espírito Santo quando

abraçastes a fé?" Eles responderam: "Mas nem ouvimos dizer que haja um Espírito Santo".

3E ele: "Em que batismo fostes então

batizados?" E responderam: "No batismo de João". 4Paulo então

explicou: "João batizou com um batismo de arrependimento,

dizendo ao povo que cresse naquele que viria após ele, a saber, em Jesus".

5Tendo ouvido isto, receberam o batismo em nome do

Senhor Jesus. 6E quando Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo

veio sobre eles: puseram-se então a falar em línguas e a profetizar. 7Eram, ao todo, cerca de doze homens."

. Confrontar com:

(i) daimŏnĕs podem adquirir forma carnal, p. 161;

(ii) o Cosmo está repleto de daimŏnĕs, pp. 161-162;

(iii) daimŏnĕs são intermediários ente os homens e os deuses, p. 162;

(iv) as pessoas podem conseguir daimŏnĕs assistentes, pp. 162-163;

(v) é possível encontrar-se com o daimŏn de si mesmo, p. 164;

(d) Domínio da natureza e interação com a mesma

(d.1) Paulo controla a situação diante de uma tempestade (27, 1-44)

"1Ao ser decidido o nosso embarque para a Itália, entregaram Paulo

e alguns outros presos a um centurião chamado Júlio, da coorte Augusta.

2Subimos a bordo de um navio de Adramítio que ia partir

para as costas da Ásia, e zarpamos. Estava conosco Aristarco, um

macedônio de Tessalônica. 3No dia seguinte, aportamos em

Sidônia. Tratando Paulo com humanidade, Júlio permitiu-lhe ver os amigos e receber deles assistência.

4Partindo dali, navegamos rente

à ilha de Chipre, por serem contrários os ventos. 5A seguir, tendo

atravessado o mar ao longo da Cilícia e da Panfília, desembarcamos em Mira, na Lícia, ao fim de quinze dias.

6Ali encontrou o centurião

um navio alexandrino de partida para a Itália, e para ele nos

transferiu. 7Durante vários dias navegamos lentamente, chegando

com dificuldade à altura de Cnido. O vento, porém, não nos

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permitiu aportar. Velejamos rente a Creta, junto ao cabo Salmone 8e, costeando-a com dificuldade, chegamos a um lugar chamado

Bons Portos, perto do qual está a cidade de Lasaia. 9Tendo

transcorrido muito tempo, a navegação já se tornava perigosa, também porque já tinha passado o Jejum. Paulo, então, tentou

adverti-los: 10

"Amigos, vejo que a viagem está em vias de

consumar-se com muito dano e prejuízo, não só da carga e do navio, mas também de nossas vidas".

11O centurião, porém, deu

mais crédito ao piloto e ao armador do que ao que Paulo dizia. 12

O

porto, aliás, não era próprio para se invernar. A maioria, pois, foi de opinião que se devia zarpar dali, para ver se poderiam chegar a

Fênix. Este é um porto de Creta, ao abrigo dos ventos sudoeste e

noroeste. Ali poderiam passar o inverno. 13

Tendo soprado

brandamente o vento sul, pensaram ter alcançado o que pretendiam: levantaram âncora e puseram-se a costear Creta mais de perto. 14

Não muito depois, desencadeou-se do lado da ilha um vento em

turbilhão, chamado Euroaquilão. 15

O navio foi arrastado violentamente, incapaz de resistir ao vento: deixamo-nos, então,

derivar. 16

Passando rente a uma ilhota, chamada Cauda, com

dificuldade conseguimos recolher o escaler. 17

Após tê-lo içado, os tripulantes usaram de recursos de emergência, cingindo o navio

com cabos. Contudo, temendo encalhar na Sirte, soltaram a âncora

flutuante, e assim deixaram-se derivar. 18

No dia seguinte, como

fôssemos furiosamente batidos pela tempestade, começaram a alijar a carga.

19No terceiro dia, com as próprias mãos, lançaram ao mar

até os apetrechos do navio. 20

Nem sol nem estrelas haviam

aparecido por vários dias, e a tempestade mantinha sua violência não pequena: afinal, dissipava-se toda a esperança de nos

salvarmos. 21

Havia muito tempo não tomávamos alimento. Então

Paulo, de pé, no meio deles, assim falou: "Amigos, teria sido

melhor ter-me escutado e não sair de Creta, para sermos poupados deste perigo e prejuízo.

22Apesar de tudo, porém, exorto-vos a que

tenhais ânimo: não haverá perda de vida alguma dentre vós, a não

ser a perda do navio. 23

Pois esta noite apareceu- me um anjo do Deus ao qual pertenço e a quem adoro,

24o qual me disse: 'Não

temas, Paulo. Tu deves comparecer perante César, e Deus te

concede a vida de todos os que navegam contigo'. 25

Por isso, reanimai-vos, amigos! Confio em Deus que as coisas ocorrerão

segundo me foi dito. 26

É preciso, porém, que sejamos arremessados

a uma ilha". 27

Quando chegou a décima quarta noite, continuando

nós a ser batidos de um lado para outro no Adriático, pela meia-noite os marinheiros perceberam que se aproximava alguma terra. 28

Lançaram então a sonda e deu vinte braças; avançando mais um

pouco, lançaram novamente a sonda e deu quinze braças. 29

Receosos de que fôssemos dar em escolhos, soltaram da popa

quatro âncoras, anelando por que rompesse o dia. 30

Entretanto, os

marinheiros tentaram fugir do navio: desceram, pois, o escaler ao mar, a pretexto de irem largar as âncoras da proa.

31Mas Paulo disse

ao centurião e aos soldados: "Se eles não permanecerem a bordo,

não podereis salvar- vos!" 32

Então os soldados cortaram as cordas

do escaler e deixaram-no cair. 33

À espera de que o dia raiasse, Paulo insistia com todos para que tomassem alimento. E dizia: "Hoje é o

décimo quarto dia em que, na expectativa, ficais em jejum, sem

nada comer. 34

Por isso, peço que vos alimenteis, pois é necessário

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para a vossa saúde. Ora, não se perderá um só cabelo da cabeça de

nenhum de vós!" 35

Tendo dito isto, tomou o pão, deu graças a Deus

diante de todos, partiu-o e pôs-se a comer. 36

Então, reanimando-se

todos, também eles tomaram alimento. 37

Éramos no navio, ao todo, duzentas e setenta e seis pessoas.

38Tendo-se alimentado fartamente,

puseram-se a aliviar o navio, atirando o trigo ao mar. 39

Quando

amanheceu, os tripulantes não reconheceram a terra. Divisando, porém, uma enseada com uma praia, consultaram entre si, a ver se

poderiam impelir o navio para lá. 40

Desprenderam então as âncoras,

entregando o navio ao movimento do mar. Ao mesmo tempo soltaram as amarras dos lemes e, içando ao vento a vela da proa,

dirigiram o navio para a praia. 41

Mas, tendo-se embatido num

banco, entre duas correntes, o navio encalhou. A proa, encravada,

ficou imóvel, enquanto a popa começou a desconjuntar-se pela violência das ondas.

42Veio, então, aos soldados o pensamento de

matar os prisioneiros, para evitar que algum deles, a nado,

escapasse. 43

Mas o centurião, querendo preservar a Paulo, opôs-se a este desígnio. E mandou, aos que sabiam nadar, que saltassem

primeiro e alcançassem terra. 44

Quanto aos outros, que os

seguissem agarrados a pranchas, ou sobre quaisquer destroços do

navio. Foi assim que todos chegaram, sãos e salvos, em terra."

. Confrontar com:

(i) Afrodite salvou marinheiros de um naufrágio em meio à tempestade, pp. 165-166;

(ii) Isís domina os mares, p.166;

(iii) em círculos pitagóricos ou neo-pitagóricos muitos têm domínio sobre as águas e

os ventos, p. 167;

(iv) Julio César também não teme os mares, p. 168;

(v) Andar sobre as águas é um feito poderoso de alguns homens divinos, p. 168;

(vi) Jesus controla a tempestade e anda sobre as águas, p. 188-189.

Dominar e controlar a natureza são atributos especialmente notórios para

homens divinos. A subversão da ordem natural se constitui em algo sempre

surpreendente nas ações de quem pratica a magia. Um tema de grande relevância

nesse contexto é a relação com as navegações, especialmente em culturas fronteriças

ao mar como as mediterrânicas. Viajar pelos mares e oceanos foram temas centrais

nas aventuras de Ulisses e outros heróis gregos também na Odisséia.

Para o caso de Atos, somente "Paulo e seus companheiros encararam o

desafio, aventura e o destino viajando através dos mares" (ALEXANDER, 2007:81).

Tendo em vista a variedade de histórias conhecidas pela audiência mediterrânica, o(s)

autor(es) de Atos reservou esse último elemento fantástico para a descrição de Paulo

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como homem divino. E esse episódio coincide com a última realização do homem

divino Paulo, pois seu destino era Roma. A metáfora é evidente: uma experiência

religiosa judaica, na fronteira do Império Romano, se desenvolve milagrosamente no

curso dos anos e chega à capital do Império. Coube a Paulo, agora plenamente

identificado com o modelo thĕiŏs anēr cumprir essa missão.

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Conclusão

O presente trabalho demonstrou que o modelo thĕiŏs anēr é um construto

moderno para agrupar e categorizar certas personagens antigas na Bacia

Mediterrânica que realizavam práticas mágicas e feitos poderosos. As experiências

místicas naquele contexto eram parte integrante e fundamental da cosmovisão cultural

e organização social daquelas sociedades. Portanto, a relevância desta tese se faz

patente em reconstruir tais experiências sociais e culturais.

Incluir os paleocristianismos nessa análise é romper barreiras e as borrar

fronteiras que se pretendem nítidas em abordagens sobre a história dos movimentos

cristãos antigos e modernos. É, fundamentalmente, perceber que não há porque

considerar os paleocristianismos como algo singular, incólume e estranho ao seu

ambiente social e cultural.

A perspectiva científica nesse estudo colabora em tornar as experiências

místicas paleocristãs próprias de seu tempo e espaço. Suas personagens,

completamente inseridas e interagindo com suas experiências cotidianas na Bacia

Mediterrânica. Reconstruir, pois as origens do movimento que se auto-denomina

singular e superior às outras experiências místicas é propor um caminho de diálogo e

respeito mútuo entre todas elas.

A proposta deste trabalho é fazer o caminho inverso do que se tem comumente

realizado no interior das experiências místicas atuais e em parte de estudos

acadêmicos sobre os cristianismos, qual seja, partir de uma "verdade" religiosa sujeita

a mais de dois mil anos de Tradição e buscar no seu universo de origem pontos de

contato que atestem seu caráter extraordinário.

A história não precisa ser percebida como uma ciência que discute grandes

temas, instituições ou relações sociais, políticas, econômicas e de poder a partir de

matrizes consolidadas, inertes. Antes, o domínio dessa ciência precisa estar atento ao

cotidiano, às experiências vividas por seus agentes sociais, pois é através dessas

experiências, expectativas e agência que todo o aparato institucional, político,

religioso, econômico ou das relações de poder se constituem.

Para usar um termo caro ao trabalho aqui concluído, a dinâmica (dýnamis) da

história, entendida como um processo, só se torna plausível se o cientista for capaz de

reconstruir o cotidiano dos agentes históricos. Nesse sentido, a documentação que

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239

toma o historiador em seu ofício precisa ser variada, de natureza pública ou privada,

anônima ou oficial, material ou textual. Uma história construída a partir de

documentos exclusivamente oriundos de apenas uma ou outra esfera do cotidiano

acaba por incorrer em conclusões danosas e parciais de uma realidade que não é

aquela pretendida, ou seja, do evento que se quer tratar, mas orientada por questões

do tempo presente do próprio cientista.

Talvez essa seja a razão da tamanha celeuma ou temor em se vincular estudos

de paleocristianismos e práticas mágicas. Para o Mediterrâneo Antigo, esses dois

aspectos estão indissociáveis do ponto de vista do cotidiano. Este trabalho também

não se pretende a última palavra em modelo teórico-metodológico ou detentor de uma

"verdade" contextual absoluta. Mas, certamente, se declara preocupado em atender a

essa demanda específica, conquanto saiba que também é uma abordagem limitada

pelas regras do jogo científico.

É orientado por essas questões que se constituiu o presente texto. As

experiências místicas paleocristãs, no particular, e a de culturas mediterrânicas, no

geral, demandavam muito mais do que retórica, textos sagrados ou instituições

consolidadas que respondessem as suas questões. Suas percepções de interação com

as forças cósmicas demandavam, sobretudo, provas concretas de que o divino se fazia

presente na história palpável.

Os cristianismos, após longa Tradição e consolidação como instituição que

detém o monopólio do discurso sobre o poder, conseqüentemente, tentou se afastar

das práticas que julgou danosas ou impassíveis de controle. As práticas mágicas

estão, precisamente, nesse contexto. Muito embora, elas foram gradativamente re-

significadas e tomaram outras formas.

Mesmo para aquilo em que se transformaram, hoje, as experiências cristãs, o

elemento mágico e as demonstrações de poder continuam a ser demandas por parte de

sua audiência. Mas, essas instituições consolidadas lograram algum êxito em

controlá-las. Ainda que temporariamente. Os diferentes catolicismos e

protestantismos (evoca-se aqui a Tradição Cristã, não as experiências religiosas como

um todo em suas múltiplas percepções que não essa cristã) racionalizaram

eficazmente suas práticas a ponto de não se perceberem mais como co-participes das

práticas mágicas.

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Para além das orações, símbolos de proteção ou caráter mágico que as

Escrituras carregam em si mesmos, violentas tensões no interior dessas formas de

cristianismos não foram poucos. A audiência, interessada em ter atendidas suas

expectativas cotidianas mediadas por atos de poder, continuadamente re-configura

suas demandas e as apresenta ao aparato religioso organizado de que faz parte.

O resultado, além das múltiplas variações quanto ao que seja a "ortodoxia" de

cada agente histórico, é verdadeiras explosões de cultos carismáticos observados ao

longo da história. Enganam-se quem acredita que esses cultos carismáticos transitam

nas esferas populares (pobres). A expectativa e demandas cotidianas podem ser

diferentes para ricos e pobres, mas elas existem e movem os crentes em busca de

solução.

No caso dos catolicismos, as renovações doutrinárias, como são chamadas, em

algumas expressões, buscam exatamente conjugar suas expectativas com as práticas

místicas de demonstração de poder. E esse poder não pode ser retórico, ele tem que

acontecer, aqui e agora. No caso dos protestantismos, em décadas mais antigas, os

pentecostalismos e, nos anos mais recentes, os neo-pentecostalismos, igualmente, são

expressões místicas que demandam provas, aqui e agora.

Esse sentido de experiência mística se aproxima um pouco mais daquele

observado nas culturas mediterrânicas. Não por acaso, estudiosos dos

paleocristianismos nomeiam tudo que não é "cristão" como pagão, supersticioso ou

práticas de magia negra (sim, com toda carga racializada que esse termo pode

abarcar). Pelo menos no Ocidente, os rótulos são tão pejorativos que, de imediato,

qualquer experiência mística que fuja dos cânones doutrinários dessas Tradições

Cristãs são rapidamente estigmatizados.

Essa não é uma apologia aos cultos carismáticos ou aos seus aderentes, mas

uma observação de que as experiências mágicas nunca deixaram de ser constituintes,

sequer, do Cristianismo, singular e com letra maiúscula. Cumpre, por conseguinte,

observar que os cristianismos carismáticos atuais formatam maneiras de atender às

demandas de sua audiência em termos da magia.

No bojo dessas breves considerações deve-se ter em conta que este não é um

trabalho que busca atualizar suas conclusões para o que se observa ao longo da

Tradição Cristã, mas pretende ser uma pequena contribuição para a atestação sempre

plural que os paleocristianismos conheceram desde suas origens.

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Se o presente texto, entretanto, atingir êxito em problematizar as noções de

preconceito quanto a outras experiências místicas, contestar a singularidade de um

"cristianismo" que nunca existiu e ser uma consistente demonstração de que práticas

mágicas, mito e religião nunca se dissociam, terá justificado seu esforço.

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Documentação e Bibliografia

Documentação

ARISTÓTELES. (1934). Aristotle in 23 Volumes. Traduzido por H. Rackham.

Cambridge, MA, Harvard University Press, London: William Heinemann Ltd..

BÍBLIA HEBRAICA STTUGARTENSIA – BHS – Textum Masoreticum. 4ª Ed.

Revisada. Stuttgart: Deutsche Biblegellscaft, 1967/77.

Bíblia Sagrada. Versão de João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada, 2ª

Edição. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. (ARA)

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