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    ILUMINADA PELO SOL, REFLETIDA PELA LUA: A linguagem do amor das

    heronas de Romeu e Julieta e de Bodas de Sangue

    Daniela Kern (Doutoranda em Letras/ PUCRS)

    Para traar uma comparao entre o amor de Julieta, talvez a mais famosa

    mulher apaixonada concebida por Shakespeare, a herona de Romeu e Julieta, e

    o da Noiva, personagem criada por Federico Garcia Lorca na pea Bodas de

    Sangue, recorro a uma simbologia antiga, presente em inmeras tradies

    culturais e que ainda hoje se apresenta como uma possibilidade de compreenso

    psicolgica bastante frtil. Trata-se da simbologia do sol e da lua. Essa simbologia

    encontra-se de tal maneira naturalizada em nosso imaginrio que pode parecer

    desnecessrio explicit-la, mas para assegurar que aqui falamos todos a mesma

    lngua, consulto o Dicionrio de smbolosde Chevalier e Gheerbrant em busca dos

    aspectos desses smbolos que ora me interessam. Ao sol costumam-se associar

    as noes de atividade ( medida em que emite luz e cria sentido) e conscincia.

    tambm smbolo de imortalidade. lua, por outro lado, luminar ao qual o sol freqentemente comparado, de modo contrastante se relacionam as noes de

    passividade ( medida em que, ao invs de emitir luz prpria, ela reflete a luz do

    sol) e inconscincia. ainda, devido alternncia de suas fases, smbolo de

    periodicidade, de instabilidade, de morte e renovao. Assim, partindo dessa to

    velha simbologia que passo a apresentar agora, brevemente, a conscincia e a

    imortalidade enquanto aspectos solares do amor de Julieta por Romeu, e a

    inconscincia e a instabilidade enquanto aspectos lunares do amor da Noiva porLeonardo.

    As duas mortes de Julieta e o amor que no morre

    Julieta, uma Capuleto, ainda no completou quatorze anos quando conhece

    Romeu no baile de mscaras oferecido por seu pai na quinta cena do primeiro ato

    de Romeu e Julieta. Foi amor primeira vista. Julieta nunca havia amado antes, e

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    sem dificuldades reconhece o verdadeiro amor, quando o encontra pela primeira

    vez. Para ela o amor isso: um sentimento imediato, que de modo algum se

    oculta da prpria conscincia. Ou seja, claro como a luz do sol. tambm um

    sentimento intenso e definitivo, que no admite hesitaes: o seu amor por Romeu

    seu primeiro amor. Primeiro e nico. o que se percebe quando Julieta fala,

    aps ouvir da ama, ao final do baile, que Romeu um Montecchio, logo, um

    membro da famlia rival dos Capuleto: Meu nico amor nascido de meu nico

    dio! Cedo demais o vi, sem conhec-lo, e tarde demais o conheci! Prodigioso

    para mim o nascimento do amor, para que deva amar meu inimigo detestado!

    (SHAKESPEARE, 1993, p. 38). Julieta sente mesmo a necessidade, em outrosmomentos da pea, de reforar esse carter nico e constante de seu amor, como

    na cena do balco, a antolgica segunda cena do segundo ato, em que pede a

    Romeu que no a julgue mal, aps descobrir que ele ouviu, escondido, a

    confisso do amor que ela, julgando-se sozinha, acabara de fazer:

    gentil Romeu! Se tu amas, proclama-o sinceramente;ou se pensas que sou conquistvel facilmente demais,

    serei severa e esquiva, e direi no, para que tu mefaas a corte; mas, assim no sendo, nem por todo omundo. Em verdade, arrogante Montecchio, sou muitoapaixonvel e, por causa disto, poders pensar queminha conduta seja bem leviana; mas, acredita-me,gentil-homem, mostrar-me-ei mais fiel do que aquelasque tm mais destreza em dissimular. Devo confessarque deveria ter-me mostrado mais reservada, se notivesses surpreendido minha verdadeira paixoamorosa, antes que estivesse prevenida. Perdoa,portanto, e no atribuas a leviano amor esta fraqueza

    minha, que de tal modo revelou a escura noite!(SHAKESPEARE, 1993, p. 43-44).

    Na mesma cena, Romeu quer provar a fora de seu amor por Julieta

    jurando pela lua. A resposta dela bem conhecida: Oh! No jures pela lua, a

    inconstante lua que muda todos os meses em sua rbita circular, a fim de que teu

    amor no se mostre igualmente varivel (Shakespeare, 1993, p. 43). A constncia

    do amor, para Julieta, tambm equivale a infinitude. Escutemos essa sua outra

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    fala, ainda na mesma cena: Minha bondade to ilimitada quanto o mar, e to

    profundo como este o meu amor. Quanto mais te dou, mais tenho, pois ambos

    so infinitos (Shakespeare, 1993, p. 45). O amor para Julieta infinito. Infinito e,

    retomemos o velho smbolo, imortal como o prprio sol. Por amor Julieta enfrenta

    a morte duas vezes. Mesmo com medo da morte fsica, em ambas as vezes o que

    lhe d coragem para to rduo enfrentamento a crena na fora do amor que

    no morre, o tipo de amor, alis, que passaria a ser o real paradigma do amor

    romntico. O primeiro encontro de Julieta com a morte se d na terceira cena do

    quarto ato, quando, j de posse da droga sonfera que Frei Loureno lhe

    providenciara, aflige-se com a possibilidade de que o plano do religioso no dcerto:

    E se, quando for depositada na tumba, acordar antes dotempo marcado para que Romeu venha libertar-me? uma idia horrvel! No ficarei asfixiada, ento, dentroda catacumba, por cuja espantosa boca jamais entra arpuro e l morrerei sufocada, antes que Romeuchegue?... Ou, se viver, no possvel que o horrvelpensamento da morte e da noite, junto com o terror do

    lugar, um sepulcro, um receptculo antigo, ondedurante centenas de anos os ossos de todos os meusantepassados mortos foram enterrados; onde Teobaldocoberto de sangue, h pouco enterrado, jazapodrecendo na mortalha; onde, segundo dizem, emcertas horas da noite, se renem os espritos... Ai! Ai!No ser possvel que, ao despertar cedo demais entreodores infectos e gritos, como os da mandrgoraarrancada da terra, no enlouquea como todos osmortais que os escutam? Oh! ... Se despertar, perco arazo cercada por todos esses tremendos horrores?

    (SHAKESPEARE, 1993, p. 91)

    Apesar de todo o medo, Julieta acredita valer a pena correr o risco por

    Romeu e, prestes a beber a droga, conclui o monlogo com as seguintes palavras:

    J vou, Romeu! Bebo isto em tua inteno! (SHAKESPEARE, 1993, p. 91). O

    segundo encontro de Julieta com a morte o encontro derradeiro: na terceira cena

    do quinto ato, ela acorda e acha Romeu junto a sua tumba, morto. Romeu,

    pensando que Julieta estava de fato morta, se matara com veneno. Morreu o

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    amado, mas no morreu o amor. Logo, a deciso de Julieta manifestada em sua

    penltima fala na pea: Que isto? Uma taa apertada na mo de meu fiel amor?

    O veneno, estou vendo, foi a causa de seu prematuro fim!... Oh! Ingrato! Tudo

    bebeste sem deixar uma s gota amiga que me ajude a seguir-te? Beijarei teus

    lbios... Talvez haja neles um resto de veneno para fazer-me morrer como um

    reconfortante! (SHAKESPEARE, 1993, p. 105). Julieta morre, assim, no porque

    o amor acabou, mas para que ele continue. A morte aparece aqui como o modo

    de evitar a ruptura do amor. Romeu morreu, e Julieta, que no poderia amar mais

    ningum, pois seu amor solar nico e eterno, morre para segui-lo.

    A sobrevivncia da noiva e o amor que tem fim

    A Noiva tem quase vinte e dois anos e est prestes a se casar com o Noivo,

    mais jovem do que ela. O casamento est longe de entusiasm-la. Pelo contrrio.

    No primeiro quadro do segundo ato ela confessa que essas bodas podem ser algo

    triste demais (LORCA, 2004, p. 75). O primeiro quadro do primeiro ato, no

    entanto, j havia nos apontado uma tendncia da noiva de refletir o

    comportamento dos seus. Sua me notoriamente no amava o marido. A noiva,

    ao que tudo indicava, punha-se a seguir o mesmo caminho, ainda que no o

    admitisse de modo algum. Tanto que, diante da pergunta da criada, que queria

    saber se amava o Noivo, a Noiva responde que sim, que amava. Essa afirmao

    soar, em breve, como tentativa de ocultamento do amor que a Noiva sente por

    Leonardo dos Flix. A Noiva, aos quinze anos, fora noiva de Leonardo, que

    pertencia famlia do responsvel pela morte do irmo do Noivo. O noivado durou

    trs anos, e h pelo menos dois, Leonardo casou-se com uma prima da Noiva, ecom ela teve um filho. No dia do casamento, no primeiro quadro do segundo ato,

    Leonardo a procura e se declara, diz que o que sente por ela continua a arder. A

    noiva se recusa a admitir de maneira clara que por ele sente o mesmo, e

    responde: No posso ouvir voc. No posso ouvir sua voz. como se eu

    bebesse uma garrafa de anis e dormisse numa colcha de rosas. E me arrasta, e

    sei que me afogo, mas vou atrs (LORCA, 2004, p. 82). A noiva tambm no

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    admite revelar ao Noivo que no o ama, e decide, pelo contrrio, a fim de evitar a

    tentao representada por Leonardo, apressar as bodas, dizendo ao Noivo o

    seguinte: Estou ansiosa para ser sua mulher e ficar sozinha com voc, e no

    ouvir outra voz alm da sua (Lorca, 2004, p. 88).No segundo quadro do segundo

    ato, ficamos sabendo que a Noiva e Leonardo fugiram juntos, a cavalo, atravs do

    relato da mulher de Leonardo. Mesmo depois da fuga, a Noiva hesita em levar

    adiante seu amor pelo antigo noivo. No primeiro quadro do terceiro ato ela quer

    que Leonardo volte, e que a deixe seguir sozinha; se no quiser mat-la, que ao

    menos lhe d uma arma. Ele diz que h de lev-la consigo, a Noiva responde que

    ento ser a fora, e Leonardo lembra que ela fugiu porque quis. s depois demais esse momento de hesitao (o rompimento do noivado com Leonardo, no

    passado, j havia sido a primeira tentativa de resistncia, ainda que

    aparentemente a iniciativa tenha partido dele) que a Noiva, enfim, se declara: Te

    amo! Te amo! Afasta! Que se matar-te eu pudera te poria uma mortalha rematada

    de violetas. Ai, que lamento, que fogo me sobe pela cabea! (LORCA, 2004, p.

    127). Mas aqui temos de fato um amor lunar: a Noiva no ama Leonardo porque

    quer ou porque apaixonvel, mas sim porque no pode evitar am-lo. Ou seja,

    seu amor reflexo e conseqncia da presena do amado, algo que no sobe

    fcil ao plano da conscincia, e algo que contraria seu desejo racional, sua nsia

    de autocontrole. O que explica, alis, os termos de suas declaraes de amor a

    Leonardo, declaraes como esta, tambm do primeiro quadro do terceiro ato:

    Oh desatino! No quero contigo cama nem ceia, e o diano tem minuto que estar contigo no queira, porqueme arrastas e vou, e se me dizes que venha eu te sigo

    pelos ares como uma folha de erva. L deixei umhomem rude e toda sua descendncia no meio dasnossas bodas coa coroa na cabea. Para ti ser ocastigo e no quero que assim seja. Deixa-me s! Fogetu! Pois no tens quem te defenda (LORCA, 2004, p.128).

    No final desse quadro, abraados, a Noiva e Leonardo garantem que

    apenas a morte h de separ-los. E, realmente, no quadro seguinte, o ltimo, a

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    morte de Leonardo os separa. O amor lunar da Noiva, at aqui em boa parte

    inconsciente e caracteristicamente inconstante, pautado pela hesitao, revela-se

    tambm finito, mortal. A morte de Leonardo representa, para a Noiva, a morte do

    amor. A ruptura aqui real. Se a Noiva amava Leonardo, entendia esse amor

    como causado pela presena dele, como alheio sua vontade. E no quadro final,

    quando se dirige sogra, pedindo a prpria morte e jurando a prpria virgindade

    imaculada, a Noiva reafirma que abandonou o Noivo sem o desejar, foi arrastada,

    foi impelida pelo outro, foi algo inevitvel, nem a prpria sogra, em semelhante

    situao, teria agido diferente:

    Porque eu fui com o outro, eu fui! Voc tambm teriaido. Eu era uma mulher abrasada, cheia de chagas pordentro e por fora, e seu filho era um pouquinho de guade quem eu esperava filhos, terra, sade; mas o outroera um rio escuro, cheio de ramos, que me trazia orumor de seus juncos e seu cantar entre dentes. E eucorria com seu filho, que era como um menino de guafria, e o outro me mandava centenas de pssaros queme impediam de andar e que derramavam geada nasminhas feridas de pobre mulher consumida, de moa

    acariciada, pelo fogo. Eu no queria, est ouvindo? Euno queria. Seu filho era meu fim e eu no o enganei,mas o brao do outro me arrastou como a mar, como acabeada de um mulo, e teria me arrastado sempre,sempre, mesmo que eu fosse velha e todos os filhos deseu filho me puxassem pelos cabelos! (LORCA, 2004,p. 141).

    Agora que Leonardo morreu, ele no a arrasta mais. A Noiva enfim est

    livre, livre de ter outra vez de reagir amorosamente ao amor alheio, livre de ter de

    exercitar a aparente passividade sentimental. A Noiva, enfim, est livre do amor.

    Referncias:

    CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de smbolos: mitos, sonhos,

    costumes, gestos, formas, figuras, cores, nmeros. 13. ed. Rio de Janeiro: Jos

    Olympio, 1999.

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    LORCA, Federico Garca. Bodas de sangue. Tragdia em trs atos e sete

    quadros. Trad. Rubia Prates Goldoni. So Paulo: Ed. Peixoto Neto, 2004.

    SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. In: _____. Tragdias. Trad. F. Carlos

    de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. So Paulo: Nova Cultural; Crculo

    do Livro, 1993. p. 7-109.