Data: Outubro de 2015. Culturas e Identidades · Absoluto de Mestre Eckhart no Livro a Religião e...
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Data: Outubro de 2015.
I Congresso Lusfono de Cincia das Religies
Religies e Espiritualidades Culturas e Identidades
LISBOA | 9 a 13 de maio de 2015
Organizao:
Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias
Em parceria com:
Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo
Pontifcia Universidade Catlica do Paran
Universidade do Estado do Par
Universidade Federal de Juiz de Fora
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Grupo Coordenador da Comisso Organizadora:
Paulo Mendes Pinto (ULHT), Carlos Andr Cavalcanti (Un. Fed.
Paraba), Emerson Silveira (Un. Fed. de Juiz de Fora), Eullio
Figueira (PUC-SP), Flvio Senra Ribeiro (PUC Minas), Manuel
Ribeiro de Moraes Jnior (Un. do Est. do Par) e Srgio Rogrio
Azevedo Junqueira (PUC-PR)
Restante Comisso Organizadora:
Alfredo Teixeira (Un. Catlica Portuguesa), Celeste Quintino
(ISCSP U. de Lisboa), Deyve Redyson (Un. Fed. Paraba),
Douglas Rodrigues da Conceio (Un. do Est. do Par), Edin
Sued Abumanssur (PUC-SP), Edite Maria Fracaro Rodrigues
(PUC-PR), Henrique Pinto (ULHT), Lidice Meyer Pinto Ribeiro
(UP Mackenzie), Marina Pignatelli (ISCSP U. de Lisboa),
Nuno Simes Rodrigues (FL-UL), Roberlei Panasiewicz (PUC
Minas) e Sylvana Brando (Un. Fed. de Pernambuco/ Un. Cat.
Pernambuco)
3
ndice
5 Roberlei Panasiewicz, Cludio de Oliveira Ribeir, Gilbraz de Souza Arago,
Espiritualidades Contemporneas, Pluridade Religiosa e Dilogo
6 Joaquim Franco, Ftima, Deusa ou Me? Um caso Mediatizado na Experiencia
Hindu portuguessa
26 Joaquim Franco, Ftima, uma ponte com o Islo? Da Especulao Religiosa
Hiptese Especulativa
54 Marcio Cappelli, Pr-Vocaes A-Teolgicas: Perguntas e Caminhos na
Reescritura nada Sagrada de Saramago em Caim
71 Francilaide de Queiroz Ronsi, A Mstica como Paradigma para Melhor
Conhecer as Religies
86 Moacir Ribeiro da Silva, Na Fronteira do Nada: A Interpretao do Nada
Absoluto de Mestre Eckhart no Livro a Religio e o Nada de Keiji Nishitani.
97 ngela Teixeira de Moraes, A Cultura Simblica Esprita e o Dialogismo
Filosfico, Cientfico e Religioso nos Textos de Allan Kardec
109 Paulo Felipe Teixeira Almeida, Revisitando a Espiritualidade Manifesta: Sitcom
Friends em Dilogo com Princpios de Leonardo Boff Sobre Espiritualidade
129 Dalva Pedro da Silva, A Sociedade (Ps) Moderna e o Sagrado: Um Dilogo
Sobre, Pluralidade Religiosa Contempornea
140 Jos Artur Tavares de Brito, Os Sem-Religio: Uma Compreenso
Antropolgica dentro do Fenmeno atual da Globalizao e das Novas Espiritualidades
155 Luiz Signates, A Comunicao, entre o Dogma e a Converso: O
Especificamente Comunicacional na Religiosidade Contempornea
168 Jair Souza Leal, Religio e Estado: A Laicidade como Garantia da Liberdade
Religiosa Luz da Teologia de Claude Geffr
182 Arlindo Jos Vicente Junior e Ceci Maria Costa Baptista Mariani, O Massacre
dos Inocentes: Espiritualidade, Mstica e Crtica Social na Arte de Cndido Portinari
196 Ldice da Costa Ieker Canella, A virtude como Fundamento religioso: uma
Hermenutica Possvel entre as Doutrinas Budista e Hoasqueira do Cebudv
209 Eliane Silva de Farias, Paulo Roberto Palhano Silva e Lusival Antonio
Barcellos, Percursos da Alteridade tnico/Religiosa do Povo Indgena Tabajara da
Paraba: Ritual do Tor X Pentecostalismo
223 Cleverton Rodrigo Rocha Silva, Deus em Heidegger
236 Bruna Milheiro Silva, Breves Consideraes Sobre a No-Violncia no Projeto
Ethos Mundial e Sua Aplicabilidade nas Biografias de Mahatma Gandhi e Martin
Luther King
4
249 Adriana Barata dos Santos Figueira, A Espiritualidade na Contemporaneidade:
Uma Busca do Homem Mergulhado em sua Subjetividade
263 Wellcherline Miranda Lima e Rosalia Soares de Sousa, Pernambuco: Retrato da
Pluralidade Religiosa e Nessecidade de Dilogo
272 Lus Felipe Lobo de Souza Macrio, Campanhas da Fraternidade: Um Caminho
para o Ecumenismo Espiritual no Brasil
287 Constantino Jos Bezerra de Melo, Danando com os Encantados na Serra Do
Ororub: Um Dilogo Interreligioso entre Estudantes da Unicap e os ndios Xucurus
304 Elizabeth de Lima Venncio, A Prtica de Intolerncia Religiosa no Estado
Brasileiro
318 Gilbraz Arago, Estudos da Religio: Desafios de uma rea de Conhecimento
no Brasil
5
Espiritualidades Contemporneas, Pluridade Religiosa e
Dilogo
Coordenadores:
Roberlei Panasiewicz, (PUC-MG)
Cludio de Oliveira Ribeiro, (UMESP)
Gilbraz de Souza Arago, (UNICAP)
Vivemos num contexto culturalmente plural que desafia e convida as
espiritualidades a entrarem em dilogo. Sem negar ou desconhecer o que h
de nico e irrevogvel em cada religio, trata-se de perceber, no convvio
com a diversidade, o que essencial em cada uma. Incluem-se nessas
espiritualidades aquelas expresses laicas e sem deus. Esse Simpsio
Temtico est aberto ao debate sobre pluralidade espiritual, perspectivas
dialgicas, espiritualidade no cotidiano bem como sobre misticismos e
fundamentalismos. Pretende fomentar a tolerncia e o compromisso tico
com a paz mundial e subsidiar uma mstica comum e transreligiosa para um
tempo de transformaes axiais.
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FTIMA, DEUSA E ME? UM CASO MEDIATIZADO NA EXPERINCIA
HINDU PORTUGUESA
Joaquim Franco (ULHT)
Resumo:
Uma abordagem interpretativa sobre a ligao dos hindus portugueses a Ftima,
partindo de um evento com impacto meditico e institucional: a peregrinao, em 2004,
de cerca de 50 hindus portugueses a Ftima. O grupo depositou um ramo de flores
aos ps da imagem da Sra de Ftima e o respetivo sacerdote (shastri) orou no altar da
capelinha das aparies o Shanti Path, mantra da paz. Uma reportagem televisiva
retratou o acontecimento e na sequncia houve reaes, institucionais e informais, de
descontentamento ou a enaltecer.
A devoo dos hindus portugueses a Ftima faz tambm parte de uma histria de
inculturao. Aps investigao sobre as relaes centenrias entre portugueses e
indianos, crentes do catolicismo e das tradies religiosas vdicas, constata-se que em
Goa, ex-colnia portuguesa, os elementos do hindusmo foram incorporados pelo
catolicismo e vice-versa. Vm j do sculo XVIII testemunhos do cruzamento de
cosmogonias, apesar do controlo portugus das atividades religiosas e sociais.
Os hindus na ndia e em Moambique habituaram-se a ouvir falar de Ftima pelos
portugueses catlicos e a comunidade hindu que se foi instalando em Portugal no
ficou indiferente ao fenmeno. Assente no pressuposto de uma origem divina una, os
deuses e divindades podem ser interpretados como expresses visveis da unicidade
divina, pelo pluralismo e condicionalismo circunstancial do ser humano. Por outro lado,
semelhana de outros enquadramentos religiosos, um dos deveres dos hindus
tambm o da peregrinao (tirthayatra)...
Palavras chave: Ftima, Hindus, Dilogo, Peregrinao
Abstract:
An interpretative approach of believer Portuguese 'Hindu' connection to Fatima,
starting from an event with media and institutional impact: 50 'Hindu' Portuguese
pilgrimage in 2004. The group placed a bouquet of flowers to the image feet of Our
Lady of Fatima and the shastri prayed at the altar of the local Chapel the Shanti Path,
mantra of peace. A television reported the event and as a result there were reactions,
institutional and informal, of discontent or praise.
The devotion of 'Hindu' to Fatima is also part of a history of inculturation. After
research on the centuries-old relations between the Portuguese and Indians, the Catholic
believers and the Vedic religious traditions, it appears that in Goa, a former Portuguese
colony, the elements of 'Hinduism' have been incorporated by Catholicism and vice-
verse. Eighteenth century witnessed cross cosmogonies, despite the Portuguese control
of religious and social activities.
The 'Hindu' believer of India and Mozambique used to hearing about Fatima by
Catholic Portuguese and the Hindu community which was installing in Portugal was
not indifferent to the phenomenon. Based on a unified divine origin, the gods and
deities can be interpreted as visible expressions of the divine unity, by circumstantial
pluralism and constrain of being human. Moreover, like other religious frameworks, one
of the duties of the 'Hindu' is also the pilgrimage (tirthayatra)...
Keywords: Fatima, Hindus, Dialogue, Pilgrimage
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Introduo
H uma abertura recente, e crescente, do fenmeno de Ftima s religies no crists, na
linha do dilogo inter-religioso recomendado e praticado pela Igreja catlica aps o
Conclio Vaticano II. Esta atitude no tem sido bem aceite por alguns setores religiosos
e reveste-se ainda de um evidente receio de sincretismo. Recentes episdios e aparentes
equvocos neste processo, com repercusso meditica, conduziram a uma maior cautela
por parte das entidades catlicas que tutelam o espao.
Quase 100 anos depois, constata o socilogo Policarpo Lopes numa anlise ao
fenmeno, a tenso entre a legitimidade e no-legitimidade no campo religioso
esbateu-se e a fronteira do religioso legtimo e no legtimo deixou de ter relevncia
(1). Ftima adquiriu elevada legitimidade social e religiosa ao assumir uma certa
conscincia coletiva e na vida, transformando-se num lugar alto de procura de
sentido na ps-modernidade.
Mrio Pinto no v outra sada: Se cada um no cr a no ser no que sabe, em muito
pouco pode crer. E se em pouco ou nada acreditar, para alm do pouco que sabe por si
mesmo, cada homem no pode viver verdadeiramente, e no passar de uma pequena
cortia na superfcie agitada das guas de um imenso e ignoto oceano (2).
H um fundo tico e universal que acompanha as religies. Estas (re)apresentam-se,
neste tempo de diversidade e pluralidade na(s) procura(s), como fora motriz da paz
social.O fenmeno de Ftima, que se fez global a partir de um pas historicamente
vocacionado para ir alm-fronteiras, paradigmtico. Embora a convivncia religiosa,
bem ou mal sucedida, acompanhe a histria das sociedades, o dilogo inter-religioso
ganhou novos conceitos na histria da Igreja e das religies. No de estranhar que
alguns gestos e passos, ousados porque so inditos, sejam mal interpretados ou
rejeitados, sujeitos ao preconceito e ao conservadorismo da tradio, inaceitveis entre
os catlicos com uma viso pr-conciliar e centralizadora da Igreja, desencadeando
mecanismos de extrema prudncia nas estruturas hierrquicas. Neste trabalho tenta-se
fazer uma abordagem interpretativa da aproximao dos hindus portugueses a Ftima,
gerador de controvrsia meditica e institucional. Admitindo que a denominao
hindu ou hindusmo no etimolgica e culturalmente pacfica, esclarece-se que,
neste trabalho, se entende como hindusmo o conjunto das culturas vdicas - e dos
seus princpios filosfico-religiosos -, das quais derivou um vasto mosaico de crenas e
prticas. Por inerncia, considera-se hindu aquele que crente ou tem uma qualquer
prtica ligada ao hindusmo.
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1. Dilogo inter-religioso no magistrio da Igreja
A declarao Nostra Aetate, sada do Conclio Vaticano II, introduziu formalmente a
Igreja Catlica no lento caminho do dilogo entre as religies, relanando-o Os
homens esperam resposta para os enigmas da condio humana, os quais, hoje como
ontem, profundamente preocupam os seus coraes: O que o homem? Qual o sentido
e a finalidade da vida? () De onde vem o sofrimento e para que serve? Qual o
caminho para alcanar a felicidade verdadeira? O que a morte, o juzo e a retribuio
depois da morte? E, finalmente, que mistrio ltimo e inefvel envolve a nossa
existncia, do qual vimos e para onde vamos? , mas protagonistas religiosos,
particularmente do cristianismo e do Islo, temem a deriva de um sincretismo religioso
associado ao ecumenismo e ao dilogo inter-religioso.
A Igreja catlica, na perspetiva do seu magistrio, parte de dois pressupostos teolgicos
para o dilogo inter-religioso, com origem no Conclio Vaticano II e reafirmados por
Joo Paulo II numa encclica: todos os povos constituem uma comunidade nica, tm
a mesma origem e o mesmo fim ltimo em Deus (Declarao, 2); O Esprito da
verdade operante para alm das fronteiras do Corpo Mstico, est presente tambm na
crena firme dos seguidores de religies no crists, nos seus ritos, culturas e
especialmente, na orao, pois toda a orao autntica suscitada pelo Esprito
Santo, misteriosamente presente no corao dos homens (Redemptor Hominis, Joo
Paulo II). O mesmo Papa, acrescenta, no entanto, que o dilogo tem como fim ltimo a
misso evangelizadora, pois deve se conduzido e realizado com a convico de que a
Igreja o caminho normal de salvao e que s ela possui a plenitude dos meios de
salvao (Redemptoris Missio, Joo Paulo II).
Numa concluso pragmtica, mas aparentemente contraditria, Joo Paulo II entende
que o interlocutor no dilogo deve ser coerente com as prprias tradies e convices
religiosas, e disponvel para compreender as do outro, sem dissimulaes nem
restries, mas com verdade, humildade e lealdade, sabendo que o dilogo pode
enriquecer ambos () e simultaneamente em vista a superar preconceitos, intolerncias
e mal-entendidos.
Foi neste sentido que Joo Paulo II organizou os Encontros de Assis, juntando
representantes das vrias religies, e repetiu gestos de proximidade e curiosidade
cultural com outras religies, nas muitas viagens que fez a pases de maioria religiosa
no crist.
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Sendo uma atitude recente na Igreja catlica, o processo no est isento de crticas
internas e interpretaes vrias.
Se entre os lderes religiosos prevalecem os fantasmas e o medo do sincretismo ainda
forte, o discurso poltico relaciona cada vez mais a insegurana com a imigrao e a
imigrao com a religio. O encontro ou confronto cultural inevitvel e so poucas
s aumenta o preconceito. a um nvel cultural, de constituio antropolgica, que se
coloca o desafio. Para o Papa Ratzinger, o dilogo inter-religioso pode contribuir para
desanuviar tenses culturais ou polticas e promover a liberdade religiosa inexistente em
muitos pases de maioria islmica, entenda-se. Entre religies no se discutem
verdades. Admitindo que o absoluto transcendente um mistrio insondvel com
dinmica intemporal, o dilogo entre religies possvel no respeito mtuo por
conceitos como verdade e revelao enquanto mecanismos de ordem e de compreenso
que estruturam culturas.
2. Dilogo inter-religioso, segundo o papa Francisco
Com o papa Francisco, o dilogo da Igreja de Roma com outras igrejas e religies tende
a ganhar uma dimenso mais pragmtica e menos intelectual. So conhecidas as
relaes de proximidade por ele criadas, enquanto arcebispo, com os lderes de outros
grupos religiosos em Buenos Aires. Na exortao apostlica Evangelii Gaudium - A
alegria do Evangelho (3), o Papa reafirma a centralidade dos evangelhos na Igreja,
definindo a evangelizao como misso prioritria dos cristos catlicos. Sendo um
documento marcadamente social e, em certa medida, poltico, a exortao aborda a
dimenso do dilogo num captulo sobre a dimenso social da evangelizao.
Francisco entende que o Evangelho inclusivo. Num subcaptulo intitulado o dilogo
social como contribuio para a paz, distingue o dilogo social num contexto de
liberdade religiosa, do dilogo entre a f, a razo e as cincias. Reflete sobre o dilogo
ecumnico e, especificamente, sobre as relaes com o Judasmo, distinguindo-as do
restante dilogo inter-religioso, que considera, apesar dos vrios obstculos e
dificuldades, de modo particular os fundamentalismos de ambos os lados, uma
condio necessria para a paz no mundo. Cita as concluses da Conferncia dos
Bispos da ndia The Churchs Role for a Better India (8 de Maro de 2012)
apelando a uma abertura, compartilhando alegrias e tristezas, para, dessa forma, as
religies aprenderem a aceitar o outro, na sua maneira diferente de ser, de pensar e de
se exprimir. Para o papa Francisco, um dilogo, no qual se procurem a paz e a justia
social, em si mesmo, para alm do aspeto meramente pragmtico, um compromisso
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tico que cria novas condies sociais. Estes esforos podem, assim, ter tambm o
significado de amor verdade, entendida esta na forma crist, mas no devem os
catlicos, adverte, descuidar o vnculo essencial entre dilogo e anncio, que leva a
Igreja a manter e intensificar as relaes com os no-cristos. Um sincretismo
conciliador seria, no fundo, um totalitarismo de quantos pretendem conciliar
prescindindo de valores que os transcendem e dos quais no so donos.
A frmula catlica, aqui reafirmada, a de uma abertura s outras religies conservando
convices, mas na disponibilidade, como afirmara Joo Paulo II, para a compreenso
do outro, sabendo de antemo que o dilogo enriquece ambas as partes. Mas, referindo
todos os no-cristos fiis sua conscincia, o Papa associa-os, por gratuita
iniciativa divina, ao mistrio pascal de Jesus Cristo. Na doutrina catlica, ps
Conclio Vaticano II, esclarecida pela Comisso Teolgica Internacional - O
cristianismo e as religies (1996) - entende-se que a ao divina produz, fora da
Igreja, sinais, ritos e expresses do sagrado. Podem no ter o significado e a eficcia dos
sacramentos da Igreja, lembra o papa Francisco, mas podem ser canais que o prprio
Esprito suscita para libertar os no-cristos do imanentismo ateu ou de experincias
religiosas meramente individuais, ou podem transportar sabedorias prticas que ajudam
a suportar as carncias da vida e a viver com mais paz e harmonia.
Como enquadraro os crentes no-cristos esta interpretao catlica segundo a qual
outras experincias religiosas, por via da graa divina, tambm fazem parte do
processo cristo de salvao o mistrio pascal de Jesus Cristo?
3. Dilogo inter-religioso na mensagem de Ftima?
Sem doutrina fixada ou reflexo aprofundada, o fenmeno da proximidade de crentes de
outras religies a Ftima tem criado alguns embaraos. D. Anacleto Oliveira, doutorado
em Cincias Bblicas pela Universidade de Munster, Alemanha, e atual bispo de Viana
do Castelo, defende que a mensagem de Ftima carrega tambm uma
responsabilidade pelo dilogo inter-religioso, pela via da paz, insinuando que a
mensagem plasmada nas denominadas aparies, chama a ateno no apenas a
insistente promessa de paz, mas sobretudo o caminho proposto para a alcanar: o da
comunho com Deus como condio imprescindvel para uma estvel e s convivncia
inter-humana (4). Na interpretao de D. Anacleto Oliveira, as alegadas referncias
paz e ao fim da guerra nas aparies so acompanhadas pela recomendao de orao e
total entrega a Deus, com prostrao e preces de converso dos pecadores ou oferta de
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sacrifcios em reparao dos pecados. O prelado entende que esta dimenso da orao
a pensar na converso pela paz no pode deixar de estar enraizada no que especfico
de toda a religio: a ligao explcita ou implcita do homem com o sagrado (5).
nisso que se baseiam as relaes da Igreja com as outras religies, alega D. Anacleto,
lembrando Joo Paulo II: O respeito pelo homem na sua busca de resposta s questes
mais profundas da vida e respeito pela ao do Esprito nesse mesmo homem
(Redemptoris Missio, 1979).
4. Visitantes de Ftima
O Estudo sobre o perfil do visitante de Ftima, da autoria de Maria da Graa Poas,
editado pelo Centro de Investigao Identidades e Diversidades com as Edies
Afrontamento para a Regio de Turismo Leiria/Ftima, revela que quase 30% dos
visitantes de Ftima se considera leigo no praticante, havendo 2,8% dos visitantes
que so ateus ou professem outra religio, cerca de 150 mil por ano. Sendo um
espao catlico, o perfil dos visitantes d-lhe uma grande amplitude social e religiosa.
A f de Ftima o local, um destino de caminhada, um reencontro com a multiplicidade
de leituras e experincias que atravessam o ntimo. No h o peregrino de Ftima, h
os peregrinos de Ftima que no se anulam na multido, cada qual com as suas
motivaes espirituais ou materiais, aliceradas num mistrio simbolicamente maternal,
seja com as balizas da devoo mariana mais tradicional da f catlica ou no retorno
simblico como caminho para o encerramento de um ciclo, um desejo natural ao
ventre protetor.
5. Oriente visita Ftima
Em 2001, depois de outras visitas de mestres budistas, o lder espiritual budista tibetano
Dalai Lama, e prmio Nobel da Paz, visitou a Cova da Iria. Nesta passagem por Ftima,
Tenzin Gyatso, o 14 Dalai Lama do budismo tibetano, afirmou que visitar aquele local
tinha um significado muito especial, pois estava ali como peregrino. No budismo, a
Virgem de Ftima poder ser sincreticamente equiparada a Tara, a me de todos os
budas, que personifica a sabedoria e a compaixo.
Em 2004, cerca de 50 hindus portugueses deslocaram-se a Ftima, em peregrinao
organizada, retratada em reportagem da SIC emitida no dia 5 de Maio desse ano, tendo
o sacerdote hindu proferido uma orao na Capelinha das Aparies. O grupo de
peregrinos hindus depositou um ramo de flores aos ps da imagem e o respetivo
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sacerdote (shastri) Shri Ramniclal Dave, orou no altar da capelinha o Shanti Path,
mantra da paz, invocao/orao pela paz:
Om purnamadah purnamidam purnat purnamudacyate
purnasya purnamadaya purnamevavasisyate
om shantih shantih shantih
Om. Isto plenitude. Aquilo plenitude.
Da plenitude, a plenitude surge.
Tirando-se a plenitude da plenitude,
Somente a plenitude resta.
Om paz, paz, paz.
A comitiva foi depois recebida pelo reitor do Santurio e pelo bispo da diocese, a quem
o sacerdote hindu ofereceu um chale com inscries da Bhagavad Gita, tendo-o
colocado aos ombros dos representantes da Igreja. O reitor do santurio, monsenhor
Luciano Guerra, enquadrou a visita:
evidente que so civilizaes e religies bastante diferentes. Mas em todas as
religies h um fundo comum que nasce da comunidade de humanidade que todos
somos. E s vezes, no embate das diferenas, esquecemos esse fundo comum.
O sacerdote hindu que proferiu na capelinha a orao pela paz, explicou a motivao
dos hindus:
Venho manifestar com todo o respeito a minha f. Poderei assim fazer que outras
pessoas possam ter vontade de corresponder a este meu respeito. Acredito que este
sentimento e esta atitude, vo fomentar o respeito mtuo para uma convivncia
harmoniosa e o encontro nos princpios comuns a todas as religies.
O bispo de Leiria/Ftima, D. Serafim Ferreira, clarificou a atitude de acolhimento:
No queremos se fundamentalistas, queremos ser honestos, sinceros e, por osmose,
comunicar a fecundidade dos nossos rios.
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De 9 a 12 de Outubro de 2003, o santurio organizou um congresso internacional que
abordou a dimenso inter-religiosa dos lugares sagrados O presente do Homem, o
futuro de Deus. O lugar dos santurios na relao com o sagrado. Alm do tratamento
cientfico do tema, foi dedicado um dia inteiro ao testemunho de representantes de
santurios de diferentes religies (hindusmo, budismo, islamismo e cristianismo). As
duas mesas redondas foram moderadas pelo presidente do Conselho Pontifcio para o
Dilogo Inter-religioso que introduziu justificou a iniciativa:
Se caminhamos juntos, podemos ajudar-nos mutuamente a atingir o objetivo
que Deus estabeleceu para ns.
No final dos trabalhos, os participantes assistiram peregrinao internacional
aniversaria de Outubro.
Neste congresso, tiveram destaque as palavras do telogo jesuta Jacques Dupuis,
especialista em dilogo inter-religioso. Na comunicao Do confronto ao encontro de
religies, o telogo que defendeu o conceito de pluralismo religioso inclusivo,
concluiu:
This dialogue does not serve as a means to a further end. Neither on one side
nor on the other does it tend to the conversion of ones partner to ones
own religious tradition. Rather it tendes towards a deeper conversion of each
to God. The same God speaks in the heart of both partners; the same Spirit it
work in both. It is the same God who calls and challenges the partners
through one another, by means of their mutual witness. Thus they became, as
it were, for each other and reciprocally, a sign leading to God. (6)
Esta iniciativa, bem como as visitas dos crentes de outras religies ao santurio de
Ftima, foi fortemente contestada e distorcida por grupos adversos abertura inter-
religiosa da Igreja, lembra D. Anacleto Oliveira, tendo esta contestao chegado
Santa S, que desencadeou um processo informal de averiguaes, o que obrigou o
reitor do santurio a desmentir falsas afirmaes e a reafirmar que no campo inter-
religioso, se mantm fiel ao sentir da Igreja.
Por outro lado, ao longo de dcadas, o culto espalhou-se pelo mundo. H hoje quase mil
igrejas em todo o mundo dedicadas a N. Sra de Ftima. A devoo pelo mundo, no
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entanto, no pode ser dissociada da instrumentalizao poltica e ideolgica do
fenmeno de Ftima.
6. Divindade feminina na tradio dos hindus portugueses
Na corrente devocional que orienta teologicamente os hindus portugueses sediados
no templo de Telheiras, em Lisboa, o livro de referncia o Bhagavad Gita um dos
trs textos fundamentais nas tradies filosfico-religiosas da ndia -, com a figura
central e substantiva de Krishna - avatar (descida ou reencarnao) de Vishnu , com
dilogos poticos e filosficos, cultivando uma experincia religiosa comunitria, mais
do que um ritualismo de ascese seguido noutras correntes de origem vdica. Embora
reconhecendo uma grande diversidade na criatividade interpretativa do texto, sua
exegese e hermenutica, podemos inferir, sem com isso trair a tradio, que se trata de
um texto de sntese, popular, com uma linguagem metafrica mais acessvel,
conjugando Darma e Darshana (princpios filosfico-religiosos sobre o modo e a
reflexo no agir, da prtica de vida ao ponto de vista). Bhagavad-Gita contm a smula
do conhecimento clssico que partiu dos Vedas () escrita num dilogo acessvel ()
exalada do corpo do maior pico indiano, o Mahabharata () converteu-se por si s
num evangelho e numa mensagem com carter pedaggico e moral, mas onde a
transcendncia dos valores humanos atravs da filosofia e de uma cincia da religio (o
Vedanta), tornaram a obra um testemunho de tica universal, inteligvel (...) (7).
Da Bhagavad-Gita desenvolveram-se muitas escolas, com corpos de interpretao
prprios a partir de um sistema religioso. o caso da escola Nimbaditya-sapradaya, que
segue o culto do casal Rada-Krishna, com base da Bhagavata-purana.
Tambm pela tradio da Bhagavad-Gita, intui-se um sistema filosfico da Realidade
Absoluta que se exprime antropomorficamente, que desenvolve cosmogonias de muitas
formas e divindades, a partir de um princpio definido numa tripla dimenso
representada em trindade a trimurti: a divindade que cria (Brahma), a divindade que
preserva o mundo (Vishnu) intervindo na forma de avatar, e a divindade tranformadora,
que destri e renova, da continuidade nas polaridades extremas, da ascese e da
sensualidade (Shiva).
Estas divindades, como expresso do Supremo, so inseparveis da dimenso feminina
shakti como princpio de uma potncia prenhe. E assim se formaram grandes
casais de devoo. Nesta tradio, se a divindade imvel, a manifestao da vida
reclama uma contrapartida de estatuto anlogo e de natureza complementar. Nenhum
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deus, grande ou pequeno, nenhum avatar, pode operar sem integrar a sua shakti. A
existncia do princpio feminino (a deusa) e a sua unio indissolvel com o elemento
masculino (o deus) permitem o desdobramento cclico do universo e o regresso
unidade (8), em certa medida um pouco como o princpio que define a dualidade
purusha e prakriti (um Eu prprio espiritual, de puro conhecimento, e a natureza
material e percecionada) numa dualidade rejeitada noutras escolas e darshanas,
para as quais o Uno Brahman - a nica realidade e o resto iluso maya.
A venerao faz-se ao simblico complementar masculino e feminino. Os altares do
templo hindu de Lisboa exibem as divindades masculinas sempre e inevitavelmente
acompanhadas pelas respetivas companheiras. o caso da deusa Rada, da deusa
Parvati e da deusa Lakshmi. No h a pretenso, neste trabalho, de aprofundar a
teologia, hermenutica e simbologia inerente s divindades que sustentam a devoo
vdica alicerada na Bhagavad Gita. Mas teremos de fazer uma breve abordagem para
depois se estabelecer uma hiptese de relao com o fenmeno de Ftima, tambm para
os hindus portugueses.
A deusa Lakshmi foi associada, calcula-se que h cerca de 1600 anos, a Vishnu. Surgiu
como sua esposa ou consorte, e adquiriu - alm dos seus atributos anteriores -
caractersticas de uma boa esposa, dedicada. venerada em Diwali, noite de lua nova,
como smbolo de uma presena que dissipa as trevas no corao dos devotos.
A deusa Parvati est associada a Shiva, que tivera antes uma primeira esposa Sati.
Parvati tambm a me de Ganesha. Algumas comunidades acreditam que ela a irm
de Vishnu e Shaktas. considerada por algumas tradies, como a derradeira
representao divina da shakti - encarnao da energia total do Universo. Noutras
interpretaes, Parvati a suprema Me Divina e todas as outras deusas so referidas
como encarnaes ou manifestaes dela.
Em Goa, o shivasmo imps-se ao vishnusmo; Shiva , por isso, venerado nas suas
mltiplas designaes e a deusa venerada como sua esposa divina, como a exemplar
Parvati ou a ambivalente, simultaneamente malevolente e protetora, [Shanta] Durga
(9). E embora Vishnu e os seus avatares sejam venerados em Goa, a sua esposa
Lakshmi, perdeu fora devocional para a esposa de Shiva.
A deusa Rada, agregada prosperidade e ao sucesso, a favorita de Krishna.
tambm considerada como uma encarnao de Lakshmi. Tradicionalmente, o amor de
Rada por Krishna assimilado aspirao divina da alma humana. Ela considerada
como um dos ltimos modelos de devoo, embora seja mais uma deusa adltera que
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vishnuhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Diwalihttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ganeshahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Vishnuhttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Shaktas&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Universo
16
uma esposa legtima. venerada como intermediria entre o homem e Deus, o amor por
Deus que transcende todas as convenes.
Convm relembrar tambm o conceito da Deusa suprema ou Grande Deusa,
reforado a partir do sculo V e que desenvolveu a venerao de vrias deusas.
O bhakti - devoo - a expresso dominante da religiosidade na ndia contempornea e
popular, integrando sobretudo os deuses Shiva e Vishnu, mas com culto complementado
ou at substitudo pelo culto Deusa. Neste caso, h uma relao, nos templos, com a
venerao catlica por Maria.
A Grande Deusa ser a consagrao de uma nica deusa, mestra do universo, a quem
algumas correntes atribuem a tripla caracterstica do Supremo, acima referida.
Mahadevi, a Grande Deusa, pode surgir agregada aos mitos das divindades femininas j
referidas, ou tomar um nome especfico numa seita. Pode representar-se tambm pelos
estados de esprito. Generosa e maternal (Parvati ou Lakshmi) ou feroz e sanguinria
(Kali). Intervm pela shakti, a natureza complementar feminina, ou pela maya, que na
Shvetashvatara Upanishad um vu mstico que rodeia o Supremo conhecimento,
que desvia o homem da realidade das coisas, para a avidya, ignorncia, iluso
provocada pelas emoes, que limita do Conhecimento.
Nesta tentativa de enquadrar as tradies hindus com o fenmeno de Ftima e o
alcance daquelas numa dinmica de sincretismo, ou, ousando um termo sem
categorizao, numa teologia de dilogo, recorde-se tambm, dando apenas mais um
exemplo na complexidade desta abordagem, o mstico Ramakrishna (1836 1886) que
afirmou a validade de qualquer experincia religiosa ou humana do divino.
Ramakrishna considerado um santo, com grande implantao popular. Mestre de
meditao, dele referem as crnicas que entrou em contacto com Krishna, Jesus,
Maom, enquanto avatares, legitimando nesta tradio vdica o carter de verdade
noutras religies, porque todas levam Unidade, cada uma revelando um dos seus
aspetos (10). Ramakrishna casou com uma criana, que ele prprio viria a considerar a
encarnao da Me suprema Sharada Devi hoje considerada tambm uma
santa. No clara a relao destas tradies e destes contextos com a devoo dos
hindus portugueses a Ftima, mas tambm no de excluir que todos eles se tenham
conjugado contribuindo para um enquadramento devocional difuso, para o qual
contribuir ainda a origem da comunidade, sobre a qual se falar a seguir.
17
7. Hindus, novos peregrinos de Ftima?
Para introduzir o tema, retomem-se as trs imagens-guia propostas por Policarpo
Lopes, entre as grandes linhas de sentido na paisagem religiosa: o peregrino; o
convertido; o praticante.
Entende o socilogo que a imagem que revela maiores potencialidades na ps-
modernidade a do peregrino. O praticante define-se pela filiao e pertena, com um
conceito de identidade, participao na vida do grupo de origem ou formao social,
princpio de mobilizao ativa e afetiva (11). O convertido implica a adeso a uma
tradio religiosa ou comunidade crente aps caminhada pessoal, sem qualquer
identidade crente prvia (12).
A imagem-guia do peregrino o grande operador de modelao do sagrado e do
religioso na ps-modernidade, no s nos fluxos do turismo religioso, mas tambm na
revisitao da instituio cultural da peregrinao, que no seio da ps-modernidade
retomou novo vigor, mobilizando grandes massas humanas procura de lugares altos
de sentido, de memria e de experincia alternativa realidade social.
A peregrinao cruza a dimenso da errncia do peregrino na procura de sentido com
as imagens-guia do convertido e do praticante, uma instituio determinante na
cristandade da Idade Mdia. A imagem do peregrino precede, no nosso horizonte
cultural, a do praticante (13).
A errncia religiosa para os lugares altos do sagrado exerceu sempre uma forte
atrao nos crentes (14), reativada atualmente pelos fluxos tursticos e na forma de
experincia fsica do espao como itinerrio espiritual
A comunidade hindu s comea a ser significativa a partir de 1974, em
consequncia da descolonizao de Moambique, tendo hoje, segundo informaes
cedidas pela prpria comunidade, aproximadamente 9.000 membros, residentes nas
reas metropolitanas de Lisboa e Porto, na sua maioria oriundos de Moambique, onde
se juntara j um nmero significativo vindo do antigo estado portugus da ndia,
sobretudo de Goa e Diu (Gujarate).
A devoo dos hindus portugueses a Ftima deve entender-se numa histria de
inculturao.
Aps investigao sobre as relaes centenrias entre portugueses e indianos, crentes do
catolicismo e das tradies religiosas vdicas, constata Rosa Maria Perez, que em Goa,
o catolicismo incorporou elementos do hindusmo, e, inversamente, o hindusmo,
embora em menor extenso, absorveu traos catlicos, pelo que, entende a
18
antroploga, pode abandonar-se a ideia de uma incompatibilidade essencial (ou
deveria dizer essencialista?) entre as duas religies (15). Vm j do sculo XVIII
testemunhos do cruzamento de cosmogonias, com sinais de esforos conjuntos feitos
por hindus e catlicos para protegerem os deus hindus e manterem viva a religio hindu
mesmo nos perodos mais rigorosos de rejeio da alteridade ritual (16), isto apesar do
controlo portugus das atividades religiosas e sociais.
A devoo dos hindus por Nossa Senhora coisa conhecida e no surpreende
ningum em Goa, nem mesmo no resto da ndia, sustenta o padre Joaquim Loiola
Pereira - secretrio do arcebispo catlico de Goa e Damo -, questionado para este
trabalho (09.01.2015).
Nos lugares onde a devoo pblica N. Sra de Ftima mais acentuada - ou porque
Ela a padroeira da freguesia ou porque existem tradies como procisso de velas,
etc... os hindus vo l ter tambm, sobretudo quando se celebram missas
especiais ou procisses solenes com a imagem da Senhora de Ftima, sem que se
conhea algum motivo especial. A comunidade catlica representa 27% da populao
de Goa, antiga jia do imprio portugus a Oriente, onde, de acordo com o sacredote, os
hindus so cerca de dois teros (65%) e os muulmanos 8%.
Durante os anos da colonizao, os hindus, na ndia e em Moambique, habituaram-
se a ouvir falar de Ftima pelos portugueses catlicos. Por outro lado, a comunidade
hindu que se foi instalando em Portugal no ficou indiferente ao fenmeno. Assente
no pressuposto de uma origem divina una, os deuses e divindades podem ser
interpretados como expresses visveis da unicidade divina, pelo pluralismo e
condicionalismo circunstancial do ser humano.
semelhana de outros enquadramentos religiosos, um dos deveres dos hindus
tambm o da peregrinao tirthayatra (17).
As razes vdicas da peregrinao hindu so referidas no Rig-Veda, onde o termo
tirtha aparece vrias vezes como significando via, passagem, local onde se
atravessa um curso de gua e se organizam festividades. Estes tirtha tm vrios
enquadramentos e funes. Da transmigrao espiritual para alcanar a libertao, como
lugares sagrados mentais, desenvolve-se para o cumprimento de uma promessa ou ao
de graas a uma divindade. Seja como for, uma peregrinao hindu est
correlacionada com prticas ascticas, como forma alternativa, menos rigorosa
disciplinarmente, acessvel a todos.
19
Varanasi talvez o mais importante local de peregrinao. A cidade santa, na
confluncia dos rios Varana e Asi, afluentes do rio sagrado Ganges, morada de Shiva,
ali venerado como Senhor do Universo.
Com a dinmica da dispora hindu, da secularizao e inculturao, os hindus que
vivem longe da ndia encontraram lugares alternativos para esta experincia, tambm
nas culturas religiosas onde se instalaram e com quem convivem. o caso de Ftima.
Tratando-se de um caso recente na histria, ainda difcil clarificar ou esquematizar
esta devoo na estrutura antropomrfica hindu. Convm salientar que este caso no
nico na Europa. O mesmo se passa, por exemplo, em Lourdes, onde com muita
frequncia se deslocam peregrinos hindus estacionados em Frana ou na Gr-
Bretanha. No ser difcil de entender. Fenmenos desta natureza no so exclusivos do
catolicismo. Tambm os encontramos, ao longo da histria, noutras latitudes religiosas.
Extrapolando, Ftima configurar, em certas caractersticas, sobretudo na simblica, o
totemismo elementar sugerido por Emile Durkheim, aplicvel a Portugal - enquanto
smbolo turstico tambm -, religiosidade dos portugueses e dinmica devocional
mariana na Igreja catlica, extensvel a outras dinmicas de crena e espiritualidade,
mais ou menos convencionais, mas sobretudo populares.
Questionada a comunidade hindu sediada em Telheiras sobre as motivaes da
devoo a Ftima, podemos sintetizar algumas ideias:
- Para estes hindus, a Senhora de Ftima uma manifestao sagrada, como ela .
Para j, sem equivalncias definveis. Na Cova da Iria, os hindus portugueses
sentem uma presena indiscutvel do Sagrado.
- Ela representa, dizem, o sagrado feminino, a Santssima Me. Podemos comparar,
especulando, shakta, a dimenso feminina suprema.
- Para os hindus, tambm a padroeira - deusa protetora de Portugal - a quem devem
agradecer.
- Deslocam-se a Ftima para pagar o dzimo das graas que obtiveram, semelhana
do que fazem, noutros contextos, com outras divindades. H hindus com negcios
bem-sucedidos na Europa que se deslocam a Ftima para cumprir este dever.
- Os hindus no negam o enquadramento da devoo catlica para todos os efeitos,
as representaes do divino e do sagrado noutras religies so enquadrveis no
princpio da reencarnao, os avatares de deuses superiores , por isso entendem no
promover qualquer heresia. Mas no veneram a Senhora de Ftima como Maria, me de
Jesus. A devoo est agregada ao local. No uma venerao incondicional
20
Senhora de Ftima, inseparvel do local, que permite uma experincia especial do
sagrado.
Convm lembrar que - como aconteceu posteriormente com Dalai Lama, lder budista
tibetano -, um lder espiritual hindu, Morari Bapu, visitou o local em 1982 e
atestou as caractersticas espirituais do local, tendo deixado uma mensagem no livro
de honra do Santurio, na mesma folha em que pode ler-se uma mensagem de madre
Teresa de Calcut, o que, para alguns hindus, interpretado como um sinal que
certifica Ftima como elo de ligao entre duas culturas. Em 1988, outro sacerdote
hindu, Naranay Guru Suamli visitou tambm o Santurio de Ftima tendo escrito no
livro de visitas que o lugar extraordinariamente divino.
Em contexto religioso, como se sabe, o acaso ocasio. J em 1950, conforme relatou o
jornal Voz da Ftima, houve participao de hindus no acolhimento Virgem
Peregrina (escultura rplica da primeira) de Tuticurim na ndia portuguesa.
- Os hindus portugueses entendem que o dever de, pelo menos uma vez na vida, fazer
uma peregrinao a um lugar sagrado, pode ser cumprido em Ftima caso no seja
possvel uma deslocao ndia.
- Por ocasio da peregrinao Cova da Iria, em grupo, de cerca de 50 hindus
portugueses em 2003, o representante da comunidade explicou que acreditando o
hindu que todos os seres humanos so membros de uma famlia global, seria natural
que visse a manifestao de N. Sra de Ftima como manifestao do mesmo Deus o
mesmo Supremo.
Concluso
conhecido, e no tem gerado grande controvrsia, o sincretismo nos templos catlicos
da ndia. A maioria dos devotos que entram nas igrejas, sobretudo tendo como objeto de
venerao as imagens de Maria, so hindus. E no veneram a me de Jesus.
Muitos catlicos na ndia frequentam templos hindus para obterem respostas a
problemas concretos, como so os problemas de negcios. E h doaes feitas por
catlicos nos livros de registos. No trabalho de campo em Goa, Perez registou esse
comportamento no templo de Manguesh. No templo de Shanta Durga de Fatorpa,
Quepem, em tempos festivos, as mulheres catlicas ajoelham-se, fazem o sinal da cruz e
rezam com devoo (18) a Mame Saibin, a Santa Me.
Na Igreja de So Jernimo de Mapusa, a festa de Nossa Senhora dos Milagres,
dezasseis dias depois da Pscoa, normalmente na mesma altura do festival hindu de
21
Lairaya, milhares de devotos catlicos e hindus celebram juntos, e os hindus
veneram a imagem da Senhora dos Milagres.
Apesar da separao imposta pela colonizao, a identidade distinta da religio goesa
decorre do modo como catlicos e hindus partilharam as mesmas estruturas rituais
(19).
O padre Joaquim Loiola Pereira confirma que muitos hindus assistem [em Mapusa]
celebrao litrgica, mas o nmero vai aumentando medida que o dia avana,
tornando-se, at ao cair da tarde, uma romaria contnua de hindus que costumam
banhar a imagem de Nossa Senhora com azeite de coco, um ritual sagrado da sua
tradio. Tambm se v noutras parquias este costume de os hindus visitarem a
igreja em grande nmero, a prestar homenagem Virgem Maria, depois da celebrao
litrgica da festa.
Enquanto alguns participam nas procisses, outros (na maioria) acorrem rua e
esperam pela passagem da imagem, parando a procisso nesses lugares para que os
hindus prestem a sua homenagem pessoal Nossa Senhora, na forma de oferta de
grinaldas ou/e moedas e, em alguns casos, de uma passagem por debaixo do andor da
Virgem, sentindo-se assim abenoados.
Para o cardeal de Bombaim, Ivan Dias, a interao dos catlicos com pessoas de outras
religies normal. Num colquio organizado em 2005 em Lisboa, o arcebispo admitiu
que, semanalmente, ocorrem cerca de 70 mil crentes de outras religies aos seis
santurios marianos existentes na diocese. H quem no compreenda bem a beleza de
tal convivncia e criticam-na, comentou o arcebispo, acrescentando que no importa
as ideias com que os pagos vm aos nossos santurios, mas o sentimento de paz e
amor com que voltam para casa (20).
O mesmo eclesistico foi retratado em 1997, pelo Indian Express, a acender uma vela
junto a uma imagem da deusa Ganesh, na abertura de um seminrio internacional sobre
as relaes entre o cristianismo e o hindusmo, em Bombaim.
Apesar da sintonia descrita antes, evidente que a relao dos hindus portugueses
com Ftima no segue a pauta interpretativa e teolgica catlica. Mas como enquadrar a
experincia de Ftima no vasto e complexo contexto do dilogo inter-religioso?
Raimon Panikkar prope cinco pontos duma tipologia para definir os momentos do
dilogo entre as religies (21): 1 - Isolamento e ignorncia; 2 - Indiferena e desprezo; 3
- Recusa e conquista; 4 - Coexistncia e comunicao; 5 - Apropriao e dilogo.
22
Diramos que os hindus portugueses estariam entre os pontos 4 e 5, enquanto a Igreja
como instituio que fixa a teologia oficial do local estar no ponto 3, mas j a
experimentar os pontos 4 e 5.
O caso dos hindus em Ftima, como j se disse, deve ser contextualizado. E, ao
mesmo tempo, deve ser lido como sinal das muitas influncias, recprocas, geradoras de
inculturao, ecletismo e sincretismo, desenvolvendo, como reao, mecanismos de
fundamentalismo religioso, de defesa dos critrios religiosos absolutos que a Ocidente
esto a perder-se.
O historiador Antnio Matos Ferreira acentua este impacto cultural e social quando
aborda as sucessivas vagas migratrias na sociedade portuguesa, aps a descolonizao:
As sucessivas vagas migratrias colocaram, no seio de comunidades
tradicionalmente identificadas com o cristianismo, outras experincias
religiosas (), transportando simultaneamente outros padres de vivncia do
religioso e outras mentalidades, tm exigido uma problematizao dos
parmetros da tolerncia e da laicidade subjacentes vivncia democrtica e
aos seus contornos jurdicos, ao mesmo tempo que tm contribudo para a
definio de uma outra geografia religiosa () (22)
Independentemente do impacto meditico e da controvrsia, Ftima surgiu neste
episdio como campo de inegvel encontro cultural e inter-religioso. Pannikar entende
que neste domnio, neste dilogo, que se pode jogar de forma pacfica o destino
histrico da humanidade (23), para l das academias ou lideranas religiosas, porque
no se trata, sequer, de uma mera troca de ideias acadmicas ou de debates eclesisticos.
Ftima, com este caso, ir ao mago de uma experincia religiosa transversal, objetiva e
utilitria.
Neste, como noutros casos, torna-se evidente a urgncia de um conhecimento das
dinmicas religiosas envolvidas. Os gestos marcadamente devocionais dos hindus em
Ftima no so, pelos hindus, interpretveis como tentativa de apropriao ou
proselitismo. A existncia do espao, como lugar-alto, faz dele, por si s, uma
porta para a vivncia do sagrado.
Mas ser de estranhar a reao de certos grupos catlicos que alegam heresia e ofensa?
No! Converso e confuso caminham lado a lado, pelo que so compreensveis as
reaes institucionais. A viso absoluta e religiosamente inflexvel faz parte deste
processo de dilogo e (des)encontro. Qualquer dilogo tem riscos. Se o homem s na
23
medida das relaes, estabelecidas ou negadas, ou seja, s em encontro, desencadear
processos de encontro sem o devido conhecimento do outro pode gerar equvocos. Em
contexto religioso pode implicar at perder o nosso ponto de apoio, poderamos
inclusive inverter a nossa situao (24).
O dilogo entre religies mexe com convices que sustentam verdade(s).
Eventualmente, a nossa verdade preconizada de forma intransigente e a verdade dos
outros. Mas esta uma preocupao que parece estar aqum do pragmatismo na
prtica mais bsica e devocional, aquele em que ao encontro corresponde a intuio
comum de uma paz social, harmonia e compaixo com motivao religiosa.
margem da referida reportagem, o reprter da SIC questionou os peregrinos que se
encontravam junto Capelinha das Aparies, quando ali foi o grupo de hindus. De
nenhum ouviu palavras de reprovao. Desconhecendo os enquadramentos teolgicos
que sustentaram as crticas posteriores, os crentes catlicos apontaram aquilo que pode
considerar-se a essencial da experincia. Assumida, de resto, e como j se citou, pelos
prprios responsveis do santurio e pelo bispo local. Ser por aqui, nesta fronteira
tempestuosa, que se abordam as plataformas do dilogo e as palavras ganham sentido ao
corresponderem com os gestos pragmticos de uma convivncia pacfica (25).
Mas, retomando a introduo, h receios por parte dos dirigentes catlicos. Em alguns
casos, admite o secretrio do arcebispo de Goa e Damo, este tipo de devoes inter-
religiosas causam uma ligeira confuso sincrtica, dando lugar ainda a um outro
fenmeno, porm, muito mais reduzido... o de certos cristos visitarem templos hindus
em busca de alvio nas suas aflies ou ainda, simplesmente, de um adivinho ou de
mago. Seja como for, assume o padre Pereira, este risco far tambm parte de um
processo de evangelizao:
Em muitas dessas igrejas frequentadas por gente de outras crenas
existe um servio de informao sobre a f catlica e muitos
mostram-se interessados em abraar a f catlica depois de terem
manuseado literatura deste gnero.
24
REFERNCIAS
(1) Lopes, P. (2010). Para uma sociologia do catolicismo. (p. 168). Lisboa: Rei dos
Livros.
(2) Pinto, M. (2003). Perspectiva de um catlico. In Globalizao, Cincia, Cultura e
Religies. (p. 65). Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian/Publicaes Dom Quixote.
(3) www.vatican.va/holy_father/francesco/apost_exhortations/documents/papa-
francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-
gaudium_po.html#O_di%C3%A1logo_inter-religioso
(4) (5) Oliveira. A. (2007). Religies e Ftima. In Azevedo, C., Cristino, L. (coords).
Enciclopdia de Ftima. Lisboa: Principia.
(6) (Dupuis, J. (2003). Do confronto ao encontro de religies. In Faculdade de Teologia
da UCP (coord). O presente do Homem, o futuro de Deus Actas do Congresso
Internacional de Ftima 10-12 Outubro 2003. (pp. 317-341). Torres Novas: Grfica
Almondina.
(7) (Calazans, J. C. (2010). Introduo. (p.30). In Veda-Vyasa Dvaipayana. Bhagavad-
gita A cano do Senhor. Lisboa: squilo)
(8) (Boccali, G., Pieruccini, C. (2008). Hindusmo I, Dicionrio das Religies. (pp. 175-
179). Milo: Electa,
(9) Maria Perez, Rosa. (2012). O Tulsi e a Cruz. (p. 153). Lisboa: Crculo de
Leitores/Temas e debates
(10) (Boccali, G., Pieruccini, C. (2008). Hindusmo II, Dicionrio das Religies. (pp.
38). Milo: Electa.
(11) (Lopes, P. (2010). Para uma sociologia do catolicismo. (p. 123). Lisboa: Rei dos
Livros)
(12) Idem (p. 152)
(13) (14) Idem (p. 156)
http://www.vatican.va/holy_father/francesco/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium_po.html#O_dilogo_inter-religiosohttp://www.vatican.va/holy_father/francesco/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium_po.html#O_dilogo_inter-religiosohttp://www.vatican.va/holy_father/francesco/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium_po.html#O_dilogo_inter-religioso
25
(15) Maria Perez, Rosa. (2012). O Tulsi e a Cruz. (p. 152). Lisboa: Crculo de
Leitores/Temas e debates
(16) Idem (p. 137)
(17) Boccali, G., Pieruccini, C. (2008). Hindusmo II, Dicionrio das Religies. (pp. 80
87). Milo: Electa
(18) Maria Perez, Rosa. (2012). O Tulsi e a Cruz. (p. 158). Lisboa: Crculo de
Leitores/Temas e debates
(19) Idem (p. 162)
(20) (Frazo, T. (2005). Cristianismo na ndia. In Revista Ftima Missionria,
publicao 05/12/2005. Edio: Missionrios da Consolata
(21) Pannikar, R. (2007). O Dilogo indispensvel Paz entre as religies. (p. 36).
Seixal: Zfiro
(22) Matos Ferreira, A. (1999). Cristianismo e espao ultramarino Igreja e correntes
religiosas em face do Imprio e da descolonizao. In Bethencourt, F., Chaudhuri, K.
Histria da expanso portuguesa Vol.5. (pp. 384-405). Navarra, Espanha: Crculo de
Leitores
(23) Pannikar, R. (2007). O Dilogo indispensvel Paz entre as religies. (p. 45).
Seixal: Zfiro Idem
(24) Idem (p. 51)
(25) Ventura, F., Franco, J. (2013). Somos pobres mas somos muitos. Lisboa: Verso de
Kapa
26
FTIMA, UMA PONTE COM O ISLO? DA ESPECULAO RELIGIOSA
HIPTESE ESPECULATIVA
Joaquim Franco (ULHT)
Resumo
Uma abordagem s possveis ligaes entre a tradio islmica e a fenmeno de Ftima.
Constataremos que muita reflexo resulta de investigaes feitas com recurso a
eventuais coincidncias histricas, separadas em muitos sculos, sem legitimao
teolgica. O que no reduzir o espao, eventualmente a abrir, de possvel encontro a
partir da experincia devocional, mais popular e perene. Estaremos apenas na fase
embrionria de algo que no conseguiremos ainda definir.
Por via da peregrinao e do turismo, h uma inevitvel abertura do fenmeno de
Ftima aos crentes no catlicos, com eventual impacto no dilogo inter-religioso. E
para alguns setores religiosos h um inegvel receio de sincretismo.
A relao entre Maria e o Islo j foi estudada por vrios autores. H mais referncias a
Maria me de Jesus, Issah no Alcoro do que na Bblia, embora com verses e
histria no coincidentes com os textos evanglicos.
J nos anos 40, o jornal Voz da Ftima, rgo oficial do Santurio, fazia eco de uma
grande participao no acolhimento da Virgem Peregrina (uma das 9 imagens, cpia da
original) por comunidades muulmanas em Marrocos, Moambique e na ndia.
Recentemente, a relao entre Ftima, local de devoo catlica, e Ftima, a filha do
profeta, foi estabelecida por Sean OMalley. Em homilia proferida a 13 de Maio de
2011, o arcebispo de Boston, franciscano capuchinho, disse que a escolha do lugar das
denominadas aparies de Ftima tambm faz parte da mensagem de Ftima.
A figura de Maria, tem importantes pontos de contacto entre cristos e muulmanos. O
socilogo Moiss Esprito Santo teoriza sobre relaes simblicas e histricas entre o
relato das denominadas aparies em 1917 e a prtica sufi na regio, durante a poca em
que o Islo dominou a pennsula.
Palavras chave: Ftima, Islo, Maria, Dilogo.
Abstract
Approach to possible links between Islamic tradition and the phenomenon of Fatima.
We can see that a lot of thought about it, is the result of investigations using historical
coincidences, separated by many centuries without theological legitimation. But,
eventually, there's a open door to the possibility of a "meeting" with the devotional
experience, most popular and enduring. We are probably in the embryonic stage of
something that we can not yet define. The phenomenon of Fatima is known between
non-Catholic believers, by the pilgrimage and tourism, with possible impact on inter-
religious dialogue. And for some religious sectors there is a fear of syncretism.
The relationship between Mary and Islam has been studied by several authors. There are
more references to Mary - Mother of Jesus, Issah - in the Qur'an than in the Bible, but
with versions and history not identical to the Gospel texts.
Already in the 40s, the newspaper Voz da Ftima, the official organ of the Sanctuary,
echoed a large participation in the reception of the Pilgrim Virgin (one of nine images /
statues copied from the original) by Muslim communities in Morocco, Mozambique and
India. Recently, the link between Fatima, place of Catholic devotion, and Fatima, the
daughter of the prophet, was established by Sean O'Malley. In the homily May 13,
2011, the archbishop of Boston, said the choice of the place of so-called apparitions of
27
Fatima "is also part of the message" of Fatima. The figure of Mary, has important points
of contact between Christians and Muslims. Sociologist Moiss Esprito Santo theorizes
symbolic and historical relations between the so-called apparitions in 1917 and Sufi
practice in the region when Islam dominated the peninsula.
Keys: Fatima, Islam, Mary, Dialogue.
28
Introduo
H uma abertura recente do fenmeno de Ftima s religies no crists, na linha do
dilogo inter-religioso recomendado e praticado pela Igreja catlica aps o Conclio
Vaticano II. Esta atitude no tem sido bem aceite por alguns setores religiosos e reveste-
se ainda de um evidente receio de sincretismo. Recentes episdios e aparentes
equvocos neste processo, com repercusso meditica, conduziram a uma maior cautela
por parte das entidades catlicas que tutelam o espao.
Os acontecimentos de Ftima - revelaes - foram enquadrados, interpretados e
desenvolvidos pela Igreja, instituio que se assume como voz autorizada para fazer a
hermenutica da narrativa dos videntes. Ftima sustenta uma revelao epocal, que
nada adiciona Revelao constitutiva do catolicismo, embora tenha uma dimenso
proftica interpretvel como viso de futuro da prpria Igreja, do Papa e da histria
prxima da Europa, descodificada tendo em conta o contexto nacional perseguio
religiosa na Primeira Repblica - e internacional Revoluo Bolchevique e Primeira
Grande Guerra, com a participao de soldados portugueses.
A Igreja catlica apropriou-se do fenmeno de Ftima, que na sua gnese uma
expresso popular. Embora a primeira referncia do Papa seja ainda de Bento XV, em
1918, o processo de legitimao no foi imediato e teve alguns percalos, marcados
pelo ambiente anticlerical que desencadeou um confronto ideolgico, entre uma
rusticidade catlica e uma elite poltica urbana j marcada pela secularizao, laica ou
jacobina, procura de controlo do espao pblico.
Quase 100 anos depois, constata o socilogo Policarpo Lopes numa anlise ao
fenmeno, a tenso entre a legitimidade e no-legitimidade no campo religioso
esbateu-se e a fronteira do religioso legtimo e no legtimo deixou de ter relevncia
(1). Ftima adquiriu elevada legitimidade social e religiosa ao assumir uma certa
conscincia coletiva e na vida, transformando-se num lugar alto de procura de
sentido na ps-modernidade.
Embora a convivncia religiosa, bem ou mal sucedida, acompanhe a histria das
sociedades, o dilogo inter-religioso ganhou novos conceitos na histria da Igreja e das
religies. No de estranhar que alguns gestos e passos, ousados porque so inditos,
sejam mal interpretados ou rejeitados, sujeitos ao preconceito e ao conservadorismo da
tradio, inaceitveis entre os catlicos com uma viso pr-conciliar e centralizadora da
Igreja, desencadeando mecanismos de extrema prudncia nas estruturas hierrquicas.
um processo com avanos e recuos.
29
1. Visitantes de Ftima
No recente Estudo sobre o perfil do visitante de Ftima, da autoria de Maria da Graa
Poas, editado pelo Centro de Investigao Identidades e Diversidades com as Edies
Afrontamento para a Regio de Turismo Leiria/Ftima, apenas 1,6% dos visitantes de
Ftima escolhemos dias das celebraes aniversarias. Mais de 60% tm outras
motivaes para a escolha da data, incluindo os fins de semana do resto do ano. Muitos
repetem uma ou vrias vezes por ano. Quase 30% deslocam-se Cova da Iria nas frias.
45,8% dizem que vo para rezar, 22,2% para cumprir promessas e 15,3%por tradio.
Nos mais recentes censos, cerca de 90%dos portugueses dizem que so catlicos, mas
faz-se a distino entre os praticantes e os no praticantes, que so a maioria. O
Estudo sobre o perfil do visitante de Ftima revela que quase 30% dos visitantes de
Ftima se considera leigo no praticante, havendo 2,8% dos visitantes que so ateus
ou professem outra religio, cerca de 150 mil por ano. Quase 60% dos visitantes
adultos de Ftima tm mais de 50 anos. A maioria dos inquiridos no estudo, entre
peregrinos e turistas, so mulheres. Nos aspetos religiosos, o santurio atraente pela
devoo mariana, pela simplicidade das expresses populares de f, pela estreita ligao
ao pontificado de Joo Paulo II, a persistncia e durabilidade do magnetismo
espiritual, preservando uma certa sacralidade do espao religioso, a sua ecologia
especfica e a rea envolvente. Sendo um espao catlico, o perfil dos visitantes d-lhe
uma grande amplitude social e religiosa.
A f de Ftima o local, um destino de caminhada, um reencontro com a multiplicidade
de leituras e experincias que atravessam o ntimo. No h o peregrino de Ftima, h
os peregrinos de Ftima que no se anulam na multido, cada qual com as suas
motivaes espirituais ou materiais, aliceradas num mistrio simbolicamente maternal,
seja com as balizas da devoo mariana mais tradicional da f catlica ou no retorno
simblico como caminho para o encerramento de um ciclo, um desejo natural ao
ventre protetor.
2.Enquadramento do dilogo inter-religioso
A globalizao, enquanto fenmeno incontornvel de mltiplas variveis, cruza-se com
o(s) fenmeno(s) religioso(s) na dimenso do (des)conhecimento, agudizando
preconceitos e/ou reforando distanciamentos culturais. Embora inerente prpria
existncia humana, a globalizao, tal como entendida neste tempo, acentua uma
cultura concntrica. Com os alicerces da economia de mercado e por via da globalizao
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meditica, estimula sentimentos de incerteza, equvocos de relacionamento, com
impacto tambm na religio, ainda um elemento chave nas estruturas sociais e culturais.
O rabino emrito da Sinagoga de Westminster, Albert Friedlander, sustenta que em
tempo de incerteza, as religies fecham-se em si mesmas e, ao reivindicarem a sua
prpria e nica autenticidade, negam-na a outras religies e, inclusivamente, s novas
correntes de pensamento dentro da sua prpria f (2).
Na essncia da incerteza estar tambm o fator da incompatibilidade entre a linguagem
religiosa, marcada pela hermenutica e especificidade da abordagem teolgica, e a
cultura meditica, com a inevitabilidade do confronto multicultural, da diversidade e
pluralidade. Praticamente todas as comunidades religiosas esto, se no a globalizar-se,
pelo menos a expandir-se para alm das fronteiras dos seus territrios tradicionais. Mas
diferem na sua inteno, ou na sua capacidade, de criar novas formas de modernidade
(3), verifica o socilogo Peter Berger.
Os fluxos migratrios e a facilidade em comunicar, transportam pelo mundo os mais
variados contextos religiosos. Onde h democracia e liberdade religiosa cada vez mais
difcil atribuir uma nica religio a um pas. Os fatores de identificao religiosa
espelham a dinmica cultural, mas, sem exclusividades religiosas, as dinmicas cruzam-
se. Ao longo da histria, as religies do mundo encontram-se s vezes de forma
pacfica, mas, com mais frequncia, confrontando-se e de forma conflituosa, lembra
Raimon Pannikar (4). Por via do conflito, das migraes, das relaes comerciais ou
outras, at pela dinmica do proselitismo, as religies cruzaram-se e continuam a
cruzar-se, agora com outros contextos culturais, polticos e econmicos. Todas as
grandes religies atuais so fruto destes encontros (5). Por via dos movimentos
migratrios, as pessoas so confrontadas com experincias religiosas substancialmente
diferentes das que esto habituadas a ter no ambiente em que vivem. At porque,
assumindo-se como identitria, a prtica religiosa aumenta na dispora, como resposta
tambm discriminao. No caso europeu, tendo cado drasticamente a prtica religiosa
no catolicismo, os prprios catlicos deixaram de se identificar com a esfera religiosa,
abrindo caminho pluralidade das experincias religiosas e lanando um enorme
desafio laicidade, que no deve ser menosprezado sob risco de se desencadearem
profundos desequilbrios estruturais na sociedade. Como refere Mrio Pinto, antigo
diretor da Faculdade de Cincias Sociais da Universidade Catlica Portuguesa, uma
evidncia racional e emprica que, alm de doutrinas respeitveis, as religies so foras
31
poderosas de coeso social, portanto fatores importantes nas diversas sociedades por
todo o mundo, e, consequentemente, fatores importantes para a globalizao (6).
A globalizao meditica, com implicaes sociais e culturais, determina a perceo da
dimenso religiosa, normalmente associada a casos de conflito ou a eventos de massas,
geradores de emoo, uns e outros suscetveis de serem manipulados.
As relaes, por vezes difceis, entre os protagonistas religiosos e os media tambm no
ajudam. Se, por um lado, este tempo testemunha as primeiras geraes na Europa sem
referncias religiosas, com a maioria dos comunicadores impreparados para
compreender e descodificar o fenmeno religioso, por outro, os protagonistas religiosos
no conseguem no tero como , sintonizar-se com a assertividade e ultra
sintetizao da linguagem meditica, recorrendo, muitas vezes, a clichs simplificados e
pouco esclarecedores da complexidade religiosa que os enquadra.
Dada a pluralidade e especificidade das diversas culturas e religies, um dinamismo
revela-se essencial no processo de globalizao: o dilogo intercultural e inter-religioso
(7), defendia o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Jos Policarpo. Este dinamismo implica o
conhecimento, das religies e da sociedade, que levar tolerncia e compreenso, ou,
no mnimo, atenua preconceitos. Se o fanatismo vier a dominar no mundo religioso, e
h sinais de que isso estar a acontecer, sobretudo onde as sociedades so mais
determinadas pela dimenso religiosa, a religio afastar-se- do novo dilogo que as
revolues da comunicao conquistaram, tornando-se irrelevante (8), teme
Friedlander.
Revela-se indispensvel uma estratgia orientada para a educao da diversidade, para
a literacia cultural e para o desenvolvimento de competncias e aptides interculturais,
no apenas entre jovens, mas tambm como um processo de aprendizagem ao longo da
vida (9), aplicando-se este princpio tambm s religies, em reas como a educao,
os media e as migraes. A necessidade de conhecimento do fenmeno religioso
exigente e exigvel no contexto da vivncia religiosa ou fora dela.
Dalil Boubakeur, reitor do Instituto Muulmano da Mesquita de Paris e presidente do
Conselho francs para o Culto islmico, acentua que a responsabilidade moral das
religies apenas pode ser exercida quando o homem acede ao conhecimento,
liberdade, responsabilidade, assumindo plenamente a experincia deste mundo, pelo
que a filosofia religiosa no pode deixar de fazer uma reflexo perante a globalizao
(10). Ora, uma das ferramentas essenciais neste processo o estudo das religies,
internamente, mas, acima de tudo, nas suas mais variadas abordagens disciplinares. O
32
telogo Hans Kung adverte que quem se prope dialogar com os outros sem conhecer
a sua prpria posio, confunde mais do que aproxima (11).
A perspetiva religiosa exclusivista deu lugar liberdade de pensamento, autonomia de
abordagens, ao sentido do indivduo como nova conquista que reorganiza e reconstri
estruturas, das comunidades mais vastas clula das relaes familiares, enfraquecendo
a influncia que outrora exerciam as tradies, nomeadamente a tradio religiosa, na
constituio de identidades e laos sociais. Se a religio depende das relaes sociais, a
sociedade depende da coeso social e a modernidade enfrenta difceis dilemas de coeso
social que outrora fora garantida pelas estruturas religiosas. Este contexto abre um vasto
territrio de distanciamento crtico e de dilogo, contribuindo na formao dos
pensadores religiosos na era global. Mrio Pinto no v outra sada: Se cada um no
cr a no ser no que sabe, em muito pouco pode crer. E se em pouco ou nada acreditar,
para alm do pouco que sabe por si mesmo, cada homem no pode viver
verdadeiramente, e no passar de uma pequena cortia na superfcie agitada das guas
de um imenso e ignoto oceano (12).
Com o sofrimento e a injustia no centro das reflexes, a promoo da paz e a defesa da
criao como meta comum, a globalizao como plataforma, as prprias estruturas
religiosas podem reforar o conceito de uma tica culturalmente transversal, com
consequncias nos compromissos polticos e sociais. O dilogo entre religies
acompanha a histria das civilizaes. E neste processo, as devoes mais populares
tiveram a paradoxal capacidade de aproximar e/ou segregar.
3. Dilogo inter-religioso no magistrio da Igreja
A declarao Nostra Aetate, sada do Conclio Vaticano II, introduziu formalmente a
Igreja Catlica, o maior grupo cristo na Europa, apesar do avano da secularizao, no
lento caminho do dilogo entre as religies, relanando-o Os homens esperam
resposta para os enigmas da condio humana, os quais, hoje como ontem,
profundamente preocupam os seus coraes: O que o homem? Qual o sentido e a
finalidade da vida? () De onde vem o sofrimento e para que serve? Qual o caminho
para alcanar a felicidade verdadeira? O que a morte, o juzo e a retribuio depois da
morte? E, finalmente, que mistrio ltimo e inefvel envolve a nossa existncia, do qual
vimos e para onde vamos? , mas protagonistas religiosos, particularmente do
cristianismo e do Islo, temem a deriva de um sincretismo religioso associado ao
ecumenismo e ao dilogo inter-religioso.
33
A Igreja catlica, na perspetiva do seu magistrio, parte de dois pressupostos teolgicos
para o dilogo inter-religioso, com origem no Conclio Vaticano II e reafirmados por
Joo Paulo II: todos os povos constituem uma comunidade nica, tm a mesma
origem e o mesmo fim ltimo em Deus (Declarao, 2); O Esprito da verdade
operante para alm das fronteiras do Corpo Mstico, est presente tambm na crena
firme dos seguidores de religies no crists, nos seus ritos, culturas e especialmente,
na orao, pois toda a orao autntica suscitada pelo Esprito Santo,
misteriosamente presente no corao dos homens (Redemptor Hominis, Joo Paulo II).
Para o catolicismo, o dilogo inter-religioso faz j parte da prpria f crist, porque
motivado por um mesmo Deus e um mesmo Esprito. O mesmo Papa, acrescenta, no
entanto, que o dilogo tem como fim ltimo a misso evangelizadora, pois deve se
conduzido e realizado com a convico de que a Igreja o caminho normal de salvao
e que s ela possui a plenitude dos meios de salvao (Redemptoris Missio, Joo Paulo
II).
Numa concluso pragmtica, mas aparentemente contraditria, Joo Paulo II entende
que o interlocutor no dilogo deve ser coerente com as prprias tradies e convices
religiosas, e disponvel para compreender as do outro, sem dissimulaes nem
restries, mas com verdade, humildade e lealdade, sabendo que o dilogo pode
enriquecer ambos. No deve haver qualquer abdicao, nem irenismo, mas o
testemunho recproco em ordem a um progresso comum, no caminho da procura e da
experincia religiosa, e simultaneamente em vista a superar preconceitos, intolerncias e
mal-entendidos.
Foi neste sentido que Joo Paulo II organizou os Encontros de Assis, juntando
representantes das vrias religies, e repetiu gestos de proximidade e curiosidade
cultural com outras religies, nas muitas viagens que fez a pases de maioria religiosa
no crist.
Sendo uma atitude recente na Igreja catlica, o processo no est isento de crticas
internas e interpretaes vrias. O pontificado de Bento XVI clarificou as balizas do
dilogo na presente perspetiva da Igreja catlica. Ao nvel ecumnico entre confisses
ou igrejas crists desenvolve-se para realar o essencial que comum, sem esquecer,
mas relativizando, diferenas insanveis. No contexto europeu, alegando uma certa
descristianizao, esta aproximao corresponde necessidade de reforar os valores
cristos frente a um secularismo excessivo ou at a um atesmo agressivo, para usar
expresses do prprio Papa. Neste aspeto no h divergncias. O cristianismo nas
34
Amricas, em frica e na sia est a ganhar autonomia e o reforo das Igrejas
evanglicas tambm tem ajudado. Mas no difcil antever o efeito de cascata global
que pode ter uma descristianizao na Europa. O cristianismo tem os alicerces no
cristianismo institucional e histrico de Roma, de Inglaterra e das igrejas da Reforma. A
eleio do arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, como papa Francisco,
dever ser interpretada tambm neste contexto.
Se entre os lderes religiosos prevalecem os fantasmas e o medo do sincretismo ainda
forte, o discurso poltico relaciona cada vez mais a insegurana com a imigrao e a
imigrao com a religio. O encontro ou confronto cultural inevitvel e so poucas
s aumenta o preconceito. a um nvel cultural, de constituio antropolgica, que se
coloca o desafio. Para o papa Ratzinger, o dilogo inter-religioso pode contribuir para
desanuviar tenses culturais ou polticas e promover a liberdade religiosa inexistente em
muitos pases de maioria islmica, entenda-se. Entre religies no se discutem
verdades. Seria uma conversa de surdos.
4. Dilogo inter-religioso, segundo o papa Francisco
Com o papa Francisco, o dilogo da Igreja de Roma com outras igrejas e religies tende
a ganhar uma dimenso mais pragmtica e menos intelectual. So conhecidas as
relaes de proximidade por ele criadas, enquanto arcebispo, com os lderes de outros
grupos religiosos em Buenos Aires. Na exortao apostlica Evangelii Gaudium - A
alegria do Evangelho (13), o Papa reafirma a centralidade dos evangelhos na Igreja,
definindo a evangelizao como misso prioritria dos cristos catlicos. Sendo um
documento marcadamente social e, em certa medida, poltico, a exortao aborda a
dimenso do dilogo num captulo sobre a dimenso social da evangelizao.
Francisco entende que o Evangelho inclusivo. Num subcaptulo intitulado o dilogo
social como contribuio para a paz, distingue o dilogo social num contexto de
liberdade religiosa, do dilogo entre a f, a razo e as cincias. Reflete sobre o dilogo
ecumnico e, especificamente, sobre as relaes com o Judasmo, distinguindo-as do
restante dilogo inter-religioso, que considera, apesar dos vrios obstculos e
dificuldades, de modo particular os fundamentalismos de ambos os lados, uma
condio necessria para a paz no mundo. Cita as concluses da Conferncia dos
Bispos da ndia The Churchs Role for a Better India (8 de Maro de 2012)
apelando a uma abertura, compartilhando alegrias e tristezas, para, dessa forma, as
religies aprenderem a aceitar o outro, na sua maneira diferente de ser, de pensar e de
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se exprimir. Para o papa Francisco, um dilogo, no qual se procurem a paz e a justia
social, em si mesmo, para alm do aspeto meramente pragmtico, um compromisso
tico que cria novas condies sociais. Estes esforos podem, assim, ter tambm o
significado de amor verdade, entendida esta na forma crist, mas no devem os
catlicos, adverte, descuidar o vnculo essencial entre dilogo e anncio, que leva a
Igreja a manter e intensificar as relaes com os no-cristos. Um sincretismo
conciliador seria, no fundo, um totalitarismo de quantos pretendem conciliar
prescindindo de valores que os transcendem e dos quais no so donos.
A frmula catlica, aqui reafirmada, a de uma abertura s outras religies conservando
convices, mas na disponibilidade, como afirmara Joo Paulo II, para a compreenso
do outro, sabendo de antemo que o dilogo enriquece ambas as partes.
Pragmaticamente, o papa Francisco recusa uma abertura diplomtica que diga sim a
tudo para evitar problemas, seria um modo de enganar o outro e negar-lhe o bem que
se recebeu como um dom para partilhar com generosidade. Estas palavras parecem
visar, sobretudo, o dilogo com os crentes do Islo. Mas, referindo todos os no-
cristos fiis sua conscincia, o Papa associa-os, por gratuita iniciativa divina, ao
mistrio pascal de Jesus Cristo. Na doutrina catlica, ps Conclio Vaticano II,
esclarecida pela Comisso Teolgica Internacional - O cristianismo e as religies
(1996) - entende-se que a ao divina produz, fora da Igreja, sinais, ritos e expresses
do sagrado.
Uma dvida nos assalta. Como enquadraro os crentes no-cristos esta interpretao
catlica segundo a qual outras experincias religiosas, por via da graa divina,
tambm fazem parte do processo cristo de salvao o mistrio pascal de Jesus
Cristo?
5. Dilogo inter-religioso na mensagem de Ftima?
Sem doutrina fixada ou reflexo aprofundada, o fenmeno da proximidade de crentes de
outras religies a Ftima tem criado alguns embaraos. D. Anacleto Oliveira, doutorado
em Cincias Bblicas pela Universidade de Munster, Alemanha, e atual bispo de Viana
do Castelo, defende que a mensagem de Ftima carrega tambm uma
responsabilidade pelo dilogo inter-religioso, pela via da paz, insinuando que a
mensagem plasmada nas denominadas aparies, chama a ateno no apenas a
insistente promessa de paz, mas sobretudo o caminho proposto para a alcanar: o da
comunho com Deus como condio imprescindvel para uma estvel e s convivncia
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inter-humana (14). Na interpretao de D. Anacleto Oliveira, as alegadas referncias
paz e ao fim da guerra nas aparies so acompanhadas pela recomendao de orao e
total entrega a Deus, com prostrao e preces de converso dos pecadores ou oferta de
sacrifcios em reparao dos pecados. O prelado entende que esta dimenso da orao
a pensar na converso pela paz no pode deixar de estar enraizada no que especfico
de toda a religio: a ligao explcita ou implcita do homem com o sagrado (15).
nisso que se baseiam as relaes da Igreja com as outras religies, alega D. Anacleto,
lembrando Joo Paulo II: O respeito pelo homem na sua busca de resposta s questes
mais profundas da vida e respeito pela ao do Esprito nesse mesmo homem
(Redemptoris Missio, 1979).
6. Ftima e o Islo
A relao entre Maria e o Islo j foi estudada por vrios autores. O Alcoro tem versos
que falam da Anunciao, da Visitao e da Natividade. Na verdade, h mais
referncias a Maria me de Jesus, Issah no Alcoro do que na Bblia, cerca de 25
vezes. No captulo 19 do Alcoro Suratu Maryam, a sura de Maria , h 41 versos
sobre Jesus e Maria, embora com verses e histria no coincidentes com os textos
evanglicos.
J nos anos 40, o jornal Voz da Ftima, rgo oficial do Santurio, fazia eco de uma
grande participao no acolhimento da Virgem Peregrina (uma das nove
imagens/esttuas copiadas da original, que viajam pelo mundo por solicitao de
devotos) e comunidades muulmanas em Marrocos, Moambique e na ndia. H relatos
de caloroso acolhimento tambm em Tuticurim, antiga ndia portuguesa, por parte dos
hindus, em 1950. Em 1970, trinta muulmanos da Guin-Bissau visitaram em grupo
organizado o Santurio de Ftima.
Tambm para muitos muulmanos de modo especial para os xiitas o lugar pode ser
considerado especial. Em Novembro de 1995, um documentrio exibido na televiso
iraniana que identificava o lugar com a filha do profeta Maom, Ftima levou
muitos iranianos a querer vir a Portugal.
Recentemente, a relao entre Ftima local de devoo mariana, catlica e Ftima
filha do profeta foi estabelecida tambm por Sean OMalley, cardeal arcebispo de
Boston, EUA, entretanto nomeado pelo papa Francisco para a restrita comisso que
estuda a reforma da Cria. Em contraste com as cautelas do Santurio na abordagem
dimenso inter-religiosa - depois de alguma polmica na sequncia da visita de Dalai
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Lama e de uma delegao da comunidade hindu portuguesa - o cardeal de Boston
lembrou, na homilia proferida a 13 de Maio de 2011, a morte do lder da Al Qaeda,
Osama bin Laden, para introduzir o smbolo Maria - via Ftima -, nas plataformas de
dilogo entre o Islo e o Cristianismo.
Numa singular interpretao, o cardeal lembrou, com a morte de Osama, o confronto
entre o Ocidente cristo e os expoentes radicais do Islo. OMalley entende que a
escolha do lugar das denominadas aparies de Ftima, tambm faz parte da
mensagem. Uma tremenda ousadia teolgica.
Se a viso de Jesus separa radicalmente cristos e muulmanos, conclui frei Fernando
Ventura naquela que foi a primeira tese elaborada em Portugal sobre Maria no
islamismo, apresentada em 1989 na UCP, a figura de Maria, pelo contrrio, tem
bastantes e importantes pontos de contacto (16). Sobre Ftima, o mesmo religioso
admite revestir-se tambm de um significado particular para os muulmanos:
Sendo esse o nome da filha de Maom (), o fenmeno de Ftima reveste-se
de uma carga significativa especial, fazendo deste espao central das
religiosidades populares portuguesa e internacional um lugar privilegiado de
encontro e partilha de vida e de experincia de f e uma possvel fonte de
dilogo (17)
Ftima, sabe-se, segundo um hadith - registo das palavras e tradies oriundas do
profeta - era a filha predileta de Maom: A senhora das mulheres do mundo Maria,
depois Ftima, depois Khadija, e depois Aicha (18). Maria, a me de Jesus. Ftima, a
filha. Khadija, a primeira esposa e me de Ftima, figura modelo entre os sunitas.
Aicha, a terceira esposa. Noutros hadith, porm, certamente de influncia xiita, Ftima
a soberana das mulheres (19) ou a melhor das mulheres e a primeira entre as mais
nobres damas do Paraso (20).
Nesta coincidncia Maria e Ftima , o cardeal de Boston, descendente de catlicos
irlandeses, v um sinal, uma oportunidade: de certa forma, estou convencido que Maria
ajudar a fazer a ponte entre o cristianismo e o Islo. Numa abordagem em cincia ou
sociologia das religies, a construo de tradies tem de ser contextualizada. O Islo
no um edifcio cultural, social, teolgico ou politicamente monoltico. E convm
recordar que a figura de Ftima, e at de Maria, no tem uma abordagem consensual no
Islo. Alis, o carinho islmico por Ftima, como eventual ponto de contacto com o
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cristianismo por via da devoo mariana, vivido apenas na corrente minoritria
xiismo. No sunismo corrente atualmente maioritria - Maria e Ftima no tm grande
relevncia.
7. Ftima no Islo
Ftima - filha do profeta Maom e de Khadija -, mulher de Ali Talib, foi, j se disse, a
mais clebre das filhas de profeta. Em volta de Ftima surgiu grande venerao.
Podemos apontar mais do que uma hiptese para tal: Ftima viveu muito perto do pai,
teria uma personalidade que refletia isso mesmo; Ftima garantiu descendncia, uma
vez que os irmos morreram; o profeta confessou a sua predileo pela filha; para uma
importante fatia de seguidores, o companheiro de Ftima Ali era por direito o
sucessor de Maom.
A tradio, com mltiplas referncias, diz que Ftima morreu seis meses depois do pai,
ter casado quando tinha 18 anos e no teria um relacionamento pacfico com o esposo
Ali. Maom ter sido chamado a intervir para apaziguar as relaes no casal. Embora
no se conheam relatos fidedignos de uma interveno poltica por parte de Ftima
durante os anos de misso do pai, a tradio d conta do papel que esta ter tido para
fazer frente a Abu Bakr quando este tomou o poder alegando que o profeta no indicara
herdeiros ou uma linha de sucesso. Muito do que se construiu de devoo e respeito em
volta do personagem dever ser interpretado com cautelas. Na maioria dos casos, trata-
se de um fenmeno devocional muito posterior morte de Ftima e envolto em lendas.
O socilogo das religies Moiss Espirito Santo, citando dois orientalistas - padre
Henri Lammens e Louis Massignon questiona: ser que teve mritos especiais ou
deve-se atribuir essa sorte a um complexo de circunstncias em que a tendncia da
humanidade para a idolatrao da Mulher teve lugar? (21).
H episdios que so considerados histricos, como recorda Margarida Santos Lopes no
Novo dicionrio do Islo (2010, Casa das Letras). Ftima tratou as feridas do pai em
campo de batalha, estava a seu lado quando Meca se rendeu e quando ele morreu. Mas
h, sobretudo, juzos antagnicos sobre Ftima, a filha do fundador do Islo. Ou seria
uma mulher insignificante, marcada pelo desgosto e maltratada pelo marido (Lammens).
Ou, pelo contrrio, estaria num plano equiparvel, em importncia, figura de Maria
entre os cristos (Massignon), mulher incompreendida, com privilgios atribudos pelo
pai, hospitaleira, com uma vida escondi