Darwin: Impacto No Conhecimento e Cultura

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Revista Fapesp: edição especial em comemoração aos 150 anos da publicação de "A origem das espécies".

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  • 38 n maro de 2009 n PESQUISA FAPESP 157

    Em 2009 celebramos 150 anos da publicao de A origem das espcies, assim como os 200 anos do nascimento de seu autor, Charles Darwin. Todos j ouviram falar do nome de Darwin, um dos cientistas mais biografados de toda a histria. At crianas so capazes de identificar a figura do ancio barbudo de olhar triste. Suas ideias, porm, permanecem menos conhecidas pelo pblico que o personagem. Esta situao indesejvel, pois evoluo biolgica no assunto de interesse apenas para especialistas. Pelo contrrio, talvez o tema cientfico que tenha maior importncia para cidados de um modo geral. Atravs do entendimento da evoluo, podemos entender o que a vida, nosso papel e posio no mundo.

    Darwin entendeu que a vida em nosso planeta est unida por uma rede de relaes genealgicas, criada por um processo de descendncia com modificao. Assim, todos os seres vivos so relacionados por descendncia comum, em graus variados de parentesco. A diversidade da vida uma funo do tempo: os seres vivos so diversos porque se tornaram diversos ao longo do tempo, e no porque foram criados diversos. inegvel mrito de Darwin ter conseguido reunir evidncias alm de qualquer dvida demonstrando a realidade da evoluo da vida. Isso o distingue de vrios notveis predecessores que flertaram com a ideia de evoluo antes dele. Mas Darwin foi alm. Tambm idea lizou um mecanismo atravs do qual a evoluo opera: seleo natural. A ideia de que complexidade e design possam se formar por processos puramente naturais, sem planejamento, o cerne da seleo natural. A ideia vai contra nossas percepes triviais de como o mundo opera. No por outra razo, sua concepo demorou mais que todo o desenvolvimento da fsica clssica. Mas esta fora, sutil no campo das ideias, poderosa no mundo real e construiu a diversidade da vida que conhecemos. Ela atua constantemente, em todas as espcies, sem necessidade de uma fora motriz externa ou implementao consciente. Tanto em bactrias que se apressam em trs geraes por hora, como em sequoias que podem consumir mais de mil anos entre uma gerao e outra. Somente uma fora to generalizada, incansvel e onipresente pode explicar o refinamento extraordinrio dos seres vivos em todos os nveis, onde quer que existam. assim em nosso planeta e assim ser em qualquer outro em que haja vida.

    A ideia de rvore da vida sempre atraiu a ateno dos pensadores. Muito antes do advento da evoluo, j havia o reconhecimento de que a diversidade de seres vivos pode ser organizada de forma hierrquica, como um vasto sistema de grupos dentro de grupos. Isso o que permite a classificao biolgica. Mais importante: o reconhecimento destes grupos no arbitrrio.

    Entendendo Darwin

    Mrio de Pinna*

    So as prprias caractersticas dos organismos que evidenciam tal organizao. Isso ocorre porque as caractersticas dos seres vivos no esto distribudas de forma aleatria, mas sim em um esquema claramente hierarquizado. O sistema classificatrio de Lineu, j bastante sofisticado e de cunho sinttico, precede a publicao da Origem em quase exatamente cem anos. Quando Darwin desenvolveu suas ideias, portanto, alguns grandes padres de classificao orgnica j estavam bem reconhecidos. O sinal evidenciando tais padres j era to claro que era reconhecido como um padro da natureza, e no como um artifcio humano. Grupos de organismos no so inventados eles so descobertos. Darwin, que j tinha experincia de primeira mo com a taxonomia (estudo das classificaes), entendeu que uma tal organizao no poderia ser desprovida de significado em sua teoria. Para ele esta hierarquia certamente significava algo, mas no relacionado criao divina, e sim ao processo de diversificao e ramificao da vida resultado do processo evolutivo. Imediatamente, identificou uma tremenda concordncia entre os padres de classificaes de seres vivos e a evoluo: os padres eram o resultado da histria evolutiva. Alis, a importncia dos padres filogenticos para sua teoria era tamanha que um diagrama filogentico a nica ilustrao da Origem das espcies.

    Hoje o estudo das relaes de parentesco entre os seres vivos

  • PESQUISA FAPESP 157 n maro de 2009 n 39

    * Mrio de Pinna bilogo evolutivo, com especialidade em zoologia. atualmente professor titular e vice-diretor do Museu de Zoologia da USP, sendo tambm pesquisador associado do American Museum of Natural History e da Smithsonian Institution.

    constitui uma subdisciplina biolgica chamada reconstruo filogentica, atualmente uma rea particularmente dinmica da biologia evolutiva. As ideias sobre parentesco so expressas em diagramas ramificados chamados cladogramas, ou rvores filogenticas. A estrutura filogentica a pedra fundamental no entendimento da evoluo. Ela nos permite compreender a ubiquidade da evoluo na estrutura da vida na Terra. No existem organismos mais ou menos evoludos. A linhagem que chegou at ns tem exatamente o mesmo tempo de evoluo que a que gerou as bactrias em nosso intestino. Apenas ocorre que algumas linhagens divergiram mais, outras menos. Umas se tornaram mais complexas ou maiores, outras trilharam caminhos diferentes. Mas todas so produtos igualmente refinados pelos mesmos bilhes de anos de evoluo.

    Este panorama mais vlido que nunca hoje, quando se sabe que a mesma ordem hierrquica detectada j h sculos na morfologia dos organismos tambm ocorre em outros planos, como sua estrutura de DNA, sua fisiologia, seu comportamento e onde quer que se tenha investigado. Esta ordem resultado da histria evolutiva. Seja ela na forma de uma rvore ou de uma teia, os mtodos de anlise filogentica j dispem do arsenal necessrio para desvendar esta histria.

    Mas igualmente importante na contribuio de Darwin foi a proposta de um mecanismo operacional que estaria por trs de alguns grandes padres da histria dos seres vivos. A seleo natural uma ideia simples, de natureza algortmica. Mas simplicidade no implica superficialidade. A seleo natural uma fora profundamente poderosa, tendo moldado a vida como a conhecemos. A compreenso que Darwin teve do assunto de abrangncia surpreendente, considerando o quase nada que se sabia de gentica na sua poca. Darwin entendeu que a seleo natural no deve ser entendida como um processo absoluto ou invariante. Adaptao e reproduo diferencial so contextodependentes, de forma que as circunstncias ambientais determinam quais variantes so favorveis (e portanto positivamente selecionadas) e quais so desfavorveis (e portanto negativamente selecionadas). Como o ambiente muda, tambm pode mudar a direo de seleo. Caractersticas favorveis aos indivduos em uma situao podem ser desfavorveis em outra e viceversa. Hoje muitos fatos biolgicos aparentemente contraditrios com a lgica de seleo so perfeitamente compreendidos, como o comportamento altrusta, socialidade etc. Enquadrar

    os multifacetados caminhos da seleo natural na infeliz colocao sobrevivncia do mais forte erro grosseiro. No mundo seletivo real, os favorecidos frequentemente esto entre os mais fracos. De grande sutileza foi a subsequente concepo por Darwin de seleo sexual, capaz de explicar vrios fenmenos do mundo vivo que simples seleo natural no poderia. A aceitao desta outra fora evolutiva foi demorada na comunidade cientfica. Podese especular quanto tempo teria se passado at a ideia de seleo sexual ser concebida por outro pensador, caso Darwin no o tivesse realizado.

    Mesmo quando no evidentes, as foras que moldam sistemas biolgicos so incansveis, ainda que sem provocar mudana aparente. Sistemas com alto grau de complexidade invariavelmente tendem desorganizao, a menos que haja foras continuamente reparando os defeitos e corrigindo os desvios. Isso ocorre especialmente quando estes sistemas produzem cpias de si mesmos, ou se reproduzem, como sistemas biolgicos. Para manter o nvel de organizao dos sistemas orgnicos, mecanismos ativos so necessrios. Estes mecanismos nada mais so que as mesmas foras clssicas da evoluo. A seleo natural atua constantemente na manuteno da organizao dos seres vivos ao longo do tempo, no somente na sua mudana. Ao contrrio do que poderia se pensar, a prpria existncia continuada dos seres vivos evidncia de foras evolutivas em ao. A atuao da seleo necessria no apenas para construir complexidade biolgica, mas tambm para mantla.

    A evoluo rege todas as dimenses do universo vivo. impossvel entender qualquer fenmeno da vida sem a perspectiva evolutiva. Ns, como parte da grande teia da evoluo, no somos exceo, nem no passado e nem hoje. O entendimento de nossa prpria espcie, da natureza humana, passa pelo caminho da compreenso de nossa evoluo biolgica. Devemos isso a Darwin. Pelo mesmo caminho devem passar nossos esforos para a construo de uma moral e tica construtivas, tanto para ns mesmos como para o planeta.

  • 40 n maro de 2009 n PESQUISA FAPESP 157

    A origem das espcies, cuja primeira edio aparece em 1859,1 teve um impacto no somente no estudo da histria natural e nas disciplinas do que hoje chamamos de cincias biolgicas, mas no nosso prprio modo de ver e conceber a atividade cientfica. Na Inglaterra, a histria natural que Darwin encontrou confundiase com uma teologia natural, quando os naturalistas (muitas vezes pacatos procos) tomavam a aparente perfeio de adaptaes e coadaptaes como evidncias de desgnio divino, enfatizando a harmonia de toda a natureza. O pano de fundo das indagaes vinha marcado por grandes polmicas, a respeito das quais o pensamento de Charles Darwin ser decisivo. No plano dos debates geolgicos e paleontolgicos, a grande polmica era a do catastrofismo versus uniformitarismo. Os uniformitaristas defendiam um gradualismo, a ocorrncia de mudanas lentas e graduais, segundo uma uniformidade na operao das leis da natureza pela ao, atravs do tempo, de causas observveis e ainda hoje responsveis pelo curso fenomnico, sem recorrer a eventos incomuns ou poderes extraordinrios para expliclas. Os catastrofistas admitiam a ocorrncia de catstrofes, cataclismos, que alteravam radicalmente a face da Terra e suas condies de vida e requeriam a interveno restauradora de uma fora extraordinria. Tal atitude casava perfeitamente com a viso criacionista, no que tange origem das espcies. A respeito dessa ltima questo, a grande polmica foi a do criacionismo versus evolucionismo, exibindo fortes tons locais, marcados, na Inglaterra, pela influncia da teologia natural. Ambos os termos sofreram diferentes determinaes. No que concerne ao evolucionismo, as diferenas foram, sobretudo, referentes ao mecanismo da mudana. Quanto ao criacionismo, o termo comportou diferentes nveis de comprometimento com a ideia de interveno divina para a explicao dos fenmenos naturais. O criacionismo contra o qual Darwin claramente se coloca tem um sentido bem tcnico: tratase da viso de que cada espcie seja fruto de um ato especial de criao.

    A grande contribuio de Darwin questo da origem das espcies foi o mecanismo de sua teoria da seleo natural (da preservao e acmulo na direo requerida das variaes teis a seu portador e a eliminao das injuriosas), pela qual se d a produo de novas e mais aperfeioadas formas orgnicas. Darwin, em sua Introduo Origem, disse que defesa do evolucionismo no basta admitir a evoluo sem mostrar seu mecanismo. (Por isso, em Darwin, discutvel distinguirse uma teoria da evoluo de sua teoria da seleo natural.) Esse novo modo de ver a questochave da Origem

    1. Aqui sero utilizadas referncias da 6 edio inglesa (1872), a ltima revisada pelo prprio Darwin (The origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. London: John Murray, 1872).

    Darwin e uma nova viso de cincia

    Anna Carolina Regner*

  • PESQUISA FAPESP 157 n maro de 2009 n 41

    * Anna Carolina Krebs Pereira Regner professora e pesquisadora do Programa de Ps-graduao em Filoso-fia da Unisinos, Rio Grande do Sul, com vrios trabalhos publicados sobre a teoria darwiniana.

    refletir decisivamente na pesquisa das vrias reas da histria natural, com vrios departamentos novos sendo criados e reorganizados:

    Quando as vises desenvolvidas por mim neste volume e por Mr. Wallace, ou quando vises anlogas sobre a origem das espcies forem geralmente admitidas, podemos divisar que haver uma considervel revoluo na histria natural. (1872, p. 425).

    Os outros e mais gerais departamentos da histria natural crescero em interesse enormemente. Os termos usados pelos naturalistas de afinidade, relao, comunidade de tipo, paternidade, morfologia, caracteres adaptativos, rudimentares e rgos abortados etc. cessaro de ser metafricos e tero plena significao. Quando no mais olharmos a um ser orgnico como um selvagem olha a um navio, como algo totalmente fora de sua compreenso; quando considerarmos cada produo da natureza como uma que teve uma longa histria; quando contemplarmos cada estrutura complexa e instinto como o somatrio de muitas engenhosidades, cada uma til a seu possuidor, do mesmo modo que qualquer grande inveno mecnica o somatrio do trabalho, experincia, razo e mesmo dos erros de numerosos trabalhadores; quando assim virmos cada ser orgnico, quo mais interessante falo de minha prpria experincia tornase o estudo da histria natural!

    Um grande e quase impenetrado campo de investigao ser aberto sobre as causas e leis da variao, sobre correlao [...] O estudo das produes domsticas aumentar de valor imensamente. [...] grifo nosso (1872, p. 426)

    Alm de responder questo da evoluo e responder s objees que lhe eram levantadas, o trabalho de Darwin trouxenos, entre outras mudanas, uma nova viso de padres de procedimentos cientficos. A relao da explicao darwiniana com os critrios e procedimentos cientficos de sua poca to rica, multifactica e, por vezes, to ambgua quanto tais padres de cientificidade o so. Mas as conotaes que Darwin empresta ao que seja a tarefa explicativa representam um dos mais fortes indicadores de sua presente contemporaneidade. Em todos os momentos

    da sua tarefa explicativa, Darwin est atento ao fato de que explicar sempre depende de uma determinada viso terica ou suposio e, em particular, da comparao de vises diferentes, sobretudo em casos como o seu, quando, segundo suas palavras, no h um nico dos fatos arrolados que no possa ser visto de uma maneira diferente da sua. Comparar a acuidade e maior alcance de sua viso com a viso adversria ser uma das estratgias bsicas de Darwin ao construir e defender a sua prpria teoria. Um resultado importante dessa estratgia que explicar resulta em apresentar a melhor alternativa explicativa possvel que acontece ser a teoria darwiniana e que, mais adiante, se torna a nica explicao (racional) possvel. Ao comparar a sua teoria com a de seus oponentes, por meio da resposta a objees, Darwin normalmente faz uso de vrios procedimentos reconhecidos como cientficos: observao sistemtica, experimento, subsuno de fatos sob regras, estudo de casos exemplares, classificao, uso de diagramas, ilustraes, discusses, tbuas comparativas e analogias. Alguns outros procedimentos so bastante inovadores, como a rede de informaes que criou em sua correspondncia, o tratamento de dificuldades e objees teoria, o jogo do atual (o que est dado) e do possvel (do que pode ser dado, sem impossibilidade lgica ou ftica) ao explicar e avaliar os mritos de nossas explicaes, sua solicitao de que seja considerado o poder explicativo da teoria como um todo, o uso que ele faz de imaginao, metforas, e seus apelos ao poder explicativo como um todo, extenso de nossa ignorncia apesar de nossos esforos, autoridade da comunidade cientfica, seus valores e ideais, s condies psicolgicas de investigao cientfica e ao avano da pesquisa que uma teoria permita. Tais procedimentos inovadores encontram eco em muitas das recentes anlises da atividade cientfica, que ressaltam seja as relaes entre teoria e modelos, atentas s complexidades das relaes entre a unidade terica e a testabilidade emprica, seja o papel substantivo das estratgias argumentativas.

  • 42 n maro de 2009 n PESQUISA FAPESP 157

    A creditase que a complexidade do crebro humano, com milhares de tipos de neurnios diferentes, tenha permitido o surgimento de sofisticados repertrios comportamentais, como a linguagem, uso de ferramentas, percepo do eu, pensamento simblico, aprendizado cultural e conscincia. Dessa complexidade emergiram obras de extraordinrio contedo tecnolgico e artstico numa, relativamente curta, histria cultural de nossa espcie. Isso parece indicar que a complexidade cerebral tem um propsito criativo, ao contrrio de outros sistemas amplamente mais complexos porm brutos, como as galxias e os milhares de estrelas que as compem. Entender como a complexidade neuronal moldada durante o desenvolvimento mergulhar em questes fundamentais da origem da nossa espcie.

    A formao do crebro humano no um processo otimizado. Pelo contrrio, a maioria das clulas geradas ser descartada e apenas uma pequena frao ser usada. O mecanismo por trs dessa seleo obscuro e existem evidncias sugerindo que fatores extrnsecos e intrnsecos contribuam para a sobrevivncia ou morte celular. Apenas as clulas precursoras com as propriedades corretas, no momento e local ideais, iro florescer e amadurecer em neurnios funcionais, contribuindo para a formao das redes nervosas. Nessa competio, foras de variao e seleo atuam para esculpir cada crebro humano, cada rede neural, neurnio por neurnio, gerando a verdadeira individualidade na forma como cada um de ns recebe, processa e interage com o mundo exterior.

    Vale lembrar que a seleo natural precisa de variao para gerar os diferentes tipos neuronais no crebro. Inicialmente, cogitouse que a variao estaria contida nos genes codificantes para protenas. No entanto, com o sequenciamento do genoma humano, ficou claro que a quantidade de genes no seria suficiente para justificar tamanha complexidade neuronal. Com menos de 2% de genes codificantes para protenas no genoma, fica difcil gerar informao suficiente para os milhares de tipos celulares contidos no crebro humano. Mesmo considerando eventos moleculares como o processamento alternativo do RNA ou modificaes pstraducionais, no existe variao suficiente. A variao deve residir em outro lugar.

    A falta de uma funo bvia para os outros 98% do genoma inspirou o conceito de DNAlixo, ilustrando a

    Darwinismo cerebral

    Alysson R. Muotri*

    ideia de que essas sequncias seriam resqucios evolutivos, acumulados ao longo de milhares de anos no genoma. Como uma garagem cheia de tranqueira, o genoma parece lidar muito bem com o excesso de sequncias, mas parece difcil compreender por que no se livra dele, economizando energia celular. Parte desse DNAlixo composta de elementos transponveis, ou genessaltadores, capazes de produzir cpias de si prprios, inserindo novas cpias no genoma e, eventualmente, alterando a expresso de genes prximos. A atividade desses elementos foi flagrada durante a evoluo e esses parasitas genmicos ficaram conhecidos como genesegostas, com a nica finalidade de se manterem vivos para as prximas geraes atravs da replicao em clulas germinativas dos indivduos. A replicao em clulas no germinativas, somticas, que no formaro um novo indivduo, no seria uma estratgia de sobrevivncia, pelo menos at agora...

    Em 2003, durante meu perodo de psdoutoramento no Instituto Salk de pesquisas na Califrnia, fizemos uma curiosa observao. Estudando como os genes eram re gulados durante a especializao neuronal a partir de clulastronco, notamos que havia uma ativao dos elementos transponveis to logo a clula optasse pela diferenciao neuronal. Ao induzir as

  • PESQUISA FAPESP 157 n maro de 2009 n 43

    * Alysson Renato Muotri neurocientista, professor da Escola de Medicina da Universidade da Califrnia, San Diego (UCSD).

    clulastronco a se diferenciarem em outros tipos celulares nada era detectado, indicando que o fenmeno era especfico dos neurnios. O achado confrontava tudo que sabamos sobre o comportamento desses elementos e sua vontade de passar para as futuras geraes. Afinal, o que estariam fazendo ao proliferar no crebro?

    Dois anos depois, aps lutar contra a resistncia natural do paradigma vigente, conseguimos demonstrar que os neurnios possuam genomas nicos. Ao contrrio do atraente conceito de que todas as clulas do corpo possuem o mesmo genoma, e que as diferenas seriam meras consequncias da regulao gnica, havamos juntado evidncias fortes o suficiente para demonstrar que isso no era o caso no crebro. Cada neurnio parecia ser nico, cada um apresentava novas inseres no genoma, impactando genes prximos. Essa atividade amplificaria o efeito da regulao gnica, gerando uma enorme variao celular e aumentando o repertrio de tipos celulares capazes de serem formados por um dado grupo de genes. Esse mecanismo de variao e flexibilidade parece contribuir para a originalidade de cada crebro, explicando por que mesmo gmeos geneticamente idnticos apresentam personalidades caractersticas.

    Filosoficamente, os dados estariam apontando para uma parcela de acaso na formao de cada personalidade. Novos dados do nosso laboratrio mostram que a atividade dos elementos transponveis est alterada no crebro autista ou em sndromes com o espectro autista. A viso de mundo diferente em pessoas portadoras de autismo, sugerindo uma alterao nas redes neuronais. Ora, o aumento da variabilidade neuronal seria capaz de produzir indivduos fora da curva normal, com qualidades diferentes. Organismos fora da curva teriam mais chances de se adaptar a novos ambientes ou de reagir contra mudanas drsticas no ambiente. Alm disso, existiriam eventuais indivduos prodgios na populao, com uma capacidade cognitiva superior. E talvez sejam indivduos assim que aumentem a capacidade criativa da espcie humana, favorecendo a dominao de novos territrios, por exemplo. Nesse sentido, os elementos transponveis continuariam sendo genes egostas, pois ao manipular a mente humana acabam por aumentar as chances reprodutivas da espcie.

    Curiosamente, durante a evoluo dos primatas, observase uma impressionante correlao entre a adaptao humana e o surgimento de novas sequncias transponveis. Evidncias de alteraes climticas globais sugerem que ambientes mais frios, secos e com maiores variaes devem ter ocorrido cerca de 3 milhes de anos atrs. As alteraes bruscas acabaram por diminuir o suprimento de comida e gua, pressionando fortemente a adaptao de nossos ancestrais a novos ambientes. Interessantemente, novas famlias de elementos transponveis no genoma surgem na mesma poca em que os humanos adquirem o bipedalismo, apresentam um aumento da massa cerebral e apresentam as primeiras evidncias de uso de ferramentas, conscincia ou motivao artstica.

    Por outro lado, o fenmeno de inseres somticas no crebro pode no passar de um resqucio evolutivo. Tanto o crebro como o sistema reprodutivo passaram por grandes modificaes durante a evoluo. A expresso gentica desses dois rgos relativamente parecida e os dois possuem diversas vias de sinalizao em comum. Nesse contexto no parece novidade encontrar fenmenos moleculares presentes somente nesses rgos. Se esse for realmente o caso, a atividade dos elementos transponveis no sistema nervoso descartvel e no possui contribuio alguma para as redes neuronais, cognio ou comportamento. plausvel, mas fica faltando responder por que o genoma ficaria carregando essa tranqueira toda a troco de nada.

    Qualquer que seja a funo do mosaicismo gentico dos neurnios, preciso cautela no desenho dos experimentos que permitiro investigar o fenmeno. Atualmente impossvel usar tcnicas clssicas de nocaute gentico para eliminar os genes saltadores do genoma. So vrios deles que esto ativos no genoma. Alm disso, esto espalhados pelos cromossomos. Vai ser preciso bastante criatividade para buscar situaes experimentais onde a hiptese possa ser testada. Qualquer que seja o resultado encontrado, s vai ser real se fizer sentido sob a tica evolucionria.

  • 44 n maro de 2009 n PESQUISA FAPESP 157

    J em 1837, no Caderno B, um caderno de notas onde registrou ideias e observaes diversas a respeito de evoluo, Darwin notava que mesmo a mente e o instinto so influenciados pela adaptao a novas circunstncias. Sua correspondncia da poca e de mais tarde tambm indica seu interesse por questes psicolgicas: numa carta de Edward Blythe a Darwin (1855) encontramos longamente debatida a questo do instinto e da razo nos animais e nos seres humanos. No final de A origem das espcies (1859), Darwin previu que a psicologia encontraria uma base segura [...] no fundamento [...] da aquisio necessria de cada poder mental e de cada capacidade mental de forma gradativa (isto , atravs da seleo natural). T. H. Huxley, numa palestra de 1863, afirmou que o trabalho de Darwin estava destinado a ser o guia da especulao biolgica e psicolgica para as prximas trs ou quatro geraes. Huxley subestimou o impacto das ideias darwinianas: elas continuam relevantes at hoje em vrias reas cientficas e, em particular, na rea de estudo do comportamento.

    Uma primeira, e notvel, contribuio de Darwin reside na generalizao dos princpios da seleo natural ao comportamento instintivo. O princpio simples: os traos comportamentais, como os anatmicos e fisiolgicos, variam entre indivduos, transmitemse por hereditariedade e tornamse mais frequentes na medida em que proporcionem aos indivduos uma capacidade maior para enfrentar os desafios ambientais e para se reproduzir. Darwin (1859) aplica a ideia a instintos impressionantes como a tendncia do cuco europeu em colocar seus ovos em ninhos alheios, o comportamento das formigas que usam formigas de outras espcies como escravas para a realizao das tarefas do ninho e a perfeio hexagonal dos alvolos nos favos de abelhas. Em cada caso, variantes individuais poderiam ter sido selecionadas, ao longo das geraes, em funo da vantagem reprodutiva, ganhando predominncia na populao. Darwin no elimina do instinto a operao de fatores de cognio, sua concepo se aproxima bastante do modo atual de considerar o comportamento animal como produto de fatores de prontido e de plasticidade.

    A ideia de situar o comportamento num quadro evolutivo permite que se comparem e classifiquem as espcies a partir de sua interao viva com o ambiente, que se entenda melhor as funes das estratgias comportamentais e tambm (uma ideia perigosa) que se tome o ser humano como mais uma espcie, aparentada na maneira de ser a outros animais considerados inferiores.

    A teoria da evoluo comeou com Darwin, mas no terminou com ele. Houve mudanas marcantes, depois dele,

    Darwin, instinto e mente

    Csar Ades*

    no estudo do comportamento animal. Elas no eliminam o princpio geral: o refinam e desvendam novas hipteses. A teoria darwiniana se apresenta como um esquema aberto e verstil do qual no possvel prever o desenvolvimento, adaptado passo a passo s evidncias e refutado em alguns de seus desdobramentos.

    Uma retomada importante das ideias de Darwin foi a etologia, proposta por Konrad Lorenz e seu colega Niko Tinbergen, na dcada de 1930. Partiam ambos da ideia de que h elementos comportamentais herdveis desencadeados automaticamente por estmulos do ambiente. Lorenz, levando adiante uma linha implcita em Darwin, usou os comportamentos de espcies de aves aquticas, os anatdeos, para reconstituir o seu parentesco e seu desenvolvimento filogentico. Hoje est em plena efervescncia a anlise evolucionria comportamental, com aplicaes importantes compreenso da origem do ser humano.

    Tinbergen inaugurou estudos de campo em que testava o valor adaptativo de padres comportamentais. Por que ser que, logo aps a ecloso de um ovo, a me gaivota apanha e leva a casca para longe do ninho? A pergunta no tem resposta bvia nem antropomrfica e esclarecedor descobrir o jogo evolutivo subjacente, feito de custos e benefcios: ao jogar a casca, o adulto diminui a probabilidade com a qual o ninho ser detectado por predadores.

    Dessa linha toma seu ponto de partida uma abordagem vigorosa

  • PESQUISA FAPESP 157 n maro de 2009 n 45

    ao comportamento animal, a ecologia comportamental. Alm de promover a insero do comportamento na matriz ecolgica, formula hipteses baseadas em mecanismos diferenciais de transmisso gentica. Contribuies importantes foram as de W. D. Hamilton a respeito da aptido abrangente que parece solucionar a questo das castas estreis em insetos sociais, to problemtica para Darwin, e fornece uma base para entender por que a entreajuda ocorre mais frequentemente e de forma preferencial entre indivduos aparentados; e de R. Trivers sobre investimento parental, que explica por que, em geral, as fmeas so mais seletivas em relao aos seus parceiros reprodutivos e por que os machos so mais promscuos. O princpio envolvido a seleo sexual, postulado por Darwin, durante muito tempo negligenciada.

    A segunda contribuio de Darwin s cincias do comportamento tem a ver com a compreenso do comportamento humano. Ela essencial. No se trata, como muitas vezes alegado, de uma perspectiva reducionista, avessa a levar em conta as caractersticas de cognio e cultura que tornam o ser humano distinto. Darwin (The descent of man, 1871) escreve, nesse sentido: Um macaco antropoide, se pudesse julgar a si prprio com imparcialidade, admitiria que [...], embora capaz de utilizar pedras para brigar ou para quebrar nozes, estaria totalmente sem condies de ter a ideia de transformar uma pedra para dela fazer uma ferramenta [...]. Tambm reconheceria que no lhe est dado seguir um raciocnio metafsico at o fim, ou de resolver um problema de matemtica, ou de refletir a respeito de Deus, ou de admirar uma paisagem grandiosa. As diferenas entre homem e animal seriam contudo, segundo ele, de grau, no de natureza.

    Darwin estudou, num contexto comparativo, a expresso das emoes humanas. Seu livro (A expresso das emoes no homem e nos animais), um best-seller na poca do lanamento, em 1872, no teve impacto sobre a pesquisa. Sua proposta foi retomada pelo psiclogo P. Ekman, quase um sculo depois. Ekman, como Darwin (com mtodos bem mais sofisticados), descreveu como a face espelha a raiva, a alegria, o medo e outras emoes e demonstrou, como ele, o valor transcultural das expresses. So notveis as descries de Darwin. Ele demonstra ser, antes de Desmond Morris, um man watcher, um observador agudo do ser humano e sua mincia foi legada perspectiva etolgica. Paradoxalmente,

    * Csar Ades psiclogo, especialista em comportamento animal e professor da Universidade de So Paulo.

    no foi darwiniano ao pender para a herana do uso, uma verso da hiptese de transmisso dos caracteres adquiridos, para explicar a origem da expresso humana das emoes.

    Os desenvolvimentos mais recentes da abordagem evolucionista ao comportamento humano retornam aos princpios do prprio Darwin: o da seleo natural e da seleo sexual. Depois das propostas da etologia humana e da sociobiologia, estamos hoje presenciando o desenvolvimento da psicologia evolucionista que busca, de forma arrojada, uma sntese entre os aportes darwinianos e os propriamente psicolgicos (Cosmides e Tooby, 1999). Essa abordagem coloca em conjuno cognio e processos prprogramados e descreve a mente humana, herdada de contextos evolutivos prvios, como composta por um conjunto de competncias naturais, que so adaptaes produzidas por seleo natural e sexual e que decorrem de interao entre genes e fatores ambientais. A partir desse arcabouo, as abordagens biolgicas ao comportamento humano proporcionam novas hipteses e resultados no triviais a respeito de aspectos variados do comportamento humano, desde as preferncias sexuais at a competio, altrusmo e comportamento agressivo.

    A recepo imediata das ideias de Darwin no campo psicolgico no foi sempre entusistica. Quantas ideias obscuras, quantas ideias falsas!... que linguagem pretensiosa e vazia!, escreve em 1864 J. P. Flourens, que tinha livros publicados sobre instinto animal, a respeito de A origem das espcies. Numa resenha de The descent of man, na revista The Lancet (1871), lemos: Aos que [...] exigem as provas as mais conclusivas [a respeito] dos atributos mentais e morais do ser humano... o conjunto de fatos apresentado pelo Sr. Darwin deve parecer bastante inadequado e seu raciocnio a partir deles inconclusivo, seno totalmente falso. Estas opinies apressadas contrastam com a impressionante vitalidade das ideias darwinianas na psicologia e nas cincias do comportamento de hoje, no s em centros tradicionais de pesquisa como no Brasil. So muitas as promessas de avano na compreenso tanto do instinto como da mente.