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Henrique Alberto Alves Ferreira
AMOR E REVOLUÇÃO EM A DANÇA IMÓVEL,
DE MANUEL SCORZA
São João Del Rei
Dezembro de 2015
Henrique Alberto Alves Ferreira
Amor e revolução em A Dança Imóvel,de Manuel Scorza
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Federal deSão João del-Rei, como requisito parcial para aobtenção do título de mestre em Letras.
Área de Concentração: Teoria Literária e Críticada Cultura.Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural.Orientador: Prof. Dr. Alberto Ferreira da Rocha Jr.
São João Del Rei
Dezembro de 2015
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)Programa de Mestrado em Letras (PROMEL)
Área de concentração: Teoria Literária e Crítica da CulturaLinha de pesquisa: Literatura e Memória Cultural
Título da dissertação:Amor e Revolução em “A Dança Imóvel”, de Manuel Scorza
Professor orientador:Alberto Ferreira da Rocha Júnior
Banca examinadora:
___________________________________________________________Prof. Dr. Alberto Ferreira da Rocha Júnior – UFSJ (Orientador)
___________________________________________________________Profª. Drª. Suely da Fonseca Quintana – UFSJ
___________________________________________________________Profª. Drª. Haydée Ribeiro Coelho – UFMG
___________________________________________________________Prof. Dr. Anderson Bastos Martins – UFSJ (coordenador do PROMEL)
São João Del Rei
Dezembro de 2015
Dedico estas ideias em formasde palavras a Vitor, Pedro,Caio, Mariana, Isabella eHenrique. E também a doisManuéis e um Manoel:Scorza, de Barros e Bandeira.
AGRADECIMENTOS
A Christiano e Célia, agradeço por esta existência e às futuras. Quanto mais o tempopassa, mais orgulho sinto de ser filho de vocês.
A Aline, amor profundo no abstrato quanto distante no espaço, minha tradutora,amiga e amante, companheira dos acasos que inventamos para estar, longe ouperto, fora ou dentro, a tendência dos espíritos nos une e nos diminui as distâncias.
À Profª Josiane Magalhães Teixeira, que desde o primeiro momento em que soubede minha aprovação no programa de mestrado, abriu as portas da UFVJM para queeu fosse afastado e, na impossibilidade do fato, compreendeu minhas ausências aotrabalho e me possibilitou integralizar os créditos através de um regime especial.
Ao grande amigo e cúmplice musical Marcelão e sua linda família, Débora e Cecília,que me instalou numa ótima casinha durante um ano e meio em São João Del Rei.
Ao Prof. Tibaji, pela paciência, compreensão, dicas, amizade, tolerância eorientação.
À minha grande amiga Malé, pelo carinho, passeios, diálogos, cumplicidade,cinemas, cervejas, exposições e diversão em São João Del Rei.
Ao irmão Oscar, pela amizade, conselhos, afinidade, pescarias, gargalhadas,companheiragem, ouvires e falares, pela infinitude cabível nas coisas mais simplesdo mundo, também as mais lúdicas, e os bons momentos não teóricos.
Aos irmãos Ismael e Luisa, pelas sempre boas idéias, pelos encontros, pela música,pelos livros, pelo passado, pelo presente, pelo sempre.
Ao irmão Paulo Márcio, sempre disposto e verdadeiramente feliz com o sucessoalheio, ainda vai perder a aposta de meia caixa de cerveja e dois quilos de picanhaneste ano. Quando tudo acabar, iremos comemorar: “Noni, noni, yena manauê”!
Ao irmão e compadre Mercks Paulo, que pode estar de mal de mim, fatodesimportante, dado o tamanho do mundo e a pequenez de nossa vida, como dealguns atos precipitados, impensados e outros incompreendidos, levados pelo calorde um momento que passa.
Ao irmão e monge Augusto, energia cósmica do bem, sempre bom, sempre fora domundo, loucura e genialidade em equilíbrio numa só pessoa.
Ao irmão e companheiro de viagens Missim, colaborador de momentos alados einspirações necessárias para a finalização deste tabalho.
A Helena, sempre disposta a discutir filosofias em torno do ser humano.
Ao irmão Átila, por tudo que já vivemos no antigo Arraial do Tijuco e por ser quem é.
Às incríveis “mulheres de L”, colegas do primeiro e segundo semestres do Programade Pós-Graduação em Letras da UFSJ: AraceLe, DanieLa, TaLita, Ana CLáudia eRafaeLa, inteligentíssimas e com ótimas pesquisas, além dos fascinantes sereshumanos que se mostraram ser, sempre fico com saudades.
À Profª Eliana, que me impediu pessoalmente de desistir de tudo para em seguidareaparecer em dois sonhos, nos quais mostrou sua compreensão e compaixão emrelação a alguns problemas de ordem pessoal que vivia no momento.
Aos professores Anderson, Maria Ângela e Cláudio, introdutores de ideias e teoriasàs quais não fui acostumado, que me despertaram para a linguagem do pensamentocientífico e me aguçaram o sentido da crítica do pensamento.
À secretária do Programa de Mestrado em Letras, Karina, doce de pessoa, sempredisposta a ajudar, compreendendo a distância entre Diamantina e São João Del Rei.
Ao Sr. Walmir, taxista, que me salvou, levando-me a 200km/h a Belo Horizonte paraque eu chegasse a tempo de fazer a prova de língua estrangeira,, já que a viaçãoPássaro Verde não soube resolver o problema do sistema de compras de passagemcom cartão de débito / crédito.
A Ilva, que foi a primeira colega a ser envolvida neste processo e que me ajudou achegar aos Correios a tempo de enviar a documentação para o programa demestrado.
A Juscilene, minha eterna amiga e confidente, provadora de minhas comidas,bebidas e testemunha de meu esforço, merecedora todo o meu carinho e respeito.
Às Emílias, tanto a Gatinha, grande irmãzona que ganhei nesses dois anos, minhaenfermeira e resolvedora das burocracias do plano de saúde e do sindicato, quantoa Xilibinga, companheira das gargalhadas e confidências.
A Ludmilla, minha colaboradora oficial e comparsa das feiras de domingo, sempredisposta a ajudar, que chegou a ser minha digitadora pessoal de citações ereferências bibliográficas quando eu estava perrengado dos rins.
A Dona Marlete e Seu Roberto, que me albergaram em São João Del Rei durante aintegralização dos créditos, nos anos de 2013 e 2014.
Aos incríveis pescadores do Pantanal e ao piloteiro paraguaio Jairo, el ligerito,andale!, andale!, obrigado a todos.
Enfim, a todos aqueles que colaboraram, direta ou indiretamente, e principalmenteàqueles que não atrapalharam o andamento da carruagem, agradeço.
- Por que os revolucionários da políticanão são os revolucionários da arte? Por
que os dinamitadores da realidade são osguardiões das formas tradicionais de
linguagem?
Manuel Scorza, A Dança Imóvel
RESUMO
Este estudo analisa A Dança Imóvel, última obra de Manuel Scorza, publicada em1983. Para fazê-lo, aborda as relações amorosas e o caráter político e socioculturalnela contidas, legitimando-a como representante literária da comarca andina, regiãocultural étnica e autônoma, entre literatos, intelectuais e pesquisadores docontinente. Agrega alguns achados biográficos do autor, como cartas e entrevistas, auma investigação literária, com o objetivo de desdobrar os temas Amor e Revolução,centrais na novela, desvelando ou deixando pistas sobre o fazer literário e político deScorza. Abraça outras obras literárias e teórico-críticas latino-americanas afins,principalmente as do século XX, no pós-guerra, cujas manifestações foramtestemunhas e/ou vítimas de recorrentes ditaduras políticas. A Teoria da Literaturarecorre aqui a uma abordagem antropológica e social para leitura e análise danovela scorziana. A ideologia do autor, como dos protagonistas de A Dança Imóvel,promovem, enfim, na interação entre o ser e o mundo que os rodeiam, a percepçãoe o levantamento de certos elementos que foram aqui considerados revolucionários,não tanto pelo impacto causado na sociedade receptora de sua arte, masprincipalmente pela plantação cuidadosa de sementes de consciência crítica, tantosociais, quanto políticas e culturais, literariamente disseminadas em solos latino-americanos carentes de liberdade. A obra é contextualizada em seu tempo e espaço,atualizada criticamente; em seguida, é analisada pela relação biográfica e literária deseu autor; e finalmente é observada segundo as características passíveis de críticascontribuintes do pensamento social e cultural contemporâneo.
Palavras-chave: Manuel Scorza, Amor, Revolução, Política, TransculturaçãoNarrativa.
RESÚMEN
Este estudio analiza "La Danza Inmovil", última obra de Manuel Scorza, publicada en1983, y para hacerlo, aborda las relaciones de amor y el caracter político ysociocultural contenido en el mismo, legitimandole como representante literario del lacomarca andina, la región autónoma étnica y cultural de una ascendencia común,inmersa entre los escritores, intelectuales e investigadores del continente. Añadealgunos hallazgos biográficos del autor, tales como cartas y entrevistas, unainvestigación literaria, con el fin de desplegar los temas del amor y de la revolución,central en la novela, revelando o dejando pistas a la composición literaria y políticascorziana. Incluye también otras obras literarias y teórico-crítico relacionadas a laAmérica Latina, sobre todo el siglo XX, después de la guerra, cuyas manifestacionesfueron testigos y/o víctimas de dictaduras políticas recurrentes. La Teoría de laLiteratura se refiere aquí a un enfoque antropológico y social a la lectura y el análisisde la novela scorziana. La ideología de Scorza, al igual que los protagonistas de LaDanza Inmovil, promueve, por la interacción entre el ser y el mundo que lo rodea, lapercepción y el levantamiento de ciertos elementos que se han considerado aquírevolucionarios, no es tanto el impacto en la sociedad de acogida de su arte, perosobre todo por las semillas cuidadosas plantación de conciencia crítica, tantosociales, la política y cultural, literaria diseminada en suelo latinoamericano carecede libertad. El trabajo se contextualiza en su tiempo y espacio, actualizadocríticamente; entonces es analizado por la relación biográfica y literaria de su autor;y, finalmente, se observa de acuerdo a las características susceptibles decontribuyentes críticas al pensamiento social y cultural contemporáneo.
Palavras-clabes: Manuel Scorza, Amor, Revolución, Política, TransculturaciónNarrativa.
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................... 11
CAPÍTULO 1 - A PRIMEIRA GRANDE REVOLUÇÃO: O SISTEMA LITERÁRIO LATINO-AMERICANO................................................................................................................. 151.1 A imprecisão dos rótulos literários........................................................................ 151.2 A América dos Latinos: o sistema literário sugerido por Rama............................ 231.3 Os grupos sociais das revoluções, também literárias, latino-americanas............ 271.4 Comarcas literárias e transculturação narrativa................................................... 29
CAPÍTULO 2 - A DANÇA IMÓVEL: UMA ANÁLISE DA OBRA HOMÔNIMA DE SCORZA – ENTRE
A HISTÓRIA, A BIOGRAFIA E A LITERATURA..................................................................... 432.1 Canetas e metrancas............................................................................................ 432.2 Breves considerações sobre a novela de Scorza................................................. 612.3 Transculturações narrativas em A Dança Imóvel................................................. 64
CAPÍTULO 03 – DO AMOR E OUTRAS REVOLUÇÕES: AS RELAÇÕES AMOROSAS NO
ROMANCE A DANÇA IMÓVEL E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS ACERCA DA OBRA DE SCORZA EDE SEUS CONTEMPORÂNEOS........................................................................................ 733.1 As relações amorosas: entre o amor e a revolução............................................. 733.2 Revoluções no campo do fazer literário, crítico e biográfico................................ 843.3 A revolução sociocultural do intelectual latino-americano e a literatura como crítica..................................................................................................................................... 94
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................101Livros e terras..............................................................................................................101Fundação Biblioteca Ayacucho...................................................................................102Críticas à transculturação de Rama............................................................................104Scorza e a máquina de sonhar...................................................................................107Revoluções scorzianas...............................................................................................108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................111
Introdução
A dominação de um povo por outro(s) sempre ultrapassa as esferas política,
social e econômica, e se torna mais cruel à medida que se impõe à cultura dos
dominados. A América Latina revela, assim, uma história comum de colonização,
específica em cada porção de terra em que ocorreu, desde que os navegadores
europeus lançaram-se aos oceanos em busca de exploração de riquezas minerais,
expansões de domínios territoriais e necessidade de imposição religiosa / cultural,
em suma, de poder.
Não se pretende aqui analisar qual desses efeitos colaterais do poder tenha
sido tão degradante ou os que nos tenha trazido outros tantos infortúnios, já que os
valores da época foram relacionados diretamente à cultura dominante e que, mais
de cinco séculos depois, continuaram prevalecendo como valores cultuados nas
sociedades contemporâneas – e que, ainda que híbridas, heterogêneas e/ou
transculturais, carregaram a transição para a modernidade através de uma história
viciada e reinventada pelos interesses dos dominadores, sejam eles colonizadores
ou neocolonizadores, nas instâncias internas (classes) e externas (nações). Entre
permutas, transculturações e reelaborações do passado, a literatura, como a
crítica, e o círculo de pensamento dessas culturas subalternizadas, cujos
inquietantes hibridismos e mestiçagens permitiram uma nova configuração de
resistência pelas diferenças e sincretismos, acabaram por reinventar o sujeito
latino-americano.
A diferença de dominação está no tempo: embora não seja cabível ou
aceitável que ainda hoje, em um mundo globalizado, haja a invasão deliberada e a
destruição em massa de povos e suas respectivas culturas considerados pelo
dominante como menores ou inferiores, o rastro dela permanece como um
passado a ser esquecido e/ou reescrito para uma sintonia entre o aceitável, o
comunicável e o intocável.
O enfoque deste estudo encontra-se no nível da comarca andina, em
especial sobre a obra romanesca do peruano Manuel Scorza, de 1983. Ao seu
redor, também entre outras comarcas, em mesmas e diversas épocas e
pensamentos de gerações, obras literárias e críticas latino-americanas foram
investigadas. Pois Scorza, transitando entre sua vida e sua obra, funciona como
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ponte metonímica da parte cultural de cada foco étnico, linguístico e cultural com
características próprias e autônomas pelo todo continental latino-americano,
estimadas suas diferenças e semelhanças. Permeado por revoluções sociopolíticas
e também nas artes literárias, soa como base de resistência cultural para
conhecimento e auto-consciência do sujeito latino-americano contemporâneo.
Os artifícios ou estratégias culturais / literárias pós-colonialistas da América
Latina para driblar o marco zero da dominação dos povos1 provocam, a partir do
texto, da crítica e do (entre)lugar do intelectual latino-americano, ecos libertários e
órfãos em simultaneidade. Embora a cronologia e a infinidade de versões das
crônicas e documentos históricos não se mostrem exatamente fidedignos ao
ocorrido entre os dominados (já que bilíngues de tradução duvidosa, já que
distantes, já que opostos em suas forças e objetivos), não parece justa a
obrigatoriedade de recriar 500 anos de cultura por outro viés que não considere,
dentro da modernidade, aspectos tradicionais, já que as próprias ancestralidades
foram lidas pela cultura dominante de forma tão ficcional quanto são parciais os
fatos de sua própria história.
Na América, desde o México ao extremo sul do continente, a colonização
exploratória trouxe mazelas e desgraças a seus habitantes nativos, hoje nações,
colocando-os em posições de inferioridade, não só diante das novas classes que
os dominariam quanto, em dimensão nacional, diante do mundo. Esse efeito é
como o funcionamento das bonecas russas de madeira2 em que se abre uma e há
outra menor dentro da última e assim sucessivamente, ou também ilustrado pela
mônada de Benjamin (1985), pois que é um fragmento do todo a partir do qual o
mundo se repete, segundo um mesmo comportamento. Assim, do macro para o
micro, é perceptível que haja também, como há, dentro de cada unidade política
nacional, entre as classes sociais desta última, a mesma necessidade de
perpetuação da dominação, ainda mais injustificável quando adentra o campo da
cultura do outro. Inferir a ignorância e a fraqueza de um povo a partir dos princípios
1 Refiro-me ao grau zero proposto por Antonio Cornejo Polar em “O Condor Voa”, publicado pela Ed.UFMG, em 2000, que entre a oralidade e a escrita, revela a gênese do sujeito latino-americano, emespecial, andino, já que a escrita relaciona-se à morte do imperador inca Atahualpa, e a oralidade,assim como outras manifestações culturais ágrafas, contém em si toda a vida e a tradição daquelepovo, assunto que será abordado no capítulo 2.
2 Conhecidas como matrioskas, simbolizam a fertilidade e a maternidade, enfim, o ciclo da vida e das gerações.
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éticos, morais e culturais daqueles que o dominam parece ter sido desconsiderado
como erro na história dos conquistadores, fato válido também para os casos,
ocasos e acasos econômicos que, em defesa de qualquer orientação política
preestabelecida entre o social e o capital, permitiu irrefreáveis injustiças,
opressões, golpes de estado e ditaduras e arremessou ao limbo a realidade
sociocultural latino-americana.
Na literatura, os efeitos desse grande turbilhão de acontecimentos políticos,
desde a chegada dos colonizadores até a criação dos estados nacionais e as
posteriores opressões culminaram em sentimentos revolucionários de
independência e liberdade. Literária, antropológica e sociologicamente, trouxeram
pistas para que o uruguaio Ángel Rama pudesse propor uma independência
cultural latino-americana também em relação às letras e o papel do intelectual
continentalmente, em busca de unidade literária latino-americana, consideradas
sua heterogeneidade e imensa pluralidade histórica e cultural.
Ángel Rama apropriou-se dos conceitos sociológicos de Antonio Candido
para elaborar um sistema literário latino-americano, em especial, através dos
romances produzidos no continente. O estudioso e crítico foi responsável por
introduzir a ideia de como a América Latina, devidamente constituída pelas suas
“comarcas literárias”3 alcançou, em toda a sua heterogeneidade e pluralidade a
‘independência’ cultural e artística da Europa, considerada, naquele momento, um
ícone da modernidade, através de seu conceito de “transculturação narrativa”. Foi
também responsável por unir as literaturas de línguas espanhola e portuguesa em
torno de um mesmo sistema, esforço glório, já que sendo distintas, dada sua
gigantesca pluralidade, enfrentava ainda uma considerável barreira linguística. No
entanto, a língua se configurou como obstáculo que o impediria de proceder à
estruturação e delimitação de seus conceitos concretos e abstratos em torno do
ser latino-americano.
Este trabalho procura estudar a obra A Dança Imóvel, de Manuel Scorza
(1983) sob dois eixos temáticos – o amor e a revolução. Apesar de apresentarem-
se como temas universais, subjetivos e abstratos, serão melhor compreendidos
3 Segundo a tese de doutorado de Roseli Barros Cunha (2005), publicado pela Humanitas em 2007,sob o título “Transculturação narrativa: seu percurso na obra crítica de Ángel Rama” , o termoempregado por Ángel Rama é “comarcas culturales”, e nesse sentido me parece mais abrangente doque “comarcas literárias”.
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neste estudo como “relações amorosas” e “política”. Observar o papel emprestado
à literatura, no tocante a suas narrativas, sejam elas romanescas ou novelísticas,
seus contextos, contatos, pontos de convergências e/ou divergências, permite-nos
ainda observar como a ideologia e a crítica literária latino-americana se manifestam
na contemporaneidade.
Dividida em capítulos e estes, em seções, a pesquisa contempla, em sua
primeira parte, a literatura latino-americana do século vinte, mais especificamente,
após a segunda guerra mundial. O contexto político e ideológico é de extrema
importância, pois a maioria dos países, do México à Terra do Fogo, sofreu
constantes ditaduras e tiranias naquele momento, em uma guerra mascarada entre
o capital e o social. Dessa conjuntura, vêm as teorias de Ángel Rama e o sistema
literário americano-latino.
O segundo capítulo traz um exame da obra de Scorza, A Dança Imóvel, de
1983, aliando à análise narrativa e à função literária alguns fatos biográficos que
multiplicam sua interpretação. O fator político (revolução) é abordado nesta parte
do estudo.
O capítulo final trata das relações amorosas (amor) contidas no romance e
as características socioculturais que delas sobressaem.
As considerações finais sintetizam o estudo, descortinando conclusões,
erros e/ou acertos acerca do método e sugerindo pesquisas futuras.
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Capítulo 1 – A primeira grande revolução: o sistema literário latino-americano
1.1 A imprecisão de rótulos literários
O homem é um animal que não pode sesatisfazer unicamente com a realidade. Nãose alimenta apenas de comida. Seu alimentofundamental são os símbolos.
(Manuel Scorza, A Dança Imóvel, p. 50)
A literatura latino-americana contemporânea, durante décadas, carregou
consigo um injusto fardo quando então foi analisada apenas segundo estereótipos
que beiram a fantasia e a panfletagem política. Munida de textos contentores de
elementos reais e fictícios que denunciavam as práticas opressoras abusivas
ocorridas nos países colonizados no passado pelos Reinos de Espanha e Portugal
e agora tentavam se reerguer num mundo capitalista, imperialista e consumista, de
acordo com a nova ordem mundial, pode ter sido mal interpretada. Os fatores
político, econômico e social de um povo oprimido pelas constantes ditaduras que
assolaram o continente nos séculos XIX e XX são indissociáveis do sujeito latino-
americano, e por isso estão tão presente nos relatos de seus autores. Externados
via literatura, observa-se que pode ser esta última um tanto depreciada quando
entendida como “literatura de revolução” ou “literatura panfletária”, apenas por seu
caráter marxista desejoso de libertação e igualdade, pois há outros aspectos que
revelam uma criatividade ímpar, um posicionamento histórico, crítico e artístico e
uma riqueza sociocultural indiscutíveis, merecedores de maior atenção.
O uruguaio Eduardo Galeano (2002) examina sócio-historicamente as
opressões sofridas no continente de modo tão visceral que nos permite
compreender a impossibilidade de se excluir a política impregnada no ser latino-
americano diante das atrozes dominações socioculturais que lhe foram imputadas,
tão cruelmente diminuído:
É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento aténossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nosdistantes centros de poder.Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas,ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo,os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e aestrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados,de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. A
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cada um dá-se uma função, sempre em benefício do desenvolvimento dametrópole estrangeira do momento, e a cadeia das dependênciassucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certotambém incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos paísespequenos por seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, aexploração que as grandes cidades e os portos exercem sobre suas fontesinternas de víveres e mão-de-obra. (p.08)
Afinal, segundo o próprio Galeano (2002),
São secretas as matanças da miséria na América Latina; em cada anoexplodem, silenciosamente, sem qualquer estrépito, três bombas deHiroxima sobre estes povos, que têm o costume de sofrer com os dentescerrados. Esta violência sistemática e real continua aumentando: seuscrimes não se difundem na imprensa marrom, mas sim nas estatísticas daFAO. (p.11)
Cortázar (2001), por sua vez, discute a relação entre política e literatura na
América Latina e o papel do literato / intelectual frente a tais realidades:
creio que agora está claro que, para muitos intelectuais latino-americanos, ocompromisso político é uma questão que faz parte de sua personalidademental, moral e vital, e que, para eles, escrever livros não significa umatarefa totalmente diferente da participação nas múltiplas formas de luta noplano político. Se vemos a política como paixão, como vida, como destino,que diferença pode haver entre isto e o que tentamos criar ou reproduzir emnossos romances e em nossos contos, por mais que seus temas muitasvezes nada tenham a ver com o que está acontecendo na rua? (p.61)
Portanto, não se trata aqui nem de diminuir, tampouco de ufanizar as
características políticas da literatura latino-americana, mas lapidá-las, de modo que
não sejam compreendidas meramente como um rótulo, como tantos críticos já o
fizeram, já que a questão política é, para o latino-americano, ela própria, um fator
cultural orgânico em sua vida.
Também não é o caso de, por ser social e politicamente engajada, ser
considerada exclusivamente como uma literatura que meramente desvele um certo
nacionalismo através de explícita ou implícita parcialidade histórica. Torna-se
significativo, portanto, observar que ao se tratar de nacionalismos, devemos
também nos atentar para o substantivo-base (nação) do qual deriva outros “ismos”.
Por esse viés, considera-se que o conceito de nação de Bhabha (1998), que
entende sua criação (referindo-se às nações ocidentais) como uma invenção
(vezes consciente, vezes não) da imprensa e dos textos literários, principalmente
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dos exilados ou daqueles que foram privados de sua pátria. A construção do
nacional dá-se por uma ficção social, partindo de um devir cultural, sim, seguindo
interesses de poder sim, não só através da literatura, que dissemina e registra
ideias de acordo com seu tempo, seja muito mais abrangente do que os simples
limites físicos e geopolíticos de um país ou um senso patriótico emocionante diante
de um hino nacional.
De certa forma, é em oposição à certeza histórica e à natureza estáveldesse termo que procuro escrever sobre a nação ocidental como uma formaobscura e ubíqua de viver a localidade da cultura. Essa localidade está maisem torno da temporalidade do que sobre a historicidade: uma forma de vidaque é mais complexa que “comunidade”, mais simbólica que “sociedade”,mais conotativa que “país”, menos patriótica que patrie, mais retórica que arazão de Estado, mais mitológica que a ideologia, menos homogênea que ahegemonia, menos centrada que o cidadão, mais coletiva que o “sujeito”,mais psíquica que a civilidade, mais híbrida na articulação de diferenças eidentificações culturais que pode ser representado em qualquer estruturaçãohierárquica ou binária do antagonismo social. (...) são estratégias complexasde identificação cultural e de interpelação discursiva que funcionam emnome “do povo” ou “da nação” e os tornam sujeitos imanentes e objetos deuma série de narrativas sociais e literárias (BHABHA, 1998, p.199).
Ou seja, as nações (no sentido de Bhabha) da literatura latino-americana
(não exatamente a localidade em que se produz, mas onde se vive a cultura)
estariam também nas vozes ampliadas de suas comarcas culturais (regiões de
afinidades culturais próprias e autônomas), para além de quaisquer mapas, através
de uma metáfora do nacional.
Sobre a questão ainda do nacionalismo, partindo dos intrincamentos entre
cultura, história, memória e literatura, Benedict Anderson (2008) contribui com a
ideia de que as comunidades (nações) são inventadas, imaginadas, por um
processo de seleção que a língua escrita produz, tanto pelos censos, mapas e
museus, como pela literatura. Assim, uma comunidade política imaginada seria
tanto limitada quanto soberana, já que se reinventa, ao passo que também
esconde uma realidade do que não é, escolhendo quais memórias devem ser
preservadas enquanto também define o que deve ser esquecido para a construção
(invenção) da nação.
Talvez, por este mesmo motivo, não se deva lançar às artes literárias um
papel obrigatoriamente nacionalizante, pois não se discute aqui o conceito de
nação, apenas amplia-se, para observar mais de perto as características da
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literatura latino-americana. Por exemplo, a literatura de Manuel Scorza não é
apenas peruana, mas também andina, incaica, amazônica, regional, por vezes
urbana, continentalmente americana-latina, melhor exemplificada quando se
propõe pela expectativa do dominado, repelindo determinismos.
Em relação ao outro estereótipo da literatura latino-americana, o
fantasiosismo, as sensações de estranheza, o caráter metafísico, o impossível, o
incrível, o imaginativo, o onírico, o sobrenatural, entre tantas outras características
que Tzvetan Todorov (2004) catalogou como um gênero literário próprio (apesar de
admitir que se tratava de um gênero que possuía uma vida relativamente curta),
denominando-lhe Fantástico, com características próprias que se diferenciaria
ainda do Estranho e do Maravilhoso, foi, durante um longo período, considerado
uma expressão cultural e literária própria das Américas Centrais e do Sul (incluindo
o México). Algo que poderia ilustrar essa diferenciação de estilos como
desdobramentos do gênero está na própria delimitação do conceito que
desenvolveu o intelectual:
Num mundo que é bem o nosso, tal qual o conhecemos, sem diabos,sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode serexplicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que vive o acontecimentodeve optar por uma das soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dossentidos, um produto da imaginação, e nesse caso as leis do mundocontinuam a ser o que são. Ou então esse acontecimento se verificourealmente, é parte integrante da realidade; mas nesse caso ela é regida porleis desconhecidas para nós. Ou o diabo é um ser imaginário, uma ilusão,ou então existe realmente, como os outros seres vivos, só que oencontramos raramente. O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza; assimque escolhemos uma ou outra resposta, saímos do fantástico para entrarnum gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. (TODOROV, 1969,p.148).
Embora Todorov tenha desenvolvido uma minuciosa análise, característica
da matematização literária dos intelectuais estruturalistas da época (ou talvez por
esse mesmo motivo) do Realismo Fantástico e o elevado à condição de gênero,
ainda assim, considerar toda a identidade literária latino-americana apenas no
plano do mágico ou maravilhoso parece uma atitude crítica um tanto redutora e
simplista, que transfere a leitura das obras apenas para a superfície imagética e
não para as profundezas sociais nelas contidas. Certamente, o conceito de
Barroco (que foi também atualizado e figura como Neobarroco em análises
literárias e artísticas contemporâneas) e os termos carnavalização e alegoria
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empregados pelo cubano Lezama Lima (1988), ao se referirem-se à expressão
americana, são mais atuais e adequados à questão identitária latino-americana.
Fonseca (2004), em Alegoria, Barroco e Neobarroco em Lezama Lima e
Glauber Rocha, delineia o barroco desenhado por Lezama Lima de forma mais
didática:
Considerando o barroco como um começo e não como a origem, Lezamaescapa sabiamente da armadilha que seria substancializar um grau zeroinexistente, que, principalmente ignoraria o mundo pré-colombiano dasculturas indígenas e a contribuição africana na criação do barrocoamericano (FONSECA, 2004, p.57)
A ensaísta e professora Irlemar Chiampi (2010), esclarece, já no prefácio de
Barroco e Modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana:
como proposta moderna, entendo a que recicla ideologicamente o barrococomo um fator de identidade cultural, dentro da prática da fragmentação, dacelebração do novo, do afã de ruptura e da experimentação; em termosespecificamente latino-americanos, essa nova razão estética ocorreplenamente com o auge do boom dos anos 60, quando o novo romancerecupera as origens barrocas em sua linguagem narrativa. Já a propostapós-moderna de reciclar o barroco é situada no bojo da nova ordem culturalque pôs em descrédito os Grandes Relatos (do Progresso, do Humanismo,da Ciência, da Arte, do Sujeito), tomando o neobarroco como uminstrumento privilegiado de crítica (latino-americana) do projeto(eurocêntrico) do iluminismo. Enfatizo o papel crítico do barroco no ocaso damodernidade por ser menos visível que outras tendências da atual literaturalatino-americana dos anos 70-90 (a realista, a feminista, a histórica, atestemunhal, a étnica), que desconstroem igualmente as categorias domundo moderno (CHIAMPI, 2010, p.10).
Pois, enquanto as obras latino-americanas vanguardistas e modernistas
possuem um caráter marcadamente socializante e politizante, também nelas se
encontra um tom existencial, mitológico e onírico. Buscam em si mesmas uma
forma de identificação e permanecência cultural para fugir à imposição de valores
europeus, fator que talvez nos permita aproximar literariamente, por exemplo,
Scorza, Arguedas e Guimarães Rosa. Na América Latina, onde cada autor gostaria
de se transformar em um estilo próprio, mas não fora de sua cultura, talvez as
considerações de Chiampi4 consigam, de maneira mais eficiente e/ou
compreensível, apontar interseções relativas à imensa pluralidade literária e
4 A pesquisadora é também tradutora de A Expressão Americana, de José Lezama Lima, publicado noBrasil em 1988.
19
riqueza artística que possibilite a percepção de elementos identitários comuns
entre elas, através da conceituação de Barroco proposta por Lezama Lima:
A nossa América, ela própria uma encruzilhada de culturas, mitos, línguas,tradições e estéticas, foi um espaço privilegiado para a apropriação colonialdo barroco, e o continua sendo para as reciclagens modernas e pós-modernas daquela ‘arte da contraconquista’, na qual Lezama Lima tão bemsituou o autêntico devir americano (CHIAMPI, 2010, p.14).
Figueiredo (1994) admite que a forma de devir da América proposta por
Lezama Lima necessitaria considerar a diluição entre as fronteiras da história e da
ficção, mas não apenas isso seria uma válvula de escape que conduziria o latino-
americano à modernidade e ao progresso como também essa necessidade seria a
única opção para sobrevivência de sua cultura, de forma que consiga
ultrapassar os limites impostos pela razão e deixar de lado o critério de valorassociado ao de desenvolvimento de uma forma no tempo, precisará,sobretudo, trabalhar com uma nova causalidade, não hegeliana. Dissolverádicotomias, hierarquizações que não se coadunam com a afirmação dacultura americana. Substituirá a ordenação temporal pelas analogias livres,a ideia de repetição pela ideia de recorrência criativa, o culto da razão poruma gravitação em torno da imaginação e da memória. O americano seriaaquele que faz a síntese de ruptura e secularidade, que trabalha com aacumulação reorganizando a influência recebida com alegria e astúcia“endemoniada” (p.158).
Analisada, em vista disso, apenas pelas características políticas e/ou
oníricas e fora de um sistema literário que lhes desse liga e fermento, ainda que
libertárias ou desejosas de libertação, a literatura latino-americana ficaria à mercê
de rótulos e encarcerada em análises incompletas que privilegiavam a forma e o
estilo, mas descartavam sua indiscutível importância em seu contexto
antropológico e sociocultural. Por esse motivo, consideraremos o elemento
fantástico observado por Todorov apenas como uma característica presente e
necessária na literatura latino-americana, mas não a essência diferenciativa das
demais literaturas do mundo.
Ao seu passo, Lezama Lima estaria mais próximo da transculturação literária
proposta por Ángel Rama por seu barroquismo do que Todorov, por considerar a
expressão americana uma arte da contraconquista desenvolvida através de
tensões, alegorias e carnavalizações necessárias que ilustrariam, além do plano da
20
narrativa, o íntimo social e o espírito cultural do ser latino-americano em sua
caminhada quase psicanalítica para matar sua mãe europeia e seu pai
norteamericano.
Estariam, nesse contexto, bem representadas pelo neobarroco de Lezama
Lima (1988)5, embora este estudo evite utilizar substantivos próprios que possam
engessar qualquer estilo, importantes obras do cenário literário latino-americano
produzidas nos séculos XIX e XX até os dias de hoje, em que, além do elemento
fantástico e do apelo político embutidos no texto, ambos carnavalizados, haja
espaço para que a literatura debruce-se sobre si própria, utilizando-se da crítica
para fazer crítica, apropriando-se do espaço da literatura para discussão de
assuntos filosóficos, da idealização de certos temas intrinsecamente humanos a
uma interessante ruptura de paradigmas, em especial, em como se dá a formação
do sujeito latino-americano e como ele mantém (ou recria) sua dinâmica lógica
cultural.
Assim, compõem uma incomensurável constelação de representantes latino-
americanos autores como Manuel Scorza, José Maria Arguedas e Vargas Llosa
(Peru), Julio Cortázar (Argentina), Ángel Rama (Uruguai) Gabriel García Márquez
(Colômbia), Alejo Carpentier (Cuba), Paulo de Carvalho Neto, Guimarães Rosa e
Darci Ribeiro (Brasil), entre outros6. Não se pretende aqui considerar os autores
citados (e os não citados) como simples referências cristalizadas em seu próprio
estilo, mas o valor de cada obra a cada tempo como constituintes de um sistema
literário latino-americano7. Vale lembrar que grande parte desses autores não se
ateve apenas ao romance e/ou à poesia; muitos deles, em algum momento, de
uma forma ou de outra, publicaram ensaios sobre política e cultura na América
Latina. Dentre estes, todos, invariavelmente, posicionavam-se contra a ditadura e a
favor de uma revolução comunista na América, mas para além da preocupação
política e das denúncias sociais entre os abusos e desmandos de determinadas
5 Em “A expressão americana” (1988), Lezama Lima reúne, em cinco conferências, realizadas no Centro de AltosEstudos de Havana, as teorias do neobarroco latino-americano, que ultrapassa a simples gênese da cultura earte latino-americanas contemporâneas, desde sua linguagem, até a sua visão histórica, impossível de serdelimitada, pelo fato de que se sustenta na arte para se reconstruir, de forma aparentemente aleatória econtraditória, de onde surgem as imagens, o obscurantismo do que ele considera ser a arte da contraconquista.
6 Não se pode deixar de citar ainda Miguel Ángel Astúrias Rosales (Guatemala), Juan Rulfo (México), JoséLezama Lima, Alejo Carpentier e Guillermo Cabrera Infante (Cuba), Arturo Uslar Pietri (Venezuela), José Donoso(Chile), Augusto Roa Bastos (Paraguai), Carlos Fuentes (Panamá / México).
7 O sistema literário latino-americano proposto por Rama será abordado na próxima seção.
21
classes abastadas em detrimento de outras menos favorecidas, haveria ainda um
fio condutor que se manteria nas obras literárias, perpassando-as como tema
transversal absoluto, independente de sua indiscutível diversidade: o sujeito latino-
americano.
Wander Melo Miranda (2010), em “Nações Literárias”, em relação a uma
suposta unidade cultural brasileira, destaca, nas diversas manifestações artísticas,
nelas incluindo a literatura, que
a construção cultural da ‘nação’ é uma forma abrangente de filiação sociale textual, dada pelo cruzamento de verdades e falsificações (propositaisou não) capazes de exceder as margens das convenções literárias e doslugares-comuns ideológicos” (p.21).
E sobre a característica nacionalizante que a literatura latino-americana,
como exemplo das relações contidas nos conteúdos da memória e da história, ao
voltar-se para a cultura de um povo duplamente oprimido no interior dos países,
tanto externamente pela imposição de valores do mundo ocidental quanto
internamente, na relação exclusiva que a urbanidade mantém com recônditos
espaços interioranos detentores de tradições que as cidades ainda não devoraram,
Seligman-Silva (2003) vai lhe acrescentar o traço revisor:
Mas os discursos de memória não são apenas canalizados para aidentificação com a nação ou com projetos de domínio. Existe também umageneralização do “contradiscurso” da memória de minorias que nuncativeram a oportunidade de alçar suas vozes. Este processo de narrativa dopassado de opressão conduz a uma desconstrução das narrativas históricasdominantes (e reprodutoras do status quo) (SELIGMAN-SILVA, 2003, p.11).
Dentro das comarcas literárias, as nações latino-americanas insurgem
intermitentes, dialogantes e complementares, onde cultura, memória e política se
entrelaçam, motivo da impossibilidade de se analisar a literatura de Manuel Scorza
separadamente das demais literaturas do continente. Juntas espelham não só o
mundo literário e crítico em que estão inseridas, mas também a história e o
imaginário cultural que as envolve.
22
1.2 A América dos Latinos: o sistema literário sugerido por Rama
A partir de uma cultura autodidata, vinda do jornalismo,Ángel foi desenvolvendo sua formação. Lembro-me deleem casa, sentado durante horas intermináveis à frente damáquina de escrever, com uma concentração invejável enada fácil de quebrar, nem com o aviso da comida.
Amparo Rama, 2009.
Quando Antonio Candido, em 1959, em A Formação da Literatura Brasileira:
momentos decisivos, organiza o que definiu como “sistema literário brasileiro” a
partir da análise da produção dos árcades do século XVIII até os românticos da
segunda metade do século XIX e finalmente entende-o consolidado, possibilita que
a literatura brasileira seja autoconsciente de sua função como atividade regular e
permanente na sociedade. Opondo-se às “manifestações literárias”8, produções
literárias esparsas, eventuais e pontuais, ainda muito compromissadas com a
metrópole portuguesa, que não encerravam em si qualquer projeto de literatura
nacional, ou seja, apenas a reprodução de uma literatura europeia em solos
coloniais brasileiros, o sistema literário por ele proposto compreendia uma
articulação orgânica social entre três pilares básicos estruturais e indissociáveis
para sua existência: coletividade de autores, suas obras e seus leitores.
A relação entre esses três pilares fundamentados na consciência histórica e
na participação em comum do grupo de autores e leitores da realidade por eles
experimentada no processo civilizatório em torno de participações culturais estaria
ainda relacionada à criação / manutenção de uma identidade nacional brasileira,
podendo ser sincrônica (entre autores, obras e leitores nacionais de uma mesma
época) ou diacrônica (quando ultrapassam as gerações). A comunicação do leitor
com seu autor se dá através de sua obra e vice-versa e pode ocorrer tanto partindo
da imagem representativa que o leitor faz do autor (motivo pelo qual se nota a
importância da coerência, engajamento e posicionamento crítico definido) e
também da inferência que o autor faz do leitor ao delimitar seu público-alvo. Além
disso, para que o sistema literário se movimente em toda sua dinamicidade sócio-
cultural e se mantenha vivo, seu reconhecimento precisa ser balizado por
8 Como exemplos de manifestações literárias, Candido cita as produções textuais e poéticas de padreAnchieta (século XVI), Gregório de Matos e padre Antônio Vieira (século XVII) e Rocha Pita (primeirametade do século XVIII), obras que, por maior relevância que podem ter alcançado, em termosliterários, não faziam ainda parte de um sistema literário.
23
instituições de suporte que incluam nele os sistemas educacionais, as academias,
as revistas, os prêmios regulares e as casas editoriais. (CANDIDO, 2014).
Candido (2000) aponta ainda que a análise da tramitação entre as três
bases do sistema literário, sob um ponto de vista sociológico, seguiria o que
considerou dois tipos contrários e complementares de arte, integrados: a “arte da
agregação” e “a arte da segregação”. A primeira estaria associada à expressão
artística de um sistema simbólico já existente e prestabelecido, enquanto que a
segunda se dedicaria a renová-lo (e por ser uma novidade, seu público inicial é
menor):
A objeção imediata é que, na verdade, não se trata de dois tipos, sendo,como são, aspectos constantes de toda a obra, ocorrendo em proporçãovariável segundo o jogo dialético entre a expressão grupal e ascaracterísticas individuais do artista. Mas se considerarmos apenas apredominância de um ou de outro, a distinção pode ser mantida, o que nosinteressa aqui sobremaneira, pois foi feita com o pensamento em doisfenômenos sociais muito gerais e importantes: a integração e adiferenciação. A integração é o conjunto de fatores que tendem a acentuarno indivíduo ou no grupo a participação nos valores comuns da sociedade. Adiferenciação, ao contrário, é o conjunto dos que tendem a acentuar aspeculiaridades, as diferenças existentes em uns e outros. São processoscomplementares, de que depende a socialização do homem; a arte,igualmente, só pode sobreviver equilibrando, à sua maneira, as duastendências referidas (CANDIDO, 2000, p.21)
O crítico brasileiro ressalta ainda a unidade literária brasileira dentro de sua
diversidade. Essa diversidade, dada a extensão territorial do Brasil e as diferenças
socioeconômicas entre os estados da federação, é que permitiria que o estado de
São Paulo funcionasse como pólo de influência literária para naqueles estabelecer
uma comunicação socializante através desse diálogo, possibilitando a evolução
das comunidades envolvidas no processo. Para tanto, distingue o caráter individual
da obra literária “pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma
confidência, um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma
‘expressão’” do caráter coletivo contido em seu conceito de literatura, na qual
“requer uma certa comunhão de meios expressivos (palavra, imagem), e mobiliza
afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento –
para chegar a uma ‘comunicação’” (CANDIDO, 2000, p. 127).
Expandindo, portanto, as considerações acerca do sistema literário brasileiro
sugerido por Antonio Candido, Ángel Rama, seu amigo pessoal e cúmplice teórico,
propõe a análise de um conjunto literário latino-americano nos mesmos moldes de
24
seu compadre de ideias, em busca de consolidação de um sistema literário latino-
americano. Se no Brasil, o sistema já pôde ser observado, conforme Candido,
desde o século XVIII, o restante da América Latina consideraria a instauração de
seu sistema literário apenas no século XX, a partir de 1910, quando a Revolução
Mexicana expôs ao mundo o drama do latino-americano e as antigas colônias
ibéricas do continente mostraram-se prontas a realizarem a passagem para a
contemporaneidade, provocando um efervescente movimento coletivo entre seus
países constituintes, recém-politizados entre os ditames do mundo grande
considerado “desenvolvido” (a partir do comunismo, da segunda guerra mundial,
do fascismo e do nazismo, que obrigou-os a posicionarem-se), cujo sentido
aproxima-se da noção de futuro, progresso, avanço, modernidade.
Esses movimentos febris passaram por três momentos históricos decisivos.
Cronologicamente: i) no século XIX, a partir dos processos de independência das
nações latino-americanas até alcançar, no século XX, o simbolismo e o
parnasianismo brasileiros que correspondem ao modernismo na América de língua
espanhola; ii) no século XX, com a América Latina em busca frenética de si
mesma, buscando suas raízes a partir de universalismos e cosmopolitismos,
conhecidos por Modernismo no Brasil e a correspondência hispano-americana, o
Vanguardismo; e finalmente, iii) após a Segunda Guerra Mundial, a narrativa
transculturadora que tenta buscar na oralidade e no passado mítico cultural o
âmago do ser latino-americano nos recônditos espaços da memória, fora da escrita
para tentar reescrevê-la, de um dentro particularíssimo para um coletivo que
reorganiza sua sociedade e identidade cultural (RAMA, 2009). O presente estudo
mira seu foco neste último momento.
Rocca (2006)9, em sua tese de doutorado, aborda a relação de admiração
intelectual entre o jovem Rama e Candido, suas teorias, e revela um panorama
literário brasileiro icônico a ser seguido ou cultuado à época, profundamente
analisado pelo sociólogo quando legitimou ótimas manifestações literárias como
representantes de um sistema nacional.
Outro brasileiro que contribuiria sobremaneira, com seus estudos
antropológicos, para a compreensão e o fortalecimento do sistema literário
9 Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas da USP, disponível em<http://www.teses.usp.br /teses/disponiveis/8/8145/tde-10082007-151634/pt-br.php>. Acessado emdezembro de 2015.
25
sugerido por Rama, foi Darcy Ribeiro (COELHO, 2009)10. A partir de 1974, quando
Rama foi nomeado diretor literário da Biblioteca Ayacucho11, em uma ousada
iniciativa editorial, aberto a sugestões e importantes colaborações do sociólogo
Candido sobre títulos brasileiros que poderiam ser publicados e analisados no
projeto crítico-literário, nele inclui vinte obras tupiniquins, traduzidas para o
espanhol12, sedimentando de vez o diálogo da literatura brasileira com as
produzidas na américa espanhola e tonificando ainda mais o tripé autor-leitor-obra
sugerido por Candido, como já visto anteriormente.
Cada publicação da Biblioteca Ayacucho carregava um prólogo atualizador
da obra, desenvolvido por inúmeros críticos e autores colaboradores, entre eles os
amigos Antonio Candido e Darcy Ribeiro, cujo segundo exílio em Montevidéu, no
Uruguai (o primeiro havia sido na ditadura brasileira de 1964 a 1968), permitiu sua
participação no projeto da Biblioteca Ayacucho, entre outros. Coelho (2002), que
estuda as produções do exilado Darcy em seus dois momentos de exílio, entre
outros convidados brasileiros, atesta o fato:
O exílio de Darcy Ribeiro no Uruguai, depois do golpe militar de1964, mostra como o escritor brasileiro transformou a situação debanimento em produtividade, trabalho, ajudando a escrever, deforma crítica e atuante, parte da História cultural e política daAmérica Latina (p.212)
Com o golpe militar de 1973, muitos uruguaios tomam o caminhodo exílio. Ángel Rama estava na Venezuela, desde 1972, para
10 Ensaio “O papel do intelectual, a cultura e a Biblioteca Ayacucho: Antonio Candido, Ángel Rama eDarcy Ribeiro”, de Haydée Ribeiro Coelho, apresentado no Seminário Internacional “Jornadas Latino-americanas: Ángel Rama, um transculturador do futuro”, em novembro de 2009, em parceria entre oCBEAL (Centro Brasileiro de Estudos da América Latina, deste Memorial), o Centro Ángel Rama(FFLC/USP) e o Consulado do Uruguai em São Paulo, organizado por Flávio Aguiar e JoanaRodrigues.
11 A Biblioteca Ayacucho, segundo depoimento de Amparo Rama, filha de Ángel, que introduz acoleção de ensaios organizada por Flávio Aguiar e Joana Rodrigues em “Ángel Rama: umtransculturador do futuro”, em 2009, era, em seu início, o projeto de difusão cultural mais ambiciosode seu pai. Mais adiante em seu depoimento, ela diz que “a Biblioteca Ayacucho já não era o projetode registro da cultura de um pequeníssimo país, mas o registro da cultura de toda a América Latina.E, portanto, outro passo na escala de estruturar o pensamento do continente e, nessa direção secolocava a incorporação da cultura e da literatura do Brasil”. (p.16)
12 Nas cartas trocadas entre Antonio Candido e Ángel Rama, disponibilizadas por Amparo Rama parao Seminário Internacional “Jornadas Latino-americanas: Ángel Rama, um transculturador do futuro”,em 2009, podemos observar, em uma de 8 de outubro de 1974, de Candido a Rama, na “Lista Inicialpara começar pensar no caso”, vinte sugestões de obras brasileiras, separadas em A) Ficção, B)Poesia e C) Estudos, e a resposta de Rama: “Muy útil sobre tus primeiras aportaciones sobre lacontribuición brasileña de la Biblioteca Ayacucho. Quería conocer a los demás integrantes de lacomisión. Para mi, como ya para ellos que no te conocían será la pieza-clave de la parte brasileña delproyecto”. (p.26-27)
26
ministrar um Curso na Escola de Letras da Universidade Central,quando foi surpreendido pelo golpe militar, não podendo regressarao Uruguai. É na Venezuela que Ángel Rama vai receber adelegação latino-americana para pensar na organização daBiblioteca Ayacucho. Estavam aí, como convidados, Darcy Ribeiro,Sergio Buarque de Holanda, Leopoldo Zea, Arturo Ardao e RobertoFernández Retamar (COELHO, 2009, p.221).
1.3 Os grupos sociais das revoluções, também literárias, latino-americanas
O século 20 começou com um bang, em 1914 – oBig Bang do qual, a Revolução Russa em 1917 foiapenas uma das consequências. A principal forçapolítica no século 20 foi o nacionalismo, não ocomunismo.
John Lukács. O fim do século 20 (p.15)
Dentro da literatura e também fora dela, as ditaduras, as perseguições
políticas, as revoluções político-ideológicas, os blocos continentais ideológicos de
esquerda ou direita, a nova ordem mundial, os massacres, torturas, guerrilhas e os
exílios eram a própria manifestação de uma modernização pouco escolhida e muito
imposta. O New Criticism, os movimentos beatnik e hippie e a Guerra Fria,
principalmente o crescente nacionalismo a que as nações latino-americanas
experimentavam em toda sua ira repleta de injustiças e contradições em si
próprias, ilustram o cenário.
Ribeiro (1978), ao ilustrar o processo histórico da América Latina,
desenvolve uma revisão crítica das teorias da evolução sociocultural, com o
objetivo de propor uma estrutura conceitual que situe os povos contemporâneos
dentro do continuum do desenvolvimento humano. Trata especialmente dos efeitos
da Revolução Industrial que obrigou o resto do mundo a modernizar-se sem
qualquer projeto ou sistematização, de forma praticamente aleatória e atabalhoada
(pelo menos no Ocidente). Para fazê-lo, destaca duas possibilidades que ilustram
de que forma as sociedades humanas transitam entre um e outro momento
evolutivo: através da aceleração ou da incorporação. A primeira, mais rara, permite
uma autonomia e expansão da língua, cultura e desenvolvimento a partir de sua
própria tecnologia e o enriquecimento a partir do trabalho das sociedades que
domina. A segunda, a atualização ou incorporação, relaciona-se aos povos
27
dominados pelos acelerados que, ao serem “envolvidos e dominados por
movimentos de expansão de outros povos, foram reduzidos à condição de
proletariados externos não estruturados social e economicamente para si próprios,
mas para servir aos interesses e desígnios de seus dominadores” (RIBEIRO, 1978,
p.22).
Darcy Ribeiro, em Os dilemas da América Latina, de 1978, revela que os
movimentos revolucionários na América do Latina iniciaram-se, em grande parte,
devido às ações e autoconsciência social da ‘nova esquerda’, “expressão mais
elevada do amadurecimento da consciência crítica na América Latina”. O sociólogo
cunha o termo ‘nova esquerda’ para designar “um esquerdismo de vanguarda
integrado, principalmente por grupos intelectualizados dos setores intermediários
desligados das organizações partidárias, que atua como um núcleo da crítica, mais
voltado contra a moderação do movimento comunista do que contra o voluntarismo
dos grupos insurrecionais. Sua ação excede de muito, porém, a estes limites”
(RIBEIRO, 1978, p.190).
A nova esquerda teria sido responsável pela libertação da consciência
nacional depois de séculos de colonização e neocolonização e por utilizar-se de
suas manifestações culturais e artísticas como instrumento de conscientização do
subdesenvolvimento, desalienação e politização. É integrada, principalmente
por grupos de jovens iracundos, por líderes universitários, intelectuais eartistas, sindicalistas, cientistas, técnicos, por militares progressistas epolíticos radicais que foram proscritos pelas ditaduras regressivas. Algunsdeles, uma vez despertos para a percepção crítica da realidade de seuspaíses, ingressam no ativismo político. A maior parte, porém, se contentaem manter uma atitude lúcida e versátil, participando da vida política e dasatividades culturais como agitadores políticos, como conscientizadores oumeramente como intelectuais progressistas. Em qualquer caso, atuam comoum fermento que dá sentido e autenticidade à vida intelectual latino-americana, porque a vincula à luta revolucionária (p.191).
Atestando sua posição, Cortázar (2001) admitiria a personalidade política
implícita na literatura latino-americana e a responsabilidade social de seus autores:
Outra prova de responsabilidade pessoal como escritor comprometido creioestar dando hoje aqui, pelo simples fato da minha presença entre vocês.Durante dez anos me neguei a aceitar os tantos e claramente generosos ebem-intencionados convites que recebi de diferentes centros intelectuaisdos Estados Unidos, e em todos os casos minha recusa foi bem explicada(CORTÁZAR, 2001, p.117).
28
Além da nova esquerda, Darcy Ribeiro cita os grupos virtualmente
insurrecionais, que compravam a briga do momento, sempre à espera de uma
pequena centelha que pudesse acender de vez o estopim da revolução,
constituem atualmente o contingente mais dinâmico das esquerdasrevolucionárias latino-americanas. São recrutados tanto no âmbito da novaesquerda, quanto entre os militantes da esquerda tradicional que se rebelamcontra a conciliação e o quietismo. E ainda entre os militares proscritos,principalmente sub-oficiais que se dispõem a lutar de todas as formas contraa ordem vigente. Sua expressão mais alta, nas condições da América Latinados 60, eram os combatentes guerrilheiros e grupos clandestinos urbanos erurais com eles identificados. Eram integrados, principalmente, por jovensmilitantes que vêem na experiência cubana o seu paradigma de revoluçãosocial. (RIBEIRO, 1978, p.210).
Recordando o esquema triangular proposto por Antonio Candido em seu
sistema literário (autor, obra e leitor), observa-se a formação da classe de autores
e leitores de consciência crítica amadurecida e seu instrumento de comunicação
cultural, social e politizante, que fundamenta e concretiza a força da literatura
latino-americana:
Assim é que, tanto os criadores quanto os consumidores da nova literatura,da nova música popular, do cinema e do teatro de vanguarda cumprem, aum tempo, a função de se libertarem de toda a sorte de agregaçõesculturais espúrias; e a de criar uma consciência crítica e combativa queaponta para a revolução social como a saída inevitável da situação deignorância e penúria em que estão mergulhados milhões de latino-americanos. (RIBEIRO, 1978, p.190)
1.4 Comarcas literárias e transculturação narrativa
Yo no soy un aculturado; yo soy un peruano que orgullosamente,como un demonio feliz habla en cristiano y en indio, en español yen quechua.
Arguedas
Para a composição de um sistema literário que abarcasse toda a América
Latina de línguas espanhola e portuguesa e respeitasse as particularidades
culturais de cada povo como um conjunto de vozes guerreiras que se
29
autofortalecem, consciente da transição temporal de um imperialismo europeu para
um neoimperialismo norte-americano fortemente capitalista, seria necessário
expandir as barreiras geopolíticas e considerar cada região em sua autonomia
cultural, linguística e étnica em forma de comarcas literárias, formadas por tais
regiões culturais.
Assim, em um nível, Rama pontua inicialmente os países hispano-
americanos, que já não precisam considerar a língua como barreira; num nível
mais justificável quando amplificado, estão as regiões culturais e as micro-regiões
que as compõem, sendo possível aproximar, pelos mesmos vínculos ou afinidades
culturais, por exemplo, o estado do Rio Grande do Sul e o Uruguai e a região
argentina dos pampas:
a divisão em regiões, dentro de qualquer país, tem uma tendênciamultiplicadora que, em casos limites, produz uma desintegração da unidadenacional. (...) Esse segundo mapa latino-americano é mais verdadeiro que ooficial, cujas fronteiras foram, no melhor dos casos, determinadas pelasvelhas divisões administrativas da Colônia e, em uma quantidade nãomenor, pelos acasos da vida política, nacional ou internacional. (RAMA,2001, p.282)13
Rama consideraria, para delimitação inicial de suas comarcas a divisão
antropológica proposta em um ensaio sobre as tradições latino-americanas:
publicado em 1968, por Wagley:
A divisão antropológica maior, que ainda se encontra em Charles Wagley,fixa três grandes regiões latino-americanas: Afro-América (costa-atlântica,zonas baixas, cultivos em fazendas, escravidão, contribuição cultural negrae forte diminuição da indígena, regime senhorial), Indo-América (cordilheirados Andes, áreas limítrofes de zonas temperadas e frias, forte composiçãoindígena, agricultura e mineração, dominação hispânica, religião católica) eIbero-América (região temperada do sul, colonização tardia, imigraçãoeuropeia, escassa contribuição indígena e africana, pecuária e agricultura,regime de exploração burguês). (RAMA, 2001, p.283)
A pesquisa sociológica e antropológica de Rama fez com que ele
percebesse um imenso universo cultural dos povos latino-americanos, com um
13 Cf. ensaio “Regiões, Culturas e Literaturas”, publicado originalmente em 1982, sob o título“Transculturación narrativa en America Latina”, no México, pela Ed. Siglo XXI e reunido em “ÁngelRama: literatura e cultura na América Latina, por Flávio Aguiar e Sandra Guardini T. Vasconcelos(org), pela Edusp, 2001.
30
feroz potencial para manifestar-se. Estratificou ainda mais as três grandes regiões
iniciais, em acordo, não só por um passado comum, mas também pelas literaturas
pós-1920 que manifestavam sua cósmica expressão ancestral na formação do ser
latino e a forma em que se diferenciavam como contrapartida de um sistema
político do qual se deve fugir. Salientou a seleção e eleição de símbolos que
pudessem representar cada comarca para reforçar, mesmo que diante da
subalternidade, seu orgulho de pertencimento e o legado de suas memórias, além
da reescritura da história latino-americana, também visível nos mitos reacendidos e
o uso do elemento mágico, o sagrado e o profano em diálogo. A intensa
necessidade de independência e reafirmação ideológico-cultural foram também
devidamente observadas por ele como critérios para análise e delimitação de cada
região cultural.
A América Latina, a um passo de ter seu passado engolido pela
modernidade, mais uma vez, dada a velocidade com que se impõe, grita com a
alma o que o corpo já não suporta, e o faz também pela literatura. As vozes dessa
alma, como ilhas literárias, “dotadas de uma relativa homogeneidade ou formas
aparentadas de criação artística que se influenciam mutuamente” (RAMA, 2013,
p.44), seriam então visualizadas conforme mapeamento preconizado por Rama: as
comarcas “pampiana” (parte da Argentina, Uruguai e sul do Brasil), “andina” (do
norte da Argentina, Peru até a Colômbia, Venezuela e Equador), “caribenha”
(Flórida, sul dos Estados Unidos e litoral atlântico da Colômbia e Venezuela), da
América Central de cultura maia ou asteca, a do Pantanal (parte do Brasil e da
Bolívia) e a da região amazônica. Fazia parte também dos planos de Rama a
inclusão de comarcas de línguas francesa, inglesa e holandesa que
compreenderiam as Guianas (RAMA, 2001). Seu trabalho era identificar, analisar e
unir os “ondes” literários em torno de suas culturas, buscar a unidade que lhe
permitiria fortalecer o trânsito das literaturas internamente entre as regiões e os
países da América Latina e externamente, com as demais nações do mundo que
nos leriam:
Acredito que o trabalho fundamental é construir um discurso através do qualseja possível aproximar as literaturas hispano-americanas e as brasileiras,com a obrigação de incluir no terceiro tomo, dos três planejados, algumcapítulo sobre a literatura de língua francesa nas Antilhas – Haiti, Martinica,Guadalupe e a parte francesa das Guianas -, outro sobre a literatura delíngua inglesa e, se possível, um sobre a literatura holandesa. Apesar denão começarem exatamente no século 20 – há alguns precedentes -, a
31
verdade é que seu desenvolvimento se produz neste século. Portanto, nãofaz nenhum sentido sua presença antes deste último tomo, no qual sepoderá dedicar um capítulo a cada uma dessas literaturas14 (RAMA, 2008.p.171).
Em cada comarca, para lidar com o sincretismo advindo do contato entre as
culturas do dominador e do dominado, Rama buscou no conceito de
transculturação, de Fernando Ortiz, a chave-mestra para demonstrar como, através
da literatura, principalmente a romanesca, o latino-americano se reinventava diante
das imperiosas situações de dominação política, econômica, religiosa e intelectual,
nas esferas regionais, nacionais e internacionais pela sua ressocialização de sua
cultura própria, buscando no passado particular um futuro universal que o sintetiza
no geral como ser, e no particular como ser latino.
Ortiz, em 1940, havia observado as etapas de como uma cultura se
transfere a outra, estabelecendo nesse processo transitório a transculturação como
um espaço em que se perde parte de uma cultura precedente para adquirir parte
de uma presente, em que a dominante tem menor baixa cultural. As baixas, seriam
para o cubano a aculturação e a aquisição / criação de novos fenômenos culturais
advindos dessa hibridez seria uma neoculturação. Os centros urbanos teriam
assim um papel primordial como agentes transculturadores, pois transitava por
duas instâncias diferentes, ou seja, na relação com as metrópoles externas e na
relação com as regiões internas (RAMA, 2001)15.
Aplicado o conceito de Ortiz aos níveis narrativos, Rama observa que a
partir dos anos de 1930, com o movimento vanguardista da América espanhola e
modernista da América brasileira, tanto a literatura de cunho fantástico quanto a
caracterizada como realista-crítica, próprias da progressiva urbanização na
América Latina, em desejoso movimento de afirmação de seus domínios e em
franca expansão experimental, ameaçaram arremessar à extinção a literatura
regionalista, o que acarretaria
14 Texto de Ángel Rama, publicado em Ana Pizarro (coord.) sob o título La literatura latino-americanacomo proceso. Buenos Aires: CEDAL/Bibliotecas Universitárias, 1985, e reunido por Pablo Rocca(organizador), sob o título “Algumas sugestões de trabalho para uma aventura intelectual deintegração”. In: Literatura, Cultura e Sociedade na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG,2008.
15 Publicado originalmente na Revista de Literatura Iberoamericana, n.5, abril de 1974, sob o título(traduzido)“Os processos de transculturação na narrativa latino-americana” e reunido por FlávioAguiar e Sandra Guardini T. Vasconcelos em Ángel Rama: literatura e cultura na América Latina. SãoPaulo: Edusp, 2001.
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a extinção de um conteúdo cultural muito mais amplo, que só por intermédioda literatura alcançaria a sobrevivência, cancelando-se sua ação eficaz,integradora, sobre o meio nacional, que aparentemente não podia sercumprida por outros canais, pelo menos em seu nível artístico (RAMA;2008, p.213).
As narrativas urbanas, voltadas para o progresso, em suas tendências
aceleradas de inovação e renovação, transformam-se num eixo entre o novo
moderno (externo europeu e em seguida norte-americano) e o tradicional local
(regional arcaico), comportavam-se como o irmão mais velho que desconta no
mais novo as pancadas recebidas por outrem repetindo as mesmas violências de
dominação cultural, reforçando a ideia de submissão.
Ao regionalismo, restava adaptar-se ou “transmutar-se”, como queria Rama.
Para conservar seus valores e retransmiti-los sem contradições em suas heranças
culturais, os regionalistas adaptam-se à situação dando um passo interessante:
buscam no internacional (ou seja, na cultura externa à qual estão submissos os
vanguardistas e modernistas urbanos em seus movimentos revolucionários e com
a qual se comunicam em âmbito de pátria e nacionalismos) a passagem direta,
pulando a instância urbana e equilibrando elementos entre o universal e o local
(muitas vezes o extremamente local), para trazer à tona um particular cultural ainda
mais arraigado que deve ser preservado, satisfazendo ao mesmo tempo o diálogo
com a instância citadina que reconhece e/ou critica no uso de sua sobrevivência:
Mas serão aqueles escritores mais profundamente inseridos em culturas desociedades encravadas e dominadas que, dispondo de estruturas culturaisplenamente elaboradas com elementos autóctones ou acrioulados de longadata, terão de encontrar equivalências originais e insólitas para asincitações externas, respondendo a elas a partir de uma penetração emsuas culturas tradicionais. Porque o impacto modernizador gera em primeirolugar uma retirada defensiva, um mergulho protetor no seio da culturaregional e materna, com um premente apelo a suas fontes nutritivas, mastambém com o desejo de reexaminar de forma crítica suas condiçõespeculiares, as forças de que dispõe, a viabilidade dos valores aceitos semanálise, a autenticidade de seus recursos expressivos. (RAMA, 2008; p.214)
Considerando essas forças como vetores do movimento transcultural a que
se refere o uruguaio, ou os impactos culturais advindos do choque e coexistência
de cada instância com as demais (o interno, regional e particular; o moderno,
33
urbano; e o exterior, fora da América Latina, universalizante), seria possível
observar que: a) o regional, para sobreviver à modernidade com seu sistema de
valores mais locais, age sem escalas na instância mediadora da cidade, trazendo o
âmago cultural do interior através também das urbanidades e indo diretamente ao
universal; b) ao utilizar-se de códigos afins no diálogo estabelecido com esse
universal, retorna a si própria em profundidade tal que traz consigo traços
marcantes de culturas que se atualizam literariamente; c) quando trata de regiões
internas, esquecidas, excluídas e/ou periféricas, busca na substância mais primeva
e profunda de sua cultura, séculos no tempo, o sentido de sua memória muitas
vezes por outro trajeto histórico; d) os ventos que sopram da cidade para o campo
permitem refluxos e novos redemoinhos transculturais, como mediadores que
permitem-nos conviver em um mesmo período temporal, através de uma reanálise
de cada cultura em si mesma e na outra, o mesmo valendo para uma revisão
histórica dos processos civilizatórios e revolucionários na América Latina. Em
síntese, o movimento e o diálogo entre as instâncias sinalizam os conflitos
relacionais do ser humano frente às duas realidades que se lhe apresenta: cultura
tradicional profunda x cultura urbana modernizante; cultura local particularíssima x
cultura cosmopolita.
Faz-se pertinente a percepção de que a linha tênue que suporta,
equilibrante, essas tensões culturais, seja canalizada para a instância média, isto
é, as cidades, que serão produtoras de classes revolucionárias e guerrilheiras e
também as grandes consumidoras dessa literatura veicular que, na irrefreável
busca do ser latino-americano em sua mais profunda memória cultural, procede a
uma revisão tanto dos costumes mais ancestrais quanto da própria história dos
povos, fazendo brotar daí, um “novo nacional” que será aceito como releitura da
ancestralidade latino-americana interna e externamente, independente da ficção
que a representa.
A essa profundidade cultural alcançada em sua autoconsciência, Rama
caracteriza como ‘marco antropológico’ na literatura latino-americana (algo entre o
falido regionalismo da década de 1930 e o realismo crítico do pós-guerra em 1945,
com a mudança de eixo da Europa para os EUA), e está também relacionada à
velocidade com que o progresso preconizado pela modernidade afeta essa
reciclagem sociocultural em seu processo transculturativo. Faz parte de um
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caminho para que as literaturas latino-americanas possam inscrever-se no tempo
como portadoras das heranças culturais às próximas gerações de leitores e
autores.
A transculturação narrativa pode se dar em três níveis, pelo uso de uma
língua literária própria da criação artística, em que se percebe a absorção de um
traço da modernidade (RAMA, 2001).16
No plano linguístico, há o acolhimento de línguas indígenas autóctones ou
próprias de grupos minoritários; os dialetos regionais das línguas colonizadoras do
continente latino-americano (espanhol, português ou francês), reconstrução de
modelos arcaicos originais ou uma linguagem nova totalmente literária,
considerando também o abandono de certas formas lexicais para a assimilação e
utilização de formas sintáticas excentricamente recombinadas e moduladas ou
ainda subvertidas.
No plano da composição literária, observam-se os pontos de contatos entre
as cidades vanguardistas e o regional em decadência. O processo que se observa
é completamente transculturativo, e há a assimilação tanto de elementos
fantásticos na narrativa quanto do realismo-crítico característico das urbanidades,
“dotando-as de uma destreza, uma percepção do real e um contágio emocional
muito maiores, embora também em concordância com uma visão fragmentada”
(RAMA, 2001, p.221)17. O monólogo discursivo que mescla o clássico com a
espontaneidade narrativa (como Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas,
publicado em 1956), ou a narrativa vinda de outra perspectiva, diretamente do
popular ou aquele com um discurso próprio de sua cultura subalternizada, em vias
de exclusão, ou simplesmente pouco abordada porque não se lhe imputou
qualquer importância (como Juan Julfo, em Pedro Páramo, publicado em 1955) são
exemplos das vozes da oralidade popular que se inserem no corpo da narrativa.
No plano dos significados a revolução foi maior. O seio da cultura narrado
com sua cadeia própria de lógica e nexo, de acordo com as tradições mitológicas,
a compreensão e/ou incompreensão que se instaura entre o sagrado e o profano.
16 Reunido por Flávio Aguiar e Sandra Guardini T. Vasconcelos, Edusp, 2001. O artigo de Rama éintitulado “Os processos de transculturação na narrativa latino-americna”, publicado na Revista deLiteratura Iberoamericana, n.5, abril 1974, Maracaibo, Venezuela, pela Universidade de Zulia, Escolade Letras.
17 idem.
35
É quando finalmente o autor não só se coloca no lugar do outro para narrar os
trâmites do funcionamento de seu pensamento, mas quando incorpora e se
transforma, de fato, no outro. Os elementos das narrativas fantásticas ganhariam
aqui um peso além do observado até então por serem indescritíveis, incríveis (no
sentido de crença) ou metafísicos apenas para uma determinada cultura que a
observa (simbolizada pelo leitor), mas para si própria, não há qualquer ficção. Não
só a verdade perde importância como a verossimilhança a conquista, lançando a
base coexistente de um irracionalismo e idealismo integrados nos signos e seus
significados. As culturas indígenas, assim como o passado mais remoto das
regiões latino-americanas exercem uma atração especial e um fascínio único aos
narradores da época.
O mito de uma cultura é a ficção do outro; para a primeira, ele é
simplesmente uma verdade incontestável ou uma realidade possível. Rama não
comentou qualquer situação sobre a proximidade do autor com a comunidade que
culturalmente narra sua história, mas é muito possível e merece um estudo à parte
observar a distância dos autores que o fazem biograficamente: assim como Scorza
teve pais mestiços e submissos ao sistema e conviveu na infância com os nativos
peruanos chola (Ciclo da Guerra Silenciosa – 1970 a 1979, por exemplo), assim
também o eram Arguedas em sua peruanidade incaica e Guimarães Rosa em sua
mineiridade. Talvez também por isso, a partir da necessidade de olhar sua própria
cultura por fora dela (do exílio), poder-se-ia alcançá-la mais profundamente: a
distância cultural, física e geográfica do autor à sua cidade / região natal impele-o a
um olhar diferenciado e nostálgico a respeito de sua terra e sua gente, fazendo
com que Scorza revalorize-os e busque um passado cultural mais longínquo
através da literatura.
Rama desenvolveu o conceito de transculturação narrativa a partir de
análise de obras que considerou melhores exemplares: Grande Sertão: Veredas,
do brasileiro Guimarães Rosa (1955); Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo
(1956); Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez (1967); e Os
Rios Profundos, do peruano Arguedas (1958), sendo esta última o ícone máximo
da expressão da transculturação narrativa.
Quando analisa o processo histórico da América Latina, diferencia através
dos termos ‘aceleração evolutiva’ ou ‘incorporação’, e ‘atualização histórica’, na
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qual os colonizados teriam autonomia cultural e organizacional de sua estrutura
social; no primeiro caso, ou a conformação como “povos dependentes que não
existem para si, mas para atender às condições de vida e de prosperidade de
outros” (RIBEIRO, 1978; p.21). No tempo, seriam dois momentos cronológicos dos
processos civilizatórios em geral, não apenas os que vieram após à Revolução
Industrial como causa específica para um efeito comum: primeiro vem a dominação
através da força e o subjugar da cultura do dominado (incorporação) pela
imposição política e econômica e, em seguida, viria um momento em que
independência e necessidade de sobrevivência da cultura dominada obrigam-na a
conviver com a dominância e vai surgindo então uma cultura híbrida, sincrética,
com valores das duas partes, que se alimenta da cultura opressora exatamente
para dela se libertar e fortalecer-se como povo ou nação. A transculturação
narrativa alcançaria um estágio posterior na qual as duas partes comungam
culturas em equilíbrio comensal à medida que causa um deslocamento histórico e
leva os pós-colonialistas a buscarem suas raízes culturais mais profundamente na
ancestralidade (temporal) ou mais espalhadamente pelas flores e frutos da planta e
do organismo social (espacial), tradução e transcriação de uma primitividade étnica
para o presente.
“‘Deus que fala’ é o significado do nome daquele rio”, diria Arguedas quando
traduz o quíchua para o espanhol (ARGUEDAS, 1959, p.26) e permite a analogia
com o título da obra, Os Rios Profundos, que poderiam significar a busca da
memória perdida, a palavra de um Deus esquecido nas profundezas do Rio
Apurímac, entre outros rios, normalmente ao redor dos quais se assentam as
populações.
Na obra, a cultura incaica é revalorizada não apenas através de uma ficção
repleta de passagens biográficas que aproximam o autor de seu público, mas
também a partir de uma estética cultural antropológica e social que ilustra o choque
entre culturas e o vazio que se instaura na falta de lógica ou sentimento de
incompreensão em relação aos valores e costumes das classes opressoras na
própria narrativa (plano dos significados, dentro do processo de transculturação de
Rama). Fica latente o abismo entre a mística católica que vem como um tornado
catequizando o povo peruano e a remanescência incaica, que traz maior
sentimento de orgulho e identidade nacional à população, apesar de fazer parte,
37
dada sua estratificação social, das classes mais prejudicadas e subalternas
peruanas, compostas por índios e mestiços. Em sua temporalidade, traz o Inca em
toda sua apreciação mítica na narrativa em primeira pessoa por Ernesto, uma
criança mestiça em deslumbramento com sua ancestralidade obrigada a viver num
colégio interno católico em sua dificuldade para assimilar os conceitos dos
dominantes.
Arguedas atualiza, em Os Rios Profundos, a tradição na narrativa, trazendo
a linguagem e a cultura inca, de forma bilíngue (quíchua e espanhol) e até
pedagógica, presente, por exemplo, nos huaynos (canção e dança populares de
origem incaica), em que o ser conversa com o pássaro, ambos nivelados em seus
aspectos naturais (ARGUEDAS, 1959; p.32):
Os índios, em maio, cantam um huayno guerreiro:
Kilinchu yau,Wamancha yau,Urpiykitam k’echosk’ayki,Yanaykitam k’echosk’aykik’echosk’aykim,k’echosk’aykimApasak’mi apasak’mi.
Kilincha!Wamancha!!18
Um deslocamento temporal que pode ser tomado como exemplo da
transculturação narrativa de Rama, no plano linguístico, em Os Rios Profundos, de
1958, seria trazido pelo universo cultural inca e sua profundidade. Na narrativa de
Arguedas, está em um episódio (Capítulo VI – “Zumbayllu”) em que o protagonista
18 Tradução de Arguedas:
Ouve, francelho,ouve, gavião,vou te tomar sua pomba,vou te tomar sua amada,hei de tirá-la de ti,hei de levá-la, hei de levá-la.
Ó, francelho!Ó, gavião!
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contempla os poéticos e lúdicos movimentos de um pião, brinquedo que, para
explicá-lo em todo seu esplendor, recorre à linguística para trazer o sentido através
de seu nome original e reafirmá-lo numa cadeia de significados19:
A terminação quíchua “yllu” é uma onomatopeia. “Yllu” representa, numa desuas formas, a música que produzem as pequenas asas em vôo; músicaque surge do movimento de objetos leves. Essa voz se assemelha a outramais vasta: illa. “Illa” designa certa espécie de luz e os monstros quenasceram feridos pelos raios da lua. Illa é um menino de duas cabeças ouum bezerro que nasce decapitado; ou um penhasco gigante, todo preto ebrilhante, cuja superfície aparecesse atravessada por um veio largo derocha branca, de luz opaca; illa também é uma espiga cujas fileiras de milhose entrecruzam ou formam redemoinhos; são illas os touros míticos quehabitam o fundo dos lagos solitários, das altas lagoas rodeadas de sapé,povoadas de patos negros. Todos os illas provocam o bem ou o mal, massempre em grau extremo. É possível tocar um illa e morrer ou alcançar aressurreição. Essa forma “illa” tem parentesco fonético e certa comunidadede sentido com a terminação “illu” (p.69).
Zumbayllu! No mês de maio Antero trouxe o primeiro zumbayllu ao colégio.Os alunos pequenos rodearam-no.- Vamos ao pátio, Antero!- Ao pátio, irmãos, irmãozinhos!Palácios correu entre os primeiros. Saltaram o terrapleno e subiram aocampo empoeirado. Iam gritando:- Zumbayllu, zumbayllu! (p.72)
- Zumbayllu, zumbayllu!Repeti muitas vezes o nome, enquanto ouvia o zumbir do pião. Era como ocoro de grandes tankayllus20 fixos num lugar, prisioneiros sobre a poeira. Ecausava alegria repetir essa palavra, tão semelhante ao nome dos docesinsetos que sumiam cantando na luz (p.73)
Depois de justificado o caráter cultural do objeto, que traz aos olhos do
pequeno índio um maravilhamento respeitoso e religioso, o narrador explica não só
de que forma o objeto existe no mundo, mas como ele próprio o enxerga:
Fiz um grande esforço; empurrei os outros alunos mais velhos que eu econsegui chegar ao círculo que rodeava Antero. Tinha nas mãos umpequeno pião. A esfera era feita de coco comum de venda, dessespequeninos cocos cinzentos que vêm enlatados; a ponteira era grande efina. A esfera tinha quatro buracos redondos à maneira de olhos. (p.71)
19 A edição do romance pesquisado, pelo Círculo do Livro, não contém a data de publicação. “Os riosprofundos” foi publicado, orginariamente, em 1959. A tradução desta edição é de Gloria Rodriguez.Foi decidido não citar as referências em cada citação, pois todas se referem à mesma obra.
20 Espécie de inseto semelhante ao besouro, abelha ou vespa, que ao polinizar as flores, vibra suasfortes asas produzindo um forte zumbido.
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Ao promover o deslizamento do leitor por diferentes universos culturais e
trazer a cumplicidade da fruição da leitura de mundo pelo infante narrador,
utilizando como plano descritivo a geografia natural, a fauna e a flora, o autor logo
volta ao encantamento justo que a mítica cultura inca provocava em si, e o
protagonista trata de transcrever seu movimento no tempo, agora de volta do
universal ao particular, em velocidade maior que a primeira, dada a primeira
alteração das distâncias históricas entre os períodos e povos nelas
compreendidas, trazendo vida e movimento sagrados a um brinquedo inanimado
anteriormente profano pela sua qualidade simples de objeto, como um processo de
entificação (devir do sagrado – ser da natureza):
O pião parou um instante no ar e caiu num extremo do círculo formadopelos alunos, onde havia sol. Sobre a terra solta, sua longa ponteira traçoulinhas redondas, deslocou-se lançando rajadas de ar pelos seus quatroolhos. Uma sombra cinzenta aureolava sua cabeça giradora, um círculonegro o partia pelo centro da esfera. E seu canto brotava daquela faixaescura. Eram os olhos do pião, os quatro olhos grandes que se afundavam,como num líquido, na dura esfera. A poeira mais fina se levantava emcírculo, envolvendo o pequeno pião. [...] O canto do zumbayllu se internavano ouvido, avivava na memória a imagem dos rios, das árvores negrasagarradas às paredes dos precipícios. (p.73)
Olhei para o rosto de Antero. Nenhum menino contemplava umbrinquedo daquela maneira. Que semelhança havia, que corrente entre omundo dos vales profundos e o corpo daquele pequeno brinquedo móvel,quase protéico, que cavava cantando a areia em que o sol pareciadissolver-se? (p.74)
Como grande parte das obras produzidas no pós-guerra que tentavam trazer
pelo particular regional uma memória ancestral universalizante decorrente do
processo transcultural narrativo, representadas pelas suas comarcas literárias,
agentes do mesmo processo modernizador latino-americano, em direção ao mundo
outro, que pode estar próximo àquele e ainda assim exterior, pode-se apontar que:
i) há uma graduação de transculturação narrativa nas literaturas produzidas no
continente que poderá, ainda que sem valores concretos, figurar em escala entre o
mínimo e o máximo (Rios Profundos), de acordo com a figuração maior ou menor
nos três planos narrativos (linguístico, da composição literária e dos significados);
ii) há ainda muitas outras obras que podem (e devem) ser estudadas sob a luz dos
processos transculturativos propostos por Rama para a narrativa, pois que o
uruguaio nos deixou muito cedo, em 1983.
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Sem desmerecer o afinco de Ángel Rama em consolidar um sistema literário
que abarcasse toda a América Latina, faz-se necessário também creditar as
contribuições do crítico dominicano Pedro Henríquez Ureña e do venezuelano
Mariano Picón Salas em torno dos conceitos atribuídos ao uruguaio de “comarcas
literárias” e “transculturação narrativa”, respectivamente. Conforme Cunha (2013)21,
o primeiro já admitia e chamava atenção para a análise de um conjunto literário
pelas “peculiariades regionais acima das arbitrárias divisões geopolíticas”, embora
seu projeto estivesse calcado em uma unidade lingüística comum e, portanto,
contemplasse apenas os países latino-americanos de língua espanhola. O
segundo já teria utilizado em De la conquista a la independencia: tres siglos de
historia cultural hispanoamericana, em 1944, o conceito de transculturação de
Fernando Ortiz:
O intelectual emprega em seus ensaios o termo criado pelo cubano comoum sinônimo de outros: síntese, cultura mestiça ou híbrida, que,posteriormente, ao longo da história cultural do continente americano, emmuitos casos se tomaram rumos distintos pelas sutilezas e nuanças comque foram sendo destacados por diversos estudiosos, tais como mestizaje,utilizado por muitos autores; peruanidad, por José Carlos Mariátegui;hibridez cultural, por Néstor García Canclini; heterogeneidad e migrancia,por Antonio Cornejo Polar; e transculturación narrativa, por Ángel Rama.Portanto, a partir da leitura desses ensaios de Picón Salas, é possívelperceber a influência de uma síntese cultural na transculturação narrativa,além de sua presença em La ciudad letrada (1984) (CUNHA, 2013, p.140).
Nomenclaturas à parte, apropriadas tanto à Teoria da Literatura como às
análises sociológicas e antropológicas constantes nos estudos de Rama, Cunha
(2007)22, observa que os três níveis sugeridos pelo uruguaio podem ser também
interpretados como língua, estrutura narrativa e cosmovisão, mas destaca que o
importante é observá-los, no âmbito literário, como constituintes de um processo
total do encontro entre culturas.
Cunha (2007), em “A transculturação narrativa e o projeto intectual de Angel
Rama”, capítulo conclusivo de sua tese de doutorado, chama-nos a atenção para o
21 Publicado em “Ángel Rama: um transculturador do futuro”, pela Ed. UFMG, em 2013, sob o título “Atransculturação narrativa de Ángel Rama: algumas de suas influências e intercâmbios”, por RoseliBarros Cunha, numa coletânea de ensaios reunidos por Flávio Aguiar e Joana Rodrigues (orgs.).
22 Tese de doutorado de Roseli Barros Cunha, defendida na Universidade de São Paulo, em 2005 epublicado pela editora Humanitas, em São Paulo, 2007, sob o título “Transculturação narrativa: seupercurso na obra crítica de Ángel Rama.
41
fato de que Rama trabalhou a transculturação narrativa pontualmente, a partir de
obras que elegeu icônicas para a análise.
A transculturação narrativa seria uma possibilidade de entendimento daprodução literária latino-americana. No entanto, como o próprio Ángel Ramaenfatizará, não deveria ser considerada um método para aplicaçãoindiscriminada. A proposta do uruguaioera que o procedimento por eleempreendido ao projetar seu conceito na literatura a partir da obra deArguedas fosse tomado como exemplo de realização de estudo teórico emetodológico, e não como um modelo acabado. O estudo deveria partir doconehcimento das próprias condições de produções do autor enfocado edas características de sua região (CUNHA, 2007, 402-403).
Assim, para realizar tal operação, seria necessário que o crítico
apresentasse um vasto conhecimento acerca da comarca cultural em que se
inseria o autor a ser analisado, a fim de deslindá-lo em seu processo criativo,
observando os procedimentos formais e ideológicos do autor, e finalmente
amplificar a leitura cultural da obra a ser estudada.
42
Capítulo 02 - A Dança Imóvel: análise da obra homônima de scorza – entre a
história, a biografia e a literatura
2.1 Canetas e metrancas
A literatura é o anúncio de grandes apocalipses.(Manuel Scorza, em entrevista a Soler, pelaRádio Televisión Espanhola, 1977).
1983. O ano em que nascia para o mundo A Dança Imóvel, de Manuel
Scorza, era o mesmo que fatalmente tiraria o autor dele, num acidente de avião em
Mejorana del Campo, na Espanha. A sorte é que Scorza já havia “dançado” com a
obra músicas passadas e únicas, as de sua vida. Na vida quanto na morte, na
guerra como no amor, na literatura como na política, na crítica como na ideologia, no
cultural como no social. Naquele voo, com o mesmo destino, o uruguaio Ángel
Rama, que fez a mesma ponte aérea e ampliou as vozes latinas e finalmente incluiu
o Brasil no sistema literário americano latino, também estava. Devo-lhe o
entendimento e muito da sustentação para a compreensão da obra de Scorza e de
outros autores latinos dos quais tive a chance de ler suas obras. A tragicidade do
acidente traz uma melancolia e um vazio além das palavras, pois foi com elas que
realizaram sua maior revolução. Principalmente porque teriam muito mais a dizer e o
mundo seria um lugar melhor se estivessem vivos, novas contribuições na literatura
e na crítica seriam observadas e às revoluções atuais seriam bem-vindos. Deve
realmente haver algum motivo para que morram tão cedo, deve ser para que
passemos uma vida para entendê-los e uma réstia idosa para procedermos às
melhorias e modificações. Além dos dois, compartilhavam o mesmo vôo o escritor
mexicano Jorge Ibargüengoitia e a escritora argentina Marta Traba. Todos viajavam
para o I Congresso Internacional da Cultura, que se iniciaria em 29 de novembro
daquele ano, em Bogotá, na Colômbia.
Seis anos antes, Scorza dava uma entrevista à Radio Televisión Espanhola,
na qual observava o papel político do crítico e escritor latino-americano, e cinco
situações mereceram destaque instantâneo para a análise de sua última obra.
43
1. A primeira elucida como a questão de como o Realismo Maravilhoso
proposto por Todorov (1970), como um gênero fechado em si mesmo e fadado a um
fim precoce, pôde ser desconstruída em relação a como a literatura latino-
americana, imbuída dos estigmas de um ficção imaginativa e política, era
compreendida até então. Embora não cite qualquer pensador, fica latente que
Scorza adota uma visão antropológica ao considerar que a forma como uma cultura
enxerga outra, em suas diferenças, causa um estranhamento tal que a realidade
daquele que a narra parece ser vista como ficção por parte daquele que a lê. Dessa
forma, Scorza atribuiu à literatura latino-americana uma função onírica (parte do
insconsciente coletivo de um povo) e uma função religiosa (na qual os costumes e
tradições culturais se sustentam), perpassados por uma política social que pode
servir de eixo principal ou ponte entre elas. A forma como o peruano lidava com a
realidade e a ficção, pôde ser verificada quando explicava seu processo criativo e
sua vida: ele, perseguido político, também pela sua verve revolucionária e
guerrilheira, não só defendia uma classe como um povo. Mostrou as fotografias do
seus personagens protagonistas nas baladas ou cantares escritos de 1970 a 1979:
fictícia era a prosa, o conduzir pelo estilo da carruagem da linguagem, não o
conteúdo. Falava sobre Redoble por Rancas (traduzido no Brasil como Bom Dia
para os Defuntos, 1970) e a luta dos comuneros23 frente a uma multinacional
canadense (a Cerco del Pasco Corporation), que invadiu centenas de hectares
através de uma cerca, a qual Scorza compara a uma entidade tão metafísica que os
habitantes de Rancas desenvolvem uma espécie de um estrabismo ou miopia
coletiva a ponto de não vê-la, apenas sabiam que existia e que crescia
indefinidamente, e não ultrapassavam-na a não ser para morrer. “O coletivo significa
que o delírio está na realidade, não no texto em si” (SCORZA, 1977), disse, em
relação a um caso em que houve um “problema” com um sindicato peruano em que
muitos morreram e que a própria república do Peru endossou o ditame da Corte de
Cuzco como um enfarte coletivo. Ora, de acordo com tal absurdo da realidade, a
ficção e/ou capacidade onírica da literatura podia ser considerada como uma
representação social, ainda que crítica e sarcástica, da normalidade e do cotidiano.
23 Segundo a entrevista de Scorza à Rádio Televisión Espanhola, em 1977, são os campesinos, masdentre estes, os “homens fortes que sofrem no dia-a-dia traumas muito profundos, tão profundos quecabe-nos perguntar se já fomos humanos” (traduzido). Disposto em https://vimeo.com/80466863.Acessado em 31 de janeiro de 2013.
44
Havia também foto da citada cerca. O autor justifica a amostragem de
fotografias tanto dos personagens quanto de objetos e situações, não apenas com
objetivo de trazer verossimilhança aos escritos fictícios que se mesclavam com a
própria história do povoado de Rancas, metonímia de todo o povo peruano que
sofria com as relações aculturantes advindas das invasões multinacionais ilustrativas
dos pólos dominadores político-econômicos e sócio-culturais em relação ao Peru,
mas também para denunciar atrocidades, registrar documentalmente e para que
fosse possível entender “a qualidade histórica da literatura” (SCORZA, 1977).
Enfim, para evitar a total aculturação, transculturava-se narrativamente,
trazendo os personagens reais mais tradicionais diretamente do mundo para as
páginas da literatura e da história, sob a perspectiva do açoitado, o que seria uma
tônica em grande parte das manifestações literárias latino-americanas. Ainda em
relação à cerca, se o foco era a opressão, a injustiça e a denúncia, então podia não
ser somente um símbolo de como a literatura latino-americana opera para ilustrar
sua cultura: ia além da simples metáfora da cerca como uma gigantesca lagarta de
arame porque passava do profano para o sagrado com uma forte crítica social e
revolucionária embutida no processo. Não era o realismo mágico ou uma imagem
carnavalizada da revolução, com suas alegorias e tensões, que buscaria uma cultura
afim latino-americana. Pelo contrário: o realismo mágico era visto e assim
considerado apenas pelo não latino. Para o latino-americano, a ficção era mais um
ludismo à parte da realidade e da revolução. Scorza relatou nesta entrevista de 77
que a novela era “uma máquina de sonhar” e que a proximidade da realidade para a
descrição da realidade não poderia ser senão o grande tema da literatura latino-
americana. A antropologia social e o respeito e orgulho à cultura própria é que
permitiam que tais construções imagéticas fossem assimiladas pelo leitor, como
Arguedas o fazia através do personagem Ernesto, em Rios Profundos (1971). Os
valores tradicionais ligados à natureza, característicos de um povo, permitiam que
Scorza narrasse a história de Garabombo (personagem feito a partir do cidadão
Firmino Formosa), invisível, por exemplo, para o não cholo e o não criollo, visto
apenas para os de sua etnia ou dela descendente, o que ilustra não só como se
distanciam as ex-colônias de suas metrópoles como também servem para responder
à altura delas, dar-lhe o troco24. Nelas, cantavam abertamente o suplício e jogavam
maldições terríveis contra aqueles que os oprimiam. 24
45
Da mesma forma, criaria o personagem Agapito Robles (terceira balada), a
partir da relação de admiração e comparação a Emiliano Zapatta25. No caso de
Scorza, embora haja aqui uma diferença temporal e governamental que deve ser
levada em consideração, a imagem da cultura que saía realisticamente fantástica
aos olhos do Outro (estrangeiro) via literatura poderia ser compreendida e/ou
assimilada sem qualquer metafísica ou necessidade racional de tradução de
metáforas por aqueles a quem defendia e que, na maioria das vezes, não
precisariam lê-lo para achá-lo incrível (no sentido de “fantástico”, “mágico” ou
“maravilhoso” – se lhes fosse cabível, achariam-no talvez humorístico). É um grito de
independência social que ecoa num outro, de libertação literária da intelectualidade
europeia. Havia séculos que o ranço da colonização nos obrigava a copiar e adaptar
os estilos da moda da matriz ocidental, e finalmente o vanguardismo (nos países
latinos de língua espanhola) e o modernismo (no Brasil), possibilitaram que a cópia
fosse reciclada sem pudor, ou melhor, com a fúria cultural de cada comarca literária,
brilhante artifício de Ángel Rama para unificar o sistema literário latino americano,
considerada sua heterogeneidade. Assim, a utilização do elemento “onírico” era
fundamental para apimentar as diferenças culturais entre autor e corpo de leitores e,
além disso, podia ser considerada, da forma como colocada, um ludismo cúmplice
entre o texto e o leitor e, acima de tudo, um pré-requisito para a penetração no
universo cultural por ele representado.
2. A segunda compreensão foi a respeito dos títulos de seus capítulos. Nas
cinco novelas, baladas, ou ainda cantares, como gostava de chamá-las o autor (em
referência aos menestréis, trovadores e cantadores medievais, o que nos permitiria
observar ainda uma pitada picaresca e carnavalesca em suas narrativas) que
compõem a Guerra Silenciosa26, podemos encontrar títulos como “Onde o absorvido
Os escravos descendentes ou diretos de bantos no tempo da escravidão no Brasil faziam-no damesma forma, irônica e sarcasticamente, desferiam verdadeiros despaupérios a seus feitores quepediam-lhes para dançar e cantar em sua própria língua. Próximo a Milho Verde / MG, háremanescentes desse povo que vive em sua comunidade e seus direitos sociais e sua tradição sãorespeitados, caso raro, só possível graças a projetos sociais e ONGs que parecem ser a única forçade resistência étnica e cultural no Brasil.
25 Líder e herói da revolução mexicana de 1910.
26 A Guerra Silenciosa é composta por cinco novelas que narram a luta e as atrocidades entrehumildes campesinos peruanos contra grandes latifundiários entre 1950 e 1962 no interior do ValeCentral do Peru: Cantar 1: Bom dia para os defuntos (1970), Cantar 2: Garabombo, o invisível (1972),Cantar 3: O cavaleiro insone (1975), Cantar 4: Cantar de Agapito Robles (1977), Cantar 5: A tumbado relâmpago (1977).
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leitor conhecerá, sempre por conta da casa, o despreocupado Pis-Pis” até “Da
insurreição universal de eqüinos tramada pelo Abígeo e mais o ladrão de cavalos”.
Scorza admitiu, na entrevista, usar o formato de títulos que se expliquem por si só
como forma de homenagem aos personagens, uma vez que havia tomado parte na
batalha, e seus melhores personagens eram também seus grandes amigos. Assim,
seu compromisso com o presente era literário e político. Sua literatura atingiu os dois
papéis desejados: descreve uma realidade comprometida com a sociedade peruana
e o faz através de uma ficção engajada com a tradição cultural de um povo
minoritário, denunciadora de políticas opressivas internas e externas. Não à toa, foi
convidado por Alvarado27 a libertar o “Olhos de coruja”, ou Hector Chacón, o
Nictálope, um de seus personagens, cúmplice das batalhas políticas e sociais no
povoado de Rancas citadas em Bom dia para os Defuntos (SCORZA, 1972). Chacón
encontrava-se, à época, condenado à prisão por vinte e cinco anos em uma no meio
da floresta amazônica peruana, e Scorza achou que nunca mais o veria, pois
quando o primeiro foi encarcerado, o último ainda era fugitivo – havia sido preso
durante a ditadura do General Odría e precisou se exilar em Paris.
Supõe-se que em 1977, época da entrevista, Scorza ainda estivesse a dois
anos de publicar a última balada da Guerra Silenciosa, mas o embrião de “A Dança
Imóvel”, de 1983, já estivesse em processo de amadurecimento, já que o romance,
em um de seus níveis narrativos, relata a fuga e os percalços de um guerrilheiro,
Nicolás, da prisão do Sepa, a mesma prisão em que ele, Scorza, fora libertar seu
amigo pessoal, Hector Chacón (personagem homônimo apelidado “Olhos de Coruja”
nas novelas anteriores). Ali o autor experimentou as condições do presídio, observou
as tristes e desiguais relações entre os presos (dentre os quais encontrava-se
Hector) e os agentes penitenciários, traumatizantes quanto às que provavelmente
vivenciou no tempo da ditadura, quando foi perseguido e precisou exilar-se. A
relação de parentesco entre as formas nominais dos sintagmas Nictálope / Nicolás
não deve ser de toda descartada: ambos eram fugitivos, ambos lutavam pela
revolução peruana. A diferença era temporal: enquanto o primeiro foi realmente
confinado ao presídio do Sepa, pela luta nos vales centrais peruanos e carrega a
causa dos campesinos in loco, e também figurou como personagem na Guerra
27 Juan Francisco Velasco Alvarado, Chefe Militar do Comando das Forças Armadas do Peru,responsável pelo golpe de Estado em 1968, quando ocupou a presidência do Peru até 1975, atravésda chamada “Revolução da Força Armada”.
47
Silenciosa, o segundo parecia ser de uma outra classe de guerrilha, mais guevarista,
intelectual e urbana. A forma de unir classes em torno de uma revolução comum,
tanto a rural quanto a urbana, inaugura a abordagem de uma nova preocupação de
Scorza em ir além do que a contemporaneidade literária lhe ditava: seriam
necessárias a ampliação dos direitos do campesino28, aliada aos direitos dos jovens
dos centros urbanos, ambas simbologias da libertação do povo peruano diante da
opressão política para metaforizar não só a independência intelectual e literária
americana-latina de suas fôrmas europeias, mas ainda o compromisso com a crítica
pós-moderna.
Dado seu compromisso de narrar o presente da subversão como o seu
próprio e o de todo o povo peruano em vias de libertação mental e psicológica, além
da política, econômica, social e religiosa, não se pode deixar passarem
despercebidas as coincidências entre autor, narradores e personagens de A Dança
Imóvel, que só seria publicado anos depois, pois considerado o processo criativo do
autor, têm grande chance de terem sido também reais. A começar pelo narrador, que
é um escritor em Paris, que se confunde com a pessoa do próprio autor, em busca
da aceitação de um editor e visando à publicação de um romance sobre a fuga de
um guerrilheiro latino-americano (no caso, peruano) das terríveis e incansáveis
buscas do sádico e torturador Capitão Basurco. Modificada a história, o Peru ainda
precisa ser libertado. Infere-se que, já que repete ou transmuta uma estrutura similar
utilizada nas baladas que fecham a pentalogia da Guerra Silenciosa para designar
seus capítulos, os títulos capitulares, como “XXI Recordações que o sargento
Morales costumava misturar em sua velhice”, “XXVIII O cacique Siviro descobre que
entre seus guerreiros há um a mais” poderiam indicar que a Dança Imóvel, que
carrega em si um jogo de oposições semânticas também perceptíveis nas novelas
anteriores cujo conjunto foi publicado como “Guerra Silenciosa” ou “Guerra calada”,
também fosse parte de um conjunto de obra posterior, talvez o primeiro romance de
um conjunto próximo, o que ainda deve ser melhor estudado. O fato é que,
considerando que fosse A Dança Imóvel, de 1983 realmente um primeiro volume de
uma série futura, pela similaridade dos processos criativos scorzianos, há de se
intuir que tais personagens de seu último romance fossem também tão importantes
28 O termo análogo em português seria “camponês”. Optou-se por utilizar-se o termo original por causa do campesinato, grupos sociais dedicados às atividades agrícolas, com diversos graus de economia, comuns no interior do Peru e de grande parte dos países latino-americanos.
48
para o autor como o foram os personagens de sua pentalogia de baladas. Sendo
ainda pouco estudada, um estudo biográfico posterior auxiliaria na compreensão do
sentido da obra em muito.
Mas algo mudou Scorza, talvez seus longos anos de exílio, os lugares por
onde passou e morou, entre eles México, Brasil e França. Houve um momento alado
do mundo que o fez se deslocar diretamente do campesinato para o operariado e a
classe média. A modernidade era uma obrigação, não só uma realidade inevitável.
Os deslocamentos no tempo, a busca do ancestral mais ancestral, da memória mais
memória, do excluído mais excluído, para revitalizar o espaço sagrado da tradição
haviam sido profanados e a única opção pareceu ser apelar, filosófica e criticamente
para uma banalidade existencial e iterativa: fomos submetidos à força do capital e do
metal, ficamos órfãos de deuses, adotamos outros seres sagrados para suprir nossa
imensa carência de existir no desconhecido antes de ser no conhecido, e enquanto
ainda desenvolvíamos apavorantes Síndromes de Estocolmo29 em relação aos
raptores de nossa memória, ainda havia verdades e fábulas que figuravam
indubitavelmente mais importantes, que finalmente arrepiassem as penas do condor
e os pelos do jaguar. Não houve tempo para reflexões, a não ser dos pensadores e
intelectuais, que na maioria das ocasiões, se antecipam aos atos políticos, algumas
vezes por pura sorte: fomos lançados diretamente da modernidade ao inominável e
globalizado jogo dos poderes. Do particular mais particular, saltamos para um
universalismo que nos deixou rotos. O movimento em si, não é algo nada novo,
todas as sociedades, mais cedo ou mais tarde, se rendem a uma tecnologia mais
eficiente que a anterior; o único problema para nós, que começamos tudo de novo a
cada oscilação de cada “nova metrópole”, é a velocidade com que o fazemos.
Da máquina de escrever à impressora, as revoluções saíram do papel para as
ruas e campos e agora, no século XXI, retornaram ao papel. O reconhecimento
transformou-se em celebridade, as celebridades passaram a ser fanaticamente
cultuadas e a obra de arte teve sua alma diminuída como nunca. A literatura ficou
diluída e a política ficou confinada entre os que teorizam-na e os que vivem seus
efeitos viscerais. Alguns bons vagalumes sobrevivem, e sua arte é a devolução de
29 O transtorno mental conhecido por “Síndrome de Estocolmo” refere-se à admiração e/ou amor quepessoas que passaram por situações de grandes tensões durante um assalto, sequestro, ouopressões similares em que há privação de liberdade e violência, desenvolvem por aqueles que osorpimiram ou os fizeram sofrer. O termo é referência a um assalto ocorrido em Estocolmo, na Suécia,em 1973.
49
um passado, um troco ao mundo, com um algo mais que transcende a estética
simples da forma para alcançar uma localidade de belezas e destroços por trilhas
surpreendentes, carregam em cada fosforecência uma configuração extramundo de
compreensão do presente. Didi-Huberman (2011) nos conta que esses raros
fazedores de arte e outros tantos da América e do mundo estão cada vez mais
invisíveis. Mas a América Latina sempre foi cheia deles! Coincide o fato de serem
transculturais? Traços de transculturação podem muito bem ser indícios de
sobrevivência não só da cultura que é envolvida pela arte, mas também de seus
autores.
Como for, o comércio da arte obrigou que as indústrias investissem não só
nas mercadorias, mas também em seus autores. Do pop ao pop-star. Mascarado de
democratização do acesso às artes, diluiu seus valores sociais e culturais para caber
num best-seller, livro de bolso, ou pior ainda, versões reduzidas. Até que pararam de
escrever com foices, flautas e metralhadoras. A injustiça na América continua, tão
escancarada quanto encoberta, mas a velocidade da era moderna e a extinção dos
vagalumes podem ter qualquer relação com o fato de as revoluções políticas e
sociais estarem um tanto desaceleradas.
Na Era da Informação, era para multiplicarmos, e não para dividirmos. Nem
os copistas, tão criticados em suas peripécias, poderiam ser mais culpados pelas
suas artimanhas interesseiras ou despreocupadas do que pelos processos mais
invasivos da cultura que a nossa realidade promete hoje. Scorza diria apenas, sobre
a modernidade que nos assola, implacavelmente, na contra-mão do social, que
vamos sendo empurrados para as classes mais inferiores da sociedade, perdendo
nossa cultura porque não reagimos e os tempos das revoluções estão no fim, e
“porque tratamos de sonhar que o possível tinha sido impossível” (SCORZA, 1977).
Entrevista a Soler, em https://vimeo.com/80466863).
3. Mas Scorza mudou algo. A terceira compreensão vem da relação dos
títulos de suas obras com o que disse em sua entrevista. Depois de passar por
problemas com a multinacional Cerro Del Pasco Corporation, foi ameaçado por
utilizar os nomes reais dos funcionários e agentes da rebelião e, embora defendesse
que os problemas sociais por ela causados ao Peru fossem muito mais graves, deu
uma função jurídica à literatura. A literatura latino-americana resistiria, como “um
grande tribunal de apelação das causas perdidas de seu povo, última instância”,
50
embora ela mesma ainda não pudesse nunca penetrar a profundidade do que fosse
uma revolução popular. Para o autor, “quando a coisa se perde totalmente, não se
pode apelar [apenas] à literatura” (SCORZA, 1977. Entrevista a Sóler, em
https://vimeo.com/80466863). Sua interferência como literato obteve um impacto tão
interessante que quando o entrevistador mostra-lhe um jornal, no Periódico de Lima,
o qual noticia a manchete “Presidente el 24 / Entregará 60 mil hectares de tierras”,
(datado de 24 de junho de 1977), e observa que após grande manifestação do povo
de Rancas30, sua feição modifica-se, dada sua admiração por Símon Bolívar31 contra
as Forças que simbolizariam “o império espanhol”. Já havia dito minutos na
entrevista que antes que a Corporação havia invadido muito mais hectares, mas
reconhece a vitória, não pelos números, mas porque, conforme conta, se a pior
tortura era amarrar um vivo a um morto e obrigá-los a caminhar juntos por um
povoado de “cincuenta casas”, pior seria se fossem dizimados.
Além de deixar claro, em 1977, que o maior sonho hispano-americano seria a
liberdade (especificamente a liberdade literária), considera que a literatura, e aí, sim,
refere-se à latino-americana, já teria uma “una voz propia”, ao deduzir que não
haveria “equivalente político em Cién años de Soledad, Paradiso, Pedro Páramo”32 e
que a comunidade linguística seria a “primera cosa contra el imperialismo, que
también ya fue inglés”. Defendia esperançosamente uma “união literária”,
considerado o alto número de seus falantes da língua espanhola. Nota-se aqui uma
preocupação de unidade para fortalecimento de um bloco continental, se não
cultural, ao menos literário, e Rama concordaria.
As condições de causa e efeito do passado para o presente não podem ser
associadas entre a literatura e história sem se contradizer no pensamento de
Scorza: na literatura da viagem de sua própria vida, disposto a morrer pela causa
peruana, mas antes disso, ver a libertação de uma comunidade injustiçada,
denunciou a eterna peleja dos países latino-americanos e não mediu palavras nem
30 Comunidade dos Vales Centrais, que vive a mais de 4500m de altitude e que nos anos 59 e 60passou por uma rebelião contra as ditaduras oligárquicas dos latifundiários poderosos no Peru.Scorza diria na entrevista, relacionada ao ciclo de baladas, sobre o “planeta índio”, algo tão distanteque a história oficial não relatava, e os índios também não falavam a respeito.
31 Líder político venezuelano, militar atuante nas guerras de independência da América Espanhola, entre os séculos XVIII e XIX.32 Obras de Gabriel García Márquez (1967), José Lezama Lima (1966) e Juan Rulfo (1955),respectivamente.
51
evitou os radicalismos literários, embora sua “festa sangrenta”33 estivesse apenas
começando. Sua literatura contribuiu, ou antes, inibiu as forças dominantes da época
e obrigou as autoridades peruanas, já que expostas, a uma revisão política e penal
dos acontecimentos em Rancas. Não apenas explicitou ao leitor uma visão circular e
histórica dos atropelos a que os cholos e criollos foram submetidos como
desmantelou um cartel (até então intocável) composto por um sistema de dominação
cultural latifundiário e oligárquico, tão comumente aplicado à maioria, senão a todos,
os países da América Latina. Scorza diz ainda nesta mesma entrevista de 77 que
“para o lado de fora”, a extinção do povo de Rancas parecia ser absolutamente
normal, mas que “para o lado de dentro”, nunca haviam de extingui-los, pois “há
riquezas porque souberam preservar os costumes e as tradições comuneras,
expulsas da história”.
O que precisa ser apreendido, portanto, para o caso de Manuel, é o papel do
fazedor de arte literária, seu compromisso com a causa social peruana entre 1959 e
1960. Sempre auto-explicativo, justifica sua forma de expressão entre dois eixos
narrativos: a história política que atravessa, transversalmente, a função religiosa e
função onírica, e a relação entre elas a partir do “compromisso com a informação
dos fatos que relata”. Não era nenhum estereótipo de guerreiro ou mártir, mas a
partir de seus textos, também jornalísticos em alguns momentos de sua vida,
sempre denunciantes de uma desigualdade social, produziram um supra-efeito
sobre aqueles que o liam de longe. Os personagens de suas narrativas, tão reais
quanto a validade de um ser humano comum lutando contra as injustiças de um
imperialismo cujos limites invisibilizavam outro ser humano comum, pareciam
necessitar de certo direcionamento para a luta. Como um tradutor de ideologias,
Scorza aproveitou-se de sua facilidade de comunicação através da escrita para
despertar no povoado de Rancas a necessidade de movimento: a estaticidade ou
inércia certamente os levaria, além do iminente genocídio, a uma injusta extinção
cultural. Compreendia que a intelectualidade era apenas uma situação dialógica dos
seres, e não a ignorância recíproca daqueles que desejavam a exterminação de
uma cultura em detrimento de outra, de álibis inaceitáveis. Não se pode dizer que
por Scorza, muitos acres de terra foram devolvidos aos índios, mas também não se
pode dizer que, se sua literatura não houvesse alcançado tamanha repercussão pela
33 Referência a Yawar Fiesta, obra de Arguedas. Yawar: sangue (quíchua).
52
sua Guerra Silenciosa, o mesmo não ocorreria. Sua caneta tinha poderio de projétil,
saída de um passado antigo rumo a um futuro insaciável.
4. Uma outra compreensão reflui da entrevista quando relata que “no se
puede hablar de una sola literatura”, “somos muchas literaturas”, e vai de encontro
ao que estabelece Rama em suas comarcas literárias (de mesma cultura, etnia e/ou
expressividade), em toda a pluralidade cultural que, lançado o desafio, tenta abarcá-
las dentro das regiões, em um conjunto ímpar.
Assim, Scorza, que observou até então na entrevista, dois eixos básicos na
literatura latino-americana, inclui agora três níveis básicos para sua produção
novelística pessoal: os níveis político, religioso e o linguístico. A partir deles, seria
possível buscar um deslocamento temporal para a (re)construção do sujeito. O
linguístico seria o presente através do passado; o político seria o presente em busca
de futuro; o religioso seria o passado eterno, sincretizado para resistência, suporte
para manutenção da tradição. Em todos eles, há tensões que a literatura latino-
americana utiliza, não exatamente por escolha, mas por devir de sua expressão
contemporânea. Para tanto, Scorza ilustra que, diante desses três níveis, não haveria,
na política, obras tão icônicas quanto Cem Anos de Solidão, de Márquez, Paradiso, de
Lezama Lima ou de Pedro Páramo, de Juan Rulfo e esse seu discurso está em total
consonância com as obras elencadas por Ángel Rama para ilustrar a transculturação
narrativa na literatura latino-americana contemporânea, que considera as dimensões
linguística, compositiva literária e no nível do significado. Scorza estaria considerando
a composição literária como parte da dimensão linguística e incluindo na dimensão
dos níveis do significado os planos político e religioso. Embora aparente uma
classificação diferente, todas as dimensões estariam contempladas em processos
transculturativos tanto por um quanto por outro pensador, já que a preocupação
sociológica e antropológica de ambos é visível.
5. Uma última compreensão ressurge dessas águas scorzianas. Sobre si
próprio, fonte melhor do que as diversas informações encontradas na internet
repletas de desencontros e equívocos, indagado sobre as suas peripécias humanas,
o autor revela que nasceu em Lima, em 09 de setembro de 1928, filho de pais
serranos, criado por povos indígenas. Segundo ele, o pai e o avô (pai do pai) haviam
passado por massacres terríveis, fuzilamentos e atrocidades e sua mãe, proveniente
dos Andes Centrais, também experimentaria a injustiça e a desigualdade sociais. À
53
época da entrevista, Scorza admitiu ter casado e descasado duas vezes, com três
filhos e uma “maravillosa niña de cuatro años”. Observou, com simplicidade, os
temas que perpassam sua obra poética, dividindo-as entre livros de protesto e livros
de amor e salientou que sua obra mais artística literariamente estava nas novelas
prosaicas e não em suas poesias. A discrição da qual se utilizou em torno de sua
pessoa na entrevista pode explicar, talvez, a manifestação da vontade da não
exposição de sua pessoa, além de proteção àqueles a quem ama em relação a
antigos ranços e perseguições políticas, fato que dificulta a busca de outros dados
em relação à sua biografia. Não citou nomes, nem entrou em detalhes sobre as
questões pessoais e não deixou dúvidas, na entrevista, de que ali estava para falar
exclusivamente sobre seu trabalho literário e/ou político, não sobre o homem Manuel
Scorza. Protegendo-se a si mesmo e aos seus, podem muitos de seus personagens
estar andando pelas ruas das cidades latino-americanas, o mesmo valendo para
aqueles em que se baseou para criá-los ou recriá-los.
Em síntese, como a entrevista versa sobre suas obras anteriores publicadas
entre 1970 e 1979 e não exatamente sobre seu último romance (talvez primeiro de
uma nova coleção), todas as relações e conclusões aqui percebidas são inferências
possíveis, mas não fechadas em si mesmas. Sobre a qualidade de sua última obra
de arte, em seu processo transculturativo advindo do choque entre culturas, da
superfície para a profundeza, vemos em Scorza a necessidade sóbria de delegar à
literatura latino-americana uma função crítica e sociopolítica que o legitima como
autor de uma literatura genuinamente latino-americana, em sua comarca andina.
Para o caso de A Dança Imóvel, em comparação com as ficções prosaicas
passadas, do êxodo rural para o urbano, na trama quanto no psicologismo de seus
personagens, tais adequações só vêm ratificar o “progresso”, eterno fetiche humano,
para diferenciar-se de vez dos outros animais, e o medo que dele brota. Quando
sugere que o tempo é imóvel, mas que as escolhas sociais são móveis, percebe-se
também uma outra metáfora que se desprende do título. Assim como a narrativa se
dá em níveis diferentes, a “dança imóvel” também pode ser lida como a dificuldade
(imobilidade) de se manter a cultura peruana (dança) diante da ávida modernidade,
ou ainda a dicotomia entre as revoluções do pensamento (nos planos políticos e nas
relações amorosas) que não dão frutos concretos no seio da sociedade, que
54
caminha para uma nova subalternidade, pois que não passam do plano teórico para
o prático.
Em auxílio à montagem do pensamento do homem Manuel Scorza diante de
suas convicções políticas, que perpassarão suas obras romanescas, podemos
perceber que em sua carta de renúncia do partido aprista34, de 1954, publicada em
Lima, Peru, em 1954, Scorza posiciona-se firmemente contra um regime de base
marxista que se vendia ao imperialismo norte-americano ao utilizar a força do
Estado contra o próprio povo peruano, em revolta contra seu fundador:
O que o aprismo pôde demonstrar está melhor descrito nestas palavras deseu fundador: "Nossa experiência histórica da América Latina, eespecialmente a do México, muito importante e contemporânea, mostramque o imenso poder do imperialismo dos ianques não pode ser afrontadosem a unidade da povos latino-americanos. Mas conspiram contra essaunidade, ajudando-se mutuamente, nossas classes governantes e oimperialismo, e como ele ajuda aquelas e lhes garante a continuação dopoder político, o Estado, instrumento de opressão de uma classe sobreoutra, transforma em armas nossas classes dominantes nacionais e oimperialismo para explorar as nossas classes produtoras, e nosso povocontinua dividido. Consequentemente, a luta contra as nossas classesdirigentes é indispensável, o poder político deve ser tomado pelosprodutores e a produção deve ser socializada. "(Artigo O que é o APRA?,publicado pela Labour Monthly35). Esta doutrina, ideologia inicial da APRA,foi completamente distorcida por Haya de la Torre; e não como elepretendia, no sentido dialético hegeliano, mas vergonhosamente traída.36
É interessante perceber que Scorza não simplesmente escreve uma carta de
renúncia. Engajado politicamente por fortes tendências marxistas socializantes, o
peruano vai dialogando com o que foi dito e publicado (portanto, em sentido
34 APRA: Alianza Popular Revolucionaria Americana. Partido de Centro-Esquerda, fundado por Victor Raúl Haya de la Torre, que contribuiu para a formação dos partidos políticos populares no Peru, com vistas de expansão para a América Latina.
35 Revista associada ao Partido Comunista da Grã-Bretanha, com artigos de esquerda publicados de 1921 a 1981.
36 Tradução minha. Texto original: “Lo que el aprismo fue demuéstrarlo mejor que nada estas palabrasde su fundador: “Nuestra experiencia histórica en América Latina, y especialmente la muy importantey contemporánea de México, demuestran que el inmenso poder del imperialismo yanqui no puede serafrontado sin la unidad de los pueblos latino-americanos. Pero como contra esa unidad conspiran,ayudándose mutuamente, nuestras clases gobernantes y el imperialismo, y como éste ayuda aaquéllas y les garantiza el mantenimiento del poder político, el Estado, instrumento de opresión deuna clase sobre otra, deviene arma de nuestras clases gobernantes nacionales y arma delimperialismo para explotar a nuestras clases productoras y mantiene dividido a nuestro pueblo.Consecuentemente, la lucha contra nuestras clases gobernantes es indispensable, el poder políticodebe ser capturado por los productores y la producción debe socializarse.” (En el artículo ¿Qué es elAPRA?, publicado por Labour Monthly). Esta doctrina, razón de ser histórica del APRA, ha sidototalmente negada por Haya de la Torre; y no como él pretende, en dialéctico sentido hegeliano, sinovergonzosamente traicionada”.
55
comprobatório) por Victor Raúl Haya de La Torre ao longo dos anos, citando livros,
artigos de revistas (LIFE), dados da Secretaria do Comércio dos EUA e até mesmo
num discurso em um teatro em Bogotá, usando tal estratégia dialógica tanto para
atacá-lo quanto para defender-se, Scorza acusa-o incisivamente de corrupção (no
sentido de corromper-se) e flertar com o imperialismo estadunidense, sob o subtítulo
“Treinta Años Después”, já que o partido havia sido fundado em 1924:
O que aconteceu entre 1924 e 1954? O que aconteceu que justifiquetamanha negação? Desapareceu o perigo que nos espreitava em 1924?Claro que não. De acordo com os dados incontestáveis do Ministério doComércio dos Estados Unidos, os investimentos (gastos) de capitais dosEUA na América Latina chegavam, em 1897, a 300 milhões de dólares; em1919, eles subiram para 2.000 milhões; em 1942, eles alcançaram 2.800milhões; em 1947, remontavam a 4.700 milhões; e em 1952, a soma foi de5.700 milhões. Uma criança perceberia esse esmagador avançoimperialista: em 22 anos (1897-1919) os gastos aumentaram em 1.700milhões de dólares; em seguida, em 7 anos (1943-1950) excederam essevalor em 1.900 milhões; e, em seguida, em apenas dois anos (1950-1952)aumentaram em 1.000 milhões de dólares. 37
De crítica ácida, dá adeus a seu fundador, acusando-o de permitir que os
preceitos e valores iniciais do partido fossem vilipendiados e distorcidos, após
comprovar a incoerência do líder máximo da APRA, entre demagogias e
antagonismos ideológicos. Termina a carta com um sarcástico “Goodbye, Mr. Haya”
para aproximá-los dos ideais imperialistas norte-americanos, em oposição aos ideais
marxistas em que se baseou a ideologia partidária em sua fundação:
Se Haya de la Torre não mais acredita [nos valores do partido], já nãofalamos a mesma língua. Isso é tudo. Não há razão, tampouco, para odesespero. O fracasso de Haya de la Torre é o fracasso de um homem, nãode um povo.
Aqui os caminhos se separam. É chegado, portanto, o momento dadespedida: Goodbye, Mr. Haya!
37 Tradução minha. Texto original: “¿Qué ha sucedido entre 1924 y 1954? ¿Qué ha sucedido quejustifique tan rotunda negación? ¿Desapareció el peligro que nos acechaba en 1924? Por supuestoque no. Según los inobjetables datos de la Secretaría de Comercio de los Estados Unidos, lasinversiones de capital norteamericano en América Latina llegaban, en 1897, a 300 millones dedólares; en 1919 ascendían a 2,000 millones; en 1942 alcanzaban 2,800 millones; en 1947remontaban 4,700 millones; y en 1952 la suma era de 5,700 millones. El criterio de un niño deescuela bastaría para percibir el arrollador avance imperialista: en 22 años (1897-1919) lasinversiones aumentaron en 1,700 millones de dólares; luego, en 7 años (1943-1950) superaron esacifra: 1,900 millones de dólares; y después, en sólo 2 años (1950-1952) aumentaron 1,000 millonesde dólares”.
56
Manuel Scorza38
Ao final da entrevista, com o objetivo de esclarecer melhor de onde são
provenientes suas fontes, consta:
"Esta carta de renúncia do conhecido poeta Scorza ao Partido Aprista foipublicada no jornal mexicano El Popular, e aqui a transcrevemos, levando-se em conta a importância da decisão tomada pelo seu autor."
Os subtítulos, em maiúsculas, são originais ou pertencem à edição do ElPopular.
Créditos aos esforços generosos do companheiro e irmão socialista-scorziano Guillermo Yucra Moreno.
Jaime Guadalupe Bobadilla
Lima, 22 de dezembro de 2009 "39
Um sarcasmo semelhante ao empregado em direção ao fundador da APRA
seria marca registrada de seus personagens frente a seus dominadores nas novelas
e romances referente às passagens políticas. Em A Tumba do Relâmpago, última
novela do ciclo de baladas iniciadas em 1970, por exemplo, ilustra o mesmo
pensamento de quando se desfiliou do partido aprista, já justifica sua posição
marxista a partir do título do capítulo 48, intitulado “Por que os prefeitos, mesmo
sendo provisórios, devem hospedar-se no Peru e não nos Estados Unidos?”. Ou
ainda quando, na mesma obra, à maneira de artigo jornalístico, inicia um capítulo
com a seguinte manchete: “O MOVIMENTO COMUNAL DO PERU denuncia a prisão
de seus dirigentes em Cerro Del Pasco e a preparação do massacre das
comunidades de Yanahuanca e Yaruscarán” e finaliza-o como autor do artigo,
inserindo-se no processo social revolucionário das comunidades campesinas diante
das multinacionais imperialistas que assolaram o Peru entre 1959 e 1961:
38 Tradução minha. Texto original: “Si Haya de la Torre no lo cree, ya no hablamos el mismo lenguaje.Eso es todo. No hay razón tampoco para desesperarse. El fracaso de Haya de la Torre es el fracasode un hombre, no de un pueblo. / Aquí se separan los caminos. Ha llegado, pues, el momento dedespedirse: ¡Good bye, mister Haya! / Manuel Scorza”
39 Tradução minha. Texto original: “Esta carta de renuncia del conocido poeta Scorza al PartidoAprista, apareció en el diario mexicano El Popular, y de él la transcribimos teniendo en cuenta laimportancia de la decisión tomada por su autor. / Los subtítulos, en altas, son originales o pertenecena la edición de El Popular. / Entrega debida al generoso esfuerzo del compañero y hermanosocialista-scorziano Guillermo Yucra Moreno. / Jaime Guadalupe Bobadilla / Lima, diciembre 22 de2009”.
57
UMA PERGUNTA AO PAÍSNesta hora crucial de sua história, chegou para o país o momento deperguntar se os comuneiros no Peru são ou não são peruanos.Chegou o momento de perguntar se os milhões de indígenas que formamnossas comunidades têm algum direito ou se, para eles, existem apenas afome, a miséria e a violência. Quando começaram a conquistar o Peru os espanhóis discutiam se osíndios pertenciam ou não ao gênero humano.Perante a Justiça e a História afirmamos que a resposta a esta perguntaainda continua negativa no Peru.
MANUEL SCORZASecretário Político doMOVIMENTO COMUNAL DO PERU
[Expreso, Lima, 12 de dezembro de 1961]
(SCORZA, 2011, p.254-255)
A fim de introduzir-se de vez na história que não se conta, entre a literatura e
a política, ainda em A Tumba do Relâmpago, no capítulo 44, “Um tal de Scorza
começa a meter-se em camisa de onze varas”, um diálogo entre os personagens é
esclarecedor na questão do sarcasmo scorziano, que não poupa ninguém e nomeia
todos os bois do imenso rebanho político peruano:
- Cada matéria paga custa vinte mil soles. Fazendo um esforço, eu poderiacontinuar levantando esse dinheiro. Mas há outro problema: o diretor dojornal, José Antônio Encinas, me disse há alguns dias que a Cerro de PascoCorporation ameaçou cortar-lhe a publicidade.
Ledesma ouvia Manuel Scorza com ar de preocupado.
- A denúncia é importantíssima. Os jornais fazem um silêncio sistemáticosobre os problemas dos camponeses. Não há ano em que deixe deacontecer algum massacre. E o que os jornais informam sobre isso? Aquimesmo, em Cerro de Pasco, pensa você que La Antorcha informa algumacoisa? Mas, agora, graças às denúncias do Movimento Comunal,começaram a chegar de Lima alguns correspondentes especiais.
(SCORZA, 2011, p. 276)
Em A Dança Imóvel, também vemos a proximidade entre a vida e a obra do
autor. Já que adentra suas próprias ficções como personagem, as pistas que
podemos reunir em sua narrativa caracterizam, ainda que de maneira parcial e bem-
humorada, o próprio Scorza. Para incluir os latino-americanos no conjunto dos
pensadores e artistas importantes, inventa uma situação em que o escritor-
58
personagem, sentado junto a seu editor, disposto a convencê-lo de publicar seu
romance, vê o escritor Manuel Scorza passar diante de seus olhos:
Três prêmios Nobel, dois de Medicina, um de Física, acabavam de almoçar,despercebidos, e ninguém também reconheceu Jacques Monod. Entraramcasais provincianos. Entraram escandinavos nostálgicos de hareng baltiquecom creme. Do bar saíram Isaura Verón, Salomón Resnik, Ana Taquini eManuel Scorza. O Vaca Sagrada viu-os e, com sua equivocada crença deque aproximar-se dos inteligentes o torna um deles, cumprimentou-oscerimoniosamente e tratou de se demorar.
(A Dança Imóvel, p.16-17)
Em entrevista a José Julio Perlado, professor titular do Departamento de
Periodismo I da Universidade Complutense de Madrid, em 1979, pinçam-se outros
excertos que ajudam a compor o humor e o pensamento de Scorza, no que diz
respeito à literatura e à política latino-americanas. Nessa entrevista, em que Scorza
esclarece que não deve ser considerado um poeta social pelos livros de poesia que
escreveu tomado de raiva pelos anos de ditadura do general Odría (1948-1956), ou
de outros cujo tema é o amor. A sociedade seria tema abordado em suas novelas.
Questionado sobre a novela indigenista, afirma que há de se desfazer alguns mal-
entendidos sobre o termo: “é como se eu dissesse ‘novela espanholista’, coisa que
seria absurda, ou ‘novela toureirista’. Esta é uma redução depreciativa. Há racismo
na literatura”.40 Além disso, muitos não-indios escreveram sobre os índios sem
conhecê-los de verdade e que muitas crônicas e registros documentais permanecem
ainda pouco conhecidos. Propõe que o termo “indigenista” fosse banido da literatura
ao observar que Arguedas, em Os Rios Profundos, narra a história de um menino
em busca de seu pai, em tom existencialista e profundo do ser humano em geral, em
nível dostoievskiano e não apenas a condição indígena. Scorza considera que o
autor que melhor se encaixaria no “Planeta Índio”, por descrevê-lo pelo lado interior
de sua cultura, seria Arguedas e, em seguida, ele próprio. Ángel Rama (1974), ao
desenvolver um balanço histórico literário e expor sua teoria de transculturação
narrativa, declara que
40 Texto original: “es como si yo dijera novela españíolista, cosa que sería absurda, o novela torerista. Es una cosa un poco despectiva para reducir. Hay racismo en literatura”.
59
Em relação às tendências regionalistas anteriores, os transculturadoresregistram igualmente a perda do uso das linguagens dialetais, rurais ouurbanas, e, claro, das línguas indígenas, e mesmo no campo lexicográficoabandonam muitos termos com os quais os “crioulistas” salpicavam seusescritos, limitando-se às palavras de uso corrente que designam objetosconcretos ou aos neologismos amplamente aceitos. Compensam isso comuma ampliação significativa do campo semântico regional e da ordemsintática, a ponto de inventar, na região andina, equivalências lingüísticasespanholas para o quíchua que, provavelmente iniciadas por Arguedas,acabaram consolidando uma língua artificial e literária, cujas últimasmanifestações estão nos romances de Manuel Scorza.
(RAMA, 2001, p.219)41
Em determinada parte desta última entrevista estudada, Scorza elucida uma
questão importante sobre a criação de seus personagens em relação com o tempo
do acaso do fim, ou ainda, da fatalidade. Num dado momento de A tumba do
relâmpago, os personagens do livro percebem que foram fabricados ou tecidos não
pela realidade, mas pelas mãos de uma cega, que permite uma consciência
experimental contextualizante de um espaço-tempo. Ao ler o último romance do ciclo
de baladas, o leitor percebe que os outros quatro anteriores são
como espelhos vistos por outro espelho; porque a [personagem] cega[representa] a fatalidade, a mão que vem conduzindo os homens através detodas as histórias. Com quem fala um ser humano?, Um homem, com quemfala? Não fala com o homem que está diante de si, fala com outro homem,com o fantasma de seu pai, com o fantasma de sua mãe; fala com seusantepassados [familiares] que estão influenciando sua mente, em seusonho.42
(SCORZA, 1979, entrevista a José Julio Pelardo).Ao mesmo tempo em que tudo é ou parece ser (auto)biográfico, o autor
reconhece a atemporalidade dos cinco romances componentes do ciclo de baladas,
e que o plano do inconsciente (onírico) sustenta-se sobre uma realidade conhecida
no presente pelos habitantes de Rancas, mesmo que às vezes retroceda ao ano de
1702, outras vezes a 1520, ou avançando no futuro a 2030 ou 2040, motivo pelo
qual em O cavaleiro insone os calendários ficam enlouquecidos.
41 Publicado originalmente na Revista de Literatura Iberoamericana, n5, abril de 1974, Maracaibo,Venezuela, Universidade de Zulia, Escola de Letras e reunido entre outros textos de Rama por FlávioAguiar e Sandra Guardini T. Vasconcelos (orgs.) sob o título “Ángel Rama: literatura e cultura naAmérica Latina”, pela Edusp, 2001).42 Tradução. Texto original: “como espejos mirados por otro espejo; porque la ciega es la fatalidad, lamano que ha ido conduciendo a los hombres a través de todas las historias. ¿Con quién habla un serhumano?, un hombre ¿con quién habla? No habla con el hombre que está enfrente de él, habla conotro hombre; habla con el fantasma de su padre, habla con el fantasma de su madre; habla con losantecesores que están a través de él, influyendo en su mente, en su sueño”. Presente na entrevista aJosé Julio Pelardo, em 1979, disponível em http://www.ucm.es/OTROS/especulo/numero7/scorza.htm
60
Dessa forma, as entrevistas e a carta de renúncia ao partido aprista
configuram um importante corpus para a compreensão de quem foi Scorza e seu
processo criativo como escritor, sua posição política e sua peruanidade, de modo
que, ligadas a seus romances anteriores, possam desvendar melhor a leitura de A
Dança Imóvel.
2.2. Breves considerações sobre a novela de Scorza
Todo o mar, todos os mares, todos ossegredos dos mares revelados em uma únicaequação! E suspeitei que o homem era umametáfora temporariamente vestida de carne. Ohomem é carne que cobre uma metáfora ouuma metáfora que reveste a carne?
(SCORZA, 1983, p. 30.)
A narrativa de A Dança Imóvel se passa em Paris, capital da modernidade e
terra dos exilados latino-americanos. Num restaurante francês, o La Coupole,
enquanto almoçam, um escritor conversa com seu editor na tentativa de persuadi-lo
a publicar seu romance. Nesse romance a ser publicado, um guerrilheiro peruano
guevarista, Nicolás Centenario, Comandante do Exército Revolucionário do Peru
(ERP), preso na colônia penal do Sepa, local na Floresta Amazônica que nem
precisa de muros, já que é rodeada de selvas, rios imensos, pântanos e uma
infinidade de animais selvagens e para onde são enviados dirigentes sindicais e
políticos de oposição, prestes a serem amarrados a uma árvore, à qual basta dar-lhe
uma pancada para que dela saiam as furiosas e carnívoras formigas tangaranas,
que matam devagar de febre quem por elas for ofendido, levando parte por parte de
seu corpo ao formigueiro até que só lhe reste o esqueleto. Mas Nicolás consegue
fugir para matar um delator, apesar do latente sadismo do Capitão Basurco que o
caça impiedosamente e sem tréguas; e sua fuga pelos rios e pela selva amazônica,
todas as suas aventuras e desventuras nesse percalço, sua memória, seu amor por
61
Francesca e sua inabalável verve política de guerrilheiro e militante compõem um
dos níveis narrativos do romance. Sua história é narrada em terceira pessoa.
Num outro nível narrativo, está Santiago, ex-guerrilheiro, cúmplice ideológico
de Nicolás, escondido em Paris, à espera de instruções do comando geral peruano,
possível alter-ego de Scorza, que também se exilou em Paris, vive um dilema entre
o amor por Marie Claire e a revolução, na civilização europeia que se desdobra na
barbárie peruana, entre a boemia e o medo.
Os capítulos do livro são intercalados entre as narrativas dos dois
guerrilheiros, recheadas de diálogos filosóficos, críticas literárias, remissões e
referências a um passado cultural à beira da modernidade avassaladora, e essa
tensão entre o mundo natural e o urbano é tema transversal na vida dos dois
protagonistas.
Sobre o personagem Nicolás, há de se dizer que o destemido idealista, ainda
imaturo sobre as questões mais humanas, já que dedicou toda sua vida à causa
libertária do Peru e considerava o pensamento marxista uma bíblia incontestável,
chegou a fazer greve de fome e treinamento em Cuba, desconhece um mundo que
não fosse aquele. Em determinado ponto da narrativa, conhece Francesca, jovem
por quem se apaixona e com quem engata um relacionamento quando também se
encontrava em Paris, mas entre o amor e a revolução, opta pela segunda. Seu amor
por Francesca só vive nos momentos de desespero quando a memória o assalta e
conta ao leitor o passado do personagem. Sua fuga começa na colônia penal do
Sepa, em uma espécie de balsa pequena ou jangada improvisada, pelo rio
Urubamba, que nasce nos Andes e percorre 720 quilômetros até encontrar o
Apurímac, o Tambo, que forma o Ucayali, que formará o Amazonas, e a descida
infernal pelos diversos cursos de água em meio à fome, às possíveis doenças, à
exaustão e ao medo de ser recapturado. Passa por uma tribo de índios campa,
chefiados por um gringo louro, alto e corpulento, casado com várias índias que
orgulham-se de sê-lo, traficante de armas e também contrário ao sistema
imperialista norte-americano. Sobrevive dias e dias o quanto pode, comendo o que
lhe era possível e descendo os rios, margeando, passando por tribos, até que
quando está prestes a conquistar sua liberdade, uma grande quantidade de
vagalumes pousam em seu corpo denunciando sua posição.
62
Sobre o personagem Santiago, entre os bares, praças e restaurantes
parisienses, escondido de suas intenções e de seu passado, visivelmente
deslumbrado pela modernidade e civilização, em busca de liberdade e dado a um
relacionamento idealizado como isento de contaminações do passado tanto dele
quanto do de Marie Claire, a quem ama livremente com a intensidade de uma vida,
sofre de amor quando percebe que precisa se confessar com ela sobre quem é e o
motivo de ali estar. Quando opta por desertar da revolução para viver plenamente o
amor, perde as duas forças motrizes que verdadeiramente importavam. De caráter
marcadamente metalinguístico, uma passagem narrativa ilustra a questão:
Não exatamente – defendi-me. Em meu livro, há personagens que narram ahistória desde Paris. O romance é um contraponto entre um guerrilheiro eum ex-guerrilheiro. De outro ponto de vista, um conflito entre dois homensque devem optar entre o Amor e a Revolução. Um escolhe a Revolução. Ooutro, o Amor. No fim de suas vidas, ambos acreditam que o outro escolheumelhor. Através de um jogo de espelhos, invejam suas vidas.
(SCORZA, 1983, p. 20).
A linguagem utilizada por Scorza em A Dança Imóvel abarca uma infinidade
de empréstimos linguísticos franceses (por toda a obra), brasileiros, incas, ingleses,
indígenas regionais, pensamentos políticos sobre os movimentos revolucionários na
América comunista, além do diálogo com várias obras latino-americanas, passando
por Borges, Arguedas, Arlt, mas também Balzac, Cervantes, Sófocles, Maiakóvsky
ou Kafka, com fortes referências a Cuba, marxismo, leninismo, filosofia, música,
futebol, crítica literária, artes plásticas, conhecimentos geográficos, biológicos (flora
e fauna) e culturais indígenas, termos específicos de culturas ancestrais,
contrapondo a civilização (utopia) e a barbárie (natureza da selva e espaço
mitológico), sob forte existencialismo e ideologia política, funcionando ainda como
um especular estudo sociocultural. Mescla com riqueza uma linguagem comum com
algumas incidências chulas nas falas trocadas entre os personagens ou mesmo em
seus pensamentos, algumas vezes com bem arquitetadas ironias e bom humor e,
além disso, os sonhos dos protagonistas (a que ele atribuiria a qualidade onírica da
literatura latino-americana) ganham dimensões imagéticas que beiram a poesia.
Há momentos, por exemplo, em que o humor scorziano se traduz em uma
notícia no jornal sobre o casamento do Papa, outras vezes com um homem que para
63
conquistar o amor de uma mulher acredita que deve lhe comprar ursos de pelúcia
cada vez maiores. Já a tragicidade é mais perceptível tanto no mundo natural, por
Nicolás, em sua fuga para a liberdade, quanto na urbanidade parisiense, por
Santiago, em seu dilema que o leva a uma triste prisão de si mesmo. Para concluir,
Scorza propõe uma revisão e uma reflexão tanto sobre o papel da literatura quanto
do intelectual que a escreve, pois que ideologia e arte parecem ser, para ele, tão
indissociáveis quanto o são o Amor e a Revolução.
Para melhor ilustrar esses momentos de A Dança Imóvel, recorrer-se-á, neste
estudo, aos conceitos de transculturação narrativa, de Ángel Rama, e
heterogeneidade, de Antonio Cornejo Polar.
2.3. Transculturações narrativas em A Dança Imóvel
Os incas conservaram sua história por tradição oral. Durante oimpério incaico, existiam uns personagens chamadosquipucamayos, talvez funcionários, talvez aedos, talvezhistoriadores, a quem os imperadores incas delegavam o temívelprivilégio de conservar a memória de seu império.
A Dança imóvel (p. 199).
No plano linguístico, Scorza mostra, em A Dança Imóvel, uma vasta gama de
exemplos de transculturações narrativas. Para compensar a perda dos dialetos
regionais, ou formas advindas da oralidade que não tiveram traduções ou similares
próximos na escrita, ocasionada pelos choques entre culturas, o autor utiliza, na
linguagem de seus personagens, termos culturais próprios às tribos sociais que
narra e/ou descreve. Essa sobrevivência e resistência culturais podem ser
observadas na narrativa em diversos momentos. Por exemplo, como a vida de cada
personagem narrador simboliza uma relação de dominação diferente, apesar das
vidas coincidentes (Nicolás, o que se desurbaniza para sobreviver; Santiago, o que
civiliza-se para resistir), também veremos na linguagem dos personagens termos
linguísticos coerentes com traços de civilização (urbanismos e universalismos) e
barbárie (selva, natureza, classe social excluída), estes últimos próprios ao regional
e ao local.
64
Para o universo de Nicolás, Scorza usava de uma necessidade quase
obsessiva de trazer à luz do texto elementos próprios da cultura dos índios campa
residentes na floresta amazônica peruana. Poderíamos montar um mini-glossário:
lupunas brancas (árvore mais alta da selva); huacapúes (árvore de troncos
cinzentos); tangarana (árvore média de até dez metros, de interior esponjoso em
cujos alvéolos trafegam as tangaranas); tangaranas (formigas carnívoras e de toxina
febrífuga); páucar (pássaro que come banana, semelhante a uma arara ou
papagaio), orotongos (grandes tigres negros) [p.23 a 24], caimitos (abiu grande ou
abieiro) [p.35]. No caso, o sentido da mensagem é dado porque o narrador explica o
que aquela palavra por sua parte cultural significa.
(...) o capitão Basurco diz palavrões ao meio-dia, o comandante Centenariolevanta os olhos, não quer ver as árvores, prefere o rosto dos soldados queo flanqueiam ao longo do caminho enfileirado pelos troncos cinzentos doshuacapúes (p.23).43
E o sentido vai se completando à medida que vai-se adentrando aquele
universo cultural, como uma linguagem que se aprende:
Uma gigantesca ramada de huacapú, árvore maldita, pesa como aço e porisso navega sob a água; invisível, o huacapú vira embarcações grandes,lanchas de coronéis, por que não viraria a balsinha de um palhaço, riudesolado (p.34).
A integração do signo cultural dado tanto pela sonoridade do termo, quanto
pela imagem que vai sendo desenhada até seu significado, através da narrativa, é
um interessante didatismo cultural de Scorza. Será através da madeira do huacapú
que Nicolás percorrerá sua fuga em toda sua jornada. A imagem gruda-se na
palavra, quando ao decorrer da narrativa, huacapú já tem seu sentido é aumentado,
já é barco, resistência, instrumento de fuga.
Um outro exemplo é o da associação comparativa visual que se estabelece
entre um detento da prisão do Sepa, Isidro Páucar, e páucar, o pássaro. É
43 Como nesta seção, todas as citações diretas referem-se ao romance “A Dança Imóvel”, de ManuelScorza, de 1983, com exceção de uma citação do uruguaio Angel Rama, optou-se aqui por citarapenas os números das páginas em que ocorrem na obra.
65
imaginável a figura e um vislumbre socializado da lógica cultural do texto. A tortura
militar a Isidro será o exemplo para os demais presos da colônia penal, a visão sob
as tangaranas, por ter tentado fugir de seus raptores:
(...) o Comandante Centenario recorda sua primeira prisão, hoje a entendebem, assistiu ao castigo de Isidro Páucar, chamado carinhosamente dePaucarzinho, O páucar é um pássaro que come banana, então seuscarcereiros jogavam-lhe bananas podres, coma, seu merda, riam-se dele, opáucar imita o canto de todos os pássaros da selva e a própria fala doshomens. Alto! ordena o tenente Basurco, nessa época então era tentente.
(...) Isidro Páucar fugiu em uma canoa de serviço, perto de Atalaya foirecapturado e vão ver agora, seus merdas, o que acontece com os fugitivos,a coronhadas aproximaram-no da árvore da tangarana, e todos vocêsassistirão ao castigo, tire a camisa, ordenou o tenente Basurco, com a caravazia de sangue. Paucarzinho sorria, então, ainda por cima você fica rindo,seu sacana?, amarrem-no, os soldados obedeceram. Isidro Páucar estágrudado à árvore, já deram coronhadas no tronco, instantaneamente asformigas se desenharam sobre seu corpo, Paucarzinho uiva, as tangaranasmancham seu corpo, mordem seu berro. (...) Agora não apenas as formigasguias mordem o Paucarzinho, uma fila de tangaranas desce, sobe, baixapor seu grito, as formigas matam devagar, a morte sobrevém horas depoisde cozido em febres o corpo e cada mordisco é ua febre, o corpo se incha,engorda (...) seu corpo é esse ninguém que as tangaranas transportampedacinho a pedacinho para o formigueiro. (p.24)
Os resquícios da língua, marcas de oralidade, através dos substantivos
concretos e visuais, estabelecem uma conexão linguística em que o contexto e o
recontexto vão sendo aprimorados pela linguagem, pelo ritmo também do próprio
texto. Esses exemplos contemplam também parte da transculturação no nível do
significado, já que rearranja o sentido original de acordo com uma nova lógica
cultural.
Já para o universo de Santiago, observamos a inserção de valores ancestrais
incas no diálogo entre ele e Marie Claire, que reafirmam o passado numa tentativa
quase desesperada de permitir que sua passagem à modernidade seja uma
preservação híbrida do encontro entre a urbanidade latino-americana e sua ex-
metrópole intelectual simbolizada por Paris. A necessidade de abrir o leque latino-
americano estaria, após a simples manifestação dos dominantes na colônia (início
da colonização) e sua experimentação desejosa de independência (momento de
repulsa e negação de tudo o que significa a metrópole), no exato momento de
coexistência das duas culturas, em que a auto-afirmação identitária se mostra
66
sobremaneira marcada de acordo com o universalismo que aparenta almejar,
quando coloca o Popol Vuh, Montaigne, Descartes e Chico Buarque num mesmo
tempo textual:
Chico Buarque insistia, dessa vez com a dolente companhia de um coro.Continuava folheando o Popol Vuh, abundantemente anotado por MarieClaire, e me alegrou seu interesse por meus ancestrais pré-colombianos.Inteligentemente, seu lápis tinha marcado que “Montaigne” e “Descartes”defendiam que o homem era o tipo do homem sem história, mas que “oPopol Vuh demonstra a grandeza de seu equívoco”. Duas linhas grossassublinhavam que “os maias quichés não apenas tinham história: viviam empermanente continuidade com o seu passado”. Sem me dizer, Marie Claire,que pretendia não ter passado, começara a caminhar pelo meu, isto é, pelonosso futuro? (p.196)
Ainda mais claro estão as reconstruções na própria língua, com neologismos
próprios da lógica instaurada no universo de Santiago, numa perfeita junção entre
valores semânticos opostos num mesmo vocábulo:
A necessidade do prazer nos despertou e nos despertou. Subidescíamos aosono. Dormidespertávamos, E novamente morrevivíamos, odioamávamos,sonodespertávamos, desaparexistíamos. E novamentelutasonopacifidespertávamos, descaradamente felizes (p.70).
Ángel Rama considerava que, no nível da composição literária, os recursos
vanguardistas
precisamente passarão a fecundar a narrativa fantástica e também arealista-crítica das cidades, dotando-as de uma destreza, uma percepção doreal e um contágio emocional muito maiores, embora também emconcordância com uma cosmovisão fragmentada. (RAMA, 2001, p.221)
Assim, a universalidade que busca Scorza na vida urbana de Santiago pode
ser observada, como foco de resistência no tempo que, apesar de voraz, remonta à
barbárie pela civilização, determinando que não só os longos anos de colonização
europeia haviam provocado mudanças culturais naquele que sai de sua pátria para
olhar-se no espelho e depara-se com um mundo maior que antes, em busca de um
cosmopolitismo quase obrigatório:
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O garçom oferece porque lhe pedimos mais açúcar. Para acalmá-lo,pedimos mais croissants. Inútil: continuou olhando-nos com ódio. Levantei-me para comprar Gitanes. Diante do balcão, um homem de cor oriental, quemal falava francês, tentava explicar que procurava caixas de fósforodecoradas com borboletas coloridas. Papillon era a única palavra que seentendia. O dono gritava-lhe inutilmente que se desejava borboletas fosseentão à exposição do Jardin des Plantes. Ou melhor: à África. Mas o turistanão entendia nem fazia por entender. Perguntei-lhe se falava inglês. Sim,era iraniano e queria levar aquelas caixas de fósforos como uma lembrançada França para os amigos. (p.71)
No nível dos significados, a transculturação narrativa scorziana fica mais
evidente. Ao tomarmos como exemplo o desfecho da fuga de Nicolás, quando ele é,
segundo o narrador, coroado pelos vaga-lumes. Depois de conseguir fugir de tudo e
de todos, é surpreendido e deflagrado por uma enorme quantidade de pirilampos
que pousa sobre ele, então determinado à sua libertação do futuro para retornar à
sua ancestralidade, morrer pela revolução era a glória, em luzes de ouro, com
possível referência simbólica ao deus Inti (sol e objetos de cor dourada), da cultura
incaica peruana. Os valores do guerrilheiro e sua martirização coincidem com
valores culturais mais antigos:
Tiritando, olha o último Posto de Controle. Mas um inusitado resplendor ocega. De onde vem luz tão forte, esse meio-dia tão próximo que parecebrotar dele? Brota dele! Os vaga-lumes, todos os vaga-lumes, aderem àssuperfícies úmidas. Infinitos vaga-lumes esculpem-no em ouro, incrustam deouro sua balsa de ouro, com angústia de ouro quer afugentar seus delatoresde ouro, como mãos de ouro tenta afastar a capa de ouro que cobre seucorpo de ouro, os vagalumes que o coroam Nicolás I, Senhor das Chuvas,Rei das Correntes. (p.228)
Antonio Cornejo Polar (1990), para explicar a heterogeneidade latino-
americana, recorre às diferentes versões do que considera o grau zero da interação
entre a oralidade e a escrita na morte de Atahualpa, imperador Inca, e as diferentes
versões da Crônica de Cajamarca. A crônica, que assinala o fato de 1532, quando o
padre Valverde (detentor da escrita) encontra-se diante de Atahualpa (detentor da
cultura oral) e coloca à frente deste a Bíblia, símbolo místico, objeto mágico-
religioso, e diz-lhe que seu Deus fala por aquele instrumento. Em algumas versões,
Atahualpa atira longe a bíblia dizendo que não consegue escutar o Deus de Valverde
e dos espanhóis. Em outras, apenas deixa-a cair. O que faria mais sentido, porém,
68
seria que a incompreensão do Inca diante de um objeto que significa o Deus do
outro seja desprezada ou valorizada em toda sua curiosidade. Polar mostra a
parcialidade dessa tradução por parte dos cronistas e historiadores, a falha e a
perda significativa da cultura ao transpor um meio ágrafo para um grafado. Com
versões ligadas ao interesse da coroa espanhola, outras ligadas a interesses de
ambos os impérios, outras ainda ligadas aos interesses religiosos católicos acima
dos da coroa, de acordo com aquele que as traduz, tanto pelo lado inca, mestiço ou
espanhol, o fato é que o passado foi reelaborado inúmeras vezes e o ocorrido em si
já se perdeu e já não importa, foi reconstruído e, na memória social como no
imaginário andino, a morte de Atahualpa e o episódio com a Bíblia permanece como
fato mítico já cristalizado socioculturalmente, princípio da colonização.
Polar (1990) também observa a “tradução” das danças folclóricas e dos
cantos (wankas) para a escrita; nelas, algumas vezes a história é diversa e o inca é
que sai vencedor do “duelo” com o invasor. O que finalmente quer dizer é que a
escrita não recupera totalmente a memória oral, e esse processo é muito mais
aculturador para o dominado do que transculturador.
Na Farmácia de Platão, Derrida (2005), analisa a origem da palavra escrita
através do diálogo de Fedro, de Platão, e investiga como ela carrega diferentes
destinos, podendo ser cura ou veneno (phármakon), tudo dependendo somente do
uso que dela se faz. Embora a discussão derridiana se dê mais no nível da decência
ou da indecência em referência ao ato de escrever e da escritura como registro da
memória, a desvalorização da escrita em referência à fala incide na mesma linha
entre a simples opinião (escritura) e a verdade (fala).
Enquanto para Derrida, a oralidade e a escritura são opostas, para Polar,
diante da vasta gama de traduções e versões da Crônica de Cajamarca, tanto por
nativos, quanto por espanhóis e por mestiços, para Polar, bastaria um ato inicial
cultural e histórico ágrafo dado como verdade primeva para que as várias outras
versões escritas representativas daquele primeiro ato fossem se tornando verdades
à medida que a sociedade faz dele seu uso social, cultural e político. Ou seja, a
perda cultural do registro de um povo é imensa ao se traduzir da oralidade para a
escrita, que aprisiona o fato mas deixa escapar a memória viva, pois é núcleo
discursivo através do qual se faz mais latente as relações de dominação entre os
povos do que a representação da memória propriamente dita, mas por outro lado,
69
não deixa de ser um registro temporal e sociocultural. Tanto a análise da cultura do
outro quanto a nossa própria são profundas viagens ao passado e, em ambas, a
palavra escrita nunca abarcará totalmente uma cultura, mas contribui para completá-
la. Se não podemos buscar a fonte das culturas, podemos, através delas, mostrar
nossa heterogeneidade, nossa miscigenação, o tempo da mistura. Se há culturas
em extinção, pelo menos a Literatura se propõe como auxílio para que não seja total
e o faz também quando se coloca como amostra cultural, parte de um todo, como
um grande Eu que se mostra ao Outro, para que se saiba lê-lo.
Scorza não resolveu o dilema de Polar, mas deixou claro que uso de
elementos mítico-religiosos e onírico-inconscientes, além do resgate de formas
linguísticas imagéticas, movimentam o leitor pela narrativa latino-americana em toda
sua expressão, seja na relação entre a barbárie (local) e a civilização (global), seja
na relação entre um particular e sua sede mais imediata, como é o caso do interior
regional e a urbanidade mais próxima, e de qualquer destes para o resto do mundo,
em todo seu caráter universalizante.
Algo que se mostra provocante e merece maiores e relevantes pesquisas é a
imagem que sai de algumas palavras ou o encadeamento de significados utilizados
pelo autor peruano. Scorza descreve culturas de tal forma que a palavra pode, após
lida e apreendida, ser suprimida e substituída pela imagem cultural do que acaba de
significar. A ela acrescentada, o ritmo, a língua, os legados da oralidade
reconsiderados a partir de seu som e sua forma, a visualidade, a musicalidade, a
sonoridade, contextualizadas em históricos de opressão política e/ou militar,
antiimperialista e ao mesmo tempo existencial e filosófica, e ainda a memória e a
crítica, propõem que a perda de elementos culturais seja menor ou da mesma
intensidade que a revalorização de seu próprio povo, trazendo assim certo orgulho
de pertencimento, nacionalizações, reformulação de identidades e reconstrução do
sujeito latino-americano no tempo. E faz toda diferença quando a história narrada
possui correlatos e coerência com a jornada que vive, viveu ou viverá seu autor, pois
relativiza a biografia e a necessidade de delimitação de uma verdade, parte para um
coletivo que transita entre o fato e o ser e não em suas implicações.
Le Goff (2003), por sua vez, acredita que as comunidades sem escrita sejam
mais puras, como aquelas de memórias étnicas, ou uma história que não se perca
entre a memória e o aqui-agora da cultura e historicismos tendenciosos. Já os povos
70
que se utilizam da escrita, teriam, segundo ele, uma memória social.
Independentemente de utilizarem-se ou não da escrita, a memória é o núcleo que
define as formas de organização social das comunidades.
Nora (1993) desenvolve uma distinção utilitária acerca da memória e da
história. Afirma que a última é uma representação do passado: “a memória dita e a
história escreve” (p.24), argumenta em favor de uma nova história, contada não no
contra-discurso, mas pelo lado do dominado, considerando fragmentos do tempo, e
também percebida de outra forma, não tão cronológica e linear, mas circular e, por
que não dizer, aleatória. Entre o passado e o presente, faz sentido, porque os
fragmentos da memória coletiva, dispersam-se ou extrapolam-se, atraem-se ou
repelem-se; quando atraídos, geram uma unidade de identificação; quando
repelidos, não coadunam, permanecem em suas memórias individuais,
coletivamente. E isso se dá comumente, espontaneamente, uma seleção natural das
afinidades dos grupos que vão se formando. Para esse ideal de comunidade, como
um carpe diem da memória, ele propõe a quebra da linearidade do tempo, a nova
história não se preocupa tanto com cronologismos. Observa que as memórias são
selecionadas, reinventadas, editadas, e sua evocação é uma metáfora do presente,
só se recorda indo do aqui para o antes. Distingue a memória verdadeira (viva),
aquela que vem das impressões dos sentidos, e a memória-história, de função
arquivística: “mais precisa no traço, mais material no vestígio, mais concreto no
registro, mais visível na imagem” (NORA, 1993, p.14). Para ele, a história destrói a
memória. Em certo ponto sim, mas será que ele considera literatura um outro
registro do tempo? Estariam destruindo a memória aqueles que a buscam através
dela?
Finalmente, Bhabha (1998), sem realçar povos com ou sem escrita, adicionou
a todo esse processo a noção de nação, que é todo o coletivo imaginado (social)
somado ao não imaginado (individual).
A equivalência linear entre evento e ideia, que o historicismo propõe,geralmente dá significado a um povo, uma nação ou uma cultura nacionalenquanto categoria sociológica empírica ou uma entidade cultural holística.No entanto, a força narrativa e psicológica que a nacionalidade representana produção cultural e na projeção política é o efeito da ambivalência de“nação” como estratégia narrativa. Como aparato de poder simbólico, issoproduz um deslizamento contínuo de categorias, como sexualidade,afiliação de classe, paranoia territorial ou “diferença cultural” no ato deescrever a nação. (BHABHA, 1998, p.200)
71
Afinal, se tanto a história ou a ficção (literatura) são a representação de uma
suposta realidade, considera que parte da construção da ideia de nação venha
também literariamente, a literatura ajuda a completar um quadro sócio-político-
econômico-cultural-religoso da Nação. Em outras palavras, se todo o passado é
reinventado através da memória, tanto faz se a invenção da Nação venha da
História ou da Literatura, ambas são ficções, e ambas contribuem para um universo
social histórico-literário da realidade. O importante é desmistificar e dessacralizar a
História, deixar de considerá-la como detentora das certezas e das verdades
absolutas de uma nação. Bhabha o faz através do termo “DissemiNação”, artefato
para mostrar como a ideia de Nação é reinventada e disseminada através, também,
da literatura (o termo é traduzido e a tradução acompanha a mesma ideia44):
44 Do original, “DissemiNation”.
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CAPÍTULO 03 - Do amor e outras revoluções: as relações amorosas noromance A Dança Imóvel e as contribuições críticas acerca da obra de Scorzae de seus contemporâneos.
- E o senhor acredita que as Revoluções não traem? – perguntou o editor.- Os revolucionários talvez. As Revoluções, nunca.- E o amor, não trai? – perguntou Marie Claire?(Scorza, A Dança Imóvel, p. 245.)
Scorza operou, neste seu último romance, diversas revoluções e
transformações, tanto em relação às suas obras romanescas anteriores, quanto no
tocante à estrutura interna adotada pela narrativa, aos pensamentos / sentimentos
selecionados para exposição do ser latino-americano (e de si próprio) e à discussão
acerca do papel da literatura e da crítica.
Entre elas, está assim considerada a revolução no campo do amor, aqui
compreendida como as relações amorosas entre os dois casais do romance; as
revoluções no âmbito da narrativa, já anteriormente colocadas no primeiro capítulo,
através das transculturações narrativas sugeridas por Ángel Rama; a revolução no
campo do fazer literário, crítico e biográfico; e a revolução sociocultural e
nacionalista através do posicionamento político entre a civilização e a barbárie, que
acabam por remeter à situação do intelectual latino-americano.
3.1. As relações amorosas: entre o amor e a revolução
O verdadeiro charme das pessoas reside em quando elasperdem as estribeiras, quando não sabem muito bem emque ponto estão. (...) Fico feliz em constatar que o pontode demência de alguém seja a fonte de seu charme.
Gilles Deleuze, abecedário, A de amor.
As relações amorosas contidas em A Dança Imóvel, de Manuel Scorza são
tão importantes quanto o é a causa revolucionária comunista dos dois protagonistas
Santiago e Nicolás, que fazem pares românticos, respectivamente com Marie Claire
e Francesca. Ambos, cada um em sua história, colocam a revolução e o amor em
73
condição de equilíbrio, inicialmente, até que a existência de tal balança se torna
insustentável e são obrigados a realizar uma escolha que determinaria seus futuros:
o amor ou a revolução?
Santiago é um ex-guerrilheiro, que desertou de sua condição de
revolucionário para poder viver seu amor com Marie Claire. Exilado em Paris,
obrigado a esconder-se de seu passado (até certo ponto afundado em uma possível
teoria conspiratória), trafega pela capital francesa, fazendo favores para os
camaradas da revolução, aguardando deles uma sinalização para poder voltar a seu
Peru. A relação entre Marie Claire e Santiago se dá no tempo presente, e todas as
inquietações filosóficas de cunho existencialista relativas a esse amor estão tanto no
plano do diálogo quanto do psicológico, através do pensamento desse último.
Por outro lado, simultaneamente, Nicolás Centenario não desiste da luta
nunca, está fugindo da colônia penal do Sepa, em que esteve preso por querer
matar um delator da causa, em plena selva amazônica. Após descer em uma
jangada improvisada pelos rios caudalosos e cheios de perigos, seu desafio mais
imediato traduz-se em vencer a natureza, pois que já havia escapado das sádicas e
torturantes intenções do Capitão Basurco, que faz dessa caçada sua busca pessoal,
empreende esforços incessantes para encontrá-lo. Francesca simboliza o amor que
ficou no passado e podemos compreender o significado dele desprendido através de
suas memórias, em momentos de atrozes dificuldades, em sua fantástica fuga. Uma
de muitas belas passagens dessa memória amorosa pode ser localizada quando
Nicolás, esfaimado e queimado de sol, após encontrar nativos da selva que o
alimentam até que possa novamente prosseguir em seu caminho em sua balsa
pelas águas amazônicas, recorda-se, já em transe alucinatório, ele que dedicara
toda sua vida ao movimento revolucionário e que desconhecia as relações
amorosas, preso que ficou por um respeito incontestável pela causa do movimento
revolucionário a que pertencia, de Francesca. O dilema que o persegue é medonho,
amor ou revolução?, talvez da mesma dimensão das dificuldades que enfrenta:
Amarra-se à balsa. Entra em águas de sonho cheias de lagartos de sonho,entre paliçadas de sonho, tentando dar caça a um traidor de sonho.Unicórnios assustados cospem mananciais de rubi contra o céu. Francescaroçou em seu rosto com os colares, por trás da poltrona cruzou as mãossobre seu peito, sobre seu tesão, quando tentava, já à beira do desespero,recordar como é importante, segundo Lenin, substituir o parlamentarismo
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verbal e corrupto da burguesia pelos mecanismos inventados pela Comuna,em que a liberdade de opinião e discussão não degenere em engano, mas arespiração de Francesca queimou-lhe a nuca da burguesia, o pescoço doparlamentarismo venal e corrupto, a morna pele dos organismos inventadospela Comuna, a negra catarata dos cabelos de Lênin, e soube então quenão poderia viver sem se lançar nesse precipício. (...) não soube em quemomento terminaram despidos entre os corpos dos lagartos sobre o sol queseu tronco ardendo penetrou na agitação em que gemia Francesca, a bocade Francesca, o sol de Francesca queimando na escuridão.
(SCORZA, 1983, P.175-176).
Seja um amor do presente ou um amor do passado, os dois protagonistas se
apaixonam por mulheres francesas, arrebatadoramente, e o que definirá o futuro de
suas vidas estará na escolha que fazem pelo social (revolução de Nicolás) ou pelo
individual (revolução de Santiago). Imbuídos de preceitos comunistas, determinados
a conduzir a revolução e a independência peruana dos achaques imperialistas norte-
americanos, ambos cairão nas graças de duas jovens e bonitas mulheres
independentes exatamente na moderna Paris dos anos sessenta (onde Scorza se
exilou), e ainda a mesma Paris representante europeia de um passado colonial a se
esquecer (além de ser também um vínculo intelectual e literário do qual se pretende,
nessa ordem: libertação, auto-afirmação e um futuro diálogo isento de cobranças e
responsabilidades estilísticas).
Mas onde residiria a revolução amorosa de Scorza? Para responder a esta
inquietante interrogação, será necessário, reconstruir o Peru para finalmente
chegarmos ao âmago da sociedade peruana da época.
Pela imaginação das sociedades, inevitavelmente, e por meio da memória
coletiva de um povo, todas as comunidades são e serão imaginadas. São criações
culturais e políticas, tendenciosas ou ingênuas, representações de uma ideia,
panfletárias, quase anárquicas ou patrióticas (ANDERSON, 2008). O surgimento de
uma comunidade, com seus artefatos e rituais, seus credos e músicas e danças,
perpassa a identificação linguística dos povos até chegar à ideia de Estado,
banhado de estratagemas, lutas de classes, retóricas, políticas e jogos de poder.
As independências política (em relação à nação), intelectual (em relação à
Europa e aos Estados Unidos), individual (em relação ao amor) e social (em relação
à memória) estabelecem a necessidade de luta por pelo menos uma das partes,
75
senão todas, pois a luta de uma delas é que possibilita as demais. Quando o ser se
liberta das imposições sociais de um coletivo e vê a si mesmo como indivíduo, entra
numa relação de auto-conhecimento necessária a todas as outras revoluções, e o
faz ao mesmo passo que se liberta de si para viver o coletivo. Já lutar pela nação
nos empresta a ilusão de que somos menos órfãos que antes, mesmo que o Estado
não esteja interessado em patrocinar outros ideais que não os partidários.
Na construção do nacional, a literatura latino-americana, através das
memórias que habitam o imaginário coletivo e também dos interesses por trás dos
discursos dominantes que mimetizam o presente para a incorporação de valores
antes inexistentes nas comunidades não se isenta de seu papel social. A História,
como área do conhecimento, é, para a América Latina, há até três quartos do século
passado, uma grande colaborativa para esse processo discursivo, e nos rende ainda
dívidas e dúvidas entre a oralidade e a escrita.
Assim, Scorza reinventa o Peru de duas maneiras. Se Nicolás, ao enfrentar
as adversidades das matas e rios, revela grupos minoritários e costumes culturais
peruanos como o masato (que para nós seria a chicha, cauim, makaloba), ao
mesmo tempo Santiago está sem saída em Paris, deslumbrado com a modernidade.
Sarcasticamente, toda a finesse e o glamour que faz questão de narrar, também é
uma irônica constatação de que o Belo é o Outro. Nesse último caso, a reconstrução
se dá pelo não: tudo o que Paris representa, representa também o não dito na
narrativa, que seria a condição peruana da época. Entre a liberdade e a falta dela,
muito há de se depreender da história dos dois guerrilheiros que apostam a vida e
se perdem ou se ganham pela revolução ou pelo amor.
Por isso, quando reconstrói a mulher ideal, inteligente, desprendida,
independente, receptiva a novas ideias e dada à arte, à filosofia e ao sexo, nas
figuras de Marie Claire e Francesca (que só pelo nome, já traz à tona toda a
França), está também narrando pelo não a mulher peruana (e latino-americana em
geral), dependente, submissa ao homem, sem participação social e política, cravada
de tabus e conservadorismos. Pretende-se, pelo avesso, um amor livre, dialogado,
em que a construção do pensamento é conjunta.
A pretensão de que a mulher seja um ser mais participativo na construção
nacional pode ser percebida quando Santiago, finalmente resolve “desertar” e, dado
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o trato feito de que apenas o presente é viável e que o passado de ambos deve ser
descartado para poder existir e resistir, revela-se, de onde desprende o diálogo:
- Então, quer dizer que você deixou a Revolução por mim? Pensavaem voltar ao Peru antes de me conhecer? Estava decidido a pegar emarmas e a se sacrificar com seus companheiros?
- Sim. Entreguei minha juventude à militância e logo quando chegou omomento, ingressei no Movimento e fui treinado para combater.
- E tudo, verdadeiramente tudo mudou para você quando nosconhecemos?
- Absolutamente tudo. A militância me levava à morte. Eu era umamáquina de matar e morrer, você me mostrou a vida. Nunca amei comoamo você. Desde que a conheço, a única coisa que quero é viver e viver aseu lado. No Jardin des Plantes, a morte ficou para trás. Tudo o que vi antesde você não existe... (SCORZA, 1983, p.219).
Mas a consciência política de Marie Claire é o que dá fim à relação: sacrificar
o todos por um par era inaceitável para ela. E na impossibilidade do fato, quando
Santiago opta pelo amor e não pela revolução, perde os dois, pois Marie Claire
também acreditava na mesma revolução, que só traria frutos futuros. Nas palavras
de Marie Claire:
- Não há palavras, Santiago, mas mesmo sem palavras, assim, querolhe dizer que se algum dia eu voltar a nascer, desejo ser uma árvore parame lembrar mil anos de você, do seu amor, do que seu amor iluminou emmim... Que coragem se deve ter para escolher ficar só...!
- Não fiquei só.- Sim; você ficou só com o amor.- Fiquei com você.- Eu, diante do que você deixou, não sou ninguém, Santiago.
(SCORZA, 1983, p.221).
O amor, admiração do outro, também é carregado de ideologias afins, e pode
ser ilustrado no didatismo de Francesca em relação a Nicolás, um guerrilheiro tão
centrado no movimento revolucionário, ingênuo e pequeno diante do mundo, um
guerreiro contra um imenso moinho, cuja determinação trazia o heroísmo e a
cumplicidade amorosa da jovem, representante de outra esfera social, quando
fingiam ser casados para continuar em Paris na casa de um professor, em sua
despedida:
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“Pela vitória da revolução, Nicolás, pela libertação do Peru, por você, pelavitória!” Sua voz se enfraqueceu: “E se não voltarmos a nos ver, quero quesaiba que estou orgulhosa e feliz de ser sua esposa”. A paliçada aproxima-se perigosamente da balsa, rema para a margem, mas a corrente o arrastasob os relâmpagos, a chuva não o deixa ver Francesca, que se levanta paraoperar o toca-discos: “Não sei se conhece a Sonata para violino e Piano deCésar Franck”. “Não”, disse ele, “de Pinglo eu não passei”. “Isto que vocêestá ouvindo é a famosíssima Sonata de Vinteuil, o hino nacional dosamores de Swann e Odette, lembra-se do que li de Proust? Sem terminarum cigarro, Francesca acendeu outro e disse, sem levantar a cabeça:“Nicolás, você sabia que eu me inscrevi no Movimento por você? Eu erasimpatizante desde que entrei na Universidade, mas sua greve de fome medecidiu. Todos nós, estudantes, admirávamos o seu heroísmo,acompanhávamos, dia-a-dia, os detalhes daquela greve, sabíamos quevocê estava morrendo mas não recuaria”. (SCORZA, 1983, p.162).
Além de trazer a mulher para o centro do diálogo e da discussão existencial
sobre o estar e o viver, Scorza nos mostra que, para reinventar uma nação é preciso
reinventar o amor. Em outras palavras, as relações sociais precisam ser
desenvolvidas como a relação de Marie Claire e Santiago, Francesca e Nicolás,
abertas ao diálogo, comunicativas e respeitosas pelo outro, mesmo que fadadas ao
fatalismo ou à decisão conjunta de um fim. Na esfera do coletivo, um povo que
agisse assim estaria próximo de uma escolha sobre que nação reinventar, e esse é
um sentimento que perpassa toda a obra. Ao mesmo tempo que a revolução parece
utópica ou mesmo ingênua, que por si só carrega traços de uma prisão ideológica
(porque todas as outras ideias são bloqueadas, dado o radicalismo) e social (porque
não se vive, a não ser como massa de manobra) e simboliza a morte, o amor é
proposto como uma outra revolução ainda maior, mediado pelas relações entre os
seres, representando a vida, fato ilustrado pela dúvida de Nicolás: “E uma vez mais
invejou Santiago. E se o ato verdadeiramente subversivo não fosse a revolução pela
qual ia morrer, mas a vida com Francesca, o amor que abandonou...? Acorda na
água”. (SCORZA, 1983, p.101).
Os limiares da conceituação entre o que é o amor e o que é a revolução
confundem-se muitas vezes. Há momentos em que um se sobrepõe sobre o outro.
O que Scorza esteja talvez propondo é a importância da escolha, já que parecem
ser escolhas excludentes, opta-se sempre por um ou por outro, estão sempre em pé
de igualdade. Mesmo para o caso de Santiago e Marie Claire, ambos marxistas, que
podem entender que a revolução é uma forma mais nobre e honrada de morrer pelo
seu país, observamos:
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- Em Paris você encontrará tudo, menos a Revolução. A Europa está morta.Aqui, todo futuro é passado. Belo, mas passado. E se, como você dizia, oúnico futuro humano é a Revolução, o futuro vive no Terceiro Mundo, naAmérica Latina, no seu país. Mesmo nós que nascemos na Europa vivemosunicamente de passagem pela Europa. Aqui não se vive, aqui nos limitamosa existir, a apressar o instante que passa...- E o amor não é a verdadeira Revolução?- Mas quem diz que o amor e a Revolução se opõem?- Os mortos dizem. (SCORZA, 1983, p.220).
O diálogo entre Nicolás e Santiago, personagens que até então possuíam
histórias e narrativas próprias acontece em um capítulo próprio (já que até então,
cada um deles narrava um capítulo, intercaladamente), quando Santiago está
prestes a desistir da revolução por amor e Nicolás tenta dissuadi-lo:
- Desde quando, Santiago, a revolução e o amor são contraditórios? Seuamor, todo amor, sua luta, nossa luta são carne de um mesmo corpo,sangue de um mesmo sangue. Escolher entre amor e revolução é um falsodilema. Não há nada que escolher, são o mesmo...- Não para mim, Nicolás.- Não entendo.- É simples. Amo uma mulher e quero viver com ela. Está claro? Queroviver! Por isso fico. Só os vivos têm mulher, os mortos não... Agora vejocoisas que não via antes. (SCORZA, 1983, p.182).
A revolução funciona, certas vezes, como religião (veja-se o catolicismo, por
exemplo) a ser seguida, as ordens do partido são verdades incontestáveis, e
chegam a obrigar os companheiros até mesmo a uma certa castidade, momento em
que se contrapõe ao amor: “ ‘Não me concentro’ – disse a si mesmo -, ‘estou
pensando em Francesca e não na ideia fundamental do marxismo sobre o papel
histórico e a significação do Estado” (SCORZA, 1983, p.123). Porque a revolução,
assim como a religião, traz a crença de um renascimento, de uma vida após a morte,
morrer agora melhora a vida futura, há uma recompensa no fim do túnel, ao passo
que o amor está na intensidade do presente cuja duração é indeterminada ou se
finda com a morte dos amantes:
A vida flui mais rápido que todos os rios. O homem que está mais perto desua morte que de seu nascimento precisa urgentemente ser feliz! Tinha sidofeliz? Francesca encheu-lhe de novo a taça de vinho. “O problema maisimportante não é o imperialismo, é a morte”, disse-lhe. Ele ficou pensativo.
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Perto da margem cavada pelo rio, pareceu-lhe ver a terra recém-cobertapelas chuvas que cobriam seu túmulo. Não teria túmulo. Sua lápide seriamessas espumas marrons. “Não, Francesca, o problema mais importante é oimperialismo, pois o imperialismo é a morte. E ainda que a Revoluçãosignifique a morte para nós, a revolução é e será a vida.” Um forte balançode águas turvas atingiu a balsa, levantou-a e a lançou pelos ares.(SCORZA, 1983, p.89).
Ou ainda, no romance, revolução e amor são libertações necessárias: a
primeira está no presente mirando o futuro, no coletivo, buscando independência e
distância do opressor imperialista.
Nenhuma batalha final acabou com a escravidão. As rebeliões anônimas, aslutas obscuras, os combates perdidos, os Espártacos, os Pugachovs, osTupac Amaru, os Emiliano Zapata, os Garabombo sem rosto, elesterminaram com a barbárie. Seus combates foram o fermento do futuro.Embora morramos obscuros, anônimos, esquecíveis, nossa luta temsentido: somos a semente em que espera o futuro da América. (SCORZA,1983, p.101-102).
Já o amor, também no presente, focaliza-se em si próprio, e representa a
independência do guerrilheiro em relação ao seu próprio partido revolucionário,
colocado também como opressor, já que o simples ato de desvincular-se dele
significa uma alta traição, além de ir contra os conservadorismos, tabus e
moralismos sociais que tentam, em vão, definir como o amor deve ser vivido.
Na fundação do romance, o fato de a relação amorosa entre Santiago e Marie
Claire ser isenta de passado reflete uma libertação desses dogmas, pois que não
importava se um dos dois havia sido casado, fosse hetero, homo ou pansexual, de
que credo, nacionalidade, orientação política, antes do momento em que se
encontraram, só importava o presente, desde que absoluto, instância em que nasce
o casal dentro do amor. Esse amor leve, isento de contaminações de outros
relacionamentos anteriores, brincalhão, igualizante, desejoso, respeitador,
comunicante, alegre, admirador, romântico, cúmplice e solícito, que não tem a
pretensão de ser para sempre no tempo senão no momento presente, que levita
sobre as demais questões a ponto de fazer com que Santiago abandone a revolução
para vivê-lo em toda a sua extensão é o que permite declarações abertas dos
sentimentos, buscando no fundo da cultura ou da universalidade filosófica a
80
concentração dos sentidos no par. No exemplo a seguir, Marie Claire declara-se a
Santiago como um imperador asteca:
- Por você abandono minha cidade, minhas pirâmides, meus templos, minhavida – sussurrou. – A única coisa que lhe peço é que nunca pergunte sobremeu passado. Eu também não perguntarei sobre o seu. Concorda?E sem esperar resposta recitou:
Eu, Nezhualcóyotl, pergunto:Será de verdade que se vive com raiz na terra?Não para sempre na terra:Só um pouco aqui,Ainda que seja de jade se quebra,Ainda que seja de ouro se rompe,Ainda que seja plumagem dequetzal, se despedaça.Não para sempre na terra:Só um pouco aqui.
(SCORZA, 1983, p.73).
Um outro fator envolvente na questão do amor em A Dança Imóvel é o
erotismo livre que se desdobra da relação entre o casal. A admiração e os diálogos e
comentários de ambos acerca das filosofias internas de cada um, sobre a filosofia, a
política, a literatura, a música e a arte, através da simples argumentação ou até
mesmo a partir de críticas bem fundamentadas, são afrodisíacos mentais para eles.
As relações sexuais são momentos de grande importância e normalidade na vida do
casal, o prazer do momento é a certeza da vida. Exemplo disso pode ser observado
quando Marie Claire, citando uma passagem de Balzac, quando este só possuía um
pão para comer, pegou um giz e começou a desenhar um banquete e deixou que
sua imaginação o alimentasse, propõe o mesmo a partir de alguns lápis de cor e
pinta um cenário em que pontos amarelos são constelações e planetas e números
azuis em que cabem todo o tempo do mundo para mostrar a Santiago que a
coincidência de estarem vivos no mesmo espaço e no mesmo tempo era dádiva
compartilhada:
E agora, com todas as cores na mão direita, ocultando com arco-írisas constelações, os cometas, as estrelas cadentes, a Terra, as épocas,Marie Claire cobriu integralmente a mesa com rosas, magnólias, gerânios,trepadeiras, orquídeas impossíveis. Abraçou-me e desceu, sem me soltar,seus joelhos ao chão e os olhos em lágrimas:
- Este é o meu agradecimento porque estamos vivos, você e eu, eestamos aqui agora, você e eu, aqui, você e eu, juntos...
81
Jogou os lápis para cima, despiu o pulôver e me beijou. E uma eoutra vez rolamos pelos precipícios de nosso gozo. E passados meses delábios, anos de coxas, centenários de peitos, milênios de gemidos, queeram instantes, nós nos enlaçamos em um grande sono. Mas nossoscorpos não dormiram. Enquanto eu sonhava que tinha encontrado em Parisuma mulher maravilhosa e sonhava que dormia com ela, e dormia com ela,meu corpo e seu corpo insones continuavam se buscando, encontrando-se,nascendo-se, morrendo-se. (SCORZA, 1983, p.73).
Belas metáforas compõem a recompensa das relações sexuais, como a fusão
de dois seres em um só animal que os olhos de Santiago jamais tinham visto:
No espelho, diante da cama, contemplei os movimentos vertiginosose lentos de um animal que os meus olhos jamais tinham visto. Vi que aspernas convulsas do quadrúpede lutavam entre si. Vi como suas quatropernas fundiam-se em duas. Vi que o belíssimo monstro era bicéfalo, quesuas cabeças luatavam, mordiam-se, beijavam-se, esfregavam os focinhos.Vi que suas cabeças se juntavam em uma só. Vi o desespero de seusquatro olhos resistindo a serem dois. E nos olhos que sobreviveram, vi ojúbilo de serem agora só dois. (...) Olhei-a. Olhou-me. Nos olhou. Éramos oexemplar único de uma espécie única, princípio e fim de uma raça destinadaa existir nesse instante único! (SCORZA, 1983, p.70).
A revolução amorosa e sexual na narrativa scorziana, dentro da proposta
igualdade de gêneros e condições entre homens e mulheres é bastante atual, desde
a época em que o romance foi publicado. Acredita-se aqui que se Scorza tivesse
mais tempo e não morresse tão cedo, certamente abordaria o tema em outras obras.
Ainda assim, há resquícios que fazem com que o amor não seja concretizado
pois que concorre com a revolução política da qual fazem parte os guerrilheiros. Na
narrativa, o desfecho é trágico e se dá pela traição. Santiago sente que trai Marie
Claire por não suportar o peso de não saber sobre o futuro, já que aguarda ordens e
instruções do partido comunista peruano. Opta pelo não suicídio, pois o amor
perderia um militante e a revolução um guerrilheiro. Ao mesmo tempo, quando trai o
partido para dedicar-se ao amor, Marie Claire desencanta-se e desaparece de sua
vida, reaparecendo somente na casa de um amigo, entre drogas e prostituições.
Santiago considera aquela uma traição tão profunda que inventa um outro capítulo
com outro final para o casal, em que a personagem criada ganha nova vida, já na
mesa de um restaurante junto ao editor, como filha deste, mas os dois não se
reconhecem, apesar da sensação de que sim. O amor idealizado e imaginado tem a
chance de ser real, mas todo o sofrimento desprendido por essa imaginação havia
82
sido tão visceral que Santiago opta por não encará-la. Ele perdeu tanto a Revolução
quanto o Amor.
Nicolás, por sua vez, que opta pela Revolução ao invés do Amor, perde a vida
lutando por seu país no final onírico de sua fuga, em que um enxame de vaga-lumes
cobrem-lhe o corpo e denunciam-no, iluminado por mil luzes, levando-o à morte.
Mas morre como mártir da revolução, símbolo de resistência, como vencedor de seu
propósito inabalável, em honra de morrer pela pátria.
Concluindo, Scorza, em A Dança Imóvel, não tenta reduzir a (sua) nação a
algo que o governo peruano desenhava nos anos anteriores a 1983, principalmente
nos anos sessenta/setenta, recorte temporal em que se desenvolve a narrativa. Pelo
contrário, o autor deslinda em seu romance um outro Peru, frágil, assolado por
repetidas ditaduras, mais próximo de uma realidade experienciada e coletiva de
parte de seus habitantes do que a propaganda nacional peruana “de cima para
baixo”, isto é, do governo em direção ao povo de forma ditatorial, e do que a imagem
desenhada dos governantes do Peru para o resto do mundo. Assim não o seria se o
autor, assim como os personagens de sua trama, não fossem revolucionários
capazes de enxergar além do que é imposto por aqueles que não só detêm o poder,
como dele abusam, utilizando a parte mais assolada da população como moeda de
troca ou escudo para justificar as incoerências de um modelo político exploratório e
carente de democracia. Não é dito aqui que a nação peruana de Scorza fosse mais
ou menos real do que realmente era à época, mas é exatamente essa sua visão que
completa e amplia a noção de Estado Peruano, visto que é dada pela perspectiva do
vencido / dominado e não do vencedor / dominador. Tal relação poderia ser
compreendida ainda como diletantismo de direita (governo) / esquerda (revolução),
fato que talvez seja mais adequado à intenção do romancista.
Vale a pena perceber que a revolução, praticamente orgânica nos
protagonistas, só se completa e também se complica (senão não seria revolução,
não seria amor) a partir do amor, além do fetiche da inconsequência do presente e
consequência do passado para lançar-se ao desconhecido Outro. Essa é a grande
revolução de Scorza. Dá ao amor a liberdade que não teve de sua pátria. Nos
romances anteriores, não havia diálogos nem filosofias dialogantes no campo do
amor. Confere à mulher um papel libertário, iguala-se, talvez um convite, proposição,
talvez previsse o que seria uma tônica da discussão do século XXI, a igualdade de
83
gêneros. Do Peru para o mundo, pelo sim da modernidade, inventa um futuro, pela
experiência da civilização, denuncia a barbárie, e pelo não de sua nação (já que
reconstrói o Peru também a partir de Paris), é o negativo, não a fotografia, de uma
situação emergencial social. A quebra de vínculo do ser - tempo fica mantida na
narrativa para se refazer no social, por isso utiliza os transportes de uma cultura a
outra, de uma voz a outra, de uma ideologia a outra: o mensageiro é também o
agente responsável pela manutenção e transmutação de sua cultura.
3.2. Revoluções no campo do fazer literário, crítico e biográfico
O que há de positivo na América é o que resistiu àaceleração do tempo.
Vera Follain de Figueiredo, 1994, p.26.
Incidindo sobre os eixos horizontal, representado pelas sociedades latino-
americanas em seu espaço-tempo (em geral, pelas minoritárias, como as
comunidades indígenas, regiões rurais, vilarejos, ou ainda cidades e espaços
nacionais) e vertical, representado pela configuração sócio-econômica que as
consome e as lança à obrigação da modernidade e futuro, dada a relação de
dominação nelas implícita, conforme proposto por Rama (1974), Scorza, em A
Dança Imóvel, opera, além das transculturações narrativas, revoluções estratégicas
também no campo do fazer literário que ajudam a compor o sujeito latino-americano.
Por exemplo, as cinco baladas scorzianas que compõem a Guerra Silenciosa,
publicadas entre 1970 e 1977, podem ser consideradas uma metaficção
historiográfica, já que cada um dos romances “atua exatamente conciliando
diferenças e questionando certezas, instituições, e especialmente os limites entre
história e ficção” (HUTCHEON, 1991, p. 27) e revelam uma outra perspectiva
histórica a partir da luta dos campesinos do povoado de Rancas entre 1959 e 1960
no Vale Central peruano, contra as multinacionais e o imperialismo norte-
americanos, apesar de movimentar-se por passados mais próximos e outros mais
distantes. Valter Sinder (2000) pondera que “esse novo tipo de romance reinterpreta
84
a história e a reescreve através da ficção, sem o objetivo contar a verdade, mas de
questionar qual é essa verdade que se conta” (SINDER, 2000, 260).
Em compensação, A Dança Imóvel (1983) estaria mais distante de ser uma
metaficção historiográfica, pois embora haja dados biográficos e autobiográficos de
Scorza e alguns outros personagens em sua trama, os episódios que tratam dos
personagens na França ou na fuga do presídio do Sepa são, até que se prove o
contrário, fictícios. Também não há fatos históricos de reconhecida relevância social
peruana reinterpretados em sua última novela, apenas flashes e situações históricas
pontuais hipotéticas. Assim, o romance contém traços da metaficção historiográfica
proposta por Hutcheon, mas em comparação com as obras ficcionais scorzianas
anteriores (em que o fato histórico é a centralidade das novelas), estaria em uma
proporção de suas características definidoras muito menor, já que o dilema humano
da escolha é sua peça nuclear e que há dois universos em choque, a civilização e a
barbárie. Como nas ciências humanas não há quantificação exata, talvez seja
melhor considerar que a pentalogia das baladas ou novelas são completamente
metaficções historiográficas, enquanto que A Dança Imóvel o é em certos momentos
da narrativa ou então que simplesmente não o é, visto que mostra uma outra versão
histórica de modo indireto, ou seja, não conta a história de um Peru subjugado às
intempéries políticas do militarismo, simplesmente, mas especialmente o
pensamento dos guerrilheiros em prol de um ideal libertário que oprime todo um
povo e uma nação, por eles imaginados. O que Scorza propõe é uma revolução de
pensamentos, o amor entra como uma abertura para que o guerrilheiro não se perca
em radicalismos.
Além disso, em primeiro lugar, o narrador não faz questão de (ou faz questão
de não?) revelar o recorte temporal, o que atesta que: i) a opressão às classes
menos favorecidas peruanas era tão grande que não houve necessidade de se fixar
historicamente qualquer fato na narrativa, andou-se por uma verdade orgânica de
tempo indefinido e cumplicizado pelo leitor, que vai se situando com as pistas; ii) a
relação entre o autor e a obra, mediada pelo aqui-agora pessoal e subjetivo do
primeiro, demonstra um posicionamento político a respeito de um fato histórico e
constrói (ou contribui para) uma outra versão dos acontecimentos, entre a ficção
narrativa e a experiência viva. Os recortes do autor em seu presente, que carregam
passados e memórias de sua existência, não exigem datas. É o tempo de quem
85
vive, escreve e busca no passado uma solução para um povo, incluindo-se nele,
como uma discrição de quem já foi privado de sua liberdade e resolvesse o possível
axioma “não há verdades, e todas as versões são verdadeiras”. Optou por chamar
verdade por ficção, ou seja, mais uma dentre várias verdades; iii) assim como
história e literatura estão ambas no âmbito da ficção, visto que tanto o historiador
quanto o escritor não são isentos de parcialidade histórica ou ficcional (WHITE,
1995), Scorza procura trazer dois caminhos possíveis para alcançar um mínimo
múltiplo comum entre a história e a literatura: se a ditadura militar é uma tônica
comum em praticamente toda a América Latina na época, e a ala comunista rebela-
se ideologicamente contra o sistema imposto pela ditadura imperialista, o caso do
Peru é apenas um a mais diante das outras nações do continente. Então, ao tecer
uma ficção potencialmente real, descreve também uma realidade não só possível
como exposta, acordando o leitor para um contrato de uma verdade parcial, dada
também através de personagens, tempo e localidades reais, a partir de uma trama
fantasiosa mas não impossível (para o caso do personagem Nicolás) e um roteiro
duplicado entre a França e o Peru (para o caso de Santiago); e, finalmente, iv) a
revolução e a libertação pelas quais lutavam os personagens ligados à causa do
partido comunista são tão imaginadas quanto a idealização nacionalista do autor, o
que o transforma em um historiador fictício de sua própria vida, entre realidades e
sonhos centrados no indivíduo e no coletivo; e também em um ficcionador da
história do Peru, entre desejos (faltas e/ou ausências) e necessidades de futuro,
coletivamente. O autor vai pela arte de transitar entre o particularíssimo universo dos
índios campa e cholla na selva amazônica, por exemplo, e o cosmopolitíssimo
ideário filosófico (ainda que preso a um certo ocidentalismo) em que se baseia para
delinear as nuances do amor (relações amorosas) e da revolução (lutas políticas),
valendo-se de sua própria experiência, exilado em Paris. Assim, o trânsito dos
pensamentos dos personagens ilustram o fazer literário (e biográfico) de Scorza, em
sua intencionalidade de conscientização política e formação intelectual de seu leitor,
melhor traduzido nas palavras de Figueiredo (1994):
Os limites entre história e ficção, então, se diluem, já que ambas giram emtorno da mesma indagação. Ou seja, se desconfiamos dos universalismos,se consideramos que os fatos podem ser vistos de vários ângulos, comoevitar a visão centralizadora que dá ao leitor a ilusão de verdade única?Como trabalhar com as implicações ideológicas de selecionar, ordenar,
86
interpretar os acontecimentos que integram o ato de narrar tanto na históriaquanto na ficção? (FIGUEIREDO, 1994, p.127)
Segundo, para idealizar a libertação e consequente re-nacionalização do
Peru, seria preciso testemunhar seu próprio mundo social pelo lado de fora dele, em
Paris, fato comum a um dos personagens e ao autor, entre o sonho (ideal) e o
pesadelo (real), e esse olhar estrangeiro de sua própria gente e chão é, na visão de
Molloy (2005):
O olhar de fora afeta a postura autobiográfica: o “eu” escreve em outrolugar. Esta verdade, embora aplicável à autobiografia de maneira geral,adquire realidade concreta no caso do exilado. Ele ou ela escrevem,literalmente, em outro país, em outra cultura, ou em outra língua. A tentativade capturar um passado que é marginal ao presente da autobiografia leva aum exercício de deslocamento: sujeito e passado são mutuamenteexclusivos, estão cindidos. O passado só pode ser integrado ao presenteatravés de um exercício de nostalgia. (MOLLOY, 2005, p.144)
Aliás, o constante movimento entre o autor e seus personagens nos dá pistas
de que a narrativa contém passagens autobiográficas e históricas, e Scorza faz
questão de combiná-los, de forma que elementos de grupos ficcionais troquem de
lugar e posição com elementos de grupos reais, em que o resultado final são grupos
miscigenados entre a ficção e a realidade, verdades sobre um mesmo ponto voando
ideologicamente sobre um desejo de construção nacional.
Mesmo no interior da narrativa, ao citar o paralelismo entre duas vidas
diferentes de personagens que levantam a mesma bandeira política sob um ideal
pessoal e um ideal social, divididos entre o amor e a revolução, não há como não
notar um paralelismo entre o presente (meio) e o futuro (fim) ou entre o poder de
escolha e o destino (fatalidade). Na vida, quanto na obra, os mimetismos que a
imagem emergente dos signos proporciona, são fatos isolados do passado do autor,
sistematicamente combinados para que não se tenha exatamente qual a noção tanto
dos fatos auto e biográficos como dos ficcionados, o que não faz diferença
propriamente à condição absoluta da verdade, mas que impõe à receptividade
estética um estilo único e inconfundível. São instâncias narrativas entre o ser e a
obra e, quando exclui o início (de onde começa realmente a revolução ou quem é o
narrador onisciente dos sonhos dos protagonistas), Scorza alcança um
cosmopolitismo temporal: a denúncia social é um embelezamento de um fato ou
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vários fatos da história oficial contada pela perspectiva de oposicionistas radicais e,
ao mesmo tempo, esse fato ainda não existiu como ponto único isolado na América
Latina, é antes uma faixa de acontecimentos históricos e socioculturais que se
propaga como onda cujas franjas são referências existenciais e políticas no
psicológico narrativo ou no diálogo aberto dos personagens com autores de
diferentes épocas e localidades.
Em terceiro, torna-se impossível, no romance de Scorza, estabelecer
categoricamente onde estão os pontos autobiográficos e onde não estão; sabe-se,
certamente, que estão espalhados e diluídos por toda a narrativa, entre a história e a
ficção, e os que o autor seleciona para ocultar ou para exibir realçam o jogo ao qual
convida o leitor a participar. E seu leitor-alvo é, não só o peruano jovem, de classe
média, alfabetizado, como também os latino-americanos sofredores de ditaduras
afins, e ainda as diversas classes sociais dos mais de trinta países em que foi
traduzido, especialmente na Europa. Assim, utiliza-se de uma mescla entre
elementos autobiográficos e ficcionais para relacionar e contrapor binarismos
complementares entre si, como a civilização e a barbárie, ou o particular e o
universal, de forma a trazer outra faceta da realidade e a peculiaridade do
pensamento humano para o nascimento e amadurecimento de um sujeito-leitor.
Teoricamente, poderíamos observar que ao mesmo passo que os limiares e
fronteiras entre autobiografia e ficção vão se imbricando na obra de Scorza, também
a literatura e os estudos culturais vão se miscigenando na América Latina. A partir
dos costumes socioculturais e antropológicos, às vezes, de partes específicas da
nação, como os da selva amazônica, por exemplo, outras vezes, mais superficial e
genericamente, como as projeções/representações nacionais, é que percebemos as
relações tão características dos romances latino-americanos contemporâneos, entre
o local e o global. Para ilustrar, podemos simplesmente contar com um trecho da
narrativa em que o pensamento de Santiago compara sua excitação em relação à
Marie Claire à glória de seus antepassados e seus mitos de origem através de um
vaso de cerâmica mochita, cultura que floresceu no litoral peruano, o vaso é quase
sem cor e em forma de globo, encimado por uma tubulação e cujo ventre assume a
forma de uma fruta, animal ou da cabeça humana (SCORZA, 1983, p.75), ou ainda
pelas características já cristalizadas vinculadas a cada povo, a seguir:
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Um rapaz alto, branco, simpático, aproximou-se de Santiago:- Você é sul-americano?- Às vezes.- Você tem sorte, eu sou boliviano todos os dias e todas as horas. Até
mesmo quando eu durmo, sonho que sou boliviano... e você, de onde é?- E Santiago, sempre irônico:- Depende.- Como depende?- Depende de quem pague a conta.- Ah, já sei; sacana desse jeito, só pode ser peruano! Sabe falar
alemão?(Scorza, 1983, p.81)
A necessidade de Scorza de se lançar ao universal e de pintar a figura dos
personagens centrais de sua trama como seres cosmopolitas é explícita e inegável.
Em um mesmo capítulo, quando Santiago recebe a notícia de um infiltrado da CIA
entre os camaradas da revolução (Capítulo X), perpassam referências como
Moscou, Equador, China, Bolívia, Peru, Cuba, França, Alemanha, e ainda Dacar,
Interpol, polícias europeias, idiomas inglês, francês e latino, entre outras. A
modernidade está na figura do viajante, que mostra consciência da enormidade do
mundo e nele se insere para se auto-afirmar como sujeito pós-colonial. Em outras
situações, há a iniciativa para composição de uma unidade americana latina, em que
o livre trânsito entre as nações e o conhecimento delas, quando cita os jogos e os
personagens da Copa do Mundo de 1970, os boleros argentinos, a música popular
peruana na pessoa de Pinglo ou na brasileira de Chico Buarque, apropriando-se
dessas culturas para conferir força a manifestações artísticas latino-americanas, e
não apenas nacionais, de cada país.
O personagem David Pent, por exemplo, é um gringo alto e forte, amante de
muitas jovens índias e poderia muito bem ser uma alfinetada do autor em relação à
oposição interna norte-americana. Pent é o detentor das armas e ostentador de uma
grande soma em dinheiro, contratador de nativos, ele, que poderia simbolizar a
intrusão dos EUA e sua ideologia imperialista nos países pós-coloniais latino-
americanos, além de ser aquele que experimenta e deflora as mulheres e crianças
da mata, com quem é amaziado, contraditoriamente, é também a salvação, como
um norte-americano do mundo capitalista que se rebelou contra o próprio sistema e
resolveu contribuir para a revolução comunista e a libertação do povo peruano.
De outro modo, ao descrever entre minúcias as novidades do mundo
moderno, o glamour parisiense e os objetos valorados em qualidade e preço pela
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alta sociedade francesa, como as bebidas (champagnes, vinhos, whiskies), pratos
incrementados de restaurantes chiques, museus, praças maravilhosas, tecnologias
da época (máquina de escrever, toca-discos, etc.), ressoa às vezes irônico, ácido ou
sarcástico. Scorza constrói uma armadilha da imitação super-valorizada e quase
totêmica de uma ex-colônia que supervaloriza o berço cultural de sua antiga
metrópole ibérica, carrasca e bela, com adornos que foram tirados às custas de
suores escravos e mortes pelo caminho, que o passado distante teimava em repelir
e com quem o presente da narrativa limita-se a admirar, em proposital
despersonalização causada pela dependência cultural europeia, tão latente na sua
própria.
Assim, a literatura scorziana, em sua multifuncionalidade, que figura também
como produto ideológico e fruto do espírito de classe, cuja legitimação se deu
sempre através da burguesia, da alta cultura e de critérios estéticos específicos,
expande-se pela crítica e pelos estudos culturais que nela se inserem, além de
ratificar que “a função crítica da literatura é a de não constituir um lugar
especificamente literário, mas de deslocar todos os lugares teóricos e literários”
(Souza, 1999, p.15).
Pois que é fascinante como Rama e Scorza estavam alinhados (o primeiro, na
teoria da literatura de fundo antropológico social; o último, na prática do fazer
literário), em suas transculturações narrativas. Uma delas se dá como produto do
choque cultural entre o invasor e o nativo, busca um passado distante ou
ancestralidade social, como é a saga do povoado de Rancas, entre 1959 e 1960, de
perspectiva bárbara, no ciclo das baladas de Scorza. A outra, que é o objeto deste
estudo, está nos choques culturais entre sua civilização (Peru e América Latina) ser
a barbárie de outra civilização mais “moderna” (Paris-França), e o presente, que
muda o eixo intelectual, econômico e político para os EUA, símbolo de um sistema a
ser combatido pelo comunismo.
Está presente, transculturalmente portanto, nas relações entre guerrilheiros-
peruanos-marxistas-guevaristas-ex-colônia-urbanos e seus algozes-imperialistas-e-
militares-da-ditadura, suas experiências na natureza selvagem, entre povos
amazônicos e também entre as radicais ideologias de direita e esquerda. Scorza
considera sociedades como nações, e também desenha pontes e caminhos,
arredores e confluência de limites, por uma visão de sociedades como grupos,
90
formados por ideias comuns de seus componentes. A revolução aqui é que a
transculturação narrativa não se dá em ambiente apenas regional, mas olha a
história pelo viés de minorias, periferias, comunidades desconhecidas ou
esquecidas, da mesma forma. Há uma crítica envolvida nos dois sistemas políticos:
a do imperialismo, invasão e ditadura, por um humor trágico, assim no escárnio que
faz de David Pent na Amazônia como nas imagens de tortura, denunciantes das
atrocidades do militarismo; e do movimento revolucionário do partido comunista
peruano, que apesar de exaltado em Marx, expõe como o uso do poder através de
um comando central que, para ir além da resistência e agir, também se mostra
ditatorial e ocasiona um engessamento da classe quanto à sua liberdade de ir, vir,
pensar e/ou sentir. Pela experimentação e conhecimento de causa do autor, que
conheceu a prisão, o exílio, e a própria colônia penal do Sepa, os elementos
autobiográficos do romance ganham um espaço único de crítica social e manifesto
político-cultural nos movimentos da transculturação narrativa. Eagleton (1997)
levanta alguns pontos interessantes sobre a militância ideológica de direita ou
esquerda, explícita e revoltosa (em relação àqueles contra os quais luta) ou quieta e
pensativa (nas relações internas e hierárquicas do partido ou comando de guerrilha),
mas nunca estática, subordinada a um poder, coincidente com os personagens de
Scorza no romance, conferindo
um saudável grau de respeito à experiência dos explorados: não há razãopara supor que sua docilidade política indique alguma adesão crédula eardorosa às doutrinas de seus superiores. Pode indicar, em vez disso, umsenso friamente realista de que a militância política, num período em que osistema capitalista ainda é capaz de conceder algumas vantagens materiaisàqueles que o mantêm em funcionamento, pode ser perigosa e insensata.Mas se o sistema deixasse de gerar tais benefícios, então esse mesmorealismo poderia perfeitamente conduzir à revolta, uma vez que não haveriauma internalização maciça dos valores dominantes para impedir a rebelião.Com certeza, Abercrombie et al. também estão certos ao salientar que osgrupos sociais subalternos têm, com freqüência, suas próprias culturas, quesão ricas e resistentes e não podem ser incorporadas, sem luta, aossistemas de valores daqueles que os governam. (EAGLETON, 2003, p.44)
Os elementos autobiográficos anteriormente citados, de acordo com os
princípios elencados por Eneida Maria de Souza (2002), em Notas sobre a crítica
biográfica, em que as relações entre obra e autor, obra e vida, promovem a
91
dissolução das abas fronteiriças da alta literatura e a cultura de massa, permitindo o
acesso e a democratização da leitura, marcados, em A Dança Imóvel, pela
linguagem mista de pop, popular, endêmica, hermetismos e estrangeirismos, em
algumas ocasiões giriáticas ou chulas. Segundo ela, “O objeto literário deixa de ser
privilégio da crítica literária e se expande para outras áreas, numa demonstração de
estar a literatura se libertando das amarras de um espaço que a confinaria para
sempre no âmbito das belles lettres” (SOUZA, 2002, p.109). Foi, portanto, unindo a
literatura de Scorza com documentos a seu respeito, como cartas e entrevistas, que
se tornou possível o deslocamento do “lugar exclusivo da literatura como corpus de
análise” para “expandir o feixe de relações culturais” (SOUZA, 2002, p.105),
tornando-a livre para ser uma transição do ser e da obra.
Gil (2008) percebe como a prosa de ficção regionalista, tão aceita no passado
em toda América Latina, dadas suas características documentais e a proximidade
cultural do povo e da localidade, sociedade ou comunidade, se desdobrou para
sobreviver. Scorza, por exemplo, assim como Márquez, incorporariam nela um
“universo onírico” e a que outros teóricos chamam “mágico”, “maravilhoso” ou
“fantástico”. Para resistir, o deslocamento provocado pelo choque de cultura,
estudado pelas brasileiras Lúcia Miguel-Pereira e Flora Süssekind, delineia, o
momento exato da transculturação, como fotografia em que se faz possível perceber
os limites entre as culturas em contato se diluindo (aculturações), e se
retransformando (transculturações). Fazem-no também através das considerações
sobre a inserção dos dados autobiográficos nos romances e o movimento do
universal para o particularíssimo (em busca de um nacional), tanto na literatura
scorziana, assim como nas outras latino-americanas contemporâneas, de maneira
geral:
Note-se, portanto, se não estou enganado, que tanto Lúcia Miguel-Pereiraquanto Flora Süssekind, de modo diferenciado – sublinhe-se –, estabelecemestreitas relações entre o déficit estético do romance regionalista e o déficithistórico-cultural, por assim dizer. Não me parece exagero dizer que ospontos de vista das duas autoras se tornam complementares se tivermosem mente a seguinte formulação: a condição problemática do paísdeterminaria não somente uma espécie de movimento endógeno de nossaevolução literária (de fora para dentro), na procura de nossas peculiaridadese particularidades mais significativas, mas também determinaria que omovimento desta busca endógena de peculiaridades tomasse uma formaliterária próxima ao documental, de uma linguagem que de alguma maneiraprocura reduplicar um referente em detrimento dos aspectos
92
especificamente ficcionais do discurso literário; no horizonte desta supostaestética da objetividade de nossas peculiaridades estaria presente atentativa de forjar identidades para o país e para a nacionalidade, as quaisencontrariam no romance regionalista um dos estágios de expressão dessaidentidade. (GIL, 2008, p.188)
Há ainda outras revoluções scorzianas que aproximariam a espantosa doença
de Garabombo em Garabombo, o Invisível (1975), ou antes, a invisibilidade do
indígena apenas aos estrangeiros, mas não aos de sua própria gente, no plano da
imagem e do conteúdo, ambos representações de um signo recuperado, esvaziado
e remodelado, através da utilização de elementos oníricos trazidos da inconsciência
para a consciência (busca por um passado mais ancestral) e vice-versa (busca um
passado mais próximo e alinha-se ao presente urbano, direcionado para o futuro).
Então todos comprovaram que Garabombo era verdadeiramente invisível.Antigo, majestoso, interminável, ele avançou em direção à Guarda deAssalto que bloqueava a Plaza de Armas de Yanahuanca. Só cães nervososhabitavam a fria solidão. Vinte guardas, com os capotes levantados contra oaquilão, defendiam a descida do rio Chaupihuaranga (SCORZA, 1975,p.11).
Processo similar a este está na coroação de Nicolás Centenario pelos vaga-
lumes, que lhe cobrem todo o corpo, trazendo-lhe a morte libertária e a
transformação em mártir ou ainda uma chuva de peixes schulla, de formatos fálicos,
que excitam sexualmente os indivíduos cholla em A Dança Imóvel. Porém, como já
dito anteriormente, não apenas o fato de utilizar-se de certos recursos e estratégias
que fazem parte do universo do metafísico, inexplicável, incomensurável, onírico,
inconsciente, maravilhoso, impossível, mágico ou inominável justifica a
caracterização da obra de Scorza como heterogênea e tranculturadora narrativa. O
fator que merece destaque de crítica é que a revolução scorziana, em seu fazer
literário, está na proposta da diminuição da perda cultural (considerado o momento
de choque entre culturas já uma aculturação inicial na comunidade cultural
dominada) quando da tradução entre meios orais ou ágrafos para uma cultura
grafada (como já observado por CORNEJO POLAR, 2000). O autor, através da
utilização de imagens e situações hiperbólicas que, ao emergir do pensamento,
completam o significado da palavra, ilustra, sua sociedade através de um símbolos
culturais recém-transculturados. O condor (símbolo nacional peruano da renovação
93
da vida), o jaguar (representando a liberdade, força e religiosidade a cultura das
incorporações dos líderes espirituais em outros animais), o índio invisível
(Garabombo, o invisível), o rio congelado no tempo (Bom dia para os defuntos), o
corpo de Nicolás banhado de ouro pela luminosidade dos milhares de vagalumes (A
Dança Imóvel), todos são ícones que carregam conteúdos culturais, podendo ser
esvaziados de significado para ser preenchidos com outros significados totalmente
diversos ou apenas modificados em relação ao conteúdo semântico original,
podendo manter, inclusive linguisticamente, forma, significado e/ou sonoridade. A
esses efeitos textuais, talvez pudéssemos chamá-los apenas de “imagens culturais”,
já que contêm, como uma palavra-valise ou um curinga semântico, aspectos
culturais não condicionados exclusivamente à escrita e sua prática.
3.3 A revolução sociocultural do intelectual latino-americano e a literaturacomo crítica
Os autores latino-americanos contemporâneos expõem claramente suas
ideias e posicionamentos de acordo com sua visão do social, do continental e do
mundial (mundo ocidental). Um marcador perceptível de que os intelectuais latino-
americanos participam tão ativamente da política quanto da arte está na literatura e
nas demais suas manifestações artísticas. Juan Rulfo, por exemplo, em O galo de
ouro e outros textos para cinema, de 1980, dizia, na sinopse do filme, algo que
desvenda a narrativa e a imagem na ideologia e a sensação de estranhamento e
deslocamento do indivíduo cubano (e latino-americano) diante do mundo moderno,
por onde perpassam sentimentos afins relacionados às angústias advindas das
ditaduras sofridas pelos seus autores americanos latinos:
Embora este filme contenha uma série de cenas aparentemente desligadas,o conjunto é a consequência da alienação produzida num enfermo, no qualé aplicado, através do procedimento clássico intravenoso, um líquido cujaFÓRMULA SECRETA em vez de reanimá-lo, o afunda mais e mais naprostração e o leva por túneis escuros, onde só aflora um mundo de miséria,de dor, de angústia e de pânico. (...) Por outra parte, trata-se de uma experiência. E ao apresentar, atravésde imagens, determinadas situações nas quais predominam a sátira, asolidão e as forças compulsivas às quais é arrastado qualquer homem cheiode carências num país influído pelo automatismo e a técnica maquinista,
94
este homem, pobre e ignorante, logicamente tem que se sentir deslocado(RULFO, 2000, p.87)
Ora, sendo a América Latina um enorme espaço literário em que diferentes
vertentes artísticas coexistem, unida pelas línguas e costumes comuns, passados
comuns, considera-se o multiculturalismo e a pluralidade de estilos nela constante
termos muito bem forjados para caracterizá-la. É curioso notar que a
heterogeneidade da literatura latino-americana está inserida não só nos grupos
sociais periféricos, como os indígenas, rurais e/ou outros, suas tradições, mas
principalmente no processo de ruptura sociocultural e uma posterior ressignificação
dos signos culturais através da linguagem, conteúdo e forma; assim, o discurso do
dominante alavanca os outros discursos culturais subalternos, autênticos ou
fabricados, pelo viés do excluído da história (CORNEJO POLAR, 2000).
Pelo mesmo raciocínio, note-se, em A Dança Imóvel, que a selva amazônica
é o indício emblemático de um mundo natural absoluto, como um deus geográfico e
biológico, sobre a qual o homem urbano e civilizado não tem poderes para subjugá-
la. Os índios das etnias campa e chamas estão integrados à natureza, em
irmandade cultural e religiosa e, portanto, podem dela desfrutar. O rio, o sol, a selva,
animais e plantas são seus aliados. Em contrapartida, Nicolás, ao trazer para a
natureza seu mundo civilizado, moderno e urbano, é duramente castigado por ela, e
aprende que não pode controlá-la ou dominá-la, nem utilizar-se dos mesmos
artifícios ou repetir discursos e ações de sucesso no jogo pelo poder, o qual está
acostumado a experimentar, tanto como algoz quanto como vítima, em seu limitado
mundo. São culturas em choque os nativos em harmonia com a natureza e o
urbanoide, que desconhece seus segredos e sua riqueza e por isso mesmo
despreza-a, pois é para ele indomável e, estando de mãos atadas, resta-lhe apenas
explorá-la, conforme os preceitos apreendidos em seu passado colonial, onde
residem as heranças e os legados de tais ignorâncias.
Manuel Scorza aproveita-se de sua condição de autor para utilizar a literatura
como instrumento de conscientização política, propagação da crítica literária, além
de fragmentos filosóficos advindos de um fluxo contínuo de pensamento. Pois,
Scorza, sendo autor e manifestante, por exemplo, ao concluir a pentalogia de
novelas de A Guerra Silenciosa, composta por cinco novelas publicadas
originalmente entre 1970 e 1977, (sobre o confronto dos campesinos comuneros do
95
pequeno povoado de Rancas, no Vale Central do Peru e invasores imperialistas de
uma multinacional canadense), dado o alcance de sua literatura, não só pela
linguagem sedutora e democrática de que se utiliza, mas também por toda uma
cultura que deixa viva nas páginas das baladas, testemunhou, ainda, em vida, a
reforma agrária na região, palco de sangrentos massacres, e muitos hectares de
terras foram devolvidas aos seus habitantes nativos.
Em A Dança Imóvel, de 1983, pode-se ver na ironia do editor, no restaurante
La Coupolle, a ardente crítica sobre a literatura latino-americana e sua função de
guardiã e atualizadora cultural é entrecortada por vários episódios, acidamente:
- Os leitores de literatura latino-americana vivem nos pântanos do erro.Inclusive os criadores, os garcía márquez, os carpentier, os borges, osvargasllosa, os sábato, os rulfo, os spota e outros habitantes dessa Manchacujos nomes prefiro não me lembrar, acreditam mostrar a profunda AméricaLatina. Na verdade, não expressam a estrutura subjacente, conflitada porsintagmas sempre desafortunados. Os criadores são sempre inconscientes.Cervantes não sabia que era o autor do Quixote...(SCORZA, 1983, p.19)
Em outra ocasião, explica não só o papel da literatura, como também do
intelectual ou autor que a produz, quando se refere a Salvador Allende45, no diálogo
dos personagens Santiago e Marie Claire, por exemplo:
- Será que Allende sonhou muito alto? – perguntou-me.- Nunca se sonha muito alto.- Não se pode fazer política e poesia ao mesmo tempo – definiu ela.- Pelo contrário: é imprescindível fazer política e poesia. Quando um
revolucionário não é um poeta, termina por ser ditador ou burocrata, umdelator dos próprios sonhos... (SCORZA, 1983, p.47)
Alejo Carpentier, por sua vez, também é um desses autores em que autor,
obra e vida possuem muitos pontos em comum. Dono de uma aguçada sensibilidade
musical, da mesma intensidade que a agudeza de suas críticas, ele aproveita seu O
músico em mim, de 2000, para tecer uma forte crítica da arte, a partir de textos de
outra natureza, ou melhor, de artigos jornalísticos relacionados à música, tanto em
Cuba quanto na Venezuela, durante as décadas de 1950 e 60. Já em O Recurso do
45 Salvador Allende (1908-1973). Médico e político marxista chileno. Fundador do Partido Socialista,governou o Chile de 1970 a 1973, até ser deposto por um golpe de Estado liderado por AugustoPinochet, chefe das Forças Armadas chilenas da época.
96
Método (1985), utiliza-se de ironia e sarcasmo, além de uma crítica posicionada que
usa o mesmo drama latino-americano de repressão e ditadura no romance. Mas é
mesmo com O Cerco (1988) e Os passos perdidos (2009)46 que Carpentier mais se
aproxima de A Dança Imóvel de Scorza (1983), em matéria de crítica social e
ideológica, através de uma novela cujos fragmentos narrativos parecem estar fora
de ordem ou de senso para montagem da história da revolução pelo leitor:
EXPRESSO. Procedência: Sancti-Spíritus. A mão largou o inútil pincel debarba que serviu para traçar vistosamente as palavras com tinta nanquim. Oprotegido se contempla a si mesmo, naquele instante decisivo de sua vida.Vê-se atarefado em meter coisas dentro do velho baú, trazido para a ilha, hátantíssimos anos, pelo avô emigrante. Os parentes e amigos que o cercame logo o acompanharão à estação deixaram, esta manhã, de se mover nopresente. Suas vozes lhe chegam de longe, de um ontem que se abandona(CARPENTIER, 1988, p. 35).
No primeiro, o romance do cubano preso durante a ditadura de Gerardo
Machado até 1931, conta também a história de um revolucionário que é preso
durante o movimento opressor. Protagonistas, narradores e os próprios autores são
confundidos várias vezes, pois acabam por ter uma imagem parecida, já que as
coincidências estão além da história. No segundo, um musicólogo, ao desistir de
uma triste e difícil realidade de vida em Nova York, decide coletar instrumentos
musicais indígenas em regiões ainda isentas da “civilização” na região florestal do
Rio Orinoco, inspirado na experiência própria do autor e vivenciada no interior da
Venezuela. A vontade de fugir cada vez mais para dentro de um passado, mais para
longe de todos os passos perdidos da humanidade, de todas as mazelas
latinoamericanas, todas as guerras, desmandos, torturas, escravidão e opressão é
também uma resposta clara ao azedume e repulsa trazida pelos efeitos colaterais e
econômicos da era moderna, representada tanto pelas vozes e discursos
hegemônicos de colonizadores e ditadores.
Já García Márquez, em Do Amor e Outros Demônios (1994), narra, ao final do
século XVIII, as dificuldades de um amor proibido (mas consumado) entre o padre
Cayetano Delaura e a jovem de cabelos que jamais seriam cortados até o dia de seu
casamento (simbolizando também a pureza e a virgindade), Sierva María de Todos
los Ángeles, em meio à tensão crescida entre escravos africanos e seus rituais
46 O original foi publicado em 1963.
97
sagrados, feitiçarias aos orixás e a força da Inquisição e os exorcismos de
despossessão dos demônios da qual acreditam ser a moça inquilina ou veículo. A
sociedade colonial vestia-se de carrasco que matava os deuses dos outros para
erguer o seu próprio. As regras, as incoerências, as proibições e os tabus e
principalmente, o desrespeito à cultura do outro, promovidas pelos choques entre as
crenças religiosas e mitos de criação mostram um caminho a ser evitado, libertar-se
do passado para reorganização do presente social. Os choques dos grupos culturais
estão presentes entre a relação dos dogmas religiosos do catolicismo (também
utilizado para manutenção e controle do poder) e das crenças religiosas africanas.
Também o venezuelano Uslar Pietri, em As Lanças Coloradas, de 1977,
reescreve a epopéia de Bolívar em que se harmonizam os planos sociológico e
psicológico em linguagem poética e denuncia as perseguições, analisa a rebeldia
dos escravos e o fanatismo religioso, fazendo brotar nos oprimidos a ideia de
liberdade e, na classe média venezuelana, o sentimento de independência e a
concepção de pátria. Através dos protagonistas Fernando Fonta e Presentación
Campos somos presenteados com o entrelaçamento do drama individual e do
quadro histórico da Venezuela.
No entanto, a despeito das revoluções mais políticas e militantes,
propriamente ditas, está a que Borda (1968) considera uma “revolução das
expectativas”, que determinava, segundo o estudioso, o desenvolvimento da
comunidade:
Quando este movimento foi introduzido pela primeira vez na América Latina,na década de 1950, previam-se grandes mudanças. No entanto,excetuando-se sua aplicação em contextos totalmente revolucionários comoos de Cuba e Bolívia, ou o do México na época das “missões culturais”, estemovimento resultou num outro caso típico de mudança marginal,frequentemente simulado. Teve, sobre a sociedade, efeito similar àconseqüência enganosa da coca sobre o estômago. (BORDA, 1968, p. 83).
O próprio Scorza, em Cantar de Agapito Robles (1979) ilustra o processo da
disseminação artístico-literária dos países da América Latina por todos os
continentes, em tentativa de delimitar uma gigantesca área cultural, na qual estão
igualmente representadas as diferenças de cada ilha cultural (ou comarca, como
queria Rama), e sua crítica, além de explicitamente ideológica (anti-imperialista, já
98
que obviamente parte de uma rádio cubana), denuncia a oligarquia e o monopólio de
terras na cordilheira dos Andes:
Aqui Rádio Cuba, de Havana, Cuba, primeiro território livre da América, umprograma em quíchua destinado aos camponeses do Peru, Equador eBolívia.Um sorriso de orgulho infantil iluminou o rosto dos procuradores sentadosem torno do rádio transmissor do Coxo.
(...) Comuneros da Cordilheira dos Andes, de Cuba mais uma vez nossoapoio revolucionário no combate que travam contra a oligarquia peruana aserviço do imperialismo. Esse combate é fundamental para os destinos doPeru e da América. Fundamental, sobretudo, para implantar a justiça numpaís oprimido por uma oligarquia medieval que monopoliza a terra do Peru.As cifras são claras.
(...) As próprias fontes de informação de origem burguesa admitem os fatos.Cinco por cento dos proprietários açambarcam 95 por cento da terracultivável do Peru, e 95 por cento dos camponeses sobrevivem, nascondições mais miseráveis em 5 por cento das terras (SCORZA, 1979,p.161).
Uma outra conclusão que deve ser levada em consideração é a diferenciação
entre a modernidade e a pós-modernidade. As prosas de ficção contidas nas cinco
novelas pertencentes à Guerra Silenciosa (de 1970 a 1977) estariam realmente
ligadas a uma transculturação narrativa cujo presente se lança à modernidade. Já
em A Dança Imóvel (1983), a fase de transição do presente para o futuro caminha
para a pós-modernidade, apesar de defender o ponto de vista de que é apenas uma
aceleração maior desse período nesse trajeto temporal, em que a tecnologia, a
globalização e a era da informação são realidades cada vez mais assustadoramente
velozes.
Cortázar (2001), que percebe as vertentes literárias regionais e crítico-
realistas urbanas do modernismo, representante crítico e literário da comarca
pampiana, defende seu pensamento reagindo a críticas redutoras da literatura
americana latina pela percepção de que a arte narrativa do continente ultrapassa
qualquer consideração a respeito da necessidade de indicadores definidores prévios
para limitá-la, uma vez que já a considera livre e coberta de suas próprias cores e
pernas:
Sem temor de criar mal-entendidos, posso afirmar desde já que a mais vivae a mais fecunda é uma literatura que já não precisa da proteção ou da
99
etiqueta do típico, do pitoresco, do paroquial em qualquer de suas formas,porque possui força e experiência suficientes para mostrar suasinconfundíveis origens e raízes sem ter de refugiar-se numa temáticaexclusivamente nacional ou regional. Nossa linguagem logrou umamaturidade estilística, uma riqueza de invenção, uma variedade demetamorfoses e permutações que lhe permitem abarcar tematicamente oshorizontes mais vastos sem deixar por isso de ser extremamente latino-americana. Basta ler sucessivamente um romance de Juan Carlos Onetti,um de Gabriel García Márquez, um de José Lezama Lima e um de AugustoRoas Bastos, citando apenas alguns grandes nomes, para se ter a provamais vertiginosa e conclusiva da abertura e da diversidade literária nocontinente latino-americano. (CORTÁZAR, 2001, p.183-184).
Outro aspecto relevante da literatura scorziana e da produzida na América
Latina, como um todo, é a função crítica nela presente. Se Compagnon (2010),
considera como funções da literatura a instrução e o agrado (recepção) de acordo
com o modelo humanista vigente à época,
Aristóteles considerava-a um conhecimento especial, dissociado dosconhecimentos científicos ou filosóficos, portas para a compreensão para ocomportamento humano e a vida social. Sua voz está no discurso, pode sercontra ou a favor da sociedade dominante, ser sincrônica, diacrônica emrelação à história, ou mesmo antecipá-la (COMPAGNON, 2010, p.37).
Hoje, além do exposto, a literatura é considerada arte, diversão, ludismo,
conhecimento, transdisciplinaridade, legado cultural, parceira, amante ou assassina
da história, receptáculo cultural dinâmico que pode atualizar a memória e a história
dos povos e este é o motivo por que precisamos urgentemente incluir, para o
continente sul-americano, ainda nela, as funções política, social e crítica, pois que
move seus leitores e leva-os a uma conscientização socializante a respeito do ser
consigo mesmo, o ser em sua comunidade, e o ser no mundo. O grande trunfo da
literatura latino-americana é ter alcançado, a partir da literatura da era moderna
contemporânea, em que percebemos as transculturações narrativas com maior
facilidade, a autoconsciência de seu papel e de seu alcance e a autonomia para
reinventar-se.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Livros e terras
Este estudo caminha na direção de trazer outro olhar à literatura latino-
americana, pois que ela mostra-se muito mais que somente uma literatura
panfletária ou imaginativa (mágica, maravilhosa, fantástica). O depreciosismo que
advém desses rótulos (e todo rótulo é impreciso e preconceituoso) parece localizá-la
e caracterizá-la como uma literatura menor no Ocidente.
A obra de Scorza aqui estudada é compreendida como representante literária
latino-americana e seu conteúdo, forma e expressão autoral são analisados, antes
de recair sobre julgamentos precipitados e incompletos a respeito de sua qualidade
literária.
Parece-me que essa necessidade de rótulos e outros adjetivos inadequados à
literatura latino-americana age como diminuidora de sua alma artística e configura-
se como obstáculo para uma análise antropológica e sociocultural mais profunda.
Além disso, compromete ainda a fruição e a percepção das formas criativas de
composição. Ainda, essa delimitação crítica da literatura latino-americana em torno
de suas características mais gerais, dada sua vasta heterogeneidade, incorre na
inevitável situação de conter mais exceções que regras. Para agravar ainda mais o
quadro, tal posicionamento, consciente ou inconscientemente, repete todo o
processo político, social e econômico do dominante estrangeiro (norte-americano ou
europeu) em solo latino-americano. Porque da mesma forma como o conquistador
invade as terras dos nativos do continente e as delimita, tomando-as para si,
expulsando-os, matando-os ou escravizando-os, montando bases de sua nação
dominante na nação dominada e, por assim proceder, deixar escapar a poesia e a
beleza dessa cultura e seu sujeito, também uma parte da crítica, ao demarcar essa
literatura simplificando-a em linhas genéricas, repete o discurso dominante,
analisando o sujeito sob um prisma viciado e egoísta, desconsiderando as
diferenças e criando uma espécie de colonização literária.
A metáfora comparativa entre terras e livros, mediada apenas pela linguagem,
pode vestir-se de ditaduras ou imperialismos ao invés de regressar à época das
grandes navegações e à necessidade premente de dominação, riqueza e poder à
101
custa de sangue índio, mas o efeito na literatura é sempre o mesmo: um
confinamento em si mesma e uma batalha incomensurável para libertar-se dos
paradigmas literários daqueles que foram os professores da escrita, no desejo não
só de superar o mestre, como mostrar-lhe a verdadeira face. Nesse ímpeto libertário,
as obras não podem ser analisadas apenas por sua forma e conteúdo, mas também
pelo contexto histórico e sociocultural que as rodeiam. À literatura latino-americana,
é impossível não ser política, como impraticável não ser imaginativa. Ser apenas isto
é ser diminuída pelos diminutos e ratificar o discurso opressor do dominante,
desprezando o melhor da história.
Felizmente, aqueles que deixaram de observar que a literatura latino-
americana é muito mais do que dizem, abriram as portas para que autores como
Scorza ou Arguedas, por exemplo, pudessem apropriar-se dela para utilizá-la como
instrumento de crítica social e literária, aprofundada na existência humana.
Fundação Biblioteca Ayacucho
A intelectualidade e desejo de fortalecimento da cultura latino-americana
afloram nas idéias e ideais de Ángel Rama. O esforço e mérito por conseguir dar
unidade ao que considerou sistema literário latino-americano, nele incluindo, pela
primeira vez, o Brasil, apesar da barreira linguística entre as línguas portuguesa e
espanhola é todo dele. Ao considerar a pluralidade e heterogeneidade das regiões
culturais (e não limitadas às demarcações oficiais políticas de cada nação) que
mostram afinidades na origem, no passado, nos costumes, como partes de um todo
coeso, através de seu conceito de comarcas culturais, Rama deu forma a um
enorme arquipélago cultural e construiu canoas, entregando seus remos aos autores
latino-americanos para que houvesse escambos literários entre suas diversas e
múltiplas ilhas.
O projeto de Rama tem imensa colaboração de Antonio Candido, que definiu
a importância da comunicação e da relação entre autor-leitor-obra, sistematizando-a
sociologicamente, para o caso brasileiro. Rama utilizou o modelo de Candido para
toda a América Latina. A contrapartida de tal empreitada se deu na criação da
Biblioteca Ayacucho, em 1974, na Venezuela, onde Ángel Rama foi seu idealizador e
102
primeiro coordenador / diretor. Convém destacar para sua consolidação a
contribuição de Darcy Ribeiro, tanto nos prefácios de obras latino-americanas
quanto na indicação de obras brasileiras a figurarem no acervo da Fundação,
traduzidas para a língua espanhola (COELHO, 2013)47.
Vale lembrar que não só a competência crítica e/ou literária dos brasileiros
auxiliou o processo de unificação literária entre os latino-americanos, conforme
queria Rama, mas também suas aptidões sociológicas e antropológicas para melhor
definição dos parâmetros do sistema a ser estabelecido e seguido, além das
escolhas das obras dos autores brasileiros a serem incluídas na Ayacucho. É como
tentar responder às perguntas: quais são nossos melhores representantes literários
e por que, que temas transversais perpassam nossa arte?
A importância da Fundação Biblioteca Ayacucho para a América Latina é
indiscutível. Hoje, 41 anos após sua fundação, podemos acessá-la na internet em
http://www.bibliotecayacucho.gob.ve e observar que contém inúmeras obras para
download gratuito, em formato digital (pdf), mantendo as obras originais para
consulta. Com áreas do conhecimento que vão desde a Antropologia, Etnografia,
Etnohistória até Cultura Indígena, além de funcionar como um canal de notícias e
acervo de obras que nos permitem estudar mais a fundo a história da América
Latina, encerra títulos que vão desde Inca Garcilaso de la Vega (“Comentarios
Reales I” e “Comentarios Reales II”), cronista e historiador mestiço, nascido em
Cuzco (1539-1616), capital do Império Inca, até Pablo Neruda, em seu “Canto
Geral”, ou ainda Símon Bolívar, em sua “Doctrina del libertador”, ou em seu
“Pensamiento político de la emancipación”. Funcionando como patrimônio cultural da
América Latina, não há maneira de discordar do disposto em sua página eletrônica:
A Biblioteca Ayacucho assume a missão de assegurar o cumprimento cabalde um projeto editorial que garante a preservação e difusão da memóriadesta América, colocando à disposição os diferentes públicos leitores emdiversas coleções e formatos.48
47 Ensaio produzido por Haydée Ribeiro Coelho, intitulado “O papel do intelectual, a cultura e a BibliotecaAyacucho: Antonio Candido, Ángel Rama e Darcy Ribeiro”, que figura na coletânea de ensaios “Ángel Rama:um transculturador do futuro”, publicado em 2013, pela editora UFMG, p. 119-135, organizado por FlávioAguiar e Joana Rodrigues.
48 Tradução. Original disponível em (http://www.bibliotecayacucho.gob.ve/fba/index.php?id=4)
103
Possui sete coleções, disposta em “Coleção Clássica”, que contém autores e
textos fundamentais da América Hispânica pré-colombiana; “Chaves da América”,
composta de antologias ou versões reduzidas da Coleção Clássica; “A Expressão
Americana”, composta de memoriais, biografias, antologias e outros materiais
pessoais e subjetivos, de natureza ensaística; “Chaves Poéticas da América”, que
engloba os processos políticos do continente; “Futuro”, que contempla a atualidade
inovadora e inclui antologias regionais; “Paralelos”, que complementa os alcances
da Coleção Clássica; e “Coleção Prólogos”, considerada como um conjunto de
textos que iluminam outras obras, ordenados tematicamente. Assim, a Fundação
Biblioteca Ayacucho representa um marco editorial da literatura americana-latina, e a
persistência de Ángel Rama em criá-la e consolidada tem sua recompensa na
avidez e descoberta de leitores, pesquisadores, estudiosos, escritores e críticos.
Embora não se encontre pela ferramenta de busca no portal da Biblioteca
Ayacucho qualquer obra de Manuel Scorza, imagina-se aqui que tal fato deva-se a
questões de legislações relacionadas ao domínio público e direitos autorais, pois
não faz sentido um autor da magnitude do peruano não ser contemplado com o
acesso livre a pelo menos uma de suas obras. De qualquer forma, conforme previu
Antonio Candido, é no reconhecimento de instituições de suporte, como as casas
editoriais, que se fortalece um sistema literário, e isso é bem representado pela
Biblioteca Ayacucho.
Críticas à transculturação de Rama
Embora há quem diga que Rama compreende o uso da palavra escrita como
mecanismo privilegiado em detrimento das demais manifestações culturais ágrafas e
corra o risco de causar desterritorializações e desmaterializações por conta disto,
como o crítico Gustavo Remedi, citado por Ligia Chiappini, em seu ensaio “Ángel
Rama e Antonio Candido: teoria, utopia e antropologia” (CHIAPPINI, 2013)49, há de
se utilizar o bom senso antes de atacá-lo antropologicamente.
49 Presente em “Ángel Rama: um transculturador do futuro”, publicado em 2013, pela editora UFMG, p. 47-78,organizado por Flávio Aguiar e Joana Rodrigues.
104
Em primeiro lugar, precisamos separar o ideário do ser humano entre
competências e lazer. Rama é escritor, crítico, intelectual, sua competência é a
literatura e a crítica, e o termo ‘transculturação narrativa” não é aleatório. Se ele
estuda os processos culturais dentro da literatura e utiliza como corpus de pesquisa,
a literatura escrita, como culpá-lo por não estudar as narrativas orais? Quem já
andou a metade do caminho e possibilitou que o crítico andasse a outra metade,
poderia ser culpado por não andar o caminho inteiro?
Quanto à desterritorialização e desmaterialização, essa é uma inevitabilidade
do mundo, um efeito da globalização e da era da informação que a modernidade,
mascarada de progresso tecnológico, vem buscar, como um ávido cardume de
piranhas. Rama observou a guarda da cultura, assim como suas hibridações e
miscigenações, através das palavras, e não poderia tê-lo feito de nenhuma outra
forma. Ainda assim, admitiu perdas, e sua transculturação narrativa busca no
passado distante, pela escrita como instrumento e testemunho, a primalidade
modificada da cultura. Separada do presente, e somada à pesquisa-vivência dos
autores literários, ela é quase pura ou autêntica. Mas Rama não busca autenticidade
cultural, simplesmente. Trata, antes, de uma coerência social e cultural, as
imbricações do ontem e do hoje, o que se perde, o que se ganha e o que se recicla,
literariamente, em que o fato e o sintoma são mais importantes que sua causa,
normalmente tratada num plano absoluto.
Imagino que Rama trata a palavra escrita como um link ao passado cultural, e
o despertar para uma ancestralidade ou um passado mais recente dependerá
sempre do momento presente, espaço cabido ao leitor, entre selecionar para
esquecer ou guardar e ir além onde o espírito curioso o guie, ou simplesmente
descartar e abraçar o novo sem olhar para trás – embora o fato cultural esteja lá,
grafado, como registro ficcional ou não. São escolhas do leitor crítico e do crítico
leitor. Se há muitas outras formas de se entender a transculturação, Rama se
dedicou a esta, escrita e literária, e não há como criticá-lo negativamente por isso.
Devíamos felicitá-lo por desenvolver teorias e trabalhar pelo social, mesmo porque,
às suas idéias, acrescentam-lhe outras os críticos, negativa ou positivamente, mas
apenas somam, não criam exatamente nada de novo, reclamam do que Rama
deveria ter previsto, mas não apresentam soluções para os problemas que envolvem
a oralidade e a escrita.
105
A respeito ainda da escritura e das manifestações culturais ágrafas, Cornejo-
Polar (2000), nos alerta sobre as traduções interessadas dos registros históricos
também dos cronistas, sejam europeus, mestiços ou nativos, em relação à morte de
Atahualpa, imperador inca, quando da chegada de Pizarro a terras andinas. Cornejo-
Polar analisa, mas adverte desde o início que sua competência para analisar a
dança e a interpretação, por exemplo, e suas inúmeras e diversas formas de
analisá-la, foge à sua alçada. As múltiplas versões de um mesmo fato moldam um
todo. Se o todo é desequilibrado para o lado do dominador, isso, além de ser uma
outra história (ou melhor, uma história incompleta), não faz parte das competências
literárias.
Há tempos, à literatura é atribuído um papel maior que a informação, diversão
e registro. Se a própria história, por sua parcialidade inconteste, não dá conta de
abarcar o passado, seria esta função atribuída somente à literatura? Em tempos de
unirmos nossas ciências humanas (todas desenvolvidas pelo ser humano e não só
as da área de conhecimento específicas) para buscar a razão da existência e
adentrar o desconhecido, delegar uma responsabilidade dessa somente à literatura
não seria um exagero?
Como na Farmácia de Platão (DERRIDA, 2005), o bom-senso impera em
relação à escrita e a oralidade. A palavra, livre-arbítrio da comunicação dos
humanos, reveladora do íntimo de quem a escreve, como legenda de um
pensamento ou de uma cultura, assim que escrita, pode promover tanto o
esquecimento como a lembrança, dependendo de seu uso. Sendo um phármakon, é
remédio e veneno, ao mesmo tempo, pois atualiza o passado (cura) assim como não
traduz com fidelidade a cultura sem escrita (veneno). No presente estão aqueles que
buscam, errantemente, uma concentração ótima de tal substância, que só pode ser
assimilada numa relação com o tempo. Portanto, não se trata de atrelar à escrita, e
muito menos à literatura, a responsabilidade única de arqueologizar a cultura. Nós,
latinos, assim o fazemos, transculturalmente, às vezes, e essa é nossa afinidade
cultural, que há poucos anos atrás, davam o nome de ‘identidade’ e que hoje caiu
em desuso (BAUMAN, 2005). Não significa que a literatura fique estática, sua função
mais importante permanece sendo a de libertação. É a liberdade de narrar, poetizar
e representar o mundo e a forma em que vivemos nele socialmente, e ainda a
faculdade de auto-conhecimento e auto-consciência quando entramos na realidade
106
do outro, esse grande outro, o texto, gente em palavras. O que deve ser
compreendido nesse ludismo teórico é que o phármakon de Derrida não remonta à
mesma oralidade que Scorza e as literaturas transculturais trazem à luz das
narrativas escritas, mas serve de catalisador da consciência histórica do ser, no
caso, latino-americano. Em textos e contextos diferentes, os dois autores buscam a
vivacidade da tradição através dos escritos; Scorza transforma mais palavras em
cura que veneno, são caminhos diferentes e a metáfora derridiana da substância
e/ou beberagem da história é utilizada aqui para completar o sentido da força sócio-
cultural presente na literatura latino-americana.
Scorza e a máquina de sonhar
Manuel Scorza relatou em uma de suas entrevistas que a literatura é uma
máquina de sonhar. Utilizou-se do termo “onírico” para se referir às manifestações
que iam de encontro ao inconsciente coletivo de uma sociedade. Mais do que isso,
considerou que a história onírica, que revela a cultura e o andamento da sociedade
peruana, aumentada para toda a América Latina, é indissociável de sua história
política.
Scorza faz uma ponte de seu presente pessoal e social ao passado de forma
tão auto e biográfica que o âmbito desta pesquisa viu suas chances de aprovação
caírem pela metade. Ao mesmo passo que sua discrição e reserva pessoais são
latentes em solos brasileiros, da mesma forma não me foi possível adentrar algumas
situações interessantes de sua vida, como por exemplo, o período em que viveu em
São Paulo, SP. Portanto, os achados acerca do autor foram selecionados de acordo
com o que há na rede, aberta a todo os leitores, disponíveis na bibliografia e
também como anexo deste trabalho (em CD). Como se tratava de um caso de
perseguição política, exílio e fuga, a questão ética de preservação à integridade
moral do indivíduo e sua família ficou em primeiro plano, de forma que todas as
demais intuições ficaram no plano das relações entre obra e recortes de vida, só não
descartadas porque legítimas, possíveis.
A discussão em torno dos temas Amor e Revolução, firmemente defendida
por Scorza em A Dança Imóvel, abordada neste estudo, trouxe grilos, pirilampos,
107
louva-a-deuses e pulgas em relação à sua biografia. Por se tratar de possibilidades
e não de certezas, não tratei delas, especificamente. Foram utilizadas outras formas,
como o artifício do sarcasmo, a ironia, ou o uso do que considera história onírica,
para sintonizar o tempo do narrador ao tempo do autor.
A comparação, até certo ponto divertida, com nossos amigos insetos,
simboliza a grande variedade de classes urbanas dominantes, o falso deslumbre de
uma sociedade moderna e o raio-x do exame de Scorza em relação aos grupos
minoritários peruanos, revolucionários, minoritários, contra a invasão explícita de
uma política imperialista inadaptável ao Peru (como em grande parte dos países
latino-americanos), à época.
Revoluções scorzianas
As revoluções scorzianas começam entre o ciclo de baladas conhecido por “A
guerra silenciosa”, composta de cinco novelas, iniciadas em 1972, e finalizadas em
1977, e vão até a “A Dança Imóvel”, de 1983. O costume à linguagem do autor nos
dá a entender que também sua última novela seria parte integrante de um conjunto
narrativo, embora não tenha tido tempo de finalizá-la.
Fica, portanto, uma certa mágoa por não poder realizar a pesquisa in loco, por
não encontrar materiais fidedignos e/ou pessoas que conheceram Scorza, a fim de
desvendar tal mistério: A Dança Imóvel é um romance ou seria parte integrante de
uma obra maior? Como a dúvida traz mais respostas do que perguntas, da mesma
forma que pareceu-me inútil suscitá-las, já que o autor não se encontra mais entre
nós para atestar as suposições aqui plantadas, foi considerada a ficção e a suposta
realidade sobre a vida do autor como iguais. Além disso, foi assimilada também uma
outra história, e talvez esse termo não seja adequado, “outra”, mas complementar,
para os absurdos cometidos contra o povo peruano. De qualquer forma, é
perceptível uma enorme diferença entre suas obras regionais anteriores e esta
última, bem urbana. Como previsto por Rama, a transculturação narrativa busca na
linguagem, na composição literária e na busca do passado um phármakon para o
presente. Salienta-se aqui que a cultura da América Latina ser um phármakon não
representa, afinal, um obstáculo: damo-nos por satisfeitos de poder, através de uma
consciência social (um dos papéis da literatura), perceber a escrita e optar, individual
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e/ou coletivamente, por suas funções medicinais ou tóxicas, em suas manifestações
históricas e socioculturais no tempo. Neste último romance, deu-se de forma dividida
entre as relações urbanas / rurais, do universal para o localíssimo, e do externo
(França) para o interno (Peru, mas não só; funciona como um geral para toda a
América Latina).
Em relação às transculturações narrativas, há de se compreendê-las em
sistemas de gradações. Há obras em que são mais facilmente observadas, em
outras, vemos sua sombra. O que me parece novidade é que quanto mais furiosa é
a aceleração do tempo diante da modernidade, maior ou mais profunda será a busca
do passado e mais visíveis serão as transculturações narrativas, e mais
antropológica e social se torna a literatura.
Cabe destacar as revoluções de Scorza: além de um estilo único, só
percebido para aquele que se habitua à sua linguagem, três pontos importantes.
Um, que a literatura é e sempre será política, em menor ou maior grau. Quando
participou do levante do povoado de Rancas (Ciclo de Baladas de 72 a 77), o
alcance de sua literatura foi gigantesco. E então, por estratégica política ou não, as
denúncias contidas no romance do autor foram consideradas e uma interessante
reforma agrária foi realizada no Peru, o que nos dá ideia da força política e da
responsabilidade que a literatura possui, mesmo que aqueles que lêem não sejam
os mesmos que dela se beneficiem. A exposição das mazelas a outras nações
(Scorza foi traduzido em mais de trinta países) promove mudanças. É uma
revolução mais lenta do que a contida nos romances, mas funcionou.
Dois, a revolução sexual e de gênero. Scorza trata os personagens femininos
em A Dança Imóvel de forma totalmente diferente de suas novelas anteriores. A
mulher é participativa na sociedade, intelectual, versada em artes e dialogante com
o homem, participante da construção do pensamento. Se idealizada ou não, pouco
importa. É precursor de uma discussão que só seria realmente abordada no século
XXI. A igualdade de gêneros é ainda será a grande tônica do nosso tempo.
O terceiro ponto é relacionado às biografias e autobiografias. Talvez Rama
não tenha observado o fato, mas a América Latina em peso, de meio século para cá,
contribuiu muito mais historicamente ao observar a humanidade por dentro, a partir
de seu olhar social e pessoal, de dentro de sua cultura, do que por fora. A inserção
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do autor em sua obra inclusive como personagem de si mesmo, constitui, portanto, a
última revolução de Scorza.
De todas, não cabe aqui levantar qual delas é a maior. Todas têm a marca
social e são parte de um movimento único, interrompido muito cedo.
Para finalizar, faz-se necessário voltar à questão da oralidade e da escrita,
criticada por Cornejo-Polar (2000), e do Realismo Fantástico, proposto por Todorov
(1970) como gênero literário. Scorza admite que a literatura latino-americana é rica
em imaginação, e alia a política à tal realidade por conta de causalidades e
casualidades políticas, “porque não pode realizar nada de verdadeiro”, como disse
na entrevista a Sóler, em 1977.
Há, portanto, um pensamento que não se junta aos demais, fragmentado. Na
folha de rosto, imagina-se que Scorza se referia a questões unicamente políticas,
pois de todas suas denúncias, apenas o povoado de Rancas (Peru) obteve sua
reforma agrária e os campesinos tiveram direito às terras que sempre foram deles. E
no verso, consta que, considerada a antropologia social que nos une, fictício ou
fantástico é o olhar daquele que vem de uma cultura hipotética X para ler a cultura Y,
sem entrar ou participar daquela cultura, de forma que tudo para o primeiro será
categorizado como mito ou metafísica. Nesse ínterim, há a criação do artista e a
própria cultura. Scorza cria imagens incríveis através de situações de sua narrativa,
via palavras. Uma vez grafadas, um outro estudo para uma nova pesquisa pode
brotar delas, como uma chuva de peixes, um lago parado, um cavaleiro insone, um
ser invisível, alguém que conversa com cavalos para roubá-los ou uma conversa
entre mortos no cemitério: a palavra escrita, na América Latina, carrega imagens que
se ligam mais à ancestralidade, aos costumes dos antigos, ao êxtase de não estar
mas existir, do que o próprio sentido do signo. Ela é, além de cura e veneno, um
alucinógeno potente que nos permite identificação mútua. Sua leitura não se dá
apenas graficamente, é preciso saber lê-la para alcançá-la. Ensinaram-nos a ler.
Lemos. Ressuscitamos mortos e reconstruímos fatos. E agora contamos a nossa
história.
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