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  • DE GUAYKURU A KADIWU: alteridade e identidade

    VALERIA NOGUEIRA RODRIGUES*

    I Introduo

    O territrio chaquenho, na margem ocidental do Rio Paraguai, encontrava-se habitado por

    diferentes grupos indgenas, de variadas culturas e troncos lingusticos, que faziam guerras

    intertribais e, ainda, relacionavam-se amistosamente, de acordo com os interesses e

    possibilidades de cada grupo. A intruso dos espanhis, sobretudo nos sculos XVI e XVII,

    compeliu uma reordenao do espao ocupado pelos ndios, obrigando muitos a tomarem novas

    rotas migratrias. Dentre estes destacamos os Guaykuru. Estes ndios, embora apresentassem

    semelhanas culturais, sobretudo lingsticas, viviam distribudos em subgrupos, que, por sua

    vez, conservavam relaes distintas com ndios de outras etnias. Em geral, os

    Guaykurumantinham relaes conflituosas com esses outros grupos e, posteriormente, tambm

    com os castelhanos.

    Alguns destes grupos Guaykuru, forados por intensos embates, atravessaram, a partir da

    segunda metade do sculo XVII, para a margem oriental do Rio Paraguai, onde se instalaram. A

    partir da continuaram seus ataques, agora munidos de cavalos adquiridos dos espanhis. No

    sculo XVIII estabeleceram, ainda, contato com os luso-paulistas, com quem, analogamente,

    mantiveram desavenas. A guerra apresentava-se como elemento fundamental para manuteno

    da cultura Guaykuru.

    No entanto, a invaso cada vez mais constante do Extremo Oeste do Brasil, onde hoje

    constitui-se os estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondnia, assim como a criao

    de uma legislao que visava beneficiar os interesses polticos e econmicos de grupos no-

    indgenas, provocou uma verdadeira dizimao dos grupos indgenas. Os sobreviventes sofreram

    transformaes profundas na sua cultura, mas, embora representados como categorias

    homogneas, continuaram reivindicando um espao atravs de sua identidade indgena.

    * Mestrepelo Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal de Mato Grosso UFMT. [email protected]

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    No sculo XIX, dentre os Guaykuru, os Kadiwu eram praticamente o ltimo grupo ainda

    vivo. Ao longo do sculo XIX estes ndios reivindicaram direitos polticos, inclusive de

    reconhecimento da posse de suas terras, atravs da identidade Guaykuru-Kadiwu. Nesse perodo

    o Brasil buscava definir-se frente a outras naes, forjando uma identidade nacional. Essa poltica

    buscou homogeneizar as categorias indgenas como brasileiros, ignorando suas singularidades

    culturais.

    Pretendemos compreender a partir dessa relao de contato entre os ndios do tronco

    lingustico Guaykuru, em especial os Kadiwu, de que maneira essa cultura singular negociou,

    atravs do jogo poltico das identidades, um espao possvel para a diferena. Acreditamos que

    embora a identidade seja crucial enquanto representao poltica atravs do conceito de

    alteridade que entenderemos mais profundamente o processo histrico de transformao cultural

    desse grupo.

    II Os Mbay-Guaykuru

    Com o nome de Guaykuru era reconhecida uma extensa famlia lingstica da qual

    pertenciam inmeros grupos, que embora guardassem semelhanas, tais como a lngua e a cultura

    de caadores-guerreiros, tambm tinham suas singularidades. Tais etnias eram

    todas racialmente pmpidas y culturalmente paleolticas, conelabiertoethos de

    cazadoresagresivos, ocupando con preferencia lasllanurasdelChaco o adueandosedel

    R. Paraguay: Eyiguayegis-Mbayes, Tobas, Abipones, Mocoves,Pilags, Payagus y

    Guasarapos (SUSNIK, 1978:72).

    O designativo Guaykuru estava mais relacionado ao comportamento agressivo dos ndios

    que uma unidade tnica. Por outro lado, inmeras caractersticas comuns podem ser observadas e

    ponderadas. Ainda assim, tal diviso no possibilita ao grupo uma identidade homognea, a no

    ser no campo discursivo.

    De acordo com Susnik havia uma

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    similituddel nvel cultural, una ideologa provocativa, una parecida estructura de

    normas sociomorales a travs del extenso mundo de lametamorfsisdelhombre-animal;

    elcontacto colonial y por ende, lanueva cultura ecuestre

    provocaroninteresantesmanifestaciones adaptativas (SUSNIK, 1971:18).

    Os ndios Guarani, em perodo anterior invaso espanhola, designavam como Guaykuru

    ndios com comportamento de caadores guerreiros. Assim, tal expresso difundiu-se entre os

    espanhis e passou a ser usado de forma genrica.

    Quanto aos Mbay alguns autores afirmam que pertenciam a uma etnia distinta dos

    Guaykuru. Susnik( 1971:23), no entanto, afirma serem estes ndios de uma mesma famlia, tendo

    tomado rumos migratrios diferentes, e, por essa razo, desenvolvido caractersticas diferentes.

    Os Mbay representariam a parcialidade habitante das paragens mais ao norte, enquanto os

    Guaykuru residiriam mais ao sul, nas proximidades de Assuno. Seguindo essa perspectiva,

    estes ndios podiam ainda ser representados de acordo com o lugar, ou a regio em que viviam,

    assim, pode-se destacar dois grupos, que reforam essa distino geogrfica e cultural entre os

    Guaykuru: os Taquiyiquis e os Eyiguayegis.Tanto um quanto outro grupo apresentava

    caractersticas de caadores guerreiros. Falavam lnguas semelhantes e apresentavam uma mesma

    estrutura poltica. Teriam os Guaykuru habitantes na regio sul, nas proximidades de Assuno,

    sofrido um processo de dizimao. Os sobreviventes teriam sido rapidamente absorvidos pelos

    Mbay, habitantes das paragens nortenhas.

    De forma geral, os Guaykuru apresentavam algumas caractersticas comuns, que se

    mantiveram mais ou menos estveis na maior parte do perodo tratado neste trabalho. Eis

    algumas a guerra como elemento cultural; os abortos; o desempenho com o cavalo; a relao de

    superioridade assumida em relao a indgenas e no-indgenas; a diviso em grupos cacicais.

    Enfim, havia semelhanas na maneira de organizao poltica dos vrios grupos que compunham

    os Guaykuru.

    Em perodo prehispnico inmeros grupos indgenas, como os Guaikuru, Yapir, Naper,

    Guatatas, Agaces dentre outros, devido s disputas pelos recursos naturais chaquenhos,

    relacionavam-se com mtua vigilncia. A escassez de recursos levava a uma luta competitiva e

    obrigava a busca de novos territrios explorveis. Tais disputas por novos campos de caa

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    provocavam desavenas intertribais obrigando-os a alianas perifricas. Aqueles que se

    sobrepunham tinham direito de explorar com exclusividade uma determinada regio. (SUSNIK,

    1971:12-16)

    Assim, os Guaykuru mantinham contatos violentos com outros ndios, com quem

    disputavam campos de caa, palmares e cativos. As constantes disputas obrigavam a migraes.

    Foi por essa razo que os Mbay tomaram rumo diferente que seus parentes Guaykuru. Estes j

    se apresentavam, assim, como caadores guerreiros quando os espanhis passaram a tomar posse

    da regio. medida que se espalhavam as estncias criollas, os ncleos populacionais e urbanos,

    a exemplo de Assuno, os Guaykurupraticavam assaltos para obter objetos de troca com outros

    grupos.

    Aps o contato com os castelhanos adquiriam cada vez mais facilmente ferro e objetos j

    manufaturados como machados, machetes e facas. O cavalo, vencido o medo inicial, foi

    apropriado pelos Mbay-Guaykuru a partir de 1670 a ponto de, por muito tempo,serem

    identificados como Cavaleiros. O corcel reorientou a cultura Guaykuru de tal forma que os

    possibilitou uma mobilidade vasta, do Chaco ao Pantanal. Utilizavam a montaria como estratgia

    de guerra para atacar outros ndios.

    Assim, com a aquisio de cavalos, os Guaykuru expandiram consideravelmente seus

    domnios. Passaram a criar gado vacum e aumentaram seus rebanhos. Assaltavam com

    frequncia os ncleos populacionais espanhis, sobretudo as estncias e trocavam o butim nas

    cidades, principalmente em Assuno. Estas circunstncias deixavam os castelhanos muito

    vulnerveis e estes temiam os peligroGuaicur (Cf. SUSNIK, 1971).

    As inmeras represlias pouco efeito surtiam, pois os Guaykuru rapidamente se retiravam,

    tomando estrategicamente rumos diferentes em pequenos grupos, para confundir o inimigo.

    Embora, ao longo do tempo, tenham conseguido com cada vez mais xito manter os Guaykuru

    afastados e impossibilitados de transitar livremente.

    Quando os Taquiyiquis foram drasticamente reduzidos e absorvidos pelos Eyiguayeguis a

    zona de ataques e retiradas ficou mais circunscrita ao norte. Atravessaram para outra margem do

    Rio Paraguai nos fins do XVII, primeiramente para explorar a regio com caa e palmares, alm

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    de obter retiradas seguras e, posteriormente, para assentarem-se. Isso possibilitou, nas primeiras

    dcadas do sculo XVIII, o encontro com os luso-paulistas.

    A relao dos Guaykuru com os luso-paulistas foi marcada pela violncia. Embora no

    houvessem de incio ncleos populacionais os Guaykuru atacavam as mones vindas, em geral,

    de So Paulo, causando prejuzo Fazenda Real. A poltica lusa foi de extermnio, buscavam de

    todas as formas aniquilar os ndios, considerando inimigos todos aqueles que expressassem

    alguma resistncia direta sua invaso, categoria em que enquadravam os Cavaleiros.

    No entanto, aps mais de 70 anos de conflitos os luso-paulistas alteraram sua poltica em

    relao aos Guaykuru, buscando aproximao com os ndios. Perceberam, naquele momento, que

    a melhor forma de permanecer na regio seria o no embate com