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O “PSEUDO-ARRASTÃO” DE CARCAVELOS DOCUMENTOS

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O “PSEUDO-ARRASTÃO”DE CARCAVELOS

DOCUMENTOS

EDIÇÃO

ALTO-COMISSARIADO PARA A IMIGRAÇÃO

E MINORIAS ÉTNICAS (ACIME)

Rua Álvaro Coutinho, nº 14, 1150-025 Lisboa

Telefone: (00 351) 218 106 100 Fax: (00 351) 218 106 117

e-mail: [email protected]

AUTORES

VÁRIOS

DESIGN GRÁFICO

CRISTINA CASCAIS

(GINGER AND FRED DESIGNERS)

EXECUÇÃO GRÁFICA

TEXTYPE, ARTES GRÁFICAS, LDA.

PRIMEIRA EDIÇÃO

6000 exemplares

ISBN

989-8000-27-9

DEPÓSITO LEGAL

244157/06

Lisboa, Junho 2006

O PSEUDO-ARRASTÃO DE CARCAVELOS | DOCUMENTOS 3

ÍNDICE

1. ABERTURA 05

2. POSIÇÃO DA COMISSÃO PARA A IGUALDADE E CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL 09

3. DOCUMENTO DA ALTA AUTORIDADE PARA A COMUNICAÇÃO SOBRE OS ACONTECIMENTOS DE CARCAVELOS. 13

I – A QUEIXA 15

II – INSTRUÇÃO DA QUEIXA 17

III – OS FACTOS APURADOS 32

IV – O PRINCÍPIO DO RIGOR INFORMATIVO E A SUA APREENSÃO E DESENVOLVIMENTO NA LEI E NA JURISPRUDÊNCIA 48

V – O “ARRASTÃO” À LUZ DO RIGOR INFORMATIVO E DO DIREITO À INFORMAÇÃO 57

VI – CONCLUSÃO 61

4. OUTROS DOCUMENTOS (POR ORDEM CRONOLÓGICA) 65

a. “A história do arrastão que nunca existiu”, de Nuno Guedes (A Capital 17 Junho de 2005) 66

b. “Notícias que são pura ficção”, de Pedro D´Anunciação (Expresso, 18 Junho de 2005) 69

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c. Eram pr´ai uns 500!” de Rui Marques (PÚBLICO, 18 de Junho de 2005) 73

d. “Ainda o arrastão” (Eduardo Dâmaso, Editorial do PÚBLICO, 18 de Junho 2005) 77

e. “Jornalismo e Insegurança” de José Manuel Fernandes (Editorial do PÚBLICO, 23 Junho de 2005) 80

f. Entrevista ao Comandante Oliveira Pereira no documentário “Era uma vez um arrastão” de Diana Andringa (disponível em www.eraumavezumarrastao.net) 83

g. “O jornalista que não dá o braço a torcer”, de Pedro D´Anunciação (Expresso, 16 de Julho de 2005) 87

5. RESPOSTA DA CP À DIVULGAÇÃO NOS MEDIA DE IMAGENS DE ASSALTOS A COMBOIOS NA LINHA DE SINTRA 91

6. PARADOXOS DO INDIVIDUAL E DO COLECTIVO NA HISTÓRIA DO “ARRASTÃO”, DA PROF. DRA. PAULA CASTRO, INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS 97

7. QUANDO O QUE VEMOS NÃO É IGUAL AO QUE PERCEBEMOS – IMPLICAÇÕES PARA AS RELAÇÕES ENTRE GRUPOS SOCIAIS 115

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1. ABERTURA

O “PSEUDO-ARRASTÃO” DE CARCAVELOS UMA VERDADE POR REPOR

Um ano depois dos acontecimentos na praia de Carcavelos, aos quais se conven-cionou chamar “arrastão”, e após todos os relatórios e esclarecimentos públicos permanece para muitos portugueses a convicção que, no dia 10 de Junho de 2005, se realizou um gigantesco assalto em Carcavelos, conduzido por 500 jovens negros, vindos de bairros degradados.

Todos os desmentidos tiveram um efeito mínimo e a reposição da verdade dos factos não foi feita. Como muitas vezes acontece, o desmentido bate na couraça de uma convicção criada - ainda que falsa – e não altera a leitura do (não)acontecimento. Para a história, corremos o risco que fique que o “arrastão” existiu mesmo.

No caso presente, essa mentira tem como preço o agravamento dos preconceitos e da desconfiança face a uma população de jovens descendentes de imigrantes afri-canos e habitantes de bairros degradados da Grande Lisboa, reforçando o estigma já existente. Por outro lado, é inevitável um sentimento de injustiça e de revolta não só pelo erro inicial mas, sobretudo, por ele se ter cristalizado como “verdade”.

Apesar de ser improvável que se consiga repor a verdade e compensar os visados pelos danos morais que toda a produção noticiosa sobre o “pseudo-arrastão” causou, o ACIME entendeu ter a obrigação de publicar alguns documentos que ajudam a melhor compreender todo este processo. Para a história, também é importante que conste este registo.

O elemento central desta publicação é, indiscutivelmente, o relatório da Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS), elaborado na sequência da quei-xa da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR). De uma forma exaustiva e transparente, mostra sistematicamente os erros cometidos, a partir de uma informação errada, que evoluiu como “bola de neve” até se afir-mar como “verdade” absoluta. De como uma falta de cuidado de cruzamento das

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fontes, de confirmação das notícias e de investigação jornalística, pode conduzir a um resultado que não honra o jornalismo. Naturalmente, como disseram os cínicos, este trabalho da AACS jamais teria qualquer visibilidade na comunicação social. E não teve.

Somamos a esta peça, para a contextualizar, o comunicado da CICDR, emitido em 21 de Junho de 2005, na sequência das notícias sobre o “pseudo-arrastão”, bem como as notícias/imagens de assaltos em comboios da Linha de Sintra praticados por jovens negros, emitidas alguns dias depois, em reforço do preconceito e do estigma, apesar da Polícia indicar que, no último ano, o número destes assaltos foi 33% menor face ao ano anterior. Aliás, sobre este tópico publicamos também a resposta da CP à queixa apresentada pela CICDR. Sobre o comunicado da Comissão, o silêncio mediático foi significativo. A única forma do conteúdo desse comunicado ser conhecido da opinião pública, foi através de publicidade paga nos jornais.

Importa, no entanto, sublinhar que jornalistas e colunistas houve que procuraram ser fieis à sua missão de procurar a verdade, para além das aparências enganado-ras. Entre todos eles destacam-se alguns textos que recordamos, como o caso de “A história do arrastão que nunca existiu” de Nuno Guedes, jornalista de A Capital, que em 17 de Junho de 2005, publica este artigo e, no dia seguinte, no Expresso, Pedro D´Anunciação na sua crónica Zapping escrevia “Notícias que são pura ficção”, complementado um mês mais tarde por outro artigo “O jornalista que não dá o braço a torcer”. Igualmente Diana Andringa, com o seu documentário “Era uma vez um arrastão”, teve um papel relevante, com particular destaque para a entrevista com o Superintendente Oliveira Pereira, responsável do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP que, curiosamente, foi o único dos protagonistas a reconhecer o erro cometido.

Finalmente, num outro registo, mais reflexivo e académico, publicamos um texto da Prof. Paula Castro, do Instituto de Ciências Sociais, sobre o “Parodoxo do individual e do colectivo na história do arrastão” e outro da Dra. Joana Alexandre e do Dr.Sven Waldzus, também eles do Instituto de Ciências Sociais, intitulado “Quando o que vemos não é igual ao que percebemos”.

Esta publicação tem como objectivo central contribuir para repor a verdade, docu-mentando-a e tirando de todo este processo os necessários ensinamentos para o futuro.

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Em nenhum momento – como é referido no Comunicado da CICDR – se adopta uma posição simplista e demagógica que coloque em causa o Estado de Direito e a neces-sidade de fazer respeitar a lei, “pois perante comportamentos ilícitos a lei é só uma e deve ser aplicada em igualdade de circunstâncias a todos os cidadãos, sem discrimi-nação. Sobre isso, não há dúvidas. Nem impunidade, nem sobrepenalização.” Nem se diz que não existem fenómenos de delinquência juvenil. Nem que não existem jovens africanos – como europeus, asiáticos, altos, baixos, de olhos verdes, ou com qualquer outra característica do tipo – entre os delinquentes. Dito isto, importa per-ceber que a acusação recorrente ao “outro”, a consolidação de um estigma de crimi-nalidade e de delinquência sobre todos os jovens de origem africana e o preconceito com que são olhados, são consequências profundamente injustas e com um efeito devastador. Desafiamos cada leitor a colocar-se, por breves instantes, na situação de qualquer um deles e a imaginar o que sentiria. O que sentiria se fosse sistematica-mente olhado com desconfiança quando entra no comboio, ou visse outras pessoas mudarem de passeio quando o vêem, por receio?

Os optimistas por regra acreditam que, cedo ou tarde, a verdade virá à luz do dia. Era bom que tivessem razão. Mas neste caso mesmo que isso aconteça, os danos causados já serão dificilmente reparáveis.

RUI MARQUES Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas

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2. POSIÇÃO DA COMISSÃO PARA A IGUALDADE E CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

COMUNICADO

Tendo em consideração o impacto nos media e junto da opinião pública dos aconteci-mentos do passado dia 10 de Junho, na praia de Carcavelos, nomeadamente o reforço da estigmatização da população imigrante e de minorias étnicas, entende a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial tomar as seguintes posições:

1. Repudiar as leituras xenófobas e racistas desenvolvidas na sequência dos acontecimentos referidos, nomeadamente na ligação explícita ou implícita entre criminalidade e imigração e minorias. Tal leitura é errada e injusta e corresponde a um preconceito não fundamentado. A crimina-lidade, como atestam todos os estudos realizados, tem origem em todas as comunidades, em igual proporção, independentemente da sua etnia ou nacionalidade.

2. Apoiar o Estado de Direito, pois perante comportamentos ilícitos a lei é só uma e deve ser aplicada em igualdade de circunstâncias a todos os cida-dãos, sem discriminação. Sobre isso, não há dúvidas. Nem impunidade, nem sobrepenalização.

3. Sublinhar que na raiz de alguns comportamentos desviantes estão graves situações de exclusão social que atingem pessoas de todas as comunida-des. É sobre essa origem que devem ser concentrados os principais esfor-ços tendo em vista a redução e, se possível, a anulação dessa exclusão social.

4. Referenciar positivamente os esclarecimentos prestados pelo Comando Metropolitano da PSP de Lisboa, no passado dia 17, embora lamentando

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que tais esclarecimentos tivessem demorado sete dias a serem produzi-dos. Salientam-se assim as seguintes citações, a partir do despacho da LUSA e de notícia do PÚBLICO:

a. “Sempre foi comum juntarem-se vastos grupos nas praias de onde depois divergiam pequenos núcleos de oito ou dez indivídu-os que praticavam assaltos. Concluímos que na sexta-feira acon-teceu o mesmo, só que devido às centenas de pessoas que se encontravam na praia o fenómeno tomou outras proporções. De um grande grupo de 400 ou 500 pessoas só 30 ou 40 praticaram ilícitos”, afirma o responsável do Comando da PSP de Lisboa.

b. “Muitos jovens que apareceram em imagens televisivas e foto-gráficas a correr na praia de Carcavelos, naquele dia, não eram assaltantes, mas tão só jovens que fugiam com os seus próprios haveres”.

c. “Para o superintendente Oliveira Pereira, os assaltos também terão sido decididos na altura na praia e não fruto de uma organização mais elaborada que levasse centenas de pessoas a Carcavelos com intuitos criminosos”.

5. Lamentar o enorme impacto negativo dos erros jornalísticos cometidos na cobertura dos acontecimentos, dos quais se destacam:

a. O erro na dimensão do assalto, sendo divulgado e repetido até dia 16 que tinha sido praticado por 500 jovens, quando na rea-lidade não terão estado envolvidos mais do que 30 a 40 jovens, sendo que mesmo esse número é questionável dado terem sido produzidas duas queixas.

b. O erro na utilização de fotografias que supostamente mostra-vam o dito “arrastão” quando na realidade se tratavam de jovens a fugir com os seus haveres.

c. O erro na acusação de que se tratou de uma acção organizada, quando tal facto é desmentido pela Polícia e não há qualquer prova ou suspeito referenciado nesse sentido.

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6. Elogiar o esforço dos jornalistas que procuraram neste contexto de crise transmitir, ao longo dos últimos dias, outra informação relevante sobre as questões de exclusão social dos imigrantes e minorias étnicas por forma a que a opinião pública possa ter uma imagem justa e equilibrada destas comunidades e do seu contributo inestimável para a sociedade de acolhimento.

7. Lamentar profundamente que, na sequência destes aconteci-mentos, a CP tenha divulgado ou autorizado a divulgação no dia 17 num canal de televisão, de imagens de assaltos nos seus comboios, seleccionando unicamente imagens de jovens negros. Será que são as únicas imagens de assaltos gravadas nas suas câmaras? Não há assaltantes de outros grupos étni-cos? A que período dizem respeito estas imagens? Respeitam a privacidade das vítimas? A sua divulgação no contexto actual serve que fim?

8. Lamentar igualmente que, a pretexto dos acontecimentos de Carcavelos, grupos professando expressões racistas, abusando do sentimento nobre dos portugueses quanto ao necessário combate à violência, tenham promovido uma manifestação de cariz racista em Lisboa, violando assim o disposto na legislação portuguesa, situação inaceitável que merece a nossa repulsa.

Neste contexto, a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial entende:

1. Solicitar aos Meios de comunicação social que corrijam, com o neces-sário destaque, as informações erradas entretanto veiculadas, repon-do a verdade dos acontecimentos.

2. Solicitar à PSP um cabal esclarecimento dos factos ocorridos, da pro-porcionalidade da intervenção, bem como da origem das informações para a Comunicação Social quanto à dimensão do acontecimento e do seu carácter de “crime organizado”.

3. Solicitar a intervenção da Alta Autoridade para a Comunicação Social para que promova com urgência uma avaliação crítica da cobertu-ra mediática destes acontecimentos e, na sequência, promova um

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Acordo de Princípios entre os Meios de comunicação em relação a notícias com potencial leitura xenófoba e racista.

4. Apresentar um protesto formal à empresa responsável pela divulga-ção das imagens seleccionadas de assaltos em comboios da linha de Sintra e pedir esclarecimentos pela motivação de tal acto.

A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial apela para a objec-tividade, racionalidade e sentido de justiça dos portugueses na análise dos mais recentes acontecimentos de Carcavelos, com a recusa de preconceitos e sentimentos xenófobos. É necessária uma análise serena e racional e não uma leitura precipitada e preconceituosa que leve ao aumento da tensão social entre comunidades. Sublinhe-se que nessa missão os Meios de Comunicação Social têm um papel determinante e não podem ignorar a sua responsabilidade social.

Numa altura que, em Inglaterra, os emigrantes portugueses estão sob protecção poli-cial por receio das injustas reacções xenófobas de alguns ingleses na sequência de um assassinato de uma cidadã inglesa por um alegado cidadão português, saibamos nós não fazer o mesmo.

Lisboa, 21 de Junho de 2005

PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROSAlto Comissariado para a Imigração e Minorias ÉtnicasComissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial

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3. DOCUMENTO DA ALTA AUTORIDADE PARA A COMUNICAÇÃO SOBRE OS ACONTECIMENTOS DE CARCAVELOS

DELIBERAÇÃO RELATIVA À QUEIXA DA COMISSÃO PARA A IGUALDADE E CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL CONTRA VÁRIOS ÓRGÃOS DE COMUNICACÃO SOCIAL RELATIVAMENTE À FORMA COMO FORAM NOTICIADOS CERTOS FACTOS OCORRIDOS NA PRAIA DE CARCAVELOS NO DIA 10 DE JUNHO DE 2005

(Aprovada em reunião plenária de 23 de Novembro de 2005)

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I – A QUEIXA

1.1. No dia 22 de Junho de 2005 foi recebido ofício da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, no qual, fazendo referência a notícias tor-nadas públicas pelos meios de comunicação social nos dias antecedentes sobre “os acontecimentos do feriado de 10 de Junho, em Carcavelos” e ao “impacto mediático dessas notícias” afirmava que “essa informação era errada“.

1.2. E justificava assim: “Como confirmou mais tarde a PSP: “Sempre foi comum juntarem-se vas-

tos grupos nas praias de onde depois divergiam pequenos núcleos de oito ou dez indivíduos que praticavam assaltos. Concluímos que na sexta-feira aconteceu o mesmo, só que devido às centenas de pessoas que se encon-travam na praia o fenómeno tomou outras proporções. De um grande grupo de 400 ou 500 pessoas só 30 ou 40 praticaram ilícito“, afirma o responsável do Comando da PSP de Lisboa”.

Mas os erros jornalísticos não terminam aqui. As imagens que têm sido veiculadas como sendo do “arrastão” (ver cópia

em anexo das legendas da LUSA, disponibilizadas em 20 de Junho – Anexo II) constituem uma manipulação, pois não correspondem ao acontecimento.

Como referiu a Direcção Nacional da PSP em conferência de imprensa: “Muitos jovens que apareceram em imagens televisivas e fotográficas a

correr na praia de Carcavelos, naquele dia, não eram assaltantes, mas tão só jovens que fugiam com os seus próprios haveres”. Apesar disso, tal infor-mação, prestada no dia 17, não teve impacto na informação de origem, que continua a ser disponibilizada de forma errada.

Por fim, foi repetidamente enunciada pelos media a suspeita de se tratar de um crime organizado e, por isso, mais grave. O Comandante Metropolitano da PSP em declarações públicas reproduzidas pelo PÚBLICO, refutou essa suspeição:

“Para o superintendente Oliveira Pereira, os assaltos também terão sido decididos na altura na praia e não fruto de uma organização mais elaborada que levasse centenas de pessoas a Carcavelos com intuitos criminosos”.

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Apesar deste desmentido público perdurou a mesma suspeição nos dias seguintes.

Os danos provocados por estes erros – ainda não suficientemente corrigidos – na percepção pública de uma comunidade, são elevadíssimos. O aumen-to da xenofobia e do racismo nos últimos dias tem sido visível, quer em manifestações como a que ocorreu no passado dia 18 no Martim Moniz, quer em expressões mais subtis no convívio diário com a comunidade de descendência africana.

Neste contexto, foram igualmente divulgadas pela SIC, no dia 17 e seguintes, imagens de assaltos a passageiros dos comboios da linha de Sintra, como tendo ocorrido na última semana, todos eles praticados por jovens negros. “

1.3. No mesmo ofício eram suscitadas diversas questões: “A sua divulgação no contexto actual serve que fim? Porque foram selecciona-

das unicamente imagens de jovens negros? Será que são as únicas imagens de assaltos gravadas nas suas câmaras? Não há assaltantes de outros grupos étni-cos? A que período dizem respeito estas imagens, sendo estranho que tenha sido feita uma “moldura” sobre as imagens divulgadas para que tal informação não se perceba? Respeitam estas imagens a privacidade das vítimas? Como contextualizar esta divulgação maciça, em prime-time, num quadro de redução de 33% na criminalidade nos comboios da Grande Lisboa, conforme anunciou o Senhor Ministro da Administração Interna (ver anexo IV}?”

1.4. Por fim, a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial concluía considerando “esta situação muito grave” e, na medida em que “a indução de atitudes racistas e xenófobas a partir de descuidos, erros e manipulações dos media assume uma relevância que não pode deixar de merecer a aten-ção de todos, em particular de entidades como a Alta Autoridade para a Comunicação Social”, solicitava a intervenção desta Autoridade no sentido de promover “uma avaliação crítica da cobertura mediática dos acontecimentos do passado dia 10 de Junho”.

Juntava os anexos referidos no texto.

1.5. Vários cidadãos dirigiram-se individualmente a esta Alta Autoridade com preocupações idênticas às constantes deste ofício destacando-se a comuni-cação do Sr. António Rosa de 11 de Julho.

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II – INSTRUÇÃO DA QUEIXA

2.1. Após reunião dos elementos documentais disponíveis sobre os noticiários produzidos sobre o assunto, foi solicitado o depoimento do Comandante da PSP de Lisboa, após conhecimento das suas declarações publicadas nos jornais “Expresso” de 9 de Julho e “A Capital” de 10 de Julho.

2.2. Tendo-se tomado igualmente conhecimento da reportagem levada a cabo sobre o assunto pela jornalista Diana Andringa, foi-lhe igualmente solicitado o seu depoimento sobre a situação.

2.3. A vários órgãos da comunicação social envolvidos nos noticiários em causa e, em especial, à Agência Lusa, foram não só solicitados o envio de ele-mentos comprovativos das notícias produzidas, como a informação sobre a origem das mesmas e os comentários que a queixa lhes merecia.

2.4. Do Comandante Metropolitano de Lisboa da PSP foi recebido um depoi-mento escrito, acompanhado de vários documentos, dos quais cumpre salientar, desde logo, a cronologia dos factos, que se transcreve:

“10 de Junho de 2005 12H00 - Primeira comunicação à PSP de alterações de ordem pública na

praia de Carcavelos; 14H00 - Pedido de reforço accionado pelas motopatrulhas da PSP em ser-

viço no paredão de Carcavelos; 14H20 - Chegada de reforços à praia; 15H00 - Serviços noticiosos (rádios e televisões) referem exaustivamente a

existência de “arrastões” na praia de Carcavelos com entrevistas em directo e imagens;

21H00 - Envio do comunicado do COMETLIS aos órgãos de Comunicação Social (Anexo I);

21H50 - O Comandante Metropolitano de Lisboa em entrevista à TVI (no salão nobre do Comando) corrige o conteúdo do comunicado, explicitan-do não se ter tratado de um arrastão realizado por 400 pessoas mas sim por um grupo de vinte ou trinta indivíduos que beneficiando do facto da

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existência de pontuais alterações de ordem pública se tinham aproveitado para, supostamente e à luz das notícias então disponíveis, cometeram alguns roubos ou furtos. Facto que não se veio a confirmar em toda a sua plenitude.

22HOO e seguintes - Foram efectuadas pela responsável das Relações Públicas do COMETLIS várias tentativas junto de alguns Órgãos de Comunicação Social, tentando corrigir as notícias entretanto veiculadas, tanto pelas televisões, como pelas rádios. O Comandante do COMETLIS falou telefonicamente com alguns OCS, entre os quais a LUSA, esclarecendo e corrigindo o sucedido.

13 de Junho de 2005 O Comandante Metropolitano de Lisboa, reitera em entrevista ao jornal

“Público” o esclarecimento dado à TVI no dia 10 de Junho. 14 de Junho de 2005 O Comandante Metropolitano de Lisboa dá uma entrevista em directo ao

“Jornal da Noite” da SIC (Senhor jornalista Rodrigo Guedes de Carvalho) onde, de modo claro, reitera novamente a versão (entretanto já definitiva em resultado das averiguações desenvolvidas pela Esquadra de Investigação Criminal de Cascais) dos incidentes já anteriormente descritos.

27 de Junho de 2005 A Jornalista Diana Andringa, solicita ao Exmo. Director Nacional da PSP

(Anexo 2), “no quadro de um trabalho de reportagem que estava a pre-parar, a propósito do “arrastão” da praia de Carcavelos e dos seus efeitos comunicacionais e políticos, uma entrevista com o senhor Comandante Metropolitano da PSP, Dr. Oliveira Pereira. “

28 de Junho de 2005 Foi o comandante Metropolitano contactado telefonicamente pelo Sr. Jorge

Costa, o qual reitera a urgência da entrevista, uma vez que o grande objec-tivo da mesma seria incluir as suas declarações num filme que serviria de base a um debate em que estariam presentes várias individualidades académicas, jornalistas, sociólogos e outros, a realizar na Videoteca de Lisboa com os propósitos enunciados no ofício (efeitos comunicacionais e políticos). O referido debate veio a ter lugar em 1 de Julho sem as suas declarações, dado ter havido um atraso na autorização a conceder pelo Exmo. Director Nacional da PSP.

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4 ou 5 de Julho de 2005 O Comandante foi novamente interpelado telefonicamente pelo Sr.

Jorge Costa, que o informou que embora já tivesse ocorrido o debate na Videoteca, ainda mantinham interesse nas suas declarações para com-plemento das gravações, entretanto realizadas. O Comandante, embora surpreendido, mas uma vez já ter sido autorizada a pretensão pelas ins-tâncias superiores, acedeu, tendo ficado marcada a entrevista para dia 7 de Julho pelas 16H00, como aliás se concretizou. Ficou claro que todo o conteúdo da reportagem ficaria num sítio da Internet com o endereço www.eraumavezumarrastao.net.

7 de Julho de 2005 Foi concedida entrevista à Senhora jornalista Diana Andringa, tendo a mesma

reiterado os objectivos anteriormente definidos e tendo o Comandante, no contexto geral que presidiu à concessão da entrevista, reiterado a impor-tância da mesma para os fins já anteriormente definidos.

9 de Julho de 2005 O semanário “Expresso” publica na primeira página uma noticia com o títu-

lo “Policia desdiz «Arrastão», titulo esse paradoxal, uma vez que o assunto já tinha sido corrigido pelo Comandante Metropolitano em 10 de Junho (cerca de 29 dias antes).“

2.5. Mais importa destacar a informação de que “o conceito de “arrastão” foi “imposto” nas entrevistas e noticias divulgadas pelos Órgãos de Comunicação Social (OCS), sendo referida e utilizada esta expressão uma única vez pela Policia de Segurança Pública, e nomeadamente pelo Comando Metropolitano de Lisboa num comunicado enviado em 10 de Junho de 2005 às 21h00 aos OCS.”

2.6. Finalmente, o Senhor Comandante tira a conclusão de que “perante toda a polémica que se desenvolveu após o triste incidente em Carcavelos, senti que não teria havido qualquer cuidado em preservar a imagem da Policia de Segurança Pública, quer como Instituição quer pessoalmente, no exercício do cargo de Comandante do Comando Metropolitano de Lisboa, pelo que manifestei publicamente o meu desagrado pela forma como tudo havia sido tratado.”

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2.7. Da jornalista Diana Andringa foi recebido um documento em suporte audio-visual, que a mesma remeteu em vez de um depoimento escrito e de que consta a entrevista que levou a cabo com o Comandante da PSP de Lisboa, ao mesmo tempo que recolhe o essencial das notícias transmitidas sobre o assunto nos vários canais de televisão, sobre a epígrafe “Era uma vez um arrastão” e que, pela impossibilidade de ser reproduzido por escrito, deve ser apenso a esta deliberação e dela fazer parte integrante na sua introdu-ção na Rede. (DVD junto).

2.8 Às interpelações desta Alta Autoridade aos vários meios da comunicação social foram sendo recebidas respostas, ao longo destes três meses, de que se sumariza o essencial, por ordem cronológica da sua recepção.

2.8.1 Em 5 de Agosto, a SIC pelo punho do seu sub-director de Informação informa que “os meios e o respectivo recorte de informação que serviram de base às notícias sobre os incidentes de Carcavelos ocorridos no dia 10 de Junho, poderão ser aferidos através do visionamento das reportagens emitidas pela SIC entre os dias 10 e 13 de Junho, de que enviamos as res-pectivas cópias.”

2.8.2 A 11 de Agosto, o Diário de Notícias veio esclarecer que “Nas peças jorna-lísticas publicadas no jornal do dia 11 de Junho, a cobertura dos incidentes foi feita por uma repórter no local e um jornalista na redacção. As peças foram escritas tendo também por base os despachos da Agência Lusa de dia 10 de Junho, referidos pela Alta Autoridade na sua nota, e o comunicado enviado às redacções pelo Comando da PSP:

Este órgão de comunicação social declara que não foi contactado pelo Comando da PSP, entre os dias 10 e 13 de Junho, para que se procedesse à correcção do teor do comunicado por ele emitido. A notícia publicada no dia 12 de Junho foi escrita com base em despachos da Agência Lusa, informações recolhidas em conferência de imprensa com o ministro da Administração Interna e com o director nacional da PSP e no local: a praia de Carcavelos. “

2.8.3 A 11 de Agosto, a revista Sábado, propriedade da sociedade Presselivre, S.A. e pela pena dos seus advogados, veio “muito respeitosamente expor o seguinte:

Para além dos despachos da agência Lusa mencionados no supra identifi-cado oficio todas as outras informações recolhidas pela revista “SÁBADO” tiveram origem em fontes jornalísticas.

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Mais se acrescenta que a revista “SÁBADO” não foi contactada pelo Comando da PSP, nem lhe chegou ao conhecimento que aquele Comando o tivesse tentado.”

2.8.4 A 16 de Agosto, o jornal Público, em carta subscrita pelo seu director, repro-duz o que supõe ser os depoimentos de dois jornalistas responsáveis pelas secções relacionadas com o assunto no jornal em causa, e dos quais se destaca:

a) “Relativa e unicamente à informação produzida pelo caderno Local Lisboa no dia 10/06/05 (edição de 11/06/05) sobre os incidentes na praia de Carcavelos, esclareço, enquanto jornalista a quem coube edi-tar nesse dia, o seguinte: para além dos despachos e da fotografia, distribuídos pela Agência Lusa, o jornal utilizou as fontes indicadas no texto publicado: uma banhista que se encontrava na praia (e para lá contactada por telemóvel), o subcomissário Gonçalves, da esquadra da PSP de Cascais e a PSP de Oeiras. O comunicado do Comando da PSP da noite de dia 10 não foi utilizado, uma vez que a edição já se encontrava fechada.

Tanto quanto se lembram os dois jornalistas presentes na secção ao fim do dia, o Comando da PSP terá contactado o jornal da manhã do dia 11 de Junho para o avisar da conferência de imprensa que ia realizar nesse dia. (Francisco Neves)

b) Quanto às edições dos dias 12 e 13: Dia 12 Uma jornalista do PÚBLICO esteve presente na conferência de imprensa

em Cascais, onde falaram o presidente da Câmara, António Capucho; o ministro da Administração Interna, António Costa; o secretário de esta-do da Administração Interna, José Magalhães; o director nacional da PSP, Orlando Romano; o Comandante Metropolitano da PSP de Lisboa, Oliveira Pereira. Passou ainda na praia de Carcavelos, onde escutou comentários dos agentes da PSP destacados para o local. Uma outra jornalista contactou telefonicamente três amigos que se encontravam na praia quando se deu a grande confusão e que relataram a história.

O trabalho completava-se com um relato dos acontecimentos desse dia em Quarteira, algumas tomadas de posição de políticos e um artigo de opinião de João Maria Mendes, professor universitário. (Luís Francisco)

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Dia 13 O PUBLICO não dedica qualquer artigo aos acontecimentos de Carcavelos.

Optou por alargar o espaço de reflexão, divulgando um estudo sobre a Lei Tutelar Educativa e a forma como tem sido aplicada; e ainda um trabalho sobre a maneira como os media em Portugal trataram o tema da imigração.

Em nenhuma ocasião, na minha função de editor da secção Sociedade do PÚBLICO (nem fora dos horários de trabalho, acrescento), tive conhecimen-to de qualquer comunicado do Comando da PSP. Muito menos de qualquer tentativa para confirmar a sua recepção. Aliás, estranho é que, tendo havido uma conferência de imprensa na manhã seguinte à da redacção de tal comunicado, a verdadeira escala dos acontecimentos não tenha sido esclarecida nesse contacto com os jornalistas. “

2.8.5 Por seu turno, na mesma data, a Edimpresa, proprietária da revista Visão, em carta enviada pelo seu director, esclarece:

“1. Sobre os «meios e respectivo recorte de informação (..) que foram utili-zados para a confirmação dos factos noticiados»:

a) Como matéria de arranque para o trabalho e suporte de contextualiza-ção, as notícias e depoimentos divulgados por rádios e televisões, no próprio dia, e publicados nos dias 11 e 12 de Junho, na Imprensa.

b) No que respeita a fontes de informação próprias, são as que estão refe-renciadas no texto em questão. Nesta matéria, nada temos a acrescen-tar, a não ser chamar a atenção para o facto de que a VISÃO recolheu e cruzou informação sobre os incidentes ocorridos na praia de Carcavelos e no Algarve, proveniente de diferentes canais. E que teve o cuidado de ouvir não só fontes policiais como também, entre outros, um repre-sentante de uma importante comunidade luso-africana, a Associação Guineense de Solidariedade Social e um dos membros que se envolveu em confrontos com as autoridades.

2. Quanto à segunda questão colocada pela AACS: O jornalista da VISÃO que assina o artigo em questão, e que efectuou os

contactos com a PSP, não recebeu qualquer comunicação do Comando daquela polícia com o objectivo de informar o teor do comunicado emitido às 21 horas do dia 10 de Junho. Nem teve qualquer conhecimento de que,

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entre os dias 10 e 13 de Junho, tivesse existido algum esforço nesse sentido. Pelo contrário, em contacto telefónico estabelecido oficialmente com o

comando da PSP ao fim da manhã do dia 14 de Junho (terça-feira, dia de fecho das páginas em análise), por iniciativa do jornalista, em nenhum momento foi feita, pelo comandante Oliveira Pereira, qualquer referência expressa a desmentir ou sequer corrigir a matéria essencial do mencionado comunicado. Terá havido, isso sim, um esforço visível por parte do coman-dante em desvalorizar a tese de que o «arrastão» teria sido uma acção premeditada.

Como se lê no depoimento prestado à VISÃO, e publicado nas nossas pági-nas, Oliveira Pereira sustenta que os acontecimentos de Carcavelos foram uma «ocorrência pontual», fruto de um «acto espontâneo». E acrescenta que as investigações se centrariam «nos autores morais e menos na arraia miúda que foi atrás dos mais velhos».

Em nenhum momento, porém, o nosso jornalista notou qualquer intenção clara de mitigar a dimensão do «arrastão», nomeadamente ao nível do número de envolvidos. Se bem que não tenha apontado os tais 500 assal-tantes - que muita imprensa referiu inicialmente, mas que a VISÃO não, até pela ausência de meios objectivos para essa quantificação -, Oliveira Pereira terá afiançado que «um grupo de 30 ou 40 jovens começou e os outros foram atrás».“

2.8.6 A 17 de Abril, o jornal Expresso, também pela mão do seu director, vem referir:

“1. As fontes de informação utilizadas pelo EXPRESSO para apurar o que sucedeu na Praia de Carcavelos estão citadas nos cinco textos elaborados para a edição de 18 de Junho de 2005 e cuja cópia vos enviamos.

Para além de depoimentos recolhidos junto de testemunhas presen-ciais, foram ainda contactados oficiais superiores e elementos da PSP de Carcavelos e da Amadora - fontes consideradas muito credíveis pelo EXPRESSO - mas que preferiram o anonimato por razões disciplinares. Foi ainda recolhida informação em reportagem efectuada na Cova da Moura e relatada a intervenção do próprio embaixador de Cabo Verde em Portugal, Onesimo Silveira, num encontro público sobre o sucedido. Importa referir que a utilização do termo «arrastão» foi aplicado pelo Comando da PSP de Lisboa em comunicado que o EXPRESSO cita na cronologia dos aconteci-mentos que acompanha este trabalho jornalístico.

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2. Em relação a uma possível intervenção posterior do Comando da PSP no sentido de “infirmar o teor do comunicado” por ele próprio emitido, não têm nenhum dos cinco jornalistas envolvidas neste trabalho, nem os edito-res que acompanharam e dirigiram o tratamento noticioso desta matéria, qualquer conhecimento deste facto. Com efeito, nunca a PSP fez qualquer tentativa de contacto com o nosso jornal para desmentir os números avan-çados. No entanto, na sequência do trabalho de investigação jornalística foi pelo EXPRESSO na edição de 18 de Junho esclarecido que o grupo de assaltantes seria de «apenas» 50 elementos.“

2.8.7 No dia 25 de Agosto, e ainda subscrito pelo respectivo director, o Jornal de Notícias, juntando várias cópias das suas notícias sobre o assunto, informa:

“No dia em que ocorreu o «arrastão» (10 de Junho), a primeira base da informação foi um despacho da Agência LUSA, que falava em 500 indi-víduos. Foi mandada uma equipa à praia de Carcavelos, para certificar a informação junto de sectores policiais e de frequentadores da praia, bem como de comerciantes ali estabelecidos.

No dia 11, verificou-se a conferência de imprensa, com a consequente passagem de informação oficial, do Governo e do Comando da PSP, com-plementada com reportagem na praia de Carcavelos.

Nos dias seguintes, foram sendo colocadas dúvidas sobre o número de indivíduos envolvidos, com base em fontes policiais. Por exemplo: no dia 15 reportámos o facto de só ter havido uma queixa e «essa por furto» - o que, legalmente, nem se enquadrava nos incidentes, que apontariam para roubo. Reportámos, também, ter havido apenas três detenções e explicitá-mos a medida de coacção.

No dia 17, com base em fontes policiais, noticiámos que sete indivíduos tinham sido identificados, com base em imagens recolhidas no dia 10. Assinalámos, também, a dificuldade da PSP em conseguir descortinar algum crime através das referidas imagens.

Finalmente, no dia 20 de Julho, noticiávamos que não tinha havido qual-quer arrastão, citando um relatório policial chegado ao Parlamento. “

2.8.8 Finalmente apenas a 7 de Setembro, com a justificação de “ausência em férias dos profissionais que estiveram directamente ligados ao assunto em questão”, a Agência Lusa, pela mão da sua Directora de Informação, veio prestar os seguintes esclarecimentos:

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“Em relação à questão sobre “as circunstâncias de tempo e de modo como foi formada a convicção da veracidade” do que a Lusa relatou a propósito dos acontecimentos na praia de Carcavelos, principalmente, que “cerca de 500 jovens, entre os 12 e os 20 anos, constituídos em “gangs”, invadiram hoje (10 de Junho), às 15h00 a Praia de Carcavelos e começaram a assaltar e a agredir os banhistas “, cumpre-me informar o seguinte:

1 - O relato no dia, nomeadamente a passagem acima citada que deu grande dimensão ao acontecimento e fez a abertura dos noticiários, foi feito por uma jornalista da Lusa, com base, única e exclusivamente, em informações ora recolhidas, ora confirmadas, na praia de Carcavelos, junto das autoridades policiais que se encontravam no local a tomar conta da ocorrência. A origem ou a fonte destas informações está, aliás, bem expressa e identificada nas noticias difundidas pela Lusa sobre os referidos acontecimentos. A saber, a fonte foi o comissário Gonçalves Pereira, da Esquadra da PSP de Cascais. (Ver notícias da Lusa, em anexo, assinaladas com os n/os 1, 2 e 3).

2 - A referida jornalista chegou à praia de Carcavelos pouco depois de se terem verificado os acontecimentos e quando no local já se encontravam as autoridades policiais. Como compete a qualquer jornalista profissional e responsável, a jornalista, mesmo encontrando-se num período de lazer, decidiu inteirar-se das causas de uma situação que não lhe pareceu de normalidade pública e foi verificar se se justificava fazer qualquer relato noticioso para a agência, inquirindo e confirmando informações que entre-tanto recolheu, junto das fontes que, nestes casos, são as mais autorizadas, competentes e fidedignas, ou seja, responsáveis das autoridades policiais ou das forças da ordem, que se encontravam no local.

3 - As informações então fornecidas pelas autoridades no local levaram, e bem, a jornalista e as chefias que se encontravam na redacção da agência à conclusão de que se tratava de um assunto de interesse noticioso.

Sobre a alegação de que a Lusa fez uma “interpretação dos factos “ e de que esta foi “imediata e oportunamente desmentida pelo comando da PSP, logo no próprio dia das ocorrências... “, cumpre-me informar o seguinte:

I - A Lusa não fez qualquer “interpretação” de factos. Limitou-se a repro-duzir informações fornecidas a um seu jornalista por uma fonte autorizada e identificada, a saber o comissário Gonçalves Pereira, da Esquadra da PSP de Cascais.

2 - Não chegou à Lusa no próprio dia, nem nos dias seguintes qualquer desmentido, por parte do comando da PSP, dos relatos que a agência

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difundiu sobre os acontecimentos na praia de Carcavelos. O que chegou à Lusa, ao principio da noite do próprio dia (10 de Junho), foi um comu-nicado do comando da PSP que fazia um balanço dos acontecimentos e que continha informações suplementares sobre os mesmos, mas que em nada contrariava ou corrigia os relatos entretanto difundidos pela agência, nomeadamente, quanto ao número de pessoas que estiveram na origem dos incidentes. (Ver noticia da Lusa, em anexo, assinalada com o n° 4, que, além de referências ao comunicado, inclui informações adicionais recolhidas por iniciativa de uma jornalista da agência junto do comandante metropolitano da PSP de Lisboa, o superintendente Oliveira Pereira).

3 - Uma semana depois dos incidentes, dia 17 de Junho, um dos responsá-veis da redacção da Lusa, depois de, na véspera à noite, ter ouvido numa das televisões declarações dúbias de um responsável das forças da ordem sobre o número de pessoas envolvidas no que passou a ser designado por «arrastão» de Carcavelos, decidiu incumbir um jornalista de esclarecer o assunto junto da Direcção Nacional da PSP. Esta diligência da Lusa acrescen-tou elementos novos à história dos acontecimentos de 10 de Junho na praia de Carcavelos, como se pode verificar pela notícia da agência, em anexo, assinalada com o n°5. Foi assim por iniciativa da Lusa, e não de qualquer outra organização, entidade ou instituição que, pela primeira vez, a história dos incidentes em Carcavelos foi tornada pública com contornos um tanto diferentes dos relatados aos jornalistas, no dia e no local, por responsáveis das forças policiais.

Recordo ainda que os acontecimentos de 10 de Junho na praia de Carcavelos estiveram na origem de uma reunião de urgência, logo no dia seguinte, entre o ministro da Administração Interna, António Costa, o presidente da Câmara Municipal de Cascais, António Capucho, e o director nacional da PSP, Orlando Romano. No final da reunião, nas declarações a jornalistas, nenhum destes responsáveis desmentiu ou corrigiu os relatos feitos pela Lusa e pela generalidade dos OCS sobre os acontecimentos da véspera na praia de Carcavelos. (Ver notícia da Lusa, em anexo, sobre os resultados da reunião acima referida, assinalada com o n° 6).

Finalmente, em relação à alegação, constante da parte inicial do oficio de V.Exa., de que os despachos difundidos pela agência, entre 10 e 12 de Junho, “terão estado na origem das notícias propaladas pela generalidade dos meios de comunicação social “, gostaria de exprimir o seguinte:

É sempre motivo de orgulho da Direcção de Informação e dos jornalistas da agência quando os despachos da Lusa são publicados pela generalidade

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dos órgãos de informação ou quando são a origem das notícias difundidas por grande parte dos OCS. Este foi mais um caso, no qual foram cumpri-das todas as regras a que os profissionais da agência estão obrigados em matéria de recurso, utilização e citação de fontes autorizadas e credíveis, fidedignas à partida.

Não temos todavia a pretensão de que tenham sido exclusivamente as 23 notícias da Lusa sobre o assunto, difundidas durante dois dias, a moldar o noticiário dos restantes OCS.

Seria excessivo sustentar tal tese, mas que ela se revelasse conveniente perante o surgimento, muito a posteriori, de suspeitas de que, eventual-mente, as primeiras fornecidas aos jornalistas pelas autoridades (e em primeiro lugar à Lusa) não seriam totalmente rigorosas.

A Lusa foi o primeiro órgão de comunicação social a dar a notícia, pois tinha uma jornalista no local e, nas primeiras horas, foi abundantemente citada em noticiários de rádios e televisões.

Mas é justo e é necessário ter em conta que a generalidade dos OCS enviou, no dia, representantes seus para o local, que recolheram, à posteriori, as mesmas informações que a Lusa e junto das mesmas fontes. Aliás, perante um acontecimento com a relevância daquele, a avaliar pelas informações fornecidas pelas autoridades, nenhum órgão de comunicação social de grande circulação se “alimentaria” apenas dos despachos da Lusa para assegurar o seu noticiário durante dois dias, ou seja, entre os dias 10 e 12 de Junho.“

Junta cópia de seis despachos da Lusa dos dias 10 de Junho (4), de 11 de

Junho (1) e de 17 de Junho (1).

2.8.9 Até ao momento de elaboração da presente deliberação não manifesta-ram interesse em corresponder ao pedido da Alta Autoridade os seguintes órgãos de comunicação social expressamente interpelados:

– Revista Focus – 24 Horas – Correio da Manhã – TVI – RTP

2.9. Por se revelarem de especial interesse foram solicitadas aos respectivos órgãos de comunicação social as gravações das entrevistas levadas a cabo

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por Maria João Avilez aos Senhores Manuel Correia e Padre Vaz Pinto, trans-mitida na SIC a 3 de Julho e do Programa “Clube dos Jornalistas” de 11 de Julho na RTP2.

Ambos os canais televisivos corresponderam ao solicitado.

2.10 Teve-se também acesso ao relatório de pesquisa n° 223/05 - SAGIC/URIC-21 remetido pelo Director Nacional da PSP ao Ministro da Administração Interna, do qual se destaca a seguinte descrição dos factos ocorridos no dia 10 de Junho:

“No passado dia 10 de Junho (feriado nacional), verificou-se um grande fluxo de indivíduos (prevemos cerca de 400 indivíduos), maioritariamente de origem africana, para a praia de Carcavelos, utilizando como transporte principal o comboio da linha de Cascais.

O fluxo verificou-se de forma gradual, em vários grupos de cerca de 10 a 20 indivíduos, desde as 09H30 até às 13H00, optando estes indivíduos por se concentrarem, mais significativamente, na parte central da praia.

Refere-se que esta situação ocorre com carácter habitual nos meses de Verão, em especial nos fins de semana e feriados nas praias de Carcavelos e Tamariz.

A praia terá tido um dos maiores fluxos de pessoas dos últimos tempos, chegando rapidamente a um ponto de quase saturação (mais de 15.000 indivíduos, segundo o Comando do Porto de Lisboa, entidade responsável pela área circunscricional).

Cerca das 14H00, gerou-se um ambiente de pouca tranquilidade na praia, provocado por alguns distúrbios entre indivíduos de origem africana e outros de nacionalidade brasileira e ainda com indivíduos de leste.

A par de inúmeras incivilidades generalizadas provocadas por estes grupos (música alta, correrias, danças, jogos de bola, linguagem grosseira, assé-dio a outras pessoas, desafios verbais e atitudes intimidatórias), ter-se-ão ainda verificado alguns furtos e roubos a utentes daquela praia (na verda-de. apenas foi efectuada uma denúncia por roubo na praia).

Esta situação foi confirmada por testemunhos verbais de cidadãos que não se quiseram identificar, bem como por elementos policiais que patrulham a zona e que chamaram reforços para o local. Alguns telefonemas foram também realizados para a Polícia no sentido de denunciar a situação.

Momentos antes da intervenção policial há um ajuntamento grande de

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indivíduos que estariam a rodear outros. No centro do grupo estaria um rádio com música alta que era aproveitada para praticar algumas danças observadas pelos restantes que, por sua vez, também iam praticando as incivilidades atrás mencionadas. Consta que nesta altura, alguns indivíduos que se encontravam junto do grupo agrediram um cidadão brasileiro e um cidadão do leste com o intuito de os roubar.

Estas circunstâncias de instabilidade terão sido aproveitadas para, de forma inopinada mas agregada, um grupo de cerca de 30 (trinta) indivíduos, correr pela praia e tentar apoderar-se de alguns objectos deixados pelos banhistas.

Estes factos coincidem com a chegada dos reforços policiais (cerca de vinte minutos após o alerta das motopatrulhas) que, em face do que presen-ciavam - focos de tensão generalizada e de alteração de ordem pública - desenvolveram de imediato uma acção de reposição da ordem, intervindo directamente com o grupo principal.

Tendo em conta que muitos banhistas, alarmados com o ambiente de ten-são vivido, abandonavam apressadamente a praia em direcção ao paredão e à marginal, as forças policiais já no terreno, criaram um cordão de segu-rança no areal por forma a condicionar e orientar aquele movimento de pessoas, fazendo cessar a correria que se verificava bem como os conflitos e agressões no areal.

Procedeu-se também, e de imediato, ao corte do trânsito na Marginal para possibilitar um acesso seguro do elevado número de pessoas às suas viatu-ras e aos transportes públicos. Além disso, foi ainda reforçada a segurança nos terminais e transportes públicos que acediam ao local. “

2.10.1 De tal relatório consta igualmente que, no local da praia de Carcavelos, e no referido dia apenas foram levantados dois autos, um de denúncia por roubo de um telemóvel, um “discman”, um livro, chaves e peças de roupa e outro por agressões e injúrias de 3 indivíduos; mais se registou uma participação por extravio de documentos de cidadão estrangeiro holandês.

2.10.2 Mais importante que a caracterização do sucedido são as conclusões do mencionado inquérito que, pela sua importância se transcrevem na íntegra:

“Face ao elevado número de indivíduos referidos, bem como os diferentes pontos de origem (Loures, Amadora e Sintra) e horas de partida, não esta-mos em crer que se tenha tratado de uma acção generalizada previa-mente concertada;

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A inexistência de denúncias de furtos ou roubos na praia não sustenta a tese do «arrastão». Apesar de ser certo que terão ocorrido agressões, fur-tos e roubos, bem como alguma acção conjugado (cerca de 30 indivíduos já referidos) neste dia na praia de Carcavelos;

As incivilidades praticadas pelos indivíduos de origem africana, conjugadas com o elevado número de utentes das praias (mais de 15.000), causaram uma enorme instabilidade e sentimento de insegurança nos restantes uten-tes da praia.

As fotografias difundidas pelos OCS mostram diversos indivíduos a correr desenfreadamente provocando, aparentemente, o efeito visual de «arras-tão». No entanto, dado o facto de nas mesmas serem visíveis agentes policiais, conclui-se que esta ocorrência se deveu ao receio dos mesmos à intervenção policial.

Após múltiplas e variadas diligências, encontram-se nesta altura identifica-dos cerca de 40 indivíduos que se encontravam na praia à hora dos factos e que estarão ligados aos actos e incivilidades anteriormente referidos.

No que respeita aos objectos visíveis nas fotografias e que esses indivíduos transportavam, face à inexistência de denúncias, não podemos afirmar peremptoriamente serem produto de roubo ou furto, levando à suposição que poderão ser dos próprios.

Quanto às queixas formalizadas (apenas uma relativa a acontecimentos no areal, duas no percurso entre o areal e a estação da CP de Oeiras) e quan-to aos restantes estão a ser efectuadas diligências tendentes a obter-se o mesmo resultado.

Estes são os factos que, em resumo, e até ao momento se mostram mini-mamente confirmados após a conjugação de todos os elementos atrás citados e em que a investigação dos acontecimentos se tem baseado.

Assim, verifica-se que as primeiras informações fornecidas que davam conta de um enorme arrastão a ocorrer na praia de Carcavelos não se confirmaram. Na verdade, num primeiro momento, qualquer pessoa que tivesse observado os factos a partir de um ponto mais afastado, por exem-plo do paredão, poderia ser induzida a pensar que tal estava a acontecer face às correrias desenfreadas que se verificaram pelo areaI, transportando algumas das pessoas pertences, que tudo indica que seriam das próprias.

Os elementos ora apurados, em conjugação com as imagens recolhidas não configuram contudo qualquer situação de «arrastão», caracterizado este como vulgarmente é conhecido no Brasil, em que um enorme grupo de indi-víduos assalta os banhistas, retirando-lhes pela força, os bens que possuem.

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De entre os elementos indiciários recolhidos, importa salientar as audições de elementos policiais que participaram na operação e que se reportam aos factos de forma idêntica anteriormente descrita. Importa ter em conta que da parte de alguns elementos policiais houve também perspectivas sobre os factos que foram evoluindo com a situação, não correspondendo mesmo àquilo que no primeiro momento tinham transmitido telefonica-mente. Isto, tendo em conta as primeiras comunicações sobre os factos e a pressão geral do momento, atendendo sobretudo ao número de pessoas envolvidas nas incivilidades, na esmagadora maioria de origem africana.

Assim, num primeiro momento e antes da recolha das versões dos elemen-tos policiais que actuaram no areal, os factos descritos não se apresenta-ram de modo algum claros. Daí as referências ao elevado número de inter-venientes de origem africana e outros, que praticaram sim as incivilidades descritas e se movimentaram conforme referido, mas não as ocorrências de roubos em massa como é típico das situações de «arrastão» que conhecemos por reporte a outras latitudes.“

32 O PSEUDO-ARRASTÃO DE CARCAVELOS | DOCUMENTOS

III – OS FACTOS APURADOS

3.1. OS DESPACHOS DA LUSA

3.1.1 Do que antecede resulta comprovado que a primeira notícia relativa a certos acontecimentos ocorridos na tarde do dia 10 de Junho na praia de Carcavelos é dada pela Agência Lusa, no seu despacho das 16h e 30m desse mesmo dia.

Esse despacho é do seguinte teor:

“Cerca de 500 adultos e jovens constituídos em “gangs” entraram hoje às 15:00 na praia de Carcavelos, concelho de Cascais, e começaram a assaltar e a agredir os banhistas, disse fonte policial.

O comissário Gonçalves Pereira, da Esquadra da PSP de Cascais, adiantou à Agência Lusa que os “gangs” fizeram vários assaltos, criando o pânico e a confusão na praia de Carcavelos, onde se encontram muitos banhistas.

A PSP de Cascais fez deslocar, para a zona elementos, nomeadamente, das secções de intervenção e de investigação criminal, tendo os agentes políciais feito disparos para o ar para atemorizar os assaltantes.

Não há conhecimento, por enquanto, de que a PSP tenha feito detenções. Compareceram também no local ambulâncias dos Bombeiros e do Instituto

Nacional de Emergência Médica. Há informarção de duas mulheres feridas, mas uma das vítimas disse aos

jornalistas que foi atingida “por engano” pelos agentes políciais.

3.1.2 Em sucessivos despachos desse mesmo dia, das 16h e 34m, das 17h e 16m, das 18h e 06m, das 18h e 10m e das 18h e 33m, a Agência Lusa vai “engrossando” as notícias com algumas entrevistas a populares, mantendo, no essencial, a notícia inicial de que se tratava de uma acção concertada de “gangs”, constituída por “cerca de 500 adultos e jovens”.

3.1.3 É só no seu despacho das 20h e 11 m, que ao citar o Presidente da Câmara Municipal de Cascais, refere que este terá garantido tratar-se de “cente-nas de marginais oriundos de bairros problemáticos fora do concelho de

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Cascais” que estariam na origem dos factos, realçando o mesmo tratar-se de “banditismo organizado e em larga escala”

3.1.4 No seu despacho das 21h e 13 m, já mais elaborado, a agência Lusa recon-firma a actuação “repentina” de cerca de 500 “assaltantes com idades entre os 12 e os 20 anos”; “constituídos “gangs” e cita novamente o comunicado do Presidente da Câmara Municipal de Cascais.

3.1.5 No seu despacho das 21h e 55m, a Agência Lusa concretiza o número de detenções efectuadas - quatro - sendo que três “por agressão às autorida-des”. Precisa também que, tendo os “incidentes” começado cerca das 15h, “uma hora depois a normalidade fora estabelecida”.

3.1.6 Dos seus despachos das 21h e 58m de 10 de Junho e das 02h e 58 de 11 de Junho, a Agência Lusa dá conta das primeiras reacções de responsáveis políticos do CDS-PP e do PSD, ambos falando “de Portimão, à margem de um jantar comício” de apoio a um candidato local comum.

O primeiro considerou “alarmante a situação de violência vivida em Carcavelos

durante a tarde”, reputando-a de “uma tarde de terror” que teria “ultrapas-sado tudo o que se podia imaginar”; o segundo classificando de “seríssimo o problema ocorrido”, mas escusando-se a criticar o Governo, aconselhando-o antes a “dar uma prioridade absoluta ao policiamento nas praias”, em razão dos prejuízos que podem resultar para o “sector turístico”.

3.1.7 Em nenhum destes despachos da Lusa, os acontecimentos em causa são por ela qualificados como “arrastão”.

3.2. OS PRIMEIROS NOTICIÁRIOS TELEVISIVOS

3.2.1 A notícia dos acontecimentos é, pela primeira vez, dada ao público, pelos meios de comunicação televisivos, nos noticiários das 20h do dia 10 de Junho.

3.2.1.1 A forma como os acontecimentos foram notíciados é praticamente a mesma nos diversos canais generalistas, tendo todos aberto os noticiários com o relato do sucedido, dando-lhe total primazia.

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Todos os noticiários falaram em 500 jovens entre os 17 e os 20 anos, os quais, agindo organizadamente em “gangs”, teriam agredido e assaltado os banhistas usando armas brancas e semeando o pânico ou o terror.

A RTP precisou que tais grupos seriam de 30 a 50 elementos cada e alguém não identificado entrevistado no local depois da intervenção da polícia, refere ter “ouvido tiros”.

É no noticiário da SIC que, pela primeira vez, o jornalista destacado refere, em conversa com um entrevistado identificado - Helder Gabriel - que se teria tratado de um “arrastão”.

O entrevistado repete a palavra “arrastão” e afirma que o começo das acti-vidades alegadamente criminosas teria sido dado por dois tiros.

É o mesmo Helder Gabriel, entrevistado por todos os canais, que refere que “às duas horas” tinha previsto o que iria acontecer, que estes factos são usu-ais no local e que se teriam desenvolvido concertadamente, com centenas de marginais a assaltar, roubar e agredir os banhistas.

Este entrevistado contou já ter sido agredido mais de uma vez e ter recebido facadas e agressões com um copo no estabelecimento de que é concessio-nário na praia.

3.2.1.2 Nenhum canal de televisão difundiu imagens dos acontecimentos antes da intervenção da polícia.

Todas as imagens colhidas e difundidas, posteriores à intervenção da polícia, incidem sobre vários indivíduos de raça negra a correr.

Estas imagens não são acompanhadas generalizadamente de comentários dos apresentadores que refiram a que momento concretamente respeitam e são difundidas como se elas reproduzissem os factos anteriores à inter-venção polícial, e traduzissem a movimentação organizada e concertada dos “gangs” na sua acção de assalto, roubo e agressão.

A RTP, logo no primeiro noticiário, entrevistou o Presidente da Câmara Municipal de Cascais que atribuiu a responsabilidade dos acontecimentos a uma “quantidade enorme de marginais que ultrapassou o que é normal”,

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referindo mesmo terem sido “centenas, aparentemente de forma organi-zada a varrerem a praia”.

3.2.1.3 O sub-chefe da PSP de Cascais entrevistado procurou justificar a acção da polícia nas “circunstâncias” e pediu desculpa se algumas pessoas teriam sido molestadas sem terem responsabilidades nos acontecimentos.

Várias pessoas, de raça negra, entrevistadas, criticaram a acção da polícia, por brutal e desnecessária.

Sendo referidas milhares de pessoas agredidas e roubadas, as notícias reproduzidas apenas confirmaram a existência de uma mulher ferida com uma garrafa, e outra, de raça negra, ferida num pé, alegadamente pela intervenção polícial, cuja imagem é difundida.

Também foi mencionado que um polícia teria ficado ferido, não sendo men-cionadas as circunstâncias.

Todos os noticiários informaram terem sido detidos 4 suspeitos.

3.2.2 Os noticiários mais tardios de vários canais reforçam o teor das notícias, com grande adjectivação - tarde de medo, terror, pânico - e todos mencionaram o “arrastão” e reproduzem entrevistas como alguns “brasileiros” que com-pararam o sucedido ao que dizem ser usual no Sul do Brasil, em particular no Rio de Janeiro.

A RTP também alinha pelo qualificativo de “arrastão” e anuncia conversa-ções entre o Presidente da Câmara Municipal de Cascais e o Ministro da Administração Interna.

A SIC baixa para 400 o número de intervenientes nas acções.

3.3 AS PRIMEIRAS NOTÍCIAS NA IMPRENSA ESCRITA

3.3.1 Os jornais diários do dia seguinte abrem todas as primeiras páginas com a notícia dos acontecimentos.

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São do seguinte teor as respectivas manchettes do dia 11 de Junho:

A) Diário de Notícias “ARRASTÃO” À BRASILEIRA CHEGA A CARCAVELOS “A praia de Carcavelos viveu momentos de terror, ontem à tarde, quando

grupos de jovens espalharam o pânico, agredindo e assaltando os banhistas. A polícia estima em 500 o número de individuos que participaram no

“arrastão”, uma prática habitual nas praias do Rio de Janeiro, mas até agora inédita em Portugal”

B) Correio da Manhã TERROR NA PRAIA “Dois tiros para o ar deram o sinal de partida para centenas de jovens de

ambos os sexos assaltarem e semearem pânico em Carcavelos”

C) Capital A POLÍCIA FEZ QUATRO DETENÇÕES SÃO JOVENS DE GANGS DA DAMAIA OS ASSALTANTES DA PRAIA DE

CARCAVELOS “Adolescentes e jovens, dos 12 aos 20 anos, residentes nos bairros 6 de

Maio e Cova da Moura, na Damaia/Amadora, são, alegadamente, os res-ponsáveis pelo assalto, no princípio da tarde de ontem, aos banhistas da praia de Carcavelos. A PSP já deteve 4 elementos.

António Capucho, presidente da Câmara de Cascais, já afirmou que os assal-tantes, em número de 400, não eram residentes no concelho. E pediu mais policiamento.

Este fenómeno tem origem no Brasil onde já que provocou vítimas mortais”

D) Jornal de Notícias VIOLÊNCIA ARRASTÃO PÂNICO NA PRAIA DE CARCAVELOS “Centenas de jovens ligados a gangues invadiram o areal da linha do Estoril

e atacaram os banhistas. “ TERROR NA PRAIA DE CARCAVELOS “Fenómeno de gangues em expansão nos centros urbanos”

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E) Público BANDOS DE JOVENS CRIAM O PÂNICO NA PRAIA DE CARCAVELOS ARRASTÃO VARREU O AREAL E ENVOLVEU CENTENAS DE ASSALTANTES “Arrastão” põe em pânico praia de Carcavelos GRUPO DE 500 JOVENS

F) 24 Horas (toda a primeira página) CENTENAS DE VÂNDALOS ATACAM BANHISTAS E CRIAM PÂNICO NA PRAIA Tarde de TERROR em Carcavelos SALVE-SE QUEM PUDER “O fenómeno é brasileiro mas já chegou a Portugal. O Serviço de

Estrangeiros e Fronteiras garante que muitos dos bandidos são conhecidos das autoridades e promete medidas”.

FOI UM VERDADEIRO PÂNICO Cerca de 500 vândalos juntaram-se para assaltar os banhistas

3.3.2 No interior dos jornais mencionados, as notícias são desenvolvidas segundo o estilo próprio de cada um, mas tomando em conta, fundamentalmente, os despachos da Lusa e uma ou outra entrevista feita localmente no dia dos acontecimentos, em especial ao referido Helder Gabriel, que é citado por quase todos os meios de imprensa escrita.

3.3.2.1 Nestes desenvolvimentos, o acento tónico é posto nas seguintes aparentes “constatações”

N° - cerca de 400 indivíduos entre os 12 e os 20 anos Origem - bairros degradados da Amadora Raça negra Método de arrastão, à semelhança do Brasil Assaltar, agredir, espancar Pânico, medo, terror, caos, horror

3.3.2.2 No descritivo as notícias referem cerca de 20 crianças durante 2 horas per-didas; três feridos, sendo uma mulher num pé por uma garrafa, outra por agressão com um cassetete da polícia (por engano) e um (ou 2) agente da PSP num braço; 4 detenções mas apenas uma confirmada.

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3.3.3 Também a imprensa semanal deu relevo aos acontecimentos:

A) Expresso ARRASTÃO É A PONTA DE UM TSUNAMI “A polícia está a investigar a hipótese de esta delinquência grupal prota-

gonizada por jovens negros poder estar a começar a ser veículo de uma ideologia racial, ao estilo “black power” “americano”.”

B) Sábado ARRASTÃO PARTICIPANTE NA DESORDEM CONTA COMO TUDO ACONTECEU “VAMOS VOLTAR”

C) Notícias da Amadora CENTENAS DE JOVENS ASSALTARAM E AGREDIRAM BANHISTAS “ARRASTÃO” LANÇOU PÂNICO EM CARCAVELOS

D) Focus DESESPERO “Os portugueses enfrentam uma insegurança como nunca se tinha visto.

Até nas praias.” “ARRASTÃO” “O “arrastão lançou o pânico na Linha do Estoril. O Governo diz que Sócrates

já prometeu mais segurança aos banhistas. “

E) Visão CRIME O MAREMOTO DE CARCAVELOS “A PSP já identificou 12 suspeitos de entre as centenas que saquearam a

praia. Ninguém apresentou queixa, mas a palavra “arrastão” entrou no léxico dos portugueses.

Mais do que a intenção de roubar, viu-se naqueles miúdos um objectivo de exibir força física, um manifesto de poder.”

3.3.4 Estas notícias tiveram imediato reflexo na comunicação a nível internacio-nal, em particular na União Europeia.

A BBC News, a BBC Brasil, a Euronews, a CNN, pelo menos os canais de tele-visão franceses, belgas, holandeses, italianos, alemães e luxemburgueses

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como a generalidade dos jornais de referência dos países membros da EU, noticiaram de acordo com os despachos da Lusa e divulgaram as imagens e as fotografias exibidas em Portugal, em particular na RTP.

Destacam-se vários dos “headings” de alguns meios de comunicação inter-nacional:

“PORTUGAL YOUTHS IN BEACH RAMPAGE” “Some 500 youths, mainly teenagers have raided a popular beach near

Lisbon spreading panic among beachgoers and mugging a large number of people”.

(BBC News)

“MUGGERS IN BEACH RAMP AGE” “Hundreds of teenage muggers stormed a packed beach stealing from sun

seekers in mass “steaming” attack. Five police officers were injuried and a bar owner was taken to hospital

with bad wounds when around 500 youngsters invaded a beach near Lisbon, Portugal.

Several tourists, including British holidaymakers, were treated to shock”. (Sunday Miror.co.uk)

“HUNDREDS OF ASSAILANTS SWEEP PORTUGAL BEACH, TWO HURT” “Hundreds of youth assaulted holiday bathers at one of Portugal ‘s best known

beaches on Friday and at least two police were injuried on the melee”. (REUTEURS)

“PORTUGAL YOUTHS IN BEACH RAMPAGE” “Some 500 youths, mainly teenagers, have raided a popular beach near

Lisbon. Policemen in riot gear where confronted by gangs and struggled to restore

calm. Five people, included three police officers, suffered minor injuries” (Der Spiegel)

“JIHAD ON THE BEACH PORTUGAL” “Immigrants in organised attack at Portugal beach” (Norwegian Internet Hoganah)

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3.4 OS DIAS SEGUINTES

3.4.1 O tema continua a ser notícia de destaque em todos os meios de comuni-cação nos dias seguintes.

No entanto, e apesar de a SIC ter incluído logo no dia 12 de Junho, uma entrevista com o Comandante da PSP de Lisboa, onde o mesmo refere, expressamente que não estava convencido que se tivesse tratado de uma acção coordenada e organizada e que os que a realizaram não seriam mais do que pequenos grupos, o facto é que a generalidade dos meios conti-nuam a defender a “tese” de um “arrastão” conduzido organizadamente por umas centenas (500/400) de jovens de raça negra, com o propósito de saquear e agredir os “brancos” que pacificamente gozavam as delícias de uma tarde de sol.

3.4.2 Esta persistente orientação é dominante nos noticiários televisivos, mas também se reflecte na imprensa escrita,. agora já acompanhada de “expli-cações” e de “comentários” de várias espécies de “peritos” e de “comenta-dores” que pretendem dar as razões e desvendar as implicações do fenó-meno com aquelas características.

É o caso, designadamente, de Pacheco Pereira que comenta a “cegueira da polícia”; de Vital Moreira, a chamar a atenção para as “sequelas em termos de fomento do racismo e da xenofobia”; de Luis Salgado de Matos, que recomenda que se chame “preto a um preto” e considera que a “demagogia do “pobrezinho do gueto” é falsa”; do “criminologista” Moita Flores que garante que não se trata de “um fenómeno isolado”, mas que o “arrastão é a manifestação de um acontecimento maior, cujas raízes remontam aos anos 80, que é a multiplicação de bandos na zona metro-politana de Lisboa”.

Em contrapartida, logo no dia 13 de Junho, alguns comentadores alertam para a possibilidade de o fenómeno ter uma leitura diferente, ligada à mani-festação dos “skinheads” no dia da raça.

É o caso do criminologista Barros da Costa (24 Horas de 13 de Junho).

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3.4.3 Paralelamente assumem relevo noticioso as declarações de políticos, do governo e da oposição.

É o caso do Presidente de Câmara de Cascais e de alguns deputados do PSD, como Manuel Relvas e do líder do CDS de um lado e, do outro, do Ministro da Administração Interna e do Secretário de Estado do Turismo, uns reclamando “medidas”, os outros anunciando a antecipação da campanha “Verão seguro 2005”, com instalação de um sistema de “videovigilância em algumas praias” no sentido de “reforçar o sentimento de segurança” e chamando a atenção para “as causas profundas dos problemas”, para “ir agindo do ponto de vista preventivo”, e apelando à “serenidade” e para os “reflexos negativos do alarmismo despropositado” no turismo.

3.4.4 Também merecem destaque as declarações, por vezes não coincidentes, de responsáveis da polícia.

Assim, a Orlando Romano, Director Nacional da PSP, são atribuídas decla-rações segundo as quais é “impensável fazer face a um fenómeno como o de ontem (sexta-feira) com os meios normais”; já o sub-comissário do Comando Metropolitano de Lisboa, Paulo Monteiro, terá adiantado que “foram registadas apenas duas queixas por roubo de objectos pessoais”.

3.4.5 É só no dia 17 de Junho que começam a ser publicadas as declarações de responsáveis da Direcção Nacional da PSP, no sentido de que, afinal, o número dos jovens que teriam agredido e roubado os banhistas “não excederam os 50” e “muitos jovens que apareceram em imagens televisi-vas e fotográficas a correr na praia de Carcavelos, naquele dia, não eram assaltantes, mas tão só jovens que fugiam com os seus próprios haveres”. (Expresso on line)

Nesse mesmo dia, a “Capital” publica “A verdadeira história de um arrastão que nunca existiu” onde refere que, afinal, “a confusão mostrada pelas fotografias que correram mundo só aconteceu quando chegou a polícia”.

No seguimento de várias entrevistas realizadas, a “Capital” dá conta, deta-lhadamente, de que “banhistas, polícia e jovens presos há uma semana em Carcavelos garantem que o “arrastão” do passado dia 10 de Junho, afinal nunca existiu”, e que, teria sido a intervenção da polícia, da forma como foi

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efectuada, que teria provocado a movimentação de grupo, com receio justi-ficado das agressões políciais, no que, segundo essas fontes, não estariam excluídas motivações racistas.

Uma dessas fontes terá sido mesmo um responsável polícial que teria garantido que “a confusão maior registada pelas fotografias se deu deriva-do à chegada da PSP”.

O despacho da Lusa desse mesmo dia identifica esta fonte policial como sendo “o porta-voz da Direcção Nacional da Polícia de Segurança Pública (PSP), tendo essas declarações sido confirmadas pelo próprio Comandante Metropolitano de Lisboa da PSP e pelo superintendente Oliveira Pereira.

3.5 O VOLTE FACE

3.5.1 É a partir desta data que uma parte da comunicação social escrita começou a questionar o relato inicial dos acontecimentos e a procurar relacioná-lo com outras ocorrências, como a manifestação nazi de “skinheads”, a visita do Presidente da República à Cova da Moura, por ocasião das “festas de São João”, ou os assaltos frequentes nos comboios da linha de Sintra.

3.5.2 Na “Capital”, logo no dia 17 de Junho, o jornalista Nuno Guedes, sobre o título “A verdadeira história de um arrastão que nunca existiu”, escreve:

“Pensava que tinha havido uma acção organizada por causa do 10 de Junho. Entrevistei dois dos quatro detidos, falei com pessoas na praia e vi que tinha acontecido uma grande confusão, não um arrastão.“

3.5.3 O “Expresso” de 9 de Julho notícia que “Polícia desdiz arrastão” e, dando conta do trabalho já mencionado de Diana Andringa, revela que o Comandante da PSP de Lisboa, Oliveira Pereira, teria sido “pressionado” para dizer que os incidentes de IO de Junho em Carcavelos foram um “arrastão” e envolveram 400 pessoas.

3.5.4 Também, no “Expresso”, Daniel Oliveira, fala de “inventão” e esclarece que “o arrastão nem arrastinho foi”, “os roubos afinal aconteceram depois de uma rixa” e teriam’ sido os jornalistas que teriam feito o resto, acrescentan-do mesmo.

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“A maioria dos jornalistas (..) não investiga nada. São apenas artistas da realidade, peritos para entreter o público com aquilo que o público quer. “

3.5.5 O mesmo “desmentido” da PSP é desenvolvido na “Capital” de 10 de Julho criticando o facto de a PSP ter demorado “um mês a admitir que não hou-vera arrastão.”

Segundo as declarações do Comandante Oliveira Pereira, o que verdadeira-mente aconteceu no dia 10 de Junho teve origem “num desentendimento de casais e uma tentativa de furto a um cidadão”, tendo sido “pressionado a emitir um comunicado” alegadamente “elaborado a partir do pouco que a polícia viu, de vários telefonemas da parte da comunicação social e de testemunhos de pessoas que estiveram na praia naquele dia”, sendo que “a fase de maior confusão - registada por máquinas fotográficas e pelas câmaras de televisão - teve início com a chegada dos reforços políciais” e, nessas imagens, “os que parecem ladrões não o são definitivamente.“

3.5.6 A 10 de Julho, o Provedor do Jornal de Notícias, Manuel Pinto, sobre o título “Era uma vez um arrastão”, interroga-se “Afinal onde estão o “terror” e o “pânico”? Na praia de Carcavelos ou nas televisões, rádios e jornais? Onde está o “Arrastão”? Teremos afinal sido enganados e manipulados pelo medo?”.

Para concluir: “Há um “reflexo” ou uma “lógica” mediática que leva os distintos meios

a formatar, etiquetar e apresentar o acontecimento de modo idêntico, mesmo que os factos disponíveis não permitam fazê-lo... Mas é inaceitável que não tenham começado de imediato e perante ocorrência de tamanhas proporções, a bater de porta em porta, a interrogar fontes diversas, a reco-lher depoimentos, a reconstituir os factos...

Em qualquer dos casos faltou-nos o essencial e os media prestaram-nos, assim, um deplorável serviço. “

3.5.7 Também o Provedor do Diário de Notícias, José Carlos Abrantes, sob o título “A um engano, outro engano “, aludia a propósito ao “efeito de bola de neve a partir das notícias validadas pela televisão” e chamava a atenção dos jornalistas para a necessidade de pisarem “terrenos de bom senso e de rigor informativo” e de “pesarem a informação vinda das fontes, mesmo as

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mais credíveis”, sob pena de contribuírem para a “descredibilização vertigi-nosa” dos media, de que são os verdadeiros “donos” e “não a Polícia, não os donos dos bares, não os grupos de pressão ou os lobbies “

3.5.8 Ainda no Diário de Notícias a 12 de Julho, Miguel Gaspar sobre o título “A memória futura de um arrastão”, comenta:

“E os media? Foram apenas arrastados? Não, porque notíciaram os assal-tos que com intensidade diferente da intensidade com que notíciaram os números corrigidos da polícia. Ou na precipitação com que usaram a imagem obtida por um amador interpretando-a como representando uma agressão. Na verdade, trata-se de uma fuga.

(..) Não faltou em muitos casos caros, a capacidade crítica de verificar a história, em vez de construir uma narrativa a partir dos elementos con-siderados válidos. Aceitou-se que eram 500, a partir daí aceitou-se que era um arrastão, e a partir daí afirmou-se que somos um país do terceiro mundo, com imigrantes perigosos. Uma cadeia diabólica de interpretações que substituiu e dispensou a verdade dos acontecimentos. A força de uma palavra tornou-se mais importante do que a realidade. Um erro que fica para memória futura. “

3.5.9 “O estranho caso do arrastão que morreu na praia” é o título de um artigo de Miguel Gaspar, no Diário de Notícias a 12 de Julho, que se interroga “como se construiu a ilusão” e explica o encadeado das notícias, a começar no despacho da Lusa das 16h10 e ampliado pelas imagens televisivas acom-panhadas de comentários dos apresentadores e declarações de políticos.

E conclui:

“O extraordinário é a noção de que o arrastão existiu ter-se instalado no senso comum, mesmo depois de a PSP ter começado a falar apenas em 40 a 50 pessoas que causaram problemas. “

E, apontando “a precipitação dos media ao falarem em arrastão”, inter-roga-se “como é possível que o desmentido tenha sido arrastado para o silêncio?”

3.5.10 Também Leonel Moura, na sua coluna no “Jornal de Notícias” de 13 de Julho comenta que “o simulacro (do arrastão) foi mantido vivo, pelas tele-

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visões acima de tudo, mostrando fotografias e depoimentos concludentes e recorrendo sobretudo à artilharia pesada. As declarações de políticos e comentadores da praxe. Uns e outros cumprindo o triste papel de perorar em cima de um não acontecimento, lançando o pânico, estimulando o racismo e a xenofobia e pior do que tudo, prejudicando bastante a imagem do pais no estrangeiro”, e denuncia “a irresponsabilidade de um tipo de informação hoje dominante nas televisões que, ao privilegiar o espectáculo e a manipulação, mais não faz do que ampliar os problemas quando devia contribuir para os esclarecer”.

3.5.11 Idêntica denúncia aparece no “Diário Económico”, de 12 de Julho na pena de João Paulo Guerra, na Revista “Sábado” de 15 de Julho pelo punho de José Pacheco Pereira, no “Diário de Notícias”, do dia 16 de Julho, na coluna de Miguel Portas, no “Expresso” de 16 de Julho, no comentário de Pedro d’ Anunciação, no artigo de Fernando Ka, no “Público” de 6 de Julho, para apenas citar alguns exemplos.

3.5.12 É neste contexto que merecem uma referência especial três intervenções nos media.

3.5.12.1 Antes de mais a já referida e decisiva “investigação” levada a cabo, indivi-dualmente, pela jornalista Diana Andringa, amplamente noticiada na comu-nicação social e que desmonta totalmente a “encenação” do “arrastão”.

Sobre este trabalho, é importante recordar as entrevistas que a mesma jor-nalista concedeu, designadamente ao “Diário de Notícias” de 12 de Julho e à “VISÃO” de 14 de Julho, sob o título “Michael Moore à Portuguesa”.

Na primeira pode ler-se:

“Porque, apesar dos relatos contraditórios, ninguém quis investigar. A pres-sa e a concorrência criam um clima de imprensa de pacote. Investigam em pacote e tiram conclusões em pacote. Há que parar para pensar e os jornalistas não fizeram isso ... Faltam editores com experiência e sangue frio, que pensem. “

Na segunda refere expressamente a “desmontagem das noticias martela-das nos jornais e na TV”, e no seu seguimento veio o desmentido do próprio Comandante Metropolitano de Lisboa da PSP que se “desculpa por ter con-

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fiado em fontes erróneas, desacredita as fotografias difundidas, posteriores à chegada da polícia e desabafa que não conseguiu ser ouvido quando tentou repor a verdade.”

Também merece uma referência especial a coluna de Leonel Moura a 13 de Julho, no “Jornal de Notícias”, sob o título “A lição de Andringa”, onde se reafirma que “a coisa começou, não com um facto concreto, mas com uma pura invenção polícial e mediática.”

3.5.12.2 Depois o debate promovido pelo Clube de Jornalistas de 11 de Julho de 2005, moderado por Estrela Serrano e a com a participação dos jornalistas Luís Osório da “Capital”, Eduardo Romano do “Público” e o sociólogo de comunicação José Barreiros.

À denúncia levada a cabo por parte de Luis Osório, da “Capital”, relativa-mente à inexistência do “arrastão” e à sua origem na comunicação social, alegadamente por referência primeira em Comunicado da PSP, questionando a forma acrítica como o trabalho jornalístico foi levado a cabo, e às tentati-vas de explicação das implicações socio-económicas do fenómeno por parte de José Barreiros, ligadas ao racismo e à xenofobia crescente na sociedade portuguesa, contrapõe-se a “defesa” da forma como a comunicação social deu a notícia do sucedido, por parte de Eduardo Damaso, do “Público”.

Esta posição insólita mereceu, aliás, um comentário apropriado de Pedro d’ Anunciação no “Expresso” de 16 de Julho, sob o título “O jornalista que não dá o braço a torcer”.

Ele refere:

“Para Eduardo Damaso o facto de não haver indícios de arrastão não signi-fica que ele não tenha existido. E agora ele não precisa para nada que lhe provem que o arrastão existiu (...).

Esta irredutibilidade de Damaso é preocupante, porque nos revela o tipo de jornalistas que resputamos sérios e experientes.”

E adianta que, felizmente ”à mesma hora, (...) outro elemento destacado do “Público” num programa diferente (“Prós e Contras “, RTP1, 23h30), Adelino

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Gomes fazia uma sentida contrição pela forma como a imprensa se deixou levar pelo arrastão. E já antes, logo na semana a seguir aos acontecimen-tos, o director do jornal, José Manuel Fernandes,num editorial, fizera o que se pode chamar uma mea culpa.”

Inegavelmente que este debate contribuiu de forma decisiva, para a des-mistificação do sucedido e para a definição das reais responsabilidades dos meios de comunicação social, quer nacionais quer internacionais, em espe-cial o “mimetismo” de que fazem uso e abuso, e do grave erro da escala de avaliação dos factos e o contributo que, dessa forma, se deu, objectivamen-te, para o desenvolvimento de sentimentos de medo, de exclusão social e de racismo.

3.5.12.3 Finalmente as entrevistas levadas a cabo na SIC por Maria João Avilez no programa “Outras Conversas” com o Padre Vaz Pinto então Presidente da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial e com Manuel Correia da C.G.T.P. e membro da Frente Anti-Racista e da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial.

De forma esclarecedora os entrevistados desmontaram os acontecimen-tos e puseram em causa toda a montagem mediática e a deturpação da realidade, com alegadas motivações de racismo e xenofobia, chegando à utilização abusiva de ficheiros de imagens não relacionadas com os eventos e manipulados ilicitamente por certos meios de comunicação social.

Toda as alegações produzidas reforçaram e motivaram a denúncia efectuada a esta Alta Autoridade, aí expressamente mencionada.

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IV – O PRINCÍPIO DO RIGOR INFORMATIVO E A SUA APREENSÃO E DESENVOLVIMENTO NA LEI E NA JURISPRUDÊNCIA

4.1. É ao texto constitucional que, antes de mais, se deve ir procurar o funda-mento do princípio do rigor informativo.

Com efeito, e independentemente dos textos de regulação deontológica dos jornalistas1 é na própria Constituição elevado à dignidade de direito funda-mental de natureza pessoal, o “direito de informar, de se informar e ser informado”, direito expressamente “assegurado”, ainda hoje, por um órgão independente, também de natureza constitucional, a Alta Autoridade para a Comunicação Social.

Ora este direito à informação, em particular o direito de ser informado, só pode ser considerado assegurado na medida em que a informação provi-denciada pelos órgãos de comunicação social seja rigorosa e isenta.

Cumpre a este propósito, recordar as palavras do Conselheiro Gonçalves Pereira:

“O rigor da notícia é essencial a uma informação correcta, antes de mais por razões de ordem ética que a lei, naturalmente, recebeu. O artigo 37° da Constituição da República assegura o direito de informar, que integra o direito de se informar e de ser informado. Necessáriamente, acrescenta-mos, informar bem. A liberdade de informação está sujeita, por força da lei e da ética, a exigências de seriedade e de autenticidade”.2

1 Estatuto do Jornalista, art° 14º al. a); Código Deontológico do Jornalista de 4 de Maio de 1993, nº 1

2 In « O Rigor da Notícia », AACS, Maio de 1996, pag. 14. No mesmo local, Vieira de Andrade dizia:

“Aliàs. vê-se, na própria Constitução, esta preocupação com a isenção da informação em geral, com

o pluralismo de expressão, o que significa que o rigor aqui, nesta perspectiva juridica, é a condição

intrínseca da própria qualidade de interesse público que tem a comunicaqção social”(pag. 59).

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4.2 Não admira, pois, que a lei ordinária insista, na mesma necessidade de rigor e isenção, seja na Lei 1/99, como dever dos jornalistas, seja na Lei da Imprensa, art° 1 ° n° 2, artº 3°, artigos 24° sgs, como na Lei da Rádio, art° 9° n° 1 al. a) e artºs 58° - sgs, e na Lei de Televisão, artº 10° n° 1 al. b) e artº 30° n° 2 al. d) e art°s 59° e sgs., como obrigações dos órgãos de comunicação social.

Em particular, em relação aos órgãos de comunicação social concessionários do serviço público da radiodifusão e televisão, a lei ordinária estabelece especiais obrigações de rigor informativo - é o que resulta do disposto no artº 47° n° 1 al. a) da Lei 4/2001 de 23 de Fevereiro, ou no art° 47° n° 2 al. b) da Lei 32/2003 de 22 de Agosto, com óbvias consequências nos respec-tivos contratos de concessão de Serviço Público, cláusula 5ª n° 3 al. a) para a Radio e cláusula 5ª n° 2 al. b) para a Televisão.

Finalmente, a lei que regulou as atribuições e competências da AACS, inscre-veu como atribuição maior deste órgão, “providenciar pela isenção e rigor da informação” (Lei 43/98 de 6 de Agosto, art° 3° al. b))

4.3 Tem sido a jurisprudência que se tem encarregado de dar conteúdo ao conceito de rigor e isenção de informação, em particular em casos do foro criminal por alegadas violações à honra e à dignidade pessoal através da imprensa - injúria e difamação.

Assim, em sentença proferida no 5° Juízo Criminal de Lisboa pode ler-se:

“Assim vem sendo entendido que são limites imanentes da liberdade da imprensa o relevo social do facto (o que em princípio exclui os factos da vida privada), a verdade no sentido da convicção da verdade, alicerçada em esforço de rigor e objectividade e a moderação, ponderação ou ade-quação na forma. Considera-se verificada a verdade da notícia quando o jornalista cumprindo o dever do rigor e objectividade, utiliza fontes de informação fidedignas e diversificadas por forma a testar a veracidade dos factos e se convence, em face dessas fontes, fundadamente, que os factos eram verdadeiros” (Proc. 16.241/94, 3ª Secção, sentença de 08/07/99).

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Também em Acordão da 3ª Vara Criminal, se pode ler:

“Que se deve entender por verdade da notícia”? O critério de verdade é o seguinte: o jornalista deve utilizar fontes de infor-

mação fidedignas, se possível diversificadas, por forma a testar e a confir-mar a veracidade dos factos (...). Por outras palavras, cumprindo o dever de rigor e objectividade no sentido acabado de expor (fontes idóneas, diversas e controladas, convicção séria da verdade por parte do jornalista) o facto noticiado considera-se verdadeiro, para efeitos de ser publicado ou noticia-do em Televisão” (Proc. 25/02 NUIPC. 5676/96.9 TDLSB 1ª Secção, acórdão de 20/12/2002).

Ainda em sentença da 1ª Vara Cível e interrogando-se também sobre “o que se deve entender por verdade do facto noticiado” se conclui que “a posição correcta sobre o critério da verdade é o seguinte: o jornalista deve utilizar fontes de informação fidedignas, se possivel diversificadas, por forma a constatar a verdade dos factos” (Proc. 23/2002, 3ª Secção, sentença de 29/11/2002).

4.4 A própria Alta Autoridade tem, ao longo dos anos, firmado, ela própria, o seu entendimento sobre o rigor informativo.

Foi, assim, nas suas deliberações a 7 de Junho de 1995, de 9 de Outubro de 1996, de 23 de Fevereiro, de 23 de Agosto e de 13 de Dezembro de 2000, de 28 de Março, de 5 de Abril, de 31 de Maio e de 17 de Outubro de 2001, de 30 de Janeiro de 2002, de 27 de Fevereiro de 2002 de 2 de Outubro de 2002, de 8 de Janeiro de 2003, de 29 de Setembro de 2004, de 15 de Junho de 2005 e de 10 de Agosto de 2005, a título de mero exemplo.

Destas deliberações retira-se, com clareza, uma linha doutrinária que claramente distingue entre a “verdade” e o “rigor”, significando isto que na informação, a descrição deve corresponder à realidade, por forma que esta “não seja falseada, nem distorcida, nem vaga”, como contrapartida do “direito à informação” (Cf. “O Rigor da Notícia”, e, em particular “O rigor como condição da Notícia” de Ernest Udmar - Textos de um Colóquio reali-zado pela AACS, Lisboa 1996, págs. 97 e segts.), orientação aliás acolhida pela melhor doutrina nacional e estrangeira, subsidiárias da Declaração

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Universal dos Direitos do Homem, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Carta Europeia dos Direitos do Homem.

Pode, concretamente, ler-se, na sua deliberação de 30 de Janeiro de 2002:

“Tem sido entendimento da AACS que a lei ao exigir da informação que seja rigorosa subentende a necessidade de observância de um acervo de regras adequadas que tal garantam, em especial as que constam do Estatuto dos Jornalistas e do seu Código Deontológico.

Neste contexto, assume especial importância o dever imposto ao jornalista de comprovar os factos que descreve e garantir que chegue ao conheci-mento do público qual o posicionamento das partes que, relativamente a eles, tenham interesses atendíveis, assegurando a possibilidade de expres-são e confronto das diversas correntes de opinião em presença (artigo 14° do Estatuto dos Jornalistas).”

4.5 A doutrina mais esclarecida também tem elaborado sobre o conteúdo do rigor da notícia sendo oportuno recordar algumas das mais relevantes tomadas de posição de autores de nomeada internacional e nacional sobre o assunto.

Assim, sem esquecer, de um lado que “a liberdade de imprensa começa com o direito ao erro” (B. Kriegel) não é menos certo que “a deontologia não se encontra na procura de uma improvável verdade absoluta; mas na honestidade dos procedimentos; o recorte das fontes, em matéria de informação; o enunciado do local de onde se olha, em matéria de docu-mentário; o tempo gasto para construir um objecto televisivo; a qualidade das imagens” (J. Clement)3

Ou, como dizia Hervé Bourges, ex Presidente do C.S.A. francês, “as princi-pais regras deontológicas que os jornalistas adoptam ou deviam adoptar, partem desta exigência: não desnaturar a informação; nada afirmar que não tenha sido recortado e verificado; não confundir os factos e a sua inter-

3 In “lnformer, communiquer, même métier? ” Rev. Trim. 4 “Les cahiers du radicalisme” ed. Ballaud,

Paris, 1999

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pretação; não submeter a sua liberdade de expressão a qualquer pressão, seja política, económica ou religiosa; não manipular a realidade” 4

E, mais à frente, chamando a atenção para os perigos da actual “rapidez no tra-tamento de informação “, que é imposta pelos vários meios de comunicação:

“Em numerosos casos (...) vê-se a embriaguês da rapidez levar a melhor sobre os escrúpulos da verificação e a procura do “scoop” sobre a realidade dos factos. E a imprensa escrita, a rádio, a televisão alinharam o passo pelos novos serviços, por medo de serem ultrapassados aos olhos dos leitores, ouvintes, espectadores, numa corrida desenfreada na procura da notícia.”

E, com grande actualidade e a propósito: “Não .se trata de condenar este ou aquele deslize, este ou aquele atropelo, esta ou aquela trapalhada, mas antes de constatar a deriva de um sistema que se alimenta cada vez mais dele próprio, e cada vez menos de um diálogo com a realidade dos factos, que passa, na consciência rigorosamente cartesiana que devia ser a do jornalista, por uma dúvida prévia, seguida de uma interrogação aberta e sem préjuizo.”

Para concluir exemplarmente:

“A rapidez é também o apagamento do espírito cartesiano, um perigo de propagação aleatória de rumores não verificados, o empobrecimento duma informação reduzida a uma redundância simplista. A rapidez, para dizê-lo sinteticamente é, para o jornalista, o perigo da preguiça e do facilitismo, com desprezo das regras deontológicas de base que fundam o valor do trabalho jornalístico.“

E, à guisa de “moral”:

“A deontologia dos jornalistas passa, portanto, por um acto de resistência deliberada contra estes vários constrangimentos temporais ditados pelos novos “media” e por um esforço tendente a restaurar a duração em todas as suas dimensões: reflexão necessária sobre os factos, memória para guardar os acontecimentos, coerência lógica para reconstruir o seu enca-

4 «Deontologie et nouveaux medias» id. pág. 276

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deado. Se este esforço não for feito, o jornalismo perde o seu sentido e a comunicação a sua finalidade.“

4.6 Ninguém melhor de que Dominique Walton soube descrever e analisar o que chama ”a tirania do acontecimento” 5.

São dele as seguintes reflexões:

“A informação torna-se omnipresente e confina a uma tirania do instante. Sabe-se tudo, de todos os cantos do mundo, sem ter o tempo de compre-ender, ou de respirar, e sem saber, finalmente o que importa, do dever de informar, da loucura concorrencial, ou da fascinação pelos meios, ou dos três ao mesmo tempo.” 6

E mais à frente:

“Muita informação mata os factos e a sua compreensão: o acontecimento satura a informação. Ou melhor, a informação, em vez de ser uma escolha entre vários acontecimentos, torna-se simplesmente a sua soma.”

Para concluir:

“Quais sãos os excessos? A tirania do acontecimento; a lógica do scoop e das revelações para se distinguir da concorrência; a perseguição mediática sobre certos acontecimentos, ou personalidades em detrimento de passos inteiros da realidade que são passados em silêncio; a ausência de distân-cia e de cultura profissional para pôr em perspectiva os acontecimentos; o facilitismo no tratamento dos factos; a obsessão das revelações, segredos e descobertas; a aceleração da informação em nome do “direito de saber”; a espectacularização e a dramatização da realidade; a fascinação pela urgên-cia e as situações de crise que correspondem aos estereótipos da cultura do meio jornalístico; a confusão entre a cobertura instantânea do evento e a sua compreensão; ...7

5 “O espaço mediatizado” in Rev. De Comunicação e Imagem 21-22, págs. 169-170. 6

6 “Penser la Communication”, Flamarion, Paris, 1997.

7 Id., pag. 211

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4.7 Mas, no mesmo sentido, devem recordar-se os ensinamentos de Ignacio Ramonet,8 Jacques Lenoble,9 Tristan Mattelart,10 Pierre Bourdieu,11 Umberto Eco,12 Phillipe Breton13 e, entre nós, Joaquim Vieira14 e Manuel Pinho.15

São deste Último autor as seguintes considerações:

“De entre as qualidades ou virtudes que se torna imperioso cultivar, no exercício da profissão e no processo de formação dos jornalistas, a pro-cura incessante da verdade constitui uma dimensão fundamental, tendo presente que mais do que os resultados - afinal, estamos sempre diante de aproximações, percepções ou versões da realidade - essa busca deve assentar nos processos.”

E, inspirandos-se em recente ensaio de Bertrand Labasse16, conclui:

8 “La Fin du journalisme: Débat avec Ignacio Ramonet” ACRIMED, 1999 e “La Tyrannie de la

Communication”, ed. Galilée, Paris, 1999, onde denuncia a “griserie du direct”, a “fascinação pelo

“live”, pelo tempo real”, com a criação de uma “verdade mediática”, que esteve na origem de algumas

páginas bem tristes da imprensa mundial, como o “genocidio” do Rwanda em 1994, da mistificação

de Timisoara na Roménia em 1990, do embuste da reportagem sobre o pequeno Jimmy que afinal

nunca existiu e ainda assim valeu a atribuição de um prémio Pulitzer, da falsificação sobre a revolta

dos kurdos, em 1994, sobre o pretenso ataque sérvio a um mercado de Sarajevo em 1994, para além

das célebres “reportagens de guerra em directo”, feitas a quilómetros de distância ou em cenários

ficticios, no Golfo, no Afeganistão ou no Iraque.

9 “Droit et Communication” CERF, Paris, 1994.

10 “Le Cheval de Troie Audiovisuel”, PUG, 1995.

11 “Sur la Télévision”, Paris, Liber, 1994 e “Contre-feux 1 e 2”, Paris, Raison d’Agir, 2001.

12 “Obbjetivitá dell’Informazione; il Dibattito Teorico e la transformazioni della Societá Italiana”, Milão,

1979

13 “L ‘utopie de la Communication “, La Découverte/Poche, Paris, 1997.

14 “Traçar as fronteiras entre opinião, especulação e noticia “, in “O Rigor da Noticia”, AACS, 1996, pag.

83 e sgs.

15 “O Jornalismo como campo social e como domínio de formação “, in Comunicação e Sociedade, 1,

Universidade do Minho, 1999

16 “Repenser l’information? Vieux Schéma et Nouveaux Enjeux» in Cahiers du Journalisme, n° 3, Junho

1997, pág. 26 e segs. O autor fala de uma “epistemologia aplicada à informação” que substituiria

“essa absurda obrigação moral do resultado -dizer a verdade - por uma obrigação moral dos pro-

cessos.”

O PSEUDO-ARRASTÃO DE CARCAVELOS | DOCUMENTOS 55

“Mais do que indagações filosóficas sobre o que vem a ser a verdade, trata-se aqui de partir de casos e de problemas em que a verdade vai sendo procurada, construida, através de processos que envolvem com frequência o defrontar de estratégias e jogo mais ou menos sofisticados de dificultação, de ocultação e de engodo. A capacidade de indagação, de relacionamento de factos, de contextualização histórica e sócio-cultural e de interrogação são competências importantes a desenvolver, combinadas com uma boa dose de tenacidade e, certamente, de humildade”

4.8 Também na nossa doutrina jurídica a mesma preocupação merece destaque.

Leiam-se, a propósito, as reflexões de Luis Brito Correia17:

“Mais do que um limite à liberdade de expressão e de comunicação social, pode dizer-se que a verdade é um dos fins (porventura, o mais importante) que tais liberdades visam alcançar, correspondendo ao anseio de todo o homem na busca da verdade e ao desejo de comunicar aos outros as par-celas de verdade que vai encontrando.

O dever de respeito pela verdade, nomeadamente, no domínio da informa-ção, significa, obviamente, que não se deve apresentar como real aquilo que o não é: não há liberdade para mentir - para faltar intencionalmente à verdade.

Nos meios de comunicação social, não é obrigatório dizer toda a verdade, nem tal seria possível, dadas as limitações de espaço ou tempo disponível. Basta dizer a verdade relevante: pode ser uma síntese das características da situação ou do acontecimento que permitam uma compreensão cor-respondente à realidade. Aquilo que se diz não deve ser, todavia, uma distorção tal, que a representação se torne significativamente diferente da realidade.

Também não é obrigatório que aquilo que se diz seja só a verdade e nada mais que a verdade.

Nada impede a expressão de opiniões sobre factos (passados ou previsões sobre os futuros), mas é importante não confundir o relato de factos com as opiniões tecidas sobre eles.”

17 “Direito da Comunicação Social» VoI. I, pág. 576 e segs.

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E mais à frente, precisando os conceitos:

“Rigor significa exactidão ou precisão na aplicação prática de uma norma. No caso de informações, o rigor significa que a descrição corresponde à realidade: não é falseada, nem distorcida, nem vaga.

Exactidão significa correcção, apreciação justa ou rigorosa, cumprimento rigoroso e diligente dos deveres.

Objectividade é a qualidade de quem descreve as coisas como elas real-mente são, sem se deixar influenciar por preferências pessoais (subjectivas - do sujeito), sejam preferências religiosas, filosóficas, políticas, estéticas ou outras.

Isenção é a qualidade de quem descreve as coisas com imparcialidade, com independência, sem se deixar influenciar pelos seus próprios interes-ses ou pelos interesses de terceiros a quem deseja servir (seja o Governo, seja a oposição, seja determinado partido, força económica ou social, ou um amigo).”

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V – O “ARRASTÃO” À LUZ DO RIGOR INFORMATIVO E DO DIREITO À INFORMAÇÃO

5.1. É à luz dos parâmetros legais doutrinários e jurisprudenciais antes enuncia-dos que cumpre analisar a forma como foram noticiados os acontecimentos ocorridos no dia 10 de Junho, na Praia de Carcavelos, e perfunctoriamente pode desde já concluir-se que se trata de um verdadeiro “study case” sobre o modo como se não deve fazer informação, pelo evidente e frontal desres-peito e atropelo das mais elementares regras do rigor informativo.

5.2. Sem que nenhum jornalista tivesse presenciado o ocorrido e sem quaisquer imagens do sucedido até à intervenção da polícia, um desentendimento de um casal e uns distúrbios verificados entre escassas dezenas de jovens presentes na referida praia – relatados fundamentalmente por uma única testemunha, cujo passado por ela mesmo invocado de agressões de que teria sido vítima e de preconceitos racistas bem evidenciados, não poderia legitimamente deixar de levantar a suspeita sobre a sua objectividade e isenção – foram transformados e empolados numa movimentação organiza-da. e premeditada de 400/500 marginais “negros”, com intenção de agredir e roubar os “brancos” que aproveitavam do feriado para gozar um merecido descanso ao sol, junto às salsas ondas atlânticas18.

5.3. A partir deste único testemunho visual recolhido por uma jornalista da LUSA que casualmente passava pelo local, e aproveitando imagens colhidas após a intervenção policial desencadeada por um pedido de “reforços” de uma

18 Caso muito semelhante, e que importa ter presente, guardadas as respectivas proporções, é o ana-

lisado por Serge Halimi e Dominique Vidal, a propósito do “genocídio” do Kosovo, que começou com

noticias de 100.000 a 500.000 pessoas mortas, para, afinal, se terem encontrado apenas 187 cadá-

veres (in “L ‘opinion, ça se travaille”, Contrefeux, Agone, 2002); cf. igualmente, de Florence Aubenas

e Miguel Benasayag, “La fabrication de l’information “, La Decouverte, Paris, 1999.

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diminuta e desorientada força da ordem chamada pela irmã de referida “testemunha” que antecipadamente “previra” o que iria acontecer, por ser “habitual”, e onde são intencionalmente focados negros ou mestiços, as pri-meiras noticias transmitidas pelas televisões envolvem, desde o ínicio, uma componente claramente racista e xenófoba, em particular após a recolha de depoimentos de destacados membros responsáveis de partidos políticos da direita parlamentar, ainda que nehum deles tenha estado presente no local ou tenha alegadamente recolhido informações fidedignas do ocorrido que pudessem confirmar as suas alegações.

5.4. Também as forças policiais que ocorreram ao local e não presenciaram quaisquer ocorrências susceptíveis de constituir crime contra pessoas ou bens de molde a justificarem uma verdadeira “carga” policial desmesurada e deproporcionada, “testemunham”, sem qualquer contraditório ou pedido de precisão por parte dos jornalistas que os entrevistam, circunstâncias e factos que não comprovaram, a ponto de o próprio Comandante das forças policiais vir a confessar ter sido induzido, por certos elementos da comuni-cação social, que entretanto ocorreram ao local e o contactaram, no sentido de confirmar uma descrição totalmente inverídica dos aconteceimentos.

5.5. É esta “visão” catastrofista dos eventos que é sucessivamente repetida por todos os meios audiovisuais nos dias subsequentes, sendo retomada como evidência comprovada e com “explicações” de políticos e comentaristas, no sentido de reafirmar o carácter racista da movimentação, de maior amplitude mesmo do que as maiores movimentações conhecidas no Brasil e a preanunciar ou a concretizar mesmo uma afirmação do “poder negro”, contra o qual seria necessário reagir por maior repressão policial e protecção colectiva dos “brancos”.

5.6. Sem qualquer espírito crítico, sem procurar confirmar as fontes, omitindo declarações de intervenientes que procuraram dar um relato diferente dos factos, evitando ouvir mesmo o Comandante da PSP que, desde muito cedo procurou, sem qualquer êxito, desmentir as primeiras informações que teria sido levado a fornecer por manifesta inabilidade e manipulação, e mesmo depois de as suas declarações terem sido transmitidas, no dia seguinte, pela

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SIC, toda a comunicação social foi contagiada por um fenómeno de “mime-tismo” acrítico, continuando a repetir à saciedade, e em verdadeira “bola de neve”, uma versão que não correspondia minimamente à realidade da ocorrência, mas que, em contrapartida, servia bem para “ilustrar” o quadro em que se procurava desenvolver uma manifestação fascista de extrema direita, o relato de incidentes verificados nos comboios da linha de Sintra as trocas de tiros e a morte de alguns polícias em alguns bairros de imigrantes da cintura de Lisboa e a própria visita do Presidente da República a uma dessas zonas mais críticas de população predominantemente negra.

5.7. Mesmo após alguns orgãos da comunicação social, de que se destaca, em primeiro lugar, “A Capital”, mas também o “Expresso” e a “Visão” terem começado a contestar esta versão dos factos e a exibir provas de sentido contrário, o que é surpreendente é que a generalidade da comunicação social não tenha imediatamente feito marcha atrás no sentido das suas “informações” para não dizer já uma clara “contrição” ou “mea culpa” - com as excepções relevantes de Adelino Gomes e de José Manuel Fernandes - e tenha antes preferido não só manter a linha anterior, como “justificá-la” com cópia de “argumentos” e de “comentários”, procurando desacreditar os que afirmavam e demonstravam o contrário.

5.8. E, mesmo quando o Comando da Polícia veio publicamente rectificar as notí-cias e confessar o engano em que tinha caído involuntariamente, mesmo depois desse trabalho ímpar de desmistificação realizado pela jornalista Diana Andringa, que qualquer orgão de comunicação social teria tido a obri-gação estrita de realizar, em particular os que estão vinculados a especiais obrigações de serviço público, ainda assim a forma “discreta” ou a verda-deira “omissão” a que estes factos foram votados é ainda o maior exemplo daquilo que uma comunicação social isenta e rigorosa não deve ser.

5.9. Por seu turno, não pode passar sem referência o comportamento evasivo e ambíguo dos responsáveis políticos da oposição ou do Governo, que se parecem ter entendido quanto ao “combate” à “ameaça negra”, mas não se mostraram disponíveis para vir apresentar uma desculpa formal a toda uma comunidade que foi injustamente acusada de estar na origem de uma

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movimentação organizada e concertada de terror, que chegou a ser quali-ficada de “jihad” na comunicação social estrangeira, sendo particularmente estranho o silêncio da Assembleia da República nesta matéria.

5.10. É, nessa medida, de salientar a intervenção decidida e pronta do Presidente à data da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial, que está na origem da presente queixa que ora se conclui e a cujas motivações e fundamentos não se pode senão dar razão e procedência porquanto, efctivamente, “a partir de descuidos, erros e manipulações dos media” indesculpáveis e inexplicáveis, foram induzidas “atitudes racistas e xenófo-bas” inteiramente reprováveis e condenáveis, a que esta Alta Autoridade é particularmente sensível.

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VI - CONCLUSÃO

Tendo apreciado a queixa apresentada pelo Presidente da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, secundada, entre outros, por António Rosa, a AACS, após análise detalhada da forma como a comunicação social noticiou os acontecimentos ocorridos no dia 10 de Junho de 2005 na praia de Carcavelos, concluíu que, desde a Agência Lusa, cujos comunicados estiveram na origem das notícias, às diferentes edições dos telejornais e dos noticiários da imprensa escrita, os respectivos orgãos, objecto da sua apreciação, procederam, generalizadamente, com evidente falta de rigor informativo, de isenção e de objectividade, não utili-zando – pela diversificação e avaliação das fontes, pela ponderação adequada das circunstâncias, pelo recorte criterioso das primeiras informações, cedendo ao ime-diatismo, ao sensacionalismo e ao espectáculo, não identificando cuidadosamente as causas e sem pesar devidamente as consequências – os meios e processos devidos e ao seu alcance para uma procura da realidade dos factos e, assim, trans-mitindo, quer a nível nacional, quer a nível internacional, uma versão deturpada, enganadora, tendenciosa dos acontecimentos, com evidentes repercussões sociais indutoras do racismo e da xenofobia, contribuindo objectivamente para o reforço da exclusão social e passando para o estrangeiro uma imagem errada do espírito de convivência interracial e de paz social que se vive em Portugal.

A AACS congratula-se com a garantia da liberdade de imprensa e da livre expres-são de opinião que são conquistas irrevogáveis de Abril e que possibilitaram que fosse possível a desmistificação do enredo em que a comunicação social em geral se deixou enlear na forma como noticiou os acontecimentos e destaca o clima de pluralismo que permitiu que, em especial a Capital, primeiro, tomasse a iniciativa e depois o Expresso e a Visão prosseguissem na mesma denúncia. Neste movi-mento de reposição da verdade e de crítica ao modo como as primeiras notícias foram geradas e reproduzidas, a AACS não pode deixar de destacar, para além do trabalho da jornalista Diana Andringa e contributo de numerosos comentadores e articulistas, as posições claras dos Provedores dos Leitores do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias, bem como as iniciativas, nos seus respectivos programas, de Estrela Serrano e de Maria João Avilez.

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A AACS lamenta que a generalidade dos meios de comunicação social tenha dado um tratamento claramente discriminatório ao desmentido pela Polícia das descri-ções iniciais, praticamente omitindo-o ou menorizando-o, em vez de, como seria desejável, terem vindo assumir publicamente o seu erro e a sua quota de responsa-bilidade e formulado um pedido de desculpas que era devido à opinião publica em geral e às comunidades de raça negra e de imigrantes em particular, especialmente visadas na forma deturpada da notícia dos factos. Este juízo é especialmente diri-gido à RTP pelas suas especiais obrigações de serviço público e pelo exemplo que devia constituir de isenção, objectividade e de correcção na informação, não tendo, pela não assunção do seu erro, honrado a sua tradição e o código de conduta e de boas práticas das suas congéneres nos diversos países europeus.

Esta deliberação foi aprovada por maioria com votos de Armando Torres Paulo, Jorge Pegado Liz, Maria de Lurdes Monteiro, Carlos Veiga Pereira e José Manuel Mendes e abstenção de Sebastião Lima Rego, José Garibaldi e João Amaral, com declaração de voto única.

Alta Autoridade para a Comunicação Social, em 23 de Novembro de 2005

O PresidenteARMANDO TORRES PAULOJuiz Conselheiro

O PSEUDO-ARRASTÃO DE CARCAVELOS | DOCUMENTOS 63

DECLARAÇÃO DE VOTO SOBREA DELIBERAÇÃO QUE VISA O COMPORTAMENTO DOS “MEDIA” FACE AO CHAMADO “ARRASTÃO”DE JUNHO DE 2005

Abstivemo-nos porque, muito embora também pensemos que o chamado “arras-tão” foi uma inventona, o texto da Deliberação se nos afigura extrema e inade-quadamente agressivo para com os “media”, parecendo designadamente atenuar a responsabilidade das autoridades na divulgação inicial das notícias que deram conta do alegado “arrastão”.

Em suma, a Deliberação enferma de um tom marcadamente hostil em relação à comunicação social, o qual reputamos injusto. Teria sido conveniente, sem esque-cer as críticas aos “media” que erraram, temperar essas reservas com uma melhor e mais abrangente ponderação das circunstâncias que envolveram os factos em causa.

Lisboa, AACS, 23 de Novembro de 2005

Os Membros,

SEBASTIÃO LIMA REGO JOSÉ GARIBALDIJOÃO AMARAL

64 O PSEUDO-ARRASTÃO DE CARCAVELOS | DOCUMENTOS

O PSEUDO-ARRASTÃO DE CARCAVELOS | DOCUMENTOS 65

4. OUTROS DOCUMENTOS(POR ORDEM CRONOLÓGICA)

A. A HISTÓRIA DO ARRASTÃO QUE NUNCA EXISTIU

NUNO GUEDES A Capital, 17 Junho de 2005

O PSEUDO-ARRASTÃO DE CARCAVELOS | DOCUMENTOS 67

Banhistas, polícia e jovens presos há uma semana em Carcavelos garantem que o «arrastão» do passado 10 de Junho, afinal, nunca existiu. Todos confirmam que existi-ram assaltos pontuais no areal, apesar de não existir uma única queixa de roubo naPSP, mas as imagens daquele dia, difundidas por todo o mundo como um «arrastão» organizado por 400 pessoas, mostram sobretudo a fuga de centenas de jovens pro-vocada pela chegada da polícia à praia.

Pedro e João, alunos numa das várias escolas secundárias da Amadora, e dois dos jovens detidos naquele dia pela polícia, garantem que tudo não passou de uma enorme confusão. O início do Verão aproximava-se e, como noutros anos, explicam, «milhares de alunos das várias escolas da Linha de Sintra foram passando a palavra dizendo que no feriado iam à praia a Carcavelos».

O ponto de encontro seria, como sempre, a velha bola da Nívea, mesmo no centro da praia. Hora e meia de viagem depois, Pedro e João (nomes fictícios de dois adolescen-tes de 16 e 17 anos de cor negra e branca, respectivamente, que nos recebem à porta da sua escola secundária) chegaram ao início da tarde à praia, que na zona da bola de Nívea já estava completamente cheia de grupos de jovens, sobretudo de pele negra.

Aqui, a versão da polícia, responsáveis dos bares da praia e restantes banhistas de Carcavelos diverge da dos jovens detidos a 10 de Junho na praia. Pedro e João garantem que tudo começou quando uma roda de jovens, sobretudo negros, se juntou à volta de um grupo com um rádio a dar músicas de hip hop. No meio, outro grupo dançava.

«Uma senhora até nos perguntou se estavam à porrada, mas quando lhe explicámos que estavam a dançar, até se riram», conta Pedro.

Nuno, Filipa e Bárbara, outro grupo de jovens que ontem estava em Carcavelos e que presenciou o alegado «arrastão», conta uma versão diferente: «No meio da roda esta-vam dois membros de bairros rivais a lutar», garantem. Versão confirmada por uma fonte policial, que afirma que isso mesmo já foi confirmado junto desses bairros.

A polícia, tal como os diferentes jovens ouvidos, admite que, no meio da confusão, aproveitaram para roubar outros banhistas.

A proprietária do Windsurf Café, mesmo em frente à bola da Nívea, conta outra ver-são: «Desde o início que vimos que aquele ajuntamento de gente não era normal e que íamos ter problemas na praia. A determinada altura, do meio daquela roda de

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gente, sai um indivíduo de Leste aos berros dizendo que tinha sido espancado e lhe tinham roubado um fio de ouro». Foi aí que a responsável deste bar à beira da praia, farta dos problemas constantes na praia mais perigosa do pais e que nas costas do telemóvel tem colado o número da PSP, chamou as autoridades.

A CHEGADA DA POLÍCIA. «Viram centenas de pretos todos juntos e acharam que estavam a fazer algo de mal», defendem Pedro e João, que acreditam existir muito racismo no meio deste «arrastão». E foi quando a polícia chegou que se instalou a confusão geral apresentada pelas imagens captadas pelo proprietário do Windsurf Café, que ilustraram televisões e jornais do planeta como se fosse o maior «arras-tão» do mundo.

Pedro reconhece-se numa das fotografias, mas garante que a mala e toalha que tem na mão são dele. Tal como a grande maioria das restantes pessoas que aparece nasimagens, diz que apenas pegou nas suas coisas para fugir à polícia que, garante, entrou no meio dos diferentes grupos de jovens negros, entretanto já dispersos pelas suas toalhas, à «cacetada».

Nuno, Filipa e Bárbara, o grupo de jovens que ontem se mantinha em Carcavelos, tal como a proprietária do Windsurf Café, garantem que muitos dos que estavam no meio daquelas centenas de adolescentes negros se viraram contra a polícia, que assim não teve outra hipótese se não se defender. «Os polícias não são os maus desta história e muita coragem tiveram ao intervir no meio de centenas sendo apenas 13 agentes», afirma a responsável do bar da praia.

«Mas qual é o jovem que, sendo branco ou preto, respeita a polícia», pergunta Carolina Nunes, outra das banhistas que naquele dia estava em Carcavelos, e que garante que nunca se apercebeu de qualquer «arrastão». «A determinada altura vi toda a praia a olhar para esse enorme grupo de negros, e apenas me apercebi de uma confusão que parecia ser barafunda motivada por algum piropo enviado à namorada alheia», explica.

Só abandonou a praia quando chegou a polícia e os agentes dispararam para o ar. «Pegámos nos filhos e fomos embora», conta o marido, Marco Nunes. Quanto ao alegado «arrastão», só ouviram a palavra quando chegaram a casa e ligaram a televisão, estranhando não ter ouvido ninguém na praia dizer que estava a ser roubado.

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ROUBOS NA CONFUSÃO. Pedro e João, os adolescentes detidos naquele dia, admitem, no entanto, que no meio da confusão motivada pela chegada da polícia, houve uma minoria que, em vez de pegar nas suas coisas, pegou nas de outros. «Mas eram putos que só vão para a praia arranjar confusão», garantem.

Entre os quatro detidos pela policia naquele dia, Pedro e João acabaram presos acusa-dos de agressão às autoridades. Ambos defendem-se dizendo que não fizeram nada e que foram agarrados pela PSP quando se deslocavam para a praia da Torre para continuar o dia à beira-mar. «Apenas fomos presos porque éramos só três, tínhamos um ar mais frágil, e um de nós era branco», garante João, que recorda os comentários racistas dos agentes aquando da entrada de rompante na praia.

Estiveram três horas na esquadra, de onde saíram acompanhados pelos pais. Na terça-feira foram ao tribunal, que abandonaram sem qualquer acusação por falta de provas.

Quanto ao «arrastão» promovido por 400 indivíduos, conforme afirmou a PSP há uma semana, Nuno, Filipa e Bárbara, garantem que o que aconteceu foi apenas uma «enorme confusão e fuga descontrolada» com a chegada da polícia.

Fonte policial próxima do processo garante também que não se pode falar num arras-tão. «Não houve nada planeado e não existiam 500 pessoas na praia organizadas com a intenção de roubar. Tudo começou com uma briga entre dois indivíduos de dois bairros, que permitiu a uma meia dúzia fazer alguns assaltos isolados. É verdade que o número de pessoas aglomerado na praia era anormal, mas não podemos proibir ninguém de estar no areal só por ser de raça negra», afirma o mesmo agente, que admite que a confusão maior registada pelas fotografias se deu devido à chegada da PSP.

«Arrastão, como no Brasil, nunca existiu em Carcavelos naquele dia», conclui o res-ponsável. Até porque toda a confusão se centrou num único ponto da praia, à volta da bola da Nívea, que há anos que os responsáveis Windsurf Café tentam retirar da praia para evitar que continue a ser ponto de encontro para os milhares de jovens que procuram a praia mais acessível do país.

B. NOTÍCIAS QUE SÃO PURA FICÇÃO

PEDRO D’ANUNCIAÇÃO Expresso, 18 de Junho de 2005

O PSEUDO-ARRASTÃO DE CARCAVELOS | DOCUMENTOS 71

TRÊS queixas, três apenas, eis ao que os noticiários de quinta-feira passada resumiam o «arrastão» de sexta anterior, na praia de Carcavelos. E, segundo dados da Polícia, essas três únicas queixas de roubo não se referiam concretamente a casos passados na própria praia, no local do dito «arrastão», mas sim num Carcavelos mais genérico, que incluía a Estação de Comboios.

O que se passou então? Um grupo de negros demasiado grande (seriam mesmo 500?) entra pela praia dentro, numa exuberância de danças e canções, e assusta a pacatez indígena. Haveria já ali notícia de algum dos três assaltos que vinham lá de trás, da estação de comboios? Muito improvavelmente.

Admitamos contudo que se tenha gerado algum receio, pânico até, por aquela homo-geneidade étnica tão diferente, e com sinais de pouca sofisticação social. Começa aaparecer alguma Polícia, chamada pelos mais atemorizados. Eles, os negros, indi-ferentes, continuam na sua bailação, no seu cantarolar. Os polícias presentes, sen-tindo-se pouco dissuasores, chamam mais colegas, que aparecem de Lisboa, umas duas ou três horas depois. Já em número considerável, decidem impor-se. A malta desata então numa correria assustada. Mas nas horas em que o arrastão se arras-tava, não se detectaram assaltos, não se viram violências. Uma filha minha estava na praia, precisamente entre as duas manchas étnicas, e só sentiu o sobressalto da correria, quando chegou a Polícia em massa.

Entretanto, estalou uma hostilidade, feita sobretudo de palavras, um ressentimento racial que ia inchando, de parte a parte. Fala-se até de uma senhora ferida — numa garrafa partida que por ali estava.

Quando as equipas de reportagem chegaram ao local, já pouco restava do arrastão. Mas, aparentemente, os repórteres iam já com as suas expectativas exaltadas. Não falaram com certeza com a minha filha, que lá estava desde o início. Ouviram talvez algumas hostilidades raciais. Conveio-lhes a notícia do arrastão. Fabricaram uma fic-ção. E, sobretudo, deram ideias.

Porque, logo a seguir, na Quarteira, fiquei sem perceber se não aconteceu rigoro-samente nada — ou se uma pequena multidão de «ravistas» em fim de festa terá mesmo ensaiado o tal «arrastão», de que tanto se tinha falado.

E imagine-se agora que não tinha morrido o dr. Cunhal. O que discutiria o «Prós e Contras» de segunda-feira última (mais todos os outros debates avulsos das várias

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estações): ainda o «arrastão», com os seus simplificadíssimos envolvimentos socioe-conómicos, ou os incêndios, com as suas implicações logísticas e meteorológicas?

DAR ideias é o que parecem fazer também as TV, efectivamente, no caso dos incên-dios. Mal chegou a época de os noticiários televisivos falarem do assunto, no aperto dos primeiros calores, um amigo meu, folgado em montados de sobreiros, aterrado com o destino da sua cortiça, desabafou logo: «Lá se põem eles a dar ideias — vais ver que começam agora a aparecer mesmo os incendiários! E assim todos os anos».

A teoria deste meu amigo é que os incendiários se tomam inofensivos, quando andam com as suas más tendências distraídas. Mas que, mal as TV se atiram aos incêndios, saltam eles logo atrás, a atirar-se também.

Estava eu a pensar tecer algumas reflexões sobre o assunto, quando se me antecipou o Eduardo Cintra Torres, no «Público».

A morte de Álvaro Cunhal também acabou por pôr alguma paz sobre este assunto. Apesar do calor, parece que os incendiários se distrairam, absorvidos com a vida mítica do ex-líder comunista.

Mas, esgotados todos os documentários e comentários sobre Cunhal, lá voltarão as chamas aos ecrãs, e os incendiários às florestas. É Cintra Torres quem o diz: «Sabe-se que há incendiários que ateiam incêndios para os ver na televisão». Ou será que são jornalistas que ateiam as notícias para as pôr na televisão?

C. “ERAM PR´AÍ UNS 500!” DE TIMISOARA A CARCAVELOS

RUI MARQUES Público, 18 de Junho de 2005

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“Hoje um facto é verdadeiro não porque obedece a critérios objectivos, rigorosos e comprovados na fonte, mas simplesmente porque outros media repetem as mesmas informações e «confirmam» ... A repetição substitui-se à verificação. Se a televisão (a partir de um despacho ou de uma imagem de agência) apresenta uma notícia e em seguida a imprensa escrita e a rádio a retomam, tal basta para creditá-la como verdadeira”1.

in Ramonet, Ignacio (1999) A Tirania da Comunicação

Em Dezembro de 1989, em plena convulsão do leste europeu, correram mundo as imagens de valas comuns descobertas em Timisoara que testemunhariam os massa-cres aí ocorridos, nos dias de levantamento da Roménia contra o ditador Ceaucescu. Falava-se de cerca de 4.000 mortos nesta cidade, num total de 70.000 em todo o país, em poucos dias de revolta. Tais imagens tiveram uma repercussão extraordiná-ria nas opiniões públicas mundiais e respectivos governos. A pressão sobre Ceaucescu subiu a tal ponto que o fez cair. Julgado sumariamente, foi condenado com a sua mulher a execução imediata. O mundo rejubilou. A Roménia era livre. Poucos comen-taram o facto de, mais tarde, se ter descoberto que as referidas imagens de valas eram falsas e não correspondiam a massacrados de Timisoara. Foi uma das maiores fraudes mediáticas já registadas.

Em 1999, em pleno Referendo timorense, sucediam-se as notícias trágicas de “mor-tes” de figuras relevantes da sociedade timorense - desde o pai de Xanana Gusmão, à Irmã Margarida ou o Padre Domingos Soares; anunciou-se também o desapareci-mento de D. Basílio do Nascimento - com enorme impacto na opinião pública inter-nacional. Mais tarde, veio a confirmar-se que não correspondiam à verdade.

Estes dois exemplos servem para recordar erros jornalísticos ao universo mediático e à opinião pública e deveriam consolidar aprendizagens a não esquecer facilmente. Nem sempre o que os media nos dizem é verdade.

Salvaguardando as devidas distâncias, os acontecimentos de Carcavelos podem vir a inscrever-se neste histórico de erros jornalísticos relevantes. Nesses acontecimentos,

1 Ramonet, 1999: 135

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foi factor central de potencial de noticiabilidade, a dimensão ímpar a nível nacional, europeu e mesmo mundial, de um assalto em massa, - o dito “arrastão” – protago-nizado, segundo as notícias, por 500 jovens, organizados para tal. Espantosamente ninguém questionou, um segundo que fosse, a credibilidade desse número avançado pelas primeiras notícias. A construção do lead, a repetição dos destaques em rodapé nas televisões, a assunção a-crítica deste suposto facto - porque “vi na televisão” - consolidou definitivamente este “facto”.

Como bem sublinha Ramonet, na sua Tirania da Comunicação, “a repetição substitui a verificação”. Um pega, outro repete e o terceiro acredita. O rigor, a objectividade, o cruzamento de várias fontes, bem como o simples bom-senso e a perspicácia deve-riam, no mínimo, levar-nos a questionar se é consistente e credível a informação de que se tratou de uma operação organizada por 500 (!) jovens. Ninguém pareceu incomodar-se com essa preocupação da procura aprofundada da verdade. Perguntas como “com 500 assaltantes no terreno só foram feitas 4 detenções?”, “com 500 assaltantes à solta na praia não se registaram feridos, a não ser os dois resultantes da intervenção da polícia?” “como é que se organiza um gang de 500 pessoas para um assalto?”, não constaram, aparentemente, do raciocínio jornalístico. Ao invés, o espaço ao boato ou ao rumor teve tempo de antena, protagonizado pela vox populi.

A adesão aos contornos extraordinários da notícia, ainda que inconsistentes, atraiu tanto jornalistas, quanto espectadores. Todos quiseram acreditar. Provavelmente, foi suficiente alguém – polícia, mirone ou comentador de oportunidade - dizer “eram pr´aí uns 500”, para que não mais a notícia descolasse deste número extraordinário, sem que este “facto” fosse colocado em questão. A gestão da informação veiculada pelas fontes é conhecida por todos e deve ser cuidadosa e enquadrada no seu registo de interesses próprios, não sendo expectável que se limitem a ser “objectivas” pois, normalmente, são parte interessada e activa no processo em causa, procurando gerir as notícias. Outras vezes, são tomadas como fontes fidedignas, vozes passantes, que aplicam um conjunto de filtros – preconceitos, erros de comunicação, excesso de protagonismo pessoal – ao facto concreto que descrevem e assim o alteram radical-mente. É a institucionalização do “diz que disse”.

Este aparente preciosismo – “ok, não são 500, são 50. Mas o problema é o mesmo” – pode parecer irrelevante face à gravidade do acontecimento. Ninguém coloca em causa que os actos ilícitos têm que ser punidos, na aplicação serena, isenta e equili-brada da justiça, olhando aos factos concretos e não ao ruído mediático. Mas não é isso que está, neste contexto, em discussão. Os acontecimentos de Carcavelos não

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teriam sido agendados e percepcionados da forma que o foram – topo de noticiários com longas coberturas, bem como primeiras páginas de jornais - se não tivessem estes contornos de “caso único no mundo”, que até televisões e jornais estrangeiros noticiaram. A expansão automática de um sentimento de insegurança, que levou os portugueses a evitarem a praia nos dias seguintes, só aconteceu graças à difusão mediática deste super-acontecimento, do qual todos falam e ninguém duvida. Mas que, provavelmente, não aconteceu da forma como é descrito.

Se o número avançado fosse de duas ou três dezenas de protagonistas activos nesse assalto, como parece indiciar uma análise mais cuidada das fotografias disponíveis do momento do assalto e como foi agora confirmado pela Polícia, a notícia não teria tido um décimo do impacto, nem causado as ondas de choque que se sucederam nos dias seguintes, até com miragens de novos “arrastões” em vários pontos do país. Este dimensionamento deu-lhe um estatuto inusitado, catapultando-a para um nível de agendamento mediático, público e político elevadíssimo.

Deste agendamento resultaram consequências que já são inapagáveis. Estigmas que aumentaram, insegurança difusa que se disseminou, preconceitos que se consolida-ram. De nada servirá a eventual verificação à posteriori do erro jornalístico, a não ser aprender para o futuro. A responsabilidade social e a cultura ética e deontológica dos jornalistas assim o exigem.

D. AINDA O ‘ARRASTÃO’

EDUARDO DÂMASO Editorial do Público, 18 de Junho de 2005

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A redução da dimensão do que se passou em Carcavelos a “trinta ou quarenta” pes-soas envolvidas nos assaltos é uma simplificação absurda. O “arrastão” da praia de Carcavelos contínua a suscitar todo o tipo de comentários. Uns mais acertados do que outros, como é costume. A leitura mais delirante de todas e que tem feito um cami-nho maioritário está na constatação de que, afinal, os protagonistas do “arrastão” não foram os tais 500 jovens mas sim uns “trinta ou quarenta”.

Precisando, como o fez um comandante da PSP de Lisboa: estariam na praia umas 400 a 500 pessoas oriundas de bairros problemáticos mas “apenas trinta ou quaren-ta” praticaram assaltos e distúrbios. Ou seja, o problema foi menor... Esta constatação aliviou muitas consciências, algumas delas diplomadas em ciências de todo o tipo, que passaram a ver no evento apenas um colossal abuso mediático, fabricado pelas televisões e pelas fotografias divulgadas nos jornais.

A redução da dimensão do que se passou em Carcavelos a “trinta ou quarenta” pessoas envolvidas nos assaltos é uma simplificação absurda de quem não quer ver o óbvio. O que se passou em Carcavelos corresponde a um problema gravíssimo de integração da segunda geração de filhos de imigrantes africanos que está, há quase duas décadas, a transformar a área metropolitana de Lisboa num barril de pólvora. E este problema não é maior nem menor do que outros, que geram outro tipo de violência mas sempre violência, em comunidades que nada têm a ver com a imigração africana, como é o caso dos bairros degradados da região do Porto.

Aí é uma violência “branca”, tal como aquela que está latente na manifestação de extrema direita xenófoba e racista convocada para hoje em Lisboa. Ou seja, nos últimos vinte anos emergiram em Portugal fenómenos de violência que exigem um trabalho policial muito maior e mais sofisticado, em primeiríssima instância, e também um conjunto de políticas sociais, económicas e culturais que ataquem as causas e que não têm sido desenvolvidas. Mas sejamos claros: o comboio vai em andamento descontrolado e só se evita o desastre se se souber conduzir políticas de segurança firmes, que não passam por dar um cheque em branco às forças policiais mas, sobretudo, por não desautorizá-las.

Só não vê quem não quer. Todos os dias as colunas de casos do dia dos jornais publi-cam histórias que traduzem tipos de violência a que não estávamos habituados.

Violência que conhece e não conhece a cor da pele. Violência racista contra negros mas violência, também racista, de negros contra brancos. Violência por dinheiro e,

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também, por quase nada. Esses especialistas deveriam saber que “trinta ou quaren-ta” pessoas a assaltarem outras na praia é sempre um problema de ordem pública e de insegurança.

Em Portugal ou no Brasil. Deveriam saber também que em Portugal há territórios que são palco permanente de uma luta pela defesa da aplicação da lei e a tentativa de impor uma soberania de violência. Deveriam saber que custa pouco comprar uma arma de fogo e que há gente que as dispara com uma desarmante facilidade. Que há também salteadores de estrada que por trinta euros atiram pessoas amarradas para dentro de rios.

Que disparam com total à-vontade contra forças policiais. Portugal não tem de trans-formar-se num Estado securitário mas não pode desprezar a liberdade de quem cá vive, portugueses ou não, acreditando que estes fenómenos são sistematicamente imaginados pelo delírio ou pela gula de um punhado de jornalistas e não correspon-dem a nada de alarmante. Por isso, atacar as causas dos problemas é importante, mas lidar com eles, de cara aberta e sem complexos, no plano policial é também decisivo para um Estado de direito democrático.

E. JORNALISMO E INSEGURANÇA

JOSÉ MANUEL FERNANDES Público, 23 Junho de 2005

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O preconceito e o medo potenciam o mais perigoso no comportamento das multi-dões: a cegueira emocional.

Existe um problema de insegurança nas praias ou nos comboios da periferia de Lisboa? É obrigação dos jornalistas dá-lo a conhecer, procurar as suas causas, rela-tar as ocorrências e interrogar as autoridades sobre o que está a ser feito para que o Estado cumpra uma das suas funções primeiras, a de garantir a segurança dos cidadãos. As populações têm medo, sentem-se inseguras? As duas coisas. Muitos já foram assaltados, presenciaram assaltos ou contaram-lhes histórias de assaltos. Há horas a que temem sair à rua e bairros onde não entram. O assunto é tema de conversas onde, por regra, quem “conta um conto, acrescenta um ponto”. Aqui já a responsabilidade dos jornalistas é, antes do mais, esclarecer. Existem razões para ter medo? Que comportamentos adoptar? Que exageros há no que por aí se diz?

Balancear o imperativo de informar e denunciar as situações de insegurança e, ao mesmo tempo, não criar uma espiral de histerismo nem sempre é fácil. Os jornalistas sabem que há notícias que induzem comportamentos, relatos que dão “más ideias”. Sabe-se, por exemplo, que quando se noticia com destaque um suicídio aumentam as tentativas de suicídio. Do mesmo modo que quando se relata uma nova técnica de “roubo por esticão” ou o sucesso de um “arrastão” há quem logo tente repetir as façanhas. Mais: está provado que existe uma forte correlação entre o sentimento de insegurança e a visibilidade mediática dos crimes. Por vezes, em períodos de menos criminalidade há mais medo e mais comportamentos irracionais porque os jornais andam a falar de crimes do que em épocas de taxas de criminalidade mais altas.

Infelizmente, o que se passou nos últimos dias mostra que nem todo o jornalismo que se faz em Portugal procura o equilíbrio e é feito de forma responsável. Primeiro verificámos como o “arrastão” de Carcavelos assumiu dimensões para além das reais - isto é: se houve “arrastão”, se ele ter ocorrido é sintoma de um mal social capaz de gerar eventos realmente graves, a forma como foi relatado deu-lhe proporções de “Rio de Janeiro em Lisboa” que estão longe de corresponder à realidade. Pior foi o que se passou com um incidente na linha de Sintra, nos arredores de Lisboa. Uma tentativa isolada de assalto foi catapultada para a abertura dos telejornais e transfor-mada na principal notícia do dia.

No meio do ruído, poucos perceberam que os feridos que resultaram do incidente não se viram envolvidos em qualquer confronto, antes foram vítimas de uma reacção de pânico provocada pelo accionar de um alarme. E o mais extraordinário é que quando

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o PÚBLICO foi investigar o que realmente se passa com a criminalidade nas linhas suburbanas da Grande Lisboa, detectou que a criminalidade caiu 33 por cento entre o primeiro trimestre de 2004 e o primeiro trimestre de 2005, intervalo de tempo em que o número de detenções duplicou, sinal de que as autoridades montaram dispo-sitivos de segurança que estão a dar resultados.

Outros, porém, preferiram as “impressões” e delas concluíram que a criminalidade está a aumentar. Números? Só complicam. Fontes oficiais? Antes os mais “picantes” testemunhos anónimos. Os “contos a que se acrescentam pontos”.

O pior é que este não é um problema de jornalistas: é um problema social cuja evolução pode depender da forma como os jornalistas o tratam. A seriedade ajuda a resolvê-lo, os títulos histriónicos ajudam a complicá-lo e alimentam, com frequência, o preconceito. Ora o preconceito, associado ao medo, potencia o mais perigoso no comportamento das multidões: a sua cegueira emocional.

F. ENTREVISTA AO COMANDANTE OLIVEIRA PEREIRA NO DOCUMENTÁRIO “ERA UMA VEZ UM ARRASTÃO”

DIANA ANDRINGA

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O que aconteceu em Carcavelos?Comandante Oliveira Ferreira: O que supomos que terá acontecido terá sido uma questão de um desentendimento entre casais por um lado, e por outro também uma tentativa de furto a um cidadão, isto tudo numa praia em que, segundo sei, soube hoje, estavam cerca de quinze mil pessoas, naturalmente tudo muito fecha-do, as pessoas sem muito espaço; criou ali uma sensação de alteração de ordem pública grave, portanto as pessoas começaram a fugir, e houve um grupo de cerca de trinta pessoas, que, aproveitando-se da circunstância da alteração da tal ordem pública, tentaram furtar e roubar; nalguns casos, utilizaram alguma violência, com algumas pessoas.

O comunicado da polícia fala em “400 assaltantes” e em “arrastão”. Foi um comunicado infeliz?C.O.F.: Foi efectivamente infeliz, eu assumo essa responsabilidade. A intenção desse comunicado não foi exactamente dizer isso, mas que estava um grupo de quatrocentas pessoas e que desse grupo alguns teriam praticado o tal arrastão. A base da informação que saiu nesse comunicado, qual foi? São as pessoas que assistiram, as testemunhas oculares. O polícia que viu a alteração de ordem pública não sabia consubstanciar exactamente o que é que teria acontecido, tinha a ideia de que estavam lá entre quatrocentas a quinhentas pessoas, mas não sabia exac-tamente, portanto foi com base nalgumas informações. Esta atitude minha e aquilo que vou dizer não deve ser interpretado como aligeirar a carga da minha respon-sabilidade, não é isso que quero dizer; o que quero dizer é que foi feito com base em pessoas entendidas como credíveis, que eram responsáveis, algumas delas de meios de comunicação social que me telefonaram e que supostamente teriam assistido ao incidente. [...] E o Comando Metropolitano foi pressionado: “Mas então, vocês não têm opinião? Vocês não viram nada?”, e nós, naturalmente, à custa dos testemunhos, não só do pouco que a polícia viu, mas dos testemunhos até doutros jornalistas que entretanto considerámos como fonte fidedigna, fizemos esse comu-nicado. [...] Esta informação que outro dia tive oportunidade de transmitir na SIC, dos tais vinte ou trinta, porque não sabemos exactamente quantos são, visto que o arrastão por si, não existiu, no sentido de um grupo organizado que fez um arrastão ao longo da praia, passado cerca de uma hora eu já tinha conhecimento disto; este é um facto importante e não estou a aligeirar a minha responsabilidade em nada, mas naturalmente que estas e outras coisas que têm uma sequência, as pessoas vão-se elucidando, vão esclarecendo; eu quis transmitir aquilo que, entretanto, para esclarecer melhor o comunicado, nunca consegui. Isto digo e escrevo também em comunicado se for caso disso e se for necessário.

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Tudo isso foi antes da hora dos telejornais de 10 de Junho?C.O.F.: Exactamente, tive a preocupação, porquê? Porque o cenário estava montado de tal maneira, isto em termos... sei lá, em termos de formação até dos próprios jor-nalistas ou da própria polícia, isto vai servir de referência, porque eu aprendi alguma coisa, aprendi que para a próxima, independentemente das fontes que vierem e que me pareçam credíveis, independentemente do forcing, do pressing a que fui sujeito, e que foi, não fazem ideia, eu já actuarei de uma maneira diferente.

As imagens do “arrastão” divulgadas pela comunicação social correspondem afinal a quê?C.O.F.: Esse filme corresponde a uma fase já subsequente, já a fase final, depois da intervenção da polícia, é a fase posterior, que é efectivamente quando a polícia entra, as pessoas começam a fugir.

Pois. E portanto muitas daquelas pessoas que aparecem como, digamos ladrões em fuga, com o seu roubo…C.O.F.: Não são, não são, definitivamente

Dois dias depois do “arrastão” começaram a aparecer as notícias e iam em crescendo, e apareceu o Diário de Notícias a falar de 470% de aumento da “criminalidade de gang” em Portugal. O que é que quer dizer “criminalidade de gang”?C.O.F.: Considera-se criminalidade grupal, ou de gang como eles chamaram, aquela que é perpetrada, que é executada por mais de três indivíduos. Normalmente esses estudos nunca se fazem nesse sentido, não é? Não se vai agora buscar os últimos dez anos para fazer a comparação. (*)Aqui foram os sete.C.O.F.: Foram sete anos?Sete anos.

(*) Aparece em simultâneo o seguinte quadro:

Aumento recente da criminalidade grupal

2002 – 9%

2003 – 7%

2004 – 6%

Fonte: Ministério da Administração Interna

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C.O.F.: Pronto, isso é uma maneira de fazer uma análise da criminalidade que não é a mais correcta naturalmente, porque as circunstâncias alteraram-se, há uma série de factores que alteram. […] Pela primeira vez nos últimos seis anos, a criminali-dade violenta, que é aquela que tem mais efeito no sentimento de segurança do cidadão, decresceu, três vírgula… quase quatro por cento, o que na minha opinião é extraordinariamente importante e é muito valorizativo. Outro aspecto importante foi a criminalidade geral também, baixou cerca de 12,6%, o que também é signifi-cativo. […] Tenho dito a múltiplos jornalistas isto exactamente, que a criminalidade baixou, é um motivo de transmitir alguma tranquilidade aos cidadãos, que é funda-mental criar-lhes este sentimento de segurança, e de acreditarem nalguma coisa, nomeadamente que há segurança no país, e não tenho conseguido.

Este texto é uma transcrição de uma entrevista oral, pelo que a sua linguagem foi reformulada.

G. O JORNALISTA QUE NÃO DÁ O BRAÇO A TORCER

PEDRO D’ANUNCIAÇÃO

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O ARRASTÃO que não chegou a existir, o de Carcavelos, voltou esta semana a estar em foco por causa de um vídeo-documentário de Diana Andringa (disponível no site www.eraumavezu-marrastao.net). Nesse documento, testemunhos de pessoas pre-sentes no local comprovam a inexistência do arrastão. E mesmo o comandante da PSP em Lisboa, numa entrevista também transcrita no último EXPRESSO, depois de reconhecer ter sido levado pela pressão dos «media», recordou que logo no mesmo dia viria a desmentir o arrastão.

O Clube de Jornalistas (RTP2, 2”f., 23h30) discutiu o assunto, esta semana, com Eduardo Dâmaso, subdirector do «Público», e Luís Osório, ex-director de «A Capital». E mostrou alguns dos testemunhos passados nas televisões (que nunca tiveram imagens de arrastão nenhum). Por exemplo, o de uma mulher, a quem a repórter perguntava se havia feridos, e respondia assim: «Sim, eu suponho que há várias pessoas feridas».

EDUARDO DÂMASO resolveu simplesmente não dar ali o braço a torcer. Ninguém o convencia de que não houve um arrastão. O depoimento do comandante da Polícia de Lisboa não o convence, porque a experiência dele é de grande desconfiança a tudo o que vem da Polícia – aparentemente, desde que contrarie uma tese por si já assumida. A falta de queixas de roubos e a falta de feridos detectados oficialmente, naquele dia, em Carcavelos, também não o convencem – porque as estatísticas ofi-ciais deixam muito a desejar.

Para Eduardo Dâmaso, o facto de não haver indícios de arrastão não significa que ele não tenha existido. E agora ele não precisa para nada que lhe provem que o arrastão existiu. O que ele quer, o que exige mesmo, para mudar de opinião sobre o assunto, é que lhe provem, com factos imensos (imagens? certificados de todos os banhistas de Carcavelos a garantirem não terem sido roubados naquele dia?), e que não venham de pouco fiáveis estatísticas policiais, que o arrastão não existiu – nem que fosse apenas com uns 30 arrastantes, em vez dos 500 inicialmente falados. Porque essa questão, a do número, é a única que ele está disposto a ver discutida.

Esta irredutibilidade de Dâmaso é preocupante, porque nos revela que tipo de jorna-lismo nos podem dar jornalistas que reputamos de sérios e experientes.

Note-se, à mesma hora, em que Eduardo Dâmaso punha as suas convicções e precon-ceitos por cima dos factos, outro elemento destacado do «Público», num programa diferente «Prós e Contras», RTP1, 2ªf., 23h30), Adelino Gomes, fazia uma sentida

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contrição pela forma como a imprensa se deixara levar pelo arrastão. E já antes, logo na semana a seguir aos acontecimentos, o director do jornal, José Manuel Fernandes, num editorial, fizera o que se pode chamar um mea culpa.

A verdade é que preferia assacar a responsabilidade do arrastão à inexperiência de jornalistas pouco rodados, que os órgãos de informação põem na rua, a fazer repor-tagens – por causa das suas limitações orçamentais.

Como bem frisou Luís Marques, administrador da RTP, num curso de Verão em Cascais, «as reestruturações que os meios de comunicação sofreram nos últimos anos podem ter grande relevância para a qualidade da produção das Redacções».

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5. RESPOSTA DA CP À DIVULGAÇÃO NOS MEDIA DE IMAGENS DE ASSALTOS A COMBOIOS NA LINHA DE SINTRA

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6. PARADOXOS DO INDIVIDUAL E DO COLECTIVO NA HISTÓRIA DO “ARRASTÃO”

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INTRODUÇÃO

Tem sido frequentemente salientado que a narrativa – enquanto relato simbólico relativo a acções de seres humanos e dotado de temporalidade - é o modo mais distintivamente humano de compreensão, busca de acesso e integração na reali-dade (Bruner, 1990; Sarbin, 1986; Gonçalves, 2002) e o mais eficaz a dotar a expe-riência humana de significado. Como ilustração desta ideia, recorde-se que quando questionado sobre se os computadores poderiam um dia vir a ter uma inteligência equivalente à das pessoas, numa época em que os computadores eram recentes e a pergunta muito frequente, G. Bateson propôs que no dia em que fizéssemos uma pergunta a um computador e ele nos respondesse “Ah, que interessante, a sua questão faz-me lembrar uma história...” - bom, nesse dia saberíamos a resposta à pergunta sobre a equivalência das inteligências humana e artificial.

Neste texto, tomarei a “história do arrastão que nunca existiu” como um exemplo de uma narrativa que tendo sido, num belo dia de quase verão, proposta à vasta audiência de um país, foi aceite como verídica por muitos – mas não todos – aque-les que compunham essa audiência. Irei assim tentar interrogar as condições que dotaram esta narrativa de uma das características sem as quais estas não podem existir – a verosimilhança, que é a característica em função da qual são primei-ramente avaliadas e da qual depende a sua aceitabilidade (Bruner, 1987, 1991). Por outras palavras, irei, recorrendo ao caso concreto do “arrastão”, questionar o que leva a que certas narrativas sejam verosímeis e outras não, bem como propor alguns elementos de reflexão sobre os elementos que, enquanto ouvintes de nar-rativas, nos ajudam a fazer julgamentos quando tentamos separar o que é facto do que é ficção. O mesmo é dizer que procurarei questionar quais são os elementos em que nos baseamos para efectuar julgamentos de verosimilhança. No caso con-creto do Arrastão, isto significa perguntar quais eram, em suma, os componentes que tornaram esta peça de tórrida ficção em algo que alguns tomaram pela fresca realidade.

A primeira resposta e a mais óbvia a esta pergunta é que acreditámos nesta história porque... ela nos foi contada. Parece uma verdade de La Palisse, mas o certo é que esta primeira resposta alerta para uma das características mais centrais da comu-nicação e da linguagem – a primeira regra que organiza as relações que mantemos uns com os outros enquanto interlocutores é a da “suspensão da descrença”, ou

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“princípio de caridade” (ver Bruner, 1991, para mais detalhes sobre este princípio desenvolvido por Davidson, 1984). Em princípio, enquanto falantes competentes de uma cultura, quando alguém nos apresenta uma história como verdadeira, acredita-mos nela. Sem esta regra simples, a co-ordenação das actividades humanas indis-pensável à vida social tornar-se-ia muito mais difícil do que já é... È necessário que detectemos na narrativa a violação de certas regras de referencialidade e/ou de sentido, e/ou que esta seja acompanhada da violação de certas regras pragmáticas e/ou de relação, para que suspendamos totalmente este “princípio de caridade”. Deste modo, o primeiro poder da narrativa reside no simples facto de ser contada... dentro de uma cultura. Reconhecendo este poder, Bruner (1991) chega mesmo a propor que a cultura é justamente criada por um “acumular de narrativas” – as sociedades, os grupos, as famílias, criam corpus cumulativos de narrativas sobre as suas experiências, contactos e membros, as quais se articulam e acabam por coalescer numa tradição, ou cultura, e assim passam simultaneamente a fundar, constranger e regular o universo do que é verosímil.

Estas ideias apontam, então, para a necessidade de considerar os recursos culturais partilhados entre um narrador e uma audiência como um locus central para procurar as condições em que julgamos verosímil uma narrativa. Neste sentido, é também objectivo deste texto discutir alguns dos componentes e dos processos da narrativa do arrastão que possuem grande ressonância cultural e poderão ter fundado a vero-similhança deste relato.

Regressando, assim, ao Arrastão, é possível dizer que, em segundo lugar, acreditá-mos nesta história porque ela nos foi contada pelos meios de comunicação sociais... Outra verdade de La Palisse que encerra, novamente, características centrais da nossa sociedade. Enquanto sociedade transferimos para os meio de comunicação alguns dos princípios fundadores da possibilidade da comunicação interpessoal, como o já mencionado princípio da “suspensão de descrença”. Mas está claro que também dotamos estes meios de comunicação de uma série de mecanismos de regulação que vigiam a relação entre o que é dito e o que se passa na realidade. Porém, e como todos bem sabemos, esses mecanismos funcionam de uma forma que está longe da ideal. E neste sentido, será um terceiro objectivo deste texto apresentar uma breve formulação do que pode ser uma abordagem psico-social de algumas das razões pelas quais os meios de comunicação funcionam de uma forma que está longe do padrão de transparência comunicativa que idealmente os fundaria.

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NARRATIVAS E MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Tenho estado a defender que precisamos de um código comum para nos entender-mos quanto ao que na forma de contar as histórias, organizar os acontecimentos e as personagens etc., é ou não é verosímil. Por outras palavras, tenho sublinhado que contador e audiência precisam de partilhar premissas comuns. Para adoptar uma definição muito geral, chamemos a estas premissas comuns a cultura. Designemos como pensamento social a utilização destas premissas associadas a certos processos para efectuar julgamentos sobre a realidade. É com base nessas premissas e nestas formas comuns de as usar que efectuamos os nossos julgamentos do que é e não é credível ou verosímil nas narrativas que ouvimos. Em consequência da partilha deste código cultural comum, sem o qual não há a possibilidade de elaborar narrativas, outra das características centrais das narrativas é que elas evocam o reconhecimento e são nele baseadas (Jovchelovitch, 2002) – na narrativa re-conhecemos algo, isto é, voltamos a conhecer, ou ver, alguma coisa. Irei destacar três componentes do que voltamos então a re-conhecer.

Em primeiro lugar re-conhecemos certos formatos que dão uma estrutura à narra-tiva, contando algo numa forma progressiva, ou regressiva, por exemplo (Gergen & Gergen, 1984). Em segundo lugar, re-conhecemos conteúdos socialmente partilhados que definem certos objectos sociais, que podemos chamar de representações sociais (Moscovici, 1988) e que estão em relação directa com a longa história que as pala-vras de uma língua trazem consigo e que os membros de uma comunidade linguística reconhecem de forma automática.

Finalmente, re-conhecemos os processos que servem para ligar esses objectos sociais uns com os outros de determinadas formas, das quais umas são conside-radas verosímeis e outras não. Assim, por exemplo, a partir de um conjunto de representações partilhadas na nossa sociedade e com base em certas formas de imaginar que estas se relacionam entre si, é reconhecível e verosímil que os objec-tos sociais ”jovens”, “negros”, “praia”, “polícia”, componham uma narrativa que conte que um grupo de jovens negros organizou um “arrastão” na praia que acaba apesar de tudo bem, graças à intervenção da polícia. Estes elementos, ligados entre si desta forma, compõem uma narrativa re-conhecível, ou verosímil – porém, caso estes mesmos elementos fossem ligados entre si de outra maneira, poderiam já não compor uma narrativa com estas características.

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No entanto, e em segundo lugar, é igualmente relevante destacar que a narrati-va não serve apenas para re-conhecer, ela serve também para ligar elementos comuns com elementos fora de comum sem que esta ligação se traduza em perda de verosimilhança. Na realidade, e como defende Bruner (1991), para valer a pena ser contada, uma história tem que conter um elemento de “desvio ao cânone”. É aliás a esta característica das narrativas que os jornalistas se costumam referir como “a questão do “homem morde cão” – se este acontecimento dá uma história, já o acontecimento inverso não é digno de relato jornalístico. É, então, também o facto de o elemento fora do comum, inesperado, extraordinário, ser algo de ineren-te ao que consideramos uma narrativa e poder nela ter lugar, que ajuda a perceber porque é que as pessoas efectivamente acreditaram que estava a acontecer algo incomum e que constituía uma violação ao cânone da narrativa da “ida à praia nos feriados de Junho”, em si um clássico. Ou seja, ao fim e ao cabo, a resposta continua a ser que os processos de julgamento que resultam em aceitação de veracidade, são conduzidos por materiais e processos partilhados, ou seja, pelo meta-sistema cultural que organiza o pensamento social (Moscovici, 1976). E

Obviamente, todos nós numa sociedade, partilhamos muitos dos componentes deste meta-sistema social, e os jornalistas também. Daí que, embora na sua versão ideal os meios de comunicação de massas possam ser encarados como constituindo o veículo potencialmente mais poderosos para que uma sociedade tenha acesso à grande diversidade de identidades e de ideias que caracterizam as comunidades interpretativas (Habermas, 1998) que compõem a esfera pública actual, a versão real encontra-se algo afastada da versão ideal. Para Habermas a “esfera pública”, que compreende o conjunto de sub-sistemas da sociedade civil - partidos, associa-ções voluntárias e comunicação social - seria responsável por assegurar os princí-pios democráticos do livre acesso e da publicidade e introduzir inovação e hetero-geneidade no funcionamento social, detectando novos problemas e debatendo-os, garantindo a produção de transparência informativa e comunicativa (ver Carreira da Silva, 2002). Porém, na sua versão real, este papel ideal dos meios de comu-nicação é limitado por uma série importante de constrangimentos e limites. Estes limites incluem factores estruturais, económicos, sociológicos, entre outros, como é sabido e tem vindo a ser amplamente teorizado. Mas estes limites incluem também factores piso-sociais, que se relacionam com o facto de as notícias serem produtos culturais, elaborados a partir dos mesmos elementos partilhados do meta-sistema cultural e da pertença a uma comunidade linguística, e organizados e ordenados em função das regras também partilhadas de um pensamento social.

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Assim, uma abordagem psico-social da imprensa, de forma geral, e do arrastão na imprensa, de forma particular, tem que destacar que as noticias são elaboradas em função de formatos partilhados, de quadros e recursos interpretativos partilhados (Halbwachs, 1992) que reflectem as visões de mundo de uma sociedade, e são ver-tidas numa linguagem que carrega as marcas de uma longa história. E tem que des-tacar, da mesma forma, que os artigos são escritos por actores sociais cujos quadros interpretativos conduzem as suas opções relativamente aos temas a escolher, ao que mencionar e esquecer e à linguagem e categorias linguísticas a empregar. Por sua vez, num processo em constante retro alimentação, essas escolhas dos jornalistas, por vezes muito pouco reflectidas, constrangem e orientam as interpretações dos leitores, ainda que não as determinem simplisticamente, como é frequentemente destacado por alguns analistas (Dayan, 2001).

Para estar de acordo com o que ficou dito até agora, então, uma abordagem psico-sociológica dos meios de comunicação social terá por papel fazer uma reflexão sobre um conjunto de pontos dos quais se podem destacar - a análise dos princípios orga-nizadores das notícias, do ponto de vista da circulação, da re-produção e da transfor-mação das ideias; o exame relativo ao uso irreflectido dos recursos culturais e das opções de interpretação que estes abrem aos leitores, bem como aquelas que lhes fecham; sobre os significados múltiplos das categorias linguísticas usadas e sobre como as amplas margens de ambivalência e polissemia que as palavras apresentam podem ser manipuladas.

A este propósito, uma análise genérica da imprensa do ponto de vista da circulação das ideias, feita com os instrumentos analíticos da Teoria das Representações Sociais (Moscovici, 1988), poderia destacar três grandes princípios organizadores desta circulação. Não quero aqui afirmar que estes são os únicos princípios presentes na imprensa que permitem reflectir sobre a circulação das ideias, mas sim que estes parecem estar recorrentemente presentes, ainda que certamente a par de outros, e se afiguram por isso necessários para a análise.

O primeiro é um Princípio de continuidade, que diz respeito à gestão das relações entre o velho e o novo e consiste em ancorar a novidade em velhas categorias de comparação. Vimos, por exemplo, que quando emergiu a questão da SIDA as pri-meiras categorias de comparação que foram mobilizadas pela imprensa foram as antiquíssimas categorias do “castigo por comportamento sexual desviante” e “peste sexual” (Markova & Wilkes, 1987). Pudemos igualmente observar que no caso dos Organismos Geneticamente Modificados as categorias mobilizadas foram igualmente

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categorias muito antigas, como a da hibridação das plantas por enxertia (Castro & Gomes, 2005). Este processo de ancoragem do novo no velho assegura a continui-dade das reacções dos públicos aos acontecimentos que lhe vão sendo apresentados pelos meios de comunicação social. Do ponto de vista da linguagem usada, este “principio de continuidade” funciona recorrendo a um discurso flexível e que não supõe que audiência seja um grupo homogeneizado, nem pretende equalizar os comportamentos. Assim, este principio de continuidade aparece ligado à modalida-de comunicativa que a Teoria das Representações Sociais chama de Difusão, a qual admite a expressão de uma variedade de pontos de vista sobre os assuntos e mesmo a contradição. Porque as ideias variadas e contraditórias sobre os assuntos são apre-sentadas às audiências sem esforço de conciliação, de forma sobretudo expositiva, pode parecer que a imprensa as apresenta como tendo todas o mesmo valor e que a comunicação desta modalidade será tendencialmente neutra. No entanto, e é esta a questão aqui central, as categorias de ancoragem que são escolhidas para os vários argumentos que estão a ser apresentados serão obviamente diferentes, e algumas serão socialmente mais valorizadas e mais positivas do que outras, o que constitui um indicador para o facto de uma comunicação aparentemente neutra poder estar a veicular também avaliações que só se poderão ver com clareza total numa análise longitudinal (Castro & Gomes, 2005). Por sua vez, tudo isto implica que uma abor-dagem psico-social teria de ser capaz de desenvolver instrumentos para entender e analisar como se apresentam no tempo longo esses padrões de escolhas de catego-rias de ancoragem.

O segundo princípio que se pode destacar no funcionamento da imprensa é um Princípio de multiplicação, que diz respeito à gestão da adesão e da resistência às ideias em circulação e às controvérsias e debates que atravessam uma sociedade. Da interacção entre resistência e aceitação resulta a multiplicação dos sentidos. O exem-plo clássico a este respeito é o estudo de Moscovici (1976) sobre a penetração da psicanálise e das ideias psicanalíticas na sociedade francesa nos anos 50, que mostra a multiplicação dos sentidos desta durante o processo de entrada na sociedade.

Este principio de multiplicação é suscitado nos meios de comunicação sobretudo pelas peças jornalísticas – artigos de opinião, colunas, crónicas, mas também repor-tagens - que se posicionam com um formato do tipo “sim...mas” (Castro, 2006), isto é, aquelas que, face a uma questão controversa, ou um debate em curso, aceitam em parte e resistem em parte àquilo que é novo ou às propostas de mudança. São comunicações que se dirigem sobretudo à harmonização daquilo que um grupo (ou uma sociedade) pensa a um nível muito geral, e Vala (2000) defende que seria esta

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a modalidade de comunicação que, ao incorporar o novo, o redefiniria para o tornar mais consentâneo com os velhos conteúdos preexistentes. Também Bauer (1994) salienta que esta modalidade comunicativa – a Propagação - teria grandes respon-sabilidades na produção da diversidade dos objectos representacionais, pela recons-trução comunicativa que os diferentes grupos operam quando pegam nas ideias que circulam nas sociedades ou que nelas são introduzidas de novo, resistindo-lhes e sendo nesse processo por vezes capazes de lhes introduzir alterações.

Por fim, o Princípio de identidade, que respeita à gestão e apresentação das rela-ções entre Nós e os Outros. Inevitavelmente presente na comunicação social está a definição constante de quem somos Nós e quem são os Outros, e de como somos Nós e como são Eles, quais as fronteiras que se podem ultrapassar, as que são mais impermeáveis, quem cruzou de lá para cá, quem vive onde e veio de onde. Como destaca Billig (1995), uma imensa parte deste trabalho de produção de identidade é feita com palavras banais e prosaicas, que riscam incansavelmente fronteiras e sobretudo, não as deixam nunca cair em esquecimento – palavras e expressões cons-tantemente presentes na imprensa e quase invisíveis, como Nós, os Portugueses, no nosso país, aqui, de volta a casa, celebramos hoje, ou, também, recém-chegados, Eles, vieram, as suas tradições, de etnia tal, celebraram ontem. Mas há também outra parte deste trabalho identitário que é feita com recurso às formas linguísticas repetitivas e rígidas da modalidade comunicativa que Moscovici (1976) designou de Propaganda. De forma geral, é quando há um debate aberto que faz intervir posições muito divergentes que esta forma comunicativa é mais visível. Tem sido mostrado que ela aparece, assim, sobretudo em artigos de opinião escritos em nome individual (Castro, 2004) e nos fornece pistas claras para o que podemos esperar dos nossos interlocutores conforme o grupo a que pertencem face à controvérsia em questão. Assim, esta modalidade comunicativa parece ser mais informativa do que as outras sobre as comunidades a que se liga, mais invariável nas suas formas e mais insus-ceptível de ser apropriada por qualquer outro grupo que não aquele com o qual os conteúdos que desenvolve são identificados.

Em suma, se os formatos da difusão e da propagação são constantemente postos em circulação em discursos que podem ser apropriados localmente por grupos diferentes, respondendo aos imperativos do contexto, os discursos de tipo propagação seriam menos móveis e menos disponíveis para essa apropriação guiada pelo contexto – seria por isso mesmo, aliás, que eles são facilmente reconhecíveis como ligados a grupos específicos (Wagner, 1995).

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O ARRASTÃO E A HISTÓRIA DAS PALAVRAS

Em função do que ficou dito acima, parece não ser descabido defender que o episódio do “arrastão” aparece ligado ao Princípio de identidade.

E justamente em coerência com este principio da identidade, ele pode também aproxi-mar-se a um fenómeno pelo qual a psicologia social tem mostrado um interesse marca-do, ainda que algo intermitente – o fenómeno do “boato”. De acordo com o sumário de Guimelli (1999), o boato é bem sucedido quando e se o seu conteúdo – que tem que ser muito simples e de cariz negativo - estiver em consonância com os quadros culturais e os valores dos grupos em que circula e contribuir para o reforço dos laços de pertença destes, implicando os indivíduos destes e assim, obviamente, reforçando a sua identi-dade e a diferenciação entre um Nós e um Outros. Ora é justamente esta configuração que marca este episódio, como se pode ver pelo estudo de Alexandre e Waldzus (neste volume) – no qual se mostra que “os jovens Brancos da nossa amostra dizem estar bastante convencidos acerca da existência do arrastão, enquanto que os jovens Negros estão pouco convencidos”. É também graças a esta forte ligação a um Princípio de iden-tidade que este episódio convoca uma das dicotomias mais centrais na nossa cultura – a dicotomia individual/colectivo, sobre a qual irei agora demorar-me um pouco.

A DICOTOMIA INDIVIDUAL/COLECTIVO

Para melhor se entender o que se pretende significar com a dicotomia individual/colectivo, cujo uso genérico, primeiro, e na imprensa, depois, se irá problematizar nas páginas seguintes, leia-se a seguinte história, retirada de Watzlawick, Weakland & Fisch (s/d, p. 90-91): “Durante uma das muitas confusões ocorridas em Paris no século XIX, o

comandante de um destacamento do Exército recebeu ordens para resta-belecer a paz abrindo fogo contra la canaille (a canalha, o populacho). Ele ordenou aos soldados que tomassem posição, com as espingardas aponta-das para a turba, e em meio ao apreensivo silêncio que se fez, puxou da espada e bradou a plenos pulmões:

– Mesdames, messieurs, tenho ordens de disparar contra la canaille. Mas como vejo grande número de cidadãos honestos e respeitáveis diante de

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mim, peço-lhes que abram caminho, a fim de eu poder, sem risco para nenhum deles, carregar sobre la canaille.

O quarteirão esvaziou-se em poucos minutos.”

Como é claramente visível por esta história, a dicotomia individual/colectivo depende decisivamente de dois mecanismos “para desenhar paisagens sociais”: um mecanis-mo que agrupa pessoas dentro de uma mesma categoria, diferenciando claramente entre um Nós e um Eles (os Outros) – o mecanismo de “agrupar” (Apfelbaum & Lubek, 1979). E um outro mecanismo, complementar, que pode quer isolar os indiví-duos dentro dos grupos formados, quer apagar as fronteiras previamente desenhadas entre grupos em favor de outras mais inclusivas - o mecanismo de “desagrupar”.

Sem o recurso a ambos os mecanismos não é possível desenhar paisagens sociais nem produzir objectos sociais para as habitarem. Como estas actividades são indis-pensáveis às sociedades humanas, elas vêm há muito tempo produzindo um extenso vocabulário que se associa a cada um dos dois mecanismos mencionados.

Assim, se pensarmos um pouco sobre o pólo do Colectivo da dicotomia proposta, pólo este que se associa ao mecanismo de agrupar, rapidamente chegaremos à conclu-são de que há todo um património de termos que coalescem em torno dele. Deste património, a maioria dos elementos têm ao longo dos tempos, temos que admiti-lo vindo a acumular o que se poderia chamar de “má imprensa”, num jogo de palavras com a expressão inglesa. Dito de outro modo - são termos que carregam um sig-nificado sobretudo negativo: turba, gangue, bando, populaça, populacho, massas, horda, multidão, são exemplos. Ao longo da história, já longa, da sua utilização estes termos vêm sido usados preferencialmente, ou frequentemente, para denotar a acção irreflectida, a irracionalidade, a confusão, a imprevisibilidade – sobretudo se utilizados em oposição a termos que se situam no outro pólo da dicotomia individual/colectivo. Neste outro pólo, o do indivíduo, está situado antes um campo semântico que evoca a ordem, a acção reflectida, a previsibilidade, a racionalidade. Portanto neste pólo do indivíduo é mais fácil evocar a confiança, e no pólo do colectivo, do bando, da turba, é mais fácil evocar o medo...

Estas utilizações e a forma como elas têm vindo a construir e a solidificar ao longo dos tempos dois campos semânticos opostos e diferenciados não são só da respon-sabilidade do falante comum da língua. Muito pelo contrário, há todo um património de reflexão sobre as “Massas” e o “Comportamento das multidões” que é da respon-sabilidade de peritos, pois esta questão sempre fascinou os pensadores. O século XIX,

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precisamente aquele século em que se situa a história do capitão que não quer dis-parar sobre cidadãos honestos e respeitáveis, foi um século intensamente fascinado por ela, talvez porque assistiu a muitas multidões em movimentações imprevisíveis e talvez por que durante ele se prepararam outras tantas. Gustave Le Bon (1895), por exemplo, falava nessa altura de contágio mental para explicar a difusão da ‘ano-mia’ em multidões e turbas, e nas ‘massas’. Aproximadamente na mesma época G. Tarde (1890) referia-se à responsabilidade diminuída ou difundida que caracterizava também as multidões e Sigmund Freud (1921) afirmava que, na multidão, os indi-víduos “entregam” o seu Super Ego ao líder, na mesma obra em que caracteriza o comportamento dos indivíduos no grupo como mostrando um “enfraquecimento das capacidades intelectuais, uma falta de contenção emocional, uma incapacidade de moderação e de adiamento e a inclinação para exceder todos os limites na expressão das emoções”. Ou seja, o consenso entre todos os que procuraram pensar sobre o pólo do colectivo é que na multidão o indivíduo se torna menos responsável, mais infantil, mais “primitivo”…

A esta altura, torna-se porém, importante também matizar – para assim completar – o quadro que está a ser descrito. É certo que estes termos que remetem para o colec-tivo evocam a irracionalidade, mais do que a racionalidade, o medo, mais do que a confiança. Mas não pode ser esquecido que o colectivo evoca também fortemente a mudança social – e as multidões do Maio de ’68 costumam ser a este respeito o exemplo mais referido. E seria também por certo por não ignorar este potencial que o Estado Novo proibia os ajuntamentos… Ou seja, enquanto objecto social, o Colectivo é, como todos, construído com margens de ambiguidade e contradição.

Pensemos, porém, para voltar de novo mais directamente ao tema que aqui nos ocupa, no caso em que o Colectivo é apresentado como sendo composto por “Outros” – bom, neste caso torna-se então particularmente claro que é mais a negatividade que a mudança social o que é evocado quando se fala em multidão, gangue… ou arrastão. No que diz respeito ao “arrastão”, então, é certo que a terminologia dos telejornais foi sempre muito cuidadosa a evitar dizer que ela poderia ser composta por “Outros” marcados por alguma cor de pele específica. Esta observação é feita por vários comentadores. Para recordar como foi, deixo aqui apenas um deles, num post de José António Baço: “É certo que nunca se falou em “negros” (a praia fica perto de zonas habitadas por africanos e descendentes), mas sempre que se falava em “rou-bos” a foto que aparecia era a de um grupo de jovens negros a correr. Uma imagem poderosa, mas instrumentalizada de forma preconceituosa pelos editores (os jovens estavam a fugir da confusão, com a chegada da polícia).”

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Desta forma, a questão que podemos pôr de um ponto de vista psico-social é a seguinte: porque motivo a negatividade se acentua quando a multidão é composta por “Outros”? A este respeito a pesquisa em psicologia social tem mostrado com grande clareza que os Outros são aqueles a quem se atribui uma essência que os define como radicalmente diferentes e inferiores (Vala, 1999, 2002). Essa inferioriza-ção pode espelhar-se na atribuição de uma menor capacidade de exprimir sentimen-tos complexos e matizados, como a saudade e a amizade (Leyens et al, 2000, 2003), como também numa maior aproximação à “natureza” e um maior afastamento da “cultura” (Moscovici & Pérez, 1999. Deschamps et al, 2005).

E a cultura, o que é? Já aqui propus, seguindo Bruner (1991) que a cultura é um conjunto de narrativas que colaesceram numa tradição articulada. Já aqui defendi seguindo Bateson, Bruner e muitos outros, que a narrativa é o modo distintivamente humano de dar sentido á realidade. Assim, não será estranho se agora defender que a cultura é o que nos torna integralmente pessoas. Sem ela, quando ela nos é reti-rada das descrições e nos descrevem como “mais naturais”, mais “primitivos”, somos então menos pessoas, menos humanos.

E assim somos conduzidos ao paradoxo central desta dicotomia individual/colectivo, que é o seguinte - ainda que seja o indivíduo o locus da racionalidade, o indivíduo só é plenamente pessoa quando é também um ser mais que biológico, isto é, quando é um ser também (acima de tudo) social (“cidadãos respeitáveis”), logo, um ser cul-tural. E como a cultura é aquilo que é da ordem do construído entre nós, humanos, e se pode por isso mudar, e não da ordem do que é inevitável, ou do natural, ou do incontornável e imutável, aqueles a quem é atribuída uma “essência” imutável, pas-sam no mesmo passo a estar presos num Ser estático, e já não podem ser um Ser em devir, cuja essência é precisamente mudar. Tornam-se assim menos humanos.

Resumindo, portanto: quando agrupamos, ou seja, quando recorremos ao mecanis-mo de agrupar para construir paisagens sociais, podemos obter/esperar/evocar a irracionalidade e imprevisibilidade associada à multidão – e se propomos que esta multidão é constituída de Outros, mais estas características se acentuam.

No entanto, como tudo o que é humano, este mecanismo de agrupar/desagrupar é complexo e tem mais do que uma face. Por outras palavras, há exemplos que mos-tram que também o recurso ao mecanismo de “desagrupar” pode resultar na cons-trução de imagens de seres “menos que humanos”. Vou dar um exemplo recolhido igualmente na imprensa portuguesa, que diz respeito a uma análise comparativa da

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forma como esta organiza e apresenta os acidentes de trabalho com operários e com polícias. O estudo incidiu sobre os jornais O Público e O Correio da Manhã , e nas notí-cias publicadas entre Fevereiro 2004 a Fevereiro de 2005. Ao todo recolhemos 278 notícias sobre acidentes de trabalho com polícias, e 179 de acidentes com operários. Estas notícias são extremamente diferentes (ver Castro, Correia & Lima, 2005, 2006). As noticias referentes aos operários põem em cena um actor “sócio-demografico” com idade e sexo e por vezes com família mas sempre sem amigos ou colegas, sem espectadores, chefias, sem organização de pertença. O acidente “acontece-lhes”, frequentemente mata-os, mas não há nenhuma menção a ter suscitado problemati-zação do que poderia estar a correr mal, ou mudança na direcção preventiva – nas noticias não há menção a alguém ter protestado, os colegas não são entrevistados, as chefias também não, ninguém jura aprender com o passado.

Já as notícias sobre os acidentes com polícias põem em cena um actor social: a família sofre e tem rosto, vizinhos mostram solidariedade, os colegas são entrevistados e pro-testam, as chefias pronunciam-se, a organização jura que vai aprender com o incidente, há notícia de inquéritos abertos e reflexão sobre o que modificar para prevenir.

Para acrescentar outro exemplo neste sentido, podemos dizer que, como foi já apon-tado pelo Editorial do Boletim Informativo do ACIME, de Abril, se encontra algo de semelhante quando se compara o tratamento dado nas notícias aos imigrantes portu-gueses expulsos do Canadá com o conferido aos imigrantes estrangeiros expulsos de Portugal. Para os primeiros, o “ângulo humano” , para os segundos uma nota socio-demográfica. Ou seja, para os primeiros, um lugar de seres sociais, para os segundos, um retrato de seres sem laços.

Pensando nestes exemplos, não é possível afirmar que só por si os mecanismos de agrupar e desagrupar sejam inerentemente positivos ou negativos nas consequências que evocam quando propostos na imprensa. Isto porque por vezes agrupar resulta em estar-se a propor ao leitor seres sociais – caso dos polícias, mostrados com laços sociais e grupo de pertença. Outras vezes, porém, o mesmo mecanismo de agrupar propõe seres associais – caso dos “jovens do arrastão”, agregados num bando, turba, ou multidão e nesse passo tornados “mais primitivos”. Também da mesma forma, desagrupar pode resultar em estar-se a apresentar ao leitor seres socio-demográfi-cos, sem pertenças sociais e sem laços, como é o caso das notícias sobre operários acidentados no trabalho. Ou, ao invés, desagrupar pode estar a propor-nos “os cida-dãos responsáveis” que não fazem parte da turba.

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Ou seja, parece haver duas formas de des-humanizar quando pensamos na dicotomia individual-colectivo e nos mecanismos de agrupar/desagrupar que a constroem. Uma é pôr o indivíduo em multidão – agrupar (la canaille). A outra é pôr o indivíduo em isolamento dos laços sociais – desagrupar. Geralmente estas opções são reservadas aos “Outros”, aqueles que não são “Nós”. Isto mostra, por sua vez, que quando recorremos à dicotomia individual-colectivo dentro de um princípio de identidade, ela é sempre cruzada com uma outra dicotomia central que tenho estado a utilizar sem nomear, a dicotomia Nós – Outros. E só procurando entender o cruzamento entre estas duas dicotomias, é possível encontrar uma melhor ideia do que está em jogo. E o que está em jogo é que só é totalmente humano o indíviduo-social – isto é, aquele que é apresentado desagrupado mas com laços, ou seja, desagrupado mas com grupo (cidadãos respeitáveis). Deste indivíduo-social, podemos esperar quer a mudança social, quer a racionalidade, quer a relação com os outros, e portanto, a cultura. Ou seja, e em suma, só o paradoxo é humano.

EM CONCLUSÃO

Depois deste conjunto de contradições e paradoxos que tenho estado a propor, per-mitam-me terminar com um último paradoxo, este para a imprensa, e em jeito de provocação:

Pergunta: “What is the difference between fiction and reality?Resposta: “Fiction has to make sense... “

O não dito desta história implica, como o leitor deduziu, que a realidade, ao contrário da ficção, nem sempre faz sentido... Ou melhor, nem sempre faz sentido face e em função dos quadros culturais com que olhamos para ela e a narramos uns aos outros. Na imprensa, esta característica pode ser perversa, pois fazer sentido – ser verosímil – depende de recorrer a quadros ou recursos culturais partilhados com os leitores. Mas, e justamente por isso, fazer sentido pode fácil, rápida e irreflectidamente levar pelo caminho da ficção... como foi o caso do “arrastão que nunca existiu”.

PAULA CASTROProfessora Associada do ISCTE, Departamento de Psicologia Social e das Organizações, e Investigadora do Centro de Investigação e Intervenção Social.

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7. QUANDO O QUE VEMOS NÃO É IGUAL AO QUE PERCEBEMOS – IMPLICAÇÕES PARA AS RELAÇÕES ENTRE GRUPOS SOCIAIS

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INTRODUÇÃO

No dia 10 de Junho de 2005, por todo o mundo, os noticiários avançavam a notícia de um “arrastão” na praia de Carcavelos, dando conta de que o mesmo tinha sido levado a cabo por 500 jovens («rapazes e raparigas organizados em vários gru-pos...»1), sendo estas declarações acompanhadas por imagens de jovens Negros.

O tratamento mediático a que assistimos em torno deste episódio teve uma série de implicações sociais, nomeadamente nas relações entre Brancos e Negros e na percepção de ameaça em termos de segurança pública, o que fez emergir um conjunto de questões e de reflexões nos mais diversos campos do conhecimento, não apenas no campo da Comunicação Social, mas também no campo das Ciências Sociais.

Em nosso entender, a análise deste acontecimento tornou-se ainda mais pertinente quando percebemos que, alguns meses após este episódio, não existia ainda qual-quer consenso acerca da sua ocorrência ou não ocorrência. Aliás, quase um ano após o arrastão continua a ser frequente ouvirmos comentários do tipo “se mostra-ram as imagens é porque de facto o arrastão existiu”. Ora, esta questão merece-nos uma análise mais aprofundada, se pensarmos que, à partida, todas as pessoas tiveram acesso ao mesmo tipo de informação que dias mais tarde foi fornecida pelos media, e que dava conta de que o arrastão não tinha existido.

1 Ver Jornal “Correio da Manhã” de 11 de Junho de 2005.

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PERCEPÇÕES SOBRE A OCORRÊNCIA DO ARRASTÃO– UMA ANÁLISE MAIS ALARGADA

O nosso objectivo consistiu, então, em averiguar que leituras foram feitas sobre o arrastão por membros de diferentes grupos ou categorias sociais, mais particu-larmente por Brancos e Negros, uma vez que a possibilidade de grupos diferentes terem percepções diferentes sobre um mesmo acontecimento está, muitas vezes, na base de relações intergrupais mais hostis. Para tal, em Outubro de 2005, ou seja, quatro meses após a sua “ocorrência”, realizámos um estudo com 259 estudantes do ensino superior, dos quais 95 eram jovens Negros e 164 jovens Brancos, de ambos os sexos. Verificámos então que, em média, os jovens Brancos da nossa amostra dizem estar bastante convencidos acerca da existência do arrastão, enquanto que os jovens Negros estão pouco convencidos acerca da sua ocorrência (figura 1).

Figura 1: Percepção de Brancos e Negros sobre a existência do arrastão (médias) (1-“nada convencido” a 5-“totalmente convencido”)

Que reflexões podemos fazer com base nestes resultados e do ponto de vista da Psicologia Social? No âmbito desta disciplina científica, um dos conceitos centrais na análise das relações intergrupais tem sido o conceito de identidade social. A iden-tidade social, que se distingue do conceito de identidade pessoal, deriva, segundo algumas abordagens, do conhecimento (subjectivo) que o indivíduo detém sobre as categorias ou grupos sociais aos quais sente que pertence, bem como do valor e significado emocional que atribui a essa pertença (Tajfel, 1982). Este sentimento de pertença a um dado grupo, faz aumentar a percepção de diferença entre “Nós” e “Eles” ou “Nós” e os “Outros”, o que, consequentemente, molda o modo como pen-

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samos, como sentimos e como (re)agimos face a membros de diferentes grupos. Ora, os resultados aqui descritos permitem evidenciar que nesta situação concreta, as identidades Branca e Negra foram activadas (isto é, tornaram-se mais salientes), o que permite ilustrar o papel da identidade social enquanto vector orientador das avaliações e percepções sobre o arrastão. Em nosso entender, esta pode ser uma leitura possível para o facto de verificarmos empiricamente que, passados quatro meses após a ocorrência do arrastão, não existia, de facto, consenso sobre a sua não ocorrência.

Averiguada a questão central do estudo, e para não tornar simplista a análise em torno destes resultados, pareceu-nos relevante analisar o papel de alguns proces-sos psicológicos que habitualmente influenciam o modo como o que vemos nem sempre é igual ao que percebemos na realidade. Deste modo, verificámos que, e particularmente para os participantes Brancos, quanto mais negativas são as suas atitudes em relação aos Negros e quanto mais se identificam com o seu grupo de pertença, mais convencidos estão sobre a existência deste episódio.

A análise destes resultados não é apenas interessante do ponto de vista teórico, mas é-o também, e muito particularmente, do ponto de vista prático, da análise das relações intergrupais existentes entre grupos reais da sociedade, dadas as implica-ções políticas que lhe estão subjacentes.

Na sequência do arrastão, um outro conjunto de acontecimentos semelhantes foi igualmente noticiado dias depois. Falamos das imagens dos comboios da Linha de Sintra. O tratamento mediático destes acontecimentos veio contribuir largamente para a percepção de insegurança pública que se fez sentir após o arrastão, o que consequentemente, e tal como já tinha acontecido para as praias de Cascais, con-duziu a um reforço policial em algumas estações de comboios.

Decorrente destes acontecimentos, fomos averiguar como é que os participantes reagiriam face a um eventual reforço da polícia em bairros de maioria Negra. Mais particularmente, até que ponto os mesmos considerariam este cenário como legí-timo (ou justo), e qual o impacto destas medidas para cada um dos grupos sociais aqui em questão. Verificámos, então, que em comparação com os Brancos, os Negros consideram menos legítimas ou justas este tipo de medidas (figura 2).

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Figura 2: Percepção de legitimidade sobre um eventual reforço das medidas policiais (médias) (1-“nada legítimo” a 7-“totalmente legítimo”)

Por seu lado, e particularmente para os participantes Brancos, quanto mais convenci-dos estão sobre a existência do arrastão, mais legítimo consideram ser este possível reforço das medidas policiais em bairros de maioria Negra.

Este cenário parece gerar também reacções emocionais diferentes, consoante a per-tença dos indivíduos: tal como se pode verificar na figura 3, em comparação com os Brancos, os Negros reagem mais negativamente a este tipo de medidas (pre-ocupação, vergonha e irritação). Estes resultados sugerem que estas medidas são percebidas como sendo dirigidas para qualquer membro da categoria Negro, o que se revela uma ameaça à sua identidade social, traduzindo simultaneamente a ideia de que existem, de facto, julgamentos estereotípicos sobre os membros deste grupo, nomeadamente a ideia de que o crime tem cor.

Figura 3: Reacção emocional de Brancos e Negros face à possibilidade de reforço policial (médias) – emoções negativas

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Por seu lado, os Brancos parecem reagir mais positivamente face à mesma possibi-lidade (“ficar mais descansado” ou “ficar mais contente”, por exemplo), o que pode sugerir que um possível reforço das medidas policiais contribui para aumentar a percepção de segurança dos membros da maioria (figura 4).

Figura 4: Reacção emocional de Brancos e Negros face à possibilidade de reforço policial (médias)– emoções positiva

O chamado arrastão fez surgir também uma outra questão – quem são, de facto os delinquentes existentes em Portugal? Sobre esta matéria, não é raro ouvirmos que, em comparação com indivíduos Brancos, os Negros são mais típicos do grupo mais global de delinquentes existentes em Portugal. No entanto, poderemos pensar que esta percepção de prototipicalidade2 para o grupo de delinquentes pode não ser consensual para os grupos aqui referidos. Por outro lado, as percepções de prototi-picalidade, que têm subjacentes expectativas habitualmente estereotípicas, podem influenciar o modo como os indivíduos interpretam a realidade circundante e, neste sentido, poderemos supor que elas irão influenciar a interpretação feita em torno das diferentes percepções sobre a existência do arrastão.

Neste estudo fomos averiguar também esta questão; para tal pedimos aos partici-pantes para nos dizerem até que ponto consideravam cada um dos grupos (Brancos e Negros) prototípico (típico ou representativo) da categoria dos delinquentes existen-tes em Portugal. Verificámos, assim, que os Brancos se consideram menos prototípi-cos do grupo de delinquentes, percebendo, comparativamente, os Negros como mais representativos dessa categoria. Por seu lado, os participantes Negros consideram que ambos os grupos são igualmente prototípicos para essa categoria.

2 Isto é, ser típico ou representativo de um dado grupo ou categoria social (ver Mummendey e Wenzel, 1999).

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Ora, tal como referimos anteriormente, esta diferença em termos de percepção de prototipicalidade tem subjacente um conjunto de avaliações ou julgamentos este-reotipados sobre membros de outros grupos. São estas avaliações ou julgamentos que, por sua vez, vão influenciar fortemente as leituras que Brancos e Negros fazem sobre o arrastão. Ou seja, não podemos dizer que todos os participantes Brancos desta amostra acreditam que o arrastão existiu e que todos os participantes Negros estão pouco convencidos acerca da sua ocorrência. Dentro de cada grupo as percep-ções variam, no entanto, as mesmas variam dependendo do peso que os indivíduos atribuem a estas expectativas, ou aos estereótipos que têm sobre o outro grupo. Por exemplo, para os participantes Brancos, quanto menos típicos se consideram do grupo de delinquentes existente em Portugal, mais convencidos estão sobre a exis-tência do arrastão. Estes resultados levam-nos a concluir que muitas vezes as pessoas vêem, de facto, aquilo em que acreditam.

Para além da prototipicalidade, um outro aspecto mereceu-nos particular atenção por considerármos que poderia contribuir para a discussão sobre os resultados encontrados. Falamos das explicações encontradas, por Brancos e Negros, para este acontecimento, o que habitualmente se designa por processo de atribuição causal. Para medir este aspecto, foi dito aos participantes que depois do arrastão tinham sido ouvidos vários comentários ou várias explicações para a ocorrência deste fenómeno; a sua tarefa era dizerem até que ponto concordavam ou discordavam com esses comentários, os que, por sua vez, traduziam diferentes atribuições causais. Neste sentido, importa referir que se pode fazer uma distinção entre o que se designa por atribuições internas, ou seja, quando uma dada causa está ligada ao(s) actor(es) desse acontecimento (por exemplo, “Acho que os Afro-Portugueses têm determina-das características individuais que os levam a ter comportamentos delinquentes”), e atribuições externas, quando a origem de uma dada causa é externa ao(s) actor(es) (por exemplo, “Acho que este tipo de acontecimentos se deve à falta de controlo por parte da polícia”). As causas podem ser também consideradas como estáveis ao longo do tempo, isto é, constatar-se, por exemplo, que se trata de um comporta-mento que o actor manifesta regularmente ou habitualmente, ou as causas podem ser consideradas como instáveis, quando, por exemplo, um dado comportamento é pontual ou acidental (ex., “Às vezes os Afro-Portugueses envolvem-se em problemas porque estão «no sítio errado à hora errada»”).

Em termos de resultados, verificámos uma diferença no tipo de atribuições que Brancos e Negros fizeram para este episódio: assim, enquanto que os Brancos identi-ficam particularmente causas internas, os Negros identificam causas instáveis.

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De acordo com a Teoria da Identidade Social (Tajfel e Turner, 1986), frequentemente os grupos estão motivados para alcançar uma posição social positiva, o que está muitas vezes associado a uma identidade social positiva e a uma auto-estima (colectiva) mais positiva também. Para o conseguir, os indivíduos comparam-se com outros grupos ou categorias sociais e procuram favorecer o grupo de pertença (ou endogrupo), em detrimento de outros grupos sociais aos quais não pertencem (ou exogrupos). No campo das atribuições causais, este processo ocorre quando verificamos que para um acontecimento negativo levado a cabo por membros dum exogrupo, se procuram causas internas, enquanto que para acontecimentos positi-vos se enfatizam causas externas. Por sua vez, quando os actores envolvidos num dado acontecimento são membros do endogrupo, o tipo de atribuições é precisa-mente o inverso (ver Pettigrew, 1979).

Ora, as explicações apontadas pelos participantes Brancos reflectem, assim, este padrão. A única diferença que poderemos apontar reside no facto de para um acon-tecimento negativo que envolve membros do endogrupo, os participantes Negros enfatizam sobretudo causas instáveis, e não necessariamente causas externas. Poderemos especular que dada a mediatização em torno do arrastão, a questão central para os participantes Negros não era de todo responsabilizar outras pessoas por este episódio (o que habitualmente está subjacente a uma atribuição externa), mas antes procurar deslocar a atenção da audiência dos membros do endogrupo para aspectos como estar perante um episódio raro no qual, por azar, estavam presentes membros do endogrupo.

CONCLUSÕES

Com este estudo pretendemos abrir a dicussão e a reflexão em torno do chamado arrastão. Apesar da nossa amostra não ser representativa, consideramos que este estudo é por si só elucidativo ao mostrar que, para um episódio que afinal acabou por não existir, as percepções de membros de diferentes grupos são diferentes e dependem não apenas da identidade ou pertença social dos indivíduos, mas são também largamente influenciadas pelas expectativas ou avaliações estereotipadas que temos sobre membros de outros grupos. Não podemos esquecer que é impor-tante, senão fundamental para qualquer ser humano, dar sentido ao mundo que o rodeia, o que implica perceber quem somos e quem são os outros. Este processo

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é, porém, habitualmente contaminado por julgamentos estereotipados, mas que «existem nas nossas cabeças» (ver Marques e Paéz, 2000, p.386), os quais nos fazem pensar, interpretar e agir de determinadas formas e não de outras. É neste sentido que nos parece ser necessário realizar um trabalho continuado em torno das expectativas ou das percepções mais ou menos estereotipadas que em geral membros de uns grupos possuem sobre membros de outros grupos ou categorias sociais às quais não pertencem.

Dada a pluralidade da nossa sociedade, e uma vez que as nossas identidades influenciam (inevitavelmente) o modo como percebemos a realidade, para prevenir a ocorrência de outros episódios semelhantes, em nosso entender, é necessária a criação de diversidade em diferentes contextos, nomeadamente nos media e em posições de poder. Se em Portugal existisse um maior número de jornalistas Negros, provavelmente poderia ter havido mais sensibilidade e mais cuidado na análise desta questão e a informação poderia ter sido tratada de uma forma menos estereotipada. A criação de diversidade poderá ser, e contrariamente a algumas opiniões, facilitado-ra da emergência de condições que favoreçam um melhor relacionamento entre os grupos que (con)vivem na nossa sociedade.

Por último, não é nosso objectivo enfatizar que estas questões devem ser discutidas unicamente quando analisamos a relação entre Brancos e Negros. Esta discussão é relevante na análise de relações entre uma maioria dominante e outros grupos que sejam, por algum outro motivo, estigmatizados na nossa sociedade.

JOANA ALEXANDRE E SVEN WALDZUS

Docentes do Departamento de Psicologia Social e das Organizações (DEPSO) do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) e investi-gadores do Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS/ISCTE).

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