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7/25/2019 Daniela Kern
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ILUMINADA PELO SOL, REFLETIDA PELA LUA: A linguagem do amor das
heronas de Romeu e Julieta e de Bodas de Sangue
Daniela Kern (Doutoranda em Letras/ PUCRS)
Para traar uma comparao entre o amor de Julieta, talvez a mais famosa
mulher apaixonada concebida por Shakespeare, a herona de Romeu e Julieta, e
o da Noiva, personagem criada por Federico Garcia Lorca na pea Bodas de
Sangue, recorro a uma simbologia antiga, presente em inmeras tradies
culturais e que ainda hoje se apresenta como uma possibilidade de compreenso
psicolgica bastante frtil. Trata-se da simbologia do sol e da lua. Essa simbologia
encontra-se de tal maneira naturalizada em nosso imaginrio que pode parecer
desnecessrio explicit-la, mas para assegurar que aqui falamos todos a mesma
lngua, consulto o Dicionrio de smbolosde Chevalier e Gheerbrant em busca dos
aspectos desses smbolos que ora me interessam. Ao sol costumam-se associar
as noes de atividade ( medida em que emite luz e cria sentido) e conscincia.
tambm smbolo de imortalidade. lua, por outro lado, luminar ao qual o sol freqentemente comparado, de modo contrastante se relacionam as noes de
passividade ( medida em que, ao invs de emitir luz prpria, ela reflete a luz do
sol) e inconscincia. ainda, devido alternncia de suas fases, smbolo de
periodicidade, de instabilidade, de morte e renovao. Assim, partindo dessa to
velha simbologia que passo a apresentar agora, brevemente, a conscincia e a
imortalidade enquanto aspectos solares do amor de Julieta por Romeu, e a
inconscincia e a instabilidade enquanto aspectos lunares do amor da Noiva porLeonardo.
As duas mortes de Julieta e o amor que no morre
Julieta, uma Capuleto, ainda no completou quatorze anos quando conhece
Romeu no baile de mscaras oferecido por seu pai na quinta cena do primeiro ato
de Romeu e Julieta. Foi amor primeira vista. Julieta nunca havia amado antes, e
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sem dificuldades reconhece o verdadeiro amor, quando o encontra pela primeira
vez. Para ela o amor isso: um sentimento imediato, que de modo algum se
oculta da prpria conscincia. Ou seja, claro como a luz do sol. tambm um
sentimento intenso e definitivo, que no admite hesitaes: o seu amor por Romeu
seu primeiro amor. Primeiro e nico. o que se percebe quando Julieta fala,
aps ouvir da ama, ao final do baile, que Romeu um Montecchio, logo, um
membro da famlia rival dos Capuleto: Meu nico amor nascido de meu nico
dio! Cedo demais o vi, sem conhec-lo, e tarde demais o conheci! Prodigioso
para mim o nascimento do amor, para que deva amar meu inimigo detestado!
(SHAKESPEARE, 1993, p. 38). Julieta sente mesmo a necessidade, em outrosmomentos da pea, de reforar esse carter nico e constante de seu amor, como
na cena do balco, a antolgica segunda cena do segundo ato, em que pede a
Romeu que no a julgue mal, aps descobrir que ele ouviu, escondido, a
confisso do amor que ela, julgando-se sozinha, acabara de fazer:
gentil Romeu! Se tu amas, proclama-o sinceramente;ou se pensas que sou conquistvel facilmente demais,
serei severa e esquiva, e direi no, para que tu mefaas a corte; mas, assim no sendo, nem por todo omundo. Em verdade, arrogante Montecchio, sou muitoapaixonvel e, por causa disto, poders pensar queminha conduta seja bem leviana; mas, acredita-me,gentil-homem, mostrar-me-ei mais fiel do que aquelasque tm mais destreza em dissimular. Devo confessarque deveria ter-me mostrado mais reservada, se notivesses surpreendido minha verdadeira paixoamorosa, antes que estivesse prevenida. Perdoa,portanto, e no atribuas a leviano amor esta fraqueza
minha, que de tal modo revelou a escura noite!(SHAKESPEARE, 1993, p. 43-44).
Na mesma cena, Romeu quer provar a fora de seu amor por Julieta
jurando pela lua. A resposta dela bem conhecida: Oh! No jures pela lua, a
inconstante lua que muda todos os meses em sua rbita circular, a fim de que teu
amor no se mostre igualmente varivel (Shakespeare, 1993, p. 43). A constncia
do amor, para Julieta, tambm equivale a infinitude. Escutemos essa sua outra
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fala, ainda na mesma cena: Minha bondade to ilimitada quanto o mar, e to
profundo como este o meu amor. Quanto mais te dou, mais tenho, pois ambos
so infinitos (Shakespeare, 1993, p. 45). O amor para Julieta infinito. Infinito e,
retomemos o velho smbolo, imortal como o prprio sol. Por amor Julieta enfrenta
a morte duas vezes. Mesmo com medo da morte fsica, em ambas as vezes o que
lhe d coragem para to rduo enfrentamento a crena na fora do amor que
no morre, o tipo de amor, alis, que passaria a ser o real paradigma do amor
romntico. O primeiro encontro de Julieta com a morte se d na terceira cena do
quarto ato, quando, j de posse da droga sonfera que Frei Loureno lhe
providenciara, aflige-se com a possibilidade de que o plano do religioso no dcerto:
E se, quando for depositada na tumba, acordar antes dotempo marcado para que Romeu venha libertar-me? uma idia horrvel! No ficarei asfixiada, ento, dentroda catacumba, por cuja espantosa boca jamais entra arpuro e l morrerei sufocada, antes que Romeuchegue?... Ou, se viver, no possvel que o horrvelpensamento da morte e da noite, junto com o terror do
lugar, um sepulcro, um receptculo antigo, ondedurante centenas de anos os ossos de todos os meusantepassados mortos foram enterrados; onde Teobaldocoberto de sangue, h pouco enterrado, jazapodrecendo na mortalha; onde, segundo dizem, emcertas horas da noite, se renem os espritos... Ai! Ai!No ser possvel que, ao despertar cedo demais entreodores infectos e gritos, como os da mandrgoraarrancada da terra, no enlouquea como todos osmortais que os escutam? Oh! ... Se despertar, perco arazo cercada por todos esses tremendos horrores?
(SHAKESPEARE, 1993, p. 91)
Apesar de todo o medo, Julieta acredita valer a pena correr o risco por
Romeu e, prestes a beber a droga, conclui o monlogo com as seguintes palavras:
J vou, Romeu! Bebo isto em tua inteno! (SHAKESPEARE, 1993, p. 91). O
segundo encontro de Julieta com a morte o encontro derradeiro: na terceira cena
do quinto ato, ela acorda e acha Romeu junto a sua tumba, morto. Romeu,
pensando que Julieta estava de fato morta, se matara com veneno. Morreu o
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amado, mas no morreu o amor. Logo, a deciso de Julieta manifestada em sua
penltima fala na pea: Que isto? Uma taa apertada na mo de meu fiel amor?
O veneno, estou vendo, foi a causa de seu prematuro fim!... Oh! Ingrato! Tudo
bebeste sem deixar uma s gota amiga que me ajude a seguir-te? Beijarei teus
lbios... Talvez haja neles um resto de veneno para fazer-me morrer como um
reconfortante! (SHAKESPEARE, 1993, p. 105). Julieta morre, assim, no porque
o amor acabou, mas para que ele continue. A morte aparece aqui como o modo
de evitar a ruptura do amor. Romeu morreu, e Julieta, que no poderia amar mais
ningum, pois seu amor solar nico e eterno, morre para segui-lo.
A sobrevivncia da noiva e o amor que tem fim
A Noiva tem quase vinte e dois anos e est prestes a se casar com o Noivo,
mais jovem do que ela. O casamento est longe de entusiasm-la. Pelo contrrio.
No primeiro quadro do segundo ato ela confessa que essas bodas podem ser algo
triste demais (LORCA, 2004, p. 75). O primeiro quadro do primeiro ato, no
entanto, j havia nos apontado uma tendncia da noiva de refletir o
comportamento dos seus. Sua me notoriamente no amava o marido. A noiva,
ao que tudo indicava, punha-se a seguir o mesmo caminho, ainda que no o
admitisse de modo algum. Tanto que, diante da pergunta da criada, que queria
saber se amava o Noivo, a Noiva responde que sim, que amava. Essa afirmao
soar, em breve, como tentativa de ocultamento do amor que a Noiva sente por
Leonardo dos Flix. A Noiva, aos quinze anos, fora noiva de Leonardo, que
pertencia famlia do responsvel pela morte do irmo do Noivo. O noivado durou
trs anos, e h pelo menos dois, Leonardo casou-se com uma prima da Noiva, ecom ela teve um filho. No dia do casamento, no primeiro quadro do segundo ato,
Leonardo a procura e se declara, diz que o que sente por ela continua a arder. A
noiva se recusa a admitir de maneira clara que por ele sente o mesmo, e
responde: No posso ouvir voc. No posso ouvir sua voz. como se eu
bebesse uma garrafa de anis e dormisse numa colcha de rosas. E me arrasta, e
sei que me afogo, mas vou atrs (LORCA, 2004, p. 82). A noiva tambm no
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admite revelar ao Noivo que no o ama, e decide, pelo contrrio, a fim de evitar a
tentao representada por Leonardo, apressar as bodas, dizendo ao Noivo o
seguinte: Estou ansiosa para ser sua mulher e ficar sozinha com voc, e no
ouvir outra voz alm da sua (Lorca, 2004, p. 88).No segundo quadro do segundo
ato, ficamos sabendo que a Noiva e Leonardo fugiram juntos, a cavalo, atravs do
relato da mulher de Leonardo. Mesmo depois da fuga, a Noiva hesita em levar
adiante seu amor pelo antigo noivo. No primeiro quadro do terceiro ato ela quer
que Leonardo volte, e que a deixe seguir sozinha; se no quiser mat-la, que ao
menos lhe d uma arma. Ele diz que h de lev-la consigo, a Noiva responde que
ento ser a fora, e Leonardo lembra que ela fugiu porque quis. s depois demais esse momento de hesitao (o rompimento do noivado com Leonardo, no
passado, j havia sido a primeira tentativa de resistncia, ainda que
aparentemente a iniciativa tenha partido dele) que a Noiva, enfim, se declara: Te
amo! Te amo! Afasta! Que se matar-te eu pudera te poria uma mortalha rematada
de violetas. Ai, que lamento, que fogo me sobe pela cabea! (LORCA, 2004, p.
127). Mas aqui temos de fato um amor lunar: a Noiva no ama Leonardo porque
quer ou porque apaixonvel, mas sim porque no pode evitar am-lo. Ou seja,
seu amor reflexo e conseqncia da presena do amado, algo que no sobe
fcil ao plano da conscincia, e algo que contraria seu desejo racional, sua nsia
de autocontrole. O que explica, alis, os termos de suas declaraes de amor a
Leonardo, declaraes como esta, tambm do primeiro quadro do terceiro ato:
Oh desatino! No quero contigo cama nem ceia, e o diano tem minuto que estar contigo no queira, porqueme arrastas e vou, e se me dizes que venha eu te sigo
pelos ares como uma folha de erva. L deixei umhomem rude e toda sua descendncia no meio dasnossas bodas coa coroa na cabea. Para ti ser ocastigo e no quero que assim seja. Deixa-me s! Fogetu! Pois no tens quem te defenda (LORCA, 2004, p.128).
No final desse quadro, abraados, a Noiva e Leonardo garantem que
apenas a morte h de separ-los. E, realmente, no quadro seguinte, o ltimo, a
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morte de Leonardo os separa. O amor lunar da Noiva, at aqui em boa parte
inconsciente e caracteristicamente inconstante, pautado pela hesitao, revela-se
tambm finito, mortal. A morte de Leonardo representa, para a Noiva, a morte do
amor. A ruptura aqui real. Se a Noiva amava Leonardo, entendia esse amor
como causado pela presena dele, como alheio sua vontade. E no quadro final,
quando se dirige sogra, pedindo a prpria morte e jurando a prpria virgindade
imaculada, a Noiva reafirma que abandonou o Noivo sem o desejar, foi arrastada,
foi impelida pelo outro, foi algo inevitvel, nem a prpria sogra, em semelhante
situao, teria agido diferente:
Porque eu fui com o outro, eu fui! Voc tambm teriaido. Eu era uma mulher abrasada, cheia de chagas pordentro e por fora, e seu filho era um pouquinho de guade quem eu esperava filhos, terra, sade; mas o outroera um rio escuro, cheio de ramos, que me trazia orumor de seus juncos e seu cantar entre dentes. E eucorria com seu filho, que era como um menino de guafria, e o outro me mandava centenas de pssaros queme impediam de andar e que derramavam geada nasminhas feridas de pobre mulher consumida, de moa
acariciada, pelo fogo. Eu no queria, est ouvindo? Euno queria. Seu filho era meu fim e eu no o enganei,mas o brao do outro me arrastou como a mar, como acabeada de um mulo, e teria me arrastado sempre,sempre, mesmo que eu fosse velha e todos os filhos deseu filho me puxassem pelos cabelos! (LORCA, 2004,p. 141).
Agora que Leonardo morreu, ele no a arrasta mais. A Noiva enfim est
livre, livre de ter outra vez de reagir amorosamente ao amor alheio, livre de ter de
exercitar a aparente passividade sentimental. A Noiva, enfim, est livre do amor.
Referncias:
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de smbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, nmeros. 13. ed. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1999.
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LORCA, Federico Garca. Bodas de sangue. Tragdia em trs atos e sete
quadros. Trad. Rubia Prates Goldoni. So Paulo: Ed. Peixoto Neto, 2004.
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. In: _____. Tragdias. Trad. F. Carlos
de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. So Paulo: Nova Cultural; Crculo
do Livro, 1993. p. 7-109.