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Henrique Alberto Alves Ferreira AMOR E REVOLUÇÃO EM A DANÇA IMÓVEL, DE MANUEL SCORZA São João Del Rei Dezembro de 2015

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Henrique Alberto Alves Ferreira

AMOR E REVOLUÇÃO EM A DANÇA IMÓVEL,

DE MANUEL SCORZA

São João Del Rei

Dezembro de 2015

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Henrique Alberto Alves Ferreira

Amor e revolução em A Dança Imóvel,de Manuel Scorza

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Federal deSão João del-Rei, como requisito parcial para aobtenção do título de mestre em Letras.

Área de Concentração: Teoria Literária e Críticada Cultura.Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural.Orientador: Prof. Dr. Alberto Ferreira da Rocha Jr.

São João Del Rei

Dezembro de 2015

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Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)Programa de Mestrado em Letras (PROMEL)

Área de concentração: Teoria Literária e Crítica da CulturaLinha de pesquisa: Literatura e Memória Cultural

Título da dissertação:Amor e Revolução em “A Dança Imóvel”, de Manuel Scorza

Professor orientador:Alberto Ferreira da Rocha Júnior

Banca examinadora:

___________________________________________________________Prof. Dr. Alberto Ferreira da Rocha Júnior – UFSJ (Orientador)

___________________________________________________________Profª. Drª. Suely da Fonseca Quintana – UFSJ

___________________________________________________________Profª. Drª. Haydée Ribeiro Coelho – UFMG

___________________________________________________________Prof. Dr. Anderson Bastos Martins – UFSJ (coordenador do PROMEL)

São João Del Rei

Dezembro de 2015

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Dedico estas ideias em formasde palavras a Vitor, Pedro,Caio, Mariana, Isabella eHenrique. E também a doisManuéis e um Manoel:Scorza, de Barros e Bandeira.

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AGRADECIMENTOS

A Christiano e Célia, agradeço por esta existência e às futuras. Quanto mais o tempopassa, mais orgulho sinto de ser filho de vocês.

A Aline, amor profundo no abstrato quanto distante no espaço, minha tradutora,amiga e amante, companheira dos acasos que inventamos para estar, longe ouperto, fora ou dentro, a tendência dos espíritos nos une e nos diminui as distâncias.

À Profª Josiane Magalhães Teixeira, que desde o primeiro momento em que soubede minha aprovação no programa de mestrado, abriu as portas da UFVJM para queeu fosse afastado e, na impossibilidade do fato, compreendeu minhas ausências aotrabalho e me possibilitou integralizar os créditos através de um regime especial.

Ao grande amigo e cúmplice musical Marcelão e sua linda família, Débora e Cecília,que me instalou numa ótima casinha durante um ano e meio em São João Del Rei.

Ao Prof. Tibaji, pela paciência, compreensão, dicas, amizade, tolerância eorientação.

À minha grande amiga Malé, pelo carinho, passeios, diálogos, cumplicidade,cinemas, cervejas, exposições e diversão em São João Del Rei.

Ao irmão Oscar, pela amizade, conselhos, afinidade, pescarias, gargalhadas,companheiragem, ouvires e falares, pela infinitude cabível nas coisas mais simplesdo mundo, também as mais lúdicas, e os bons momentos não teóricos.

Aos irmãos Ismael e Luisa, pelas sempre boas idéias, pelos encontros, pela música,pelos livros, pelo passado, pelo presente, pelo sempre.

Ao irmão Paulo Márcio, sempre disposto e verdadeiramente feliz com o sucessoalheio, ainda vai perder a aposta de meia caixa de cerveja e dois quilos de picanhaneste ano. Quando tudo acabar, iremos comemorar: “Noni, noni, yena manauê”!

Ao irmão e compadre Mercks Paulo, que pode estar de mal de mim, fatodesimportante, dado o tamanho do mundo e a pequenez de nossa vida, como dealguns atos precipitados, impensados e outros incompreendidos, levados pelo calorde um momento que passa.

Ao irmão e monge Augusto, energia cósmica do bem, sempre bom, sempre fora domundo, loucura e genialidade em equilíbrio numa só pessoa.

Ao irmão e companheiro de viagens Missim, colaborador de momentos alados einspirações necessárias para a finalização deste tabalho.

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A Helena, sempre disposta a discutir filosofias em torno do ser humano.

Ao irmão Átila, por tudo que já vivemos no antigo Arraial do Tijuco e por ser quem é.

Às incríveis “mulheres de L”, colegas do primeiro e segundo semestres do Programade Pós-Graduação em Letras da UFSJ: AraceLe, DanieLa, TaLita, Ana CLáudia eRafaeLa, inteligentíssimas e com ótimas pesquisas, além dos fascinantes sereshumanos que se mostraram ser, sempre fico com saudades.

À Profª Eliana, que me impediu pessoalmente de desistir de tudo para em seguidareaparecer em dois sonhos, nos quais mostrou sua compreensão e compaixão emrelação a alguns problemas de ordem pessoal que vivia no momento.

Aos professores Anderson, Maria Ângela e Cláudio, introdutores de ideias e teoriasàs quais não fui acostumado, que me despertaram para a linguagem do pensamentocientífico e me aguçaram o sentido da crítica do pensamento.

À secretária do Programa de Mestrado em Letras, Karina, doce de pessoa, sempredisposta a ajudar, compreendendo a distância entre Diamantina e São João Del Rei.

Ao Sr. Walmir, taxista, que me salvou, levando-me a 200km/h a Belo Horizonte paraque eu chegasse a tempo de fazer a prova de língua estrangeira,, já que a viaçãoPássaro Verde não soube resolver o problema do sistema de compras de passagemcom cartão de débito / crédito.

A Ilva, que foi a primeira colega a ser envolvida neste processo e que me ajudou achegar aos Correios a tempo de enviar a documentação para o programa demestrado.

A Juscilene, minha eterna amiga e confidente, provadora de minhas comidas,bebidas e testemunha de meu esforço, merecedora todo o meu carinho e respeito.

Às Emílias, tanto a Gatinha, grande irmãzona que ganhei nesses dois anos, minhaenfermeira e resolvedora das burocracias do plano de saúde e do sindicato, quantoa Xilibinga, companheira das gargalhadas e confidências.

A Ludmilla, minha colaboradora oficial e comparsa das feiras de domingo, sempredisposta a ajudar, que chegou a ser minha digitadora pessoal de citações ereferências bibliográficas quando eu estava perrengado dos rins.

A Dona Marlete e Seu Roberto, que me albergaram em São João Del Rei durante aintegralização dos créditos, nos anos de 2013 e 2014.

Aos incríveis pescadores do Pantanal e ao piloteiro paraguaio Jairo, el ligerito,andale!, andale!, obrigado a todos.

Enfim, a todos aqueles que colaboraram, direta ou indiretamente, e principalmenteàqueles que não atrapalharam o andamento da carruagem, agradeço.

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- Por que os revolucionários da políticanão são os revolucionários da arte? Por

que os dinamitadores da realidade são osguardiões das formas tradicionais de

linguagem?

Manuel Scorza, A Dança Imóvel

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RESUMO

Este estudo analisa A Dança Imóvel, última obra de Manuel Scorza, publicada em1983. Para fazê-lo, aborda as relações amorosas e o caráter político e socioculturalnela contidas, legitimando-a como representante literária da comarca andina, regiãocultural étnica e autônoma, entre literatos, intelectuais e pesquisadores docontinente. Agrega alguns achados biográficos do autor, como cartas e entrevistas, auma investigação literária, com o objetivo de desdobrar os temas Amor e Revolução,centrais na novela, desvelando ou deixando pistas sobre o fazer literário e político deScorza. Abraça outras obras literárias e teórico-críticas latino-americanas afins,principalmente as do século XX, no pós-guerra, cujas manifestações foramtestemunhas e/ou vítimas de recorrentes ditaduras políticas. A Teoria da Literaturarecorre aqui a uma abordagem antropológica e social para leitura e análise danovela scorziana. A ideologia do autor, como dos protagonistas de A Dança Imóvel,promovem, enfim, na interação entre o ser e o mundo que os rodeiam, a percepçãoe o levantamento de certos elementos que foram aqui considerados revolucionários,não tanto pelo impacto causado na sociedade receptora de sua arte, masprincipalmente pela plantação cuidadosa de sementes de consciência crítica, tantosociais, quanto políticas e culturais, literariamente disseminadas em solos latino-americanos carentes de liberdade. A obra é contextualizada em seu tempo e espaço,atualizada criticamente; em seguida, é analisada pela relação biográfica e literária deseu autor; e finalmente é observada segundo as características passíveis de críticascontribuintes do pensamento social e cultural contemporâneo.

Palavras-chave: Manuel Scorza, Amor, Revolução, Política, TransculturaçãoNarrativa.

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RESÚMEN

Este estudio analiza "La Danza Inmovil", última obra de Manuel Scorza, publicada en1983, y para hacerlo, aborda las relaciones de amor y el caracter político ysociocultural contenido en el mismo, legitimandole como representante literario del lacomarca andina, la región autónoma étnica y cultural de una ascendencia común,inmersa entre los escritores, intelectuales e investigadores del continente. Añadealgunos hallazgos biográficos del autor, tales como cartas y entrevistas, unainvestigación literaria, con el fin de desplegar los temas del amor y de la revolución,central en la novela, revelando o dejando pistas a la composición literaria y políticascorziana. Incluye también otras obras literarias y teórico-crítico relacionadas a laAmérica Latina, sobre todo el siglo XX, después de la guerra, cuyas manifestacionesfueron testigos y/o víctimas de dictaduras políticas recurrentes. La Teoría de laLiteratura se refiere aquí a un enfoque antropológico y social a la lectura y el análisisde la novela scorziana. La ideología de Scorza, al igual que los protagonistas de LaDanza Inmovil, promueve, por la interacción entre el ser y el mundo que lo rodea, lapercepción y el levantamiento de ciertos elementos que se han considerado aquírevolucionarios, no es tanto el impacto en la sociedad de acogida de su arte, perosobre todo por las semillas cuidadosas plantación de conciencia crítica, tantosociales, la política y cultural, literaria diseminada en suelo latinoamericano carecede libertad. El trabajo se contextualiza en su tiempo y espacio, actualizadocríticamente; entonces es analizado por la relación biográfica y literaria de su autor;y, finalmente, se observa de acuerdo a las características susceptibles decontribuyentes críticas al pensamiento social y cultural contemporáneo.

Palavras-clabes: Manuel Scorza, Amor, Revolución, Política, TransculturaciónNarrativa.

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SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 - A PRIMEIRA GRANDE REVOLUÇÃO: O SISTEMA LITERÁRIO LATINO-AMERICANO................................................................................................................. 151.1 A imprecisão dos rótulos literários........................................................................ 151.2 A América dos Latinos: o sistema literário sugerido por Rama............................ 231.3 Os grupos sociais das revoluções, também literárias, latino-americanas............ 271.4 Comarcas literárias e transculturação narrativa................................................... 29

CAPÍTULO 2 - A DANÇA IMÓVEL: UMA ANÁLISE DA OBRA HOMÔNIMA DE SCORZA – ENTRE

A HISTÓRIA, A BIOGRAFIA E A LITERATURA..................................................................... 432.1 Canetas e metrancas............................................................................................ 432.2 Breves considerações sobre a novela de Scorza................................................. 612.3 Transculturações narrativas em A Dança Imóvel................................................. 64

CAPÍTULO 03 – DO AMOR E OUTRAS REVOLUÇÕES: AS RELAÇÕES AMOROSAS NO

ROMANCE A DANÇA IMÓVEL E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS ACERCA DA OBRA DE SCORZA EDE SEUS CONTEMPORÂNEOS........................................................................................ 733.1 As relações amorosas: entre o amor e a revolução............................................. 733.2 Revoluções no campo do fazer literário, crítico e biográfico................................ 843.3 A revolução sociocultural do intelectual latino-americano e a literatura como crítica..................................................................................................................................... 94

CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................101Livros e terras..............................................................................................................101Fundação Biblioteca Ayacucho...................................................................................102Críticas à transculturação de Rama............................................................................104Scorza e a máquina de sonhar...................................................................................107Revoluções scorzianas...............................................................................................108

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................111

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Introdução

A dominação de um povo por outro(s) sempre ultrapassa as esferas política,

social e econômica, e se torna mais cruel à medida que se impõe à cultura dos

dominados. A América Latina revela, assim, uma história comum de colonização,

específica em cada porção de terra em que ocorreu, desde que os navegadores

europeus lançaram-se aos oceanos em busca de exploração de riquezas minerais,

expansões de domínios territoriais e necessidade de imposição religiosa / cultural,

em suma, de poder.

Não se pretende aqui analisar qual desses efeitos colaterais do poder tenha

sido tão degradante ou os que nos tenha trazido outros tantos infortúnios, já que os

valores da época foram relacionados diretamente à cultura dominante e que, mais

de cinco séculos depois, continuaram prevalecendo como valores cultuados nas

sociedades contemporâneas – e que, ainda que híbridas, heterogêneas e/ou

transculturais, carregaram a transição para a modernidade através de uma história

viciada e reinventada pelos interesses dos dominadores, sejam eles colonizadores

ou neocolonizadores, nas instâncias internas (classes) e externas (nações). Entre

permutas, transculturações e reelaborações do passado, a literatura, como a

crítica, e o círculo de pensamento dessas culturas subalternizadas, cujos

inquietantes hibridismos e mestiçagens permitiram uma nova configuração de

resistência pelas diferenças e sincretismos, acabaram por reinventar o sujeito

latino-americano.

A diferença de dominação está no tempo: embora não seja cabível ou

aceitável que ainda hoje, em um mundo globalizado, haja a invasão deliberada e a

destruição em massa de povos e suas respectivas culturas considerados pelo

dominante como menores ou inferiores, o rastro dela permanece como um

passado a ser esquecido e/ou reescrito para uma sintonia entre o aceitável, o

comunicável e o intocável.

O enfoque deste estudo encontra-se no nível da comarca andina, em

especial sobre a obra romanesca do peruano Manuel Scorza, de 1983. Ao seu

redor, também entre outras comarcas, em mesmas e diversas épocas e

pensamentos de gerações, obras literárias e críticas latino-americanas foram

investigadas. Pois Scorza, transitando entre sua vida e sua obra, funciona como

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ponte metonímica da parte cultural de cada foco étnico, linguístico e cultural com

características próprias e autônomas pelo todo continental latino-americano,

estimadas suas diferenças e semelhanças. Permeado por revoluções sociopolíticas

e também nas artes literárias, soa como base de resistência cultural para

conhecimento e auto-consciência do sujeito latino-americano contemporâneo.

Os artifícios ou estratégias culturais / literárias pós-colonialistas da América

Latina para driblar o marco zero da dominação dos povos1 provocam, a partir do

texto, da crítica e do (entre)lugar do intelectual latino-americano, ecos libertários e

órfãos em simultaneidade. Embora a cronologia e a infinidade de versões das

crônicas e documentos históricos não se mostrem exatamente fidedignos ao

ocorrido entre os dominados (já que bilíngues de tradução duvidosa, já que

distantes, já que opostos em suas forças e objetivos), não parece justa a

obrigatoriedade de recriar 500 anos de cultura por outro viés que não considere,

dentro da modernidade, aspectos tradicionais, já que as próprias ancestralidades

foram lidas pela cultura dominante de forma tão ficcional quanto são parciais os

fatos de sua própria história.

Na América, desde o México ao extremo sul do continente, a colonização

exploratória trouxe mazelas e desgraças a seus habitantes nativos, hoje nações,

colocando-os em posições de inferioridade, não só diante das novas classes que

os dominariam quanto, em dimensão nacional, diante do mundo. Esse efeito é

como o funcionamento das bonecas russas de madeira2 em que se abre uma e há

outra menor dentro da última e assim sucessivamente, ou também ilustrado pela

mônada de Benjamin (1985), pois que é um fragmento do todo a partir do qual o

mundo se repete, segundo um mesmo comportamento. Assim, do macro para o

micro, é perceptível que haja também, como há, dentro de cada unidade política

nacional, entre as classes sociais desta última, a mesma necessidade de

perpetuação da dominação, ainda mais injustificável quando adentra o campo da

cultura do outro. Inferir a ignorância e a fraqueza de um povo a partir dos princípios

1 Refiro-me ao grau zero proposto por Antonio Cornejo Polar em “O Condor Voa”, publicado pela Ed.UFMG, em 2000, que entre a oralidade e a escrita, revela a gênese do sujeito latino-americano, emespecial, andino, já que a escrita relaciona-se à morte do imperador inca Atahualpa, e a oralidade,assim como outras manifestações culturais ágrafas, contém em si toda a vida e a tradição daquelepovo, assunto que será abordado no capítulo 2.

2 Conhecidas como matrioskas, simbolizam a fertilidade e a maternidade, enfim, o ciclo da vida e das gerações.

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éticos, morais e culturais daqueles que o dominam parece ter sido desconsiderado

como erro na história dos conquistadores, fato válido também para os casos,

ocasos e acasos econômicos que, em defesa de qualquer orientação política

preestabelecida entre o social e o capital, permitiu irrefreáveis injustiças,

opressões, golpes de estado e ditaduras e arremessou ao limbo a realidade

sociocultural latino-americana.

Na literatura, os efeitos desse grande turbilhão de acontecimentos políticos,

desde a chegada dos colonizadores até a criação dos estados nacionais e as

posteriores opressões culminaram em sentimentos revolucionários de

independência e liberdade. Literária, antropológica e sociologicamente, trouxeram

pistas para que o uruguaio Ángel Rama pudesse propor uma independência

cultural latino-americana também em relação às letras e o papel do intelectual

continentalmente, em busca de unidade literária latino-americana, consideradas

sua heterogeneidade e imensa pluralidade histórica e cultural.

Ángel Rama apropriou-se dos conceitos sociológicos de Antonio Candido

para elaborar um sistema literário latino-americano, em especial, através dos

romances produzidos no continente. O estudioso e crítico foi responsável por

introduzir a ideia de como a América Latina, devidamente constituída pelas suas

“comarcas literárias”3 alcançou, em toda a sua heterogeneidade e pluralidade a

‘independência’ cultural e artística da Europa, considerada, naquele momento, um

ícone da modernidade, através de seu conceito de “transculturação narrativa”. Foi

também responsável por unir as literaturas de línguas espanhola e portuguesa em

torno de um mesmo sistema, esforço glório, já que sendo distintas, dada sua

gigantesca pluralidade, enfrentava ainda uma considerável barreira linguística. No

entanto, a língua se configurou como obstáculo que o impediria de proceder à

estruturação e delimitação de seus conceitos concretos e abstratos em torno do

ser latino-americano.

Este trabalho procura estudar a obra A Dança Imóvel, de Manuel Scorza

(1983) sob dois eixos temáticos – o amor e a revolução. Apesar de apresentarem-

se como temas universais, subjetivos e abstratos, serão melhor compreendidos

3 Segundo a tese de doutorado de Roseli Barros Cunha (2005), publicado pela Humanitas em 2007,sob o título “Transculturação narrativa: seu percurso na obra crítica de Ángel Rama” , o termoempregado por Ángel Rama é “comarcas culturales”, e nesse sentido me parece mais abrangente doque “comarcas literárias”.

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neste estudo como “relações amorosas” e “política”. Observar o papel emprestado

à literatura, no tocante a suas narrativas, sejam elas romanescas ou novelísticas,

seus contextos, contatos, pontos de convergências e/ou divergências, permite-nos

ainda observar como a ideologia e a crítica literária latino-americana se manifestam

na contemporaneidade.

Dividida em capítulos e estes, em seções, a pesquisa contempla, em sua

primeira parte, a literatura latino-americana do século vinte, mais especificamente,

após a segunda guerra mundial. O contexto político e ideológico é de extrema

importância, pois a maioria dos países, do México à Terra do Fogo, sofreu

constantes ditaduras e tiranias naquele momento, em uma guerra mascarada entre

o capital e o social. Dessa conjuntura, vêm as teorias de Ángel Rama e o sistema

literário americano-latino.

O segundo capítulo traz um exame da obra de Scorza, A Dança Imóvel, de

1983, aliando à análise narrativa e à função literária alguns fatos biográficos que

multiplicam sua interpretação. O fator político (revolução) é abordado nesta parte

do estudo.

O capítulo final trata das relações amorosas (amor) contidas no romance e

as características socioculturais que delas sobressaem.

As considerações finais sintetizam o estudo, descortinando conclusões,

erros e/ou acertos acerca do método e sugerindo pesquisas futuras.

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Capítulo 1 – A primeira grande revolução: o sistema literário latino-americano

1.1 A imprecisão de rótulos literários

O homem é um animal que não pode sesatisfazer unicamente com a realidade. Nãose alimenta apenas de comida. Seu alimentofundamental são os símbolos.

(Manuel Scorza, A Dança Imóvel, p. 50)

A literatura latino-americana contemporânea, durante décadas, carregou

consigo um injusto fardo quando então foi analisada apenas segundo estereótipos

que beiram a fantasia e a panfletagem política. Munida de textos contentores de

elementos reais e fictícios que denunciavam as práticas opressoras abusivas

ocorridas nos países colonizados no passado pelos Reinos de Espanha e Portugal

e agora tentavam se reerguer num mundo capitalista, imperialista e consumista, de

acordo com a nova ordem mundial, pode ter sido mal interpretada. Os fatores

político, econômico e social de um povo oprimido pelas constantes ditaduras que

assolaram o continente nos séculos XIX e XX são indissociáveis do sujeito latino-

americano, e por isso estão tão presente nos relatos de seus autores. Externados

via literatura, observa-se que pode ser esta última um tanto depreciada quando

entendida como “literatura de revolução” ou “literatura panfletária”, apenas por seu

caráter marxista desejoso de libertação e igualdade, pois há outros aspectos que

revelam uma criatividade ímpar, um posicionamento histórico, crítico e artístico e

uma riqueza sociocultural indiscutíveis, merecedores de maior atenção.

O uruguaio Eduardo Galeano (2002) examina sócio-historicamente as

opressões sofridas no continente de modo tão visceral que nos permite

compreender a impossibilidade de se excluir a política impregnada no ser latino-

americano diante das atrozes dominações socioculturais que lhe foram imputadas,

tão cruelmente diminuído:

É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento aténossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nosdistantes centros de poder.Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas,ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo,os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e aestrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados,de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. A

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cada um dá-se uma função, sempre em benefício do desenvolvimento dametrópole estrangeira do momento, e a cadeia das dependênciassucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certotambém incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos paísespequenos por seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, aexploração que as grandes cidades e os portos exercem sobre suas fontesinternas de víveres e mão-de-obra. (p.08)

Afinal, segundo o próprio Galeano (2002),

São secretas as matanças da miséria na América Latina; em cada anoexplodem, silenciosamente, sem qualquer estrépito, três bombas deHiroxima sobre estes povos, que têm o costume de sofrer com os dentescerrados. Esta violência sistemática e real continua aumentando: seuscrimes não se difundem na imprensa marrom, mas sim nas estatísticas daFAO. (p.11)

Cortázar (2001), por sua vez, discute a relação entre política e literatura na

América Latina e o papel do literato / intelectual frente a tais realidades:

creio que agora está claro que, para muitos intelectuais latino-americanos, ocompromisso político é uma questão que faz parte de sua personalidademental, moral e vital, e que, para eles, escrever livros não significa umatarefa totalmente diferente da participação nas múltiplas formas de luta noplano político. Se vemos a política como paixão, como vida, como destino,que diferença pode haver entre isto e o que tentamos criar ou reproduzir emnossos romances e em nossos contos, por mais que seus temas muitasvezes nada tenham a ver com o que está acontecendo na rua? (p.61)

Portanto, não se trata aqui nem de diminuir, tampouco de ufanizar as

características políticas da literatura latino-americana, mas lapidá-las, de modo que

não sejam compreendidas meramente como um rótulo, como tantos críticos já o

fizeram, já que a questão política é, para o latino-americano, ela própria, um fator

cultural orgânico em sua vida.

Também não é o caso de, por ser social e politicamente engajada, ser

considerada exclusivamente como uma literatura que meramente desvele um certo

nacionalismo através de explícita ou implícita parcialidade histórica. Torna-se

significativo, portanto, observar que ao se tratar de nacionalismos, devemos

também nos atentar para o substantivo-base (nação) do qual deriva outros “ismos”.

Por esse viés, considera-se que o conceito de nação de Bhabha (1998), que

entende sua criação (referindo-se às nações ocidentais) como uma invenção

(vezes consciente, vezes não) da imprensa e dos textos literários, principalmente

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dos exilados ou daqueles que foram privados de sua pátria. A construção do

nacional dá-se por uma ficção social, partindo de um devir cultural, sim, seguindo

interesses de poder sim, não só através da literatura, que dissemina e registra

ideias de acordo com seu tempo, seja muito mais abrangente do que os simples

limites físicos e geopolíticos de um país ou um senso patriótico emocionante diante

de um hino nacional.

De certa forma, é em oposição à certeza histórica e à natureza estáveldesse termo que procuro escrever sobre a nação ocidental como uma formaobscura e ubíqua de viver a localidade da cultura. Essa localidade está maisem torno da temporalidade do que sobre a historicidade: uma forma de vidaque é mais complexa que “comunidade”, mais simbólica que “sociedade”,mais conotativa que “país”, menos patriótica que patrie, mais retórica que arazão de Estado, mais mitológica que a ideologia, menos homogênea que ahegemonia, menos centrada que o cidadão, mais coletiva que o “sujeito”,mais psíquica que a civilidade, mais híbrida na articulação de diferenças eidentificações culturais que pode ser representado em qualquer estruturaçãohierárquica ou binária do antagonismo social. (...) são estratégias complexasde identificação cultural e de interpelação discursiva que funcionam emnome “do povo” ou “da nação” e os tornam sujeitos imanentes e objetos deuma série de narrativas sociais e literárias (BHABHA, 1998, p.199).

Ou seja, as nações (no sentido de Bhabha) da literatura latino-americana

(não exatamente a localidade em que se produz, mas onde se vive a cultura)

estariam também nas vozes ampliadas de suas comarcas culturais (regiões de

afinidades culturais próprias e autônomas), para além de quaisquer mapas, através

de uma metáfora do nacional.

Sobre a questão ainda do nacionalismo, partindo dos intrincamentos entre

cultura, história, memória e literatura, Benedict Anderson (2008) contribui com a

ideia de que as comunidades (nações) são inventadas, imaginadas, por um

processo de seleção que a língua escrita produz, tanto pelos censos, mapas e

museus, como pela literatura. Assim, uma comunidade política imaginada seria

tanto limitada quanto soberana, já que se reinventa, ao passo que também

esconde uma realidade do que não é, escolhendo quais memórias devem ser

preservadas enquanto também define o que deve ser esquecido para a construção

(invenção) da nação.

Talvez, por este mesmo motivo, não se deva lançar às artes literárias um

papel obrigatoriamente nacionalizante, pois não se discute aqui o conceito de

nação, apenas amplia-se, para observar mais de perto as características da

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literatura latino-americana. Por exemplo, a literatura de Manuel Scorza não é

apenas peruana, mas também andina, incaica, amazônica, regional, por vezes

urbana, continentalmente americana-latina, melhor exemplificada quando se

propõe pela expectativa do dominado, repelindo determinismos.

Em relação ao outro estereótipo da literatura latino-americana, o

fantasiosismo, as sensações de estranheza, o caráter metafísico, o impossível, o

incrível, o imaginativo, o onírico, o sobrenatural, entre tantas outras características

que Tzvetan Todorov (2004) catalogou como um gênero literário próprio (apesar de

admitir que se tratava de um gênero que possuía uma vida relativamente curta),

denominando-lhe Fantástico, com características próprias que se diferenciaria

ainda do Estranho e do Maravilhoso, foi, durante um longo período, considerado

uma expressão cultural e literária própria das Américas Centrais e do Sul (incluindo

o México). Algo que poderia ilustrar essa diferenciação de estilos como

desdobramentos do gênero está na própria delimitação do conceito que

desenvolveu o intelectual:

Num mundo que é bem o nosso, tal qual o conhecemos, sem diabos,sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode serexplicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que vive o acontecimentodeve optar por uma das soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dossentidos, um produto da imaginação, e nesse caso as leis do mundocontinuam a ser o que são. Ou então esse acontecimento se verificourealmente, é parte integrante da realidade; mas nesse caso ela é regida porleis desconhecidas para nós. Ou o diabo é um ser imaginário, uma ilusão,ou então existe realmente, como os outros seres vivos, só que oencontramos raramente. O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza; assimque escolhemos uma ou outra resposta, saímos do fantástico para entrarnum gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. (TODOROV, 1969,p.148).

Embora Todorov tenha desenvolvido uma minuciosa análise, característica

da matematização literária dos intelectuais estruturalistas da época (ou talvez por

esse mesmo motivo) do Realismo Fantástico e o elevado à condição de gênero,

ainda assim, considerar toda a identidade literária latino-americana apenas no

plano do mágico ou maravilhoso parece uma atitude crítica um tanto redutora e

simplista, que transfere a leitura das obras apenas para a superfície imagética e

não para as profundezas sociais nelas contidas. Certamente, o conceito de

Barroco (que foi também atualizado e figura como Neobarroco em análises

literárias e artísticas contemporâneas) e os termos carnavalização e alegoria

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empregados pelo cubano Lezama Lima (1988), ao se referirem-se à expressão

americana, são mais atuais e adequados à questão identitária latino-americana.

Fonseca (2004), em Alegoria, Barroco e Neobarroco em Lezama Lima e

Glauber Rocha, delineia o barroco desenhado por Lezama Lima de forma mais

didática:

Considerando o barroco como um começo e não como a origem, Lezamaescapa sabiamente da armadilha que seria substancializar um grau zeroinexistente, que, principalmente ignoraria o mundo pré-colombiano dasculturas indígenas e a contribuição africana na criação do barrocoamericano (FONSECA, 2004, p.57)

A ensaísta e professora Irlemar Chiampi (2010), esclarece, já no prefácio de

Barroco e Modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana:

como proposta moderna, entendo a que recicla ideologicamente o barrococomo um fator de identidade cultural, dentro da prática da fragmentação, dacelebração do novo, do afã de ruptura e da experimentação; em termosespecificamente latino-americanos, essa nova razão estética ocorreplenamente com o auge do boom dos anos 60, quando o novo romancerecupera as origens barrocas em sua linguagem narrativa. Já a propostapós-moderna de reciclar o barroco é situada no bojo da nova ordem culturalque pôs em descrédito os Grandes Relatos (do Progresso, do Humanismo,da Ciência, da Arte, do Sujeito), tomando o neobarroco como uminstrumento privilegiado de crítica (latino-americana) do projeto(eurocêntrico) do iluminismo. Enfatizo o papel crítico do barroco no ocaso damodernidade por ser menos visível que outras tendências da atual literaturalatino-americana dos anos 70-90 (a realista, a feminista, a histórica, atestemunhal, a étnica), que desconstroem igualmente as categorias domundo moderno (CHIAMPI, 2010, p.10).

Pois, enquanto as obras latino-americanas vanguardistas e modernistas

possuem um caráter marcadamente socializante e politizante, também nelas se

encontra um tom existencial, mitológico e onírico. Buscam em si mesmas uma

forma de identificação e permanecência cultural para fugir à imposição de valores

europeus, fator que talvez nos permita aproximar literariamente, por exemplo,

Scorza, Arguedas e Guimarães Rosa. Na América Latina, onde cada autor gostaria

de se transformar em um estilo próprio, mas não fora de sua cultura, talvez as

considerações de Chiampi4 consigam, de maneira mais eficiente e/ou

compreensível, apontar interseções relativas à imensa pluralidade literária e

4 A pesquisadora é também tradutora de A Expressão Americana, de José Lezama Lima, publicado noBrasil em 1988.

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riqueza artística que possibilite a percepção de elementos identitários comuns

entre elas, através da conceituação de Barroco proposta por Lezama Lima:

A nossa América, ela própria uma encruzilhada de culturas, mitos, línguas,tradições e estéticas, foi um espaço privilegiado para a apropriação colonialdo barroco, e o continua sendo para as reciclagens modernas e pós-modernas daquela ‘arte da contraconquista’, na qual Lezama Lima tão bemsituou o autêntico devir americano (CHIAMPI, 2010, p.14).

Figueiredo (1994) admite que a forma de devir da América proposta por

Lezama Lima necessitaria considerar a diluição entre as fronteiras da história e da

ficção, mas não apenas isso seria uma válvula de escape que conduziria o latino-

americano à modernidade e ao progresso como também essa necessidade seria a

única opção para sobrevivência de sua cultura, de forma que consiga

ultrapassar os limites impostos pela razão e deixar de lado o critério de valorassociado ao de desenvolvimento de uma forma no tempo, precisará,sobretudo, trabalhar com uma nova causalidade, não hegeliana. Dissolverádicotomias, hierarquizações que não se coadunam com a afirmação dacultura americana. Substituirá a ordenação temporal pelas analogias livres,a ideia de repetição pela ideia de recorrência criativa, o culto da razão poruma gravitação em torno da imaginação e da memória. O americano seriaaquele que faz a síntese de ruptura e secularidade, que trabalha com aacumulação reorganizando a influência recebida com alegria e astúcia“endemoniada” (p.158).

Analisada, em vista disso, apenas pelas características políticas e/ou

oníricas e fora de um sistema literário que lhes desse liga e fermento, ainda que

libertárias ou desejosas de libertação, a literatura latino-americana ficaria à mercê

de rótulos e encarcerada em análises incompletas que privilegiavam a forma e o

estilo, mas descartavam sua indiscutível importância em seu contexto

antropológico e sociocultural. Por esse motivo, consideraremos o elemento

fantástico observado por Todorov apenas como uma característica presente e

necessária na literatura latino-americana, mas não a essência diferenciativa das

demais literaturas do mundo.

Ao seu passo, Lezama Lima estaria mais próximo da transculturação literária

proposta por Ángel Rama por seu barroquismo do que Todorov, por considerar a

expressão americana uma arte da contraconquista desenvolvida através de

tensões, alegorias e carnavalizações necessárias que ilustrariam, além do plano da

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narrativa, o íntimo social e o espírito cultural do ser latino-americano em sua

caminhada quase psicanalítica para matar sua mãe europeia e seu pai

norteamericano.

Estariam, nesse contexto, bem representadas pelo neobarroco de Lezama

Lima (1988)5, embora este estudo evite utilizar substantivos próprios que possam

engessar qualquer estilo, importantes obras do cenário literário latino-americano

produzidas nos séculos XIX e XX até os dias de hoje, em que, além do elemento

fantástico e do apelo político embutidos no texto, ambos carnavalizados, haja

espaço para que a literatura debruce-se sobre si própria, utilizando-se da crítica

para fazer crítica, apropriando-se do espaço da literatura para discussão de

assuntos filosóficos, da idealização de certos temas intrinsecamente humanos a

uma interessante ruptura de paradigmas, em especial, em como se dá a formação

do sujeito latino-americano e como ele mantém (ou recria) sua dinâmica lógica

cultural.

Assim, compõem uma incomensurável constelação de representantes latino-

americanos autores como Manuel Scorza, José Maria Arguedas e Vargas Llosa

(Peru), Julio Cortázar (Argentina), Ángel Rama (Uruguai) Gabriel García Márquez

(Colômbia), Alejo Carpentier (Cuba), Paulo de Carvalho Neto, Guimarães Rosa e

Darci Ribeiro (Brasil), entre outros6. Não se pretende aqui considerar os autores

citados (e os não citados) como simples referências cristalizadas em seu próprio

estilo, mas o valor de cada obra a cada tempo como constituintes de um sistema

literário latino-americano7. Vale lembrar que grande parte desses autores não se

ateve apenas ao romance e/ou à poesia; muitos deles, em algum momento, de

uma forma ou de outra, publicaram ensaios sobre política e cultura na América

Latina. Dentre estes, todos, invariavelmente, posicionavam-se contra a ditadura e a

favor de uma revolução comunista na América, mas para além da preocupação

política e das denúncias sociais entre os abusos e desmandos de determinadas

5 Em “A expressão americana” (1988), Lezama Lima reúne, em cinco conferências, realizadas no Centro de AltosEstudos de Havana, as teorias do neobarroco latino-americano, que ultrapassa a simples gênese da cultura earte latino-americanas contemporâneas, desde sua linguagem, até a sua visão histórica, impossível de serdelimitada, pelo fato de que se sustenta na arte para se reconstruir, de forma aparentemente aleatória econtraditória, de onde surgem as imagens, o obscurantismo do que ele considera ser a arte da contraconquista.

6 Não se pode deixar de citar ainda Miguel Ángel Astúrias Rosales (Guatemala), Juan Rulfo (México), JoséLezama Lima, Alejo Carpentier e Guillermo Cabrera Infante (Cuba), Arturo Uslar Pietri (Venezuela), José Donoso(Chile), Augusto Roa Bastos (Paraguai), Carlos Fuentes (Panamá / México).

7 O sistema literário latino-americano proposto por Rama será abordado na próxima seção.

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classes abastadas em detrimento de outras menos favorecidas, haveria ainda um

fio condutor que se manteria nas obras literárias, perpassando-as como tema

transversal absoluto, independente de sua indiscutível diversidade: o sujeito latino-

americano.

Wander Melo Miranda (2010), em “Nações Literárias”, em relação a uma

suposta unidade cultural brasileira, destaca, nas diversas manifestações artísticas,

nelas incluindo a literatura, que

a construção cultural da ‘nação’ é uma forma abrangente de filiação sociale textual, dada pelo cruzamento de verdades e falsificações (propositaisou não) capazes de exceder as margens das convenções literárias e doslugares-comuns ideológicos” (p.21).

E sobre a característica nacionalizante que a literatura latino-americana,

como exemplo das relações contidas nos conteúdos da memória e da história, ao

voltar-se para a cultura de um povo duplamente oprimido no interior dos países,

tanto externamente pela imposição de valores do mundo ocidental quanto

internamente, na relação exclusiva que a urbanidade mantém com recônditos

espaços interioranos detentores de tradições que as cidades ainda não devoraram,

Seligman-Silva (2003) vai lhe acrescentar o traço revisor:

Mas os discursos de memória não são apenas canalizados para aidentificação com a nação ou com projetos de domínio. Existe também umageneralização do “contradiscurso” da memória de minorias que nuncativeram a oportunidade de alçar suas vozes. Este processo de narrativa dopassado de opressão conduz a uma desconstrução das narrativas históricasdominantes (e reprodutoras do status quo) (SELIGMAN-SILVA, 2003, p.11).

Dentro das comarcas literárias, as nações latino-americanas insurgem

intermitentes, dialogantes e complementares, onde cultura, memória e política se

entrelaçam, motivo da impossibilidade de se analisar a literatura de Manuel Scorza

separadamente das demais literaturas do continente. Juntas espelham não só o

mundo literário e crítico em que estão inseridas, mas também a história e o

imaginário cultural que as envolve.

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1.2 A América dos Latinos: o sistema literário sugerido por Rama

A partir de uma cultura autodidata, vinda do jornalismo,Ángel foi desenvolvendo sua formação. Lembro-me deleem casa, sentado durante horas intermináveis à frente damáquina de escrever, com uma concentração invejável enada fácil de quebrar, nem com o aviso da comida.

Amparo Rama, 2009.

Quando Antonio Candido, em 1959, em A Formação da Literatura Brasileira:

momentos decisivos, organiza o que definiu como “sistema literário brasileiro” a

partir da análise da produção dos árcades do século XVIII até os românticos da

segunda metade do século XIX e finalmente entende-o consolidado, possibilita que

a literatura brasileira seja autoconsciente de sua função como atividade regular e

permanente na sociedade. Opondo-se às “manifestações literárias”8, produções

literárias esparsas, eventuais e pontuais, ainda muito compromissadas com a

metrópole portuguesa, que não encerravam em si qualquer projeto de literatura

nacional, ou seja, apenas a reprodução de uma literatura europeia em solos

coloniais brasileiros, o sistema literário por ele proposto compreendia uma

articulação orgânica social entre três pilares básicos estruturais e indissociáveis

para sua existência: coletividade de autores, suas obras e seus leitores.

A relação entre esses três pilares fundamentados na consciência histórica e

na participação em comum do grupo de autores e leitores da realidade por eles

experimentada no processo civilizatório em torno de participações culturais estaria

ainda relacionada à criação / manutenção de uma identidade nacional brasileira,

podendo ser sincrônica (entre autores, obras e leitores nacionais de uma mesma

época) ou diacrônica (quando ultrapassam as gerações). A comunicação do leitor

com seu autor se dá através de sua obra e vice-versa e pode ocorrer tanto partindo

da imagem representativa que o leitor faz do autor (motivo pelo qual se nota a

importância da coerência, engajamento e posicionamento crítico definido) e

também da inferência que o autor faz do leitor ao delimitar seu público-alvo. Além

disso, para que o sistema literário se movimente em toda sua dinamicidade sócio-

cultural e se mantenha vivo, seu reconhecimento precisa ser balizado por

8 Como exemplos de manifestações literárias, Candido cita as produções textuais e poéticas de padreAnchieta (século XVI), Gregório de Matos e padre Antônio Vieira (século XVII) e Rocha Pita (primeirametade do século XVIII), obras que, por maior relevância que podem ter alcançado, em termosliterários, não faziam ainda parte de um sistema literário.

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instituições de suporte que incluam nele os sistemas educacionais, as academias,

as revistas, os prêmios regulares e as casas editoriais. (CANDIDO, 2014).

Candido (2000) aponta ainda que a análise da tramitação entre as três

bases do sistema literário, sob um ponto de vista sociológico, seguiria o que

considerou dois tipos contrários e complementares de arte, integrados: a “arte da

agregação” e “a arte da segregação”. A primeira estaria associada à expressão

artística de um sistema simbólico já existente e prestabelecido, enquanto que a

segunda se dedicaria a renová-lo (e por ser uma novidade, seu público inicial é

menor):

A objeção imediata é que, na verdade, não se trata de dois tipos, sendo,como são, aspectos constantes de toda a obra, ocorrendo em proporçãovariável segundo o jogo dialético entre a expressão grupal e ascaracterísticas individuais do artista. Mas se considerarmos apenas apredominância de um ou de outro, a distinção pode ser mantida, o que nosinteressa aqui sobremaneira, pois foi feita com o pensamento em doisfenômenos sociais muito gerais e importantes: a integração e adiferenciação. A integração é o conjunto de fatores que tendem a acentuarno indivíduo ou no grupo a participação nos valores comuns da sociedade. Adiferenciação, ao contrário, é o conjunto dos que tendem a acentuar aspeculiaridades, as diferenças existentes em uns e outros. São processoscomplementares, de que depende a socialização do homem; a arte,igualmente, só pode sobreviver equilibrando, à sua maneira, as duastendências referidas (CANDIDO, 2000, p.21)

O crítico brasileiro ressalta ainda a unidade literária brasileira dentro de sua

diversidade. Essa diversidade, dada a extensão territorial do Brasil e as diferenças

socioeconômicas entre os estados da federação, é que permitiria que o estado de

São Paulo funcionasse como pólo de influência literária para naqueles estabelecer

uma comunicação socializante através desse diálogo, possibilitando a evolução

das comunidades envolvidas no processo. Para tanto, distingue o caráter individual

da obra literária “pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma

confidência, um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma

‘expressão’” do caráter coletivo contido em seu conceito de literatura, na qual

“requer uma certa comunhão de meios expressivos (palavra, imagem), e mobiliza

afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento –

para chegar a uma ‘comunicação’” (CANDIDO, 2000, p. 127).

Expandindo, portanto, as considerações acerca do sistema literário brasileiro

sugerido por Antonio Candido, Ángel Rama, seu amigo pessoal e cúmplice teórico,

propõe a análise de um conjunto literário latino-americano nos mesmos moldes de

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seu compadre de ideias, em busca de consolidação de um sistema literário latino-

americano. Se no Brasil, o sistema já pôde ser observado, conforme Candido,

desde o século XVIII, o restante da América Latina consideraria a instauração de

seu sistema literário apenas no século XX, a partir de 1910, quando a Revolução

Mexicana expôs ao mundo o drama do latino-americano e as antigas colônias

ibéricas do continente mostraram-se prontas a realizarem a passagem para a

contemporaneidade, provocando um efervescente movimento coletivo entre seus

países constituintes, recém-politizados entre os ditames do mundo grande

considerado “desenvolvido” (a partir do comunismo, da segunda guerra mundial,

do fascismo e do nazismo, que obrigou-os a posicionarem-se), cujo sentido

aproxima-se da noção de futuro, progresso, avanço, modernidade.

Esses movimentos febris passaram por três momentos históricos decisivos.

Cronologicamente: i) no século XIX, a partir dos processos de independência das

nações latino-americanas até alcançar, no século XX, o simbolismo e o

parnasianismo brasileiros que correspondem ao modernismo na América de língua

espanhola; ii) no século XX, com a América Latina em busca frenética de si

mesma, buscando suas raízes a partir de universalismos e cosmopolitismos,

conhecidos por Modernismo no Brasil e a correspondência hispano-americana, o

Vanguardismo; e finalmente, iii) após a Segunda Guerra Mundial, a narrativa

transculturadora que tenta buscar na oralidade e no passado mítico cultural o

âmago do ser latino-americano nos recônditos espaços da memória, fora da escrita

para tentar reescrevê-la, de um dentro particularíssimo para um coletivo que

reorganiza sua sociedade e identidade cultural (RAMA, 2009). O presente estudo

mira seu foco neste último momento.

Rocca (2006)9, em sua tese de doutorado, aborda a relação de admiração

intelectual entre o jovem Rama e Candido, suas teorias, e revela um panorama

literário brasileiro icônico a ser seguido ou cultuado à época, profundamente

analisado pelo sociólogo quando legitimou ótimas manifestações literárias como

representantes de um sistema nacional.

Outro brasileiro que contribuiria sobremaneira, com seus estudos

antropológicos, para a compreensão e o fortalecimento do sistema literário

9 Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas da USP, disponível em<http://www.teses.usp.br /teses/disponiveis/8/8145/tde-10082007-151634/pt-br.php>. Acessado emdezembro de 2015.

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sugerido por Rama, foi Darcy Ribeiro (COELHO, 2009)10. A partir de 1974, quando

Rama foi nomeado diretor literário da Biblioteca Ayacucho11, em uma ousada

iniciativa editorial, aberto a sugestões e importantes colaborações do sociólogo

Candido sobre títulos brasileiros que poderiam ser publicados e analisados no

projeto crítico-literário, nele inclui vinte obras tupiniquins, traduzidas para o

espanhol12, sedimentando de vez o diálogo da literatura brasileira com as

produzidas na américa espanhola e tonificando ainda mais o tripé autor-leitor-obra

sugerido por Candido, como já visto anteriormente.

Cada publicação da Biblioteca Ayacucho carregava um prólogo atualizador

da obra, desenvolvido por inúmeros críticos e autores colaboradores, entre eles os

amigos Antonio Candido e Darcy Ribeiro, cujo segundo exílio em Montevidéu, no

Uruguai (o primeiro havia sido na ditadura brasileira de 1964 a 1968), permitiu sua

participação no projeto da Biblioteca Ayacucho, entre outros. Coelho (2002), que

estuda as produções do exilado Darcy em seus dois momentos de exílio, entre

outros convidados brasileiros, atesta o fato:

O exílio de Darcy Ribeiro no Uruguai, depois do golpe militar de1964, mostra como o escritor brasileiro transformou a situação debanimento em produtividade, trabalho, ajudando a escrever, deforma crítica e atuante, parte da História cultural e política daAmérica Latina (p.212)

Com o golpe militar de 1973, muitos uruguaios tomam o caminhodo exílio. Ángel Rama estava na Venezuela, desde 1972, para

10 Ensaio “O papel do intelectual, a cultura e a Biblioteca Ayacucho: Antonio Candido, Ángel Rama eDarcy Ribeiro”, de Haydée Ribeiro Coelho, apresentado no Seminário Internacional “Jornadas Latino-americanas: Ángel Rama, um transculturador do futuro”, em novembro de 2009, em parceria entre oCBEAL (Centro Brasileiro de Estudos da América Latina, deste Memorial), o Centro Ángel Rama(FFLC/USP) e o Consulado do Uruguai em São Paulo, organizado por Flávio Aguiar e JoanaRodrigues.

11 A Biblioteca Ayacucho, segundo depoimento de Amparo Rama, filha de Ángel, que introduz acoleção de ensaios organizada por Flávio Aguiar e Joana Rodrigues em “Ángel Rama: umtransculturador do futuro”, em 2009, era, em seu início, o projeto de difusão cultural mais ambiciosode seu pai. Mais adiante em seu depoimento, ela diz que “a Biblioteca Ayacucho já não era o projetode registro da cultura de um pequeníssimo país, mas o registro da cultura de toda a América Latina.E, portanto, outro passo na escala de estruturar o pensamento do continente e, nessa direção secolocava a incorporação da cultura e da literatura do Brasil”. (p.16)

12 Nas cartas trocadas entre Antonio Candido e Ángel Rama, disponibilizadas por Amparo Rama parao Seminário Internacional “Jornadas Latino-americanas: Ángel Rama, um transculturador do futuro”,em 2009, podemos observar, em uma de 8 de outubro de 1974, de Candido a Rama, na “Lista Inicialpara começar pensar no caso”, vinte sugestões de obras brasileiras, separadas em A) Ficção, B)Poesia e C) Estudos, e a resposta de Rama: “Muy útil sobre tus primeiras aportaciones sobre lacontribuición brasileña de la Biblioteca Ayacucho. Quería conocer a los demás integrantes de lacomisión. Para mi, como ya para ellos que no te conocían será la pieza-clave de la parte brasileña delproyecto”. (p.26-27)

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ministrar um Curso na Escola de Letras da Universidade Central,quando foi surpreendido pelo golpe militar, não podendo regressarao Uruguai. É na Venezuela que Ángel Rama vai receber adelegação latino-americana para pensar na organização daBiblioteca Ayacucho. Estavam aí, como convidados, Darcy Ribeiro,Sergio Buarque de Holanda, Leopoldo Zea, Arturo Ardao e RobertoFernández Retamar (COELHO, 2009, p.221).

1.3 Os grupos sociais das revoluções, também literárias, latino-americanas

O século 20 começou com um bang, em 1914 – oBig Bang do qual, a Revolução Russa em 1917 foiapenas uma das consequências. A principal forçapolítica no século 20 foi o nacionalismo, não ocomunismo.

John Lukács. O fim do século 20 (p.15)

Dentro da literatura e também fora dela, as ditaduras, as perseguições

políticas, as revoluções político-ideológicas, os blocos continentais ideológicos de

esquerda ou direita, a nova ordem mundial, os massacres, torturas, guerrilhas e os

exílios eram a própria manifestação de uma modernização pouco escolhida e muito

imposta. O New Criticism, os movimentos beatnik e hippie e a Guerra Fria,

principalmente o crescente nacionalismo a que as nações latino-americanas

experimentavam em toda sua ira repleta de injustiças e contradições em si

próprias, ilustram o cenário.

Ribeiro (1978), ao ilustrar o processo histórico da América Latina,

desenvolve uma revisão crítica das teorias da evolução sociocultural, com o

objetivo de propor uma estrutura conceitual que situe os povos contemporâneos

dentro do continuum do desenvolvimento humano. Trata especialmente dos efeitos

da Revolução Industrial que obrigou o resto do mundo a modernizar-se sem

qualquer projeto ou sistematização, de forma praticamente aleatória e atabalhoada

(pelo menos no Ocidente). Para fazê-lo, destaca duas possibilidades que ilustram

de que forma as sociedades humanas transitam entre um e outro momento

evolutivo: através da aceleração ou da incorporação. A primeira, mais rara, permite

uma autonomia e expansão da língua, cultura e desenvolvimento a partir de sua

própria tecnologia e o enriquecimento a partir do trabalho das sociedades que

domina. A segunda, a atualização ou incorporação, relaciona-se aos povos

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dominados pelos acelerados que, ao serem “envolvidos e dominados por

movimentos de expansão de outros povos, foram reduzidos à condição de

proletariados externos não estruturados social e economicamente para si próprios,

mas para servir aos interesses e desígnios de seus dominadores” (RIBEIRO, 1978,

p.22).

Darcy Ribeiro, em Os dilemas da América Latina, de 1978, revela que os

movimentos revolucionários na América do Latina iniciaram-se, em grande parte,

devido às ações e autoconsciência social da ‘nova esquerda’, “expressão mais

elevada do amadurecimento da consciência crítica na América Latina”. O sociólogo

cunha o termo ‘nova esquerda’ para designar “um esquerdismo de vanguarda

integrado, principalmente por grupos intelectualizados dos setores intermediários

desligados das organizações partidárias, que atua como um núcleo da crítica, mais

voltado contra a moderação do movimento comunista do que contra o voluntarismo

dos grupos insurrecionais. Sua ação excede de muito, porém, a estes limites”

(RIBEIRO, 1978, p.190).

A nova esquerda teria sido responsável pela libertação da consciência

nacional depois de séculos de colonização e neocolonização e por utilizar-se de

suas manifestações culturais e artísticas como instrumento de conscientização do

subdesenvolvimento, desalienação e politização. É integrada, principalmente

por grupos de jovens iracundos, por líderes universitários, intelectuais eartistas, sindicalistas, cientistas, técnicos, por militares progressistas epolíticos radicais que foram proscritos pelas ditaduras regressivas. Algunsdeles, uma vez despertos para a percepção crítica da realidade de seuspaíses, ingressam no ativismo político. A maior parte, porém, se contentaem manter uma atitude lúcida e versátil, participando da vida política e dasatividades culturais como agitadores políticos, como conscientizadores oumeramente como intelectuais progressistas. Em qualquer caso, atuam comoum fermento que dá sentido e autenticidade à vida intelectual latino-americana, porque a vincula à luta revolucionária (p.191).

Atestando sua posição, Cortázar (2001) admitiria a personalidade política

implícita na literatura latino-americana e a responsabilidade social de seus autores:

Outra prova de responsabilidade pessoal como escritor comprometido creioestar dando hoje aqui, pelo simples fato da minha presença entre vocês.Durante dez anos me neguei a aceitar os tantos e claramente generosos ebem-intencionados convites que recebi de diferentes centros intelectuaisdos Estados Unidos, e em todos os casos minha recusa foi bem explicada(CORTÁZAR, 2001, p.117).

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Além da nova esquerda, Darcy Ribeiro cita os grupos virtualmente

insurrecionais, que compravam a briga do momento, sempre à espera de uma

pequena centelha que pudesse acender de vez o estopim da revolução,

constituem atualmente o contingente mais dinâmico das esquerdasrevolucionárias latino-americanas. São recrutados tanto no âmbito da novaesquerda, quanto entre os militantes da esquerda tradicional que se rebelamcontra a conciliação e o quietismo. E ainda entre os militares proscritos,principalmente sub-oficiais que se dispõem a lutar de todas as formas contraa ordem vigente. Sua expressão mais alta, nas condições da América Latinados 60, eram os combatentes guerrilheiros e grupos clandestinos urbanos erurais com eles identificados. Eram integrados, principalmente, por jovensmilitantes que vêem na experiência cubana o seu paradigma de revoluçãosocial. (RIBEIRO, 1978, p.210).

Recordando o esquema triangular proposto por Antonio Candido em seu

sistema literário (autor, obra e leitor), observa-se a formação da classe de autores

e leitores de consciência crítica amadurecida e seu instrumento de comunicação

cultural, social e politizante, que fundamenta e concretiza a força da literatura

latino-americana:

Assim é que, tanto os criadores quanto os consumidores da nova literatura,da nova música popular, do cinema e do teatro de vanguarda cumprem, aum tempo, a função de se libertarem de toda a sorte de agregaçõesculturais espúrias; e a de criar uma consciência crítica e combativa queaponta para a revolução social como a saída inevitável da situação deignorância e penúria em que estão mergulhados milhões de latino-americanos. (RIBEIRO, 1978, p.190)

1.4 Comarcas literárias e transculturação narrativa

Yo no soy un aculturado; yo soy un peruano que orgullosamente,como un demonio feliz habla en cristiano y en indio, en español yen quechua.

Arguedas

Para a composição de um sistema literário que abarcasse toda a América

Latina de línguas espanhola e portuguesa e respeitasse as particularidades

culturais de cada povo como um conjunto de vozes guerreiras que se

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autofortalecem, consciente da transição temporal de um imperialismo europeu para

um neoimperialismo norte-americano fortemente capitalista, seria necessário

expandir as barreiras geopolíticas e considerar cada região em sua autonomia

cultural, linguística e étnica em forma de comarcas literárias, formadas por tais

regiões culturais.

Assim, em um nível, Rama pontua inicialmente os países hispano-

americanos, que já não precisam considerar a língua como barreira; num nível

mais justificável quando amplificado, estão as regiões culturais e as micro-regiões

que as compõem, sendo possível aproximar, pelos mesmos vínculos ou afinidades

culturais, por exemplo, o estado do Rio Grande do Sul e o Uruguai e a região

argentina dos pampas:

a divisão em regiões, dentro de qualquer país, tem uma tendênciamultiplicadora que, em casos limites, produz uma desintegração da unidadenacional. (...) Esse segundo mapa latino-americano é mais verdadeiro que ooficial, cujas fronteiras foram, no melhor dos casos, determinadas pelasvelhas divisões administrativas da Colônia e, em uma quantidade nãomenor, pelos acasos da vida política, nacional ou internacional. (RAMA,2001, p.282)13

Rama consideraria, para delimitação inicial de suas comarcas a divisão

antropológica proposta em um ensaio sobre as tradições latino-americanas:

publicado em 1968, por Wagley:

A divisão antropológica maior, que ainda se encontra em Charles Wagley,fixa três grandes regiões latino-americanas: Afro-América (costa-atlântica,zonas baixas, cultivos em fazendas, escravidão, contribuição cultural negrae forte diminuição da indígena, regime senhorial), Indo-América (cordilheirados Andes, áreas limítrofes de zonas temperadas e frias, forte composiçãoindígena, agricultura e mineração, dominação hispânica, religião católica) eIbero-América (região temperada do sul, colonização tardia, imigraçãoeuropeia, escassa contribuição indígena e africana, pecuária e agricultura,regime de exploração burguês). (RAMA, 2001, p.283)

A pesquisa sociológica e antropológica de Rama fez com que ele

percebesse um imenso universo cultural dos povos latino-americanos, com um

13 Cf. ensaio “Regiões, Culturas e Literaturas”, publicado originalmente em 1982, sob o título“Transculturación narrativa en America Latina”, no México, pela Ed. Siglo XXI e reunido em “ÁngelRama: literatura e cultura na América Latina, por Flávio Aguiar e Sandra Guardini T. Vasconcelos(org), pela Edusp, 2001.

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feroz potencial para manifestar-se. Estratificou ainda mais as três grandes regiões

iniciais, em acordo, não só por um passado comum, mas também pelas literaturas

pós-1920 que manifestavam sua cósmica expressão ancestral na formação do ser

latino e a forma em que se diferenciavam como contrapartida de um sistema

político do qual se deve fugir. Salientou a seleção e eleição de símbolos que

pudessem representar cada comarca para reforçar, mesmo que diante da

subalternidade, seu orgulho de pertencimento e o legado de suas memórias, além

da reescritura da história latino-americana, também visível nos mitos reacendidos e

o uso do elemento mágico, o sagrado e o profano em diálogo. A intensa

necessidade de independência e reafirmação ideológico-cultural foram também

devidamente observadas por ele como critérios para análise e delimitação de cada

região cultural.

A América Latina, a um passo de ter seu passado engolido pela

modernidade, mais uma vez, dada a velocidade com que se impõe, grita com a

alma o que o corpo já não suporta, e o faz também pela literatura. As vozes dessa

alma, como ilhas literárias, “dotadas de uma relativa homogeneidade ou formas

aparentadas de criação artística que se influenciam mutuamente” (RAMA, 2013,

p.44), seriam então visualizadas conforme mapeamento preconizado por Rama: as

comarcas “pampiana” (parte da Argentina, Uruguai e sul do Brasil), “andina” (do

norte da Argentina, Peru até a Colômbia, Venezuela e Equador), “caribenha”

(Flórida, sul dos Estados Unidos e litoral atlântico da Colômbia e Venezuela), da

América Central de cultura maia ou asteca, a do Pantanal (parte do Brasil e da

Bolívia) e a da região amazônica. Fazia parte também dos planos de Rama a

inclusão de comarcas de línguas francesa, inglesa e holandesa que

compreenderiam as Guianas (RAMA, 2001). Seu trabalho era identificar, analisar e

unir os “ondes” literários em torno de suas culturas, buscar a unidade que lhe

permitiria fortalecer o trânsito das literaturas internamente entre as regiões e os

países da América Latina e externamente, com as demais nações do mundo que

nos leriam:

Acredito que o trabalho fundamental é construir um discurso através do qualseja possível aproximar as literaturas hispano-americanas e as brasileiras,com a obrigação de incluir no terceiro tomo, dos três planejados, algumcapítulo sobre a literatura de língua francesa nas Antilhas – Haiti, Martinica,Guadalupe e a parte francesa das Guianas -, outro sobre a literatura delíngua inglesa e, se possível, um sobre a literatura holandesa. Apesar denão começarem exatamente no século 20 – há alguns precedentes -, a

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verdade é que seu desenvolvimento se produz neste século. Portanto, nãofaz nenhum sentido sua presença antes deste último tomo, no qual sepoderá dedicar um capítulo a cada uma dessas literaturas14 (RAMA, 2008.p.171).

Em cada comarca, para lidar com o sincretismo advindo do contato entre as

culturas do dominador e do dominado, Rama buscou no conceito de

transculturação, de Fernando Ortiz, a chave-mestra para demonstrar como, através

da literatura, principalmente a romanesca, o latino-americano se reinventava diante

das imperiosas situações de dominação política, econômica, religiosa e intelectual,

nas esferas regionais, nacionais e internacionais pela sua ressocialização de sua

cultura própria, buscando no passado particular um futuro universal que o sintetiza

no geral como ser, e no particular como ser latino.

Ortiz, em 1940, havia observado as etapas de como uma cultura se

transfere a outra, estabelecendo nesse processo transitório a transculturação como

um espaço em que se perde parte de uma cultura precedente para adquirir parte

de uma presente, em que a dominante tem menor baixa cultural. As baixas, seriam

para o cubano a aculturação e a aquisição / criação de novos fenômenos culturais

advindos dessa hibridez seria uma neoculturação. Os centros urbanos teriam

assim um papel primordial como agentes transculturadores, pois transitava por

duas instâncias diferentes, ou seja, na relação com as metrópoles externas e na

relação com as regiões internas (RAMA, 2001)15.

Aplicado o conceito de Ortiz aos níveis narrativos, Rama observa que a

partir dos anos de 1930, com o movimento vanguardista da América espanhola e

modernista da América brasileira, tanto a literatura de cunho fantástico quanto a

caracterizada como realista-crítica, próprias da progressiva urbanização na

América Latina, em desejoso movimento de afirmação de seus domínios e em

franca expansão experimental, ameaçaram arremessar à extinção a literatura

regionalista, o que acarretaria

14 Texto de Ángel Rama, publicado em Ana Pizarro (coord.) sob o título La literatura latino-americanacomo proceso. Buenos Aires: CEDAL/Bibliotecas Universitárias, 1985, e reunido por Pablo Rocca(organizador), sob o título “Algumas sugestões de trabalho para uma aventura intelectual deintegração”. In: Literatura, Cultura e Sociedade na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG,2008.

15 Publicado originalmente na Revista de Literatura Iberoamericana, n.5, abril de 1974, sob o título(traduzido)“Os processos de transculturação na narrativa latino-americana” e reunido por FlávioAguiar e Sandra Guardini T. Vasconcelos em Ángel Rama: literatura e cultura na América Latina. SãoPaulo: Edusp, 2001.

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a extinção de um conteúdo cultural muito mais amplo, que só por intermédioda literatura alcançaria a sobrevivência, cancelando-se sua ação eficaz,integradora, sobre o meio nacional, que aparentemente não podia sercumprida por outros canais, pelo menos em seu nível artístico (RAMA;2008, p.213).

As narrativas urbanas, voltadas para o progresso, em suas tendências

aceleradas de inovação e renovação, transformam-se num eixo entre o novo

moderno (externo europeu e em seguida norte-americano) e o tradicional local

(regional arcaico), comportavam-se como o irmão mais velho que desconta no

mais novo as pancadas recebidas por outrem repetindo as mesmas violências de

dominação cultural, reforçando a ideia de submissão.

Ao regionalismo, restava adaptar-se ou “transmutar-se”, como queria Rama.

Para conservar seus valores e retransmiti-los sem contradições em suas heranças

culturais, os regionalistas adaptam-se à situação dando um passo interessante:

buscam no internacional (ou seja, na cultura externa à qual estão submissos os

vanguardistas e modernistas urbanos em seus movimentos revolucionários e com

a qual se comunicam em âmbito de pátria e nacionalismos) a passagem direta,

pulando a instância urbana e equilibrando elementos entre o universal e o local

(muitas vezes o extremamente local), para trazer à tona um particular cultural ainda

mais arraigado que deve ser preservado, satisfazendo ao mesmo tempo o diálogo

com a instância citadina que reconhece e/ou critica no uso de sua sobrevivência:

Mas serão aqueles escritores mais profundamente inseridos em culturas desociedades encravadas e dominadas que, dispondo de estruturas culturaisplenamente elaboradas com elementos autóctones ou acrioulados de longadata, terão de encontrar equivalências originais e insólitas para asincitações externas, respondendo a elas a partir de uma penetração emsuas culturas tradicionais. Porque o impacto modernizador gera em primeirolugar uma retirada defensiva, um mergulho protetor no seio da culturaregional e materna, com um premente apelo a suas fontes nutritivas, mastambém com o desejo de reexaminar de forma crítica suas condiçõespeculiares, as forças de que dispõe, a viabilidade dos valores aceitos semanálise, a autenticidade de seus recursos expressivos. (RAMA, 2008; p.214)

Considerando essas forças como vetores do movimento transcultural a que

se refere o uruguaio, ou os impactos culturais advindos do choque e coexistência

de cada instância com as demais (o interno, regional e particular; o moderno,

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urbano; e o exterior, fora da América Latina, universalizante), seria possível

observar que: a) o regional, para sobreviver à modernidade com seu sistema de

valores mais locais, age sem escalas na instância mediadora da cidade, trazendo o

âmago cultural do interior através também das urbanidades e indo diretamente ao

universal; b) ao utilizar-se de códigos afins no diálogo estabelecido com esse

universal, retorna a si própria em profundidade tal que traz consigo traços

marcantes de culturas que se atualizam literariamente; c) quando trata de regiões

internas, esquecidas, excluídas e/ou periféricas, busca na substância mais primeva

e profunda de sua cultura, séculos no tempo, o sentido de sua memória muitas

vezes por outro trajeto histórico; d) os ventos que sopram da cidade para o campo

permitem refluxos e novos redemoinhos transculturais, como mediadores que

permitem-nos conviver em um mesmo período temporal, através de uma reanálise

de cada cultura em si mesma e na outra, o mesmo valendo para uma revisão

histórica dos processos civilizatórios e revolucionários na América Latina. Em

síntese, o movimento e o diálogo entre as instâncias sinalizam os conflitos

relacionais do ser humano frente às duas realidades que se lhe apresenta: cultura

tradicional profunda x cultura urbana modernizante; cultura local particularíssima x

cultura cosmopolita.

Faz-se pertinente a percepção de que a linha tênue que suporta,

equilibrante, essas tensões culturais, seja canalizada para a instância média, isto

é, as cidades, que serão produtoras de classes revolucionárias e guerrilheiras e

também as grandes consumidoras dessa literatura veicular que, na irrefreável

busca do ser latino-americano em sua mais profunda memória cultural, procede a

uma revisão tanto dos costumes mais ancestrais quanto da própria história dos

povos, fazendo brotar daí, um “novo nacional” que será aceito como releitura da

ancestralidade latino-americana interna e externamente, independente da ficção

que a representa.

A essa profundidade cultural alcançada em sua autoconsciência, Rama

caracteriza como ‘marco antropológico’ na literatura latino-americana (algo entre o

falido regionalismo da década de 1930 e o realismo crítico do pós-guerra em 1945,

com a mudança de eixo da Europa para os EUA), e está também relacionada à

velocidade com que o progresso preconizado pela modernidade afeta essa

reciclagem sociocultural em seu processo transculturativo. Faz parte de um

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caminho para que as literaturas latino-americanas possam inscrever-se no tempo

como portadoras das heranças culturais às próximas gerações de leitores e

autores.

A transculturação narrativa pode se dar em três níveis, pelo uso de uma

língua literária própria da criação artística, em que se percebe a absorção de um

traço da modernidade (RAMA, 2001).16

No plano linguístico, há o acolhimento de línguas indígenas autóctones ou

próprias de grupos minoritários; os dialetos regionais das línguas colonizadoras do

continente latino-americano (espanhol, português ou francês), reconstrução de

modelos arcaicos originais ou uma linguagem nova totalmente literária,

considerando também o abandono de certas formas lexicais para a assimilação e

utilização de formas sintáticas excentricamente recombinadas e moduladas ou

ainda subvertidas.

No plano da composição literária, observam-se os pontos de contatos entre

as cidades vanguardistas e o regional em decadência. O processo que se observa

é completamente transculturativo, e há a assimilação tanto de elementos

fantásticos na narrativa quanto do realismo-crítico característico das urbanidades,

“dotando-as de uma destreza, uma percepção do real e um contágio emocional

muito maiores, embora também em concordância com uma visão fragmentada”

(RAMA, 2001, p.221)17. O monólogo discursivo que mescla o clássico com a

espontaneidade narrativa (como Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas,

publicado em 1956), ou a narrativa vinda de outra perspectiva, diretamente do

popular ou aquele com um discurso próprio de sua cultura subalternizada, em vias

de exclusão, ou simplesmente pouco abordada porque não se lhe imputou

qualquer importância (como Juan Julfo, em Pedro Páramo, publicado em 1955) são

exemplos das vozes da oralidade popular que se inserem no corpo da narrativa.

No plano dos significados a revolução foi maior. O seio da cultura narrado

com sua cadeia própria de lógica e nexo, de acordo com as tradições mitológicas,

a compreensão e/ou incompreensão que se instaura entre o sagrado e o profano.

16 Reunido por Flávio Aguiar e Sandra Guardini T. Vasconcelos, Edusp, 2001. O artigo de Rama éintitulado “Os processos de transculturação na narrativa latino-americna”, publicado na Revista deLiteratura Iberoamericana, n.5, abril 1974, Maracaibo, Venezuela, pela Universidade de Zulia, Escolade Letras.

17 idem.

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É quando finalmente o autor não só se coloca no lugar do outro para narrar os

trâmites do funcionamento de seu pensamento, mas quando incorpora e se

transforma, de fato, no outro. Os elementos das narrativas fantásticas ganhariam

aqui um peso além do observado até então por serem indescritíveis, incríveis (no

sentido de crença) ou metafísicos apenas para uma determinada cultura que a

observa (simbolizada pelo leitor), mas para si própria, não há qualquer ficção. Não

só a verdade perde importância como a verossimilhança a conquista, lançando a

base coexistente de um irracionalismo e idealismo integrados nos signos e seus

significados. As culturas indígenas, assim como o passado mais remoto das

regiões latino-americanas exercem uma atração especial e um fascínio único aos

narradores da época.

O mito de uma cultura é a ficção do outro; para a primeira, ele é

simplesmente uma verdade incontestável ou uma realidade possível. Rama não

comentou qualquer situação sobre a proximidade do autor com a comunidade que

culturalmente narra sua história, mas é muito possível e merece um estudo à parte

observar a distância dos autores que o fazem biograficamente: assim como Scorza

teve pais mestiços e submissos ao sistema e conviveu na infância com os nativos

peruanos chola (Ciclo da Guerra Silenciosa – 1970 a 1979, por exemplo), assim

também o eram Arguedas em sua peruanidade incaica e Guimarães Rosa em sua

mineiridade. Talvez também por isso, a partir da necessidade de olhar sua própria

cultura por fora dela (do exílio), poder-se-ia alcançá-la mais profundamente: a

distância cultural, física e geográfica do autor à sua cidade / região natal impele-o a

um olhar diferenciado e nostálgico a respeito de sua terra e sua gente, fazendo

com que Scorza revalorize-os e busque um passado cultural mais longínquo

através da literatura.

Rama desenvolveu o conceito de transculturação narrativa a partir de

análise de obras que considerou melhores exemplares: Grande Sertão: Veredas,

do brasileiro Guimarães Rosa (1955); Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo

(1956); Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez (1967); e Os

Rios Profundos, do peruano Arguedas (1958), sendo esta última o ícone máximo

da expressão da transculturação narrativa.

Quando analisa o processo histórico da América Latina, diferencia através

dos termos ‘aceleração evolutiva’ ou ‘incorporação’, e ‘atualização histórica’, na

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qual os colonizados teriam autonomia cultural e organizacional de sua estrutura

social; no primeiro caso, ou a conformação como “povos dependentes que não

existem para si, mas para atender às condições de vida e de prosperidade de

outros” (RIBEIRO, 1978; p.21). No tempo, seriam dois momentos cronológicos dos

processos civilizatórios em geral, não apenas os que vieram após à Revolução

Industrial como causa específica para um efeito comum: primeiro vem a dominação

através da força e o subjugar da cultura do dominado (incorporação) pela

imposição política e econômica e, em seguida, viria um momento em que

independência e necessidade de sobrevivência da cultura dominada obrigam-na a

conviver com a dominância e vai surgindo então uma cultura híbrida, sincrética,

com valores das duas partes, que se alimenta da cultura opressora exatamente

para dela se libertar e fortalecer-se como povo ou nação. A transculturação

narrativa alcançaria um estágio posterior na qual as duas partes comungam

culturas em equilíbrio comensal à medida que causa um deslocamento histórico e

leva os pós-colonialistas a buscarem suas raízes culturais mais profundamente na

ancestralidade (temporal) ou mais espalhadamente pelas flores e frutos da planta e

do organismo social (espacial), tradução e transcriação de uma primitividade étnica

para o presente.

“‘Deus que fala’ é o significado do nome daquele rio”, diria Arguedas quando

traduz o quíchua para o espanhol (ARGUEDAS, 1959, p.26) e permite a analogia

com o título da obra, Os Rios Profundos, que poderiam significar a busca da

memória perdida, a palavra de um Deus esquecido nas profundezas do Rio

Apurímac, entre outros rios, normalmente ao redor dos quais se assentam as

populações.

Na obra, a cultura incaica é revalorizada não apenas através de uma ficção

repleta de passagens biográficas que aproximam o autor de seu público, mas

também a partir de uma estética cultural antropológica e social que ilustra o choque

entre culturas e o vazio que se instaura na falta de lógica ou sentimento de

incompreensão em relação aos valores e costumes das classes opressoras na

própria narrativa (plano dos significados, dentro do processo de transculturação de

Rama). Fica latente o abismo entre a mística católica que vem como um tornado

catequizando o povo peruano e a remanescência incaica, que traz maior

sentimento de orgulho e identidade nacional à população, apesar de fazer parte,

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dada sua estratificação social, das classes mais prejudicadas e subalternas

peruanas, compostas por índios e mestiços. Em sua temporalidade, traz o Inca em

toda sua apreciação mítica na narrativa em primeira pessoa por Ernesto, uma

criança mestiça em deslumbramento com sua ancestralidade obrigada a viver num

colégio interno católico em sua dificuldade para assimilar os conceitos dos

dominantes.

Arguedas atualiza, em Os Rios Profundos, a tradição na narrativa, trazendo

a linguagem e a cultura inca, de forma bilíngue (quíchua e espanhol) e até

pedagógica, presente, por exemplo, nos huaynos (canção e dança populares de

origem incaica), em que o ser conversa com o pássaro, ambos nivelados em seus

aspectos naturais (ARGUEDAS, 1959; p.32):

Os índios, em maio, cantam um huayno guerreiro:

Kilinchu yau,Wamancha yau,Urpiykitam k’echosk’ayki,Yanaykitam k’echosk’aykik’echosk’aykim,k’echosk’aykimApasak’mi apasak’mi.

Kilincha!Wamancha!!18

Um deslocamento temporal que pode ser tomado como exemplo da

transculturação narrativa de Rama, no plano linguístico, em Os Rios Profundos, de

1958, seria trazido pelo universo cultural inca e sua profundidade. Na narrativa de

Arguedas, está em um episódio (Capítulo VI – “Zumbayllu”) em que o protagonista

18 Tradução de Arguedas:

Ouve, francelho,ouve, gavião,vou te tomar sua pomba,vou te tomar sua amada,hei de tirá-la de ti,hei de levá-la, hei de levá-la.

Ó, francelho!Ó, gavião!

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contempla os poéticos e lúdicos movimentos de um pião, brinquedo que, para

explicá-lo em todo seu esplendor, recorre à linguística para trazer o sentido através

de seu nome original e reafirmá-lo numa cadeia de significados19:

A terminação quíchua “yllu” é uma onomatopeia. “Yllu” representa, numa desuas formas, a música que produzem as pequenas asas em vôo; músicaque surge do movimento de objetos leves. Essa voz se assemelha a outramais vasta: illa. “Illa” designa certa espécie de luz e os monstros quenasceram feridos pelos raios da lua. Illa é um menino de duas cabeças ouum bezerro que nasce decapitado; ou um penhasco gigante, todo preto ebrilhante, cuja superfície aparecesse atravessada por um veio largo derocha branca, de luz opaca; illa também é uma espiga cujas fileiras de milhose entrecruzam ou formam redemoinhos; são illas os touros míticos quehabitam o fundo dos lagos solitários, das altas lagoas rodeadas de sapé,povoadas de patos negros. Todos os illas provocam o bem ou o mal, massempre em grau extremo. É possível tocar um illa e morrer ou alcançar aressurreição. Essa forma “illa” tem parentesco fonético e certa comunidadede sentido com a terminação “illu” (p.69).

Zumbayllu! No mês de maio Antero trouxe o primeiro zumbayllu ao colégio.Os alunos pequenos rodearam-no.- Vamos ao pátio, Antero!- Ao pátio, irmãos, irmãozinhos!Palácios correu entre os primeiros. Saltaram o terrapleno e subiram aocampo empoeirado. Iam gritando:- Zumbayllu, zumbayllu! (p.72)

- Zumbayllu, zumbayllu!Repeti muitas vezes o nome, enquanto ouvia o zumbir do pião. Era como ocoro de grandes tankayllus20 fixos num lugar, prisioneiros sobre a poeira. Ecausava alegria repetir essa palavra, tão semelhante ao nome dos docesinsetos que sumiam cantando na luz (p.73)

Depois de justificado o caráter cultural do objeto, que traz aos olhos do

pequeno índio um maravilhamento respeitoso e religioso, o narrador explica não só

de que forma o objeto existe no mundo, mas como ele próprio o enxerga:

Fiz um grande esforço; empurrei os outros alunos mais velhos que eu econsegui chegar ao círculo que rodeava Antero. Tinha nas mãos umpequeno pião. A esfera era feita de coco comum de venda, dessespequeninos cocos cinzentos que vêm enlatados; a ponteira era grande efina. A esfera tinha quatro buracos redondos à maneira de olhos. (p.71)

19 A edição do romance pesquisado, pelo Círculo do Livro, não contém a data de publicação. “Os riosprofundos” foi publicado, orginariamente, em 1959. A tradução desta edição é de Gloria Rodriguez.Foi decidido não citar as referências em cada citação, pois todas se referem à mesma obra.

20 Espécie de inseto semelhante ao besouro, abelha ou vespa, que ao polinizar as flores, vibra suasfortes asas produzindo um forte zumbido.

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Ao promover o deslizamento do leitor por diferentes universos culturais e

trazer a cumplicidade da fruição da leitura de mundo pelo infante narrador,

utilizando como plano descritivo a geografia natural, a fauna e a flora, o autor logo

volta ao encantamento justo que a mítica cultura inca provocava em si, e o

protagonista trata de transcrever seu movimento no tempo, agora de volta do

universal ao particular, em velocidade maior que a primeira, dada a primeira

alteração das distâncias históricas entre os períodos e povos nelas

compreendidas, trazendo vida e movimento sagrados a um brinquedo inanimado

anteriormente profano pela sua qualidade simples de objeto, como um processo de

entificação (devir do sagrado – ser da natureza):

O pião parou um instante no ar e caiu num extremo do círculo formadopelos alunos, onde havia sol. Sobre a terra solta, sua longa ponteira traçoulinhas redondas, deslocou-se lançando rajadas de ar pelos seus quatroolhos. Uma sombra cinzenta aureolava sua cabeça giradora, um círculonegro o partia pelo centro da esfera. E seu canto brotava daquela faixaescura. Eram os olhos do pião, os quatro olhos grandes que se afundavam,como num líquido, na dura esfera. A poeira mais fina se levantava emcírculo, envolvendo o pequeno pião. [...] O canto do zumbayllu se internavano ouvido, avivava na memória a imagem dos rios, das árvores negrasagarradas às paredes dos precipícios. (p.73)

Olhei para o rosto de Antero. Nenhum menino contemplava umbrinquedo daquela maneira. Que semelhança havia, que corrente entre omundo dos vales profundos e o corpo daquele pequeno brinquedo móvel,quase protéico, que cavava cantando a areia em que o sol pareciadissolver-se? (p.74)

Como grande parte das obras produzidas no pós-guerra que tentavam trazer

pelo particular regional uma memória ancestral universalizante decorrente do

processo transcultural narrativo, representadas pelas suas comarcas literárias,

agentes do mesmo processo modernizador latino-americano, em direção ao mundo

outro, que pode estar próximo àquele e ainda assim exterior, pode-se apontar que:

i) há uma graduação de transculturação narrativa nas literaturas produzidas no

continente que poderá, ainda que sem valores concretos, figurar em escala entre o

mínimo e o máximo (Rios Profundos), de acordo com a figuração maior ou menor

nos três planos narrativos (linguístico, da composição literária e dos significados);

ii) há ainda muitas outras obras que podem (e devem) ser estudadas sob a luz dos

processos transculturativos propostos por Rama para a narrativa, pois que o

uruguaio nos deixou muito cedo, em 1983.

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Sem desmerecer o afinco de Ángel Rama em consolidar um sistema literário

que abarcasse toda a América Latina, faz-se necessário também creditar as

contribuições do crítico dominicano Pedro Henríquez Ureña e do venezuelano

Mariano Picón Salas em torno dos conceitos atribuídos ao uruguaio de “comarcas

literárias” e “transculturação narrativa”, respectivamente. Conforme Cunha (2013)21,

o primeiro já admitia e chamava atenção para a análise de um conjunto literário

pelas “peculiariades regionais acima das arbitrárias divisões geopolíticas”, embora

seu projeto estivesse calcado em uma unidade lingüística comum e, portanto,

contemplasse apenas os países latino-americanos de língua espanhola. O

segundo já teria utilizado em De la conquista a la independencia: tres siglos de

historia cultural hispanoamericana, em 1944, o conceito de transculturação de

Fernando Ortiz:

O intelectual emprega em seus ensaios o termo criado pelo cubano comoum sinônimo de outros: síntese, cultura mestiça ou híbrida, que,posteriormente, ao longo da história cultural do continente americano, emmuitos casos se tomaram rumos distintos pelas sutilezas e nuanças comque foram sendo destacados por diversos estudiosos, tais como mestizaje,utilizado por muitos autores; peruanidad, por José Carlos Mariátegui;hibridez cultural, por Néstor García Canclini; heterogeneidad e migrancia,por Antonio Cornejo Polar; e transculturación narrativa, por Ángel Rama.Portanto, a partir da leitura desses ensaios de Picón Salas, é possívelperceber a influência de uma síntese cultural na transculturação narrativa,além de sua presença em La ciudad letrada (1984) (CUNHA, 2013, p.140).

Nomenclaturas à parte, apropriadas tanto à Teoria da Literatura como às

análises sociológicas e antropológicas constantes nos estudos de Rama, Cunha

(2007)22, observa que os três níveis sugeridos pelo uruguaio podem ser também

interpretados como língua, estrutura narrativa e cosmovisão, mas destaca que o

importante é observá-los, no âmbito literário, como constituintes de um processo

total do encontro entre culturas.

Cunha (2007), em “A transculturação narrativa e o projeto intectual de Angel

Rama”, capítulo conclusivo de sua tese de doutorado, chama-nos a atenção para o

21 Publicado em “Ángel Rama: um transculturador do futuro”, pela Ed. UFMG, em 2013, sob o título “Atransculturação narrativa de Ángel Rama: algumas de suas influências e intercâmbios”, por RoseliBarros Cunha, numa coletânea de ensaios reunidos por Flávio Aguiar e Joana Rodrigues (orgs.).

22 Tese de doutorado de Roseli Barros Cunha, defendida na Universidade de São Paulo, em 2005 epublicado pela editora Humanitas, em São Paulo, 2007, sob o título “Transculturação narrativa: seupercurso na obra crítica de Ángel Rama.

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fato de que Rama trabalhou a transculturação narrativa pontualmente, a partir de

obras que elegeu icônicas para a análise.

A transculturação narrativa seria uma possibilidade de entendimento daprodução literária latino-americana. No entanto, como o próprio Ángel Ramaenfatizará, não deveria ser considerada um método para aplicaçãoindiscriminada. A proposta do uruguaioera que o procedimento por eleempreendido ao projetar seu conceito na literatura a partir da obra deArguedas fosse tomado como exemplo de realização de estudo teórico emetodológico, e não como um modelo acabado. O estudo deveria partir doconehcimento das próprias condições de produções do autor enfocado edas características de sua região (CUNHA, 2007, 402-403).

Assim, para realizar tal operação, seria necessário que o crítico

apresentasse um vasto conhecimento acerca da comarca cultural em que se

inseria o autor a ser analisado, a fim de deslindá-lo em seu processo criativo,

observando os procedimentos formais e ideológicos do autor, e finalmente

amplificar a leitura cultural da obra a ser estudada.

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Capítulo 02 - A Dança Imóvel: análise da obra homônima de scorza – entre a

história, a biografia e a literatura

2.1 Canetas e metrancas

A literatura é o anúncio de grandes apocalipses.(Manuel Scorza, em entrevista a Soler, pelaRádio Televisión Espanhola, 1977).

1983. O ano em que nascia para o mundo A Dança Imóvel, de Manuel

Scorza, era o mesmo que fatalmente tiraria o autor dele, num acidente de avião em

Mejorana del Campo, na Espanha. A sorte é que Scorza já havia “dançado” com a

obra músicas passadas e únicas, as de sua vida. Na vida quanto na morte, na

guerra como no amor, na literatura como na política, na crítica como na ideologia, no

cultural como no social. Naquele voo, com o mesmo destino, o uruguaio Ángel

Rama, que fez a mesma ponte aérea e ampliou as vozes latinas e finalmente incluiu

o Brasil no sistema literário americano latino, também estava. Devo-lhe o

entendimento e muito da sustentação para a compreensão da obra de Scorza e de

outros autores latinos dos quais tive a chance de ler suas obras. A tragicidade do

acidente traz uma melancolia e um vazio além das palavras, pois foi com elas que

realizaram sua maior revolução. Principalmente porque teriam muito mais a dizer e o

mundo seria um lugar melhor se estivessem vivos, novas contribuições na literatura

e na crítica seriam observadas e às revoluções atuais seriam bem-vindos. Deve

realmente haver algum motivo para que morram tão cedo, deve ser para que

passemos uma vida para entendê-los e uma réstia idosa para procedermos às

melhorias e modificações. Além dos dois, compartilhavam o mesmo vôo o escritor

mexicano Jorge Ibargüengoitia e a escritora argentina Marta Traba. Todos viajavam

para o I Congresso Internacional da Cultura, que se iniciaria em 29 de novembro

daquele ano, em Bogotá, na Colômbia.

Seis anos antes, Scorza dava uma entrevista à Radio Televisión Espanhola,

na qual observava o papel político do crítico e escritor latino-americano, e cinco

situações mereceram destaque instantâneo para a análise de sua última obra.

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1. A primeira elucida como a questão de como o Realismo Maravilhoso

proposto por Todorov (1970), como um gênero fechado em si mesmo e fadado a um

fim precoce, pôde ser desconstruída em relação a como a literatura latino-

americana, imbuída dos estigmas de um ficção imaginativa e política, era

compreendida até então. Embora não cite qualquer pensador, fica latente que

Scorza adota uma visão antropológica ao considerar que a forma como uma cultura

enxerga outra, em suas diferenças, causa um estranhamento tal que a realidade

daquele que a narra parece ser vista como ficção por parte daquele que a lê. Dessa

forma, Scorza atribuiu à literatura latino-americana uma função onírica (parte do

insconsciente coletivo de um povo) e uma função religiosa (na qual os costumes e

tradições culturais se sustentam), perpassados por uma política social que pode

servir de eixo principal ou ponte entre elas. A forma como o peruano lidava com a

realidade e a ficção, pôde ser verificada quando explicava seu processo criativo e

sua vida: ele, perseguido político, também pela sua verve revolucionária e

guerrilheira, não só defendia uma classe como um povo. Mostrou as fotografias do

seus personagens protagonistas nas baladas ou cantares escritos de 1970 a 1979:

fictícia era a prosa, o conduzir pelo estilo da carruagem da linguagem, não o

conteúdo. Falava sobre Redoble por Rancas (traduzido no Brasil como Bom Dia

para os Defuntos, 1970) e a luta dos comuneros23 frente a uma multinacional

canadense (a Cerco del Pasco Corporation), que invadiu centenas de hectares

através de uma cerca, a qual Scorza compara a uma entidade tão metafísica que os

habitantes de Rancas desenvolvem uma espécie de um estrabismo ou miopia

coletiva a ponto de não vê-la, apenas sabiam que existia e que crescia

indefinidamente, e não ultrapassavam-na a não ser para morrer. “O coletivo significa

que o delírio está na realidade, não no texto em si” (SCORZA, 1977), disse, em

relação a um caso em que houve um “problema” com um sindicato peruano em que

muitos morreram e que a própria república do Peru endossou o ditame da Corte de

Cuzco como um enfarte coletivo. Ora, de acordo com tal absurdo da realidade, a

ficção e/ou capacidade onírica da literatura podia ser considerada como uma

representação social, ainda que crítica e sarcástica, da normalidade e do cotidiano.

23 Segundo a entrevista de Scorza à Rádio Televisión Espanhola, em 1977, são os campesinos, masdentre estes, os “homens fortes que sofrem no dia-a-dia traumas muito profundos, tão profundos quecabe-nos perguntar se já fomos humanos” (traduzido). Disposto em https://vimeo.com/80466863.Acessado em 31 de janeiro de 2013.

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Havia também foto da citada cerca. O autor justifica a amostragem de

fotografias tanto dos personagens quanto de objetos e situações, não apenas com

objetivo de trazer verossimilhança aos escritos fictícios que se mesclavam com a

própria história do povoado de Rancas, metonímia de todo o povo peruano que

sofria com as relações aculturantes advindas das invasões multinacionais ilustrativas

dos pólos dominadores político-econômicos e sócio-culturais em relação ao Peru,

mas também para denunciar atrocidades, registrar documentalmente e para que

fosse possível entender “a qualidade histórica da literatura” (SCORZA, 1977).

Enfim, para evitar a total aculturação, transculturava-se narrativamente,

trazendo os personagens reais mais tradicionais diretamente do mundo para as

páginas da literatura e da história, sob a perspectiva do açoitado, o que seria uma

tônica em grande parte das manifestações literárias latino-americanas. Ainda em

relação à cerca, se o foco era a opressão, a injustiça e a denúncia, então podia não

ser somente um símbolo de como a literatura latino-americana opera para ilustrar

sua cultura: ia além da simples metáfora da cerca como uma gigantesca lagarta de

arame porque passava do profano para o sagrado com uma forte crítica social e

revolucionária embutida no processo. Não era o realismo mágico ou uma imagem

carnavalizada da revolução, com suas alegorias e tensões, que buscaria uma cultura

afim latino-americana. Pelo contrário: o realismo mágico era visto e assim

considerado apenas pelo não latino. Para o latino-americano, a ficção era mais um

ludismo à parte da realidade e da revolução. Scorza relatou nesta entrevista de 77

que a novela era “uma máquina de sonhar” e que a proximidade da realidade para a

descrição da realidade não poderia ser senão o grande tema da literatura latino-

americana. A antropologia social e o respeito e orgulho à cultura própria é que

permitiam que tais construções imagéticas fossem assimiladas pelo leitor, como

Arguedas o fazia através do personagem Ernesto, em Rios Profundos (1971). Os

valores tradicionais ligados à natureza, característicos de um povo, permitiam que

Scorza narrasse a história de Garabombo (personagem feito a partir do cidadão

Firmino Formosa), invisível, por exemplo, para o não cholo e o não criollo, visto

apenas para os de sua etnia ou dela descendente, o que ilustra não só como se

distanciam as ex-colônias de suas metrópoles como também servem para responder

à altura delas, dar-lhe o troco24. Nelas, cantavam abertamente o suplício e jogavam

maldições terríveis contra aqueles que os oprimiam. 24

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Da mesma forma, criaria o personagem Agapito Robles (terceira balada), a

partir da relação de admiração e comparação a Emiliano Zapatta25. No caso de

Scorza, embora haja aqui uma diferença temporal e governamental que deve ser

levada em consideração, a imagem da cultura que saía realisticamente fantástica

aos olhos do Outro (estrangeiro) via literatura poderia ser compreendida e/ou

assimilada sem qualquer metafísica ou necessidade racional de tradução de

metáforas por aqueles a quem defendia e que, na maioria das vezes, não

precisariam lê-lo para achá-lo incrível (no sentido de “fantástico”, “mágico” ou

“maravilhoso” – se lhes fosse cabível, achariam-no talvez humorístico). É um grito de

independência social que ecoa num outro, de libertação literária da intelectualidade

europeia. Havia séculos que o ranço da colonização nos obrigava a copiar e adaptar

os estilos da moda da matriz ocidental, e finalmente o vanguardismo (nos países

latinos de língua espanhola) e o modernismo (no Brasil), possibilitaram que a cópia

fosse reciclada sem pudor, ou melhor, com a fúria cultural de cada comarca literária,

brilhante artifício de Ángel Rama para unificar o sistema literário latino americano,

considerada sua heterogeneidade. Assim, a utilização do elemento “onírico” era

fundamental para apimentar as diferenças culturais entre autor e corpo de leitores e,

além disso, podia ser considerada, da forma como colocada, um ludismo cúmplice

entre o texto e o leitor e, acima de tudo, um pré-requisito para a penetração no

universo cultural por ele representado.

2. A segunda compreensão foi a respeito dos títulos de seus capítulos. Nas

cinco novelas, baladas, ou ainda cantares, como gostava de chamá-las o autor (em

referência aos menestréis, trovadores e cantadores medievais, o que nos permitiria

observar ainda uma pitada picaresca e carnavalesca em suas narrativas) que

compõem a Guerra Silenciosa26, podemos encontrar títulos como “Onde o absorvido

Os escravos descendentes ou diretos de bantos no tempo da escravidão no Brasil faziam-no damesma forma, irônica e sarcasticamente, desferiam verdadeiros despaupérios a seus feitores quepediam-lhes para dançar e cantar em sua própria língua. Próximo a Milho Verde / MG, háremanescentes desse povo que vive em sua comunidade e seus direitos sociais e sua tradição sãorespeitados, caso raro, só possível graças a projetos sociais e ONGs que parecem ser a única forçade resistência étnica e cultural no Brasil.

25 Líder e herói da revolução mexicana de 1910.

26 A Guerra Silenciosa é composta por cinco novelas que narram a luta e as atrocidades entrehumildes campesinos peruanos contra grandes latifundiários entre 1950 e 1962 no interior do ValeCentral do Peru: Cantar 1: Bom dia para os defuntos (1970), Cantar 2: Garabombo, o invisível (1972),Cantar 3: O cavaleiro insone (1975), Cantar 4: Cantar de Agapito Robles (1977), Cantar 5: A tumbado relâmpago (1977).

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leitor conhecerá, sempre por conta da casa, o despreocupado Pis-Pis” até “Da

insurreição universal de eqüinos tramada pelo Abígeo e mais o ladrão de cavalos”.

Scorza admitiu, na entrevista, usar o formato de títulos que se expliquem por si só

como forma de homenagem aos personagens, uma vez que havia tomado parte na

batalha, e seus melhores personagens eram também seus grandes amigos. Assim,

seu compromisso com o presente era literário e político. Sua literatura atingiu os dois

papéis desejados: descreve uma realidade comprometida com a sociedade peruana

e o faz através de uma ficção engajada com a tradição cultural de um povo

minoritário, denunciadora de políticas opressivas internas e externas. Não à toa, foi

convidado por Alvarado27 a libertar o “Olhos de coruja”, ou Hector Chacón, o

Nictálope, um de seus personagens, cúmplice das batalhas políticas e sociais no

povoado de Rancas citadas em Bom dia para os Defuntos (SCORZA, 1972). Chacón

encontrava-se, à época, condenado à prisão por vinte e cinco anos em uma no meio

da floresta amazônica peruana, e Scorza achou que nunca mais o veria, pois

quando o primeiro foi encarcerado, o último ainda era fugitivo – havia sido preso

durante a ditadura do General Odría e precisou se exilar em Paris.

Supõe-se que em 1977, época da entrevista, Scorza ainda estivesse a dois

anos de publicar a última balada da Guerra Silenciosa, mas o embrião de “A Dança

Imóvel”, de 1983, já estivesse em processo de amadurecimento, já que o romance,

em um de seus níveis narrativos, relata a fuga e os percalços de um guerrilheiro,

Nicolás, da prisão do Sepa, a mesma prisão em que ele, Scorza, fora libertar seu

amigo pessoal, Hector Chacón (personagem homônimo apelidado “Olhos de Coruja”

nas novelas anteriores). Ali o autor experimentou as condições do presídio, observou

as tristes e desiguais relações entre os presos (dentre os quais encontrava-se

Hector) e os agentes penitenciários, traumatizantes quanto às que provavelmente

vivenciou no tempo da ditadura, quando foi perseguido e precisou exilar-se. A

relação de parentesco entre as formas nominais dos sintagmas Nictálope / Nicolás

não deve ser de toda descartada: ambos eram fugitivos, ambos lutavam pela

revolução peruana. A diferença era temporal: enquanto o primeiro foi realmente

confinado ao presídio do Sepa, pela luta nos vales centrais peruanos e carrega a

causa dos campesinos in loco, e também figurou como personagem na Guerra

27 Juan Francisco Velasco Alvarado, Chefe Militar do Comando das Forças Armadas do Peru,responsável pelo golpe de Estado em 1968, quando ocupou a presidência do Peru até 1975, atravésda chamada “Revolução da Força Armada”.

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Silenciosa, o segundo parecia ser de uma outra classe de guerrilha, mais guevarista,

intelectual e urbana. A forma de unir classes em torno de uma revolução comum,

tanto a rural quanto a urbana, inaugura a abordagem de uma nova preocupação de

Scorza em ir além do que a contemporaneidade literária lhe ditava: seriam

necessárias a ampliação dos direitos do campesino28, aliada aos direitos dos jovens

dos centros urbanos, ambas simbologias da libertação do povo peruano diante da

opressão política para metaforizar não só a independência intelectual e literária

americana-latina de suas fôrmas europeias, mas ainda o compromisso com a crítica

pós-moderna.

Dado seu compromisso de narrar o presente da subversão como o seu

próprio e o de todo o povo peruano em vias de libertação mental e psicológica, além

da política, econômica, social e religiosa, não se pode deixar passarem

despercebidas as coincidências entre autor, narradores e personagens de A Dança

Imóvel, que só seria publicado anos depois, pois considerado o processo criativo do

autor, têm grande chance de terem sido também reais. A começar pelo narrador, que

é um escritor em Paris, que se confunde com a pessoa do próprio autor, em busca

da aceitação de um editor e visando à publicação de um romance sobre a fuga de

um guerrilheiro latino-americano (no caso, peruano) das terríveis e incansáveis

buscas do sádico e torturador Capitão Basurco. Modificada a história, o Peru ainda

precisa ser libertado. Infere-se que, já que repete ou transmuta uma estrutura similar

utilizada nas baladas que fecham a pentalogia da Guerra Silenciosa para designar

seus capítulos, os títulos capitulares, como “XXI Recordações que o sargento

Morales costumava misturar em sua velhice”, “XXVIII O cacique Siviro descobre que

entre seus guerreiros há um a mais” poderiam indicar que a Dança Imóvel, que

carrega em si um jogo de oposições semânticas também perceptíveis nas novelas

anteriores cujo conjunto foi publicado como “Guerra Silenciosa” ou “Guerra calada”,

também fosse parte de um conjunto de obra posterior, talvez o primeiro romance de

um conjunto próximo, o que ainda deve ser melhor estudado. O fato é que,

considerando que fosse A Dança Imóvel, de 1983 realmente um primeiro volume de

uma série futura, pela similaridade dos processos criativos scorzianos, há de se

intuir que tais personagens de seu último romance fossem também tão importantes

28 O termo análogo em português seria “camponês”. Optou-se por utilizar-se o termo original por causa do campesinato, grupos sociais dedicados às atividades agrícolas, com diversos graus de economia, comuns no interior do Peru e de grande parte dos países latino-americanos.

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para o autor como o foram os personagens de sua pentalogia de baladas. Sendo

ainda pouco estudada, um estudo biográfico posterior auxiliaria na compreensão do

sentido da obra em muito.

Mas algo mudou Scorza, talvez seus longos anos de exílio, os lugares por

onde passou e morou, entre eles México, Brasil e França. Houve um momento alado

do mundo que o fez se deslocar diretamente do campesinato para o operariado e a

classe média. A modernidade era uma obrigação, não só uma realidade inevitável.

Os deslocamentos no tempo, a busca do ancestral mais ancestral, da memória mais

memória, do excluído mais excluído, para revitalizar o espaço sagrado da tradição

haviam sido profanados e a única opção pareceu ser apelar, filosófica e criticamente

para uma banalidade existencial e iterativa: fomos submetidos à força do capital e do

metal, ficamos órfãos de deuses, adotamos outros seres sagrados para suprir nossa

imensa carência de existir no desconhecido antes de ser no conhecido, e enquanto

ainda desenvolvíamos apavorantes Síndromes de Estocolmo29 em relação aos

raptores de nossa memória, ainda havia verdades e fábulas que figuravam

indubitavelmente mais importantes, que finalmente arrepiassem as penas do condor

e os pelos do jaguar. Não houve tempo para reflexões, a não ser dos pensadores e

intelectuais, que na maioria das ocasiões, se antecipam aos atos políticos, algumas

vezes por pura sorte: fomos lançados diretamente da modernidade ao inominável e

globalizado jogo dos poderes. Do particular mais particular, saltamos para um

universalismo que nos deixou rotos. O movimento em si, não é algo nada novo,

todas as sociedades, mais cedo ou mais tarde, se rendem a uma tecnologia mais

eficiente que a anterior; o único problema para nós, que começamos tudo de novo a

cada oscilação de cada “nova metrópole”, é a velocidade com que o fazemos.

Da máquina de escrever à impressora, as revoluções saíram do papel para as

ruas e campos e agora, no século XXI, retornaram ao papel. O reconhecimento

transformou-se em celebridade, as celebridades passaram a ser fanaticamente

cultuadas e a obra de arte teve sua alma diminuída como nunca. A literatura ficou

diluída e a política ficou confinada entre os que teorizam-na e os que vivem seus

efeitos viscerais. Alguns bons vagalumes sobrevivem, e sua arte é a devolução de

29 O transtorno mental conhecido por “Síndrome de Estocolmo” refere-se à admiração e/ou amor quepessoas que passaram por situações de grandes tensões durante um assalto, sequestro, ouopressões similares em que há privação de liberdade e violência, desenvolvem por aqueles que osorpimiram ou os fizeram sofrer. O termo é referência a um assalto ocorrido em Estocolmo, na Suécia,em 1973.

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um passado, um troco ao mundo, com um algo mais que transcende a estética

simples da forma para alcançar uma localidade de belezas e destroços por trilhas

surpreendentes, carregam em cada fosforecência uma configuração extramundo de

compreensão do presente. Didi-Huberman (2011) nos conta que esses raros

fazedores de arte e outros tantos da América e do mundo estão cada vez mais

invisíveis. Mas a América Latina sempre foi cheia deles! Coincide o fato de serem

transculturais? Traços de transculturação podem muito bem ser indícios de

sobrevivência não só da cultura que é envolvida pela arte, mas também de seus

autores.

Como for, o comércio da arte obrigou que as indústrias investissem não só

nas mercadorias, mas também em seus autores. Do pop ao pop-star. Mascarado de

democratização do acesso às artes, diluiu seus valores sociais e culturais para caber

num best-seller, livro de bolso, ou pior ainda, versões reduzidas. Até que pararam de

escrever com foices, flautas e metralhadoras. A injustiça na América continua, tão

escancarada quanto encoberta, mas a velocidade da era moderna e a extinção dos

vagalumes podem ter qualquer relação com o fato de as revoluções políticas e

sociais estarem um tanto desaceleradas.

Na Era da Informação, era para multiplicarmos, e não para dividirmos. Nem

os copistas, tão criticados em suas peripécias, poderiam ser mais culpados pelas

suas artimanhas interesseiras ou despreocupadas do que pelos processos mais

invasivos da cultura que a nossa realidade promete hoje. Scorza diria apenas, sobre

a modernidade que nos assola, implacavelmente, na contra-mão do social, que

vamos sendo empurrados para as classes mais inferiores da sociedade, perdendo

nossa cultura porque não reagimos e os tempos das revoluções estão no fim, e

“porque tratamos de sonhar que o possível tinha sido impossível” (SCORZA, 1977).

Entrevista a Soler, em https://vimeo.com/80466863).

3. Mas Scorza mudou algo. A terceira compreensão vem da relação dos

títulos de suas obras com o que disse em sua entrevista. Depois de passar por

problemas com a multinacional Cerro Del Pasco Corporation, foi ameaçado por

utilizar os nomes reais dos funcionários e agentes da rebelião e, embora defendesse

que os problemas sociais por ela causados ao Peru fossem muito mais graves, deu

uma função jurídica à literatura. A literatura latino-americana resistiria, como “um

grande tribunal de apelação das causas perdidas de seu povo, última instância”,

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embora ela mesma ainda não pudesse nunca penetrar a profundidade do que fosse

uma revolução popular. Para o autor, “quando a coisa se perde totalmente, não se

pode apelar [apenas] à literatura” (SCORZA, 1977. Entrevista a Sóler, em

https://vimeo.com/80466863). Sua interferência como literato obteve um impacto tão

interessante que quando o entrevistador mostra-lhe um jornal, no Periódico de Lima,

o qual noticia a manchete “Presidente el 24 / Entregará 60 mil hectares de tierras”,

(datado de 24 de junho de 1977), e observa que após grande manifestação do povo

de Rancas30, sua feição modifica-se, dada sua admiração por Símon Bolívar31 contra

as Forças que simbolizariam “o império espanhol”. Já havia dito minutos na

entrevista que antes que a Corporação havia invadido muito mais hectares, mas

reconhece a vitória, não pelos números, mas porque, conforme conta, se a pior

tortura era amarrar um vivo a um morto e obrigá-los a caminhar juntos por um

povoado de “cincuenta casas”, pior seria se fossem dizimados.

Além de deixar claro, em 1977, que o maior sonho hispano-americano seria a

liberdade (especificamente a liberdade literária), considera que a literatura, e aí, sim,

refere-se à latino-americana, já teria uma “una voz propia”, ao deduzir que não

haveria “equivalente político em Cién años de Soledad, Paradiso, Pedro Páramo”32 e

que a comunidade linguística seria a “primera cosa contra el imperialismo, que

también ya fue inglés”. Defendia esperançosamente uma “união literária”,

considerado o alto número de seus falantes da língua espanhola. Nota-se aqui uma

preocupação de unidade para fortalecimento de um bloco continental, se não

cultural, ao menos literário, e Rama concordaria.

As condições de causa e efeito do passado para o presente não podem ser

associadas entre a literatura e história sem se contradizer no pensamento de

Scorza: na literatura da viagem de sua própria vida, disposto a morrer pela causa

peruana, mas antes disso, ver a libertação de uma comunidade injustiçada,

denunciou a eterna peleja dos países latino-americanos e não mediu palavras nem

30 Comunidade dos Vales Centrais, que vive a mais de 4500m de altitude e que nos anos 59 e 60passou por uma rebelião contra as ditaduras oligárquicas dos latifundiários poderosos no Peru.Scorza diria na entrevista, relacionada ao ciclo de baladas, sobre o “planeta índio”, algo tão distanteque a história oficial não relatava, e os índios também não falavam a respeito.

31 Líder político venezuelano, militar atuante nas guerras de independência da América Espanhola, entre os séculos XVIII e XIX.32 Obras de Gabriel García Márquez (1967), José Lezama Lima (1966) e Juan Rulfo (1955),respectivamente.

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evitou os radicalismos literários, embora sua “festa sangrenta”33 estivesse apenas

começando. Sua literatura contribuiu, ou antes, inibiu as forças dominantes da época

e obrigou as autoridades peruanas, já que expostas, a uma revisão política e penal

dos acontecimentos em Rancas. Não apenas explicitou ao leitor uma visão circular e

histórica dos atropelos a que os cholos e criollos foram submetidos como

desmantelou um cartel (até então intocável) composto por um sistema de dominação

cultural latifundiário e oligárquico, tão comumente aplicado à maioria, senão a todos,

os países da América Latina. Scorza diz ainda nesta mesma entrevista de 77 que

“para o lado de fora”, a extinção do povo de Rancas parecia ser absolutamente

normal, mas que “para o lado de dentro”, nunca haviam de extingui-los, pois “há

riquezas porque souberam preservar os costumes e as tradições comuneras,

expulsas da história”.

O que precisa ser apreendido, portanto, para o caso de Manuel, é o papel do

fazedor de arte literária, seu compromisso com a causa social peruana entre 1959 e

1960. Sempre auto-explicativo, justifica sua forma de expressão entre dois eixos

narrativos: a história política que atravessa, transversalmente, a função religiosa e

função onírica, e a relação entre elas a partir do “compromisso com a informação

dos fatos que relata”. Não era nenhum estereótipo de guerreiro ou mártir, mas a

partir de seus textos, também jornalísticos em alguns momentos de sua vida,

sempre denunciantes de uma desigualdade social, produziram um supra-efeito

sobre aqueles que o liam de longe. Os personagens de suas narrativas, tão reais

quanto a validade de um ser humano comum lutando contra as injustiças de um

imperialismo cujos limites invisibilizavam outro ser humano comum, pareciam

necessitar de certo direcionamento para a luta. Como um tradutor de ideologias,

Scorza aproveitou-se de sua facilidade de comunicação através da escrita para

despertar no povoado de Rancas a necessidade de movimento: a estaticidade ou

inércia certamente os levaria, além do iminente genocídio, a uma injusta extinção

cultural. Compreendia que a intelectualidade era apenas uma situação dialógica dos

seres, e não a ignorância recíproca daqueles que desejavam a exterminação de

uma cultura em detrimento de outra, de álibis inaceitáveis. Não se pode dizer que

por Scorza, muitos acres de terra foram devolvidos aos índios, mas também não se

pode dizer que, se sua literatura não houvesse alcançado tamanha repercussão pela

33 Referência a Yawar Fiesta, obra de Arguedas. Yawar: sangue (quíchua).

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sua Guerra Silenciosa, o mesmo não ocorreria. Sua caneta tinha poderio de projétil,

saída de um passado antigo rumo a um futuro insaciável.

4. Uma outra compreensão reflui da entrevista quando relata que “no se

puede hablar de una sola literatura”, “somos muchas literaturas”, e vai de encontro

ao que estabelece Rama em suas comarcas literárias (de mesma cultura, etnia e/ou

expressividade), em toda a pluralidade cultural que, lançado o desafio, tenta abarcá-

las dentro das regiões, em um conjunto ímpar.

Assim, Scorza, que observou até então na entrevista, dois eixos básicos na

literatura latino-americana, inclui agora três níveis básicos para sua produção

novelística pessoal: os níveis político, religioso e o linguístico. A partir deles, seria

possível buscar um deslocamento temporal para a (re)construção do sujeito. O

linguístico seria o presente através do passado; o político seria o presente em busca

de futuro; o religioso seria o passado eterno, sincretizado para resistência, suporte

para manutenção da tradição. Em todos eles, há tensões que a literatura latino-

americana utiliza, não exatamente por escolha, mas por devir de sua expressão

contemporânea. Para tanto, Scorza ilustra que, diante desses três níveis, não haveria,

na política, obras tão icônicas quanto Cem Anos de Solidão, de Márquez, Paradiso, de

Lezama Lima ou de Pedro Páramo, de Juan Rulfo e esse seu discurso está em total

consonância com as obras elencadas por Ángel Rama para ilustrar a transculturação

narrativa na literatura latino-americana contemporânea, que considera as dimensões

linguística, compositiva literária e no nível do significado. Scorza estaria considerando

a composição literária como parte da dimensão linguística e incluindo na dimensão

dos níveis do significado os planos político e religioso. Embora aparente uma

classificação diferente, todas as dimensões estariam contempladas em processos

transculturativos tanto por um quanto por outro pensador, já que a preocupação

sociológica e antropológica de ambos é visível.

5. Uma última compreensão ressurge dessas águas scorzianas. Sobre si

próprio, fonte melhor do que as diversas informações encontradas na internet

repletas de desencontros e equívocos, indagado sobre as suas peripécias humanas,

o autor revela que nasceu em Lima, em 09 de setembro de 1928, filho de pais

serranos, criado por povos indígenas. Segundo ele, o pai e o avô (pai do pai) haviam

passado por massacres terríveis, fuzilamentos e atrocidades e sua mãe, proveniente

dos Andes Centrais, também experimentaria a injustiça e a desigualdade sociais. À

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época da entrevista, Scorza admitiu ter casado e descasado duas vezes, com três

filhos e uma “maravillosa niña de cuatro años”. Observou, com simplicidade, os

temas que perpassam sua obra poética, dividindo-as entre livros de protesto e livros

de amor e salientou que sua obra mais artística literariamente estava nas novelas

prosaicas e não em suas poesias. A discrição da qual se utilizou em torno de sua

pessoa na entrevista pode explicar, talvez, a manifestação da vontade da não

exposição de sua pessoa, além de proteção àqueles a quem ama em relação a

antigos ranços e perseguições políticas, fato que dificulta a busca de outros dados

em relação à sua biografia. Não citou nomes, nem entrou em detalhes sobre as

questões pessoais e não deixou dúvidas, na entrevista, de que ali estava para falar

exclusivamente sobre seu trabalho literário e/ou político, não sobre o homem Manuel

Scorza. Protegendo-se a si mesmo e aos seus, podem muitos de seus personagens

estar andando pelas ruas das cidades latino-americanas, o mesmo valendo para

aqueles em que se baseou para criá-los ou recriá-los.

Em síntese, como a entrevista versa sobre suas obras anteriores publicadas

entre 1970 e 1979 e não exatamente sobre seu último romance (talvez primeiro de

uma nova coleção), todas as relações e conclusões aqui percebidas são inferências

possíveis, mas não fechadas em si mesmas. Sobre a qualidade de sua última obra

de arte, em seu processo transculturativo advindo do choque entre culturas, da

superfície para a profundeza, vemos em Scorza a necessidade sóbria de delegar à

literatura latino-americana uma função crítica e sociopolítica que o legitima como

autor de uma literatura genuinamente latino-americana, em sua comarca andina.

Para o caso de A Dança Imóvel, em comparação com as ficções prosaicas

passadas, do êxodo rural para o urbano, na trama quanto no psicologismo de seus

personagens, tais adequações só vêm ratificar o “progresso”, eterno fetiche humano,

para diferenciar-se de vez dos outros animais, e o medo que dele brota. Quando

sugere que o tempo é imóvel, mas que as escolhas sociais são móveis, percebe-se

também uma outra metáfora que se desprende do título. Assim como a narrativa se

dá em níveis diferentes, a “dança imóvel” também pode ser lida como a dificuldade

(imobilidade) de se manter a cultura peruana (dança) diante da ávida modernidade,

ou ainda a dicotomia entre as revoluções do pensamento (nos planos políticos e nas

relações amorosas) que não dão frutos concretos no seio da sociedade, que

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caminha para uma nova subalternidade, pois que não passam do plano teórico para

o prático.

Em auxílio à montagem do pensamento do homem Manuel Scorza diante de

suas convicções políticas, que perpassarão suas obras romanescas, podemos

perceber que em sua carta de renúncia do partido aprista34, de 1954, publicada em

Lima, Peru, em 1954, Scorza posiciona-se firmemente contra um regime de base

marxista que se vendia ao imperialismo norte-americano ao utilizar a força do

Estado contra o próprio povo peruano, em revolta contra seu fundador:

O que o aprismo pôde demonstrar está melhor descrito nestas palavras deseu fundador: "Nossa experiência histórica da América Latina, eespecialmente a do México, muito importante e contemporânea, mostramque o imenso poder do imperialismo dos ianques não pode ser afrontadosem a unidade da povos latino-americanos. Mas conspiram contra essaunidade, ajudando-se mutuamente, nossas classes governantes e oimperialismo, e como ele ajuda aquelas e lhes garante a continuação dopoder político, o Estado, instrumento de opressão de uma classe sobreoutra, transforma em armas nossas classes dominantes nacionais e oimperialismo para explorar as nossas classes produtoras, e nosso povocontinua dividido. Consequentemente, a luta contra as nossas classesdirigentes é indispensável, o poder político deve ser tomado pelosprodutores e a produção deve ser socializada. "(Artigo O que é o APRA?,publicado pela Labour Monthly35). Esta doutrina, ideologia inicial da APRA,foi completamente distorcida por Haya de la Torre; e não como elepretendia, no sentido dialético hegeliano, mas vergonhosamente traída.36

É interessante perceber que Scorza não simplesmente escreve uma carta de

renúncia. Engajado politicamente por fortes tendências marxistas socializantes, o

peruano vai dialogando com o que foi dito e publicado (portanto, em sentido

34 APRA: Alianza Popular Revolucionaria Americana. Partido de Centro-Esquerda, fundado por Victor Raúl Haya de la Torre, que contribuiu para a formação dos partidos políticos populares no Peru, com vistas de expansão para a América Latina.

35 Revista associada ao Partido Comunista da Grã-Bretanha, com artigos de esquerda publicados de 1921 a 1981.

36 Tradução minha. Texto original: “Lo que el aprismo fue demuéstrarlo mejor que nada estas palabrasde su fundador: “Nuestra experiencia histórica en América Latina, y especialmente la muy importantey contemporánea de México, demuestran que el inmenso poder del imperialismo yanqui no puede serafrontado sin la unidad de los pueblos latino-americanos. Pero como contra esa unidad conspiran,ayudándose mutuamente, nuestras clases gobernantes y el imperialismo, y como éste ayuda aaquéllas y les garantiza el mantenimiento del poder político, el Estado, instrumento de opresión deuna clase sobre otra, deviene arma de nuestras clases gobernantes nacionales y arma delimperialismo para explotar a nuestras clases productoras y mantiene dividido a nuestro pueblo.Consecuentemente, la lucha contra nuestras clases gobernantes es indispensable, el poder políticodebe ser capturado por los productores y la producción debe socializarse.” (En el artículo ¿Qué es elAPRA?, publicado por Labour Monthly). Esta doctrina, razón de ser histórica del APRA, ha sidototalmente negada por Haya de la Torre; y no como él pretende, en dialéctico sentido hegeliano, sinovergonzosamente traicionada”.

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comprobatório) por Victor Raúl Haya de La Torre ao longo dos anos, citando livros,

artigos de revistas (LIFE), dados da Secretaria do Comércio dos EUA e até mesmo

num discurso em um teatro em Bogotá, usando tal estratégia dialógica tanto para

atacá-lo quanto para defender-se, Scorza acusa-o incisivamente de corrupção (no

sentido de corromper-se) e flertar com o imperialismo estadunidense, sob o subtítulo

“Treinta Años Después”, já que o partido havia sido fundado em 1924:

O que aconteceu entre 1924 e 1954? O que aconteceu que justifiquetamanha negação? Desapareceu o perigo que nos espreitava em 1924?Claro que não. De acordo com os dados incontestáveis do Ministério doComércio dos Estados Unidos, os investimentos (gastos) de capitais dosEUA na América Latina chegavam, em 1897, a 300 milhões de dólares; em1919, eles subiram para 2.000 milhões; em 1942, eles alcançaram 2.800milhões; em 1947, remontavam a 4.700 milhões; e em 1952, a soma foi de5.700 milhões. Uma criança perceberia esse esmagador avançoimperialista: em 22 anos (1897-1919) os gastos aumentaram em 1.700milhões de dólares; em seguida, em 7 anos (1943-1950) excederam essevalor em 1.900 milhões; e, em seguida, em apenas dois anos (1950-1952)aumentaram em 1.000 milhões de dólares. 37

De crítica ácida, dá adeus a seu fundador, acusando-o de permitir que os

preceitos e valores iniciais do partido fossem vilipendiados e distorcidos, após

comprovar a incoerência do líder máximo da APRA, entre demagogias e

antagonismos ideológicos. Termina a carta com um sarcástico “Goodbye, Mr. Haya”

para aproximá-los dos ideais imperialistas norte-americanos, em oposição aos ideais

marxistas em que se baseou a ideologia partidária em sua fundação:

Se Haya de la Torre não mais acredita [nos valores do partido], já nãofalamos a mesma língua. Isso é tudo. Não há razão, tampouco, para odesespero. O fracasso de Haya de la Torre é o fracasso de um homem, nãode um povo.

Aqui os caminhos se separam. É chegado, portanto, o momento dadespedida: Goodbye, Mr. Haya!

37 Tradução minha. Texto original: “¿Qué ha sucedido entre 1924 y 1954? ¿Qué ha sucedido quejustifique tan rotunda negación? ¿Desapareció el peligro que nos acechaba en 1924? Por supuestoque no. Según los inobjetables datos de la Secretaría de Comercio de los Estados Unidos, lasinversiones de capital norteamericano en América Latina llegaban, en 1897, a 300 millones dedólares; en 1919 ascendían a 2,000 millones; en 1942 alcanzaban 2,800 millones; en 1947remontaban 4,700 millones; y en 1952 la suma era de 5,700 millones. El criterio de un niño deescuela bastaría para percibir el arrollador avance imperialista: en 22 años (1897-1919) lasinversiones aumentaron en 1,700 millones de dólares; luego, en 7 años (1943-1950) superaron esacifra: 1,900 millones de dólares; y después, en sólo 2 años (1950-1952) aumentaron 1,000 millonesde dólares”.

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Manuel Scorza38

Ao final da entrevista, com o objetivo de esclarecer melhor de onde são

provenientes suas fontes, consta:

"Esta carta de renúncia do conhecido poeta Scorza ao Partido Aprista foipublicada no jornal mexicano El Popular, e aqui a transcrevemos, levando-se em conta a importância da decisão tomada pelo seu autor."

Os subtítulos, em maiúsculas, são originais ou pertencem à edição do ElPopular.

Créditos aos esforços generosos do companheiro e irmão socialista-scorziano Guillermo Yucra Moreno.

Jaime Guadalupe Bobadilla

Lima, 22 de dezembro de 2009 "39

Um sarcasmo semelhante ao empregado em direção ao fundador da APRA

seria marca registrada de seus personagens frente a seus dominadores nas novelas

e romances referente às passagens políticas. Em A Tumba do Relâmpago, última

novela do ciclo de baladas iniciadas em 1970, por exemplo, ilustra o mesmo

pensamento de quando se desfiliou do partido aprista, já justifica sua posição

marxista a partir do título do capítulo 48, intitulado “Por que os prefeitos, mesmo

sendo provisórios, devem hospedar-se no Peru e não nos Estados Unidos?”. Ou

ainda quando, na mesma obra, à maneira de artigo jornalístico, inicia um capítulo

com a seguinte manchete: “O MOVIMENTO COMUNAL DO PERU denuncia a prisão

de seus dirigentes em Cerro Del Pasco e a preparação do massacre das

comunidades de Yanahuanca e Yaruscarán” e finaliza-o como autor do artigo,

inserindo-se no processo social revolucionário das comunidades campesinas diante

das multinacionais imperialistas que assolaram o Peru entre 1959 e 1961:

38 Tradução minha. Texto original: “Si Haya de la Torre no lo cree, ya no hablamos el mismo lenguaje.Eso es todo. No hay razón tampoco para desesperarse. El fracaso de Haya de la Torre es el fracasode un hombre, no de un pueblo. / Aquí se separan los caminos. Ha llegado, pues, el momento dedespedirse: ¡Good bye, mister Haya! / Manuel Scorza”

39 Tradução minha. Texto original: “Esta carta de renuncia del conocido poeta Scorza al PartidoAprista, apareció en el diario mexicano El Popular, y de él la transcribimos teniendo en cuenta laimportancia de la decisión tomada por su autor. / Los subtítulos, en altas, son originales o pertenecena la edición de El Popular. / Entrega debida al generoso esfuerzo del compañero y hermanosocialista-scorziano Guillermo Yucra Moreno. / Jaime Guadalupe Bobadilla / Lima, diciembre 22 de2009”.

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UMA PERGUNTA AO PAÍSNesta hora crucial de sua história, chegou para o país o momento deperguntar se os comuneiros no Peru são ou não são peruanos.Chegou o momento de perguntar se os milhões de indígenas que formamnossas comunidades têm algum direito ou se, para eles, existem apenas afome, a miséria e a violência. Quando começaram a conquistar o Peru os espanhóis discutiam se osíndios pertenciam ou não ao gênero humano.Perante a Justiça e a História afirmamos que a resposta a esta perguntaainda continua negativa no Peru.

MANUEL SCORZASecretário Político doMOVIMENTO COMUNAL DO PERU

[Expreso, Lima, 12 de dezembro de 1961]

(SCORZA, 2011, p.254-255)

A fim de introduzir-se de vez na história que não se conta, entre a literatura e

a política, ainda em A Tumba do Relâmpago, no capítulo 44, “Um tal de Scorza

começa a meter-se em camisa de onze varas”, um diálogo entre os personagens é

esclarecedor na questão do sarcasmo scorziano, que não poupa ninguém e nomeia

todos os bois do imenso rebanho político peruano:

- Cada matéria paga custa vinte mil soles. Fazendo um esforço, eu poderiacontinuar levantando esse dinheiro. Mas há outro problema: o diretor dojornal, José Antônio Encinas, me disse há alguns dias que a Cerro de PascoCorporation ameaçou cortar-lhe a publicidade.

Ledesma ouvia Manuel Scorza com ar de preocupado.

- A denúncia é importantíssima. Os jornais fazem um silêncio sistemáticosobre os problemas dos camponeses. Não há ano em que deixe deacontecer algum massacre. E o que os jornais informam sobre isso? Aquimesmo, em Cerro de Pasco, pensa você que La Antorcha informa algumacoisa? Mas, agora, graças às denúncias do Movimento Comunal,começaram a chegar de Lima alguns correspondentes especiais.

(SCORZA, 2011, p. 276)

Em A Dança Imóvel, também vemos a proximidade entre a vida e a obra do

autor. Já que adentra suas próprias ficções como personagem, as pistas que

podemos reunir em sua narrativa caracterizam, ainda que de maneira parcial e bem-

humorada, o próprio Scorza. Para incluir os latino-americanos no conjunto dos

pensadores e artistas importantes, inventa uma situação em que o escritor-

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personagem, sentado junto a seu editor, disposto a convencê-lo de publicar seu

romance, vê o escritor Manuel Scorza passar diante de seus olhos:

Três prêmios Nobel, dois de Medicina, um de Física, acabavam de almoçar,despercebidos, e ninguém também reconheceu Jacques Monod. Entraramcasais provincianos. Entraram escandinavos nostálgicos de hareng baltiquecom creme. Do bar saíram Isaura Verón, Salomón Resnik, Ana Taquini eManuel Scorza. O Vaca Sagrada viu-os e, com sua equivocada crença deque aproximar-se dos inteligentes o torna um deles, cumprimentou-oscerimoniosamente e tratou de se demorar.

(A Dança Imóvel, p.16-17)

Em entrevista a José Julio Perlado, professor titular do Departamento de

Periodismo I da Universidade Complutense de Madrid, em 1979, pinçam-se outros

excertos que ajudam a compor o humor e o pensamento de Scorza, no que diz

respeito à literatura e à política latino-americanas. Nessa entrevista, em que Scorza

esclarece que não deve ser considerado um poeta social pelos livros de poesia que

escreveu tomado de raiva pelos anos de ditadura do general Odría (1948-1956), ou

de outros cujo tema é o amor. A sociedade seria tema abordado em suas novelas.

Questionado sobre a novela indigenista, afirma que há de se desfazer alguns mal-

entendidos sobre o termo: “é como se eu dissesse ‘novela espanholista’, coisa que

seria absurda, ou ‘novela toureirista’. Esta é uma redução depreciativa. Há racismo

na literatura”.40 Além disso, muitos não-indios escreveram sobre os índios sem

conhecê-los de verdade e que muitas crônicas e registros documentais permanecem

ainda pouco conhecidos. Propõe que o termo “indigenista” fosse banido da literatura

ao observar que Arguedas, em Os Rios Profundos, narra a história de um menino

em busca de seu pai, em tom existencialista e profundo do ser humano em geral, em

nível dostoievskiano e não apenas a condição indígena. Scorza considera que o

autor que melhor se encaixaria no “Planeta Índio”, por descrevê-lo pelo lado interior

de sua cultura, seria Arguedas e, em seguida, ele próprio. Ángel Rama (1974), ao

desenvolver um balanço histórico literário e expor sua teoria de transculturação

narrativa, declara que

40 Texto original: “es como si yo dijera novela españíolista, cosa que sería absurda, o novela torerista. Es una cosa un poco despectiva para reducir. Hay racismo en literatura”.

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Em relação às tendências regionalistas anteriores, os transculturadoresregistram igualmente a perda do uso das linguagens dialetais, rurais ouurbanas, e, claro, das línguas indígenas, e mesmo no campo lexicográficoabandonam muitos termos com os quais os “crioulistas” salpicavam seusescritos, limitando-se às palavras de uso corrente que designam objetosconcretos ou aos neologismos amplamente aceitos. Compensam isso comuma ampliação significativa do campo semântico regional e da ordemsintática, a ponto de inventar, na região andina, equivalências lingüísticasespanholas para o quíchua que, provavelmente iniciadas por Arguedas,acabaram consolidando uma língua artificial e literária, cujas últimasmanifestações estão nos romances de Manuel Scorza.

(RAMA, 2001, p.219)41

Em determinada parte desta última entrevista estudada, Scorza elucida uma

questão importante sobre a criação de seus personagens em relação com o tempo

do acaso do fim, ou ainda, da fatalidade. Num dado momento de A tumba do

relâmpago, os personagens do livro percebem que foram fabricados ou tecidos não

pela realidade, mas pelas mãos de uma cega, que permite uma consciência

experimental contextualizante de um espaço-tempo. Ao ler o último romance do ciclo

de baladas, o leitor percebe que os outros quatro anteriores são

como espelhos vistos por outro espelho; porque a [personagem] cega[representa] a fatalidade, a mão que vem conduzindo os homens através detodas as histórias. Com quem fala um ser humano?, Um homem, com quemfala? Não fala com o homem que está diante de si, fala com outro homem,com o fantasma de seu pai, com o fantasma de sua mãe; fala com seusantepassados [familiares] que estão influenciando sua mente, em seusonho.42

(SCORZA, 1979, entrevista a José Julio Pelardo).Ao mesmo tempo em que tudo é ou parece ser (auto)biográfico, o autor

reconhece a atemporalidade dos cinco romances componentes do ciclo de baladas,

e que o plano do inconsciente (onírico) sustenta-se sobre uma realidade conhecida

no presente pelos habitantes de Rancas, mesmo que às vezes retroceda ao ano de

1702, outras vezes a 1520, ou avançando no futuro a 2030 ou 2040, motivo pelo

qual em O cavaleiro insone os calendários ficam enlouquecidos.

41 Publicado originalmente na Revista de Literatura Iberoamericana, n5, abril de 1974, Maracaibo,Venezuela, Universidade de Zulia, Escola de Letras e reunido entre outros textos de Rama por FlávioAguiar e Sandra Guardini T. Vasconcelos (orgs.) sob o título “Ángel Rama: literatura e cultura naAmérica Latina”, pela Edusp, 2001).42 Tradução. Texto original: “como espejos mirados por otro espejo; porque la ciega es la fatalidad, lamano que ha ido conduciendo a los hombres a través de todas las historias. ¿Con quién habla un serhumano?, un hombre ¿con quién habla? No habla con el hombre que está enfrente de él, habla conotro hombre; habla con el fantasma de su padre, habla con el fantasma de su madre; habla con losantecesores que están a través de él, influyendo en su mente, en su sueño”. Presente na entrevista aJosé Julio Pelardo, em 1979, disponível em http://www.ucm.es/OTROS/especulo/numero7/scorza.htm

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Dessa forma, as entrevistas e a carta de renúncia ao partido aprista

configuram um importante corpus para a compreensão de quem foi Scorza e seu

processo criativo como escritor, sua posição política e sua peruanidade, de modo

que, ligadas a seus romances anteriores, possam desvendar melhor a leitura de A

Dança Imóvel.

2.2. Breves considerações sobre a novela de Scorza

Todo o mar, todos os mares, todos ossegredos dos mares revelados em uma únicaequação! E suspeitei que o homem era umametáfora temporariamente vestida de carne. Ohomem é carne que cobre uma metáfora ouuma metáfora que reveste a carne?

(SCORZA, 1983, p. 30.)

A narrativa de A Dança Imóvel se passa em Paris, capital da modernidade e

terra dos exilados latino-americanos. Num restaurante francês, o La Coupole,

enquanto almoçam, um escritor conversa com seu editor na tentativa de persuadi-lo

a publicar seu romance. Nesse romance a ser publicado, um guerrilheiro peruano

guevarista, Nicolás Centenario, Comandante do Exército Revolucionário do Peru

(ERP), preso na colônia penal do Sepa, local na Floresta Amazônica que nem

precisa de muros, já que é rodeada de selvas, rios imensos, pântanos e uma

infinidade de animais selvagens e para onde são enviados dirigentes sindicais e

políticos de oposição, prestes a serem amarrados a uma árvore, à qual basta dar-lhe

uma pancada para que dela saiam as furiosas e carnívoras formigas tangaranas,

que matam devagar de febre quem por elas for ofendido, levando parte por parte de

seu corpo ao formigueiro até que só lhe reste o esqueleto. Mas Nicolás consegue

fugir para matar um delator, apesar do latente sadismo do Capitão Basurco que o

caça impiedosamente e sem tréguas; e sua fuga pelos rios e pela selva amazônica,

todas as suas aventuras e desventuras nesse percalço, sua memória, seu amor por

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Francesca e sua inabalável verve política de guerrilheiro e militante compõem um

dos níveis narrativos do romance. Sua história é narrada em terceira pessoa.

Num outro nível narrativo, está Santiago, ex-guerrilheiro, cúmplice ideológico

de Nicolás, escondido em Paris, à espera de instruções do comando geral peruano,

possível alter-ego de Scorza, que também se exilou em Paris, vive um dilema entre

o amor por Marie Claire e a revolução, na civilização europeia que se desdobra na

barbárie peruana, entre a boemia e o medo.

Os capítulos do livro são intercalados entre as narrativas dos dois

guerrilheiros, recheadas de diálogos filosóficos, críticas literárias, remissões e

referências a um passado cultural à beira da modernidade avassaladora, e essa

tensão entre o mundo natural e o urbano é tema transversal na vida dos dois

protagonistas.

Sobre o personagem Nicolás, há de se dizer que o destemido idealista, ainda

imaturo sobre as questões mais humanas, já que dedicou toda sua vida à causa

libertária do Peru e considerava o pensamento marxista uma bíblia incontestável,

chegou a fazer greve de fome e treinamento em Cuba, desconhece um mundo que

não fosse aquele. Em determinado ponto da narrativa, conhece Francesca, jovem

por quem se apaixona e com quem engata um relacionamento quando também se

encontrava em Paris, mas entre o amor e a revolução, opta pela segunda. Seu amor

por Francesca só vive nos momentos de desespero quando a memória o assalta e

conta ao leitor o passado do personagem. Sua fuga começa na colônia penal do

Sepa, em uma espécie de balsa pequena ou jangada improvisada, pelo rio

Urubamba, que nasce nos Andes e percorre 720 quilômetros até encontrar o

Apurímac, o Tambo, que forma o Ucayali, que formará o Amazonas, e a descida

infernal pelos diversos cursos de água em meio à fome, às possíveis doenças, à

exaustão e ao medo de ser recapturado. Passa por uma tribo de índios campa,

chefiados por um gringo louro, alto e corpulento, casado com várias índias que

orgulham-se de sê-lo, traficante de armas e também contrário ao sistema

imperialista norte-americano. Sobrevive dias e dias o quanto pode, comendo o que

lhe era possível e descendo os rios, margeando, passando por tribos, até que

quando está prestes a conquistar sua liberdade, uma grande quantidade de

vagalumes pousam em seu corpo denunciando sua posição.

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Sobre o personagem Santiago, entre os bares, praças e restaurantes

parisienses, escondido de suas intenções e de seu passado, visivelmente

deslumbrado pela modernidade e civilização, em busca de liberdade e dado a um

relacionamento idealizado como isento de contaminações do passado tanto dele

quanto do de Marie Claire, a quem ama livremente com a intensidade de uma vida,

sofre de amor quando percebe que precisa se confessar com ela sobre quem é e o

motivo de ali estar. Quando opta por desertar da revolução para viver plenamente o

amor, perde as duas forças motrizes que verdadeiramente importavam. De caráter

marcadamente metalinguístico, uma passagem narrativa ilustra a questão:

Não exatamente – defendi-me. Em meu livro, há personagens que narram ahistória desde Paris. O romance é um contraponto entre um guerrilheiro eum ex-guerrilheiro. De outro ponto de vista, um conflito entre dois homensque devem optar entre o Amor e a Revolução. Um escolhe a Revolução. Ooutro, o Amor. No fim de suas vidas, ambos acreditam que o outro escolheumelhor. Através de um jogo de espelhos, invejam suas vidas.

(SCORZA, 1983, p. 20).

A linguagem utilizada por Scorza em A Dança Imóvel abarca uma infinidade

de empréstimos linguísticos franceses (por toda a obra), brasileiros, incas, ingleses,

indígenas regionais, pensamentos políticos sobre os movimentos revolucionários na

América comunista, além do diálogo com várias obras latino-americanas, passando

por Borges, Arguedas, Arlt, mas também Balzac, Cervantes, Sófocles, Maiakóvsky

ou Kafka, com fortes referências a Cuba, marxismo, leninismo, filosofia, música,

futebol, crítica literária, artes plásticas, conhecimentos geográficos, biológicos (flora

e fauna) e culturais indígenas, termos específicos de culturas ancestrais,

contrapondo a civilização (utopia) e a barbárie (natureza da selva e espaço

mitológico), sob forte existencialismo e ideologia política, funcionando ainda como

um especular estudo sociocultural. Mescla com riqueza uma linguagem comum com

algumas incidências chulas nas falas trocadas entre os personagens ou mesmo em

seus pensamentos, algumas vezes com bem arquitetadas ironias e bom humor e,

além disso, os sonhos dos protagonistas (a que ele atribuiria a qualidade onírica da

literatura latino-americana) ganham dimensões imagéticas que beiram a poesia.

Há momentos, por exemplo, em que o humor scorziano se traduz em uma

notícia no jornal sobre o casamento do Papa, outras vezes com um homem que para

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conquistar o amor de uma mulher acredita que deve lhe comprar ursos de pelúcia

cada vez maiores. Já a tragicidade é mais perceptível tanto no mundo natural, por

Nicolás, em sua fuga para a liberdade, quanto na urbanidade parisiense, por

Santiago, em seu dilema que o leva a uma triste prisão de si mesmo. Para concluir,

Scorza propõe uma revisão e uma reflexão tanto sobre o papel da literatura quanto

do intelectual que a escreve, pois que ideologia e arte parecem ser, para ele, tão

indissociáveis quanto o são o Amor e a Revolução.

Para melhor ilustrar esses momentos de A Dança Imóvel, recorrer-se-á, neste

estudo, aos conceitos de transculturação narrativa, de Ángel Rama, e

heterogeneidade, de Antonio Cornejo Polar.

2.3. Transculturações narrativas em A Dança Imóvel

Os incas conservaram sua história por tradição oral. Durante oimpério incaico, existiam uns personagens chamadosquipucamayos, talvez funcionários, talvez aedos, talvezhistoriadores, a quem os imperadores incas delegavam o temívelprivilégio de conservar a memória de seu império.

A Dança imóvel (p. 199).

No plano linguístico, Scorza mostra, em A Dança Imóvel, uma vasta gama de

exemplos de transculturações narrativas. Para compensar a perda dos dialetos

regionais, ou formas advindas da oralidade que não tiveram traduções ou similares

próximos na escrita, ocasionada pelos choques entre culturas, o autor utiliza, na

linguagem de seus personagens, termos culturais próprios às tribos sociais que

narra e/ou descreve. Essa sobrevivência e resistência culturais podem ser

observadas na narrativa em diversos momentos. Por exemplo, como a vida de cada

personagem narrador simboliza uma relação de dominação diferente, apesar das

vidas coincidentes (Nicolás, o que se desurbaniza para sobreviver; Santiago, o que

civiliza-se para resistir), também veremos na linguagem dos personagens termos

linguísticos coerentes com traços de civilização (urbanismos e universalismos) e

barbárie (selva, natureza, classe social excluída), estes últimos próprios ao regional

e ao local.

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Para o universo de Nicolás, Scorza usava de uma necessidade quase

obsessiva de trazer à luz do texto elementos próprios da cultura dos índios campa

residentes na floresta amazônica peruana. Poderíamos montar um mini-glossário:

lupunas brancas (árvore mais alta da selva); huacapúes (árvore de troncos

cinzentos); tangarana (árvore média de até dez metros, de interior esponjoso em

cujos alvéolos trafegam as tangaranas); tangaranas (formigas carnívoras e de toxina

febrífuga); páucar (pássaro que come banana, semelhante a uma arara ou

papagaio), orotongos (grandes tigres negros) [p.23 a 24], caimitos (abiu grande ou

abieiro) [p.35]. No caso, o sentido da mensagem é dado porque o narrador explica o

que aquela palavra por sua parte cultural significa.

(...) o capitão Basurco diz palavrões ao meio-dia, o comandante Centenariolevanta os olhos, não quer ver as árvores, prefere o rosto dos soldados queo flanqueiam ao longo do caminho enfileirado pelos troncos cinzentos doshuacapúes (p.23).43

E o sentido vai se completando à medida que vai-se adentrando aquele

universo cultural, como uma linguagem que se aprende:

Uma gigantesca ramada de huacapú, árvore maldita, pesa como aço e porisso navega sob a água; invisível, o huacapú vira embarcações grandes,lanchas de coronéis, por que não viraria a balsinha de um palhaço, riudesolado (p.34).

A integração do signo cultural dado tanto pela sonoridade do termo, quanto

pela imagem que vai sendo desenhada até seu significado, através da narrativa, é

um interessante didatismo cultural de Scorza. Será através da madeira do huacapú

que Nicolás percorrerá sua fuga em toda sua jornada. A imagem gruda-se na

palavra, quando ao decorrer da narrativa, huacapú já tem seu sentido é aumentado,

já é barco, resistência, instrumento de fuga.

Um outro exemplo é o da associação comparativa visual que se estabelece

entre um detento da prisão do Sepa, Isidro Páucar, e páucar, o pássaro. É

43 Como nesta seção, todas as citações diretas referem-se ao romance “A Dança Imóvel”, de ManuelScorza, de 1983, com exceção de uma citação do uruguaio Angel Rama, optou-se aqui por citarapenas os números das páginas em que ocorrem na obra.

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imaginável a figura e um vislumbre socializado da lógica cultural do texto. A tortura

militar a Isidro será o exemplo para os demais presos da colônia penal, a visão sob

as tangaranas, por ter tentado fugir de seus raptores:

(...) o Comandante Centenario recorda sua primeira prisão, hoje a entendebem, assistiu ao castigo de Isidro Páucar, chamado carinhosamente dePaucarzinho, O páucar é um pássaro que come banana, então seuscarcereiros jogavam-lhe bananas podres, coma, seu merda, riam-se dele, opáucar imita o canto de todos os pássaros da selva e a própria fala doshomens. Alto! ordena o tenente Basurco, nessa época então era tentente.

(...) Isidro Páucar fugiu em uma canoa de serviço, perto de Atalaya foirecapturado e vão ver agora, seus merdas, o que acontece com os fugitivos,a coronhadas aproximaram-no da árvore da tangarana, e todos vocêsassistirão ao castigo, tire a camisa, ordenou o tenente Basurco, com a caravazia de sangue. Paucarzinho sorria, então, ainda por cima você fica rindo,seu sacana?, amarrem-no, os soldados obedeceram. Isidro Páucar estágrudado à árvore, já deram coronhadas no tronco, instantaneamente asformigas se desenharam sobre seu corpo, Paucarzinho uiva, as tangaranasmancham seu corpo, mordem seu berro. (...) Agora não apenas as formigasguias mordem o Paucarzinho, uma fila de tangaranas desce, sobe, baixapor seu grito, as formigas matam devagar, a morte sobrevém horas depoisde cozido em febres o corpo e cada mordisco é ua febre, o corpo se incha,engorda (...) seu corpo é esse ninguém que as tangaranas transportampedacinho a pedacinho para o formigueiro. (p.24)

Os resquícios da língua, marcas de oralidade, através dos substantivos

concretos e visuais, estabelecem uma conexão linguística em que o contexto e o

recontexto vão sendo aprimorados pela linguagem, pelo ritmo também do próprio

texto. Esses exemplos contemplam também parte da transculturação no nível do

significado, já que rearranja o sentido original de acordo com uma nova lógica

cultural.

Já para o universo de Santiago, observamos a inserção de valores ancestrais

incas no diálogo entre ele e Marie Claire, que reafirmam o passado numa tentativa

quase desesperada de permitir que sua passagem à modernidade seja uma

preservação híbrida do encontro entre a urbanidade latino-americana e sua ex-

metrópole intelectual simbolizada por Paris. A necessidade de abrir o leque latino-

americano estaria, após a simples manifestação dos dominantes na colônia (início

da colonização) e sua experimentação desejosa de independência (momento de

repulsa e negação de tudo o que significa a metrópole), no exato momento de

coexistência das duas culturas, em que a auto-afirmação identitária se mostra

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sobremaneira marcada de acordo com o universalismo que aparenta almejar,

quando coloca o Popol Vuh, Montaigne, Descartes e Chico Buarque num mesmo

tempo textual:

Chico Buarque insistia, dessa vez com a dolente companhia de um coro.Continuava folheando o Popol Vuh, abundantemente anotado por MarieClaire, e me alegrou seu interesse por meus ancestrais pré-colombianos.Inteligentemente, seu lápis tinha marcado que “Montaigne” e “Descartes”defendiam que o homem era o tipo do homem sem história, mas que “oPopol Vuh demonstra a grandeza de seu equívoco”. Duas linhas grossassublinhavam que “os maias quichés não apenas tinham história: viviam empermanente continuidade com o seu passado”. Sem me dizer, Marie Claire,que pretendia não ter passado, começara a caminhar pelo meu, isto é, pelonosso futuro? (p.196)

Ainda mais claro estão as reconstruções na própria língua, com neologismos

próprios da lógica instaurada no universo de Santiago, numa perfeita junção entre

valores semânticos opostos num mesmo vocábulo:

A necessidade do prazer nos despertou e nos despertou. Subidescíamos aosono. Dormidespertávamos, E novamente morrevivíamos, odioamávamos,sonodespertávamos, desaparexistíamos. E novamentelutasonopacifidespertávamos, descaradamente felizes (p.70).

Ángel Rama considerava que, no nível da composição literária, os recursos

vanguardistas

precisamente passarão a fecundar a narrativa fantástica e também arealista-crítica das cidades, dotando-as de uma destreza, uma percepção doreal e um contágio emocional muito maiores, embora também emconcordância com uma cosmovisão fragmentada. (RAMA, 2001, p.221)

Assim, a universalidade que busca Scorza na vida urbana de Santiago pode

ser observada, como foco de resistência no tempo que, apesar de voraz, remonta à

barbárie pela civilização, determinando que não só os longos anos de colonização

europeia haviam provocado mudanças culturais naquele que sai de sua pátria para

olhar-se no espelho e depara-se com um mundo maior que antes, em busca de um

cosmopolitismo quase obrigatório:

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O garçom oferece porque lhe pedimos mais açúcar. Para acalmá-lo,pedimos mais croissants. Inútil: continuou olhando-nos com ódio. Levantei-me para comprar Gitanes. Diante do balcão, um homem de cor oriental, quemal falava francês, tentava explicar que procurava caixas de fósforodecoradas com borboletas coloridas. Papillon era a única palavra que seentendia. O dono gritava-lhe inutilmente que se desejava borboletas fosseentão à exposição do Jardin des Plantes. Ou melhor: à África. Mas o turistanão entendia nem fazia por entender. Perguntei-lhe se falava inglês. Sim,era iraniano e queria levar aquelas caixas de fósforos como uma lembrançada França para os amigos. (p.71)

No nível dos significados, a transculturação narrativa scorziana fica mais

evidente. Ao tomarmos como exemplo o desfecho da fuga de Nicolás, quando ele é,

segundo o narrador, coroado pelos vaga-lumes. Depois de conseguir fugir de tudo e

de todos, é surpreendido e deflagrado por uma enorme quantidade de pirilampos

que pousa sobre ele, então determinado à sua libertação do futuro para retornar à

sua ancestralidade, morrer pela revolução era a glória, em luzes de ouro, com

possível referência simbólica ao deus Inti (sol e objetos de cor dourada), da cultura

incaica peruana. Os valores do guerrilheiro e sua martirização coincidem com

valores culturais mais antigos:

Tiritando, olha o último Posto de Controle. Mas um inusitado resplendor ocega. De onde vem luz tão forte, esse meio-dia tão próximo que parecebrotar dele? Brota dele! Os vaga-lumes, todos os vaga-lumes, aderem àssuperfícies úmidas. Infinitos vaga-lumes esculpem-no em ouro, incrustam deouro sua balsa de ouro, com angústia de ouro quer afugentar seus delatoresde ouro, como mãos de ouro tenta afastar a capa de ouro que cobre seucorpo de ouro, os vagalumes que o coroam Nicolás I, Senhor das Chuvas,Rei das Correntes. (p.228)

Antonio Cornejo Polar (1990), para explicar a heterogeneidade latino-

americana, recorre às diferentes versões do que considera o grau zero da interação

entre a oralidade e a escrita na morte de Atahualpa, imperador Inca, e as diferentes

versões da Crônica de Cajamarca. A crônica, que assinala o fato de 1532, quando o

padre Valverde (detentor da escrita) encontra-se diante de Atahualpa (detentor da

cultura oral) e coloca à frente deste a Bíblia, símbolo místico, objeto mágico-

religioso, e diz-lhe que seu Deus fala por aquele instrumento. Em algumas versões,

Atahualpa atira longe a bíblia dizendo que não consegue escutar o Deus de Valverde

e dos espanhóis. Em outras, apenas deixa-a cair. O que faria mais sentido, porém,

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seria que a incompreensão do Inca diante de um objeto que significa o Deus do

outro seja desprezada ou valorizada em toda sua curiosidade. Polar mostra a

parcialidade dessa tradução por parte dos cronistas e historiadores, a falha e a

perda significativa da cultura ao transpor um meio ágrafo para um grafado. Com

versões ligadas ao interesse da coroa espanhola, outras ligadas a interesses de

ambos os impérios, outras ainda ligadas aos interesses religiosos católicos acima

dos da coroa, de acordo com aquele que as traduz, tanto pelo lado inca, mestiço ou

espanhol, o fato é que o passado foi reelaborado inúmeras vezes e o ocorrido em si

já se perdeu e já não importa, foi reconstruído e, na memória social como no

imaginário andino, a morte de Atahualpa e o episódio com a Bíblia permanece como

fato mítico já cristalizado socioculturalmente, princípio da colonização.

Polar (1990) também observa a “tradução” das danças folclóricas e dos

cantos (wankas) para a escrita; nelas, algumas vezes a história é diversa e o inca é

que sai vencedor do “duelo” com o invasor. O que finalmente quer dizer é que a

escrita não recupera totalmente a memória oral, e esse processo é muito mais

aculturador para o dominado do que transculturador.

Na Farmácia de Platão, Derrida (2005), analisa a origem da palavra escrita

através do diálogo de Fedro, de Platão, e investiga como ela carrega diferentes

destinos, podendo ser cura ou veneno (phármakon), tudo dependendo somente do

uso que dela se faz. Embora a discussão derridiana se dê mais no nível da decência

ou da indecência em referência ao ato de escrever e da escritura como registro da

memória, a desvalorização da escrita em referência à fala incide na mesma linha

entre a simples opinião (escritura) e a verdade (fala).

Enquanto para Derrida, a oralidade e a escritura são opostas, para Polar,

diante da vasta gama de traduções e versões da Crônica de Cajamarca, tanto por

nativos, quanto por espanhóis e por mestiços, para Polar, bastaria um ato inicial

cultural e histórico ágrafo dado como verdade primeva para que as várias outras

versões escritas representativas daquele primeiro ato fossem se tornando verdades

à medida que a sociedade faz dele seu uso social, cultural e político. Ou seja, a

perda cultural do registro de um povo é imensa ao se traduzir da oralidade para a

escrita, que aprisiona o fato mas deixa escapar a memória viva, pois é núcleo

discursivo através do qual se faz mais latente as relações de dominação entre os

povos do que a representação da memória propriamente dita, mas por outro lado,

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não deixa de ser um registro temporal e sociocultural. Tanto a análise da cultura do

outro quanto a nossa própria são profundas viagens ao passado e, em ambas, a

palavra escrita nunca abarcará totalmente uma cultura, mas contribui para completá-

la. Se não podemos buscar a fonte das culturas, podemos, através delas, mostrar

nossa heterogeneidade, nossa miscigenação, o tempo da mistura. Se há culturas

em extinção, pelo menos a Literatura se propõe como auxílio para que não seja total

e o faz também quando se coloca como amostra cultural, parte de um todo, como

um grande Eu que se mostra ao Outro, para que se saiba lê-lo.

Scorza não resolveu o dilema de Polar, mas deixou claro que uso de

elementos mítico-religiosos e onírico-inconscientes, além do resgate de formas

linguísticas imagéticas, movimentam o leitor pela narrativa latino-americana em toda

sua expressão, seja na relação entre a barbárie (local) e a civilização (global), seja

na relação entre um particular e sua sede mais imediata, como é o caso do interior

regional e a urbanidade mais próxima, e de qualquer destes para o resto do mundo,

em todo seu caráter universalizante.

Algo que se mostra provocante e merece maiores e relevantes pesquisas é a

imagem que sai de algumas palavras ou o encadeamento de significados utilizados

pelo autor peruano. Scorza descreve culturas de tal forma que a palavra pode, após

lida e apreendida, ser suprimida e substituída pela imagem cultural do que acaba de

significar. A ela acrescentada, o ritmo, a língua, os legados da oralidade

reconsiderados a partir de seu som e sua forma, a visualidade, a musicalidade, a

sonoridade, contextualizadas em históricos de opressão política e/ou militar,

antiimperialista e ao mesmo tempo existencial e filosófica, e ainda a memória e a

crítica, propõem que a perda de elementos culturais seja menor ou da mesma

intensidade que a revalorização de seu próprio povo, trazendo assim certo orgulho

de pertencimento, nacionalizações, reformulação de identidades e reconstrução do

sujeito latino-americano no tempo. E faz toda diferença quando a história narrada

possui correlatos e coerência com a jornada que vive, viveu ou viverá seu autor, pois

relativiza a biografia e a necessidade de delimitação de uma verdade, parte para um

coletivo que transita entre o fato e o ser e não em suas implicações.

Le Goff (2003), por sua vez, acredita que as comunidades sem escrita sejam

mais puras, como aquelas de memórias étnicas, ou uma história que não se perca

entre a memória e o aqui-agora da cultura e historicismos tendenciosos. Já os povos

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que se utilizam da escrita, teriam, segundo ele, uma memória social.

Independentemente de utilizarem-se ou não da escrita, a memória é o núcleo que

define as formas de organização social das comunidades.

Nora (1993) desenvolve uma distinção utilitária acerca da memória e da

história. Afirma que a última é uma representação do passado: “a memória dita e a

história escreve” (p.24), argumenta em favor de uma nova história, contada não no

contra-discurso, mas pelo lado do dominado, considerando fragmentos do tempo, e

também percebida de outra forma, não tão cronológica e linear, mas circular e, por

que não dizer, aleatória. Entre o passado e o presente, faz sentido, porque os

fragmentos da memória coletiva, dispersam-se ou extrapolam-se, atraem-se ou

repelem-se; quando atraídos, geram uma unidade de identificação; quando

repelidos, não coadunam, permanecem em suas memórias individuais,

coletivamente. E isso se dá comumente, espontaneamente, uma seleção natural das

afinidades dos grupos que vão se formando. Para esse ideal de comunidade, como

um carpe diem da memória, ele propõe a quebra da linearidade do tempo, a nova

história não se preocupa tanto com cronologismos. Observa que as memórias são

selecionadas, reinventadas, editadas, e sua evocação é uma metáfora do presente,

só se recorda indo do aqui para o antes. Distingue a memória verdadeira (viva),

aquela que vem das impressões dos sentidos, e a memória-história, de função

arquivística: “mais precisa no traço, mais material no vestígio, mais concreto no

registro, mais visível na imagem” (NORA, 1993, p.14). Para ele, a história destrói a

memória. Em certo ponto sim, mas será que ele considera literatura um outro

registro do tempo? Estariam destruindo a memória aqueles que a buscam através

dela?

Finalmente, Bhabha (1998), sem realçar povos com ou sem escrita, adicionou

a todo esse processo a noção de nação, que é todo o coletivo imaginado (social)

somado ao não imaginado (individual).

A equivalência linear entre evento e ideia, que o historicismo propõe,geralmente dá significado a um povo, uma nação ou uma cultura nacionalenquanto categoria sociológica empírica ou uma entidade cultural holística.No entanto, a força narrativa e psicológica que a nacionalidade representana produção cultural e na projeção política é o efeito da ambivalência de“nação” como estratégia narrativa. Como aparato de poder simbólico, issoproduz um deslizamento contínuo de categorias, como sexualidade,afiliação de classe, paranoia territorial ou “diferença cultural” no ato deescrever a nação. (BHABHA, 1998, p.200)

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Afinal, se tanto a história ou a ficção (literatura) são a representação de uma

suposta realidade, considera que parte da construção da ideia de nação venha

também literariamente, a literatura ajuda a completar um quadro sócio-político-

econômico-cultural-religoso da Nação. Em outras palavras, se todo o passado é

reinventado através da memória, tanto faz se a invenção da Nação venha da

História ou da Literatura, ambas são ficções, e ambas contribuem para um universo

social histórico-literário da realidade. O importante é desmistificar e dessacralizar a

História, deixar de considerá-la como detentora das certezas e das verdades

absolutas de uma nação. Bhabha o faz através do termo “DissemiNação”, artefato

para mostrar como a ideia de Nação é reinventada e disseminada através, também,

da literatura (o termo é traduzido e a tradução acompanha a mesma ideia44):

44 Do original, “DissemiNation”.

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CAPÍTULO 03 - Do amor e outras revoluções: as relações amorosas noromance A Dança Imóvel e as contribuições críticas acerca da obra de Scorzae de seus contemporâneos.

- E o senhor acredita que as Revoluções não traem? – perguntou o editor.- Os revolucionários talvez. As Revoluções, nunca.- E o amor, não trai? – perguntou Marie Claire?(Scorza, A Dança Imóvel, p. 245.)

Scorza operou, neste seu último romance, diversas revoluções e

transformações, tanto em relação às suas obras romanescas anteriores, quanto no

tocante à estrutura interna adotada pela narrativa, aos pensamentos / sentimentos

selecionados para exposição do ser latino-americano (e de si próprio) e à discussão

acerca do papel da literatura e da crítica.

Entre elas, está assim considerada a revolução no campo do amor, aqui

compreendida como as relações amorosas entre os dois casais do romance; as

revoluções no âmbito da narrativa, já anteriormente colocadas no primeiro capítulo,

através das transculturações narrativas sugeridas por Ángel Rama; a revolução no

campo do fazer literário, crítico e biográfico; e a revolução sociocultural e

nacionalista através do posicionamento político entre a civilização e a barbárie, que

acabam por remeter à situação do intelectual latino-americano.

3.1. As relações amorosas: entre o amor e a revolução

O verdadeiro charme das pessoas reside em quando elasperdem as estribeiras, quando não sabem muito bem emque ponto estão. (...) Fico feliz em constatar que o pontode demência de alguém seja a fonte de seu charme.

Gilles Deleuze, abecedário, A de amor.

As relações amorosas contidas em A Dança Imóvel, de Manuel Scorza são

tão importantes quanto o é a causa revolucionária comunista dos dois protagonistas

Santiago e Nicolás, que fazem pares românticos, respectivamente com Marie Claire

e Francesca. Ambos, cada um em sua história, colocam a revolução e o amor em

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condição de equilíbrio, inicialmente, até que a existência de tal balança se torna

insustentável e são obrigados a realizar uma escolha que determinaria seus futuros:

o amor ou a revolução?

Santiago é um ex-guerrilheiro, que desertou de sua condição de

revolucionário para poder viver seu amor com Marie Claire. Exilado em Paris,

obrigado a esconder-se de seu passado (até certo ponto afundado em uma possível

teoria conspiratória), trafega pela capital francesa, fazendo favores para os

camaradas da revolução, aguardando deles uma sinalização para poder voltar a seu

Peru. A relação entre Marie Claire e Santiago se dá no tempo presente, e todas as

inquietações filosóficas de cunho existencialista relativas a esse amor estão tanto no

plano do diálogo quanto do psicológico, através do pensamento desse último.

Por outro lado, simultaneamente, Nicolás Centenario não desiste da luta

nunca, está fugindo da colônia penal do Sepa, em que esteve preso por querer

matar um delator da causa, em plena selva amazônica. Após descer em uma

jangada improvisada pelos rios caudalosos e cheios de perigos, seu desafio mais

imediato traduz-se em vencer a natureza, pois que já havia escapado das sádicas e

torturantes intenções do Capitão Basurco, que faz dessa caçada sua busca pessoal,

empreende esforços incessantes para encontrá-lo. Francesca simboliza o amor que

ficou no passado e podemos compreender o significado dele desprendido através de

suas memórias, em momentos de atrozes dificuldades, em sua fantástica fuga. Uma

de muitas belas passagens dessa memória amorosa pode ser localizada quando

Nicolás, esfaimado e queimado de sol, após encontrar nativos da selva que o

alimentam até que possa novamente prosseguir em seu caminho em sua balsa

pelas águas amazônicas, recorda-se, já em transe alucinatório, ele que dedicara

toda sua vida ao movimento revolucionário e que desconhecia as relações

amorosas, preso que ficou por um respeito incontestável pela causa do movimento

revolucionário a que pertencia, de Francesca. O dilema que o persegue é medonho,

amor ou revolução?, talvez da mesma dimensão das dificuldades que enfrenta:

Amarra-se à balsa. Entra em águas de sonho cheias de lagartos de sonho,entre paliçadas de sonho, tentando dar caça a um traidor de sonho.Unicórnios assustados cospem mananciais de rubi contra o céu. Francescaroçou em seu rosto com os colares, por trás da poltrona cruzou as mãossobre seu peito, sobre seu tesão, quando tentava, já à beira do desespero,recordar como é importante, segundo Lenin, substituir o parlamentarismo

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verbal e corrupto da burguesia pelos mecanismos inventados pela Comuna,em que a liberdade de opinião e discussão não degenere em engano, mas arespiração de Francesca queimou-lhe a nuca da burguesia, o pescoço doparlamentarismo venal e corrupto, a morna pele dos organismos inventadospela Comuna, a negra catarata dos cabelos de Lênin, e soube então quenão poderia viver sem se lançar nesse precipício. (...) não soube em quemomento terminaram despidos entre os corpos dos lagartos sobre o sol queseu tronco ardendo penetrou na agitação em que gemia Francesca, a bocade Francesca, o sol de Francesca queimando na escuridão.

(SCORZA, 1983, P.175-176).

Seja um amor do presente ou um amor do passado, os dois protagonistas se

apaixonam por mulheres francesas, arrebatadoramente, e o que definirá o futuro de

suas vidas estará na escolha que fazem pelo social (revolução de Nicolás) ou pelo

individual (revolução de Santiago). Imbuídos de preceitos comunistas, determinados

a conduzir a revolução e a independência peruana dos achaques imperialistas norte-

americanos, ambos cairão nas graças de duas jovens e bonitas mulheres

independentes exatamente na moderna Paris dos anos sessenta (onde Scorza se

exilou), e ainda a mesma Paris representante europeia de um passado colonial a se

esquecer (além de ser também um vínculo intelectual e literário do qual se pretende,

nessa ordem: libertação, auto-afirmação e um futuro diálogo isento de cobranças e

responsabilidades estilísticas).

Mas onde residiria a revolução amorosa de Scorza? Para responder a esta

inquietante interrogação, será necessário, reconstruir o Peru para finalmente

chegarmos ao âmago da sociedade peruana da época.

Pela imaginação das sociedades, inevitavelmente, e por meio da memória

coletiva de um povo, todas as comunidades são e serão imaginadas. São criações

culturais e políticas, tendenciosas ou ingênuas, representações de uma ideia,

panfletárias, quase anárquicas ou patrióticas (ANDERSON, 2008). O surgimento de

uma comunidade, com seus artefatos e rituais, seus credos e músicas e danças,

perpassa a identificação linguística dos povos até chegar à ideia de Estado,

banhado de estratagemas, lutas de classes, retóricas, políticas e jogos de poder.

As independências política (em relação à nação), intelectual (em relação à

Europa e aos Estados Unidos), individual (em relação ao amor) e social (em relação

à memória) estabelecem a necessidade de luta por pelo menos uma das partes,

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senão todas, pois a luta de uma delas é que possibilita as demais. Quando o ser se

liberta das imposições sociais de um coletivo e vê a si mesmo como indivíduo, entra

numa relação de auto-conhecimento necessária a todas as outras revoluções, e o

faz ao mesmo passo que se liberta de si para viver o coletivo. Já lutar pela nação

nos empresta a ilusão de que somos menos órfãos que antes, mesmo que o Estado

não esteja interessado em patrocinar outros ideais que não os partidários.

Na construção do nacional, a literatura latino-americana, através das

memórias que habitam o imaginário coletivo e também dos interesses por trás dos

discursos dominantes que mimetizam o presente para a incorporação de valores

antes inexistentes nas comunidades não se isenta de seu papel social. A História,

como área do conhecimento, é, para a América Latina, há até três quartos do século

passado, uma grande colaborativa para esse processo discursivo, e nos rende ainda

dívidas e dúvidas entre a oralidade e a escrita.

Assim, Scorza reinventa o Peru de duas maneiras. Se Nicolás, ao enfrentar

as adversidades das matas e rios, revela grupos minoritários e costumes culturais

peruanos como o masato (que para nós seria a chicha, cauim, makaloba), ao

mesmo tempo Santiago está sem saída em Paris, deslumbrado com a modernidade.

Sarcasticamente, toda a finesse e o glamour que faz questão de narrar, também é

uma irônica constatação de que o Belo é o Outro. Nesse último caso, a reconstrução

se dá pelo não: tudo o que Paris representa, representa também o não dito na

narrativa, que seria a condição peruana da época. Entre a liberdade e a falta dela,

muito há de se depreender da história dos dois guerrilheiros que apostam a vida e

se perdem ou se ganham pela revolução ou pelo amor.

Por isso, quando reconstrói a mulher ideal, inteligente, desprendida,

independente, receptiva a novas ideias e dada à arte, à filosofia e ao sexo, nas

figuras de Marie Claire e Francesca (que só pelo nome, já traz à tona toda a

França), está também narrando pelo não a mulher peruana (e latino-americana em

geral), dependente, submissa ao homem, sem participação social e política, cravada

de tabus e conservadorismos. Pretende-se, pelo avesso, um amor livre, dialogado,

em que a construção do pensamento é conjunta.

A pretensão de que a mulher seja um ser mais participativo na construção

nacional pode ser percebida quando Santiago, finalmente resolve “desertar” e, dado

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o trato feito de que apenas o presente é viável e que o passado de ambos deve ser

descartado para poder existir e resistir, revela-se, de onde desprende o diálogo:

- Então, quer dizer que você deixou a Revolução por mim? Pensavaem voltar ao Peru antes de me conhecer? Estava decidido a pegar emarmas e a se sacrificar com seus companheiros?

- Sim. Entreguei minha juventude à militância e logo quando chegou omomento, ingressei no Movimento e fui treinado para combater.

- E tudo, verdadeiramente tudo mudou para você quando nosconhecemos?

- Absolutamente tudo. A militância me levava à morte. Eu era umamáquina de matar e morrer, você me mostrou a vida. Nunca amei comoamo você. Desde que a conheço, a única coisa que quero é viver e viver aseu lado. No Jardin des Plantes, a morte ficou para trás. Tudo o que vi antesde você não existe... (SCORZA, 1983, p.219).

Mas a consciência política de Marie Claire é o que dá fim à relação: sacrificar

o todos por um par era inaceitável para ela. E na impossibilidade do fato, quando

Santiago opta pelo amor e não pela revolução, perde os dois, pois Marie Claire

também acreditava na mesma revolução, que só traria frutos futuros. Nas palavras

de Marie Claire:

- Não há palavras, Santiago, mas mesmo sem palavras, assim, querolhe dizer que se algum dia eu voltar a nascer, desejo ser uma árvore parame lembrar mil anos de você, do seu amor, do que seu amor iluminou emmim... Que coragem se deve ter para escolher ficar só...!

- Não fiquei só.- Sim; você ficou só com o amor.- Fiquei com você.- Eu, diante do que você deixou, não sou ninguém, Santiago.

(SCORZA, 1983, p.221).

O amor, admiração do outro, também é carregado de ideologias afins, e pode

ser ilustrado no didatismo de Francesca em relação a Nicolás, um guerrilheiro tão

centrado no movimento revolucionário, ingênuo e pequeno diante do mundo, um

guerreiro contra um imenso moinho, cuja determinação trazia o heroísmo e a

cumplicidade amorosa da jovem, representante de outra esfera social, quando

fingiam ser casados para continuar em Paris na casa de um professor, em sua

despedida:

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“Pela vitória da revolução, Nicolás, pela libertação do Peru, por você, pelavitória!” Sua voz se enfraqueceu: “E se não voltarmos a nos ver, quero quesaiba que estou orgulhosa e feliz de ser sua esposa”. A paliçada aproxima-se perigosamente da balsa, rema para a margem, mas a corrente o arrastasob os relâmpagos, a chuva não o deixa ver Francesca, que se levanta paraoperar o toca-discos: “Não sei se conhece a Sonata para violino e Piano deCésar Franck”. “Não”, disse ele, “de Pinglo eu não passei”. “Isto que vocêestá ouvindo é a famosíssima Sonata de Vinteuil, o hino nacional dosamores de Swann e Odette, lembra-se do que li de Proust? Sem terminarum cigarro, Francesca acendeu outro e disse, sem levantar a cabeça:“Nicolás, você sabia que eu me inscrevi no Movimento por você? Eu erasimpatizante desde que entrei na Universidade, mas sua greve de fome medecidiu. Todos nós, estudantes, admirávamos o seu heroísmo,acompanhávamos, dia-a-dia, os detalhes daquela greve, sabíamos quevocê estava morrendo mas não recuaria”. (SCORZA, 1983, p.162).

Além de trazer a mulher para o centro do diálogo e da discussão existencial

sobre o estar e o viver, Scorza nos mostra que, para reinventar uma nação é preciso

reinventar o amor. Em outras palavras, as relações sociais precisam ser

desenvolvidas como a relação de Marie Claire e Santiago, Francesca e Nicolás,

abertas ao diálogo, comunicativas e respeitosas pelo outro, mesmo que fadadas ao

fatalismo ou à decisão conjunta de um fim. Na esfera do coletivo, um povo que

agisse assim estaria próximo de uma escolha sobre que nação reinventar, e esse é

um sentimento que perpassa toda a obra. Ao mesmo tempo que a revolução parece

utópica ou mesmo ingênua, que por si só carrega traços de uma prisão ideológica

(porque todas as outras ideias são bloqueadas, dado o radicalismo) e social (porque

não se vive, a não ser como massa de manobra) e simboliza a morte, o amor é

proposto como uma outra revolução ainda maior, mediado pelas relações entre os

seres, representando a vida, fato ilustrado pela dúvida de Nicolás: “E uma vez mais

invejou Santiago. E se o ato verdadeiramente subversivo não fosse a revolução pela

qual ia morrer, mas a vida com Francesca, o amor que abandonou...? Acorda na

água”. (SCORZA, 1983, p.101).

Os limiares da conceituação entre o que é o amor e o que é a revolução

confundem-se muitas vezes. Há momentos em que um se sobrepõe sobre o outro.

O que Scorza esteja talvez propondo é a importância da escolha, já que parecem

ser escolhas excludentes, opta-se sempre por um ou por outro, estão sempre em pé

de igualdade. Mesmo para o caso de Santiago e Marie Claire, ambos marxistas, que

podem entender que a revolução é uma forma mais nobre e honrada de morrer pelo

seu país, observamos:

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- Em Paris você encontrará tudo, menos a Revolução. A Europa está morta.Aqui, todo futuro é passado. Belo, mas passado. E se, como você dizia, oúnico futuro humano é a Revolução, o futuro vive no Terceiro Mundo, naAmérica Latina, no seu país. Mesmo nós que nascemos na Europa vivemosunicamente de passagem pela Europa. Aqui não se vive, aqui nos limitamosa existir, a apressar o instante que passa...- E o amor não é a verdadeira Revolução?- Mas quem diz que o amor e a Revolução se opõem?- Os mortos dizem. (SCORZA, 1983, p.220).

O diálogo entre Nicolás e Santiago, personagens que até então possuíam

histórias e narrativas próprias acontece em um capítulo próprio (já que até então,

cada um deles narrava um capítulo, intercaladamente), quando Santiago está

prestes a desistir da revolução por amor e Nicolás tenta dissuadi-lo:

- Desde quando, Santiago, a revolução e o amor são contraditórios? Seuamor, todo amor, sua luta, nossa luta são carne de um mesmo corpo,sangue de um mesmo sangue. Escolher entre amor e revolução é um falsodilema. Não há nada que escolher, são o mesmo...- Não para mim, Nicolás.- Não entendo.- É simples. Amo uma mulher e quero viver com ela. Está claro? Queroviver! Por isso fico. Só os vivos têm mulher, os mortos não... Agora vejocoisas que não via antes. (SCORZA, 1983, p.182).

A revolução funciona, certas vezes, como religião (veja-se o catolicismo, por

exemplo) a ser seguida, as ordens do partido são verdades incontestáveis, e

chegam a obrigar os companheiros até mesmo a uma certa castidade, momento em

que se contrapõe ao amor: “ ‘Não me concentro’ – disse a si mesmo -, ‘estou

pensando em Francesca e não na ideia fundamental do marxismo sobre o papel

histórico e a significação do Estado” (SCORZA, 1983, p.123). Porque a revolução,

assim como a religião, traz a crença de um renascimento, de uma vida após a morte,

morrer agora melhora a vida futura, há uma recompensa no fim do túnel, ao passo

que o amor está na intensidade do presente cuja duração é indeterminada ou se

finda com a morte dos amantes:

A vida flui mais rápido que todos os rios. O homem que está mais perto desua morte que de seu nascimento precisa urgentemente ser feliz! Tinha sidofeliz? Francesca encheu-lhe de novo a taça de vinho. “O problema maisimportante não é o imperialismo, é a morte”, disse-lhe. Ele ficou pensativo.

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Perto da margem cavada pelo rio, pareceu-lhe ver a terra recém-cobertapelas chuvas que cobriam seu túmulo. Não teria túmulo. Sua lápide seriamessas espumas marrons. “Não, Francesca, o problema mais importante é oimperialismo, pois o imperialismo é a morte. E ainda que a Revoluçãosignifique a morte para nós, a revolução é e será a vida.” Um forte balançode águas turvas atingiu a balsa, levantou-a e a lançou pelos ares.(SCORZA, 1983, p.89).

Ou ainda, no romance, revolução e amor são libertações necessárias: a

primeira está no presente mirando o futuro, no coletivo, buscando independência e

distância do opressor imperialista.

Nenhuma batalha final acabou com a escravidão. As rebeliões anônimas, aslutas obscuras, os combates perdidos, os Espártacos, os Pugachovs, osTupac Amaru, os Emiliano Zapata, os Garabombo sem rosto, elesterminaram com a barbárie. Seus combates foram o fermento do futuro.Embora morramos obscuros, anônimos, esquecíveis, nossa luta temsentido: somos a semente em que espera o futuro da América. (SCORZA,1983, p.101-102).

Já o amor, também no presente, focaliza-se em si próprio, e representa a

independência do guerrilheiro em relação ao seu próprio partido revolucionário,

colocado também como opressor, já que o simples ato de desvincular-se dele

significa uma alta traição, além de ir contra os conservadorismos, tabus e

moralismos sociais que tentam, em vão, definir como o amor deve ser vivido.

Na fundação do romance, o fato de a relação amorosa entre Santiago e Marie

Claire ser isenta de passado reflete uma libertação desses dogmas, pois que não

importava se um dos dois havia sido casado, fosse hetero, homo ou pansexual, de

que credo, nacionalidade, orientação política, antes do momento em que se

encontraram, só importava o presente, desde que absoluto, instância em que nasce

o casal dentro do amor. Esse amor leve, isento de contaminações de outros

relacionamentos anteriores, brincalhão, igualizante, desejoso, respeitador,

comunicante, alegre, admirador, romântico, cúmplice e solícito, que não tem a

pretensão de ser para sempre no tempo senão no momento presente, que levita

sobre as demais questões a ponto de fazer com que Santiago abandone a revolução

para vivê-lo em toda a sua extensão é o que permite declarações abertas dos

sentimentos, buscando no fundo da cultura ou da universalidade filosófica a

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concentração dos sentidos no par. No exemplo a seguir, Marie Claire declara-se a

Santiago como um imperador asteca:

- Por você abandono minha cidade, minhas pirâmides, meus templos, minhavida – sussurrou. – A única coisa que lhe peço é que nunca pergunte sobremeu passado. Eu também não perguntarei sobre o seu. Concorda?E sem esperar resposta recitou:

Eu, Nezhualcóyotl, pergunto:Será de verdade que se vive com raiz na terra?Não para sempre na terra:Só um pouco aqui,Ainda que seja de jade se quebra,Ainda que seja de ouro se rompe,Ainda que seja plumagem dequetzal, se despedaça.Não para sempre na terra:Só um pouco aqui.

(SCORZA, 1983, p.73).

Um outro fator envolvente na questão do amor em A Dança Imóvel é o

erotismo livre que se desdobra da relação entre o casal. A admiração e os diálogos e

comentários de ambos acerca das filosofias internas de cada um, sobre a filosofia, a

política, a literatura, a música e a arte, através da simples argumentação ou até

mesmo a partir de críticas bem fundamentadas, são afrodisíacos mentais para eles.

As relações sexuais são momentos de grande importância e normalidade na vida do

casal, o prazer do momento é a certeza da vida. Exemplo disso pode ser observado

quando Marie Claire, citando uma passagem de Balzac, quando este só possuía um

pão para comer, pegou um giz e começou a desenhar um banquete e deixou que

sua imaginação o alimentasse, propõe o mesmo a partir de alguns lápis de cor e

pinta um cenário em que pontos amarelos são constelações e planetas e números

azuis em que cabem todo o tempo do mundo para mostrar a Santiago que a

coincidência de estarem vivos no mesmo espaço e no mesmo tempo era dádiva

compartilhada:

E agora, com todas as cores na mão direita, ocultando com arco-írisas constelações, os cometas, as estrelas cadentes, a Terra, as épocas,Marie Claire cobriu integralmente a mesa com rosas, magnólias, gerânios,trepadeiras, orquídeas impossíveis. Abraçou-me e desceu, sem me soltar,seus joelhos ao chão e os olhos em lágrimas:

- Este é o meu agradecimento porque estamos vivos, você e eu, eestamos aqui agora, você e eu, aqui, você e eu, juntos...

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Jogou os lápis para cima, despiu o pulôver e me beijou. E uma eoutra vez rolamos pelos precipícios de nosso gozo. E passados meses delábios, anos de coxas, centenários de peitos, milênios de gemidos, queeram instantes, nós nos enlaçamos em um grande sono. Mas nossoscorpos não dormiram. Enquanto eu sonhava que tinha encontrado em Parisuma mulher maravilhosa e sonhava que dormia com ela, e dormia com ela,meu corpo e seu corpo insones continuavam se buscando, encontrando-se,nascendo-se, morrendo-se. (SCORZA, 1983, p.73).

Belas metáforas compõem a recompensa das relações sexuais, como a fusão

de dois seres em um só animal que os olhos de Santiago jamais tinham visto:

No espelho, diante da cama, contemplei os movimentos vertiginosose lentos de um animal que os meus olhos jamais tinham visto. Vi que aspernas convulsas do quadrúpede lutavam entre si. Vi como suas quatropernas fundiam-se em duas. Vi que o belíssimo monstro era bicéfalo, quesuas cabeças luatavam, mordiam-se, beijavam-se, esfregavam os focinhos.Vi que suas cabeças se juntavam em uma só. Vi o desespero de seusquatro olhos resistindo a serem dois. E nos olhos que sobreviveram, vi ojúbilo de serem agora só dois. (...) Olhei-a. Olhou-me. Nos olhou. Éramos oexemplar único de uma espécie única, princípio e fim de uma raça destinadaa existir nesse instante único! (SCORZA, 1983, p.70).

A revolução amorosa e sexual na narrativa scorziana, dentro da proposta

igualdade de gêneros e condições entre homens e mulheres é bastante atual, desde

a época em que o romance foi publicado. Acredita-se aqui que se Scorza tivesse

mais tempo e não morresse tão cedo, certamente abordaria o tema em outras obras.

Ainda assim, há resquícios que fazem com que o amor não seja concretizado

pois que concorre com a revolução política da qual fazem parte os guerrilheiros. Na

narrativa, o desfecho é trágico e se dá pela traição. Santiago sente que trai Marie

Claire por não suportar o peso de não saber sobre o futuro, já que aguarda ordens e

instruções do partido comunista peruano. Opta pelo não suicídio, pois o amor

perderia um militante e a revolução um guerrilheiro. Ao mesmo tempo, quando trai o

partido para dedicar-se ao amor, Marie Claire desencanta-se e desaparece de sua

vida, reaparecendo somente na casa de um amigo, entre drogas e prostituições.

Santiago considera aquela uma traição tão profunda que inventa um outro capítulo

com outro final para o casal, em que a personagem criada ganha nova vida, já na

mesa de um restaurante junto ao editor, como filha deste, mas os dois não se

reconhecem, apesar da sensação de que sim. O amor idealizado e imaginado tem a

chance de ser real, mas todo o sofrimento desprendido por essa imaginação havia

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sido tão visceral que Santiago opta por não encará-la. Ele perdeu tanto a Revolução

quanto o Amor.

Nicolás, por sua vez, que opta pela Revolução ao invés do Amor, perde a vida

lutando por seu país no final onírico de sua fuga, em que um enxame de vaga-lumes

cobrem-lhe o corpo e denunciam-no, iluminado por mil luzes, levando-o à morte.

Mas morre como mártir da revolução, símbolo de resistência, como vencedor de seu

propósito inabalável, em honra de morrer pela pátria.

Concluindo, Scorza, em A Dança Imóvel, não tenta reduzir a (sua) nação a

algo que o governo peruano desenhava nos anos anteriores a 1983, principalmente

nos anos sessenta/setenta, recorte temporal em que se desenvolve a narrativa. Pelo

contrário, o autor deslinda em seu romance um outro Peru, frágil, assolado por

repetidas ditaduras, mais próximo de uma realidade experienciada e coletiva de

parte de seus habitantes do que a propaganda nacional peruana “de cima para

baixo”, isto é, do governo em direção ao povo de forma ditatorial, e do que a imagem

desenhada dos governantes do Peru para o resto do mundo. Assim não o seria se o

autor, assim como os personagens de sua trama, não fossem revolucionários

capazes de enxergar além do que é imposto por aqueles que não só detêm o poder,

como dele abusam, utilizando a parte mais assolada da população como moeda de

troca ou escudo para justificar as incoerências de um modelo político exploratório e

carente de democracia. Não é dito aqui que a nação peruana de Scorza fosse mais

ou menos real do que realmente era à época, mas é exatamente essa sua visão que

completa e amplia a noção de Estado Peruano, visto que é dada pela perspectiva do

vencido / dominado e não do vencedor / dominador. Tal relação poderia ser

compreendida ainda como diletantismo de direita (governo) / esquerda (revolução),

fato que talvez seja mais adequado à intenção do romancista.

Vale a pena perceber que a revolução, praticamente orgânica nos

protagonistas, só se completa e também se complica (senão não seria revolução,

não seria amor) a partir do amor, além do fetiche da inconsequência do presente e

consequência do passado para lançar-se ao desconhecido Outro. Essa é a grande

revolução de Scorza. Dá ao amor a liberdade que não teve de sua pátria. Nos

romances anteriores, não havia diálogos nem filosofias dialogantes no campo do

amor. Confere à mulher um papel libertário, iguala-se, talvez um convite, proposição,

talvez previsse o que seria uma tônica da discussão do século XXI, a igualdade de

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gêneros. Do Peru para o mundo, pelo sim da modernidade, inventa um futuro, pela

experiência da civilização, denuncia a barbárie, e pelo não de sua nação (já que

reconstrói o Peru também a partir de Paris), é o negativo, não a fotografia, de uma

situação emergencial social. A quebra de vínculo do ser - tempo fica mantida na

narrativa para se refazer no social, por isso utiliza os transportes de uma cultura a

outra, de uma voz a outra, de uma ideologia a outra: o mensageiro é também o

agente responsável pela manutenção e transmutação de sua cultura.

3.2. Revoluções no campo do fazer literário, crítico e biográfico

O que há de positivo na América é o que resistiu àaceleração do tempo.

Vera Follain de Figueiredo, 1994, p.26.

Incidindo sobre os eixos horizontal, representado pelas sociedades latino-

americanas em seu espaço-tempo (em geral, pelas minoritárias, como as

comunidades indígenas, regiões rurais, vilarejos, ou ainda cidades e espaços

nacionais) e vertical, representado pela configuração sócio-econômica que as

consome e as lança à obrigação da modernidade e futuro, dada a relação de

dominação nelas implícita, conforme proposto por Rama (1974), Scorza, em A

Dança Imóvel, opera, além das transculturações narrativas, revoluções estratégicas

também no campo do fazer literário que ajudam a compor o sujeito latino-americano.

Por exemplo, as cinco baladas scorzianas que compõem a Guerra Silenciosa,

publicadas entre 1970 e 1977, podem ser consideradas uma metaficção

historiográfica, já que cada um dos romances “atua exatamente conciliando

diferenças e questionando certezas, instituições, e especialmente os limites entre

história e ficção” (HUTCHEON, 1991, p. 27) e revelam uma outra perspectiva

histórica a partir da luta dos campesinos do povoado de Rancas entre 1959 e 1960

no Vale Central peruano, contra as multinacionais e o imperialismo norte-

americanos, apesar de movimentar-se por passados mais próximos e outros mais

distantes. Valter Sinder (2000) pondera que “esse novo tipo de romance reinterpreta

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a história e a reescreve através da ficção, sem o objetivo contar a verdade, mas de

questionar qual é essa verdade que se conta” (SINDER, 2000, 260).

Em compensação, A Dança Imóvel (1983) estaria mais distante de ser uma

metaficção historiográfica, pois embora haja dados biográficos e autobiográficos de

Scorza e alguns outros personagens em sua trama, os episódios que tratam dos

personagens na França ou na fuga do presídio do Sepa são, até que se prove o

contrário, fictícios. Também não há fatos históricos de reconhecida relevância social

peruana reinterpretados em sua última novela, apenas flashes e situações históricas

pontuais hipotéticas. Assim, o romance contém traços da metaficção historiográfica

proposta por Hutcheon, mas em comparação com as obras ficcionais scorzianas

anteriores (em que o fato histórico é a centralidade das novelas), estaria em uma

proporção de suas características definidoras muito menor, já que o dilema humano

da escolha é sua peça nuclear e que há dois universos em choque, a civilização e a

barbárie. Como nas ciências humanas não há quantificação exata, talvez seja

melhor considerar que a pentalogia das baladas ou novelas são completamente

metaficções historiográficas, enquanto que A Dança Imóvel o é em certos momentos

da narrativa ou então que simplesmente não o é, visto que mostra uma outra versão

histórica de modo indireto, ou seja, não conta a história de um Peru subjugado às

intempéries políticas do militarismo, simplesmente, mas especialmente o

pensamento dos guerrilheiros em prol de um ideal libertário que oprime todo um

povo e uma nação, por eles imaginados. O que Scorza propõe é uma revolução de

pensamentos, o amor entra como uma abertura para que o guerrilheiro não se perca

em radicalismos.

Além disso, em primeiro lugar, o narrador não faz questão de (ou faz questão

de não?) revelar o recorte temporal, o que atesta que: i) a opressão às classes

menos favorecidas peruanas era tão grande que não houve necessidade de se fixar

historicamente qualquer fato na narrativa, andou-se por uma verdade orgânica de

tempo indefinido e cumplicizado pelo leitor, que vai se situando com as pistas; ii) a

relação entre o autor e a obra, mediada pelo aqui-agora pessoal e subjetivo do

primeiro, demonstra um posicionamento político a respeito de um fato histórico e

constrói (ou contribui para) uma outra versão dos acontecimentos, entre a ficção

narrativa e a experiência viva. Os recortes do autor em seu presente, que carregam

passados e memórias de sua existência, não exigem datas. É o tempo de quem

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vive, escreve e busca no passado uma solução para um povo, incluindo-se nele,

como uma discrição de quem já foi privado de sua liberdade e resolvesse o possível

axioma “não há verdades, e todas as versões são verdadeiras”. Optou por chamar

verdade por ficção, ou seja, mais uma dentre várias verdades; iii) assim como

história e literatura estão ambas no âmbito da ficção, visto que tanto o historiador

quanto o escritor não são isentos de parcialidade histórica ou ficcional (WHITE,

1995), Scorza procura trazer dois caminhos possíveis para alcançar um mínimo

múltiplo comum entre a história e a literatura: se a ditadura militar é uma tônica

comum em praticamente toda a América Latina na época, e a ala comunista rebela-

se ideologicamente contra o sistema imposto pela ditadura imperialista, o caso do

Peru é apenas um a mais diante das outras nações do continente. Então, ao tecer

uma ficção potencialmente real, descreve também uma realidade não só possível

como exposta, acordando o leitor para um contrato de uma verdade parcial, dada

também através de personagens, tempo e localidades reais, a partir de uma trama

fantasiosa mas não impossível (para o caso do personagem Nicolás) e um roteiro

duplicado entre a França e o Peru (para o caso de Santiago); e, finalmente, iv) a

revolução e a libertação pelas quais lutavam os personagens ligados à causa do

partido comunista são tão imaginadas quanto a idealização nacionalista do autor, o

que o transforma em um historiador fictício de sua própria vida, entre realidades e

sonhos centrados no indivíduo e no coletivo; e também em um ficcionador da

história do Peru, entre desejos (faltas e/ou ausências) e necessidades de futuro,

coletivamente. O autor vai pela arte de transitar entre o particularíssimo universo dos

índios campa e cholla na selva amazônica, por exemplo, e o cosmopolitíssimo

ideário filosófico (ainda que preso a um certo ocidentalismo) em que se baseia para

delinear as nuances do amor (relações amorosas) e da revolução (lutas políticas),

valendo-se de sua própria experiência, exilado em Paris. Assim, o trânsito dos

pensamentos dos personagens ilustram o fazer literário (e biográfico) de Scorza, em

sua intencionalidade de conscientização política e formação intelectual de seu leitor,

melhor traduzido nas palavras de Figueiredo (1994):

Os limites entre história e ficção, então, se diluem, já que ambas giram emtorno da mesma indagação. Ou seja, se desconfiamos dos universalismos,se consideramos que os fatos podem ser vistos de vários ângulos, comoevitar a visão centralizadora que dá ao leitor a ilusão de verdade única?Como trabalhar com as implicações ideológicas de selecionar, ordenar,

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interpretar os acontecimentos que integram o ato de narrar tanto na históriaquanto na ficção? (FIGUEIREDO, 1994, p.127)

Segundo, para idealizar a libertação e consequente re-nacionalização do

Peru, seria preciso testemunhar seu próprio mundo social pelo lado de fora dele, em

Paris, fato comum a um dos personagens e ao autor, entre o sonho (ideal) e o

pesadelo (real), e esse olhar estrangeiro de sua própria gente e chão é, na visão de

Molloy (2005):

O olhar de fora afeta a postura autobiográfica: o “eu” escreve em outrolugar. Esta verdade, embora aplicável à autobiografia de maneira geral,adquire realidade concreta no caso do exilado. Ele ou ela escrevem,literalmente, em outro país, em outra cultura, ou em outra língua. A tentativade capturar um passado que é marginal ao presente da autobiografia leva aum exercício de deslocamento: sujeito e passado são mutuamenteexclusivos, estão cindidos. O passado só pode ser integrado ao presenteatravés de um exercício de nostalgia. (MOLLOY, 2005, p.144)

Aliás, o constante movimento entre o autor e seus personagens nos dá pistas

de que a narrativa contém passagens autobiográficas e históricas, e Scorza faz

questão de combiná-los, de forma que elementos de grupos ficcionais troquem de

lugar e posição com elementos de grupos reais, em que o resultado final são grupos

miscigenados entre a ficção e a realidade, verdades sobre um mesmo ponto voando

ideologicamente sobre um desejo de construção nacional.

Mesmo no interior da narrativa, ao citar o paralelismo entre duas vidas

diferentes de personagens que levantam a mesma bandeira política sob um ideal

pessoal e um ideal social, divididos entre o amor e a revolução, não há como não

notar um paralelismo entre o presente (meio) e o futuro (fim) ou entre o poder de

escolha e o destino (fatalidade). Na vida, quanto na obra, os mimetismos que a

imagem emergente dos signos proporciona, são fatos isolados do passado do autor,

sistematicamente combinados para que não se tenha exatamente qual a noção tanto

dos fatos auto e biográficos como dos ficcionados, o que não faz diferença

propriamente à condição absoluta da verdade, mas que impõe à receptividade

estética um estilo único e inconfundível. São instâncias narrativas entre o ser e a

obra e, quando exclui o início (de onde começa realmente a revolução ou quem é o

narrador onisciente dos sonhos dos protagonistas), Scorza alcança um

cosmopolitismo temporal: a denúncia social é um embelezamento de um fato ou

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vários fatos da história oficial contada pela perspectiva de oposicionistas radicais e,

ao mesmo tempo, esse fato ainda não existiu como ponto único isolado na América

Latina, é antes uma faixa de acontecimentos históricos e socioculturais que se

propaga como onda cujas franjas são referências existenciais e políticas no

psicológico narrativo ou no diálogo aberto dos personagens com autores de

diferentes épocas e localidades.

Em terceiro, torna-se impossível, no romance de Scorza, estabelecer

categoricamente onde estão os pontos autobiográficos e onde não estão; sabe-se,

certamente, que estão espalhados e diluídos por toda a narrativa, entre a história e a

ficção, e os que o autor seleciona para ocultar ou para exibir realçam o jogo ao qual

convida o leitor a participar. E seu leitor-alvo é, não só o peruano jovem, de classe

média, alfabetizado, como também os latino-americanos sofredores de ditaduras

afins, e ainda as diversas classes sociais dos mais de trinta países em que foi

traduzido, especialmente na Europa. Assim, utiliza-se de uma mescla entre

elementos autobiográficos e ficcionais para relacionar e contrapor binarismos

complementares entre si, como a civilização e a barbárie, ou o particular e o

universal, de forma a trazer outra faceta da realidade e a peculiaridade do

pensamento humano para o nascimento e amadurecimento de um sujeito-leitor.

Teoricamente, poderíamos observar que ao mesmo passo que os limiares e

fronteiras entre autobiografia e ficção vão se imbricando na obra de Scorza, também

a literatura e os estudos culturais vão se miscigenando na América Latina. A partir

dos costumes socioculturais e antropológicos, às vezes, de partes específicas da

nação, como os da selva amazônica, por exemplo, outras vezes, mais superficial e

genericamente, como as projeções/representações nacionais, é que percebemos as

relações tão características dos romances latino-americanos contemporâneos, entre

o local e o global. Para ilustrar, podemos simplesmente contar com um trecho da

narrativa em que o pensamento de Santiago compara sua excitação em relação à

Marie Claire à glória de seus antepassados e seus mitos de origem através de um

vaso de cerâmica mochita, cultura que floresceu no litoral peruano, o vaso é quase

sem cor e em forma de globo, encimado por uma tubulação e cujo ventre assume a

forma de uma fruta, animal ou da cabeça humana (SCORZA, 1983, p.75), ou ainda

pelas características já cristalizadas vinculadas a cada povo, a seguir:

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Um rapaz alto, branco, simpático, aproximou-se de Santiago:- Você é sul-americano?- Às vezes.- Você tem sorte, eu sou boliviano todos os dias e todas as horas. Até

mesmo quando eu durmo, sonho que sou boliviano... e você, de onde é?- E Santiago, sempre irônico:- Depende.- Como depende?- Depende de quem pague a conta.- Ah, já sei; sacana desse jeito, só pode ser peruano! Sabe falar

alemão?(Scorza, 1983, p.81)

A necessidade de Scorza de se lançar ao universal e de pintar a figura dos

personagens centrais de sua trama como seres cosmopolitas é explícita e inegável.

Em um mesmo capítulo, quando Santiago recebe a notícia de um infiltrado da CIA

entre os camaradas da revolução (Capítulo X), perpassam referências como

Moscou, Equador, China, Bolívia, Peru, Cuba, França, Alemanha, e ainda Dacar,

Interpol, polícias europeias, idiomas inglês, francês e latino, entre outras. A

modernidade está na figura do viajante, que mostra consciência da enormidade do

mundo e nele se insere para se auto-afirmar como sujeito pós-colonial. Em outras

situações, há a iniciativa para composição de uma unidade americana latina, em que

o livre trânsito entre as nações e o conhecimento delas, quando cita os jogos e os

personagens da Copa do Mundo de 1970, os boleros argentinos, a música popular

peruana na pessoa de Pinglo ou na brasileira de Chico Buarque, apropriando-se

dessas culturas para conferir força a manifestações artísticas latino-americanas, e

não apenas nacionais, de cada país.

O personagem David Pent, por exemplo, é um gringo alto e forte, amante de

muitas jovens índias e poderia muito bem ser uma alfinetada do autor em relação à

oposição interna norte-americana. Pent é o detentor das armas e ostentador de uma

grande soma em dinheiro, contratador de nativos, ele, que poderia simbolizar a

intrusão dos EUA e sua ideologia imperialista nos países pós-coloniais latino-

americanos, além de ser aquele que experimenta e deflora as mulheres e crianças

da mata, com quem é amaziado, contraditoriamente, é também a salvação, como

um norte-americano do mundo capitalista que se rebelou contra o próprio sistema e

resolveu contribuir para a revolução comunista e a libertação do povo peruano.

De outro modo, ao descrever entre minúcias as novidades do mundo

moderno, o glamour parisiense e os objetos valorados em qualidade e preço pela

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alta sociedade francesa, como as bebidas (champagnes, vinhos, whiskies), pratos

incrementados de restaurantes chiques, museus, praças maravilhosas, tecnologias

da época (máquina de escrever, toca-discos, etc.), ressoa às vezes irônico, ácido ou

sarcástico. Scorza constrói uma armadilha da imitação super-valorizada e quase

totêmica de uma ex-colônia que supervaloriza o berço cultural de sua antiga

metrópole ibérica, carrasca e bela, com adornos que foram tirados às custas de

suores escravos e mortes pelo caminho, que o passado distante teimava em repelir

e com quem o presente da narrativa limita-se a admirar, em proposital

despersonalização causada pela dependência cultural europeia, tão latente na sua

própria.

Assim, a literatura scorziana, em sua multifuncionalidade, que figura também

como produto ideológico e fruto do espírito de classe, cuja legitimação se deu

sempre através da burguesia, da alta cultura e de critérios estéticos específicos,

expande-se pela crítica e pelos estudos culturais que nela se inserem, além de

ratificar que “a função crítica da literatura é a de não constituir um lugar

especificamente literário, mas de deslocar todos os lugares teóricos e literários”

(Souza, 1999, p.15).

Pois que é fascinante como Rama e Scorza estavam alinhados (o primeiro, na

teoria da literatura de fundo antropológico social; o último, na prática do fazer

literário), em suas transculturações narrativas. Uma delas se dá como produto do

choque cultural entre o invasor e o nativo, busca um passado distante ou

ancestralidade social, como é a saga do povoado de Rancas, entre 1959 e 1960, de

perspectiva bárbara, no ciclo das baladas de Scorza. A outra, que é o objeto deste

estudo, está nos choques culturais entre sua civilização (Peru e América Latina) ser

a barbárie de outra civilização mais “moderna” (Paris-França), e o presente, que

muda o eixo intelectual, econômico e político para os EUA, símbolo de um sistema a

ser combatido pelo comunismo.

Está presente, transculturalmente portanto, nas relações entre guerrilheiros-

peruanos-marxistas-guevaristas-ex-colônia-urbanos e seus algozes-imperialistas-e-

militares-da-ditadura, suas experiências na natureza selvagem, entre povos

amazônicos e também entre as radicais ideologias de direita e esquerda. Scorza

considera sociedades como nações, e também desenha pontes e caminhos,

arredores e confluência de limites, por uma visão de sociedades como grupos,

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formados por ideias comuns de seus componentes. A revolução aqui é que a

transculturação narrativa não se dá em ambiente apenas regional, mas olha a

história pelo viés de minorias, periferias, comunidades desconhecidas ou

esquecidas, da mesma forma. Há uma crítica envolvida nos dois sistemas políticos:

a do imperialismo, invasão e ditadura, por um humor trágico, assim no escárnio que

faz de David Pent na Amazônia como nas imagens de tortura, denunciantes das

atrocidades do militarismo; e do movimento revolucionário do partido comunista

peruano, que apesar de exaltado em Marx, expõe como o uso do poder através de

um comando central que, para ir além da resistência e agir, também se mostra

ditatorial e ocasiona um engessamento da classe quanto à sua liberdade de ir, vir,

pensar e/ou sentir. Pela experimentação e conhecimento de causa do autor, que

conheceu a prisão, o exílio, e a própria colônia penal do Sepa, os elementos

autobiográficos do romance ganham um espaço único de crítica social e manifesto

político-cultural nos movimentos da transculturação narrativa. Eagleton (1997)

levanta alguns pontos interessantes sobre a militância ideológica de direita ou

esquerda, explícita e revoltosa (em relação àqueles contra os quais luta) ou quieta e

pensativa (nas relações internas e hierárquicas do partido ou comando de guerrilha),

mas nunca estática, subordinada a um poder, coincidente com os personagens de

Scorza no romance, conferindo

um saudável grau de respeito à experiência dos explorados: não há razãopara supor que sua docilidade política indique alguma adesão crédula eardorosa às doutrinas de seus superiores. Pode indicar, em vez disso, umsenso friamente realista de que a militância política, num período em que osistema capitalista ainda é capaz de conceder algumas vantagens materiaisàqueles que o mantêm em funcionamento, pode ser perigosa e insensata.Mas se o sistema deixasse de gerar tais benefícios, então esse mesmorealismo poderia perfeitamente conduzir à revolta, uma vez que não haveriauma internalização maciça dos valores dominantes para impedir a rebelião.Com certeza, Abercrombie et al. também estão certos ao salientar que osgrupos sociais subalternos têm, com freqüência, suas próprias culturas, quesão ricas e resistentes e não podem ser incorporadas, sem luta, aossistemas de valores daqueles que os governam. (EAGLETON, 2003, p.44)

Os elementos autobiográficos anteriormente citados, de acordo com os

princípios elencados por Eneida Maria de Souza (2002), em Notas sobre a crítica

biográfica, em que as relações entre obra e autor, obra e vida, promovem a

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dissolução das abas fronteiriças da alta literatura e a cultura de massa, permitindo o

acesso e a democratização da leitura, marcados, em A Dança Imóvel, pela

linguagem mista de pop, popular, endêmica, hermetismos e estrangeirismos, em

algumas ocasiões giriáticas ou chulas. Segundo ela, “O objeto literário deixa de ser

privilégio da crítica literária e se expande para outras áreas, numa demonstração de

estar a literatura se libertando das amarras de um espaço que a confinaria para

sempre no âmbito das belles lettres” (SOUZA, 2002, p.109). Foi, portanto, unindo a

literatura de Scorza com documentos a seu respeito, como cartas e entrevistas, que

se tornou possível o deslocamento do “lugar exclusivo da literatura como corpus de

análise” para “expandir o feixe de relações culturais” (SOUZA, 2002, p.105),

tornando-a livre para ser uma transição do ser e da obra.

Gil (2008) percebe como a prosa de ficção regionalista, tão aceita no passado

em toda América Latina, dadas suas características documentais e a proximidade

cultural do povo e da localidade, sociedade ou comunidade, se desdobrou para

sobreviver. Scorza, por exemplo, assim como Márquez, incorporariam nela um

“universo onírico” e a que outros teóricos chamam “mágico”, “maravilhoso” ou

“fantástico”. Para resistir, o deslocamento provocado pelo choque de cultura,

estudado pelas brasileiras Lúcia Miguel-Pereira e Flora Süssekind, delineia, o

momento exato da transculturação, como fotografia em que se faz possível perceber

os limites entre as culturas em contato se diluindo (aculturações), e se

retransformando (transculturações). Fazem-no também através das considerações

sobre a inserção dos dados autobiográficos nos romances e o movimento do

universal para o particularíssimo (em busca de um nacional), tanto na literatura

scorziana, assim como nas outras latino-americanas contemporâneas, de maneira

geral:

Note-se, portanto, se não estou enganado, que tanto Lúcia Miguel-Pereiraquanto Flora Süssekind, de modo diferenciado – sublinhe-se –, estabelecemestreitas relações entre o déficit estético do romance regionalista e o déficithistórico-cultural, por assim dizer. Não me parece exagero dizer que ospontos de vista das duas autoras se tornam complementares se tivermosem mente a seguinte formulação: a condição problemática do paísdeterminaria não somente uma espécie de movimento endógeno de nossaevolução literária (de fora para dentro), na procura de nossas peculiaridadese particularidades mais significativas, mas também determinaria que omovimento desta busca endógena de peculiaridades tomasse uma formaliterária próxima ao documental, de uma linguagem que de alguma maneiraprocura reduplicar um referente em detrimento dos aspectos

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especificamente ficcionais do discurso literário; no horizonte desta supostaestética da objetividade de nossas peculiaridades estaria presente atentativa de forjar identidades para o país e para a nacionalidade, as quaisencontrariam no romance regionalista um dos estágios de expressão dessaidentidade. (GIL, 2008, p.188)

Há ainda outras revoluções scorzianas que aproximariam a espantosa doença

de Garabombo em Garabombo, o Invisível (1975), ou antes, a invisibilidade do

indígena apenas aos estrangeiros, mas não aos de sua própria gente, no plano da

imagem e do conteúdo, ambos representações de um signo recuperado, esvaziado

e remodelado, através da utilização de elementos oníricos trazidos da inconsciência

para a consciência (busca por um passado mais ancestral) e vice-versa (busca um

passado mais próximo e alinha-se ao presente urbano, direcionado para o futuro).

Então todos comprovaram que Garabombo era verdadeiramente invisível.Antigo, majestoso, interminável, ele avançou em direção à Guarda deAssalto que bloqueava a Plaza de Armas de Yanahuanca. Só cães nervososhabitavam a fria solidão. Vinte guardas, com os capotes levantados contra oaquilão, defendiam a descida do rio Chaupihuaranga (SCORZA, 1975,p.11).

Processo similar a este está na coroação de Nicolás Centenario pelos vaga-

lumes, que lhe cobrem todo o corpo, trazendo-lhe a morte libertária e a

transformação em mártir ou ainda uma chuva de peixes schulla, de formatos fálicos,

que excitam sexualmente os indivíduos cholla em A Dança Imóvel. Porém, como já

dito anteriormente, não apenas o fato de utilizar-se de certos recursos e estratégias

que fazem parte do universo do metafísico, inexplicável, incomensurável, onírico,

inconsciente, maravilhoso, impossível, mágico ou inominável justifica a

caracterização da obra de Scorza como heterogênea e tranculturadora narrativa. O

fator que merece destaque de crítica é que a revolução scorziana, em seu fazer

literário, está na proposta da diminuição da perda cultural (considerado o momento

de choque entre culturas já uma aculturação inicial na comunidade cultural

dominada) quando da tradução entre meios orais ou ágrafos para uma cultura

grafada (como já observado por CORNEJO POLAR, 2000). O autor, através da

utilização de imagens e situações hiperbólicas que, ao emergir do pensamento,

completam o significado da palavra, ilustra, sua sociedade através de um símbolos

culturais recém-transculturados. O condor (símbolo nacional peruano da renovação

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da vida), o jaguar (representando a liberdade, força e religiosidade a cultura das

incorporações dos líderes espirituais em outros animais), o índio invisível

(Garabombo, o invisível), o rio congelado no tempo (Bom dia para os defuntos), o

corpo de Nicolás banhado de ouro pela luminosidade dos milhares de vagalumes (A

Dança Imóvel), todos são ícones que carregam conteúdos culturais, podendo ser

esvaziados de significado para ser preenchidos com outros significados totalmente

diversos ou apenas modificados em relação ao conteúdo semântico original,

podendo manter, inclusive linguisticamente, forma, significado e/ou sonoridade. A

esses efeitos textuais, talvez pudéssemos chamá-los apenas de “imagens culturais”,

já que contêm, como uma palavra-valise ou um curinga semântico, aspectos

culturais não condicionados exclusivamente à escrita e sua prática.

3.3 A revolução sociocultural do intelectual latino-americano e a literaturacomo crítica

Os autores latino-americanos contemporâneos expõem claramente suas

ideias e posicionamentos de acordo com sua visão do social, do continental e do

mundial (mundo ocidental). Um marcador perceptível de que os intelectuais latino-

americanos participam tão ativamente da política quanto da arte está na literatura e

nas demais suas manifestações artísticas. Juan Rulfo, por exemplo, em O galo de

ouro e outros textos para cinema, de 1980, dizia, na sinopse do filme, algo que

desvenda a narrativa e a imagem na ideologia e a sensação de estranhamento e

deslocamento do indivíduo cubano (e latino-americano) diante do mundo moderno,

por onde perpassam sentimentos afins relacionados às angústias advindas das

ditaduras sofridas pelos seus autores americanos latinos:

Embora este filme contenha uma série de cenas aparentemente desligadas,o conjunto é a consequência da alienação produzida num enfermo, no qualé aplicado, através do procedimento clássico intravenoso, um líquido cujaFÓRMULA SECRETA em vez de reanimá-lo, o afunda mais e mais naprostração e o leva por túneis escuros, onde só aflora um mundo de miséria,de dor, de angústia e de pânico. (...) Por outra parte, trata-se de uma experiência. E ao apresentar, atravésde imagens, determinadas situações nas quais predominam a sátira, asolidão e as forças compulsivas às quais é arrastado qualquer homem cheiode carências num país influído pelo automatismo e a técnica maquinista,

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este homem, pobre e ignorante, logicamente tem que se sentir deslocado(RULFO, 2000, p.87)

Ora, sendo a América Latina um enorme espaço literário em que diferentes

vertentes artísticas coexistem, unida pelas línguas e costumes comuns, passados

comuns, considera-se o multiculturalismo e a pluralidade de estilos nela constante

termos muito bem forjados para caracterizá-la. É curioso notar que a

heterogeneidade da literatura latino-americana está inserida não só nos grupos

sociais periféricos, como os indígenas, rurais e/ou outros, suas tradições, mas

principalmente no processo de ruptura sociocultural e uma posterior ressignificação

dos signos culturais através da linguagem, conteúdo e forma; assim, o discurso do

dominante alavanca os outros discursos culturais subalternos, autênticos ou

fabricados, pelo viés do excluído da história (CORNEJO POLAR, 2000).

Pelo mesmo raciocínio, note-se, em A Dança Imóvel, que a selva amazônica

é o indício emblemático de um mundo natural absoluto, como um deus geográfico e

biológico, sobre a qual o homem urbano e civilizado não tem poderes para subjugá-

la. Os índios das etnias campa e chamas estão integrados à natureza, em

irmandade cultural e religiosa e, portanto, podem dela desfrutar. O rio, o sol, a selva,

animais e plantas são seus aliados. Em contrapartida, Nicolás, ao trazer para a

natureza seu mundo civilizado, moderno e urbano, é duramente castigado por ela, e

aprende que não pode controlá-la ou dominá-la, nem utilizar-se dos mesmos

artifícios ou repetir discursos e ações de sucesso no jogo pelo poder, o qual está

acostumado a experimentar, tanto como algoz quanto como vítima, em seu limitado

mundo. São culturas em choque os nativos em harmonia com a natureza e o

urbanoide, que desconhece seus segredos e sua riqueza e por isso mesmo

despreza-a, pois é para ele indomável e, estando de mãos atadas, resta-lhe apenas

explorá-la, conforme os preceitos apreendidos em seu passado colonial, onde

residem as heranças e os legados de tais ignorâncias.

Manuel Scorza aproveita-se de sua condição de autor para utilizar a literatura

como instrumento de conscientização política, propagação da crítica literária, além

de fragmentos filosóficos advindos de um fluxo contínuo de pensamento. Pois,

Scorza, sendo autor e manifestante, por exemplo, ao concluir a pentalogia de

novelas de A Guerra Silenciosa, composta por cinco novelas publicadas

originalmente entre 1970 e 1977, (sobre o confronto dos campesinos comuneros do

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pequeno povoado de Rancas, no Vale Central do Peru e invasores imperialistas de

uma multinacional canadense), dado o alcance de sua literatura, não só pela

linguagem sedutora e democrática de que se utiliza, mas também por toda uma

cultura que deixa viva nas páginas das baladas, testemunhou, ainda, em vida, a

reforma agrária na região, palco de sangrentos massacres, e muitos hectares de

terras foram devolvidas aos seus habitantes nativos.

Em A Dança Imóvel, de 1983, pode-se ver na ironia do editor, no restaurante

La Coupolle, a ardente crítica sobre a literatura latino-americana e sua função de

guardiã e atualizadora cultural é entrecortada por vários episódios, acidamente:

- Os leitores de literatura latino-americana vivem nos pântanos do erro.Inclusive os criadores, os garcía márquez, os carpentier, os borges, osvargasllosa, os sábato, os rulfo, os spota e outros habitantes dessa Manchacujos nomes prefiro não me lembrar, acreditam mostrar a profunda AméricaLatina. Na verdade, não expressam a estrutura subjacente, conflitada porsintagmas sempre desafortunados. Os criadores são sempre inconscientes.Cervantes não sabia que era o autor do Quixote...(SCORZA, 1983, p.19)

Em outra ocasião, explica não só o papel da literatura, como também do

intelectual ou autor que a produz, quando se refere a Salvador Allende45, no diálogo

dos personagens Santiago e Marie Claire, por exemplo:

- Será que Allende sonhou muito alto? – perguntou-me.- Nunca se sonha muito alto.- Não se pode fazer política e poesia ao mesmo tempo – definiu ela.- Pelo contrário: é imprescindível fazer política e poesia. Quando um

revolucionário não é um poeta, termina por ser ditador ou burocrata, umdelator dos próprios sonhos... (SCORZA, 1983, p.47)

Alejo Carpentier, por sua vez, também é um desses autores em que autor,

obra e vida possuem muitos pontos em comum. Dono de uma aguçada sensibilidade

musical, da mesma intensidade que a agudeza de suas críticas, ele aproveita seu O

músico em mim, de 2000, para tecer uma forte crítica da arte, a partir de textos de

outra natureza, ou melhor, de artigos jornalísticos relacionados à música, tanto em

Cuba quanto na Venezuela, durante as décadas de 1950 e 60. Já em O Recurso do

45 Salvador Allende (1908-1973). Médico e político marxista chileno. Fundador do Partido Socialista,governou o Chile de 1970 a 1973, até ser deposto por um golpe de Estado liderado por AugustoPinochet, chefe das Forças Armadas chilenas da época.

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Método (1985), utiliza-se de ironia e sarcasmo, além de uma crítica posicionada que

usa o mesmo drama latino-americano de repressão e ditadura no romance. Mas é

mesmo com O Cerco (1988) e Os passos perdidos (2009)46 que Carpentier mais se

aproxima de A Dança Imóvel de Scorza (1983), em matéria de crítica social e

ideológica, através de uma novela cujos fragmentos narrativos parecem estar fora

de ordem ou de senso para montagem da história da revolução pelo leitor:

EXPRESSO. Procedência: Sancti-Spíritus. A mão largou o inútil pincel debarba que serviu para traçar vistosamente as palavras com tinta nanquim. Oprotegido se contempla a si mesmo, naquele instante decisivo de sua vida.Vê-se atarefado em meter coisas dentro do velho baú, trazido para a ilha, hátantíssimos anos, pelo avô emigrante. Os parentes e amigos que o cercame logo o acompanharão à estação deixaram, esta manhã, de se mover nopresente. Suas vozes lhe chegam de longe, de um ontem que se abandona(CARPENTIER, 1988, p. 35).

No primeiro, o romance do cubano preso durante a ditadura de Gerardo

Machado até 1931, conta também a história de um revolucionário que é preso

durante o movimento opressor. Protagonistas, narradores e os próprios autores são

confundidos várias vezes, pois acabam por ter uma imagem parecida, já que as

coincidências estão além da história. No segundo, um musicólogo, ao desistir de

uma triste e difícil realidade de vida em Nova York, decide coletar instrumentos

musicais indígenas em regiões ainda isentas da “civilização” na região florestal do

Rio Orinoco, inspirado na experiência própria do autor e vivenciada no interior da

Venezuela. A vontade de fugir cada vez mais para dentro de um passado, mais para

longe de todos os passos perdidos da humanidade, de todas as mazelas

latinoamericanas, todas as guerras, desmandos, torturas, escravidão e opressão é

também uma resposta clara ao azedume e repulsa trazida pelos efeitos colaterais e

econômicos da era moderna, representada tanto pelas vozes e discursos

hegemônicos de colonizadores e ditadores.

Já García Márquez, em Do Amor e Outros Demônios (1994), narra, ao final do

século XVIII, as dificuldades de um amor proibido (mas consumado) entre o padre

Cayetano Delaura e a jovem de cabelos que jamais seriam cortados até o dia de seu

casamento (simbolizando também a pureza e a virgindade), Sierva María de Todos

los Ángeles, em meio à tensão crescida entre escravos africanos e seus rituais

46 O original foi publicado em 1963.

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sagrados, feitiçarias aos orixás e a força da Inquisição e os exorcismos de

despossessão dos demônios da qual acreditam ser a moça inquilina ou veículo. A

sociedade colonial vestia-se de carrasco que matava os deuses dos outros para

erguer o seu próprio. As regras, as incoerências, as proibições e os tabus e

principalmente, o desrespeito à cultura do outro, promovidas pelos choques entre as

crenças religiosas e mitos de criação mostram um caminho a ser evitado, libertar-se

do passado para reorganização do presente social. Os choques dos grupos culturais

estão presentes entre a relação dos dogmas religiosos do catolicismo (também

utilizado para manutenção e controle do poder) e das crenças religiosas africanas.

Também o venezuelano Uslar Pietri, em As Lanças Coloradas, de 1977,

reescreve a epopéia de Bolívar em que se harmonizam os planos sociológico e

psicológico em linguagem poética e denuncia as perseguições, analisa a rebeldia

dos escravos e o fanatismo religioso, fazendo brotar nos oprimidos a ideia de

liberdade e, na classe média venezuelana, o sentimento de independência e a

concepção de pátria. Através dos protagonistas Fernando Fonta e Presentación

Campos somos presenteados com o entrelaçamento do drama individual e do

quadro histórico da Venezuela.

No entanto, a despeito das revoluções mais políticas e militantes,

propriamente ditas, está a que Borda (1968) considera uma “revolução das

expectativas”, que determinava, segundo o estudioso, o desenvolvimento da

comunidade:

Quando este movimento foi introduzido pela primeira vez na América Latina,na década de 1950, previam-se grandes mudanças. No entanto,excetuando-se sua aplicação em contextos totalmente revolucionários comoos de Cuba e Bolívia, ou o do México na época das “missões culturais”, estemovimento resultou num outro caso típico de mudança marginal,frequentemente simulado. Teve, sobre a sociedade, efeito similar àconseqüência enganosa da coca sobre o estômago. (BORDA, 1968, p. 83).

O próprio Scorza, em Cantar de Agapito Robles (1979) ilustra o processo da

disseminação artístico-literária dos países da América Latina por todos os

continentes, em tentativa de delimitar uma gigantesca área cultural, na qual estão

igualmente representadas as diferenças de cada ilha cultural (ou comarca, como

queria Rama), e sua crítica, além de explicitamente ideológica (anti-imperialista, já

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que obviamente parte de uma rádio cubana), denuncia a oligarquia e o monopólio de

terras na cordilheira dos Andes:

Aqui Rádio Cuba, de Havana, Cuba, primeiro território livre da América, umprograma em quíchua destinado aos camponeses do Peru, Equador eBolívia.Um sorriso de orgulho infantil iluminou o rosto dos procuradores sentadosem torno do rádio transmissor do Coxo.

(...) Comuneros da Cordilheira dos Andes, de Cuba mais uma vez nossoapoio revolucionário no combate que travam contra a oligarquia peruana aserviço do imperialismo. Esse combate é fundamental para os destinos doPeru e da América. Fundamental, sobretudo, para implantar a justiça numpaís oprimido por uma oligarquia medieval que monopoliza a terra do Peru.As cifras são claras.

(...) As próprias fontes de informação de origem burguesa admitem os fatos.Cinco por cento dos proprietários açambarcam 95 por cento da terracultivável do Peru, e 95 por cento dos camponeses sobrevivem, nascondições mais miseráveis em 5 por cento das terras (SCORZA, 1979,p.161).

Uma outra conclusão que deve ser levada em consideração é a diferenciação

entre a modernidade e a pós-modernidade. As prosas de ficção contidas nas cinco

novelas pertencentes à Guerra Silenciosa (de 1970 a 1977) estariam realmente

ligadas a uma transculturação narrativa cujo presente se lança à modernidade. Já

em A Dança Imóvel (1983), a fase de transição do presente para o futuro caminha

para a pós-modernidade, apesar de defender o ponto de vista de que é apenas uma

aceleração maior desse período nesse trajeto temporal, em que a tecnologia, a

globalização e a era da informação são realidades cada vez mais assustadoramente

velozes.

Cortázar (2001), que percebe as vertentes literárias regionais e crítico-

realistas urbanas do modernismo, representante crítico e literário da comarca

pampiana, defende seu pensamento reagindo a críticas redutoras da literatura

americana latina pela percepção de que a arte narrativa do continente ultrapassa

qualquer consideração a respeito da necessidade de indicadores definidores prévios

para limitá-la, uma vez que já a considera livre e coberta de suas próprias cores e

pernas:

Sem temor de criar mal-entendidos, posso afirmar desde já que a mais vivae a mais fecunda é uma literatura que já não precisa da proteção ou da

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etiqueta do típico, do pitoresco, do paroquial em qualquer de suas formas,porque possui força e experiência suficientes para mostrar suasinconfundíveis origens e raízes sem ter de refugiar-se numa temáticaexclusivamente nacional ou regional. Nossa linguagem logrou umamaturidade estilística, uma riqueza de invenção, uma variedade demetamorfoses e permutações que lhe permitem abarcar tematicamente oshorizontes mais vastos sem deixar por isso de ser extremamente latino-americana. Basta ler sucessivamente um romance de Juan Carlos Onetti,um de Gabriel García Márquez, um de José Lezama Lima e um de AugustoRoas Bastos, citando apenas alguns grandes nomes, para se ter a provamais vertiginosa e conclusiva da abertura e da diversidade literária nocontinente latino-americano. (CORTÁZAR, 2001, p.183-184).

Outro aspecto relevante da literatura scorziana e da produzida na América

Latina, como um todo, é a função crítica nela presente. Se Compagnon (2010),

considera como funções da literatura a instrução e o agrado (recepção) de acordo

com o modelo humanista vigente à época,

Aristóteles considerava-a um conhecimento especial, dissociado dosconhecimentos científicos ou filosóficos, portas para a compreensão para ocomportamento humano e a vida social. Sua voz está no discurso, pode sercontra ou a favor da sociedade dominante, ser sincrônica, diacrônica emrelação à história, ou mesmo antecipá-la (COMPAGNON, 2010, p.37).

Hoje, além do exposto, a literatura é considerada arte, diversão, ludismo,

conhecimento, transdisciplinaridade, legado cultural, parceira, amante ou assassina

da história, receptáculo cultural dinâmico que pode atualizar a memória e a história

dos povos e este é o motivo por que precisamos urgentemente incluir, para o

continente sul-americano, ainda nela, as funções política, social e crítica, pois que

move seus leitores e leva-os a uma conscientização socializante a respeito do ser

consigo mesmo, o ser em sua comunidade, e o ser no mundo. O grande trunfo da

literatura latino-americana é ter alcançado, a partir da literatura da era moderna

contemporânea, em que percebemos as transculturações narrativas com maior

facilidade, a autoconsciência de seu papel e de seu alcance e a autonomia para

reinventar-se.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Livros e terras

Este estudo caminha na direção de trazer outro olhar à literatura latino-

americana, pois que ela mostra-se muito mais que somente uma literatura

panfletária ou imaginativa (mágica, maravilhosa, fantástica). O depreciosismo que

advém desses rótulos (e todo rótulo é impreciso e preconceituoso) parece localizá-la

e caracterizá-la como uma literatura menor no Ocidente.

A obra de Scorza aqui estudada é compreendida como representante literária

latino-americana e seu conteúdo, forma e expressão autoral são analisados, antes

de recair sobre julgamentos precipitados e incompletos a respeito de sua qualidade

literária.

Parece-me que essa necessidade de rótulos e outros adjetivos inadequados à

literatura latino-americana age como diminuidora de sua alma artística e configura-

se como obstáculo para uma análise antropológica e sociocultural mais profunda.

Além disso, compromete ainda a fruição e a percepção das formas criativas de

composição. Ainda, essa delimitação crítica da literatura latino-americana em torno

de suas características mais gerais, dada sua vasta heterogeneidade, incorre na

inevitável situação de conter mais exceções que regras. Para agravar ainda mais o

quadro, tal posicionamento, consciente ou inconscientemente, repete todo o

processo político, social e econômico do dominante estrangeiro (norte-americano ou

europeu) em solo latino-americano. Porque da mesma forma como o conquistador

invade as terras dos nativos do continente e as delimita, tomando-as para si,

expulsando-os, matando-os ou escravizando-os, montando bases de sua nação

dominante na nação dominada e, por assim proceder, deixar escapar a poesia e a

beleza dessa cultura e seu sujeito, também uma parte da crítica, ao demarcar essa

literatura simplificando-a em linhas genéricas, repete o discurso dominante,

analisando o sujeito sob um prisma viciado e egoísta, desconsiderando as

diferenças e criando uma espécie de colonização literária.

A metáfora comparativa entre terras e livros, mediada apenas pela linguagem,

pode vestir-se de ditaduras ou imperialismos ao invés de regressar à época das

grandes navegações e à necessidade premente de dominação, riqueza e poder à

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custa de sangue índio, mas o efeito na literatura é sempre o mesmo: um

confinamento em si mesma e uma batalha incomensurável para libertar-se dos

paradigmas literários daqueles que foram os professores da escrita, no desejo não

só de superar o mestre, como mostrar-lhe a verdadeira face. Nesse ímpeto libertário,

as obras não podem ser analisadas apenas por sua forma e conteúdo, mas também

pelo contexto histórico e sociocultural que as rodeiam. À literatura latino-americana,

é impossível não ser política, como impraticável não ser imaginativa. Ser apenas isto

é ser diminuída pelos diminutos e ratificar o discurso opressor do dominante,

desprezando o melhor da história.

Felizmente, aqueles que deixaram de observar que a literatura latino-

americana é muito mais do que dizem, abriram as portas para que autores como

Scorza ou Arguedas, por exemplo, pudessem apropriar-se dela para utilizá-la como

instrumento de crítica social e literária, aprofundada na existência humana.

Fundação Biblioteca Ayacucho

A intelectualidade e desejo de fortalecimento da cultura latino-americana

afloram nas idéias e ideais de Ángel Rama. O esforço e mérito por conseguir dar

unidade ao que considerou sistema literário latino-americano, nele incluindo, pela

primeira vez, o Brasil, apesar da barreira linguística entre as línguas portuguesa e

espanhola é todo dele. Ao considerar a pluralidade e heterogeneidade das regiões

culturais (e não limitadas às demarcações oficiais políticas de cada nação) que

mostram afinidades na origem, no passado, nos costumes, como partes de um todo

coeso, através de seu conceito de comarcas culturais, Rama deu forma a um

enorme arquipélago cultural e construiu canoas, entregando seus remos aos autores

latino-americanos para que houvesse escambos literários entre suas diversas e

múltiplas ilhas.

O projeto de Rama tem imensa colaboração de Antonio Candido, que definiu

a importância da comunicação e da relação entre autor-leitor-obra, sistematizando-a

sociologicamente, para o caso brasileiro. Rama utilizou o modelo de Candido para

toda a América Latina. A contrapartida de tal empreitada se deu na criação da

Biblioteca Ayacucho, em 1974, na Venezuela, onde Ángel Rama foi seu idealizador e

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primeiro coordenador / diretor. Convém destacar para sua consolidação a

contribuição de Darcy Ribeiro, tanto nos prefácios de obras latino-americanas

quanto na indicação de obras brasileiras a figurarem no acervo da Fundação,

traduzidas para a língua espanhola (COELHO, 2013)47.

Vale lembrar que não só a competência crítica e/ou literária dos brasileiros

auxiliou o processo de unificação literária entre os latino-americanos, conforme

queria Rama, mas também suas aptidões sociológicas e antropológicas para melhor

definição dos parâmetros do sistema a ser estabelecido e seguido, além das

escolhas das obras dos autores brasileiros a serem incluídas na Ayacucho. É como

tentar responder às perguntas: quais são nossos melhores representantes literários

e por que, que temas transversais perpassam nossa arte?

A importância da Fundação Biblioteca Ayacucho para a América Latina é

indiscutível. Hoje, 41 anos após sua fundação, podemos acessá-la na internet em

http://www.bibliotecayacucho.gob.ve e observar que contém inúmeras obras para

download gratuito, em formato digital (pdf), mantendo as obras originais para

consulta. Com áreas do conhecimento que vão desde a Antropologia, Etnografia,

Etnohistória até Cultura Indígena, além de funcionar como um canal de notícias e

acervo de obras que nos permitem estudar mais a fundo a história da América

Latina, encerra títulos que vão desde Inca Garcilaso de la Vega (“Comentarios

Reales I” e “Comentarios Reales II”), cronista e historiador mestiço, nascido em

Cuzco (1539-1616), capital do Império Inca, até Pablo Neruda, em seu “Canto

Geral”, ou ainda Símon Bolívar, em sua “Doctrina del libertador”, ou em seu

“Pensamiento político de la emancipación”. Funcionando como patrimônio cultural da

América Latina, não há maneira de discordar do disposto em sua página eletrônica:

A Biblioteca Ayacucho assume a missão de assegurar o cumprimento cabalde um projeto editorial que garante a preservação e difusão da memóriadesta América, colocando à disposição os diferentes públicos leitores emdiversas coleções e formatos.48

47 Ensaio produzido por Haydée Ribeiro Coelho, intitulado “O papel do intelectual, a cultura e a BibliotecaAyacucho: Antonio Candido, Ángel Rama e Darcy Ribeiro”, que figura na coletânea de ensaios “Ángel Rama:um transculturador do futuro”, publicado em 2013, pela editora UFMG, p. 119-135, organizado por FlávioAguiar e Joana Rodrigues.

48 Tradução. Original disponível em (http://www.bibliotecayacucho.gob.ve/fba/index.php?id=4)

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Possui sete coleções, disposta em “Coleção Clássica”, que contém autores e

textos fundamentais da América Hispânica pré-colombiana; “Chaves da América”,

composta de antologias ou versões reduzidas da Coleção Clássica; “A Expressão

Americana”, composta de memoriais, biografias, antologias e outros materiais

pessoais e subjetivos, de natureza ensaística; “Chaves Poéticas da América”, que

engloba os processos políticos do continente; “Futuro”, que contempla a atualidade

inovadora e inclui antologias regionais; “Paralelos”, que complementa os alcances

da Coleção Clássica; e “Coleção Prólogos”, considerada como um conjunto de

textos que iluminam outras obras, ordenados tematicamente. Assim, a Fundação

Biblioteca Ayacucho representa um marco editorial da literatura americana-latina, e a

persistência de Ángel Rama em criá-la e consolidada tem sua recompensa na

avidez e descoberta de leitores, pesquisadores, estudiosos, escritores e críticos.

Embora não se encontre pela ferramenta de busca no portal da Biblioteca

Ayacucho qualquer obra de Manuel Scorza, imagina-se aqui que tal fato deva-se a

questões de legislações relacionadas ao domínio público e direitos autorais, pois

não faz sentido um autor da magnitude do peruano não ser contemplado com o

acesso livre a pelo menos uma de suas obras. De qualquer forma, conforme previu

Antonio Candido, é no reconhecimento de instituições de suporte, como as casas

editoriais, que se fortalece um sistema literário, e isso é bem representado pela

Biblioteca Ayacucho.

Críticas à transculturação de Rama

Embora há quem diga que Rama compreende o uso da palavra escrita como

mecanismo privilegiado em detrimento das demais manifestações culturais ágrafas e

corra o risco de causar desterritorializações e desmaterializações por conta disto,

como o crítico Gustavo Remedi, citado por Ligia Chiappini, em seu ensaio “Ángel

Rama e Antonio Candido: teoria, utopia e antropologia” (CHIAPPINI, 2013)49, há de

se utilizar o bom senso antes de atacá-lo antropologicamente.

49 Presente em “Ángel Rama: um transculturador do futuro”, publicado em 2013, pela editora UFMG, p. 47-78,organizado por Flávio Aguiar e Joana Rodrigues.

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Em primeiro lugar, precisamos separar o ideário do ser humano entre

competências e lazer. Rama é escritor, crítico, intelectual, sua competência é a

literatura e a crítica, e o termo ‘transculturação narrativa” não é aleatório. Se ele

estuda os processos culturais dentro da literatura e utiliza como corpus de pesquisa,

a literatura escrita, como culpá-lo por não estudar as narrativas orais? Quem já

andou a metade do caminho e possibilitou que o crítico andasse a outra metade,

poderia ser culpado por não andar o caminho inteiro?

Quanto à desterritorialização e desmaterialização, essa é uma inevitabilidade

do mundo, um efeito da globalização e da era da informação que a modernidade,

mascarada de progresso tecnológico, vem buscar, como um ávido cardume de

piranhas. Rama observou a guarda da cultura, assim como suas hibridações e

miscigenações, através das palavras, e não poderia tê-lo feito de nenhuma outra

forma. Ainda assim, admitiu perdas, e sua transculturação narrativa busca no

passado distante, pela escrita como instrumento e testemunho, a primalidade

modificada da cultura. Separada do presente, e somada à pesquisa-vivência dos

autores literários, ela é quase pura ou autêntica. Mas Rama não busca autenticidade

cultural, simplesmente. Trata, antes, de uma coerência social e cultural, as

imbricações do ontem e do hoje, o que se perde, o que se ganha e o que se recicla,

literariamente, em que o fato e o sintoma são mais importantes que sua causa,

normalmente tratada num plano absoluto.

Imagino que Rama trata a palavra escrita como um link ao passado cultural, e

o despertar para uma ancestralidade ou um passado mais recente dependerá

sempre do momento presente, espaço cabido ao leitor, entre selecionar para

esquecer ou guardar e ir além onde o espírito curioso o guie, ou simplesmente

descartar e abraçar o novo sem olhar para trás – embora o fato cultural esteja lá,

grafado, como registro ficcional ou não. São escolhas do leitor crítico e do crítico

leitor. Se há muitas outras formas de se entender a transculturação, Rama se

dedicou a esta, escrita e literária, e não há como criticá-lo negativamente por isso.

Devíamos felicitá-lo por desenvolver teorias e trabalhar pelo social, mesmo porque,

às suas idéias, acrescentam-lhe outras os críticos, negativa ou positivamente, mas

apenas somam, não criam exatamente nada de novo, reclamam do que Rama

deveria ter previsto, mas não apresentam soluções para os problemas que envolvem

a oralidade e a escrita.

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A respeito ainda da escritura e das manifestações culturais ágrafas, Cornejo-

Polar (2000), nos alerta sobre as traduções interessadas dos registros históricos

também dos cronistas, sejam europeus, mestiços ou nativos, em relação à morte de

Atahualpa, imperador inca, quando da chegada de Pizarro a terras andinas. Cornejo-

Polar analisa, mas adverte desde o início que sua competência para analisar a

dança e a interpretação, por exemplo, e suas inúmeras e diversas formas de

analisá-la, foge à sua alçada. As múltiplas versões de um mesmo fato moldam um

todo. Se o todo é desequilibrado para o lado do dominador, isso, além de ser uma

outra história (ou melhor, uma história incompleta), não faz parte das competências

literárias.

Há tempos, à literatura é atribuído um papel maior que a informação, diversão

e registro. Se a própria história, por sua parcialidade inconteste, não dá conta de

abarcar o passado, seria esta função atribuída somente à literatura? Em tempos de

unirmos nossas ciências humanas (todas desenvolvidas pelo ser humano e não só

as da área de conhecimento específicas) para buscar a razão da existência e

adentrar o desconhecido, delegar uma responsabilidade dessa somente à literatura

não seria um exagero?

Como na Farmácia de Platão (DERRIDA, 2005), o bom-senso impera em

relação à escrita e a oralidade. A palavra, livre-arbítrio da comunicação dos

humanos, reveladora do íntimo de quem a escreve, como legenda de um

pensamento ou de uma cultura, assim que escrita, pode promover tanto o

esquecimento como a lembrança, dependendo de seu uso. Sendo um phármakon, é

remédio e veneno, ao mesmo tempo, pois atualiza o passado (cura) assim como não

traduz com fidelidade a cultura sem escrita (veneno). No presente estão aqueles que

buscam, errantemente, uma concentração ótima de tal substância, que só pode ser

assimilada numa relação com o tempo. Portanto, não se trata de atrelar à escrita, e

muito menos à literatura, a responsabilidade única de arqueologizar a cultura. Nós,

latinos, assim o fazemos, transculturalmente, às vezes, e essa é nossa afinidade

cultural, que há poucos anos atrás, davam o nome de ‘identidade’ e que hoje caiu

em desuso (BAUMAN, 2005). Não significa que a literatura fique estática, sua função

mais importante permanece sendo a de libertação. É a liberdade de narrar, poetizar

e representar o mundo e a forma em que vivemos nele socialmente, e ainda a

faculdade de auto-conhecimento e auto-consciência quando entramos na realidade

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do outro, esse grande outro, o texto, gente em palavras. O que deve ser

compreendido nesse ludismo teórico é que o phármakon de Derrida não remonta à

mesma oralidade que Scorza e as literaturas transculturais trazem à luz das

narrativas escritas, mas serve de catalisador da consciência histórica do ser, no

caso, latino-americano. Em textos e contextos diferentes, os dois autores buscam a

vivacidade da tradição através dos escritos; Scorza transforma mais palavras em

cura que veneno, são caminhos diferentes e a metáfora derridiana da substância

e/ou beberagem da história é utilizada aqui para completar o sentido da força sócio-

cultural presente na literatura latino-americana.

Scorza e a máquina de sonhar

Manuel Scorza relatou em uma de suas entrevistas que a literatura é uma

máquina de sonhar. Utilizou-se do termo “onírico” para se referir às manifestações

que iam de encontro ao inconsciente coletivo de uma sociedade. Mais do que isso,

considerou que a história onírica, que revela a cultura e o andamento da sociedade

peruana, aumentada para toda a América Latina, é indissociável de sua história

política.

Scorza faz uma ponte de seu presente pessoal e social ao passado de forma

tão auto e biográfica que o âmbito desta pesquisa viu suas chances de aprovação

caírem pela metade. Ao mesmo passo que sua discrição e reserva pessoais são

latentes em solos brasileiros, da mesma forma não me foi possível adentrar algumas

situações interessantes de sua vida, como por exemplo, o período em que viveu em

São Paulo, SP. Portanto, os achados acerca do autor foram selecionados de acordo

com o que há na rede, aberta a todo os leitores, disponíveis na bibliografia e

também como anexo deste trabalho (em CD). Como se tratava de um caso de

perseguição política, exílio e fuga, a questão ética de preservação à integridade

moral do indivíduo e sua família ficou em primeiro plano, de forma que todas as

demais intuições ficaram no plano das relações entre obra e recortes de vida, só não

descartadas porque legítimas, possíveis.

A discussão em torno dos temas Amor e Revolução, firmemente defendida

por Scorza em A Dança Imóvel, abordada neste estudo, trouxe grilos, pirilampos,

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louva-a-deuses e pulgas em relação à sua biografia. Por se tratar de possibilidades

e não de certezas, não tratei delas, especificamente. Foram utilizadas outras formas,

como o artifício do sarcasmo, a ironia, ou o uso do que considera história onírica,

para sintonizar o tempo do narrador ao tempo do autor.

A comparação, até certo ponto divertida, com nossos amigos insetos,

simboliza a grande variedade de classes urbanas dominantes, o falso deslumbre de

uma sociedade moderna e o raio-x do exame de Scorza em relação aos grupos

minoritários peruanos, revolucionários, minoritários, contra a invasão explícita de

uma política imperialista inadaptável ao Peru (como em grande parte dos países

latino-americanos), à época.

Revoluções scorzianas

As revoluções scorzianas começam entre o ciclo de baladas conhecido por “A

guerra silenciosa”, composta de cinco novelas, iniciadas em 1972, e finalizadas em

1977, e vão até a “A Dança Imóvel”, de 1983. O costume à linguagem do autor nos

dá a entender que também sua última novela seria parte integrante de um conjunto

narrativo, embora não tenha tido tempo de finalizá-la.

Fica, portanto, uma certa mágoa por não poder realizar a pesquisa in loco, por

não encontrar materiais fidedignos e/ou pessoas que conheceram Scorza, a fim de

desvendar tal mistério: A Dança Imóvel é um romance ou seria parte integrante de

uma obra maior? Como a dúvida traz mais respostas do que perguntas, da mesma

forma que pareceu-me inútil suscitá-las, já que o autor não se encontra mais entre

nós para atestar as suposições aqui plantadas, foi considerada a ficção e a suposta

realidade sobre a vida do autor como iguais. Além disso, foi assimilada também uma

outra história, e talvez esse termo não seja adequado, “outra”, mas complementar,

para os absurdos cometidos contra o povo peruano. De qualquer forma, é

perceptível uma enorme diferença entre suas obras regionais anteriores e esta

última, bem urbana. Como previsto por Rama, a transculturação narrativa busca na

linguagem, na composição literária e na busca do passado um phármakon para o

presente. Salienta-se aqui que a cultura da América Latina ser um phármakon não

representa, afinal, um obstáculo: damo-nos por satisfeitos de poder, através de uma

consciência social (um dos papéis da literatura), perceber a escrita e optar, individual

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e/ou coletivamente, por suas funções medicinais ou tóxicas, em suas manifestações

históricas e socioculturais no tempo. Neste último romance, deu-se de forma dividida

entre as relações urbanas / rurais, do universal para o localíssimo, e do externo

(França) para o interno (Peru, mas não só; funciona como um geral para toda a

América Latina).

Em relação às transculturações narrativas, há de se compreendê-las em

sistemas de gradações. Há obras em que são mais facilmente observadas, em

outras, vemos sua sombra. O que me parece novidade é que quanto mais furiosa é

a aceleração do tempo diante da modernidade, maior ou mais profunda será a busca

do passado e mais visíveis serão as transculturações narrativas, e mais

antropológica e social se torna a literatura.

Cabe destacar as revoluções de Scorza: além de um estilo único, só

percebido para aquele que se habitua à sua linguagem, três pontos importantes.

Um, que a literatura é e sempre será política, em menor ou maior grau. Quando

participou do levante do povoado de Rancas (Ciclo de Baladas de 72 a 77), o

alcance de sua literatura foi gigantesco. E então, por estratégica política ou não, as

denúncias contidas no romance do autor foram consideradas e uma interessante

reforma agrária foi realizada no Peru, o que nos dá ideia da força política e da

responsabilidade que a literatura possui, mesmo que aqueles que lêem não sejam

os mesmos que dela se beneficiem. A exposição das mazelas a outras nações

(Scorza foi traduzido em mais de trinta países) promove mudanças. É uma

revolução mais lenta do que a contida nos romances, mas funcionou.

Dois, a revolução sexual e de gênero. Scorza trata os personagens femininos

em A Dança Imóvel de forma totalmente diferente de suas novelas anteriores. A

mulher é participativa na sociedade, intelectual, versada em artes e dialogante com

o homem, participante da construção do pensamento. Se idealizada ou não, pouco

importa. É precursor de uma discussão que só seria realmente abordada no século

XXI. A igualdade de gêneros é ainda será a grande tônica do nosso tempo.

O terceiro ponto é relacionado às biografias e autobiografias. Talvez Rama

não tenha observado o fato, mas a América Latina em peso, de meio século para cá,

contribuiu muito mais historicamente ao observar a humanidade por dentro, a partir

de seu olhar social e pessoal, de dentro de sua cultura, do que por fora. A inserção

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do autor em sua obra inclusive como personagem de si mesmo, constitui, portanto, a

última revolução de Scorza.

De todas, não cabe aqui levantar qual delas é a maior. Todas têm a marca

social e são parte de um movimento único, interrompido muito cedo.

Para finalizar, faz-se necessário voltar à questão da oralidade e da escrita,

criticada por Cornejo-Polar (2000), e do Realismo Fantástico, proposto por Todorov

(1970) como gênero literário. Scorza admite que a literatura latino-americana é rica

em imaginação, e alia a política à tal realidade por conta de causalidades e

casualidades políticas, “porque não pode realizar nada de verdadeiro”, como disse

na entrevista a Sóler, em 1977.

Há, portanto, um pensamento que não se junta aos demais, fragmentado. Na

folha de rosto, imagina-se que Scorza se referia a questões unicamente políticas,

pois de todas suas denúncias, apenas o povoado de Rancas (Peru) obteve sua

reforma agrária e os campesinos tiveram direito às terras que sempre foram deles. E

no verso, consta que, considerada a antropologia social que nos une, fictício ou

fantástico é o olhar daquele que vem de uma cultura hipotética X para ler a cultura Y,

sem entrar ou participar daquela cultura, de forma que tudo para o primeiro será

categorizado como mito ou metafísica. Nesse ínterim, há a criação do artista e a

própria cultura. Scorza cria imagens incríveis através de situações de sua narrativa,

via palavras. Uma vez grafadas, um outro estudo para uma nova pesquisa pode

brotar delas, como uma chuva de peixes, um lago parado, um cavaleiro insone, um

ser invisível, alguém que conversa com cavalos para roubá-los ou uma conversa

entre mortos no cemitério: a palavra escrita, na América Latina, carrega imagens que

se ligam mais à ancestralidade, aos costumes dos antigos, ao êxtase de não estar

mas existir, do que o próprio sentido do signo. Ela é, além de cura e veneno, um

alucinógeno potente que nos permite identificação mútua. Sua leitura não se dá

apenas graficamente, é preciso saber lê-la para alcançá-la. Ensinaram-nos a ler.

Lemos. Ressuscitamos mortos e reconstruímos fatos. E agora contamos a nossa

história.

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