Dar um jeitinho – por Paulo Mendes Campos « Em 1964

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25/03/14 19:30 Dar um jeitinho – por Paulo Mendes Campos « Em 1964 Página 3 de 5 http://em1964.com.br/dar-um-jeitinho-por-paulo-mendes-campos/ Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS Dar um jeitinho Paulo Mendes Campos Escrevi na semana passada que há duas constantes na maneira de ser do brasileiro: a capacidade de adiar e a capacidade de dar um jeito. Citei um livro francês sobre o Brasil, no qual o autor dizia que só há uma palavra importante entre nós: amanhã. Pois fui ler também o livro Brazilian Adventure, de 1933, do inglês Peter Fleming, integrante da comitiva que andou por aqui, há trinta anos, em busca do coronel Fawcett. Pois no capítulo dedicado ao Rio, sem dúvida a capital do amanhã, achei este pedaço: “A procrastinação por princípio – a procrastinação pela própria procrastinação – foi uma coisa com a qual depressa aprendi a contar. Aprendi a necessidade da resignação, a psicologia da resignação: tudo, menos a resignação em si mesma. No fim extremo, continuei a lutar com infelicidade; no fim extremo, contrariando o meu mais justo aviso, sabendo a futilidade disso, continuei a engambelar, a insultar, a ameaçar, a subornar os procrastinadores, tentando diminuir a demora. Nunca me valeu de nada. Adiar no Brasil é um clima. Não é possível evitá-lo. Não há nada a fazer

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    Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMSDar um jeitinhoPaulo Mendes CamposEscrevi na semana passada que h duas constantes na maneira de ser do brasileiro: a capacidade de adiar e acapacidade de dar um jeito. Citei um livro francs sobre o Brasil, no qual o autor dizia que s h uma palavraimportante entre ns: amanh. Pois fui ler tambm o livro Brazilian Adventure, de 1933, do ingls PeterFleming, integrante da comitiva que andou por aqui, h trinta anos, em busca do coronel Fawcett. Pois nocaptulo dedicado ao Rio, sem dvida a capital do amanh, achei este pedao: A procrastinao por princpio a procrastinao pela prpria procrastinao foi uma coisa com a qual depressa aprendi a contar. Aprendi anecessidade da resignao, a psicologia da resignao: tudo, menos a resignao em si mesma. No fim extremo,continuei a lutar com infelicidade; no fim extremo, contrariando o meu mais justo aviso, sabendo a futilidadedisso, continuei a engambelar, a insultar, a ameaar, a subornar os procrastinadores, tentando diminuir ademora. Nunca me valeu de nada. Adiar no Brasil um clima. No possvel evit-lo. No h nada a fazer

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    quanto a isso.No verdade: h uma forma de vencer a interminvel procrastinao brasileira: dar um jeitinho. O inglsapelou para a ignorncia, a seduo, o suborno. Pois o jeito era dar um jeito.Dar um jeito a outra disposio cem por cento nacional, inencontrvel em qualquer outra parte do mundo. Darum jeito um talento. Coisa que a pessoa de fora no consegue entender, a no ser depois de viver dez anos noBrasil, beber cachaa, adorar feijoada e jogar no bicho. preciso ser bem brasileiro para se ter o nimo e agraa de dar um jeitinho a uma situao inajeitvel. Em vez de cantar o Hino Nacional, a meu ver, o candidato naturalizao deveria passar por uma nica prova: dar o jeitinho em uma situao complicada.Chegou a minha vez de dar um jeito nesta crnica: h vrios anos andou por aqui uma reprter alem, que tiveo prazer de conhecer. Tendo de realizar vrias incurses jornalsticas pelo pas, a moa frequentemente expunhaproblemas de ordem prtica a confrades brasileiros. Em breve, reparou, espantada, que os nossos jornalistasreagiam sempre do mesmo modo aos galhos que ela apresentava: vamos dar um jeito. E o sujeito pegava otelefone, falava com uma poro de gente, e dava um jeito. Sempre dava um jeito.Mas, perguntou-me, que dar um jeito? Na Alemanha no tinha disso no. Tentei explicar-lhe, sem sucesso, ateoria fundamental de dar um jeito, cincia que, se difundida na Europa, teria certamente evitado duas ou trsguerras. A alem me passou a fazer tantas perguntas, que resolvi passar aula prtica. Fiz com que entrasse nacasa comercial de propriedade de um amigo, comerciante cem por cento, relacionado apenas a seus negcios,seus fregueses, passando o dia todo e as primeiras horas da noite dentro da loja. Portanto, pessoa inadequadapara resolver a questo que forjei no momento de parceria com a jornalista.Apresentei ele a ela e fui contando a mentira: o pai da moa morava na Alemanha oriental; tinha fugido para aAlemanha ocidental; no momento, pretendia retornar Alemanha oriental, mas temia ser preso; era precisoevitar que o pai da moa fosse preso; que se podia fazer?Meu amigo comerciante ouviu tudo, atento, sem o menor sinal de surpresa, metido logo no seu papel demediador, como se fosse o prprio secretrio das Naes Unidas. Qual! o prprio secretrio das Naes Unidasno teria escutado aquela conversa com to extraordinria naturalidade. A par do estranho problema, o comerciante deu uma olhada compreensiva para a jornalista, olhou para mim, depois para o teto, tirou uma fumaano cigarro e disse gravemente, mas certo de que tudo se resolveria: O negcio meio difcil Esta meio complicada Mas, vamos ver se a gente d um jeito.Puxou uma caderneta do bolso, percorrendo-lhe as pginas, e murmurando com a mais comovente seriedade:Deixa-me ver antes de tudo quem eu conheo que seja amigo do ministro das Relaes ExterioresA jornalista alem ficou boquiaberta. Publicado na revista Manchete em 21.3.64.

    2014 / Blog / ltima atualizao Maro 24, 2014 por admin / Tags:1933, 1964, Alemanha, BrazilianAdventure, coronel Fawcett, dar um jeitinho, Hino Nacional, jeitinho, jornalista, Naes Unidas, Peter Fleming,procrastinao, Revista Manchete, Rio de Janeiro, vamos dar um jeito