DE PASTOS E PORTEIRAS: SERTANIDADES DE RENATO … · onde passou a infância. Aos 9 anos de idade...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS LINHA DE PESQUISA: LITERATURA CULTURA E SOCIEDADE DE PASTOS E PORTEIRAS: SERTANIDADES DE RENATO CASTELO BRANCO EM TEODORO BICANCA FRANCISCA ARLENE SOARES Teresina 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

LINHA DE PESQUISA: LITERATURA CULTURA E SOCIEDADE

DE PASTOS E PORTEIRAS: SERTANIDADES DE RENATO CASTELO BRANCO

EM TEODORO BICANCA

FRANCISCA ARLENE SOARES

Teresina

2012

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FRANCISCA ARLENE SOARES

DE PASTOS E PORTEIRAS: SERTANIDADES DE RENATO CASTELO BRANCO

EM TEODORO BICANCA

Dissertação apresentada ao Mestrado Acadêmico em letras na linha de pesquisa Literatura, Cultura e Sociedade, como requesito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Sebastião Alves Teixeira Lopes Coorientadora: Profa. Dra Maria Dione Carvalho de Moraes

Teresina 2012

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FRANCISCA ARLENE SOARES

DE PASTOS E PORTEIRAS: SERTANIDADES DE RENATO CASTELO BRANCO

EM TEODORO BICANCA

Dissertação apresentada ao Mestrado

Acadêmico em Letras na linha de pesquisa

Literatura, Cultura e Sociedade, do

Departamento de Letras da UFPI, como

requesito parcial para obtenção do título de

Mestre em Letras.

Área de concentração: Estudos Literários

Dissertação defendida e aprovada em:

28 de setembro de 2012

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Sebastião Alves Teixeira Lopes - UFPI Presidente

__________________________________________________________________

Profa. Dra. Algemira de Macedo Mendes 1ª Examinador

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Diógenes Buenos Aires de Carvalho 2º Examinador

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A meus pais, Siné e Marlene (in memorian),

presenças vivas em minhas horas.

A meu esposo, Orlando, companheiro de longo

curso.

Á minha filha, Isabele, minha alegria.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, farol constante da minha existência;

*

Ao Professor Doutor Sebastião Alves Teixeira Lopes, pela competente e sábia

orientação;

Á Professora Doutora Maria Dione de Carvalho Moraes, pela rica contribuição ao

longo do trabalho;

*

Aos meus irmãos, Marilene e Wilson, pelo cuidado e apoio;

Aos meus cunhados, Ednaldo e Sonia, pelas várias colaborações;

A todos os meus familiares, que, direta e indiretamente, contribuíram para realização

dessa dissertação;

Aos professores Doutores Diógenes Buenos Aires de Carvalho e Socorro Rios

Magalhães, que muito contribuíram para o desenvolvimento do trabalho;

Ao amigo Dílson Lages, pelo incentivo à construção do trabalho;

Aos amigos de turma do Mestrado de 2010, Jandira, Valdirene, Márcia, Luziane,

Douglas, Paula, Vanessa, Sílvia e Eliana, pelo companheirismo e generosidade.

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É preciso duvidar das colunas do Pantheon da beleza de Bach das fórmulas de Einstein. (...) E abrir todas as janelas para arejar o mundo.

Renato Castelo Branco

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RESUMO

Esta dissertação examina algumas do que se chama sertanidades de Renato Castelo Branco, investigando traços de identidades sertaneja/nordestina em Teodoro Bicanca (1948). Em um primeiro momento analisa-se narrativas de sertão produzidas por autores que, em épocas diferentes, traçaram-lhe um perfil. Tendo suas imagens, comumente, associadas ao Nordeste, investiga-se os discursos que gestaram a emergência desta região. No rastro dessa discussão, verifica-se, ainda, os diálogos que Renato Castelo Branco faz com estas representações para a composição de Teodoro Bicanca (1948). Posteriormente, aborda-se a imagética discursiva sobre o sujeito sertanejo/nordestino gestada por discursos diversos, examinando quanto dessa imagética se faz refletir nas representações de Teodoro Bicanca (1948). Faz-se ainda um breve apanhado dos poderes em Teodoro Bicanca (1948), apontando para uma rede através da qual micropoderes são exercidos e resistidos. Demonstra-se, ainda, que, para além das estereotipias, o autor promove, mediante saberes e dizeres das personagens, brechas reveladoras de algumas de suas sertanidades. Por fim, examina-se a presença da mulher nas práticas sociais e discursivas do cotidiano sertanejo, mostrando-se como ela burla, em vários momentos, papéis de gênero que lhe são prescritos. Defende-se a ideia de que, mesmo sob instâncias disciplinadoras, dentro das possibilidades existentes, o feminino no sertão cria, no fazer cotidiano, pequenas práticas de resistências ao poder opressor patriarcal, constituindo-se como ser que não tem sua vida inscrita apenas no campo de dominação. Como fundamentação teórica buscou-se contribuições dos estudos culturais, da teoria pós-moderna e dos estudos de gênero. Demonstra-se, nos apontamentos conclusivos do trabalho, que, em que pese as estereotipias na representação de sertão/Nordeste e de seus sujeitos, em Teodoro Bicanca (1948), Renato Castelo Branco promove várias fissuras no romance que se descortinam como maneiras diversas de constituir-se sertanejo(a)/nordestino(a). PALAVRAS-CHAVES: Literatura piauiense. Renato Castelo Branco. Teodoro

Bicanca. Identidade. Sertão.

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ABSTRACT

This research investigates some identity traces of Brazilians who live in the Backlands/Northeast, as narrated by Renato Castelo Branco in Teodoro Bicanca (1948). At first I analyze narratives about the Backlands produced by authors who, at different times, drew the region a profile. Since the images of the Backlands are commonly associated with the Northeast, it is also investigated the discourses that gave birth to its emergence. Following this debate, I also verify the dialogues which Renato Castelo Branco makes with these representations for composition of Teodoro Bicanca (1948). Later, I address the discursive imagery about the subject who lives in the Backlands/Northeast elaborated by diverse discourses, examining how this imagery becomes reflected on the representations of Teodoro Bicanca (1948). I also make a brief overview of power in Teodoro Bicanca (1948), pointing to a network through which micropowers are exercised and resisted. I also show that, beyond stereotypes, the author promotes, through the characters‟ knowledge and language, the appearance of some identity traces of the people who live in the Backlands. Finally, I examine the presence of women in the social and discursive practices in the everyday life of the people who live in the Backlands, showing how they at various moments chouse the gender roles that are prescribed to them. I defend the idea that, even under disciplinary rules, women from the Backlands, within the existing possibilities, create in their everyday activities small practices of resistance to oppressive patriarchal power, constituting themselves as subjects who are not only inscribed in the field domination. As for theoretical support I rely on Cultural Studies, Postmodern Theory, and Gender Studies. I conclude that, despite the stereotypes in the representation of the Brazilian Backlands/Northeast and their subjects, in Teodoro Bicanca (1948), Renato Castelo Branco promotes several cracks in these stereotypes, revealing different ways of being a subject from the Backlands/Northeast. KEYWORDS: Literature from Piauí. Renato Castelo Branco. Teodoro Bicanca.

Identity. Backlands.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 10

2 REPRESENTAÇÕES DE SERTÃO/NORDESTE: PERSPECTIVAS

IDENTITÁRIAS .................................................................................................... 21

2.1 Representação e identidade............................................................................ 21

2.2 Discursos de sertanidade na configuração da identidade nordestina........ 27

2.3 Matrizes discursivas sobre a emergência do Nordeste ............................... 33

2.4 Sertão e litoral: encontro (im)possível ........................................................... 49

2.5 O lugar de Renato Castelo Branco: diálogos com discurso diversos ........ 51

3 IMAGÉTICA DISCURSIVA DO SUJEITO SERTANEJO/NORDESTINO............ 56

3.1 Tecendo poderes .............................................................................................. 56

3.2 Tecendo saberes .............................................................................................. 64

3.3 Tecendo dizeres ............................................................................................... 76

4. REPRESENTAÇÕES DO FEMININO: EM BUSCA DA MULHER

SERTANEJA ........................................................................................................ 88

4.1 Espaços e papéis de mulher: submissão e resistência ............................... 89

4.2 Mulher, literatura e sertão: breve passeio ..................................................... 92

4.3 A mulher na tessitura do cotidiano sertanejo em Teodoro Bicanca ........... 94

4.3.1 A mulher no espaço rural ................................................................................ 96

4.3.2 A mulher no espaço urbano........................................................................... 113

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 121

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 126

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INTRODUÇÃO

Renato Pires Castelo Branco (1914-1995) nasceu em Parnaíba, no Piauí,

onde passou a infância. Aos 9 anos de idade foi para o internato masculino (Instituto

Viveiros) em São Luis do Maranhão. Voltou à Parnaíba quatro anos depois onde

concluiu curso ginasial, retornando ao cenário simples, fonte de suas lembranças.

Aos 18 anos viajou para o Rio de Janeiro onde se defrontou com as grandes

diferenças entre a simplicidade de sua cidadezinha e a sofisticação da metrópole.

Nesta capital, graduou-se em Direito na Faculdade Nacional de Direito da

Universidade do Brasil. Isto ocorreu na década de 1930, época em que as ideias

socialistas se mostraram apaixonantes nas universidades brasileiras.

Conforme testemunha seu irmão, Maurício Castelo Branco (2005), movido por

essas ideias, Renato Castelo Branco fez seu primeiro poema: “O estouro da boiada”

(1935) no qual estabelece uma analogia entre a ação do forte ruído da boiada e uma

revolta internacional do proletariado. Tendo sido com ele selecionado em uma

empresa de publicidade norte americana, a N. W. Ayer, em 1935. Fato que

transformaria sua vida, oferecendo-lhe um rumo inesperado. Tinha início o que viria

a ser uma brilhante carreira publicitária a qual dedicaria quase 50 anos de sua vida.

Renato Castelo Branco iniciou na N. W. Ayer como assistente de redator do

escritor Orígenes Lessa. Pouco tempo depois foi transferido para a matriz da

agência em São Paulo, passando a dividir sua vida entre a capital paulista e o Rio

de Janeiro. Em uma dessas viagens à cidade maravilhosa, conheceu Norma

Florisbal, com quem se casou em 1939. Da união do casal vieram três filhos: Renée,

Hiran e Renata.

Nesse mesmo ano ingressou na agência de publicidade McCann Erickson e,

pouco tempo depois, na J. Walter Thompson (a maior agência de publicidade do

mundo, à época), chegando a exercer, nessa empresa, o cargo de primeiro

presidente no Brasil e vice-presidente nos Estados Unidos. O primeiro Latino

americano a receber esta distinção até então. Vale ressaltar que esta agência

operava, à época, em 26 países de todos os continentes. Durante sua permanência

na empresa, participou como representante brasileiro da firma em conferências

internacionais dos gerentes dos escritórios de várias partes do mundo, incluindo

Frankfurt, Nova Iorque, México, Caracas e Buenos Aires. Foi responsável por abrir o

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escritório dessa empresa em Madri em 1966. Recebeu o convite para gerenciá-lo,

recusando-o, em razão de não querer morar fora do Brasil. Trabalhou na J. Walter

Thompson por quase 30 anos.

Em 1971, retornou às atividades publicitárias, fundando sua própria agência,

Castelo Branco, Borges e Associados (CBBA). Nela pode exercer com mais

liberdade sua própria filosofia profissional. Para Francisco Socorro (2009), Renato

Castelo Branco foi um líder no ramo da publicidade brasileira, com efetiva influência

no Brasil e Estados Unidos, além de ser um pensador global. Foi ainda o primeiro

publicitário do país a defender a ética e a responsabilidade social da propaganda. A

campanha de aleitamento materno no Brasil, por exemplo, é uma dessas ideias

pioneiras.

Renato Castelo Branco teve participação efetiva em quase todos os órgãos

representativos da publicidade nacional. Foi um dos fundadores da Escola Superior

de Propaganda, sendo diretor, professor e membro do conselho diretor. Fundou

também o Conselho Nacional de Propaganda. Atuou ainda como presidente da

Associação Brasileira das Agências de Propaganda. Dentre vários prêmios

profissionais que recebeu, foi consagrado “O publicitário do ano” por duas vezes, em

1965 e 1968, entre vários outros prêmios profissionais. Conquistou também o prêmio

“Candango”, da Fundação do Distrito Federal e do Instituto Nacional do Livro; o

prêmio Tendência, de criatividade, da Editora Bloch, do Rio de Janeiro, entre outros.

Em paralelo às atividades publicitárias Renato Castelo Branco desenvolveu

sua produção literária. Publicou 22 livros, sendo eleito membro da Academia

Piauiense de Letras em 1985.

Conforme comentários de autores expressivos da Literatura Brasileira e da

crítica nacional. Castelo Branco foi um talentoso poeta e escritor, sobretudo de

romances históricos. Seu livro de estreia foi Armazém 15 (1934), escrito quando o

autor tinha 20 anos. Este livro possui um caráter autobiográfico, expressando as

frustrações e amarguras de um rapaz nordestino que migra com outros jovens para

o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Quatro anos depois, Castelo Branco

publica o segundo livro, A química das raças (1938), ensaio histórico-cultural com

expressiva influência de Euclides da Cunha. Neste, interpelado pelas ideias

sociológicas em curso, faz a defesa da não supremacia de uma raça, argumentando

que os elementos distintivos da intelectualidade entre os indivíduos se relaciona à

falta de oportunidade decorrente do meio, cujos fatores econômicos e socioculturais

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não lhes são favoráveis. Em 1942, chega a público A Civilização do Couro1, um

estudo sócio-histórico do Piauí. Nele, faz uma análise sociológica sobre a terra, o

povo e a civilização piauiense. A seu respeito, refere-se Monteiro Lobato: “se todos

os Estados do Brasil tivessem uma monografia sintética à altura dessa, o Brasil,

como um todo seria talvez a zona do mundo mais bem fotografada”.2

Em 1970, publicou o ensaio O Piauí: a terra, o homem, o meio, uma edição

ampliada de A civilização do couro, acrescentando alguns artigos que tratam de

problemas do Piauí. Já no plano político, trata de problemas básicos para o futuro do

Brasil e da América, antevendo, no livro Um programa de política exterior para o

Brasil (1945), a criação do que viria a ser o MERCOSUL.

Em 1948, publicou o segundo romance, Teodoro Bicanca, romance regional

que revela os costumes dos sertanejos nordestinos, com o qual recebeu o prêmio do

Círculo Literário do Brasil, no mesmo ano da publicação.

Pré-história brasileira – fatos e lendas (1971), ensaio mito-arqueológico,

reúne artigos publicados por uma rede de oito jornais das principais capitais

brasileiras, lideradas pelo jornal o Estado de São Paulo. Este livro resulta do curso

de pré-história que o autor fez em 1970 no Musée de I‟Homme e de Francês na

Alliance Française, em Paris, assim como de pesquisas realizadas em São

Raimundo Nonato no Piauí. Livro editado em convênio com o Instituto Nacional do

Livro, órgão do Ministério da Educação e Cultura.

Em 1980, viria a público o romance Os Castelo Branco d’aquém e d’além

mar, um estudo histórico genealógico. Nele, o autor procura traçar a história de sua

família, revelando a participação dos Castelo Branco na vida de Portugal e do Brasil.

Sobre o livro Renato Castelo Branco adverte:

Não é uma apologia familial (...). Nele desfilam heróis e vilãos, guerreiros e poetas, aventureiros e revolucionários, estadistas e bandidos, numa narrativa em que a vida da família Castelo Branco e do mundo luso-brasileiro se desenvolvem paralelamente. (CASTELO BRANCO, 1981, p. 251).

Conforme a explicação do autor no prefácio do livro, ele seria esclarecedor

da tensão emocional que a distância tempo-espacial de suas raízes históricas,

1 Civilização do couro é uma expressão cunhada por Capistrano de Abreu para designar a civilização sertaneja.

2 Carta de Cândido Fontoura para Renato Castelo Branco, de 23 de dezembro de 1942, em que consta a

apreciação de Monteiro Lobato.

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culturais e familiares exerciam sobre ele. Escrever sobre isto, seria uma forma de

“resolver” tal dilema pessoal, pois afirma: “sinto minhas origens que me alimenta;

como um elo que me liga a um tempo, ao passado e ao futuro” (CASTELO

BRANCO, 1980, p. 9).

Em 1981, Renato Castelo Branco publicou um livro com suas memórias,

Tomei um ita no norte, que se divide em três partes. Na primeira, referencia a

infância e adolescência vividas em Parnaíba e as lembranças que esse tempo

imprime em sua vida. Na segunda, rememora a tumultuada vida acadêmica da era

getulista no Rio de Janeiro, o contato com as ideias socialistas e o envolvimento

com as lutas de classe, sua inserção no universo literário e a relação com

intelectuais em rodas literárias. Na terceira parte, trata da importância de São Paulo

em sua vida profissional, dividido entre a propaganda e a literatura, entre o que

chama de “feijão e o sonho” (CASTELO BRANCO, 1981, p. 166). Os fatos narrados

nesse livro são entremeados por diversos poemas. O livro ainda recebeu do crítico

Antonio Cândido o seguinte comentário:

(...) As memórias são escritas com discreta sinceridade, numa composição linear e de grande eficácia. (...) Nos poemas apreciei a amplitude que lhe permitiu oscilar dos espaços insondáveis ao registro do cotidiano, sempre por meio de uma palavra poeticamente bem elaborada que vai alto em muitos momentos.3

O escritor Jorge Amado também tece comentário sobre Tomei um ita no

norte. Em sua avaliação são “memórias tão ricas de acontecimentos, sentimentos e

emoções, que o leu com grande prazer-aumentado pela beleza dos poemas que dão

ainda maior força aos fatos narrados.”4

Renato Castelo Branco produziu também romances históricos. Nele se

sobressaindo com a trilogia de reconhecido mérito literário, cuja contextualização

refere-se ao Meio-Norte do país: Rio da Liberdade (1982), que trata da guerra de

Fidié, girando em torno de lutas pela independência do Brasil; A conquista dos

sertões de dentro (1983), que traça um painel da ocupação do sertão piauiense e do

maranhense pelos fidalgos da Casa da Torre e pelos bandeirantes vicentinos que

trocaram a busca do ouro pela criação de gado no Piauí; Senhores e escravos

3Carta de Antonio Cândido para Renato castelo Branco em 15 de julho de 1986.

4 Carta de Jorge Amado para Renato Castelo Branco em 24 de Janeiro de 1982.

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(1984), cuja referência é a Balaiada, revolução social que envolveu os estados do

Maranhão, Piauí e Ceará. Sobre este livro Caio Porfírio Carneiro comenta:

Isto não é romance histórico: é reportagem, é sociologia, é cinema, é ficção, é documento, é um caleidoscópio vivo e colorido, dolorosamente colorido (ou em preto-e-branco?). O livro todo é excelente.5

Quanto à produção desse gênero literário por Renato Castelo Branco, Assis

Brasil, escritor piauiense, coloca que: “a ficção brasileira muito se beneficiará de

suas pesquisas regionais e históricas, com a vantagem de o passado ser revivido

por um escritor de grandes recursos narrativo”.6

Veio, em seguida, a história de São Paulo e dos Bandeirantes em O planalto

(1985). Dois anos depois, publica Rio mágico (1987), livro perpassado de memórias,

inspirado na história de Frederick Clarck Castelo Branco, parnaibano e primo de

Renato Castelo Branco, que foi embaixador do Brasil em Roma e Londres, mas que

abandonou a carreira de sucesso para viver o final de seus dias na sua terra natal. O

comunicador (1991) e A ilha encantada (1992) também possuem esse caráter

memorialista. Em O comunicador o autor trata do cotidiano de uma agência de

publicidade, descrevendo com detalhes o funcionamento dessa fábrica de vendas e

também de sonhos. Em A ilha encantada narra a atração sexual entre dois jovens

estudantes do Instituto Pitombeiros, em São Luis do maranhão. Ainda na prosa,

publicou em 1989, No reino dos bichos miúdos, um livro de contos infantis, cujas

histórias se referem à sintonia de vários pássaros.

Em relação ao gênero poesia, Renato Castelo Branco aborda temas

variados, como por exemplo, sertão, saudade, solidão, tristeza, alegria,

inconformismo com as injustiças sociais, as transformações do mundo. É possuidor

de um estilo enxuto, próprio da justeza de quem possuía as técnicas da linguagem

publicitária.

Em diálogo com Os sertões, de Euclides da Cunha, publicou o poema Os

sertões em 1943. Nele aborda a dureza da vida do sujeito sertanejo em sua relação

com a natureza hostil, bem como mostra elementos da cultura regional, como o

vaqueiro, a vaquejada, os festejos.

5 Carta de Caio Porfírio Carneiro para Renato Castelo Branco em 18 de Janeiro de 1984.

6 Carta de Assis Brasil para Renato Castelo Branco em 25 de abril de 1983.

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A segunda produção poética só apareceria 25 anos depois com o livro

Candango, gagarin, blaiberg e outros poemas (1968), repleto de reminiscências do

poeta em Parnaíba, além de conter aspectos de cunho humanitário, que se mostra

também em A janela do céu (1969).

Em 1986 vem a público Amor e angústia. O anticristo (1987) vem em

seguida, revelando as dores do mundo contemporâneo, como a bomba atômica, as

drogas, a poluição etc.

Inspirado em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Renato Castelo

Branco homenageia o escritor mineiro com Poemas do grande sertão (1993). Nele o

sertão ganha centralidade, mostrando-se rico de belezas e possibilidades.

Pátria amada (1995) é o último livro poético do autor. Constam os poemas

de Os sertões, Poemas do grande sertão e outros inéditos. Nestes últimos, o Brasil é

mostrado em sua grandeza natural a partir do olhar sertanejo do poeta.

Ao fazer uma espécie de balanço de sua vida, aos 67 anos, declara:

“Continuo em busca da pessoa que persegui desde a adolescência: atrás de uma

ambição literária e do desejo de dedicar minha vida a uma obra idealista” (CASTELO

BRANCO, 1981, p. 257).

Renato Castelo Branco, publicitário que elevou a propaganda no Brasil,

jamais abandonou as reflexões que o despertaram na juventude acerca das

questões humanitárias, mostrando-se sempre atento às injustiças sociais e às

transformações do mundo. Elogiado por grandes nomes da literatura e da crítica

nacional é praticamente desconhecido em seu estado, a província de seu grande

bem querer, por tantas vezes por ele romanceada.

Teodoro Bicanca (1948), o segundo romance de Renato Castelo Branco, é o

primeiro a ganhar visibilidade, com o prêmio Círculo Literário Brasileiro, recebido no

mesmo ano de sua publicação. Ancorado nas memórias do autor, a narrativa evoca

o cenário e tipos humanos que fizeram parte de sua meninice e adolescência, como

o rio da infância com seus navios gaiolas, suas balsas, seus vareiros, canoeiros,

embarcadiços e ainda os bons fantasmas que o acompanharam para sempre, como

Siá Ana com suas histórias de assombração, Tio Belo e as aventuras vividas em sua

fazenda no período de férias.

Teodoro Bicanca (1948) está situado no âmbito do regionalismo brasileiro.

Vários são os indícios dessa afirmativa: o tema da seca, do latifúndio, da dominação,

do poder dos coronéis. A presença de elementos ligados às tradições da região,

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como lendas, cantorias, comidas (rapadura), bebidas (cachaça, cajuína) e crendices

também confirmam tal caracterização. O universo da trama se inscreve no espaço

natural da tradição regionalista: a história se passa no sertão cearense e no Piauí,

mais precisamente na fazenda Areia Branca e na cidade de Parnaíba.

Teodoro Bicanca (1948) foi editado uma única vez, razão porque se tornou

raro, mesmo tendo figurado entre grandes obras de sua época, conforme relata o

próprio autor, em Tomei um ita no norte (1981). O fator que contribuiu para a não

reedição do livro se deve ao equívoco na interpretação das personagens do

romance por parte de uma parcela da família de Renato Castelo Branco que teria

confundido seu tio, o coronel Belarmino, com a personagem coronel Damasceno,

fato que provocou grande desconforto para o autor. Diante disso, não mais permitiu

outra reedição do livro. Sobre este episódio relata:

Confundiu-se um tipo sociológico genérico, o Coronel, fruto de um quadro histórico com a pessoa de meu tio. Isto provocou, naturalmente, um grande mal-estar em minha família e uma grande mágoa para mim. Por esta razão, nunca permiti que fosse feita nova edição de Teodoro Bicanca. (CASTELO BRANCO, 1981, p. 50).

Em relação à fortuna crítica de Teodoro Bicanca, verifica-se que mesmo

tendo sido um romance bem aceito no meio literário, haja vista a premiação que lhe

fora conferida, foram poucas as apreciações críticas. O escritor Afonso Schmidt

comentou sobre o livro: “É movimentado, intenso, bem escrito, apresentando

qualidades que o colocam na primeira linha da nossa literatura do gênero”

(SCHMIDT, 1994, s/p).

O escritor piauiense Arimatéia Tito Filho se refere ao livro como:

Romance em que se salientam cenários, tipos e episódios do complexo social do Nordeste. No livro existem base humana, paixões, sofrimentos, drama enxuto, e o Parnaíba das cheias, o rio que Teodoro amava (...). E dessa obra admirável de ficção, no próprio autor se buscam elementos gerados da criatividade artística. (TITO FILHO, 1986, p. 29).

Teodoro Bicanca (1948), corpus desta pesquisa, relata em seu enredo os

dramas vividos por Teodoro. A narrativa inicia-se com o protagonista na cidade de

Parnaíba, contemplando a grandeza do rio Parnaíba sob o lençol da noite. É quando

sua memória redesenha a migração da família. Aos seis anos de idade, sai do Ceará

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com o pai (Damião), a mãe (sem nome) e dois irmãos (Raimunda e Serafim), fugindo

da seca, em uma temporalidade indefinida. A família, juntamente com um grupo de

retirantes, migra para o Piauí. No percurso, muitos morrem, inclusive, a mãe e os

irmãos de Teodoro. Seu pai, Damião, pede abrigo na fazenda do coronel

Damasceno, local para onde vinha anualmente trabalhar no corte e exploração da

carnaúba. Lá, Teodoro vai experimentar muitas emoções e descobertas, como o

afeto por Siá Ana e os conhecimentos que apreende em seu convívio; também o

amor por Piedade e os momentos de lazer e brincadeiras vividos juntos; a

compaixão pelo pai humilhado e explorado; o ódio pelo coronel e seus capangas; o

encanto e atração pelo rio.

Ainda adolescente, sai em fuga para Parnaíba em razão da perseguição de

Malaquias, pai de Piedade, que intenta contra sua vida por não permitir o namoro do

jovem com sua filha. A narrativa é ambientada nesse novo cenário. Nele Teodoro vai

se deparar com um mundo novo que o deslumbra e o impressiona. Vive

acontecimentos inusitados como as brincadeiras de futebol, de onde vem o apelido

bicanca, pois seus chutes de bicuda com a ponta do pé davam um impulso tão alto à

bola que, por analogia à palavra bicuda, deram-lhe tal apelido. Descobre amizades,

entre elas, a de Abedias, jovem de classe média que se identifica com o ambiente

proletário. Convive com o universo dos vareiros e estivadores no cais, ouvindo suas

histórias que tanto o encanta. Aos poucos vai conquistando o novo espaço. Para

sobreviver, vende água do rio (a cidade de Parnaíba ainda não tinha um sistema de

abastecimento de água) até tornar-se vareiro, realizando seu grande sonho, pois

acreditava que tal profissão o levaria para outros rios até chegar ao mar imenso.

Descobre as ideias socialistas e se envolve na organização sindical ao lado de

Abedias, então advogado. Tidos como perigosos revoltosos são presos. Abedias

assume toda responsabilidade pelo movimento, isentando Teodoro que retorna a

Areia Branca em busca do amparo de Siá Ana e do amor de Piedade.

Narrado em terceira pessoa, este romance apresenta certa penetração no

interior das personagens mediante o discurso indireto livre, sobretudo, do

protagonista. É escrito em um estilo dinâmico permeado de elementos poéticos. A

escolha de um narrador em terceira pessoa é um elemento estético significativo,

pois demonstra como a representação das personagens e do universo narrado no

romance é filtrada por um olhar distanciado de um sujeito que narra a partir de fora,

interpelado por discursos oriundos de outros contextos, mas, ao mesmo tempo,

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atravessado pelas reminiscências do sertão nordestino, espaço que é tomado para

ambientação do romance.

Ressalta-se que, mesmo Teodoro Bicanca tendo como fio condutor da trama

narrada uma personagem do gênero masculino, isto posto a partir do título, é no

feminino que a força de resistência das personagens do romance se apresenta com

maior destaque. Siá Ana, D. Hortência, Onorina, Piedade, D. Genoveva, Joaninha,

além de outras inominadas também se insinuam com suas histórias de coragem,

solidão, sofrimento, amor, silêncio e transgressão, atuando no cotidiano sertanejo

rural e urbano.

O presente estudo se propõe, em caráter mais abrangente, examinar

algumas do que se chama sertanidades de Renato Castelo Branco, investigando

traços de identidade sertaneja em Teodoro Bicanca. De forma mais específica,

objetiva-se analisar de que maneira os discursos construtores de sertão/Nordeste

formulam representações identitárias dos sujeitos oriundos desses espaços;

investigar, em Teodoro Bicanca, de Renato Castelo Branco, quanto da imagética

discursiva sobre o sujeito sertanejo/nordestino gestada por discursos vários se faz

refletir nas representações das personagens em Teodoro Bicanca; examinar a

presença da mulher nas práticas sociais e discursivas do cotidiano sertanejo, em

Teodoro Bicanca, de Renato Castelo Branco observando como estas práticas são

construídas em um universo no qual os papéis de gênero encontram-se

hierarquizados. Como fundamentações teóricas acionou-se contribuições dos

estudos culturais, da teoria pós-moderna e dos estudos de gênero.

Para a análise de Teodoro Bicanca (1948), foi realizada uma pesquisa de

cunho bibliográfico, recorrendo-se ao método crítico-analítico. No caso do objeto de

estudo em questão, esse tipo de pesquisa contribuiu à investigação do processo de

construção de identidades sertanejas, possibilitando, também, que a obra de um dos

mais importantes escritores piauienses, ainda pouco estudado mesmo em seu

estado natal, seja melhor compreendida.

A escolha do objeto de estudo surgiu a partir da sugestão de um amigo,

Dílson Lages Monteiro, por meio de quem se adquiriu uma cópia do livro e vasto

material sobre o autor. Ao ler o livro, desejou-se, inicialmente, investigar as vozes

sociais que atravessam o universo rural e urbano em sua narrativa, tendo sido

selecionada no mestrado com essa linha de investigação, que foi deixada de lado

pela necessidade de ajuste na orientação. Numa releitura do livro, verificou-se como

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os elementos regionais sobressaíam. Veio, então, o interesse de compreender

como o sujeito sertanejo/nordestino era apresentado naquele romance e que

discursos interpelaram o autor para representá-lo como tal. Pois, a rigor, as

representações de sertão e de seu povo, recorrentes em diversos discursos e

linguagens, tendem a simplificar demais estes espaços e seus habitantes,

atribuindo-lhes identidades essencialistas e estereotipadas. Situação que promove

certo apagamento da complexidade, da pluralidade que a categoria encerra. Assim,

analisar Teodoro Bicanca na perspectiva proposta, permite, ainda, que se continue

indagando a respeito dos “crespos” do sujeito sertanejo.

Assim, dividiu-se a pesquisa em três capítulos. No capítulo que abre o

trabalho, analisa-se as representações de sertão/Nordeste, examinando como os

discursos que os gestaram articulam a construção de identidades dos sujeitos

oriundos dessas regiões. Parte-se da discussão de representação e identidade

enquanto categorias produzidas no discurso, para investigar os sentidos de sertão,

cuja construção discursiva dialoga com a construção de nação e de Nordeste. Nessa

perspectiva, analisa-se a (im)possibilidade de encontro entre sertão e litoral,

confirmando-se o caráter complementar que os inscreve no todo nacional. Ainda

neste capítulo, procura-se examinar os diálogos de Renato Castelo Branco com

essas representações, para a compreensão das escolhas que faz na composição de

Teodoro Bicanca. Como apoio teórico, utiliza-se as contribuições de Chartier (1990)

e Hall (1997) para o conceito de representação; Said (1990) e Albuquerque Jr.

(2006) para construções geosimbólicas; Bauman (2005) e Hall (2003) para o debate

sobre identidade; Bhabha (2001), Amossy (2005) e Oliveira (2008) para reflexões

sobre o conceito de estereótipo; Vicentini (1998), Souza (1997), Oliveira (1998),

Abreu (1982) e Lima (199) para discussão sobre narrativas de sertão; Albuquerque

Jr. (2006) para abordagem da construção do Nordeste e do nordestino; Cândido

(2002), Albuquerque Jr. (2006) e Bueno (2006) para o debate a respeito do romance

regional.

O segundo capítulo investiga a imagética discursiva sobre o sujeito

sertanejo/nordestino gestada por discursos diversos, examinando quanto dessa

imagética se faz refletir nas representações em Teodoro Bicanca. Parte-se da

observação de como o autor é interpelado por discursos que significaram esse

sujeito sob o olhar da estereotipia para, então, demonstrar como promove, ao

mesmo tempo, brechas viabilizadoras de um distanciamento de tais representações.

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Nessa perspectiva, saberes e dizeres das personagens constituem-se como

instâncias representativas de algumas das sertanidades de Renato Castelo Branco.

Como referencial teórico, busca-se as contribuições de Foucault (1990), Geertz

(1989), Certeau (1994) e Benjamin (1999) para reflexões sobre poder e saber e

Rajagopalan (1998), Urbano (2000, 2011) e Preti (1984) para discussão acerca de

linguagem e identidade.

No terceiro capítulo é examinada a presença da mulher nas práticas sociais

e discursivas do cotidiano sertanejo, observando-se como estas práticas são

construídas em um universo no qual os papéis de gênero encontram-se

hierarquizados. Verifica-se a maneira como cria, no fazer cotidiano, estratégias de

resistência ao poder opressor patriarcal. Ora alimenta, ora confrontam expectativas

historicamente cristalizadas no imaginário da cultura sertaneja em relação aos

papéis sociais de gênero. Partindo-se da compreensão de que o feminino em

Teodoro Bicanca é narrado do ponto de vista da voz masculina, procura-se

perscrutar as entrelinhas, nas fissuras que o autor promove e assim extrair os

fragmentos das diversas maneiras como essas personagens operam, demonstrando

assim que, em que pesem as estereotipias no imaginário das feminilidades

sertanejas, mulheres no sertão não têm suas vidas inscritas apenas no campo da

dominação. Como base teórica para as discussões sobre gênero, acionou-se as

reflexões de Falci (2002), Silva (2000), Badinter (2005), Rocha-Coutinho (1994) e

Butler (2003); para abordagem sobre resistências cotidianas, Certeau (1994).

Assim, esta pesquisa busca dar conta da representação literária, em

Teodoro Bicanca (1948), de identidades sertanejas ou sertanidades, cujas

construções se desenham não apenas sob uma imagética estereotipada, mas

também revelando diversidades do cotidiano popular, repleto de riquezas e

resistências.

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2 REPRESENTAÇÕES DE SERTÃO/NORDESTE: PERSPECTIVAS

IDENTITÁRIAS

Sertão, quem sabe dele é a gaivota que está no alto, apalpando os ares. Renato Castelo Branco

A realidade pode ser compreendida como uma construção de linguagem. Isto

posto, pode-se sugerir que não é possível se ter acesso ao “real” sem que seja por

meio de sua fabulação. Em razão disso, considera-se a representação como um

importante instrumento para se analisar um texto ficcional e os discursos que

permeiam sua produção, visto que constrói uma mediação via linguagem que, se

não apresenta o real, possibilita a sua percepção. Nesse sentido, à medida que o

social é produzido discursivamente nas representações, inclusive as literárias, a via

inversa também ocorre, sendo a literatura também influenciada pelos diversos

discursos sociais.

Partindo desse entendimento, busca-se, neste capítulo, analisar as

representações de sertão/Nordeste, examinando como os discursos que os

gestaram articulam a construção de identidades dos sujeitos sertanejos/nordestinos.

No rastro dessa investigação, procura-se verificar como Renato Castelo Branco

dialoga com tais representações para construção dos sujeitos sertanejos/nordestinos

em Teodoro Bicanca.

2.1 Representação e identidade

Em A história cultural: entre práticas e representações (1990), Chartier

investiga como as representações são elaboradas. Para ele, estas são construções

que os grupos realizam sobre suas práticas, sendo que estas não são totalmente

percebidas, em virtude de existirem apenas enquanto representações (CHARTIER,

1990, p.13-15). Nesse sentido, para o teórico, os textos não apreendem a realidade

em sua totalidade, pois o “real assume um novo sentido: aquilo que é real,

efetivamente, não é” (CHARTIER, 1990, p. 63).

A noção de representação está, assim, intimamente ligada à produção de

significados. Chartier a percebe como realidade de múltiplos sentidos determinada

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pelo grupo que a forja. Defende que as representações podem ser pensadas como

“esquemas intelectuais que criam as figuras graças às quais o presente pode

adquirir sentidos (...)” (CHARTIER, 1990, p. 17). Vista assim, nenhuma narrativa tem

a prerrogativa da verdade dos fatos, pois o real recebe sentido, é representado.

Ainda segundo Chartier (1990), o estudo das representações elaboradas

dentro de uma cultura deve sempre colocá-las num campo de concorrências e de

competições, cujos desafios se enunciam em termo de poder e de dominação,

sendo essas disputas o lugar privilegiado para o entendimento de formas como uma

cultura se constrói e se autossignifica. Assim, mesmo se apresentando revestidas de

naturalidade, as representações se constroem no âmbito de lutas configurantes das

estruturas culturais de uma época.

Como afirma Hall, a representação é uma produção de significados

construídos por meio da linguagem. Assinala o sociólogo:

A representação envolve produzir significados forjando elos entre três diferentes ordens das coisas: o que podemos geralmente chamar de mundo das coisas, pessoas, eventos e experiências; o mundo conceptual – os conceitos mentais que levamos com nossa mente; os signos arranjados nas línguas que significam ou comunicam estes efeitos. (HALL, 1997, p. 61).

Sendo assim, os objetos, as pessoas, os eventos não são apreendidos

apenas no campo do real, mas seus significados são adquiridos por meio de uma

representação mental que lhes atribui um determinado sentido sociocultural, ou seja,

em parte, é mediante a estrutura de interpretação trazida por cada indivíduo, que se

atribui significados às pessoas, aos objetos, aos fatos. Dessa forma, é através da

representação que os significados são delineados. Vê-se que para Hall, o significado

não é inerente às coisas, muito menos transparente, mas se realiza no jogo das

representações. É, portanto, construído, produzido. É o resultado de uma prática de

significações. A representação é elaborada a partir dos locais onde os indivíduos

promovem seus discursos, marcada, então, por interesses individuais ou

compartilhados por um determinado grupo.

Toma-se esta ideia de representação para se pensar a categoria identidade,

tendo em vista o caráter discursivo que as implica, pois é através da representação

que os significados são (re)produzidos, localizando e identificando os indivíduos,

estabelecendo-lhes valorações. Nesse aspecto, a formação da identidade está

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sujeita ao processo de (re)conhecimento em relação às representações. Tanto estas

quanto as identidades são construídas a partir de lutas autoafirmativas frente ao

“outro”. Desse modo, considera-se pertinente a articulação entre representação e a

construção de identidades para analisar a identidade sertaneja por meio do romance

piauiense Teodoro Bicanca.

Em Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1990), Said, ao

mostrar que o Oriente é uma representação elaborada pelo Ocidente europeu e

desenvolvida nos EUA, assinala: “O Oriente é uma ideia que tem uma história e uma

tradição de pensamento imaginário e um vocabulário que lhe deram a realidade e

presença no e para o Ocidente” (SAID, 1990, p. 31). Assim concebido, o Oriente é

uma construção histórica que foi lentamente moldada, permitindo ao Ocidente auto-

definir-se em relação a um Outro, o oriental.

Essa representação de alteridades geosimbólicas faz-se presentes nos

estudos de Albuquerque Jr. sobre a “fundação” do Nordeste brasileiro, ao afirmar

que essa região e seus habitantes são frutos de representações formuladas a partir

de discursos vindos de fora e de dentro da região. “O Nordeste é uma produção

imagético-discursiva formada a partir de uma sensibilidade cada vez mais específica,

gestada historicamente, em relação a uma dada área do país” (ALBUQUERQUE

JR., 2006, p. 49).

Assim entendidos, espaços geopolíticos não seriam meras geografias

naturais, mas – contextualizando-se os estudos de Said em relação às geografias

espaciais - “lugares, regiões e setores geográficos (...) feitos pelo homem” (SAID,

1990, p. 16), devendo ser concebidos como produtos de ideias para as quais se

verifica “uma história e uma tradição de pensamento, imagístico e vocabulário”

(SAID, 1990, p. 17). São construções históricas, elaboradas por narradores situados,

que falam, normalmente, a partir de seu referente.

Quando se discute a identidade, é pertinente ressaltar a concepção de

Bauman (2005, p. 83), que a compreende como um campo conflituoso, afirmando

que “sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de que está havendo

uma batalha”. Nesse aspecto, os processos de construção identitária se encontram,

pois, imersos em constantes lutas e disputas pela imposição de significados. Dessa

forma, segundo observa Stuart Hall (2003), em relação às culturas nacionais, ao se

analisar as culturas e identidades regionais, não se deve concebê-las como

unificadas, porém como um:

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Dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade e identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões internas, sendo unificadas apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. (HALL, 2003, p. 67).

Por essa lógica, é questionável a representação coletiva de uma identidade

nacional ou regional de forma harmônica, já que as identidades se encontram

cindidas internamente, em constante exercício de disputa pelo poder.

As identidades, sejam elas nacionais ou regionais, “não são coisas com as

quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da

representação” (HALL, p. 2003, p. 53). Nesse sentido, considera-se que a identidade

regional nordestina é construída a partir de imagens que buscam simbolizar essa

unificação identitária, procurando encobrir as mais diversas lutas e conflitos internos

de grupos e indivíduos que disputam por sua representação.

Bhabha assegura que “a questão da identificação nunca é a afirmação de

uma identidade pré-dada, nunca uma profecia autocomprida – é sempre a produção

de uma imagem de identidade e a transformação do sujeito ao assumir aquela

imagem” (BHABHA, 2001, p. 76-77). Nesse aspecto, a construção da identidade e

da identificação se dá no embate com a imagem do outro, mediante o

reconhecimento pelo Outro. Assim é preciso existir para um Outro, pois, “existir é ser

chamado à existência em relação a uma alteridade, seu olhar ou lócus” (BHABHA,

2001, p. 75).

Dessa forma, a identidade é construída na marcação da diferença, aspecto

que se dá tanto por meio dos sistemas de representação, quanto através de formas

de exclusão. Portanto, a identidade e a diferença mantêm uma relação de

dependência. A marca identitária contém inevitavelmente vestígios do Outro. Para

Silva:

É fácil compreender, entretanto, que identidade e diferença estão em relação de estreita dependência. A forma afirmativa com que expressamos a identidade tende a esconder essa relação. Quando digo „sou brasileiro‟ parece que estou fazendo referência a uma identidade que se esgota em si mesma. „Sou brasileiro‟ – ponto. Entretanto, eu só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres humanos que não são brasileiros. (SILVA, 2000, p. 74).

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Na visão do autor, identidade e diferença compartilham a particularidade de

serem frutos de atos de construção discursiva, sendo assim, propriedades

inacabadas, à disposição para serem significados no contexto discursivo.

Nessa direção, Albuquerque Jr. analisa a questão identitária como:

uma semelhança de superfície, que possui no seu interior uma diferença fundante, uma batalha, uma luta, que é preciso ser explicada. A identidade nacional ou regional é uma construção mental, são conceitos sintéticos e abstratos que procuram dar conta de uma generalização intelectual, de uma enorme variedade de experiências efetivas. (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 27).

As falas que institucionalizam a identidade nacional ou regional ganham

status de verdade ao pretenderem mostrar o real como síntese abstrata. No entanto,

a identidade é uma criação, não é, a rigor, o espelho da realidade, não é sua

totalização objetiva.

Pode-se inferir, então, que as representações levam consigo sentidos

subjetivos construídos histórica e socialmente. Tais sentidos naturalizam-se e

terminam por configurar um imaginário caracterizado, na maioria das vezes, pelo

lugar comum de onde surgem os fundamentos daquilo que constitui o indivíduo ou o

que ele acredita ser, ou seja, o estereótipo.

Bhabha define estereótipo como uma categoria que se formula em um

modo de representação paradoxal. Ele o vê:

[...] não como uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa, fixa, de representação que ao negar o jogo da diferença [...], constitui um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e sociais. (BHABHA, 2001, p. 117).

O estereótipo visto por esse prisma compreende uma pretensa

generalização da realidade, simplificando-a, definindo-a em sua totalidade, reduzindo

e fixando a diferença. No entanto, esta simplificação é apenas uma das fases do

estereótipo, pois sua forma de identificação vacila entre o que está sempre “no lugar”

e aquilo que deve ser repetido, reforçado. Neste aspecto, sua ambivalência consiste

em afirmar, ao mesmo tempo em que nega, ou seja, na medida em que enaltece,

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também deprecia, envolvendo “aquela alteridade que é ao mesmo tempo objeto de

desejo e escárnio” (BHABHA, 2001, p. 106).

Conforme Albuquerque Jr., o discurso da estereotipia é “assertivo, repetitivo,

é uma fala arrogante, uma linguagem que leva à estabilidade acrítica, é fruto de uma

voz segura e autosuficiente que se arroga no direito de dizer o que é o outro em

poucas palavras” (2006, p. 20). É mais que um olhar falso sobre uma determinada

realidade, é uma fala eficiente que se concretiza ao ser subjetivada por quem é

objeto da estereotipia.

Para Amossy (2005), estereótipo pode ser entendido como esquemas

coletivos cuja influência atua na maneira como se concebe um estado de coisas,

sendo propensa a se legitimar como uma operação mental que percebe o real a partir

de uma representação cultural já existente.

Nessa perspectiva, Oliveira (2008) compreende estereótipos como “papéis

delineados pela sociedade e influenciados por fatores culturais, sociais, econômicos,

políticos e étnicos”, constituindo-se numa maneira de “padronizar pessoas,

comportamentos, valores e crenças, impondo a outrem identidades que nos ajudam a

explicar o mundo” (OLIVEIRA, 2008, p. 97).

O exotismo, analisado por Said em Orientalismo: Oriente como invenção do

Ocidente (1990), constitui-se em um claro exemplo de estereotipia, concebida pelo

autor como uma espécie de essencialização pervertida do Outro o qual é, geralmente,

inferiorizado.

Por essa abordagem teórica, busca-se analisar as representações de

sertão/Nordeste visando a entender que perspectivas identitárias dos sujeitos

oriundos desses espaços são construídas por discursos diversos. Para tanto, a

categoria sertão será tomada como elemento importante para se pensar o Nordeste

e seus sujeitos tanto pelos discursos que representam a emergência de ambos,

quanto pelo entrelaçamento de suas imagens.

A partir da representação dessas categorias, verifica-se o lugar de Renato

Castelo Branco, em especial Teodoro Bicanca, no contexto dos discursos que

fomentaram a construção de sua imagética, examinando os diálogos que mantêm

com essas representações.

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2.2 Discursos de sertanidade na configuração da identidade nordestina

Em seu Dicionário da língua portuguesa, Cunha (1986) registra que a

palavra “sertão” é de etimologia obscura e que, possivelmente, tenha sido difundida

no século XV para designar uma região agreste, distante das povoações ou das

terras cultivadas.

Vicentini (1998) lembra que desde a carta de Pero Vaz de Caminha, o termo

já sinalizava para a ideia de lugar oposto e distante de quem está falando. Fato que

já à época da supremacia marítima, os portugueses em suas naus, ao aportarem às

costas da África, viram seu interior a partir do navio, designando-o como sertão. O

termo aqui passa a ser utilizado para nomear a terra ignota do continente. A partir do

ponto de vista de quem vê do mar, pode-se compreender por que sertão é o outro

lugar, área desconhecida, inóspita, objeto a ser conquistado.

Souza, antropóloga que analisa sertão e litoral a partir de várias narrativas

do pensamento social brasileiro, ao observar os mapas do Brasil desenhados pela

representação geográfica do espaço nacional, verifica que todos têm em comum

dois divisores geográficos: um identificado por sertão e outro por litoral. Assim,

“sertão e litoral constituem o padrão das descrições do espaço nacional e dos

modos de vida concebidos como regionalmente diferentes” (SOUZA, 1997, p. 38-

39). Estes cenários, segundo a autora, polarizam discussões relativas ao

desenvolvimento político e econômico brasileiro que operariam em níveis de

caracterização de estágios sócio-históricos tidos como elementos identitários do

Brasil. Isto por que tais áreas geográficas evocam a discussão sobre qual delas

seria base para a construção da nacionalidade.

As narrativas que articulam a representação dessas categorias –

sertão/litoral –, conforme Souza (1997), podem ser atribuídas à posição em que o

observador-escritor se encontra. As distinções que ele elabora partem do lugar de

habitante do litoral. Os significados atribuídos a estas áreas são atravessados pelo

imaginário do escrevente que se posiciona a partir do espaço vivido, familiar. Assim

constata:

(...) o litoral é o espaço conhecido – para o leitor e para o sociográfo - enquanto o incógnito está adiante, lá, naqueles lugares – sertão. (...)

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Sendo a condição de produção dos discursos sobre a nação dada pelo olhar distanciado do escritor, posto que não pertence ao mundo do interior, ao lugar e à gente descrita em seu relatório de „viagem‟ (...) (SOUZA, 1997, p. 39).

Depreende-se que a visão a partir da qual se classificam estes espaços,

encontra-se contaminada pela ideia de civilidade encarnada pelo litoral. Tem-se,

então, um olhar unilateral nessa construção discursiva, pois ele vem de fora. O

sujeito enunciador encontra-se distante, só consegue enxergar em totalidade, eis por

que o “sertão é o outro lugar, ou o lugar do outro. Fala-se dele, mas ele está sempre

longe da enunciação, amparando-se num dêitico verbal para melhor caracterizá-lo:

esse, ali, acolá, mais além” (VICENTINI, 1988, p. 45). Nesse sentido, o sujeito que

nomeia o faz do “lugar conhecido e articulador do olhar e do discurso” (MORAES,

2005, p. 4). Assim, os estranhamentos que advêm dessas narrativas colaboram na

construção de uma identidade para o outro, aquele de quem se fala, inserido na

esfera do arcaico, para quem é dada a receita de civilização.

A partir do século XIX, a categoria sertão passa a ser vista pelos discursos

dos românticos como uma espécie de paraíso, sendo o sertanejo o protótipo do bom

selvagem, pois era aquele que vivia na rusticidade, livre da insolência estrangeira.

Para Oliveira, pelo menos três abordagens de sertão podem ser verificadas

na literatura brasileira. Na primeira, o sertão como paraíso cuja expressão se dá no

romantismo. Nesta, “evoca-se um paraíso perdido em que tudo era perfeito, belo e

justo e cuja linguagem retrataria uma pureza original a ser apresentada e

preservada” (OLIVEIRA, 1998, p. 200). Segundo a autora, o romantismo encontrou

na natureza os ingredientes que ajudaram na manutenção de uma referência de

unicidade dentro do país. Razão pela qual se pode entender a constante relação

entre a natureza ríspida e o homem forte. Nesse sentido, “a força do seu habitante

apareceu relacionada à capacidade de interagir com a natureza múltipla. O cabra –

o cangaceiro – aparece como a encarnação do herói sertanejo” (OLIVEIRA, 1998, p.

197).

A segunda forma de representar o sertão associa-o ao inferno. Nesta

maneira de lidar com este espaço são marcantes “o destempero da natureza, o

desespero dos que por ele perambulam (retirantes, cangaceiros, volantes, beatos), a

violência como código de conduta, o fatalismo” (OLIVEIRA, 1998 p. 200). Os traços

apontados são, pois, de um sertão hostil, lugar de dor e sofrimento onde a lei

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inexiste. Desta leitura de sertão, Euclides da Cunha seria principal representante,

ainda que sua “explicação seja de ordem político-cultural” (OLIVEIRA, 1998, p. 200).

Por último, sertão como purgatório: o “lugar de passagem, de travessia,

definido pelo exercício da liberdade e pela dramaticidade da escolha de cada um”

(OLIVEIRA, 1998, p. 200), configurando-se num lugar de penitência e reflexão. Seria

um espaço a ser desvendado e desencantado, pois pertencente ao reino mítico.

Este seria o sertão de Guimarães Rosa.

A partir do final do século XIX até o início do século XX, a hegemonia

cientificista, propalada como visão de mundo, criaria, entretanto, obstáculos ao

entendimento que percebia no sertanejo o representante da nação, uma vez que

esse sujeito era concebido como atrasado, e, na concepção vigente, a ideia era

iluminar o país através da ciência.

Comentando as conclusões de Faoro sobre as distâncias que se colocavam

entre sertão e litoral, Souza (1997) relata que o sertão se constituía como empecilho

ao desenvolvimento do litoral, no que se refere a seu alheamento às iniciativas

modernizadoras do Estado, como “a se bastar em sua notória suficiência” (SOUZA,

1977, p. 78). Aspecto que colocaria o sertão como espaço de atraso em contraste

com a modernização do restante do país.

Diante disso, o pensamento de Euclides da Cunha é considerado matriz do

olhar sobre a forma de representar a existência de sertão. A partir da publicação de

Os Sertões, em 1902, a voz do escritor se mostraria duradoura na formulação de

bases sobre um projeto de identificação de sertão como lugar da gênese da nação

(SOUZA, 1997). Ao buscar transmitir esse espaço para o leitor, Euclides da Cunha

revela a sensação de se sentir estrangeiro em seu próprio país:

Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço de nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo (...) tornamos (...) mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa o mar, separam-no-los três séculos. (CUNHA, 1973, p. 137-138).

Cunha fala em nome dos sertanejos, denuncia o isolamento a que o país os

submete, mas a partir dos referenciais de homem da cidade, ligado à ciência. Como

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tal, passa a questionar a existência de um país único, tomando como pressupostos

fundamentais a distância temporal em relação ao mundo urbano, civilizado.

Sob a influência de teses racialistas amplamente propagadas no século XIX,

o narrador-cientista concebe sertão não somente como uma sociedade diferente,

mas também “um isolado racial em progressiva segmentação” (CUNHA, 1973, p.

96). O tom de Euclides é de lamento ao constatar uma ausência de unidade racial

no país. “Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca” (CUNHA, 1973,

p. 51).

Considerando-se o contexto em que o escritor se insere, isto deveria ser-lhe

um drama, pois, segundo as imposições das teorias racialistas, os mestiços estavam

fora da matriz de civilização. Euclides da Cunha, contudo, “resolve” o problema

separando os mestiços do litoral dos mestiços do sertão. Considera estes

superiores àqueles, pois seriam fruto do cruzamento entre brancos e índios;

enquanto os do litoral, identificados como mulatos, seriam degenerados e fracos. Eis

por que “o sertanejo é antes de tudo forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos

mestiços neurastênicos do litoral” (CUNHA, 1973, p. 60). O autor defende, portanto,

a existência de uma raça diferente que se fez forte na luta com o meio. Ainda que

sua análise seja de ordem histórica, pois, conforme Lima (1999, p. 201), “Euclides

não teria anatematizado, mas sim estilizado os tipos humanos brasileiros”. Dado o

contexto, ele teria matizado as teorias racistas e positivistas então em voga.

Para Cunha, sertão é uma área esquecida, expressão de uma “esmagadora

(...) imobilidade do tempo” (CUNHA, 1973, p. 70). A estagnação e o isolamento que

atravessam o sertão na narrativa de Euclides da Cunha, contudo, são considerados

benéficos, pois teriam gerado as condições para que dalí emergisse o tradicional, o

primitivo. No sertão se encontrariam os ingredientes fundamentais para se pensar o

nacional. Conforme afirma o jornalista, “aquela rude sociedade (...) era o cerne

vigoroso da nossa nacionalidade” (CUNHA, 1973, p. 71).

Abreu, autor que introduz a visibilidade do universo sertanejo no processo de

formação da nação, formula uma sequência básica que estrutura as origens do

sertão. O autor defende que tais origens teriam base nas relações pastoris e dela

derivava a identidade da sociedade sertaneja (ABREU, 1988). Para o historiador

cearense, era dos sertões que a história da nação emergia. Neste espaço,

descortinavam-se eventos que seriam base para a formação do povo brasileiro,

como por exemplo, o pastoreio. Assim descreve este universo:

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De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os pratos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água (...). Para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que colocavam a terra com seu peso; em couro pisava-se o tabaco para o nariz. (ABREU, 1982, p. 170).

Desenvolveu-se uma sociedade que possuía traços de uma civilização do

couro. Designação dada, conforme Souza (1997, p. 67), por Werneck Sodré que

“toma de empréstimo do mestre Capistrano e lhe sintetiza o significado”. Assim

como Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu valoriza os elementos pertencentes

ao interior do país como algo genuinamente nacional.

Com efeito, essas narrativas sobre sertão forjariam a representação de um

espaço ligado ao tradicional, ao exótico, espaço de resistência, reserva

imprescindível para a construção da nacionalidade. Com isto, permitem a construção

de estereótipos do homem do interior, cuja identidade se confirma na essencialidade

de gente original, associada ao primitivo, ao atraso, presa à armadilha da

estranheza, como se estivesse eternamente com a cabeça curvada para baixo,

voltadas para as raízes.

Guimarães Rosa (1986, p. 01), por sua vez, defende que “O sertão está em

toda parte”, numa compreensão de seu caráter indefinível e difícil de ser apreendido,

visto que o concebe como universo interior e exterior do ser humano. Sertão que

não localiza uma região do Brasil, mas assume uma conotação de “mundo

misturado, onde os pastos não estão demarcados” (MELO, 2011 p. 5), livre, então,

da dicotomia que o constitui em oposição ao litoral. Ao contrário, funde-se com este

promovendo uma circularidade de saberes, como percebido em Grande sertão:

veredas (1986).

Sertão em Guimarães Rosa, tomando-se como referência Grande sertão:

veredas (1986), é visto de dentro, sentido e vivido por quem habita nele, como é o

caso de Riobaldo, o narrador do romance, cuja posição assumida é de proximidade

do referente narrado.

Nesse sentido, Pereira (2012, p. 2) entende que “O sertão apareceu para

Guimarães Rosa como um topos específico que nos propõe imprevistas travessias

no mar imenso dos seres e na geografia da vida”, assumindo, assim, uma infinidade

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de sentidos e leituras, esvaziando-se, portanto, das certezas ancoradoras do

pensamento social brasileiro sobre sertão.

Souza (1997) fala de autores que referenciam sertão como fronteira. Cita

alguns norte-americanos (J. F. Normano, Roy Nash, Viana Moog) pela importância

que lhes é atribuída por meio da incorporação a uma obra local e por reconhecerem

no Brasil o fenômeno sertão/fronteira análogo àquele nos E.U.A denominado

conquista do Oeste. Embora as duas experiências apresentem várias diferenças,

para esta escritora a análise feita por estes americanos do norte põe em paralelo o

movimento de fronteira no Brasil e no faroeste.

Ao citar Normano, Souza (1997) explica que este autor sistematiza ideias-

mestras sobre o deslocamento de fronteira, interessando-lhe o discurso que tem

lugar no sertão. Conforme Souza, Normano reconhece que, ao contrário de seu

país, o movimento de fronteira no Brasil se realiza internamente, deslocando-se pelo

sertão adentro como uma ocorrência que ainda estaria se processando, em

movimento, visto que a extensão econômica que unificaria o país estaria por se

realizar. Isto se faria com a marcha de fronteira transformando o sertão vazio, ainda

não “domado” economicamente.

Nash é outro que também, segundo Souza (1997), observa a fronteira no

Brasil em processo, uma vez que considera, ainda, a permanência, dos vazios na

extensão do espaço nacional, defendendo o preenchimento de tais vazios pelo

progresso econômico. Nisto, concebendo uma fronteira porvir.

Viana Moog também é citado por Souza como defensor da fronteira

brasileira como algo inacabado, não esgotado, por acreditar que esta teria se

iniciado de forma desconcertada pela ação dos bandeirantes, vendo, então, o Brasil

como nação incompleta pela existência de espaços de fronteira. Sob esta

concepção de fronteira interminável, Souza entende que o espaço sertão:

está posto como um evento mítico presente das origens até todos os tempos. Rumar para os sertões é ato fundante da nacionalidade que continua e jamais se completa, ressurgindo em novas formas – mas para sempre o mesmo. Vazio para onde se vai em busca de sentidos para conduzir a nação toda. (SOUZA, 1997, p. 152).

Assim depreendido, sertão-fronteira é construído por uma teia semântica

discursiva que transcende a realidade empírica, constituindo um contexto de

significação do espaço e de seus habitantes. Eis por que para o pensamento social

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brasileiro, “sertão se procura sempre, não se amansa nunca” (SOUZA, 1997, p.

166).

Conforme Albuquerque Jr., sertão e Nordeste são umbilicalmente

relacionados. O historiador afirma que:

O sertão deixa de ser aquele espaço abstrato que se definia a partir da „fronteira da civilização‟, como todo o espaço interior do país para ser apropriado pelo Nordeste. Só o Nordeste passa a ter sertão e este passa a ser o coração do Nordeste, terra da seca, do cangaço, do coronel e do profeta. (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 117).

Embora compreenda sertão como espaço simbólico integrado à ideia de

civilização e conquista, o autor o defende como sendo, agora, área agenciada para

representar uma região. A abrangência espacial e semântica do termo teria sido, no

imaginário social, associada a uma área delimitada – o Nordeste – como se fossem

praticamente sinônimos, pela própria representação do Nordeste brasileiro

comumente apresentado como região semiárida e voltada para a economia pastoril.

Nesse sentido, Amado relata sobre sertão que “entre os nordestinos, é algo tão

crucial, tão prenhe de significados, que sem ele, a própria noção de „Nordeste‟ se

esvazia, carente de um de seus referentes” (AMADO, 1995 p. 145).

A propósito, ressalta-se que foge aos objetivos desse trabalho um

tratamento aprofundado dos vários desenhos desses sertões, mas interessa dizê-lo,

sobretudo, enquanto construção discursiva, cujo processo dialoga com a construção

de nação e de Nordeste. Nesse sentido, a compreensão dos sistemas de

representação que constroem a identidade sertaneja promove maior entendimento

dos engendramentos que articulam as identidades nacional e nordestina.

2.3 Matrizes discursivas sobre a emergência do Nordeste

Muniz inicia seu livro A invenção do Nordeste e outras artes (2006) convida

o leitor a olhar o Nordeste na mídia: novelas, documentários, reportagens

jornalísticas, programas humorísticos. Para ele, o que se encontra de comum em

todos os discursos e imagens são cenas pitorescas, risíveis, repetitivas, frutos de

uma voz arrogante que se sente no direito de narrar o outro em poucas palavras,

ocultando diferenças individuais em nome de semelhanças coletivas

(ALBUQUERQUE JR., 2006). O encobrimento dessas diferenças que envolvem

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histórias, costumes e hábitos acaba por promover a instituição de um discurso

identitário prevalente em torno do Nordeste.

Para Woodward (2004), a diferença é um componente-chave em qualquer

sistema de classificação. Defende-a como um dos pontos principais da identidade,

cuja existência dela depende. Isto por que segundo a autora, a identidade é

fabricada pela marcação da diferença. Enfatiza, ainda, que “a diferença é sustentada

pela exclusão” (WOODWARD, 2004, p. 9). Desse modo, se a pessoa é brasileira,

por exemplo, ela não pode ser inglesa. Ainda conforme a autora, a maneira como a

cultura distingue a diferença depende a compreensão das identidades, tendo em

vista que a “diferença é aquilo que separa uma identidade da outra, estabelecendo

distinções, frequentemente na forma de oposições”, na qual “as identidades são

construídas por meio de uma clara oposição entre „nós‟ e „eles” (WOODWARD,

2004, p. 41). Assim, o sujeito nordestino, por exemplo, está em oposição ao de

outras regiões como o Sul e o Sudeste.

Nessa perspectiva, Silva (2000) considera que o ser diferente é que termina

por dar suporte a outro grupo social, pois “assim como a identidade depende da

diferença, a diferença depende da identidade. Identidade e diferença são, pois

inseparáveis” (SILVA, 2000, p. 68-69).

Ao analisar a emergência da região, Albuquerque Jr. (2006), este autor

afirma que ela surge na “paisagem imaginária” do Brasil, nas primeiras décadas do

século XX, colocando-se no lugar da antiga divisão regional Norte e Sul.

O Nordeste não é fato inerte na natureza. Não está dado desde sempre. Os recortes geográficos, as regiões são fatos humanos, são pedaços de história, magma de enfrentamentos que se cristalizam, são ilusórios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio à tona e escorreu sobre este território. O Nordeste é uma espacialidade fundada historicamente, originada por uma tradição de pensamento, uma imagística e textos que lhe deram realidade e presença. (ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 66).

Depreende-se que o Nordeste não é mais concebido na perspectiva

naturalista ou geográfica, mas como uma invenção, uma elaboração cuja construção

ocorre em um processo desordenado que só ganharia unidade a partir do ideário

regionalista, desencadeado, entre outros fatores, pela decadência da economia

agrária nordestina, sobretudo, a açucareira. Conforme Muniz, enquanto o Nordeste

se colocava numa posição acanhada, o Sudeste se desenvolvia e consolidava sua

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hegemonia econômica frente a outras regiões do Brasil. Por essa época, o Estado

brasileiro buscava uma unidade nacional para o país. É, então, que o Nordeste

surge como um discurso regional, buscando reagir ao Sudeste e às estratégias de

construção da nacionalidade, promovida por essa região. A esse respeito se

posiciona Albuquerque Jr.

O Nordeste nasce da construção de uma totalidade político-cultural como reação à sensação de perda de espaços econômicos e políticos por parte dos produtores tradicionais de açúcar e algodão, dos comerciantes e intelectuais a eles ligados. Lança-se mão de tropos, de símbolos, de tipos, de fatos pra construir um todo que reagisse à ameaça de dissolução, uma totalidade maior, agora não dominada por eles: a nação. Unem-se forças em torno de um novo recorte do espaço nacional, surgindo com as grandes obras contra as secas. Traçam-se novas fronteiras que servissem de trincheira

para a defesa da dominação ameaçada. (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 67).

Agora era preciso que a elite intelectual nordestina elaborasse uma

representação original para a região. Importava construir e sistematizar uma forma

de ver e dizer a região que se constituísse em códigos fixos a fim de “ordenar um

feixe de olhares” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 67) que lhe estabelecessem

determinadas características na formulação dessa organização simbólica. Vários

acontecimentos são referidos pelo autor como fatores que intervieram na elaboração

discursiva da região.

A seca de 1877-79 foi um dos episódios decisivos, pois levava os

proprietários de terras a lutar por recursos frente ao governo federal através dos

deputados “nortistas” que perceberam o flagelo como uma poderosa arma de

reivindicação. Ela era base dos discursos políticos para atração de investimentos,

servia de suporte para o aparato propagandístico político nordestino. Nesta

perspectiva, Castro (2001) também considera que se utilizando de discursos

ideológicos e naturalistas, as oligarquias produziram e difundiram seus argumentos

sobre o Nordeste, elaborando a imagem de uma região vitimizada pela seca.

Em 1919, é criado a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS),

órgão que institucionaliza o termo “Nordeste”, designando-o como a área de atuação

do órgão e que contava com a participação de intelectuais e políticos que buscavam

construir uma imagem mais homogênea para a região, visando a que os “vários

Nordestes” se extinguissem com o propósito de que fossem lidos em uma única

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direção, produzindo, assim, um efeito eficiente politicamente. Neste discurso, afirma

o historiador:

O Nordeste surge como a parte do Norte sujeita às estiagens e, por essa razão, merecedora de especial atenção do poder público federal. O Nordeste é, em grande medida, filho das secas; produto imagético-discursivo de toda uma série de imagens e textos, produzidos a respeito deste fenômeno (...). (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 68).

Desse processo de “ordenação simbólica” da região, o discurso da seca vai

colocá-la como o problema mais importante desta área. Aspecto que a institui como

um recorte espacial específico do país. Nesse sentido, essa região já surgia

discriminada, vitimizada. Disto decorre a produção de imagens por demais

estereotipadas, reduzindo o Nordeste e os nordestinos à imigração, ao flagelo, à

pobreza.

Outro fator que envolve a “fabricação” do Nordeste, conforme Albuquerque

Jr., está na confluência de um movimento cultural regionalista envolvendo

intelectuais filhos das elites da região, encabeçado pelo sociólogo Gilberto Freyre.

Em 1925, publica o livro do Nordeste, cujo objetivo maior era o de instituir a região

como berço da nacionalidade brasileira. Diz, no prefácio do livro, que este é um

“inquérito da vida nordestina; a vida de cinco dos seus Estados, cujos destinos se

confundem num só e cujas raízes se entrelaçam nos últimos cem anos” (FREYRE,

1925, p. 75). A identidade nordestina além de ser representada como distinta em

relação às demais regiões, também se configura como uma espécie de reserva da

cultura brasileira. O Nordeste passa a ser lido e defendido por esse intelectual como

expressão maior do que existia de mais brasileiro. Essa originalidade nacional, que

era o Nordeste, acaba por justificar aspectos conservadores, oligárquicos e

tradicionalistas da região, cuja consequência é a “estetização do atraso” (ZAIDAN

FILHO, 2003, p. 12), é o freio da história.

A identidade regional nordestina emerge, então, baseada na saudade e na

tradição, “um lugar criado de lirismo e saudade. Retrato fantasioso de um lugar que

não existe mais, uma fábula espacial” (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 77). Em razão

disso, ocorre uma verdadeira idealização das tradições nordestinas, uma intensa

valorização das experiências folclóricas, consideradas por este autor como as mais

representativas da verdade da terra.

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Esta “região da saudade” é construída por intelectuais e artistas como uma

postura de defesa contra a expansão moderna e o ritmo acelerado de crescimento

no espaço urbano e industrial. Assim, na busca de uma origem que religasse

aquelas pessoas ao passado, a identidade nordestina era forjada. Para Albuquerque

Jr. (2006), esta visibilidade, iniciada e instituída por Gilberto Freyre, na “escola

tradicionalista de Recife” ganha força em várias expressões artísticas no decorrer do

século XX, sobretudo, na literatura, nas obras da maioria dos escritores do chamado

“romance de 30”.

Essa categoria ficcional, também denominada regionalista, voltou-se,

sobretudo, para a abordagem do universo sertanejo, documentando e buscando

representar “tipos humanos, paisagens e costumes considerados tipicamente

brasileiros” (CÂNDIDO, 1987, p. 87), procurando definir vários tipos humanos e

aspectos sociais componentes da nação. Nessa categoria literária, as novas visões

e expressões do Nordeste ganham abrangência nacional. Coforme Cândido:

[...] 1930 foi a extensão das literaturas regionais e sua transformação (...) cujo âmbito e significação se tornaram nacionais (...). O romance do Nordeste (...) com uma liberdade de narração e linguagem antes desconhecida (...); todo o país tomou consciência de uma parte vital, o Nordeste, representado na sua realidade viva pela literatura. (CÂNDIDO, 1987, p. 187).

Nesse aspecto, o romance de 30 assumiu essa perspectiva expressa pelo

interesse em compreender e mostrar os problemas sociais da nação, passando os

escritores a se preocupar com as condições de vida dos grupos não privilegiados,

em especial, aqueles pertencentes ao espaço rural nordestino. Como é o caso do

“romance do Nordeste”, tido por muitos como o romance regional por excelência.

Libertando-se de uma concepção idealista e exótica do regionalismo do séc. XIX,

essa modalidade literária passa a assumir uma posição crítica frente às questões

políticas e sociais vigentes.

Para Lucas (1970), um dos elementos que compreendem a gênese e

continuidade do romance de 30 é a demarcação dos escritores que se posicionam

pela denúncia dos problemas políticos e sociais do estado a que pertencem, como

por exemplo, Jorge Amado, a referenciar a Bahia, José Lins do Rego, a Paraíba.

O espaço nordestino passa a marcar a identidade desse romance e também

de seus escritores; tem-se uma literatura que se apresenta como instrumento de

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denúncia, empenhando-se em ver e mostrar o Nordeste a todos, com o objetivo de

promover uma nova ordem social.

Vários dos escritores desse período pertencem ao Partido Comunista

Brasileiro, como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, entre outros.

A respeito desse momento e dessa literatura comenta Albuquerque Jr.:

A década de trinta é um momento de intensa disputa entre os diferentes projetos ideológicos e intelectuais para o país, momentos em que organizações e instituições como a Ação Integralista Brasileira, o Partido Comunista, a Aliança Nacional Libertadora. (...) Nesse momento a literatura se converte num meio de luta importante, para se impor como uma visão e como uma fala sobre o real, oferecer uma interpretação e uma linguagem para o país e produzir subjetividades coletivas, afinadas com os objetivos estratégicos traçados por um micropoder. (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 208).

Depreende-se que o romance de 1930 foi tanto um instrumento de denúncia

da realidade nordestina, quanto um veículo político divulgador de ideologias

socialistas. Nesse sentido, Zaidan (2003) considera que a influência do pensamento

marxista, fortemente difundido entre intelectuais e militantes ligados ao Partido

Comunista, atua não somente no modo de interpretar a realidade do país, mas se

coloca como elemento norteador tanto na política, quanto nas artes e na cultura.

Ao escolher o Nordeste, o escritor aborda não apenas os problemas dessa

área, mas também toda uma riqueza cultural popular que lhe é pertencente: formas

de expressão artística, comportamentos, artesanato, gastronomia, cordel, maneiras

de se expressar e de viver. Conforme observa Albuquerque Jr.:

Para ver e dizer a região „como ela era‟, estes autores pretendem

estabelecer um estilo regional que beberá nestas fontes populares.

Este estilo regional se rebela contra o estilo acadêmico, busca uma fala mais próxima à do cotidiano, abandonando também sua artificialidade, elemento que consideram falsidade de linguagem modernista. (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 114).

Há, portanto, uma busca pela tematização de elementos da cultura popular

como forma de legitimar a tradição nordestina, reavivando-a através da linguagem e

outras formas de expressão. Muniz entende essa tradição como tendo sido

estruturada em modelos sociais e conceitos patriarcais com resquícios

escravagistas. O que a seu ver, teria desencadeado “uma verdadeira idealização do

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popular, da experiência folclórica, da produção artesanal, tidas sempre como mais

próximas da verdade da terra” (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 91), estando, assim, a

mentalidade regional fortemente relacionada ao folclore. Em tal discurso, “a ideia de

popular se confunde com as de tradicional e antimoderno” (ALBUQUERQUE JR.

2006, p. 92). Desse modo, conforme Albuquerque Jr., o regionalismo de 30 emerge

a partir de práticas que colaboram para que a região fosse vista como instrumento

de oposição e resistência à modernidade.

Em Uma História do romance de 30, Bueno afirma:

No caso do romance de 30, a formação da consciência de que o país é atrasado canalizou todas as forças. Produziram-se romances que se esgotavam ou na reprodução documental de um aspecto injusto da realidade brasileira ou no aprofundamento de uma mentalidade equivocada que contribuiria para a figuração desse atraso. O herói, ao invés de promover as ações para transformar essa realidade negativa, servia para incorporar algum aspecto do atraso. (BUENO, 2006, p. 78).

Nesse sentido, a geração de 1930 produz mais romances de cunho

pessimista, quanto a uma transformação que levasse em conta a modernização,

pois, segundo o autor, há uma priorização por elementos que evidenciam um país

injusto e atrasado.

Para Cabral, contudo, essa postura frente aos problemas sociais não era

apenas de descoberta de atraso, mas possuía um caráter antifascista e

anticapitalista, retratando uma realidade social ainda desconhecida nacionalmente e

que, portanto, precisava ser problematizada a fim de provocar conscientização.

Era preciso denunciar a vida sacrificada e desumana do sertanejo e identificar o tipo de estrutura socioeconômica viciada que tinha como sustentáculo a política do coronelismo nordestino. (CABRAL, 2009, p. 30).

Bosi (2002) considera que a percepção dos aspectos ideológicos desse

panorama cultural depende da visão de quem o analisa, podendo ser conservadora

ou inovadora. Ele próprio ressalta a importância do regionalismo de 30 para

discussões sobre as identidades regional e nacional, pois defende que esta

produção promove a valorização das tradições populares e da oralidade brasileira.

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O romance de 1930, reconhecido como aquele que emerge preocupado em

definir os vários tipos humanos e as características sociais que acompanham a

nação, se volta sobretudo para o Nordeste, difundindo visões da tradição e do

social.

Para Bueno (2006), foram um equívoco de interpretação as proximidades

definidoras do romance de 1930 por parte de vários críticos, ou seja, a tentativa de

homogeneizar obras e autores com valores e qualidades estético-literárias distantes,

pois acabaram por contemplar apenas o romance social, especialmente, o regional,

ficando de fora do período escritores voltados para uma perspectiva intimista, como

Cornélio Penna, Marques Rebele o Lúcio Cardoso. Tal postura, segundo Bueno,

deve-se ao momento de tensão política generalizada, a saber: os movimentos que

conduziram à Revolução de 1930, à instituição do Estado Novo e aos embates que

levaram à II Guerra Mundial, cujos reflexos, na literatura, nortearam a adoção de

uma postura ideológica de direita ou de esquerda.

Bueno assevera que nem direita, nem esquerda devem expressar visões

definitivas, certezas absolutas, pois:

pertencer a uma família, a uma classe, a um grupo, a um sindicato: nada disso serve para impulsionar as grandes mudanças. Nem tampouco o individuo, sozinho poderá encontrar saída para os seus problemas. (BUENO, 2006, p. 80).

Ao analisar os autores do romance de 1930, Albuquerque Jr. afirma que

estes, em grande parte, eram filhos das elites tradicionais nordestinas que estavam

em decadência. Disto resulta a recorrência do tema ligado à decadência da

sociedade patriarcal, bem como a identificação de muitos desses autores com o

sofrimento do povo, razão por que se constituem seus porta-vozes, expressando,

muitas vezes, uma postura ambígua, ora denunciando a realidade das classes

populares, ora enaltecendo a tradicional dominação paternalista. Apesar de serem

romancistas modernos, expressavam um caráter de resistência diante das

inovações.

Embora produto do olhar moderno, estes romances são nostálgicos em relação a uma visão naturalista e realista do real, em que tudo parecia claro, fixo, estável, e todas as hierarquias e ordenações no seu lugar. (...) não é por outro motivo que este romance tem como um

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de seus temas constantes a luta pela terra, pelo poder sobre o espaço. (ALBUQUERQUE JR., 2006. p. 144).

Por essa concepção, entende-se que há, nesses romances, uma conotação

saudosista quanto à sua produção, em uma linguagem que se pretendia ser

expressão da realidade, visando à descrição da imagem direta do real, buscando

assim, os elementos que significavam o natural.

A produção romanesca de 1930 institui alguns “temas regionais”, como: a

seca e iminente epopeia da retirada; o coronelismo e seu universo; a decadência da

sociedade açucareira; o beatismo e seus conflitos com o cangaço. Estes temas,

segundo Albuquerque Jr., já eram recorrentes na literatura popular, nas cantorias,

nos repentes, nos discursos políticos das elites oligárquicas, no entanto, foram os

romancistas que lhes deram visibilidade, promovendo imagens de uma essência

regional.

O romance de trinta institui uma série de imagens em torno da seca que se tornaram clássicas e produziram uma visibilidade da região à qual a produção cultural subsequente não consegue fugir. Nordeste do fogo, da brasa, da cinza e do cinza, da galharia negra e morta, do céu transparente, da vegetação agressiva, espinhosa, onde só o mandacaru, o juazeiro e o papagaio são verdes. (...) Nordeste da despedida dolorosa da terra, de seus animais de estimação, da antropofagia. Nordeste da miséria, da fome, da sede, da fuga para a detestada zona da cana ou para o Sul. (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 121).

Estas imagens de um Nordeste marcado pela paisagem agreste, desértica,

ressequida, cenário de dor, desolação e flagelo, onde a morte reina soberana,

imprimem um tom à construção da identidade nordestina, associada ao atraso, a

uma ausência. Entretanto, mesmo o Nordeste sendo assim visto é, segundo este

historiador, paradoxalmente, defendido por alguns tradicionalistas como repositório

do que era verdadeiramente nacional, reduto de uma sociabilidade que se

contrastava com a sociedade capitalista moderna.

Dentre estes romancistas construtores de um Nordeste como “espaço da

saudade”, Albuquerque Jr. (2006) destaca três nomes: José Lins do Rêgo, José

Américo de Almeida e Rachel de Queiroz. Destes, busca - se verificar os discursos

da autora cearense, em particular, os que se referem ao romance O Quinze (2002).

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Oriunda de famílias tradicionais nordestinas, publicou, aos 20 anos, seu

romance de maior expressão nacional, O Quinze. Nele, relata o drama dos

cearenses, decorrente da seca de 1915. Para Albuquerque Jr. (2006), este

fenômeno aparece no livro como uma fatalidade que desestrutura o cotidiano dos

sertanejos, provocando o dilaceramento das relações tradicionais de poder. A seca

também promove a dissolução dos códigos sociais e morais. Ela aniquila tudo e

todos, animaliza os homens transformando-os em bichos. Estes e outros aspectos

naturalistas são percebidos na escrita da autora, como, por exemplo, a abordagem

de Vicente, protagonista desse romance. Nele a personagem se mostra como a

expressão do homem “natural”, “amigo do mato, do sertão, de tudo que era inculto e

rude” (QUEIROZ, 2002, p. 16). É um sertanejo possuidor “de uma força primitiva e

virgem” (QUEIROZ, 2002, p. 44). Homem bom, paternalista, protetor dos mais

fracos, que concebe o mundo tomando como referência os valores tradicionais do

sujeito sertanejo. Aliás, o paternalismo se expressa por meio de outros personagens,

que procuram “assistir”, “proteger” grupos de retirantes, prevalecendo, assim, “a

tutela da elite bem intencionada sobre as manifestações da alma popular” (ZAIDAN

FILHO, 2003, p. 23).

Para Albuquerque Jr., Rachel de Queiroz se coloca numa postura ambígua,

ora se posicionando de forma crítica em relação a certas estruturas opressoras da

sociedade patriarcal, ora idealizando esta sociedade percebida como naturalmente

generosa. Sobre isto afirma:

O seu socialismo se aproxima mais de uma visão paternalista de fundo cristão e exprime a revolta de uma filha de famílias tradicionais da região (...). Seus personagens são subversivos à medida que contestam a ordem capitalista, mas sua visão de sociedade futura mistura-se com uma enorme saudade de um sertão onde existia „liberdade‟, „pureza‟, „sinceridade‟, „autenticidade‟. (ALBUQUERQUE JR. 2006, p. 142).

Embora Rachel de Queiroz contribua para os discursos do Nordeste como

tradição, revela, também, um outro aspecto da região que seria palco para uma

possível revolução social, ligada às ideias socialistas.

Conforme Albuquerque Jr., outra perspectiva de leitura do Nordeste se inicia a

partir da década de trinta. Não mais interpretado como um território do passado e da

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tradição, mas como um “espaço da revolta”. Esta nova abordagem surge no

universo da cultura e das artes nordestinas.

Um Nordeste que olhava sem saudade para a casa-grande, que sentia o mesmo desconforto com o presente, mas que também virava as costas para o passado, para olharem em direção ao futuro. Um Nordeste construído como espaço das utopias, como lugar do sonho com um novo amanhã, como território da revolta contra a miséria e as injustiças. (...) Um Nordeste não mais assentado na tradição e na continuação, mas sim na revolução e na ruptura. Um espaço em busca de uma identidade cultural e política, cuja essência só uma „estética revolucionária‟ seria capaz de expressar. (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 183-184).

Negando um passado idílico, os descendentes da velha elite tradicionalista

buscam instituir um novo território no futuro a partir do revolucionário. Sendo que

este adquire um caráter de resistência em relação às transformações promovidas

pelo capitalismo. O marxismo é, então, tomado como um caminho que livraria a

região dessas transformações. Por essa perspectiva, as duas visões de Nordeste

acabam se encontrando na “negação da modernidade” (ALBUQUERQUE JR., 2006

p. 185).

Sob a influência marxista, a produção cultural nordestina passa a ser

utilizada como instrumento de denúncia das condições de miséria e injustiça das

classes populares. Elementos que se constituem em inspiração para elaboração de

trabalhos de artistas e escritores que contribuíram para formular esta leitura do

Nordeste revolucionário. Por esse prisma, romancistas, cineastas, poetas e pintores

que fazem parte dessa construção vão mostrar a região como vítima do crescimento

da sociedade capitalista. Ainda conforme Albuquerque Jr., foi na literatura que essa

leitura passou a ganhar maior visibilidade, sobretudo, com os romancistas,

Graciliano Ramos e Jorge Amado.

Para efeito de abordagem, destaca-se o primeiro, lembrando que não é o

propósito desse trabalho um estudo aprofundado desse autor, mas enquanto toca

alguns aspectos de interesse desse estudo.

Descendente de família sertaneja de classe média, o alagoano Graciliano

Ramos nasceu em 1892, passando a infância entre as cidades de Viçosa (AL),

Palmeira dos Índios (AL) e Buíque (PE). Recebendo a influência do movimento

tradicionalista liderado por Gilberto Freyre, passa a pensar o Nordeste e os aspectos

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de sua cultura. Porém inverte a visibilidade e dizibilidade desse movimento.

Albuquerque Jr. observa:

Ramos procurará mostrar o reverso do Nordeste açucarado de Freyre: O Nordeste dolorido do sertão. Verá por sob o verde dos canaviais o sangue e o suor que corriam. (...) Ele retoma o caminho da criação e reinvenção da linguagem. (ALBUQUERQUE JR. 2006, p. 228-229).

O autor critica o romantismo afetado dos tradicionalistas que concebiam a

região sob uma visão harmônica e nostálgica. Em sua escrita, procura excluir os

exageros, colhendo apenas aquilo que representa a realidade dilacerada do

universo nordestino. Nesta direção, a linguagem é tomada como um importante

instrumento de militância. Defende a correspondência entre esta e a realidade; opta

pelo reencontro entre palavras e coisas; é pelo fim da astúcia da linguagem, pois

compreende seu poder no processo de alienação social.

Em vidas secas (1984), o camponês nordestino é representado como um ser

despossuído de linguagem, quase grunhindo como animais, pois era assim que se

apresentavam os homens sem palavras. Ele é, então, mostrado como expressão de

extrema submissão e alienação. Para o autor, só o domínio da palavra pelo

sertanejo pobre o livraria da opressão conduzindo-o à utopia de uma nova

existência. Isto é percebido numa conversa de Sinhá Vitória e Fabiano, quando os

dois falam sobre parcos sonhos, como o de comprar uma cama de couro. Anuncia-

se, mesmo que momentaneamente, a transformação daquelas vidas. Neste aspecto,

Graciliano Ramos ainda se mantém ligado à velha ordem social tradicional ao

considerar que o conhecimento e a sabedoria se encontravam no litoral ou na

cidade.

Graciliano Ramos elabora, na própria concisão verbal, a imagem da região,

minguada, áspera, seca, “O Nordeste do parco, do pouco, da falta, do menos (...)

que ele quer ver conhecido e ferindo a consciência de todos no país. O Nordeste

onde até o papagaio era mudo” (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 230).

Em suma, Graciliano constrói um Nordeste de pessoas submissas, infelizes,

que sonhavam pouco. Pessoas muito diferentes daquelas do litoral. “Eram

camponeses ridículos andando banzeiros como urubus, de pés espalhados como de

papagaios, nos quais não entrava nem sapato, todos sonhando com a terra da

promissão que ficava sempre no Sul” (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 242).

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Vale ressaltar, contudo, que a instituição sociológica, histórica e literária do

Nordeste, na concepção de Albuquerque Jr. (2006), são produzidas não apenas

sobre si (como se abordou até aqui), não parte somente de dentro da região, mas

também de um discurso do “seu outro”, o Sul. Afirma este historiador:

O Nordeste é uma invenção não apenas nortista, mas, em grande parte, uma invenção do Sul, de seus intelectuais que disputam com os intelectuais nortistas a hegemonia no interior do discurso histórico e sociológico. (ALBUQUERQUE JR., 2006 p. 101).

Essa disputa advinda das lutas regionalistas na busca pela origem da

nacionalidade é travada para determinar a prevalência de uma região e um “tipo

regional” na elaboração da nação. Para tanto, criam-se os mitos e os heróis,

fundadores. De onde, então, teria surgido o tipo brasileiro? Do Sul ou do Norte, de

São Paulo ou do Nordeste?

As discussões entre intelectuais representantes das regiões promovem a

imagem de um Brasil dividido entre o Sul e o Nordeste. No primeiro, estaria o Brasil

“ideal” – racional, inteligente, moderno, rico, industrial; no segundo, o Brasil do

passado, pobre, atrasado e rural. O paulista, tipo ideal desse Brasil do Sul, é

descendente dos bandeirantes e apresenta grande influência europeia em sua

formação. Era tido como: aventureiro, conquistador de terras, independente, livre. O

sertanejo nordestino, por sua vez, era visto como “duro, nômade, mal fixo à terra”

(ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 104). Enquanto o Nordeste era pensado como o

lugar do passado, da tradição, São Paulo era concebido como uma área urbana,

industrial, situada no presente. Desse modo, o dilema da identidade nacional

passava pela escolha de uma dessas regiões para representar o país.

Para Albuquerque Jr. (2006, p. 57), os discursos que se afloravam em torno

dessa questão buscavam legitimar o Sul como “naturalmente” base da nação. A

razão disto é que o Norte se vê e é visto pelo Sul como espaço da tradição. Tal

imagem, obviamente, é construída pelo Sul de forma negativa (ideia de miséria,

atraso, violência); enquanto para o Norte, em parte, ela é vista de forma positiva

(sentido de pureza, sem a contaminação estrangeira, espaço de homens fortes, mas

também lugar onde a seca era o principal problema, imagem caudatária de Euclides

da Cunha).

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É neste cenário que os argumentos de Euclides da Cunha, em Os sertões

(1973), acabam dando sustentação a estas elaborações de ambos os espaços. Isto

por que o discurso ambíguo de Euclides da Cunha produz tanto uma imagem

negativa, quanto positiva da região. A paisagem é ao mesmo tempo de “extrema

aridez” e “exuberância extrema” (CUNHA, 1973, p. 231). O tipo que ali habita é

“permanentemente fatigado” (CUNHA, 1973, p. 270), cambaleante, mas quando se

faz necessário se transforma em um “titã acobreado e potente” (CUNHA, 1973, p.

271). Compreende-se, pois, que a identidade nordestina se forma tanto pelos

discursos construídos internamente sobre a região quanto a partir do processo de

alteridade.

Em Nordestino: uma invenção do falo (2003), Albuquerque Jr., ao investigar

a trama histórica que constrói o nordestino macho, afirma que os discursos

tradicionalistas e regionalistas produziram a figura do sertanejo como um ser heroico

na luta contra a natureza, decorrendo daí, um homem de fibra, destemido, valente,

embrutecido pelo meio, acima de tudo um forte, sendo protótipo de masculinidade

para a região e para o Brasil.

O nordestino é uma figura que vem sendo desenhada e redesenhada por uma vasta produção cultural, desde o começo desse século. Figura em que se cruzam uma identidade regional e uma identidade de gênero. O nordestino é macho. Não há lugar nesta figura para qualquer atributo feminino (...). Na historiografia e sociologia regionais, na literatura popular e erudita, na música, no teatro, nas declarações públicas de suas autoridades, o nordestino é produzido como uma figura de atributos masculinos. (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 20).

É ao universo de imagens, códigos e símbolos masculinos que o nordestino

é associado e definido, sobretudo, como “uma reserva de virilidade”

(ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 231). Desse modo, mesmo sendo apresentado como

incapaz de se inserir numa economia moderna – visto que lhe era atribuída uma

identidade relacionada ao universo rural – possuía uma marca que o diferenciava

dos demais brasileiros, “ele era capaz sempre de uma reação viril” (ALBUQUERQUE

JR., 2003, p. 240). Alguns fatores contribuem para essa representação do

nordestino no entendimento de Albuquerque Jr. (2003), a saber: os elementos que

estariam associados ao discurso de base eugenistas, os de fundamentação

biogeográfica e os pautados na hereditariedade cultural.

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Nos primeiros, estariam os discursos que tratam do nordestino como um

homem eugênico. Estes buscam definir o que seria “raça” regional, defendendo a

constituição biológica como determinante de comportamentos e valores, procurando

“encontrar no que chamam de „etnogênese‟ do homem nordestino a explicação para

suas atitudes, valores, hábitos e para o próprio atraso do homem regional”

(ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 167). Tais aspectos de base eugenista teriam

permitido explicações racistas povoadoras do imaginário brasileiro que, muitas

vezes, fala do nordestino como ser inferior, tido como um “tipo regional e, por isso

mesmo, teria um caráter, uma índole ou uma psicologia própria, que se revelaria na

morfologia de seu corpo e no seu comportamento individual e social”

(ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 174).

O homem telúrico é outro tipo nordestino cuja definição se faz a partir do

discurso de fundo biogeográfico. Nele as raças não seriam mais “fator determinante

da vida social, mas seriam produto do longo processo de adaptação do homem à

natureza” (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 179). A adaptação estava condicionada ao

conhecimento do meio físico pelo homem. Em harmonia com este saber, alguns

discursos sobre o nordestino procuram explicá-lo em suas características físicas,

psicológicas, com seus códigos culturais como sendo reflexo da natureza própria da

região. Oriundo de uma região homogeneizada no discurso como agreste, árida, o

nordestino seria “um homem telúrico, homem especial por ser fruto da adaptação a

uma natureza, a um meio especial” (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 180).

Sob esta perspectiva, Albuquerque Jr. lembra que o discurso regionalista

que trata do nordestino como homem forte, resistente na luta contra a natureza,

privilegia a área do sertão e do sertanejo como exemplo desse embate. Este homem

de fibra era capaz de enfrentar as mais difíceis situações como um “cabra, por ser,

como este animal, tão bem adaptado à natureza de pedra, seca; capaz de

sobreviver comendo o que estivesse disponível” (ALBUQUERQUE JR., 2003 p.

187). Dessa relação do nordestino com a natureza rude, ressequida, áspera, seria

explicada sua característica mais marcante: a masculinidade.

Por esta razão, “até a mulher sertaneja seria masculinizada, pelo contato

embrutecedor com um mundo hostil, que exigia valentia, destemor e resistência. Só

os fortes venciam em terra assim” (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 187). Em um

ambiente rústico e agressivo como este, às mulheres não restava outra alternativa a

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não ser a masculinização. As mulheres circulariam pelo universo masculino como

forma de garantir a sobrevivência.

Já os discursos elaborados à luz de uma “hereditariedade cultural”

preconizam o nordestino como homem rústico cuja constituição física, psicológica e

comportamental remontaria à sua própria formação com origem na história do

povoamento da região, marcado por conflitos com nativos, invasores e na luta com

feras e com a natureza hostil. Desse processo de colonização marcado pela

violência, ter-se-ia a constituição do homem nordestino, destacado como um ser

valente, corajoso e destemido. Tais discursos veiculados no cordel, na literatura e na

memória coletiva, na compreensão de Albuquerque Jr. (2003), acabaram por

construir uma legitimação da violência na região.

É consensual, portanto, a representação do nordestino como uma figura viril,

pensada na masculinidade. Parodiando Fanon (2008), este sujeito é tido como

sendo “antes de tudo um macho”. Assim, seja por razões eugênicas, telúricas ou

histórico-culturais, o nordestino é, na visão de Albuquerque Jr. (2003), tido como

uma reserva de virilidade natural.

Com efeito, as elites nordestinas em seus discursos ambivalentes, ao mesmo

tempo em que se deixavam exaltar mediante uma visão que tomava a região e seus

habitantes como essência da nacionalidade, também se permitiam apresentar como

pedintes esquecidos, excluídos, vitimas da seca e da natureza hostil. Assim, o

Nordeste ora era montado sobre um passado idílico, onde prevalecia a visão

nostálgica e harmônica da velha sociedade patriarcal; ora reduzido ao espaço por

excelência da miséria e desgraça; ou compreendido pela perspectiva totalizadora de

um olhar marxista.

Neste sentido, estes discursos acabaram por agenciar um conjunto de

imagens que abriam brechas para que o Nordeste e os nordestinos fossem vistos,

lidos e ditos pelo “outro”, pejorativamente, com toda uma carga de estereótipos e

preconceitos. Os estereótipos representativos dos nordestinos, por exemplo, eram

os do retirante, jagunço, coronel, romeiro, beato, cangaceiro, entre outros. Todos

com traços que remetem para uma sociedade atrasada, pobre, rústica, rural.

Enfim, é nesse contexto de organização de imagens sobre o sujeito

sertanejo/nordestino que se procura verificar os diálogos de Renato Castelo Branco

com estes discursos no que diz respeito à composição de suas personagens e da

própria diegese do romance Teodoro Bicanca (1948).

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2.4 Sertão e litoral: encontro (im)possível

Ao estudar a temática sertaneja em um romance cuja trama transcorre,

fundamentalmente, em uma fazenda no vale do rio Parnaíba e na cidade litorânea

de Parnaíba, uma problemática se apresenta à pesquisa: tais espaços seriam

configurantes do universo sertanejo, uma vez que sertão e litoral são categorias

historicamente expressas pelo imaginário social como constituintes de realidades

opostas na formação do espaço brasileiro? Como resolver tal dilema, visto que não

se tem a pretensão de se negar a existência dessa dicotomia (litoral x sertão) tão

enraizada no imaginário brasileiro.

Uma possibilidade para dirimir esse problema seria a compreensão de

sertão para além de uma delimitação espacial precisa, pois também tem sido

pensado “enquanto espaço simbólico, cujos contornos geográficos seriam de difícil

delimitação” (LIMA, 1999, p. 44). Ao adquirir uma concepção abstrata, sua

localização geográfica parece se revestir de instabilidade e fluidez. Nesta

perspectiva, argumenta Arruda a respeito da impossibilidade de se localizar com

exatidão a área geográfica do sertão, pois este

[...] não tem uma origem geográfica precisa [...] Grosso modo, representa muito mais um aspecto simbólico de lugar distante, deserto e despovoado do que uma localização. (ARRUDA, 2000, p. 165).

Desse modo, sertão pode ter seu sentido deslocado de uma geografia para

o campo simbólico, haja vista, ser fruto das representações responsáveis pela

construção dos significados que assumiu. Assim, a categoria sertão não denota uma

realidade, mas implica em uma representação da realidade, que vai além da esfera

geográfica. Em Um sertão chamado Brasil (1999), Lima, ao empreender

investigação sobre a origem da dualidade sertão/litoral, afirma que ela é formulada a

partir da imaginação social sobre o país, defendendo que a centralidade dessa

dicotomia está mais ligada à ambivalência identitária dos intelectuais que

representam estes espaços, que propriamente a oposição entre o Brasil moderno e

o atrasado, como querem alguns intelectuais. Isto porque vendo os “diferentes

„outros‟ – sertanejos, caipiras, pobres, classes subalternas – (...) como estrangeiros

em seu próprio país, é também como estrangeiro que o intelectual se coloca diante

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da sociedade” (LIMA, 1999, p. 207). Lima dialoga com a metáfora de Guimarães

Rosa sobre a ideia de sertão enquanto fronteira, que aqui não tem sentido de

delimitação de espaços geográficos fixos, mas adquire ideia de mistura.

Parafraseando o grande escritor mineiro, a autora defende que “o sertão parece está

em todo lugar que se anuncie o desconhecido, o espaço social a conquistar” (LIMA,

1999, p.44).

Desse modo, os argumentos utilizados por alguns intelectuais acerca dos

contrastes demarcadores entre sertão e litoral compreendem o lugar de onde falam,

a saber, dos centros urbanos, influenciados ou comprometidos com um discurso

científico, como, por exemplo, os sanitaristas, cuja atuação no interior do país

contribuiu decisivamente, segundo a autora, para as imagens sobre um Brasil

bipartido.

A propósito, é pertinente que se considere as reflexões de Souza (1997)

sobre a concepção de alteridade para o caso brasileiro, envolvendo sertão e litoral.

A autora argumenta que:

Aquele que desvenda o Brasil registra uma disjunção entre partes de um só conjunto. O saber produzido na sociografia se restringe a mapear as regiões internas; portanto, os espaços imaginados são nomeados por uma classificação englobante: tudo de que se fala é Brasil. O pensamento se apossa simbolicamente dos lugares, dando-lhes nomes e qualidades, mas os olhares que lança são para dentro da nação. Por isso nunca se nega a ser o sertão parte de nós. (SOUZA, 1997, p. 163).

Desse modo, mesmo que o escritor narrador dessas áreas as demarque,

ele o faz a partir de uma perspectiva interna, imerso que está em ambos os espaços

componentes do todo que é o Brasil. Por essa lógica, o sertão não é exterior a

nenhum brasileiro, nem é um fragmento isolado da nação, mas sim, parte integrante

dela. Desse modo, ainda de acordo com a antropóloga, tais espaços são unificados

pelo pertencimento à mesma brasilidade, sendo, então, inconcebível a noção de

alteridades plenas (SOUZA, 1997).

Parafraseando Said, pode-se conceber sertão e litoral como categorias que

se “apoiam e, em certa medida, refletem uma a outra” (SAID, 1990, p. 17). Como em

um jogo de espelhos, ambas se percebem de forma invertida, porém complementar.

Daí uma estar sempre à procura da outra. Isto pode ser verificado, por exemplo, em

obras como Morte e vida severina (1988), de João Cabral de Melo Neto, cujo

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personagem central faz um longo percurso pelo sertão da Paraíba com destino ao

litoral do Recife. Mesmo deparando-se com a morte neste espaço, é nele que a

força da vida se faz mais presente, a partir do encontro com mestre Carpina,

habitante do litoral.

Com efeito, sertão e litoral são realidades para além de naturais,

constituídas por fronteiras móveis e relativas, pois elaboradas a partir das

ambivalências identitárias de intelectuais que falam a partir de seus referentes.

Estes, contudo, são partes complementares de um todo nacional, configurantes do

mesmo espaço: a nação brasileira (SOUZA, 1997).

Assim, ao mesmo tempo em que não é possível precisar com exatidão onde

sertão e litoral se encontram – até pelo caráter enigmático que envolve o sertão –

estes espaços apresentam-se imersos no todo nacional, dependentes e

complementares, um “amansando” o outro.

2.5 O lugar de Renato Castelo Branco: diálogos com discursos diversos

Renato Castelo Branco é um escritor de ampla formação intelectual e

possuidor de uma visão multifacetada do mundo, demonstrando profundo

conhecimento de sociologia, filosofia, psicologia, antropologia e história. Para

produzir sua criação literária dialoga com grande número de escritores nacionais e

estrangeiros.

Conforme relato do próprio autor em Tomei um ita no Norte (1981), as

primeiras influências literárias recebidas ainda na adolescência, teriam sido de

autores do Romantismo. José de Alencar foi o primeiro. Depois vieram os realistas e

naturalistas: Raul Pompéia e Aluizio Azevedo. Em seguida, influenciam-no Machado

de Assis e Eça de Queiroz. Descobrindo, ainda nessa época, autores que

revolucionaram seus pensamentos e convicções, como Charles Darwin, Ernt

Haeckel Laplace e Augusto Comte. Por esse tempo, era um jovem dividido entre o

misticismo de suas origens e o espírito racional de sua época.

No período acadêmico, o escritor manteve contato com os discursos

socialistas, época em que descobriu Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lenin.

Passa então a assumir o discurso das lutas sociais em defesa de justiça social.

Conheceu também as ideias de Máximo Gorki, Jean-Paul-Sartre, Sigmund Freud,

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entre outros. Abandona Castro Alves, Olavo Bilac para abraçar Garcia Lorca, Pablo

Neruda, Konstantin Simonov.

Renato Castelo Branco volta-se então para Nietzsche, que exerce sobre ele

uma influência avassaladora. Sob a perspectiva da filosofia nietzscheana, declara:

Para além do bem e do mal, eu iria agora começar tudo de novo. Libertado de Deus e do Cristianismo, libertado de Marx e do comunismo, comecei a erguer minha nova morada pedra por pedra, ano após ano, sobre os escombros de minhas crenças, minhas convicções, meus condicionamentos, meus preconceitos. (CASTELO BRANCO, 1981, p. 154).

Permaneceria, no entanto, a preocupação com o social e com a moral.

Continuaria também em suas entranhas a nostalgia da terra natal e os fantasmas

povoadores de sua infância os quais jamais o abandonariam.

Para o propósito da presente pesquisa, interessam os diálogos que Renato

Castelo Branco realiza com autores construtores de discursos sobre sertão e

Nordeste, tendo em vista a repercussão desses em sua produção literária. Com isto,

busca-se compreender quanto desses discursos o interpelaram para construção de

Teodoro Bicanca.

O período de 1930 a 1945, segundo Penna (1999), foi marcado por grandes

acontecimentos nacionais e internacionais. No Brasil, o ano de 1930 foi palco de

vários episódios, como a “Revolução de 30”, cujo objetivo era acabar com as

oligarquias, pondo fim à República Velha; promove-se a Intentona Comunista em

1935; ocorre a implantação do Estado Novo – fascista em 1937, mostrando-se

autoritário e repressor, sob a face de medidas industrializantes. Na esfera

internacional, o mundo se encontrava dividido entre o regime comunista e o

nacional-socialista nazi-facista. Crises políticas em 1939 acabam por desencadear a

segunda guerra mundial que convulsionou a Europa e outros continentes. Em um

contexto marcado por esses acontecimentos, insere-se a escrita do romance

Teodoro Bicanca (1948).

Considerando-se a época em que Renato Castelo Branco produziu os

primeiros livros (incluindo Teodoro Bicanca), verifica-se que ele é interpelado, em

parte, pelos discursos cientificistas do final do século XIX, como também pelas

ideias de esquerda que permeavam o ambiente intelectual brasileiro das décadas de

1930 e 1940.

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Seu diálogo com a tradição sócio-histórica e literária se expressa, a priori,

pela influência de Euclides da Cunha, que tem sua obra Os sertões (1902)

homenageada por ele com um poema de mesmo nome, nisto, alinhando seu

pensamento ao de Euclides acerca de sertão.

Outro diálogo expressivo de Renato Castelo Branco com Euclides da Cunha

mostra-se no livro A civilização do Couro (1942). Vários são os aspectos de contato

entre ambos nessa obra. A começar pela estrutura, dividindo-se em três partes: a

terra, o homem e o meio. Nele, ao tentar entender o fenômeno da seca, concebe-a

na mesma visão de Euclides da Cunha, como sendo a lei social do Nordeste. O

sertão/Nordeste de Renato Castelo Branco, assim como o euclidiano, também é

habitado por indivíduos simples que estabelecem com a natureza uma forte

integração. Esse tipo de sertanejo é o mesmo recorrente em Euclides da Cunha:

fraco pela má alimentação, mas forte, resistente como um titã, quando tem que se

envolver em alguma peleja. Afirma que: “é de causar espanto ver-se como podem

ser robustos organismos subnutridos na hereditariedade de dois séculos”

(CASTELO BRANCO, 1942, p. 48).

Ao examinar os Sertões, Renato Castelo Branco acredita que Euclides da

Cunha tenha esboçado, definitivamente, a fisionomia moral do sertanejo. Considera

que ele tenha feito uma obra definitiva. Entende que, ao descrever o jagunço,

acabou por fixar o perfil do vaqueiro piauiense: “o retrato não poderia ser mais fiel”

(CASTELO BRANCO, 1942, p. 53).

Outro autor com quem Renato Castelo Branco dialoga é Gilberto Freyre.

Deste toma alguns aspectos ligados à convivência cordial entre coronéis e

agregados. Isto pode ser verificado em Teodoro Bicanca na relação entre o coronel

Damasceno e seus agregados, que em várias situações o têm na conta de homem

bom e necessário, sendo por isso respeitado e reverenciado.

A influência do sociólogo pernambucano na produção literária do escritor

piauiense também se faz presente em relação à visão do Nordeste como lugar de

tradição, de reserva das singularidades regionais. Tal discurso é perceptível em

Teodoro Bicanca, entre outros momentos, na referência feita à lenda do cabeça de

cuia, ao conjunto de infusões e rezas para cura de males do corpo e da alma, na

maneira como as personagens lidam com a natureza e seus recursos, na poética da

viola de personagens que amenizam o peso da lida com os versos que falam de

suas vidas e do universo que os circundam.

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As tradições nordestinas também são evidenciadas em Tomei um ita no

Norte (1981), sobretudo quando o autor trata de sua infância em Parnaíba e do

êxodo de tantos nordestinos que, como ele, deixavam sua terra em busca de novos

caminhos no Sul.

Rachel de Queiroz também o interpela quanto à ideia de sertão/Nordeste,

tanto no que concerne à visão dessas categorias como “espaço de saudade”, para

onde se quer sempre voltar, integrar-se às raízes, à natureza, quanto em relação à

figura do sujeito sertanejo ora representado como heroico, bom, ora embrutecido

pela ação fatalista dos elementos climáticos (a seca), desorganizadores da vida e da

sociedade sertaneja. Quanto ao primeiro aspecto, isso pode ser percebido em vários

livros de Renato Castelo Branco: em Candango, gagarin, blaiberg e outros poemas

(1968), o eu lírico expressa em vários poemas a saudade das origens, evocando as

reminiscências da infância vivida em Parnaíba; em Rio mágico (1987) o tema do

retorno às raízes é apresentado na figura de um senhor de sessenta anos bem

sucedido em São Paulo, mas que, impelido pelas lembranças do passado,

abandona a grande metrópole e volta para sua cidade natal – Parnaíba – em busca

das origens; em Tomei um ita no Norte (1981), a saudade da terra natal é abordada

na primeira parte do livro, cuja infância e adolescência do autor, vividas no Piauí,

são referenciadas com toda uma força lírica expressiva de uma lembrança que

perpassaria toda sua vida.

No discurso de posse na Academia Piauiense de Letras (1985), então com

71 anos, Renato Castelo Branco declara:

A província é uma palavra mágica, de indescritível carga emocional. (...) A província é o rio Parnaíba, são as dunas de Amarração, são os carnaubais do tio Belo, as histórias de assombração de Siá Ana. (...) Há cinquenta anos carrego comigo esta saudade (...). (CASTELO BRANCO, 1986, p. 11).

O texto revela a força emocional que as raízes exercem sobre a

personalidade do escritor parnaibano. Tanto a geografia física da região como as

experiências nela vividas interpelam sua existência e sua escrita. Depreende-se uma

nostalgia e uma agregação aos sentimentos que o prendem às suas origens.

Em relação ao diálogo com a representação que Rachel de Queiroz faz

sobre o sujeito sertanejo como uma figura ambivalente, ora boa, ora embrutecida,

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isso pode ser percebido especialmente em Teodoro Bicanca, quando o autor põe em

cena Damião, antes da seca em harmonia com a família e depois dela, vivendo de

agregado sob as malhas do poder e da exploração exercida pelo coronel

Damasceno, dormindo no chão e tendo que trabalhar metido no pó da carnaúba até

ficar tísico.

Em razão de seu engajamento político, Renato Castelo Branco também

dialoga com escritores como Jorge Amado e Graciliano Ramos que, em parte e cada

um a seu modo, tomaram o Nordeste como síntese de uma situação de

subdesenvolvimento e de submissão típica de uma realidade de classes, lendo-o

como uma região marcada pela miséria e, consequentemente, pela necessidade de

ser transformada por meio do socialismo. Esta discussão se apresenta como um dos

temas presentes em Teodoro Bicanca (1948).

Renato Castelo Branco ainda homenageia Guimarães Rosa com o livro de

poesias Poemas do grande sertão (1993) no qual o sertão é o tema central. São

poemas que parafraseiam o escritor mineiro em sua visão de sertão rico, abundante,

misterioso e indefinível, como se pode depreender nos versos: “sertão é fim de

rumo, / por esses longes todos sem tamanho / onde os pastos carecem de porteiras.

/ Sertão, estes vazios do tamanho do mundo” (poema Grande sertão); ou “Rios

bonitos vêm se encontrar com o sol” (poema Os gerais) (CASTELO BRANCO, 1993,

p. 3-5).

Sertão abundante de Guimarães Rosa também é perceptível em Teodoro

Bicanca nas descrições feitas do cenário rico, fértil no qual se situa a fazenda Areia

Branca, palco de grande parte dos episódios do romance. Aliás, a narrativa tem

início com o rio Parnaíba cheio, valente, com todo seu encanto, domínio, mistério e

importância, fertilizando toda a área ribeirinha e proporcionando fartura aos

moradores habitantes daquele vale. Nesse sentido, sertão em Renato Castelo

Branco se mostra farto e amplo de perspectivas.

Assim, os diálogos de Renato Castelo Branco com os discursos sobre sertão

ora se fazem em conciliação com autores que formularam a região em uma

visibilidade tradicional, por vezes sob estigmas e estereótipos, ora se realizam

conforme aqueles que o viram com um olhar moderno, largo, como um vazio a ser

preenchido, ou seja, como um espaço que se mostra aberto a inúmeras

possibilidades de significações.

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3 IMAGÉTICA DISCURSIVA DO SUJEITO SERTANEJO/NORDESTINO

Sertão é onde os pastos carecem de fecho. Guimarães Rosa

A partir de representações de sertão/Nordeste apresentadas por escritores

que, em seus textos ficcionais ou científicos, traçaram-lhes um perfil, desenharam-

lhes um rosto e construindo-lhes identidades, busca-se, neste capítulo, investigar a

imagética discursiva sobre o sujeito sertanejo/nordestino gestada por discursos

diversos, examinando quanto dessa imagética se faz refletir nas representações das

personagens de Teodoro Bicanca.

Admite-se, contudo, grandes dificuldades para se conceber uma visão

imagética desses sujeitos em dissonância com a que foi historicamente construída.

Tais dificuldades se devem em razão de o autor apresentar uma tendência a

dialogar com o contexto em que está inserido ou com as experiências que fazem

parte de seu mundo, pois se encontra envolvido na conjuntura social de que faz

parte, bem como pela própria ambiguidade nos discursos dos construtores desses

espaços.

A dificuldade se coloca, ainda, em função do seguinte dilema: a valorização

de aspectos culturais da região realimenta uma visão de atraso e distanciamento da

modernidade ou apresenta uma resistência a tais discursos, mostrando-se como

uma via potencializadora de outras significações?

3.1 Tecendo poderes

As malhas de poder que tecem a produção do sujeito sertanejo/nordestino

em suas (inter)relações podem ser confirmadas pelas observações de elementos

ligados ao conceito de poder, como formulados por Foucault (1979). Segundo o

filósofo francês, o poder é uma pratica construída historicamente. É díspare,

heterogêneo, penetra a vida cotidiana, podendo ser caracterizado como micro-

poderes, exercido em diferentes pontos da rede social. A rigor, não existe o poder,

mas práticas ou relações de poder, ou seja, o que se pode perceber são formas de

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exercício do poder que se articulam entre si e com o Estado, assegurando sua

eficácia. O poder é, assim, algo que se exerce, que se disputa (FOUCAULT, 1979).

Conforme Machado, a análise que Foucault faz dos poderes é de que eles

“não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam

como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa”

(MACHADO, 1979, p.XIV). Atravessam os diferentes níveis sociais, atuando sobre

instituições e sobre a realidade cotidiana do sujeito. Desse modo, as múltiplas

relações de poder são imanentes ao corpo social, não se situando apenas em local

específico como, por exemplo, um aparelho do Estado, mas com abrangência em

toda a sociedade.

Foucault (1979) entende que o poder possui uma capacidade de se

entranhar, de se infiltrar por todos os espaços e ações, como também de se diluir e

tornar-se obscuro, de difícil percepção, ocorrendo nas mais diferentes classes

sociais, lugares e profissões. Nesse sentido, Foucault defende que o poder não está

em posições de superestruturas do campo social, mas se ordena como uma rede

difusa que se capitaliza na sociedade, materializando-se no tecido das relações. O

filósofo entende que o poder deve ser captado em suas extremidades, nas quais se

torna capilar, ou seja, deve ser examinado nas instituições mais regionais e locais,

distante das organizações legítimas e centrais.

Assim, para Foucault, o poder se exerce pela ação de micropoderes que

existem em níveis variados e em pontos distintos da rede social e organizacional,

estendendo-se ao corpo em sua materialidade e se efetivando no dia-a-dia. Foucault

frisa que:

O poder está em toda parte, não que englobe tudo, mas porque vem de toda parte [...], o poder não é uma instituição e não é uma estrutura [...] não é qualquer coisa que se adquire, se arranca ou se partilha [...] o poder exerce-se a partir de um sem número de pontos e num mecanismo de relações não igualitárias, mas móveis. (FOUCAULT, 1979, p. 96-97).

Dessa forma, para o filósofo francês, o poder não é estático, como se fosse

possuído pelos que o detêm com exclusividade e longe dos sujeitos que lhe são

submetidos. Ao contrário, o poder circula em rede. Nesta, o individuo não apenas

transita como resultado desse poder, mas também é agente dele.

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O poder não se aplica aos indivíduos, passa por ele. [...] Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos do poder. [...] Pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. (FOUCAULT, 1979, p. 183-184).

Esta concepção de poder em Foucault remete para a ideia de que o sujeito

não tem a posse do poder, mas a capacidade de exercê-lo nas mais diversas

instâncias e intensidades. Nesse aspecto, as relações seriam reguladas por táticas,

técnicas e estratégias que visariam a produzir o efeito de assujeitamento e também

de resistência. Para Foucault o poder não é algo que apenas domina, mas é

também inserido em um jogo estratégico.

Mesmo possuindo esse caráter abrangente e onipresente, Foucault (1979)

acredita que o poder não é sempre negativo, ele possui uma dimensão positiva, por

possuir um aspecto produtivo e transformador, não se mostrando apenas por sua

função repressiva, pois isto silenciaria as pessoas e as impediria de promover a

circulação de saberes. O poder é bem mais amplo que a ideia de repressão, pois

conforme assegura Foucault:

[...] o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como força que diz não, mas que de fato permeia, produz coisas, induz ao poder, forma o saber, produz discurso. Deve considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir (FOUCAULT, 1979, p. 8).

O que confere sustentação ao poder é sua mobilidade, sua capacidade de

penetrar nas mais diferentes instâncias sociais e produzir conhecimento. Se ele

fosse apenas repressivo, não seduziria. Assim, para o autor, é preciso se distinguir

dos que deram à repressão, uma dimensão exagerada, como os marxistas,

pois se o poder só tivesse função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande super-ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. (FOUCAULT, 1979, p. 148-149).

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O poder constrói uma gama de conhecimentos específicos a partir dos quais

novas formas de poder são produzidas. Nisto, poder e saber se constituem como

elementos que se interrelacionam. O poder, conforme o autor, gere a vida das

pessoas, controlando suas ações e adestrando suas condutas. Assim, atua sobre o

corpo dos sujeitos controlando seus elementos, a fim de produzir uma riqueza

estratégica na construção de um conhecimento eficaz à sua docilização. É nesse

aspecto que ele é positivo, à medida que se reveste de um caráter transformador,

não visando a expulsar os sujeitos da vida social, mas controlá-los em suas ações.

Em Teodoro Bicanca, um narrador intelectual e distanciado (3ª pessoa)

conduz a narrativa. Ele é uma espécie de porta-voz dos retirantes da seca e dos

subalternos. Vai pondo em cena personagens submissos e dominados que

encontram no alcoolismo e no suicídio a única saída para uma existência de

migalhas, ou sucumbem à loucura. Damião, por exemplo, incapaz de enfrentar o

poder do coronel Damasceno, torna-se alcoólatra e termina por dar cabo à própria

vida. Crispim, agregado da fazenda e companheiro de Damião, após fugir do

domínio do coronel, enlouquece e passa a viver de esmolas, sendo reconhecido

anos depois por Teodoro em suas andanças de barco pelo rio Parnaíba.

Vários estereótipos se apresentam no romance, como por exemplo, a

vitimização do sertanejo. Teodoro Bicanca é um exemplo disso. Vive por duas vezes

a experiência de ser retirante, não conseguindo se sobressair no espaço onde vivera

a adolescência e juventude: a cidade de Parnaíba. Termina por fazer o percurso de

volta a Areia Branca.

Verifica-se, também, a relação de proteção de ricos e intelectuais para com

os pobres e iletrados, concebidos como ingênuos ou desprovidos de certas

capacidades intelectuais. A personagem Abedias, jovem advogado comunista, é

bem característica desse aspecto. Defende a causa dos vareiros e estivadores do

rio Parnaíba, cria um sindicato dessa categoria, auxiliado por Teodoro Bicanca e

outros trabalhadores. No entanto, por duvidar da possibilidade de consciência

política dos companheiros, omite-lhes os perigos que o movimento representava

naquele contexto político.

Nesse sentido, Teodoro Bicanca dialoga com objetivos propostos por alguns

escritores de 1930 como, por exemplo, o de situar a literatura como instrumento de

denúncia, comprometida com uma mudança social, servindo, assim, como

desvelador da ideologia dominante que tinha no capitalismo sua centralidade. Os

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autores dessa geração, conforme aponta Albuquerque Jr. (2006, p. 211),

construíram “o Nordeste como este território que estimula a revolta e a revolução;

como território-denúncia da miséria e da injustiça”. O sujeito nordestino é concebido

como um ser aprisionado numa teia de injustiças sociais e de exploração, como se

pode perceber no trecho a seguir:

O coronel mandara Malaquias escolher o terço do roçado que lhe cabia. Malaquias escolhera para o coronel o terço mais bonito, mais viçoso. Mas Damião não se importara. Ele não queria fuzuê e com os outros dois terços ainda poderia pagar tudo o que devia e receber uns dinherinhos. Mas, quando chegou na hora do ajuste, Damião ficou acabrunhado. Pelos cálculos do coronel o que ele tinha para receber não dava nem para pagar a dívida. Damião achou muito elevado o preço que o coronel cobrara pelas ferramentas, pelas sementes e pelo mantimento adiantado. E muito baixo o que pagara pelos dois terços da roça que lhe cabia. Mas, quando quis falar, o coronel se ofendeu todo. - Seu Damião, meça suas palavras. Você quer dizer que eu tou lhe roubando?! Damião não queria dizer isto. O coronel entendera mal, mas é que ele estava habituado a pagar menos pelas suas compras e receber mais pelos seus produtos. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 67-68).

Este episódio cumpre um papel de denúncia da espoliação da qual é vitima

o sertanejo pobre. O coronel rouba-lhe na partilha da colheita e no valor

superfaturado dos materiais e sementes, paga-lhe uma quantia inferior ao devido.

Damião tenta questionar, mas é silenciado pelo patrão. Tendo que se submeter ao

seu poder, fica passivo diante daquela situação análoga à de escravidão. Em razão

dessa dominação, a personagem é percebida como alguém que possui uma visão

limitada do mundo. A mudança nessas estruturas de dominação só se efetivaria

caso houvesse uma consciência capaz de unir os oprimidos e marginalizados. Os

saberes capazes de promover tal consciência advinham do ambiente urbano

mediante os conhecimentos ligados ao socialismo.

Em Teodoro Bicanca, essa situação pode ser verificada na aproximação que

o romancista estabelece entre Teodoro e Abedias. Este exerce o papel de

conscientizar o protagonista acerca das estruturas de poder existentes na

sociedade.

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Com a convivência de Abedias, Teodoro ia compreendendo coisas que nunca lhe passara pela cabeça. O mundo começava a se apresentar a seus olhos de modo diferente. E os coronéis, também, tinham outros coronéis ainda maiores acima deles, os que compravam a cera, ou o babaçu, ou as peles, para mandar para a estranja. E Abedias dizia que também dependiam de gente ainda mais poderosa. O mundo de Teodoro tornava-se cada vez mais complexo, - era o mundo do bicho maior comendo o menor: o coronel comendo o agregado, o exportador comendo o coronel, a estranja comendo o exportador. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 135).

Assim, a organização dos trabalhadores se dá mediante a iniciativa e

liderança do advogado, homem culto da cidade. Abedias se coloca como defensor e

protetor de uma gente inculta e ingênua. Ele defende e orienta as reivindicações da

classe. Tem o conhecimento dos mecanismos de dominação. Vê-se então, que o

autor não consegue se livrar da ideia de que o conhecimento vem do universo

urbano, de quem se apropriou do saber formal. Desse modo, a concepção de

sertanejo pobre é referenciada com o estereótipo do indivíduo incapaz de construir

sua história sem a proteção do mundo “civilizado”, sem a dependência de uma voz

esclarecida. Em virtude de não possuir o domínio do saber científico, esse sujeito é

considerado impossibilitado de compreender as táticas engendradas pelas relações

de poder.

Outro momento em que essa visão é reforçada no romance Teodoro

Bicanca, diz respeito à maneira como Abedias lida com as reações dos parnaibanos

à criação do Sindicato, bem como o temor que sente de uma iminente repressão

promovida pela ditadura getulista. O advogado deseja dividir com alguém as

angústias que o afligem, no entanto, considera que “estas ideias ele não podia

compartilhar com ninguém, nem mesmo com Teodoro e Zé Peinha. Eles não

poderiam compreender” (CASTELO BRANCO, 1948, p. 224).

Em Teodoro Bicanca o exercício do poder apresentado de forma explícita é

perceptível também em relação à imprensa. Ao organizar o Sindicato dos Vareiros e

Estivadores de Parnaíba, Abedias envia uma carta ao jornal local, Clarin, expondo o

programa do Sindicato. Nela, solicita apoio da sociedade para as reivindicações

aprovadas em assembleia, cujos objetivos eram tão somente conseguir melhorias

nas condições de trabalho. O jornal, não só se recusa a publicar a carta, como faz o

contrário, divulga um artigo colocando o Sindicato como uma ameaça à tranquilidade

e segurança da sociedade parnaibana. A partir de então, promove-se um ambiente

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de hostilização aos membros do Sindicato por parte dos demais habitantes da

cidade, que passam a vê-los como violentos e perigosos, revoltosos que estariam

planejando a tomada e o controle da cidade.

Com a prerrogativa de ser detentora da verdade, a imprensa, em Teodoro

Bicanca, utiliza-se de tal poder para o controle da informação, criando uma barreira

de comunicação entre os sindicalistas e aquela sociedade, sendo responsável pelo

isolamento e opressão do grupo. Esta postura estende-se aos jornais dos estados

vizinhos do Piauí, que passam a dedicar extensas matérias à situação de Parnaíba,

chamando a atenção das autoridades federais para o perigo que Abedias e o

Sindicato constituiriam.

O jornal Clarim, representado em Teodoro Bicanca, pode ser tomado como

metonímia da imprensa brasileira que, através de seus mecanismos de poder,

cerceava e distorcia vozes denunciadoras de injustiças sociais.

Conforme já foi dito, o poder para Foucault (1979) não é exercido apenas

nas macroestruturas, nas instituições centrais, mas fundamentalmente na periferia,

nas extremidades, ou seja, nos micropoderes, como se pode verificar na

representação do Sindicato de Vareiros e Estivadores em Teodoro Bicanca, em que

lutas internas por espaços de poder são claramente travadas. Isto pode ser

percebido através da personagem Boca de Sovaco, um vareiro de estatura enorme,

com fama de ser valente. Dizia-se que ele tinha “pauta com o diabo”, apresentando

o “corpo fechado” por tia Maria, a feiticeira da Coluna Prestes. Aos dezoito anos teria

acompanhado a marcha de Luis Carlos Prestes rumo ao Ceará. Apropriando-se de

tal fama, busca ocupar espaço no sindicato, tentando se sobressair a Abedias junto

ao grupo. Enquanto o advogado procura se utilizar de recursos persuasivos para

conquista dos direitos reinvidicados, o vareiro incita o grupo a agir pela força e

violência, nisto ganhando a adesão da maioria. O trecho a seguir mostra essa

questão. Acusados de estarem planejando toda sorte de violência contra a elite

parnaibana, Abedias convoca uma reunião:

Naquela noite, quando Abedias, numa reunião [...] enumerou as diversas calúnias de que estavam sendo vitimas, Boca de Sovaco aparteou, sob aplausos, que a ideia não era má. Abedias respondeu que tais ideias, além de impraticáveis, eram absurdas e que a finalidade do Sindicato era corrigir injustas e não cometer outras. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 211).

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Em Teodoro Bicanca as relações de poder não ocorrem apenas com o

agente superior (o coronel) no comando, mas também com o agregado no domínio

sobre seus pares, como verificável em alguns episódios envolvendo a personagem

Malaquias, agregado e capanga do coronel Damasceno. Um desses episódios

ocorre quando Malaquias vai recolher a parte do roçado de Damião que é conferida

ao coronel, ou seja, a metade do que o agregado havia produzido: “Malaquias

escolhera para o coronel o terço mais bonito, mas viçoso” (CASTELO BRANCO,

1948, p. 67). A cena ilustra relações de poder se exercendo entre personagens

consideradas agentes inferiores – ambos são agregados. Malaquias se sente,

contudo, superior na posição que o coronel o coloca. Exerce esse micropoder para

explorar mais ainda Damião, pois a parte do roçado que lhe destina é a que menos

produz.

O poder como rede insidiosa que envolve o sujeito, constituindo-o, é

exercido em Teodoro Bicanca também pela personagem Siá Ana através das

práticas de cura pelas ervas e rezas, bem como por meio do temor que estas últimas

causavam. O trecho abaixo confirma tal afirmação. Trata dos seguintes episódios: o

que se refere à doença de Teodoro e o que trata da busca de Malaquias como forma

de vingança contra o sujeito que engravidou sua filha.

[...] E haja chá de pega pinto, de casca de queima, de quanta raiz ela conhecia. A barriga enorme de Teodoro começou a baixar e as pernas foram engrossando [...]. A cor da sezão desapareceu. [...] Malaquias dissera que estava desanimado de encontrar o miserável e ia fazer uma encomenda a Siá Ana para „capar o bicho pelo rastro‟. Siá Ana sabia uma reza forte para transformar o rastro de um boi preto no rastro do mal feitor. [...] Damasceno ficou assustado. Aquela nega sabia de coisa do arco-da-velha. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 57-74).

Siá Ana usa como instrumento de poder as ervas e as rezas não apenas por

seus efeitos terapêuticos, mas especialmente por provocarem medo e aterrorizarem

por sua ação punitiva. Assim pode-se verificar como esses elementos fazem parte

do exercício de poder no espaço de convivência dos sujeitos sertanejos/nordestinos.

Verifica-se ainda, em Teodoro Bicanca, a dinâmica do poder em grupos que

atuam como células no tecido social como, por exemplo, a família. Isto pode ser

percebido por meio da personagem dona Genoveva em sua relação com o filho

Abedias e o marido Tenório. Ambiciosa e preconceituosa, dona Genoveva tenta

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controlar o presente e o futuro do filho, interferindo em suas escolhas afetivas e

profissionais.

Desde garoto Abedias demonstra seu deslocamento, sua insatisfação e

angústia interior em relação às injustiças sociais. Isto é expresso na preferência pela

companhia das pessoas da periferia de sua cidade. As brincadeiras e as amizades

que o atraiam eram do espaço e da gente simples da coroa do Rio Parnaíba. Para

afastá-lo desse ambiente, dona Genoveva utilizava-se de várias estratégias de

controle do corpo do filho, como castigá-lo com surras. Não conseguindo seu intento

por essa via disciplinadora, envia-o a Teresina onde cursa Direito.

Abedias retorna à Parnaíba formado e homem feito, mesmo assim, dona

Genoveva continua tentando exercer seu poder sobre ele, agora orquestrando-o de

forma mais sutil, ora selecionando as visitas que vinham vê-lo, ora forjando

situações que proporcionassem seu encontro com Joaninha, a jovem que ela

preferia para se tornar esposa de seu filho.

Embora Abedias não se deixe envolver nessa teia de dominação que a mãe

tenta exercer sobre ele ao longo de sua vida, acaba desenvolvendo uma certa

inabilidade para o enfrentamento de problemas, tais como os que lhe exigiam maior

firmeza na condução do Sindicato.

Percebe-se, assim, que, em Teodoro Bicanca, as práticas de poder se

apresentam não somente nas macroestruturas, nas relações de classe entre o

coronel e seus agregados, ou seja, na relação de dominador e dominado, mas

ocorrem também entre agentes de mesmo nível social, no âmbito dos micropoderes.

Neste sentido, pode-se apontar alguns percursos da narrativa de Renato Castelo

Branco, que denuncia injustiças sociais, mostra a falta de liberdade da imprensa,

bem como evidencia as complexas teias de poder exercidas nas diversas células do

tecido social, desde uma organização sindical até a família.

3.2 Tecendo saberes

Para Geertz (1989), os saberes são construídos por seres humanos no

decorrer de toda sua historicidade. Sendo as emoções, os sentimentos, os laços de

sociabilidade, as experiências partilhadas e os comportamentos, elementos

constitutivos de fontes necessárias para sustentação da cultura, visto que são

também produções culturais. Para este autor, o que alimenta a sabedoria humana é

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a produção cultural, por meio da qual o saber humano é externalizado, seja na

materialização de um artefato, em expressões artísticas ou na esfera das

subjetividades. Nesse sentido, o conhecimento se inscreve na vida de cada pessoa.

Porto-Gonçalves (1912) defende que o conhecimento está para além dos

limites científicos, como se pretendeu na modernidade, inviabilizando outras falas e

outros saberes em virtude de não possuírem a lógica da ciência. Nisto defende a

existência de outros saberes como aqueles acerca da natureza desenvolvidos por

populações que os produziram mediante culturas tecidas numa relação íntima com a

natureza. O autor ainda lembra que a razão forjada numa relação sujeito-objeto “não

contempla a complexidade do mundo vivido, o mundo das relações intersubjetivas,

da razão comunicativa, onde outros modos de conhecimento se dão” (PORTO-

GONÇALVES, 2012, p. 3). Nesse contexto, o sujeito produz narrativas sobre si

mesmo (narrativa aqui comporta também o que se diz por meio de práticas e de

símbolos) na relação que se estabelece com o mundo em que se vive.

Neste aspecto, parafraseia-se Benjamim na referência que faz ao narrador,

em virtude de considerar como verdadeira narrativa aquela imbuída da experiência

vivida: “escutamos com prazer o homem (...) que conhece suas histórias e

tradições”, pois dele advém “o conselho tecido na substância da existência” que “tem

um nome: sabedoria” (BENJAMIN, 1999, p. 199-200). Por essa lógica, compreende-

se que o saber envolve um caráter dinâmico, que incorpora práticas e experiências

produzidas pelos sujeitos em suas ações. É neste sentido que se toma a concepção

de saber para análise de saberes “narrados” pelas personagens em Teodoro

Bicanca.

Para além dos estereótipos criados sobre o sujeito sertanejo/nordestino,

verificam-se algumas aberturas, na tessitura narrativa de Teodoro Bicanca,

viabilizadoras de um distanciamento da imagética que significou esse sujeito. Uma

dessas brechas diz respeito ao enfoque dado à individualidade do protagonista,

através do qual são mostrados sonhos, saberes e dramas interiores dessa

personagem, aspecto que permitirá olhar para “os crespos” do sujeito

sertanejo/nordestino.

Teodoro é um sobrevivente da seca. Encontra em Siá Ana, uma velha

conhecedora do poder das ervas e das rezas, o afeto e os cuidados de uma mãe.

Dessa convivência, vários são os saberes adquiridos pelo menino, sobretudo, os

que são promovidos pelo mundo encantado das histórias contadas pela velha.

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Assim é que, ao cair da noite “a nega Ana ficava lhe contando histórias bonitas, que

não tinham fim” (CASTELO BRANCO, 1948, p. 58). Estas vão alimentar no menino

uma sensibilidade maior em relação à realidade que o circunda, bem como

corroborar no desenvolvimento de uma personalidade mais reflexiva. Teodoro

adquire o hábito de ficar horas debaixo das copas dos cajueiros

fazendo figurinhas com barro molhado, ou deitado de costas, sonhando acordado. Era gostoso imaginar que ele era como o negro de Siá Ana, forte e risonho, e que um dia fugiria de Areia Branca e iria trabalhar numa barca, no rio Parnaíba. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 60).

E nos barrancos à margem do rio a contemplar os vareiros:

contando histórias bonitas a Piedade, histórias fantásticas, em que as personagens de Siá Ana apareciam com outros nomes, suas vidas se confundindo com as outras histórias que sonhava acordado. Piedade ficava admirada de ele saber tanta coisa. E Teodoro se sentia feliz de ver a admiração e o espanto nos olhos redondos de guajeru. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 65).

As histórias de Siá Ana vão, assim, repercutindo no mundo interior do

menino, desenvolvendo-lhe saberes que se traduzem em um processo criativo,

percebido na maneira como ele modifica e recria as histórias que ouvia da velha,

como se as histórias dela não comportassem seus sonhos.

No entanto, Teodoro desperta para outros sentimentos, de ódio e vingança,

desencadeados a partir do suicídio do pai, decorrente da degradação moral e física,

fruto da exploração de que era vítima. A tensão entre estes sentimentos antagônicos

passam a acompanhar e envolver o jovem. Ele não quer fincar raízes em Areia

Branca, sonha, porém, com a liberdade e acredita que ela esteja no rio, na profissão

de vareiro, podendo conhecer outros lugares, deixando-se levar pelas águas.

Teodoro amava o rio, era seu companheiro, objeto de contemplação e

identificação. Era “o velho monge”, sábio, tranquilo, inspirador, mas também valente

e poderoso. Nele, o jovem projeta seus sonhos, sabe que ele o levará ao encontro

com seu destino. Isto é o que ocorre, ele tem que sair fugido da fazenda, em razão

de o pai de Piedade tentar matá-lo.

Em todo seu trajeto até Parnaíba, o rio é seu guia, pois não conhecia o

caminho para a cidade. Vai margeando-o ao encontro de uma nova vida. Nesse

novo espaço, ele continua sendo seu companheiro, dando-lhe o sustento, pois dele

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retira água para vender nas casas do centro. Depois, como vareiro, o rio

proporciona-lhe outros saberes adquiridos por meio dos mistérios que suas águas

ocultam, como a lenda do “cabeça de cuia”; dos causos narrados pelos

companheiros de profissão, envolvendo suas vidas e de outros ribeirinhos; além das

experiências que advém do convívio com outros vareiros nas viagens de Parnaíba a

Teresina, como por exemplo, os momentos em que desfrutam das cantorias, dos

desafios e improvisações de viola.

Zé Peinha era violeiro famoso e respeitado. E, nas noites vazias, escanchado na rede de tucum, cantava para os outros vareiros: Na beira do Parnaíba tem treis coisas cum fartura: carrapato, muriçoca, caboco da cerda dura Eu sou vareiro novo de premeira embarcação vivo doente dos peito dos arrouxo que me dão... O rio da Parnaíba corre com as velação, pra baixo corre meus ódio pra cima meu coração... (CASTELO BRANCO, 1948, p. 164).

Momentos lúdicos e de descontração em que a arte parece preencher os

espaços que a vida por si só não completa - até pela própria dureza da profissão

dessas personagens, os versos mostram também, a capacidade inventiva da

personagem Zé Peinha em tornar poética sua difícil existência, desvelando, assim, o

sujeito sertanejo em sua pluralidade, visto que ele não é apenas um “caboco de

cerda dura”, mas um ser que odeia e ama.

A partir da convivência com o doutor Abedias, Teodoro mantém contato com

vários outros saberes, sobretudo, aqueles referentes à ideologia socialista. Eles

geram um entrelaçamento de emoções em seu interior:

Agora, nas noites de luar, quando Teodoro ia sozinho para a beira do rio, olhar as barcas e admirar os vareiros, não era somente piedade que ocupava seus pensamentos. Nem a areia Branca e Siá Ana. Nem Damião e a palhoça no vale florido, no sertão do Ceará. Agora Teodoro pensava também naquela vida estranha do bicho maior comendo o menor. (...)

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Aquela nova visão do mundo apenas tornava maior o seu desejo de largar tudo e ir trabalhar numa barca, como vareiro. Na barca ele estaria longe de tudo, no meio do rio grande e poderoso, sem ver agregado sofrendo, sem ter que agüentar desaforo. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 136-137).

Este sentimento de deslocamento e angústia frente a um mundo cujo

significado social parece escapar-lhe impele-o ao encontro com seu próprio destino.

Nega-se a se envolver com causas coletivas, anseia, antes, voltar-se para si mesmo,

para seus sonhos. Neste aspecto, a valorização que o autor imprime ao caráter

individualista da personagem Teodoro Bicanca configura um distanciamento daquela

representação tradicional presente em alguns autores do romance de 30, que era de

união pela libertação, como visto em Graciliano Ramos, por exemplo. Por esse

entendimento, em parte da narrativa de Teodoro Bicanca, o embate social é

colocado como pano de fundo para que os dramas pessoais da personagem sejam

mostrados.

Por outro lado, o contrário também vai se apresentar na trama, ou seja, os

dramas pessoais servindo, em algumas situações, como pano de fundo para as

denúncias de explorações e injustiças. Isto pode ser percebido, entre outras

situações, quando Teodoro resolve se envolver na criação do Sindicato de sua

categoria ao lado de Abedias.

Em meio à luta pela reivindicação dos direitos, os sindicalistas são presos

sob a acusação - no nível local - de que estaria planejando tomar a cidade de

Parnaíba por meio de um golpe. Nisto resultando numa completa hostilização ao

grupo, pois este passa a ser entendido como uma ameaça à segurança da

sociedade.

No nível nacional, dava-se o fechamento da Aliança Nacional Libertadora

pela ação da política de repressão do governo Vargas. Abedias assume toda a

responsabilidade pela ideia de fundar o sindicato. Como consequência, é levado

prisioneiro ao Rio de Janeiro, enquanto os demais são libertos. Ferido e bastante

machucado, Teodoro Bicanca acaba por fazer o caminho de volta a Areia Branca.

Naquela noite, numa estrada deserta e areenta, saía de Parnaíba um homem trôpego e maltrapilho: era Teodoro Bicanca. Caminhava morosamente, em demanda do sul, pelo mesmo caminho que percorrera um dia, em sentido contrário, com seu jumento, que lhe dera Siá Ana. (...)

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Sim, não lhe restava mais nada senão voltar para a Areia Branca, para Siá Ana, que haveria de curar seu corpo; para Piedade, que haveria de curar sua alma, com seus olhos grandes de guajeru... (CASTELO BRANCO, 1948, p. 235-237).

O retorno de Teodoro remete à recorrente representação do sujeito

nordestino que, diante da impossibilidade de seguir em frente, acaba tendo que

voltar para o espaço de origem. Se por um lado ele volta pela incapacidade de

enfrentar as forças econômicas e políticas, por outro, seu retorno não se dá pela

saudade da idílica terra, vista como elo a ligar eternamente o nordestino, como

“espaço de saudade”, mas pelos amores que deixou: Piedade e Siá Ana. Assim,

mais uma vez a narrativa se volta para o plano individual desse personagem.

Teodoro, contudo, poderia dar continuidade ao movimento sindical, mesmo

clandestinamente, no entanto, apesar de perceber os saberes intelectuais da cultura

urbana, estes não são considerados pertencentes a ele. Quem os possui é Abedias,

ele era o líder; sem sua presença a organização sindical deixa de existir.

Desse modo, embora a construção da personagem Teodoro Bicanca se

distancie, em grande parte, de imagens estereotipadas, ela também se concilia com

aquelas que significam o nordestino como dependente dos que detém os saberes

institucionalizados.

Outro aspecto a ser analisado nessa abordagem, diz respeito à maneira

como as personagens de Teodoro Bicanca demonstram a habilidade em

desenvolver saberes para conhecer o ambiente do qual extraem seus meios de

sobrevivência, ao lidarem com a cultura extrativista e agrícola. Assim, observa-se

por meio das pequenas aberturas deixadas pelo autor que, mesmo sob a condição

de dominação desses sujeitos, eles utilizam estratégias de resistências e

sobrevivências, mostrando capacidade criativa em meio a um contexto tão adverso.

Os romancistas de 30 viram o Nordeste a partir do ponto de vista de um

saber da cultura urbana, entretanto, existe outro saber que é fundamentado na

cultura que produz conhecimentos adquiridos mediante as várias situações de

sociabilidade.

Certeau, nos estudos que realiza a respeito das práticas culturais exercidas

pelos sujeitos sociais e suas criações, defende que não há uma cultura superior. É

nessa direção que elabora uma teoria das práticas cotidianas através das quais se

desenham e redesenham as atividades diárias dos sujeitos. Conforme o autor,

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o cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos proporciona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos. Ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com essa fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio caminho de nós mesmos, quase em retirada às vezes velada. (CERTEAU, 1994, p. 31).

O cotidiano consiste num espaço de descobertas, um território repleto de

experiências pessoais e de fabricação de conhecimentos. É nele que se aprende e

se ensina, já que o aprendizado dos sujeitos sociais é oriundo do contato com os

outros e das experiências adquiridas em suas vivências diárias. Por esse prisma, os

saberes adquiridos ao longo das experiências de cada pessoa se legitimam no

cotidiano. Para Certeau (1994), o saber da experiência ganha ou não sentido e as

operações que são construídas no cotidiano adquirem visibilidade e inteligibilidade.

Em Teodoro Bicanca pode-se verificar a representação de práticas

cotidianas reveladoras de ações táticas que possibilitam um “saber-fazer”, como por

exemplo, a maneira que alguns personagens lidam com a carnaúba. Os saberes que

demonstram no processo de extração e beneficiamento da palmeira, utilizando-a

como recurso econômico na extração da cera e como matéria prima na fabricação

de objetos e utensílios, que são usados no cotidiano, como cofos, jacás, esteiras e

chapéus. Sua exploração ocorria no período de estio, sendo alternado com os ciclos

da lavoura, “absorvendo significativa mão de obra e complementando a renda no

meio rural” (CARVALHO e GOMES, 2005, p. 5). Com esta complementação,

milhares de trabalhadores garantiam a sobrevivência, como ocorre com a família da

personagem Teodoro.

Em Economia piauiense: da pecuária ao extrativismo (2006), Teresinha

Queiroz analisa a importância da cera de carnaúba para a economia do Piauí.

Considera que dentre as atividades extrativas desenvolvidas no Estado, esta tenha

sido a que provocou efeitos mais relevantes sobre a estrutura econômico-social,

como por exemplo, a integração da economia piauiense ao contexto internacional.

A partir dos primeiros anos do século XX o produto passou a ocupar lugar de destaque no conjunto das exportações do Piauí, ao lado da borracha de maniçoba, de algodão (...) e do babaçu. (QUEIROZ, 2006, p. 38).

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A valorização do produto no mercado internacional, segundo a historiadora,

determinou, durante três décadas (20, 30, 40) o equilíbrio orçamentário para o

estado, chegando as receitas públicas a serem compostas em “cerca de 70% de

impostos cobrados sobre a cera” (QUEIROZ, 2006, p. 45).

Para a pesquisadora, as transformações socioeconômicas oriundas da

extração da cera da carnaúba não se restringiram ao aumento da renda gerada e à

integração do Piauí ao mercado nacional e internacional. Outras mudanças

significativas, internamente, teriam ocorrido, como a emergência de novos grupos

sociais que surgiam com a valorização das terras com carnaúbas. Ao lado dos

fazendeiros, os novos ricos da cera de carnaúba compunham o cenário

socioeconômico do estado.

No entanto, quanto às condições de trabalho e também financeiras dos

trabalhadores dos carnaubais piauienses, poucos avanços podem ser evidenciados,

quando comparados às representações feitas por Renato Castelo Branco, em

Teodoro Bicanca.

Carvalho e Gomes (2005), em pesquisa realizada em 28 municípios

piauienses no período de 2003 a 2004, constatam que a situação desses

trabalhadores ainda está longe de alcançar dignidade, pois a maioria é apenas

alfabetizada, falta a utilização de equipamentos apropriados às tarefas

desempenhadas, a jornada de trabalho é ainda muito elevada e a remuneração

insuficiente para atender às necessidades de suas famílias.

A personagem Damião representa algumas das relações de saberes e

fazeres que envolviam a extração da palha da carnaúba . Ele e seus companheiros

deixavam o interior do Ceará e:

atravessavam os sertões, galgando as serras e iam para os carnaubais do vale parnaibano, juntar cera para os coronéis. Voltavam felizes, trazendo dinheiro, trazendo presentes. E era uma festa. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 32).

Vê-se o caráter festivo ao término da atividade. Estes eram momentos

transformados em lazer e fortaleciam os vínculos de amizade e solidariedade entre

estes sujeitos, além de possibilitar que se conservassem os saberes práticos

herdados que seriam transferidos às gerações subsequentes.

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A propósito, a extração da palha seguia algumas etapas até seu

beneficiamento, quais sejam:

Chegara o tempo da cera: estava „na força do pó‟. Os caboclos iam para os carnaubais cortar as folhas das palmeiras. (...) E eles chegavam como se fossem formiga no roçado: iam cortando as palmas, deixando os troncos nus e compridos, apontando para o céu. E então abandonavam as palmas no chão, apanhando com sol até secarem. E depois levavam aos montes, para as cumpridas palhoças, inteiramente fechadas, onde os batedores faziam a batição. O corte às vezes oferecia lances perigosos. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 94-95).

Embora esta modalidade de extração da carnaúba demonstre um caráter

rudimentar, não se pode desconsiderar os saberes desses sujeitos na invenção de

técnicas que empreendem na exploração e beneficiamento do produto. O saber

fazer não científico também tem sua relevância no amparo tecnológico relacionado à

cultura e à agricultura.

Os saberes tradicionais elaboram frequentemente inventários admiráveis da diversidade do real [...] a atividade humana implica a mobilização de técnicas extraordinariamente variadas para produzir os gêneros alimentares destinados aos animais ou às pessoas, ou para obter as matérias-primas com as quais estas últimas criam os utensílios necessários e os artefatos que as circundam. (CLAVAL, 1999, p. 226).

Nesse aspecto a agricultura sertaneja envolve vários saberes expressivos de

um extraordinário conjunto de técnicas próprias e apropriadas para a produção de

gêneros alimentícios, entre outras práticas. Assim, pode-se observar, em Teodoro

Bicanca, na maneira como Crispim e Damião aproveitam a terra fertilizada pelo rio

Parnaíba, após as cheias. Ali plantavam feijão, melancia, mandioca e milho. Antes,

porém, perscrutavam a terra, analisavam suas condições, utilizando,

estrategicamente, o plantio de cultura de rotação. Assim é que, “Depois das

plantações de inverno, em terreno alto, fariam o roçado de fim das águas, na

vazante. Era o rio baixar e começariam a outra roça. Teriam duas colheitas naquele

ano” (CASTELO BRANCO, 1948, p. 45). Estas são práticas inscritas no cotidiano

dessas personagens resultantes de experiências que Certau (1994, p. 13) define

como “práticas ordinárias,” como operações culturais formuladas no dia-a-dia. Nelas

existindo todo um acervo de conhecimentos.

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Estes saberes também se apresentam na forma como as personagens, que

trabalham na fazenda, lidam com o caju, transformando seu suco em bebida

vinificável e também em cajuína e sua polpa em doces.

E as mulheres da fazenda, reunidas no alpendre dos fundos da casa de telha, entravam em atividade, fazendo cajuína e vinho de caju, engarrafando, enchendo o depósito. Assavam-se as castanhas, que os moleques tiravam da casca, quebrando com pedras. E enfiavam em cordões, como pequenos terços, ou entregavam em latas para Cândida, a nova cozinheira açucarar. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 77).

Esse trecho mostra que os saberes experienciais transformam o cotidiano,

modificam a rotina desses sujeitos através de uma integração que os envolve. O

momento de aproveitamento dos produtos do caju, além de configurar práticas de

saberes, promove ainda confraternização e lazer.

Além de esses saberes ligados aos laços de sociabilidade, o trecho também

mostra aqueles que são impregnados de experiências. Nesse sentido, Porto-

Gonçalves lembra que a visão não é o único sentido a acessar o saber, pois “toda

cultura se faz transformando o cru – a natureza – em cozido – a cultura (Lèvi

Strauss), no saber criar o sabor”. A culinária seria a “síntese desse entrecruzamento

radical de toda a sociedade (relação dos homens e mulheres entre si e com-a-sua-

natureza)” (PORTO-GONÇALVES, 2012, p. 1). Estes saberes fazem parte do fazer

cotidiano que são, segundo este escritor, impregnados de conhecimento. Por essa

lógica, pode-se depreender que o saber se faz a partir de várias outras matrizes

epistêmicas que não apenas a que advém do conhecimento lógico, científico. Sabe-

se também “pelo cheiro, pelo olfato, pelo paladar, pelo tato, pelo som” (PORTO-

GONÇALVES, 2012, p. 1).

Outros saberes referidos em Teodoro Bicanca dizem respeito à utilização

das ervas no preparo de chás medicinais. A personagem Siá Ana sintetiza, no

romance, o poder e o prestígio como detentora de tais saberes.

Suas curas milagrosas eram contadas às centenas e não havia doença para a qual não tivesse um remédio – diziam que havia um quarto, em sua palhoça, cheio de mezinhas de toda natureza – cascas, raízes e folhas, nas mais variadas infusões. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 47).

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Mesmo contestados e contrapostos pelos saberes urbanos e científicos,

para Almeida (2003), não há como desprezar esses saberes dos(as) sertanejos(as)

que também são reproduzidos historicamente. Ela reconhece o valor do

conhecimento ligado ao senso comum, concebendo-o como resultante de uma

cultura de saberes que se mostra relevante até pela expressividade da narração

própria que apresenta. Sendo estes saberes considerados bastantes significativos,

pois revelam um jeito inventivo de desvendar a natureza e com ela se relacionar.

Para o sertanejo, a natureza é vista por uma dupla face. Por um lado, no seu aspecto tangível, táctil, ela é um recurso a ser utilizado. Por outro, na sua parte constitutiva, que ultrapassa o entendimento humano, ela se revela no seu valor metafórico. (ALMEIDA, 2003, p. 83).

Por esse prisma, os saberes desenvolvidos pelo sujeito sertanejo/nordestino

na relação com a natureza possuem uma significação para além do aspecto

concreto, estendendo-se, também, para uma dimensão simbólica.

O mundo encantado das histórias, dos causos e lendas também se

manifesta no universo narrativo de Teodoro Bicanca, expressando e promovendo

saberes. Aquele é tecido pela personagem Siá Ana que, com a experiência de uma

contadora de histórias, vai envolvendo Teodoro com um mundo prenhe de

imaginação. Assim é que, ao cair da noite “a nega Ana ficava lhe contando aquelas

histórias bonitas, que não tinham fim” (CASTELO BRANCO, 1948, p. 58).

Os saberes advindos desse universo exercem grande influência no processo

de formação do protagonista, gerando nele maior sensibilidade na percepção da

realidade à sua volta, bem como alimentando-lhe o desejo de transpor os limites de

seu espaço – Areia Branca – na busca da realização de seus sonhos de liberdade.

Os “causos” por sua vez, são narrativas orais que mostram as histórias de

vida de narradores que ao se utilizarem da técnica da oralidade, constroem saberes

imaginários e simbólicos acerca do mundo que os circundam. Em Teodoro Bicanca,

verifica-se este recurso, entre outros momentos, em torno de narrativas envolvendo

o vareiro Boca de Sovaco que tem sua fama de valentão reforçada na fusão entre o

real e o lendário.

Boca de sovaco era um vareiro enorme, com fama de valentão. Contava-se que era a única pessoa que havia conseguido enfrentar

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„Cabeça de Cuia‟, o espírito mau que habita as águas do Parnaíba. Boca de Sovaco ia em sua canoa, quando „Cabeça de Cuia‟ surgira do fundo do rio. Um pé de vento rodopiou, assobiando sobre a embarcação. As águas se abriram, girando em redemoinho, afunilando-se, arrastando a canoa para o fundo misterioso do rio. Mas Boca de Sovaco tinha „pauta com o diabo‟ – invocara a proteção do capeta e, no mesmo instante „Cabeça de Cuia‟ desaparecera, com um longo e desesperado gemido, as águas serenaram e ele nadara em segurança para a margem do rio. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 207-208).

Se por um lado a narrativa desses feitos da personagem reforça a bravura e,

por conseguinte, o estereótipo do nordestino violento, por outro, essa simbiose entre

o real e o lendário fortalece o universo imaginário como completude da existência

desses sujeitos, especialmente os que, como essa personagem, tem a profissão

associada às águas, pois estas os ligam ao universo simbólico de lendas.

Conforme observa Brandão (1996, p. 5), “toda cultura é, portanto, a cultura

de um contexto de relações sociais e simbólicas”. É nesse contexto de relações,

segundo esse escritor, que se produzem as narrativas sobre si mesmo na relação

que se estabelece com o meio em que se vive. Desse modo, as narrativas de Siá

Ana e dos vareiros formam, numa teia de significados, uma tessitura de saberes

sobre o espaço sertão/Nordeste, distanciando-se da visão estereotipada de que os

sertanejos são seres dominados e dependentes do saber formal, do universo

intelectual urbano.

Portanto, ao olhar mais atentamente para as experiências pessoais do

sujeito sertanejo/nordestino, promovidas por essas fissuras que o romance Teodoro

Bicanca deixa transparecer, verificam-se sutis estratégias de resistências com as

quais este ser modifica, no espaço interno do seu grupo, objetos e códigos.

Com efeito, essas representações de como as personagens, em Teodoro

Bicanca, têm demonstrado saberes no espaço nordestino aparecem ora significadas

dentro de uma imagética já cristalizada, ou seja, como seres vitimizados,

silenciados, incapazes ou violentos; ora expressando uma hábil capacidade de

reinventar a vida, apesar do inóspito e da opressão. Logo, o sujeito nordestino será

construído no romance, por vezes, em concordância, outras em oposição a

representações tradicionalmente elaboradas. Foi partindo dessa última perspectiva,

que se tentou deslocar a leitura do romance, nesse tópico, em direção às

possibilidades que nele se abrem para se evidenciar riquezas do viver desses

sujeitos.

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3.3 Tecendo dizeres

A linguagem constitui-se em uma atividade essencialmente social. Ela exerce

papel importante na sociedade, uma vez que, através dela, o ser humano se

constitui como sujeito, estabelece as relações sociais, revela o conhecimento de si e

do mundo no qual se insere. Ela leva ao reconhecimento de usuários dos diferentes

agrupamentos, estratos sociais, grau de escolaridade. É um parâmetro que

possibilita a identificação da nacionalidade, da naturalidade, condição social e

econômica. É também frequentemente usada para discriminar e estigmatizar o/a

falante (LEITE, 2002, p. 7).

Em seu contexto social, a linguagem é estudada pela sociololinguístca, um

ramo da linguística que investiga o modo como o sujeito a usa em diferentes

situações sociais, mostrando, por exemplo, como variações linguísticas podem

representar a idade, o sexo e a classe social do falante. Neste sentido, a

sociolinguística contribui na investigação da relação entre linguagem e fatores

sociais, haja vista tentar explicar a maneira pela qual se constroem identidades ao

se fazer uso de determinadas construções linguísticas.

Para Urbano (2000), a utilização da língua difere no tempo, no espaço, no

contexto social e em função da situação comunicativa. Concebe, assim, que há

diferentes variantes da língua conforme a região, a classe social, a faixa etária, a

escolaridade etc.

Urbano (2000) classifica os registros linguísticos que ocorrem em função da

escolha que o usuário faz da língua, em formal e informal. No primeiro, estariam as

situações de formalidade, de comportamento linguístico mais refletido, comportaria o

predomínio do nível culto, do vocabulário técnico; no segundo, estariam as

situações de menor formalidade, de predomínio de linguagem popular, apresentando

uma linguagem afetiva e um comportamento linguístico mais distenso.

Preti, por sua vez, afirma que há uma atitude linguística consciente que

conduz o falante a uma escolha da melhor variante, cujo nível de fala se ajuste a

determinadas situações:

O fenômeno da atitude linguística do falante, longe de ser problema metalinguístico exclusivamente individual, delimitado pela área de um idioleto ativo (quer dizer, de determinado conhecimento linguístico de uso ativo do falante) é, antes de mais nada, também uma atitude

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linguística de classe, que supõe sempre a escolha de uma linguagem, a seu ver “melhor” para certa situação. (PRETI, 1984, p. 69).

Os falantes procuram empregar os registros linguísticos que melhor se

adequem aos vários contextos sociais, às diversidades de situações. A escolha

entre variantes está associada à construção das identidades sociais: alguém que

fala como juiz, usa linguagem distinta daquela que usa como esposo ou pai. Assim,

o que determina a escolha de uma ou outra variedade é a situação concreta de

comunicação.

Ao tratar da relação existente entre linguagem e identidade, Rajagopalan

considera que:

A identidade de um indivíduo se constrói na linguagem e através dela; isso significa que o indivíduo não tem uma identidade fixa anterior e fora da língua. Além disso, a construção da identidade de um indivíduo na língua e através dela depende do fato de a própria língua em si ser uma atividade em evolução. (RAJAGOPALAN, 1998, p. 41).

A linguagem é um elemento constitutivo da identidade do indivíduo. As duas

categorias se implicam mutuamente, em processo de transformação constante.

Assim, um mesmo indivíduo é atravessado por uma variedade de identidades, que

não estão estáticas, mas em movênca e interligadas. Ao mesmo tempo uma pessoa

pode se constituir brasileira, nordestina, piauiense, mulher, negra, professora etc.

No entanto, a grande recorrência na representação do uso de certas

variantes linguísticas pelos sujeitos nordestinos, por exemplo, tende a limitá-los a um

modelo essencialista que os considera dentro de categorias previamente

estabelecidas, desconsiderando tal movença.

Segundo Albuquerque Jr., o espaço nordestino é desenhado por um

agrupamento de imagens domadas em sua diversidade pelo trabalho de poetas e

romancistas do regionalismo tradicionalista para quem:

a linguagem seria uma forma de manifestação do regional, como o lugar da autenticidade. A região também seria o local do falar mais autêntico, mais brasileiro, marcado pela oralidade, mais próximo da realidade do homem brasileiro. (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 18).

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A realidade da região deveria ser dita em sua própria linguagem,

estabelecendo-se uma “língua regional” que abarcaria o todo desse espaço, apesar

de um não conhecimento mais profundo das variações de pronúncia e usos

linguísticos do Nordeste por parte desses escritores. Aliás, alguns chegam à

estereotipia.

Esta concepção do uso da linguagem por estes regionalistas pode ser vista

nas escolhas que, em parte, Renato Castelo Branco faz para representar as falas de

suas personagens em Teodoro Bicanca, sobretudo, em relação àquelas

consideradas subalternas.

A narrativa em Teodoro Bicanca apresenta-se quase sem diálogos, com

prevalência da voz do narrador. Desse modo, o espaço e as personagens são

vistas, basicamente, por um ângulo só, e representado, predominantemente, por

uma só voz. Assim, poucas são as falas das personagens e quando elas surgem,

em sua maioria, aparecem como marcas de um tipo regional possuidor de um

vocabulário pitoresco, em que a intensa exploração da ortografia fonética é bastante

recorrente, ficando evidente uma intenção do autor na escolha desse nível de fala,

visando a aproximar a linguagem das personagens da língua falada “real”, como se

para se reconhecer no regional, fosse necessário uma grande proximidade “do

mundo empírico, da „mimese‟ propriamente dita (...) a um passo da estereotipia da

paisagem (...), da reprodução da linguagem” (VICENTINI, 1998, p. 42).

Isto pode ser verificado no trecho a seguir, quando Damião e Crispim vão

“pedir rancho” ao coronel Damasceno:

Damasceno levantou a cabeça. - Que há seu Damião? - Nóis veiu lhe agradecê, seu coroné. O sinhô foi muito bão. Num vê que nóis agora tá meiorando? Já pudemo inté trabaiá, se seu coroné tivé algum trabaio pra nóis... Damasceno hesitou. Não havia lugar para mais agregado na fazenda. As terras eram muitas, mas o gado morrera e a cera já estava quase toda apanhada. Pretendia ir mandando os flagelados embora, à proporção que fossem melhorando. Mas Damião era um bom trabalhador, e Crispim também, Bem podia valer a pena conservá-los por ali mesmo, para quando chegassem as chuvas novamente. Eles podiam lhe ser úteis. Mas não queria abrir o precedente. Damião insistia: - Seu coroné me conhece... sabe que eu sou home de respeito. Num esqueço o bem que os outro me faz. Eu queria era trabaiá pro seu coroné. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 28-29).

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Observa-se uma razoável distância do nível culto da linguagem

representado pelo narrador e do nível coloquial da personagem Damião. Essa

distância delimita o fosso social que as separa. Em todo o romance essa será a

representação linguística dos grupos marginalizados.

Vê-se na fala de Damião o agenciamento de marcas linguísticas

representativas de uma variação rejeitada pela cultura oficial, visto como signo

considerado de menor prestígio, de ignorância e subdesenvolvimento. Quase todos

os registros em relação à variante culta são inerentes à sua fala: o ortográfico (num);

o morfossintático (nóis veiu); e o fonológico (trabaio). Neste aspecto, estas marcas

linguísticas vão atualizar sentidos de uma identidade do sujeito sertanejo/nordestino

como um ser considerado rude, pouco desenvolto em relação à linguagem, sem

escolaridade, de baixo nível social.

Quanto ao aspecto semântico, estes dizeres da personagem Damião

sinalizam para uma relação de paternalismo referente às vítimas da miséria,

reforçada pela pretensa harmonia entre o coronel e o agregado. Aquele, sendo

representado como homem bom e necessário nessa hierarquia social; enquanto

este, como submisso e resignado diante daquele que se considera autoridade.

Outro momento em que os dizeres das personagens estão corroborados por

marcas linguísticas regionais, definindo-os em uma categoria social, diz respeito ao

primeiro contato de Teodoro com Piedade, no qual ele a confunde com sua irmã

Onorina.

Onorina foi dizendo: - Quem é tu? Teodoro não respondeu. Ficou olhando, duvidoso, cada vez mais espantado. - Tu não tem língua? Teodoro quis responder, mas não podia. Não tinha voz. Mostrou a língua para Onorina e ela começou a rir novamente, cada vez mais alto, apontando-o com o dedinho sujo. - Tá cum medo de mim? Eu num sou bicho... Teodoro arriscou uma resposta: - Escunjuro, obra do imundo... E se benzeu. Onorina ria a valer, Teodoro ganhava mais coragem. - Onde é que tu te queimô? - Cruz-Credo... vira a boca pra lá... eu num me queimei... - Então que tu foi fazê na casa de Siá Ana?... - Num fui eu... foi minha irmã... ela tá cum vento encausado... (CASTELO BRANCO, 1948, p. 63-64).

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Nesse trecho, além das variantes linguísticas relacionadas aos aspectos

indicativos das condições socioculturais dessas personagens, são também

exploradas expressões lexicais associadas à variante regional, como “Cruz-Credo”,

“escunjuro”, “obra do imundo”, “vento encausado”. As primeiras, representando a

força religiosa que atravessa a vivência desses sujeitos; a última, revelando uma

percepção de mundo a partir do senso comum.

Ao fazerem uso desses dizeres, é possível concebê-los como identificados

com um universo ligado às crendices, ao tradicional, ao meio rural. Essas marcas

linguísticas presentes nas falas desses personagens demonstram recursos mais

simples da fala popular, expressam, pois, um padrão, constroem a ideia de que

todo(a)s os(as) sertanejo(a)s pobres assim se expressam.

A intenção do autor em apresentar uma variação de linguagem marcada por

influências socioculturais, logo distanciando-se do português padrão, ainda pode ser

constatada no trecho abaixo no qual Malaquias, pai de Piedade, fica sabendo da

gravidez da filha mais velha, Onorina, que é posta em confissão a respeito do

“culpado” por tal ato. Nenhuma revelação obtendo da jovem, jura que o encontrará.

Nisto assevera:

- Se ele caminhá, fica o rastro; se voá, deixa pena; se merguiá, a água borbuia... E concluía: - De quarqué modo, num me escapa... (CASTELO BRANCO, 1948, p. 73).

No fragmento, vê-se mais uma vez o uso dos registros linguísticos da fala

popular, sem nenhuma preocupação com a norma padrão , apontando, também,

para um falante sem escolaridade. A linguagem de Malaquias remete, ainda, para a

formação identitária de um ser violento, um macho rude e duro que não aceitava

desonras, possuidor de uma natureza agressiva, voltada para a luta e que não abre

mão de “limpar” a honra, vingando-se do indivíduo que engravidou sua filha. A

respeito dessa identidade do sujeito sertanejo, refere-se Albuquerque Jr.:

Entre a tradição e a modernidade, o sujeito era, acima de tudo, uma reserva de virilidade, uma macheza, bravura, capacidade de luta, de enfrentamento para as batalhas que o espaço regional parecia carecer, o sertanejo era um valente, um brigão, em defesa da honra.

(ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 210).

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Os dizeres de Malaquias são representativos dessa imagética do sertanejo

violento que faz valer sua força em defesa da honra, não existindo, para isto,

obstáculos intransponíveis. Ao mesmo tempo em que nestes dizeres transparecem

tal identidade sustentada no discurso de masculinidade, também são sugestivos de

humor e expressivos de agilidade no raciocínio, revelada nas construções frásicas

concisas, dinâmicas, essenciais, aproximando-se das resoluções repentistas, pelo

caráter inventivo que demonstram na maneira criativa como Malaquias resume a

impossibilidade de “o responsável” pela gravidez de sua filha se safar, utilizando-se

de importantes imagens fruto de percepções do viver cotidiano.

Ainda cotejando os falares das personagens em Teodoro Bicanca, outros

dizeres que merecem análise são os que tratam dos versos que embalam a

existência de Crispim após sua fuga de Areia Branca e de mais outras duas

fazendas:

- Treis veis cantou o galo para São Pedro... treis terra conhece o nego Crispim... fiz meu roçado em treis rio... treis veis robaro de mim... (CASTELO BRANCO, 1948, p. 160).

Além de esses versos revelarem o nível de escolaridade desse sujeito e sua

condição social de um ser vitimizado, sugerem também a capacidade criativa no

diálogo que mantém com a história do apóstolo, construindo versos que sintetizam

sua trajetória de marginalização e exploração. Toma o número três para estabelecer

a analogia entre a ideia de traição agenciada por São Pedro na relação com Cristo e

a traição de que ele é vitima na relação com os coronéis.

Como a voz que se sobressai em Teodoro Bicanca é a do narrador, a

prevalência dos dizeres das personagens passa pelo seu filtro, pelo seu

desempenho linguístico. Isto podendo ser verificado, também, mediante o discurso

indireto livre que é bastante recorrente no romance. Assim, à medida que registra os

pensamentos ou fala das personagens por meio desse artifício, vai apresentando um

vocabulário que estabelece relação explícita com o universo sertanejo, como se

pode verificar no trecho seguinte:

(...) Um dia ele também seria vareiro, um vareiro forte e valente, como Noé, e haveria de conhecer o grande rio, desde o seu começo até o fim, lá no mar.

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O mar era uma palavra estranha, para Teodoro. Os vareiros diziam que o mar era imenso, maior que o Parnaíba e que tinha ondas, montanhas dágua se levantando. (...) Não. Aquilo era conversa dos vareiros, para inticar com ele. E era potoca, também, dizer que o mar era maior que o Parnaíba. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 12-13).

O texto revela uma atitude narrativa com certo grau de informalidade em

virtude desse recurso (discurso indireto livre). A linguagem do narrador se

comportará nesses termos, mesclando o nível culto com o popular. Utilizando-se,

também, de termos considerados regionalistas, como “inticar” e “potoca” que irão

fazer parte de toda a composição narrativa, expressando uma maneira de

representar o espaço de onde as personagens advêm. Várias são as ocorrências

desse tipo de registro linguístico ao longo do romance, cuja grafia surge,

propositalmente, destacada, a saber: mucumbu, futucou, empombado, risadagem,

azucrinar, estoporado, afilotado, agatanhar, sirigaita, fuzuê, mantigas, cunhãs, entre

outras.

Estes regionalismos léxicos, munidos de significados específicos,

representam traços culturais configurantes da identidade linguística regional dos

sujeitos que os utilizam. Assim, se por um lado a escolha desses termos tende a

representar “um modo regional de se expressar”; por outro, revela-os como uma

significativa riqueza vocabular visto que ampliam os recursos do léxico.

Outro recurso linguístico explorado por Renato Castelo Branco, em Teodoro

Bicanca, refere-se aos provérbios populares que são evocados, em prevalência,

pela personagem Siá Ana, a moradora mais antiga da fazenda Areia Branca. Ela é

uma velha, negra e viúva. Sobrevive das doações de moradores daquela

comunidade, pelas atividades de curas e rezas que realiza. É uma contadora de

histórias e também uma espécie de curandeira, reverenciada por todos da sua

comunidade e temida, inclusive pelo coronel. Demonstra sempre atitudes que a

revelam como uma mulher prudente, sábia e solidária, por esta razão, muitos a

procuram em conselho ou em confidência. Ela representa uma reserva de saberes

naquela localidade. A forma como usa a linguagem, entre outros recursos, a legitima

como tal. Sua fala se realiza predominantemente pelo uso de provérbios, ajustados

com competência e coerência a cada situação comunicativa.

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Urbano (2011) considera os provérbios como um recurso criado no seio do

ambiente popular em situações concretas, logo em sentido denotativo.

Imediatamente ou com o passar do tempo tal significado vai adquirindo um caráter

metafórico. Exemplifica isto supondo a trajetória do seguinte provérbio a partir de

sua fase embrionária à vida autônoma:

onde passa um boi passa uma boiada: criado numa situação concreta da passagem de boi por uma ponte estreita. (...) Depois é usada em situação semelhante e ainda com algum sentido mais ou menos denotativo. Em seguida, é empregado em eventos em que a ideia original funciona, mas as situações e os referentes já estão bem distanciados. (URBANO, 2011, p. 38).

Formulados em situações concretas quanto ao fato e situações imprecisas

em relações às circunstâncias, os provérbios são de criação e circulação na voz

popular, embora não seja de propriedade exclusiva, pois conforme este autor, “são

encontrados tanto na formulação e colorido da linguagem popular, quanto na

linguagem escrita” (URBANO, 2011, p. 38).

Ainda conforme Urbano (2011), os provérbios, quando em situações

informais, dinamizam e dão colorido e força expressiva à linguagem dos falantes,

pois são recursos ricos de sabor popular e de possibilidades. Sobre este fenômeno

linguístico, o pesquisador ainda acrescenta:

Os provérbios revelam a sabedoria popular, perpetuando e espelhando sua ideologia e vivência, graças à memória discursiva individual e coletiva (...) garantida, de um lado pela formulaicidade das formas, e, de outro, pela sensibilidade espontânea popular, que de um modo particular e curioso as renova, recria e encontra soluções constantes de uso, imprimindo grande expressividade e força a seus modos de pensar e de dizer, realizados sem qualquer timidez e preocupação com normas e regras. (URBANO, 2011, p. 43).

Estas expressões populares são perpetuadas na memória coletiva ou

individual e a riqueza de sua expressividade se evidencia na criatividade do

enunciador. Elas se ligam profundamente às situações comunicativas do contexto

em que são (re)produzidas, sendo incorporadas à linguagem popular, ao cotidiano

vivenciado pelo povo e refletindo sua perspicaz sabedoria e interpretação do mundo

e de sua própria existência.

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Segundo Palma, os provérbios, além de representarem autonomia sintática

e textual, valor de verdade e caráter anônimo, também possuem “um sentido

metafórico, certas particularidades fônicas (ritmo e rima), um fundo de tradição e

uma finalidade didática ou dogmática” (PALMA, 2009, p.108). Por apresentar

elementos metafóricos, na visão da autora, não estariam restritos a uma

determinada cultura, como é normalmente imaginado, podendo ser encontrados em

línguas e culturas diferentes.

Urbano ainda se refere ao provérbio como:

um discurso sui generis, não só, em principio, pela sua inalterabilidade quanto à forma, incluindo aí a ordem, mas porque ele mesmo abre a possibilidade de sua adequação à situação, inclusive alterado, se necessário. (URBANO, 2002, p. 273).

Assim, a singularidade dessas expressões reside na capacidade de

sintetizar, ao mesmo tempo, instâncias tão antagônicas, como a fixidez e a

mobilidade.

Considerados por alguns estudiosos da língua como expressões idiomáticas,

ou seja, fórmulas cristalizadas no léxico, ou como subcategoria delas, os provérbios

são entendidos como um tipo de expressão bastante rígida, “fruto da cultura,

herdada junto com o léxico” (LEGROSKI, 2011, p. 48). Por esse prisma, tais

expressões não constituíram criatividade linguística do falante, tendo em vista que já

se encontram prontas.

Para Nóbrega, contudo,

A força da comunicação linguística não está, em princípio, na originalidade, mas no emprego adequado das palavras e expressões (...). A inventibilidade da linguagem está no modo de uso, no contexto e na reinvenção do que é trivial. (NOBREGA, 2008, p. 111).

Assim, o aspecto incomum dos provérbios está na maneira como se

adequam à situação para denotarem as ideias que se pretende transmitir, como

ocorre com a personagem Siá Ana que os utiliza aos propósitos do que deseja

expressar, fazendo-o com propriedade e perspicácia, conforme se verifica no trecho

a seguir:

À noite, depois de matar a fome, Damião ia com Teodoro e Crispim conversar na casa de Siá Ana, que morava na ponta da estrada. E se

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queixava daquele cansaço, que não podia mais. Siá Ana consolava-o, tinha sempre uma palavra certa para tudo: - É assim mermo, meu cristão. O mal entra às braçadas, mas sai às polegadas... (CASTELO BRANCO, 1948, p. 46) (grifo meu).

A personagem, ao se utilizar desse provérbio, o reproduz basicamente no

nível culto, sem deixar marcas de sua linguagem, tomando-o da forma como foi

armazenado, já pronto. Nisto, demonstrando uma suposta não suscetibilidade à

criatividade linguística. No entanto, ajusta-o convenientemente à situação em que o

anuncia, pois, visando a consolar Damião, sugere-lhe paciência diante daquela

condição, mostrando-lhe que faz parte da natureza das coisas, que as situações

difíceis se instaurarem com maior rapidez que são resolvidas.

Outra situação cuja fala de Siá Ana se realiza mediante o uso de provérbios

envolve o episódio em que Damião participa-lhe sua expectativa e entusiasmo de

uma boa colheita, podendo, assim, pagar as dívidas ao coronel e então retornar ao

Ceará, à sua pequena propriedade que abandonara ao fugir da seca.

Siá Ana escutava tudo, coçava a carapinha, dava uma pitada em seu cachimbo. - Creia em Deus que é santo veio, meu cristão. O mio da festa é esperá por ela... Damião não entendia o que Siá Ana queria dizer. No íntimo invadia-lhe uma suspeita de desgraça. (...) Ás vezes procurava puxar por Siá Ana, saber de coisas do coronel, da história dos outros agregados. Ele ouvia falar de agregados que fugiam para não pagar suas dívidas e que o coronel mandara espancar. Revoltava-o imaginar o Malaquias, o Nonato, o Antonio Ferreira caçando agregado como quem caça bicho e dando no homem até ele ficar caído no chão. Mas também eles faziam mal em fugir para não pagar o coronel. Aquilo não estava direito. O devido era devido. Damião tocava no assunto, sondando Siá Ana. Mas ela não soltava nada. E sentenciava entre duas cachimbadas: - Em boca fechada num entra mosca... (CASTELO BRANCO, 1948, p. 51-52) (grifos meus).

Nestes dois provérbios o registro linguístico se dá em uma aproximação “fiel”

da fala oral da personagem, deixando transparecer que se trata de uma pessoa sem

escolaridade. Em se tratando da situação comunicativa em que foram empregadas,

sinalizam para uma espécie de advertência ao interlocutor, Damião, que parece não

ter ainda interpretado o jogo que envolve as relações de poder daquele espaço,

mostrando-se ingênuo quanto à sua real condição.

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No primeiro, “o mió da festa é esperá por ela”, a ideia que expressa parece

se conjugar com a visão ilusória de felicidade e liberdade nutrida, antecipadamente,

por Damião. No entanto, conhecedora profunda das relações de exploração ali

existentes, Siá Ana mostra que nas condições dele, o melhor mesmo não era viver o

acontecimento tão esperado, mas as emoções da expectativa de sua realização,

pois ela prevê, pela interpretação que faz da realidade, que a festa mesmo, esta não

aconteceria para ele.

O segundo, “em boca fechada num entra mosca”, expressa uma absoluta

segurança da personagem em relação à valorização da prudência como capacidade

de silenciar na hora certa, atitude que ela própria adota. Tal postura desvia o

indivíduo de muitos problemas. Ela se mantém nessa posição, razão pela qual

obtém de todos, a confiança.

Em virtude de retratarem os hábitos humanos, os provérbios parecem

amparados por uma ideia de “verdade”, como se tivessem sido testados em

situações concretas do dia-a-dia, conforme já visto anteriormente. Pode-se também

verificar esse aspecto nos provérbios a seguir. O episódio é o que trata de uma

conversa entre Siá Ana e Onorina, ouvida por Teodoro, sobre a descoberta de

gravidez da moça.

- É isto mermo, mia fia, quem brinca cum fogo um dia se queima. A pessoa chorava e dizia a Siá Ana palavras que Teodoro não compreendia. E então Siá Ana consolava: - Num se amofine, não. Quando uma porta se fecha, outra se abre... (CASTELO BRANCO, 1948, p. 60) (grifos meus).

Se por um lado o provérbio “quem brinca cum fogo um dia se queima”

adverte a jovem de que ela deve arcar com as consequências de seus atos, pois

havia quebrado regras que norteavam comportamentos legitimados por aquele

grupo, por outro, como a velha é uma espécie de confessionário, não só confronta-

lhe seu “erro”, mas também a conforta por meio de outro provérbio que traz a ideia

de esperança, “quando uma porta se fecha, outra se abre”, estimulando-a a pensar

que nada é absolutamente estático e que várias são as possibilidade de

enfrentamento de um problema.

Com efeito, esses discursos de sabedoria constituem o repertório linguístico

de Siá Ana em várias outras situações, significando valores básicos da vida, humor,

ironia etc., a saber: “quem se amontoa no burro aguenta o trote”, “quem nasce pra

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cachorro morre latindo”; “em briga de pedra, garrafa num entra”; “boi manso,

marrada certa”; “galinha sem galo, pinto nenhum”; “antes só do que mal

acompanhado”; “arreio de ouro num miora o cavalo”; “pé de galinha num mata

pinto”; “pancada à distância num quebra a costela”.

Os provérbios despertam curiosidade pela criatividade de suas metáforas e

pela riqueza de possibilidades que demonstram como recursos linguísticos, tendo

como força expressiva o modo como são utilizados. São expressões instigantes,

pois nelas “coexistem, paradoxalmente, o fugaz e o perene, o dinâmico e o estático,

ou seja, tudo que está presente na vida do homem e guia suas ações” (NÓBREGA,

2008, p. 65).

Assim, se por um lado os dizeres das personagens em Teodoro Bicanca se

apresentam revestidos pela estereotipia de uma linguagem que as restringe a “uma

maneira de ser regional”, em função de suas falas serem marcadas pelo caráter

pitoresco e pela ausência de escolaridade; por outro lado, outra imagética dos

dizeres do sujeito sertanejo/nordestino se instaura no romance, distanciando-se

daquela representação. Isto pode ser percebido, pela pluralidade linguística presente

no vocabulário da região, rico e instigante, criado a partir de expressões culturais

desses sujeitos, seja pelo poético das canções do violeiro Zé Peinha, seja pela força

expressiva dos provérbios de Siá Ana, por meio dos quais o autor sugere que

existem vários jeitos sábios e criativos de viver e sentir a vida nesse espaço.

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4 REPRESENTAÇÕES DO FEMININO: EM BUSCA DA MULHER SERTANEJA

Que nada nos defina (...). Que a liberdade seja nossa própria substância. Simone de Beauvoir

Para Chartier, “práticas e representações pressupõe usos e funções

diferenciais dos mesmos objetos, leituras plurais de indivíduos, de grupos e da

sociedade sobre os mesmos fenômenos e os vários argumentos possíveis”

(CHARTIER, 1990, p. 25). Afirma, ainda, que a representação permite que se

apresente o objeto da materialidade crua do mundo e o insira na trama do signo, da

palavra. Sendo assim, para o autor, a representação se relaciona à ordem do

simbólico, do real possível, não sendo seu reflexo nem a ele se impondo

antiteticamente, mas possuindo o caráter de anunciar, de construir sentido que

permita a identificação do representante com o representado. Tendo em vista que as

representações não são medidas por critérios de verdade, mas pela capacidade de

proporcionar credibilidade.

Com efeito, as representações são importantes, pois se mostram como

instâncias capazes de promover a compreensão de como as formações discursivas

que envolvem as relações de poder, os mecanismos de dominação e de resistência

foram gestadas.

Assim, segundo Teixeira (2008), “ao se representar a figura feminina,

constrói-se, projeta-se e estabiliza-se a identidade social em processos definidos

histórica e culturalmente. As práticas sociais de representação vigentes de uma

certa época se cristalizam em formas textuais”. (TEIXEIRA, 2008, p. 85-86), sendo

possível associar tais práticas às ordens discursivas a que estão ligadas ou a outros

discursos circulantes na sociedade.

Nesse sentido, a partir da leitura de Teodoro Bicanca (1948), de Renato

Castelo Branco, objetiva-se, nesse capítulo, adentrar no universo cultural sertanejo

mediante a representação feminina. Para tanto, busca-se examinar a presença da

mulher nas práticas sociais e discursivas do cotidiano sertanejo/nordestino, no

espaço narrativo do romance, observando-se como estas práticas de gênero são

organizadas de forma desiguais ou assimétricas.

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Quanto a esta representação, tem-se em mente que ela se constitui pelo

ponto de vista do homem, da palavra masculina, que no campo das representações,

configura-se como um discurso de dominação do homem sobre a mulher.

4.1 Espaços e papéis de mulher: submissão e resistência

Desde cedo, a representação social de papéis de gênero marca diferenças

relevantes quanto às ações desempenhadas por homens e mulheres. Tais

diferenças se mostram bem mais definidas em espaços sertanejos, sobretudo,

nordestinos: “ali se gestou uma sociedade fundamentada no patriarcalismo.

Altamente estratificada entre homens e mulheres” (FALCI, 2002, p. 243).

Gouveia e Camurça (2000) consideram que as relações de gênero se

associam a conceitos que a sociedade construiu:

É a partir da observação e do conhecimento das diferenças sexuais que a sociedade cria ideias sobre o que é o homem, o que é uma mulher, o que é masculino e o que é feminino, ou seja, as chamadas representações de gênero. (GOUVEIA E CAMURÇA, 2000, p. 12).

Estas representações são instituídas pelo discurso no decorrer do tempo,

engendradas nas relações sociais a partir de todo um processo de aprendizado

ancorado naquilo que a sociedade legitima como masculino e feminino.

Embora a concepção de ser homem e ser mulher compreenda uma

construção discursiva, ela tende a representar um caráter biologizante, conforme

observa Silva (2000), ao considerar que além dos essencialismos culturais e

religiosos, outros discursos sociais, como os científicos, fizeram uso das garantias

de uma (suposta) natureza feminina, destinando às mulheres papéis de

subordinação e aos homens de dominação. Esses discursos teriam contribuído para

a disseminação de uma representação de mulher caracterizada por atributos de

ordem biológica compartilhados apenas por pessoas do sexo feminino. Nesses

discursos, homens e mulheres fixam-se em pólos separados, no processo de

construção da identidade.

Conforme Badinter (2005), a suposta natureza feminina da mulher a

destinaria à maternidade, tendo na capacidade ou dom de gerar filhos, o elemento

demarcador de sua identidade no processo de classificação cultural, o papel de

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procriar, atribuído à mulher, estaria concernente com padrões prescritos; recusá-lo

significava estar à margem da normalidade.

Ao fazer da diferença biológica o critério supremo da classificação dos seres humanos, fica-se condenado a pensá-los em oposição um ao outro. Dois sexos, logo duas maneiras de ver o mundo, dois tipos de pensamento e de psicologia, dois universos diferentes que permanecem lado a lado, sem jamais se misturar. O feminino é um mundo em si, o masculino é outro, e eles dificultam a travessia das fronteiras e parecem ignorar as diferenças sociais. (BADINTER, 2005, p. 157).

As fronteiras entre ser mulher e ser homem, sustentadas pelo discurso de

naturezas opostas ficam claramente demarcadas, dificultando a troca dos papéis

atribuídos a cada um. Nesse sentido, ao se pensar em identidade feminina ou

masculina, logo vem à mente quais papéis são reservados a cada gênero. Baseados

em atribuições assimétricas entre os sexos masculino e feminino, as relações de

gênero acabam sendo marcadas por ligações de desigualdade e dominação,

historicamente controladas pelo homem. Nessa convergência de ideia afirma

Lipovetsky:

Um princípio universal organiza, desde os tempos mais remotos, as coletividades humanas: a divisão social dos papéis atribuídos ao homem e à mulher. Se o conteúdo dessa distribuição de funções varia de uma sociedade a outra, o princípio da divisão segundo o sexo é invariável: as oposições e as atividades de um sexo sempre se distinguem das do outro. Princípio de diferenciação que é acompanhado de um outro princípio, igualmente universal: a dominação social do masculino sobre o feminino. (LIPOVETSKY, 2000, p. 232).

As relações de gênero, sustentadas por esses essencialismos identitários,

acabam por fundamentar uma hegemonia, dando a ideia de uma identidade

masculina superior, tendo em vista que “tal discurso tem, quase sempre, por função,

a transformação do diferente em inferior, uma das questões centrais de toda

organização social que necessita sustentar sistemas de apropriação desigual”

(ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 49). Mediante estes mecanismos, consoante a

autora, são instituídos discursos uníssonos “da identidade feminina” cujos atributos

como fragilidade, sensibilidade, abnegação, docilidade e dedicação passam a

integrar a suposta “natureza” feminina, limitando, assim, os espaços e funções das

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mulheres à “guardiãs da tradição e dos laços de família (ROCHA-COUTINHO, 1994,

p. 49).

Para Louro essa fabricação de homens e mulheres requer um investimento

continuado, pois “a construção de gênero é realizada nas múltiplas instâncias

sociais, nas diferentes práticas, espaços e instituições, através das intrincadas redes

de relações entre os sujeitos” (LOURO, 1997, p. 174). Na reiteração de

comportamentos e condutas, os gêneros se constituem, não sendo puramente

naturais como dito por Simone de Beauvoir, não se nasce mulher, torna-se mulher.

Nesta perspectiva, Butler se refere a gênero definindo-o como performático,

ou seja, como “uma reiteração de uma norma ou de um conjunto de normas”

(BUTLER, 2003, p. 167). Ser homem ou mulher é uma performance cultural,

“constituída mediante atos performáticos compelidos que produzem o corpo no

interior das categorias de sexo e por meio delas” (BUTLER, 2003, p. 9). Desse

modo, os gêneros são produzidos a partir da repetição de diversas práticas que os

definem histórica e culturalmente.

Por esse prisma, ainda segundo esta autora, as pessoas têm a capacidade de

reagir ao tipo de comportamento de gênero aprendido desde a infância e imposto

socialmente. Elas não estão condicionadas a repeti-los.

Em Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares

(1994), Rocha-Coutinho investiga a evolução histórico-social da condição feminina

no Brasil, buscando entender as estratégias de controle desenvolvidas pelas

mulheres em aparente submissão. A partir das análises feitas, defendendo que:

nem vitimas, nem algozes, acreditamos que as mulheres ao longo dos anos foram tecendo modos e resistência a esta opressão masculina, formas de exercer um certo controle sobre suas vidas a despeito de uma situação social adversa. (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 19).

É possível ler na submissão feminina, estratégias de enfrentamento, de

resistência à posição de poder e autoridade dos homens. Mesmo em um contexto

adverso, as mulheres teriam desenvolvido táticas de sobrevivência emocional e de

poder dentro do sistema patriarcal7. Para a autora, “as estratégias empregadas, em

7 O patriarcalismo para Dal Lago designa “um padrão normativo de comportamento baseado na obediência e

respeito pela autoridade paterna por filhos e esposas. Na sociedade, ele implicava um comportamento diferente das classes inferiores diante das classes superiores e especialmente dos trabalhadores diante de seus

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geral, estão relacionadas à distribuição de poder e autoridade, não apenas no

espaço doméstico, mas também na sociedade de um modo geral” (ROCHA-

COUTINHO, 1994, p. 21). Esta perspectiva de análise da autora desloca os

convencionais binarismos de gênero: opressor versus oprimido, dominador versus

dominado; questiona a ideia da mulher massacrada pelo homem, sem recursos de

defesa nos conflitos referentes à esfera privada e pública.

Perrot, ao tratar das condições em que a mulher foi historicamente

construída, afirma que “as mulheres não são passivas nem submissas. A miséria, a

opressão, a dominação, por reais que sejam, não bastam para contar a sua história”

(PERROT, 1988, p. 212).

A história das mulheres não se inscreve apenas no campo da dominação, da

domesticidade, mas envolve, segundo Dias, resistências marginalizadas nos

conhecimentos sobre sua condição social. Assim defende:

Os papéis propriamente históricos das mulheres podem ser captados nas tensões, mediações, nas relações propriamente sociais que integram mulheres, história, processo social e podem ser resgatados das entrelinhas, das fissuras e do implícito nos documentos escritos. (DIAS, 1995, p. 50).

É importante que se leia nas entrelinhas das fontes, dos textos para que se

observe o que está oculto neles em relação à história das mulheres, extraindo de

seu universo, os fragmentos das diversas maneiras de procederem. Os conflitos, as

modalidades de resistência, as estratégias de sobrevivência, o cotidiano de suas

atividades, ou seja, a autora defende que se reconstituam experiências excluídas,

silenciadas por um discurso universal masculino, pois acredita que mesmo lutando

silenciosamente, as mulheres não deixaram de ter poder, uma vez que este estaria

presente até mesmo na capacidade de resistir.

4.2 Mulher, literatura e sertão: breve passeio

Na literatura brasileira, as representações femininas estão presentes desde

suas origens. De Gregório de Matos a Guimarães Rosa, a mulher, não raro, é vista

senhores. Entre os séculos XVIII e XIX, a ascensão simultânea, em várias regiões do mundo, de classes empreendedoras, defensoras da modernização e de valores capitalistas e liberais, levou a emergência de um ethos paternalista no sul dos Estados Unidos e no Mezzogirno italiano” (DA LAGO, 2007, p. 194).

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com estereótipos que a posiciona negativamente, sem as complexidades e tensões

que lhe são pertinentes. Ora sob o estigma do idealismo, ora com a marca da

dominação. Pólos opostos que as inscrevem em imagens supostamente

verdadeiras:

A mulher representada na literatura, entrando num circuito, produzindo efeitos de leitura, muitas vezes acaba por se tornar um estereótipo que circula como verdade feminina. Presa de representações confunde significante e significado e busca estabelecer uma continuidade do signo com a realidade. (BRANDÃO, 2006, p. 33).

Há na literatura certos modelos de feminilidade que produzem uma

intelectualidade da imagem da mulher, promovendo, contudo, efeito de verdade que

acaba sendo absorvido e disseminado como tal. Com isto, fica a mulher prisioneira

de representações que prescrevem o que ela deve ser.

Para Bueno, as representações que situam a mulher em um pólo ou outro,

tão recorrentes no século XIX, chegam ao chamado romance de 30 e nele

persistem. Ao se referir ao romance de Aldo Nay, Os três sargentos (1932), a esse

respeito, aponta:

Ou namoradas ou prostitutas. As namoradas no caminho amplo em volta da praça, as prostitutas mais escondidas no caminho interno junto ao coreto. Não há nenhum meio termo: ou é o amor recatado das moças que se casam ou o amor degradado das prostitutas. (BUENO, 2006, p. 284).

Os romancistas de 1930 não conseguem transcender aos estereótipos que

inscrevem a mulher negativamente. Isto porque a situam ou no extremo da pureza,

como exemplo de submissão, passividade e dependência; ou no outro pólo, como

objeto de exploração sexual.

Imprimindo uma abordagem do feminino que segue outra direção, dentro do

romance de 1930, encontra-se Rachel de Queiroz que, de forma mais evidente,

segundo Barroso, a partir de O Quinze (2002), confere voz às personagens

femininas de forma distinta dos modelos recorrentes na literatura brasileira até a

década de 1930.

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A partir de O Quinze, pode-se dizer que a literatura feminina no Brasil resguardou-se das amenidades, focalizando, de maneira aguda e humanizada, indivíduos, clima e civilização, personagens de caráter, situadas num meio adequado e realizando uma ação consequente. (BARROSO, 1990, p. 117).

Esta atuação da escritora em relação à representação feminina pode ser

verificada, por exemplo, em personagens como Conceição e Maria Moura dos

romances O Quinze (2004) e Memorial de Maria Moura (2004) respectivamente. As

duas personagens são fortes, decididas, independentes e transgressoras das ordens

vigentes. Negam-se a viver o destino padronizado das mulheres: o de ser esposa e

mãe.

Embora Rachel de Queiroz inaugure na literatura regional uma nova forma

de representar o feminino, não se pode deixar de notar que, na construção de Maria

Moura (2004), a escritora não consegue se desligar do estereótipo da mulher que

precisa assumir posturas masculinas, agindo como um homem e, de certa forma,

privando-se de sua condição de mulher para se fazer respeitar.

Tal estereótipo pode ser verificado também na construção da personagem

Diadorim em Grande Sertão: Veredas (1986), de Guimarães Rosa. Esta, para

conseguir viabilizar seu projeto de vingança tem que se transmutar, assumindo a

condição de masculino, passando-se por Reinaldo, um jagunço ágil e valente.

Embora não mutile completamente sua feminilidade, acaba por deslocar sua posição

feminina, aproximando-se daquele que se impôs como superior.

4.3 A mulher na tessitura do cotidiano sertanejo

Em A invenção do cotidiano (1994), Certeau defende que o homem ordinário

(como ele denomina) é capaz de organizar um cotidiano mediante táticas de

resistência ao que é oficialmente imposto. Tais táticas o fazem escapar das redes de

poder que visam a discipliná-lo. Nesse sentido, defende que a invenção do cotidiano

se deve às artes de fazer. Estas pressupõem astúcias, “piratarias”, táticas

articuladas sobre os “detalhes” do cotidiano, responsáveis, então, por produzirem

uma rede de microresistências. Para ele:

Se é verdade que por toda parte se estende e se precisa a rede da “vigilância, mais urgente ainda é descobrir como é que uma

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sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também „minúsculos‟ e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que „maneiras de fazer‟ formam a contra partida, do lado dos consumidores (ou „dominados‟?), dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política. (CERTEAU, 1994, p. 41).

Ao analisar a forma como as pessoas comuns exercem as micro-

resistências aos produtos e valores impostos pela indústria cultural e outras formas

de poder, ele argumenta que a maneira como esses receptores “consomem” tais

produtos e valores, ou seja, como se reapropriam deles é que expressa a não

passividade desses indivíduos, pois burlam as expectativas organizadas pelas redes

de disciplinarização dos produtores. “Esses modos de produzir e essas astúcias de

consumidores compõem, no limite, a rede de uma antidisciplina” (CERTEAU, 1994,

p. 42). Vale ressaltar que, para Certeau, consumidores “consomem” não apenas

produtos materiais, mas, sobretudo, valores e ideias.

Para Matos, as abordagens que inserem a análise do cotidiano:

têm revelado todo um universo de tensões e movimento com uma potencialidade de confrontos, deixando entrever um mundo onde se multiplicam formas peculiares de resistência/luta, integração/ diferenciação, permanência / transformação, onde a mudança não está excluída, mas vivenciada de diferentes formas. (MATOS, 2002, p. 26).

A potencialidade do cotidiano se apresenta como um campo de múltiplas

possibilidades capaz de promover resistência ao processo de dominação e, assim,

recuperar “ambiguidade e pluralidade de possíveis vivências” e “desafiar a teia de

relações cotidianas e suas diferentes dimensões de experiência, fugindo dos

dualismos e polaridades” (MATOS, 2002, p. 26).

Essa perspectiva de análise da representação feminina possibilita que se

recorra à investigação do cotidiano de mulheres sertanejas nordestinas que

conviveram com severas políticas de imposições masculinas, mas que, por meio das

frestas que o cotidiano apresenta, pode-se entrever as estratégias ou táticas de

resistências criadas e recriadas para tecerem suas histórias, mesmo que “por trás

dos panos”.

No sertão nordestino, eram mais explícitos os papéis de gênero, situando a

mulher no espaço privado. Assim, restringindo-a à vida doméstica, à orientação dos

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filhos. Nessa sociedade, o modelo de mulher, segundo Falci, perpassava pela

dedicação exclusiva ao universo doméstico, espaço de passividade e invisibilidade,

impelindo-a à aceitação de um papel de sombra da figura masculina. Nesse sentido

afirma:

No sertão nordestino, (...) a mulher (...), mesmo com um certo grau de instrução, estava restrita à esfera do espaço privado, pois ela não se destinava a esfera pública do mundo econômico, político, social e cultural. (FALCI, 2002, p. 251).

Em Teodoro Bicanca (1948), essa invisibilidade da mulher pode ser

percebida a partir da ausência de nomes de várias mulheres designada apenas

como a mãe de Teodoro, a filha do Quincas, a irmã do Horceno, representando,

assim, o lugar desses sujeitos naquele universo social. Não atuavam no papel

principal, eram coadjuvantes, auxiliadoras. Daí, no ideário patriarcal, a mulher não

conseguir vislumbrar seu futuro sem um homem para protegê-la, sustentá-la.

O romance apresenta valores e atitudes em uma discursividade sobre mulher

em posição de submissão e passividade, sendo tais discursos difundidos pela

sociedade e introjetados pelo próprio sujeito feminino. Assim, em várias situações na

narrativa, este sujeito se deixa envolver pelas regras de opressão impostas. Por

outro lado, há momentos nos quais se vislumbra ações que se contrapõem ao

processo de conformismo às regras estabelecidas. São brechas de resistências que,

de certa forma, acabam demarcando espaços diversos de atuação, mesmo que

dentro dos limites da época.

Desse modo, observa-se que, embora os rastros patriarcais que inscrevem a

mulher nos papéis de esposa, mãe, dona-de-casa, se mostrem fortemente presentes

na representação do feminino em Teodoro Bicanca, é possível verificar a astúcia de

várias personagens, imprimindo força e presença nos espaços rural e urbano em

que se situam mediante pequenas práticas cotidianas.

4.3.1 A mulher no espaço rural

Um dos espaços de atuação da figura feminina em Teodoro Bicanca é o

universo rural da fazenda Areia Branca situada no vale do rio Parnaíba, próxima a

cidade de Parnaíba, interior do Piauí. Nele, as mulheres ocupam grande parte da

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vida cotidiana envoltas nas malhas de dominação e mesmo de violência.

Pertencentes a diferentes gerações e classes sociais, pautam suas ações ora sob a

lógica do patriarcalismo rural, ora escapando de alguns modelos preestabelecidos.

Siá Ana é uma dessas personagens. É a moradora mais antiga da fazenda

Areia Branca, uma verdadeira sobrevivente do regime escravagista. Pouco se sabe

sobre seu passado, pois é muito reservada. Apenas alguns episódios são

conhecidos do(a) leitor(a). Isto ocorre quando, em segredo, ela os relata a Teodoro,

misturando-os às narrativas enredadas ao, então, garoto. Nisto, criando em torno de

si um clima de mistério.

Viúva desde jovem, Siá Ana nunca mais se casou, nem se envolveu com

ninguém. Esta personagem pode ser vista representando o que diz pesquisa

historiográfica: segundo Falci (2002), a mulher viúva no sertão estava condenada a

uma vida de solidão. Os olhares sentenciosos da sociedade impeliam-na a esta

condição. Siá Ana “nunca mais sentira cheiro de homem depois da morte do marido”

(CASTELO BRANCO, 1948, p. 99). Teve um filho que morreu ainda pequeno, mas

exerce, o convencional papel de mãe ao cuidar de Teodoro, ainda garoto, como se

fora seu filho, em virtude de o menino ser órfão de mãe. Assim é retratada pela

discursividade que destina à mulher a vocação para a maternidade.

Essa característica ligada ao cuidado é um traço marcante da personalidade

dessa personagem. Ela o executa cotidianamente, seja como parteira, seja

realizando curas através de rezas ou por meio de remédios à base de plantas, seja

confortando emocionalmente as pessoas.

Siá Ana era negra respeitada, em toda redondeza. E até da casa de telha vinham lhe pedir conselhos na hora de aflição. (...) E, quando saía pela estrada, com a carapinha branca rebrilhando ao sol, os caboclos que cruzavam por ela cumprimentavam com respeito, se descobrindo. Só Siá Ana tinha estas honras, além do pessoal da casa de telha. Porque seu poder era quase tão grande quanto o do coronel. (...) Suas curas milagrosas eram contadas às centenas e não havia doença para a qual não tivesse um remédio. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 46-47).

No texto, a personagem interioriza o discurso que impõe à mulher a função de

estar a serviço dos outros, em detrimento de seus próprios desejos e realizações.

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Seus dramas, conflitos e anseios são ocultados, ficando visíveis apenas as ações de

uma vida de dedicação. A personagem assume o papel atribuído ao espaço privado,

tendo em vista que o cuidar é uma atividade que se aproxima das tarefas

domésticas.

Estas ações da personagem podem, contudo, comportar outras leituras, como

por exemplo, a de que são estas atividades que a colocam na esfera pública e

social, levando-a a subverter a posição de submissão da mulher, tão naturalizada

naquele espaço, visto que transita livremente com altivez e autonomia, marcando a

força de sua presença. Nesse aspecto, as atividades de reza e de cura podem ser

lidas também como estratégias de resistências, um saber-poder, que a personagem

desenvolve em seu cotidiano para poder garantir a sobrevivência, haja vista, sua

condição de viúva. Nesse ponto, a personagem mostra-se astuta, abrindo frestas

capazes de constituí-la como sujeito.

Historicamente, conforme Rocha-Coutinho (1994), foram atribuídas à

mulher uma série de características como fragilidade, docilidade, integrando-lhe

uma suposta “natureza” à maneira de essencialista. O modo de agir de Siá Ana,

entretanto, foge a esse padrão de mulher enquanto ser frágil. Isto pode ser

observado no episódio seguinte no qual a personagem enfrenta Malaquias, o

capanga mais valente do coronel Damasceno, quando este intentava entrar na casa

dela para pegar Teodoro, por tê-lo flagrado beijando Piedade, sua filha.

Mas Siá Ana, quando o viu chegando foi logo dizendo. Que Teodoro estava lá mesmo, mas, mas que desconhecia homem que fosse capaz de ir tirá-lo de lá. Ele que pisasse no batente de sua casa para ver o que acontecia. Botaria quebranto nele e, ainda por cima, caparia de rastro. A ameaça deixou Malaquias gelado. Que respeitava a casa de Siá Ana, mas que no dia que pegasse aquele moleque, ele ia ver. E Siá Ana sacudindo a saia em desafio: - Pois bem: pancada à distância num quebra costela... (CASTELO BRANCO, 1948, p. 119 -120).

A cena remete para outra imagem: a representação da mulher sertaneja

destemida, valente, com autoridade moral e personalidade ancestral da força mística

ao insinuar-se como capaz de ameaçar o que era mais valoroso para o homem

sertanejo – a virilidade. A coragem que demonstra mostra o poder da personagem

que não hesita, não reinvidica a proteção ou a defesa de um homem. A exemplo de

outras mulheres sertanejas representadas na literatura, como Maria Moura, de

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Rachel de Queiroz, Teresa Batista, de Jorge Amado e Diadorim, de Guimarães

Rosa, ela comanda e controla a situação de enfrentamento ao oponente. A coragem

demonstrada por Siá Ana nesta cena a aproxima da representação da mulher

macho, na historiografia: conforme observa Albuquerque Jr., na análise que faz da

emergência do nordestino: “no Nordeste, até as mulheres seriam masculinas,

macho, sim senhor” (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 165).

Outro momento que confirma a força e coragem dessa personagem refere-

se a um episódio do passado por ela evocado e transmitido a Teodoro. Ocorreu

quando seu homem fugiu da senzala. Ela foi torturada por ocasião da surra que

“apanhara para denunciar seu negro, surra tão grande que a deixara descadeirada,

com uma perna manca que nunca mais sarou” (CASTELO BRANCO, 1948, p. 58).

Nesse episódio, a resistência da personagem se dá através do silêncio.

Mesmo torturada, não entrega seu homem, suporta a violência, mas não se fragiliza,

não se submete. Rasura, pois, o lugar de submissão e fragilidade reservado à

mulher ao se insubordinar em seu silêncio, pois “no silêncio, o sentido se faz em

movimento, a palavra segue seu curso, o sujeito cumpre a relação da sua identidade

(e de sua diferença)” (ORLANDI, 2002, p. 161). O silêncio da mulher Ana implica em

marcas que ficaram para sempre em seu corpo, gerando um sentido diferente de se

constituir mulher, forte e decidida.

Assim, por um lado Siá Ana é representada com estereótipos de uma visão

conservadora do feminino; por outro, percebem-se as criativas estratégias capazes

de deslocar mecanismos de dominação no espaço em que se constitui como mulher,

de certa forma, “minando” determinadas convenções. Nesse aspecto, as identidades

de Siá Ana emergem na trama cotidiana de tecer saberes, cujos poderes acabam

por lhe conferir posição de destaque em um espaço de domínio do masculino.

Dona Hortência é outra personagem que merece atenção nesse espaço

rural sertanejo. É uma mulher religiosa e presa às convenções que a confinam ao

espaço do lar. Filha do mais conceituado médico de Parnaíba e esposa do coronel

Damasceno. As atividades que realiza, em sua maioria, voltam-se para prendas

domésticas como fazer renda e comandar a casa, revelando nessas últimas

atribuições, a força de sua atuação. Aspecto que se harmoniza com a afirmação de

Falci de que no sertão:

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as mulheres de classe mais abastarda não tinham muitas atividades fora do lar. Eram treinadas para desempenhar o papel de mãe e as chamadas „prendas domésticas‟ – orientar os filhos, fazer ou mandar fazer a cozinha, costurar e bordar. (FALCI, 2002, p. 249).

Para Perrot (2007), os serviços domésticos, em grande parte, eram

percebidos e difundidos como funções femininas. Exigiam menor esforço físico,

eram também monótonos e quase invisíveis aos olhos dos membros da família, além

de não serem prestigiados socialmente. Dona Hortência se submete a essa

condição de subordinação que, de certa forma, suprime-lhe competências, como a

de compartilhar o comando das fazendas com o marido, inclusive a Belo Pasto,

herança sua. Silencia seus desejos e orienta sua vida. Vive em função do marido e

dos filhos, no entanto, não há nenhum reconhecimento de sua dedicação por parte

destes. Eles lhe são indiferentes. O marido vive metido em casos com mulheres

mais jovens. O filho, sequer a visita, mesmo morando em Parnaíba.

Na visão de Rocha-Coutinho essa invisibilidade das mulheres é, na verdade,

uma violência simbólica que as vitimiza, sendo estas, em sua maioria, “alijadas dos

postos-chaves de comando social e orientadas para o desenvolvimento de sutis

mecanismos de domínio afetivo que elas possam exercer dentro da família”

(ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 39).

A respeito dessa questão, a historiadora Samara (1997), ao rever o recinto

doméstico, defende-o não apenas como um espaço de submissão da mulher, mas

de revisão de ideias, acreditando haver nele a possibilidade de se perceber brechas

no sistema patriarcal, no qual as mulheres seriam capazes de reorientar as relações

de gênero, haja vista elas terem o poder de educar seus filhos. O posicionamento de

Dona Hortência, contudo, não confirma essa estratégia de aproveitar as „brechas‟

para redirecionar relacionamentos de gêneros baseados em compartilhamento de

papéis, ao contrário educa os filhos, reproduzindo os mesmos discursos tradicionais

que regem sua vida.

Ela tem dois filhos, um rapaz e uma moça. Para o filho, Horceno, alimenta o

sonho de vê-lo médico. Para tal, envia-o à Parnaíba e depois à Bahia a fim de cursar

medicina. Quanto à filha, cujo nome não é mencionado, sua expectativa é de que se

case com alguém de condições sociais elevadas. Esta também vai estudar em

Parnaíba, mas apenas como um mecanismo de preparação para exercer,

futuramente, o papel de esposa de alguém compatível com sua classe social.

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Sua filha seria uma moça prendada e casaria com um rapaz direito, da cidade, para não estar sujeita àquelas humilhações que ela passava na Areia Branca. E seu filho iria mais tarde se formar na Bahia, seria um doutor, faria carreira, consolaria os sofrimentos que aturava daquele debochado sem respeito. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 71).

A atitude de D. Hortência em relação ao projeto de futuro que traça para os

filhos mostra que essa personagem internaliza o discurso masculino que destina o

espaço de liberdade e visibilidade ao homem e, à mulher, o espaço do lar, ficando

despercebida da vida social, nisto confirmando a concepção de Michelle Perrot

acerca desses lugares de gênero: “Aos homens, o público, cujo centro é a política.

Às mulheres, o privado, cujo coração é formado pelo doméstico e a casa” (PERROT,

2007, p. 459).

Esse discurso tradicional é apreendido por D. Hortência e repetido aos filhos,

à medida que promove ações condicionantes para a construção desses sujeitos,

como oferecer a Horceno todas as condições de conquista propostas pela

intelectualidade e à filha, a limitação que o lar requeria. Nesse sentido, pode-se

compreender que os gêneros se definem cultural e historicamente, a partir de uma

série de atos repetidos que promovem legitimidade, instauram lugares e papéis a

serem ocupados pelos sujeitos, tendo em vista que estes são produzidos, segundo

Buttler (2000), por atos performativos, ou seja, pela recomendação reiterada de

comportamentos e condutas, conforme já referido no início desse capítulo.

O trecho mostra, ainda, que a personagem é representada como a mulher

que reserva para si o lugar secundário. Não mais possui os sonhos de realização

pessoal, mas projeta-os nos filhos. Ao reagir às traições e humilhações do marido, o

faz com as marcas identitárias que a sociedade impõe, conformando-se àquela

situação como se tal realidade fosse imutável. Embora tendo consciência de que é

uma mulher traída e de que o marido é um “debochado” que não a respeita, não se

insurge, ao contrário, espera do filho o consolo por tal infortúnio, como se não

conseguisse prescindir da proteção masculina. Com isto, observam-se as limitações

que foram colocadas na capacidade de ação feminina.

Bonita e alegre, Dona Hortência nascera em Parnaíba. Apesar da condição

favorável do pai, não demonstra ter estudado. Empreendera seu vigor no sonho de

encontrar seu príncipe encantado. O leitor fica sabendo disso, quando em um

momento de reclusão, devido à traição do coronel com Onorina, a personagem

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resgata, pela memória, fragmentos de seu passado, ainda solteira. Lembra-se de

como era disputada pelos rapazes de Parnaíba, recusando-os, pois vivia à espera

de seu príncipe que viria montado em um cavalo branco.

Um dia, finalmente, quando dona Hortência saía de casa e viu se aproximar, na rua, um rapaz alto e moreno, de grandes botas e chapéu de aba larga, montado num cavalo branco, seu coração bateu tão forte que ela quase teve um desmaio. (...) E o príncipe moreno, notando seu estado, saltara galantemente do seu cavalo branco e se aproximara de chapéu na mão, pedindo permissão para ajudá-la. (...) O príncipe era Damasceno, que havia ido a Parnaíba, comprar mantimento para sua fazenda. E, alguns meses mais tarde, dona Hortência iria se reunir a ele, na Areia Branca, após uma festa de casamento que durara três dias e três noites. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 82 – 83).

O texto demonstra como Dona Hortência encarna o estereótipo da mulher

que tem suas atitudes amplamente referenciadas pela emoção. Esta característica

aparece como eixo das decisões da personagem, não apenas enquanto solteira,

mas também depois de casada. A cena mostra os planos opostos nos quais as duas

personagens se situam. Enquanto ela está imersa em um mundo idealizado de

sonhos e fantasias no qual a figura do príncipe é desencadeadora do encanto; ele,

contudo, encontra-se situado numa dimensão real, prática, executando ações

corriqueiras, que envolviam a compra de mantimentos para a fazenda. Assim, por

meio de D. Hortência, é reforçado o discurso culturalmente edificado de que a

racionalidade é própria do homem, sendo a mulher, naturalmente dirigida pela

emoção.

Não obstante, o modelo idealístico de casamento incorporado por D.

Hortência é desfeito. Ela toma ciência de quem era seu príncipe ao ficar sabendo

dos vários filhos “ilegítimos” dele. A reação que esboça é a fuga para a religião.

Apela para rezas e supertições.

Dona Hortência fizera tudo como Siá Ana recomendara. Mandara pegar uma raia prenhe e uma cobra incomodada, fritara as duas e, em seguida, oferecera a São Cipriano, rezando: - Valei-me meu glorioso São Cipriano (...), pelo poder se Santa Bertolina, ferrabrás, satanás, o diabo coxo empurrando Damasceno por detrás, que ele não possa comer, não possa beber, não possa

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dormir, que para outra mulher não possa olhar, que ele só viva e pense em mim. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 84).

Em nenhum momento D. Hortência cogita a possibilidade de se separar de

Damasceno. Antes, recorre a alguns artifícios das crendices locais visando a

reorientar os hábitos adúlteros do marido. Essa ação da personagem reitera a

representação da mulher dependente do homem, tentando garanti-lo para si de

qualquer maneira.

O texto também mostra como a construção subjetiva de D. Hortência é

fortemente marcada por elementos religiosos, aspectos que justificam sua

dificuldade em se desprender dos convencionais valores que desenham os papéis

da mulher, como por exemplo, o de permanecer casada a qualquer preço. Conforme

Almeida (2007, p. 80) “a religião é uma das armas mais eficazes para manter a

servidão”, visto que “representa o ponto nevrálgico para o qual convergem as

relações de poder estabelecidas no nível do simbólico e do imaginário” (ALMEIDA,

2007, p. 64), constituindo-se em uma forma efetiva de controle do corpo e da alma

feminina. Isto é o que se percebe em Dona Hortência, seu apego aos ritos religiosos

promove, de certa forma, as amarras que a prendem a um comportamento

conservador recebido como herança de outras mulheres.

As aventuras amorosas de Damasceno não se retraem ao poder das rezas

de D. Hortência, ao contrário, tornam-se cada vez mais ousadas. Destas a que mais

lhe provoca humilhação é a que envolve a relação com Onorina.

Dona Hortência, ao saber da notícia, ficara uma semana trancada em seu oratório, rezando. Não saía nem para comer. (...) Afinal dona Hortência começou a sentir-se, também, um pouco cansada da reclusão e desejar que Damasceno fizesse uma nova tentativa de violar seu santo recolhimento, dando-lhe um pretexto para sair do oratório. Mas Damasceno, nada. (...) Finalmente, dona Hortência não resistiu mais e resolveu sair do oratório. Estava pálida e com os olhos inchados, que faziam seu rosto redondo e gordo parecer ainda mais gordo. Saiu com vergonha de encarar as caboclas da casa de telha e com mais vergonha ainda de encarar Damasceno. Como se ela é que tivesse cometido alguma ação condenável. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 81-85).

A personagem contesta a postura do marido ao tratá-lo como “velho sem

vergonha” (CASTELO BRANCO, 1948, p. 71). Age, contudo, como se fizesse parte

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da natureza do homem esses hábitos culturais cultivados na região, de que ele pode

ficar com várias mulheres em razão de possuir uma sexualidade mais intensa.

Diante disso, recolhe-se em seu quarto, passando a lamentar a própria sorte. Essa

atitude de D. Hortência exemplifica a subalternização social da mulher que se

reconhece traída, mas continua na ordem simbólica de dominação masculina, pois

se mostra impotente para subvertê-la (BOURDIEU, 2005). É uma mulher resignada

à condição de vítima da cultura patriarcal a qual reservou aos homens o direito à

infidelidade e às mulheres, os lamentos, as queixas, as ladainhas. Nessa condição,

atrai para si os sentimentos de compaixão e piedade, conforme se verifica na

consequência do processo de confinamento a que se submete, resultando em uma

mulher abatida, fragilizada e envergonhada. A humilhação e indiferença do coronel

Damasceno, em não dar importância para essa reclusão é bem representativa da

afirmação de Falci (2002, p. 269) de que “havia um intenso nível de violência nas

relações conjugais no sertão. Não violência física exclusivamente (surras, açoites),

mas violência do abandono, do desprezo, do malmequer”.

Ao se enclausurar, trancando-se em seu quarto e em si mesma, a

personagem evoca seu passado, contrapondo-o ao presente, numa busca pela

compreensão de quem ela foi e quem ela é. De donzela sonhadora, à esposa e

mãe, essa é a síntese de sua história. Não mais se sente confortável no papel de

esposa de um homem infiel e inescrupuloso. Com isso, tentando constituir-se,

subjetivamente, mesmo que não ouse romper com tal situação, expressa seu

descontentamento, instaura um lugar de insujeição, como entendido por Almeida, ao

afirmar que “existem os contrapontos que se ancoram no mundo subjetivo, local de

trânsito das mulheres, em que a resistência é o contraponto para a opressão”

(ALMEIDA, 2007, p. 63). A resistência da personagem se dá na tentativa de castigar

o coronel com sua ausência no comando da casa e nos deveres de esposa. É certo

que sua ação não ultrapassa as expectativas dos papéis de gênero definidos

historicamente, mas tece insujeições dentro das possibilidades disponíveis naquele

espaço de cerceamento, pois não era fácil sair do lugar que a tradição patriarcal a

colocou.

Não obstante, partindo da prerrogativa de que ninguém é completamente

assujeitado, não há força impositiva unilateral, pois a dominação suscita sempre

uma resistência (FOUCAULT, 1979). Embora D. Hortência, em Teodoro Bicanca, se

destaque em representar a lógica do sistema opressor patriarcal no espaço rural

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sertanejo, em algumas situações é possível encontrá-la em práticas configurantes

de estratégias astuciosas frente ao marido, em relação ao enfrentamento de

situações de caráter social, como por exemplo, quando retirantes famintos se

amontoam em um rancho improvisado na fazenda Areia Branca. Enquanto o coronel

negava-lhes comida, ela arquitetava meios de persuadi-lo.

Dona Hortência, ao saber das notícias, ia para o oratório, rosário em punho, e rezava horas e horas, trancada. Mas, naquele dia, dona Hortência tivera um sonho – sonhara que Deus lhe mandara falar novamente com o marido, para dar comida aos pobres. Dona Hortência já falara mil vezes, sem resultado. Damasceno tinha pena dos flagelados, mas, argumentava, não podia era tirar comida da boca de sua família para dar para eles. Naquele dia, porém, dona Hortência tinha certeza de que venceria. Deus a havia avisado, em sonho. Ela contava com o milagre. E o milagre se fez: Damasceno mandou que levassem para o rancho uma saca de farinha e uma dúzia de rapaduras. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 27).

Essa ação de D. Hortência, mesmo que paliativa, pois em quase nada

modifica a estrutura socioeconômica daquele grupo faminto, mostra-se relevante por

apresentar sua habilidade na orquestração da ideia do sonho, com atributos divinos,

capaz de fazê-la conseguir o que queria: oferecer algum alimento àquelas pessoas

que definhavam rapidamente. Sendo que nessa sua intervenção, acaba por salvar a

vida de Teodoro, de seu pai e de muitos retirantes.

A atuação dessa personagem na esfera social também pode ser verificada

quando os flagelados se retiram da Areia Branca:

Os retirantes falavam com dona Hortência, mulher boa e religiosa. E, na ausência do coronel, dona Hortência corria o risco de lhes dar um pequeno suprimento para a viagem: um cofo cheio de farinha para um, uma banda de rapadura para outro, um chapéu de palha para um terceiro. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 32).

Longe dos olhos controladores do coronel Damasceno, D. Hortência pratica

pequenas ações que a tornam destacável naquela comunidade. Mesmo agindo

clandestinamente, dribla algumas formas de poder exercidas pelo marido. É certo

que essas ações não se situam numa consciência de gênero, mas anunciam uma

microrresistência.

Se por um lado a representação que sobressai de D. Hortência é a que se

conforma com os modelos usualmente vinculados ao gênero, dentro das

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expectativas de uma sociedade patriarcal em que a figura feminina é estereotipada

como emocional, submissa, frágil e dependente, por outro é possível evidenciar

algumas astúcias em suas ações, revelando sutis registros de assujeitamento em

dadas situações.

Outra personagem que aparece sob a prescrição do poder patriarcal é

Onorina, irmã mais velha de Piedade, ambas filhas de Malaquias, agregado e

capanga do coronel Damasceno, dono do poder repressor que tenta discipliná-las

mesmo com o uso da violência física. Mulher jovem, de olhos grandes, cabelos

pretos e lisos. Era a cabocla mais bonita daquela região. Trabalhava como

cozinheira na casa do coronel Damasceno de quem engravida. Desonrada

(denominação dada às moças que davam livre curso à sexualidade), é alvo da ira e

violência do pai que “dera-lhe uma surra de deixar sem sentidos” (CASTELO

BRANCO, 1948, p. 73).

Segundo Foucault (1979), a atuação do poder sobre o corpo dos sujeitos

manipula seus elementos e origina um conhecimento adequado à sua docilização.

Nesse sentido, o poder domesticador do pai age sobre o corpo da filha como forma

de demonstrar sua força e de puni-la por resistir à ordem estabelecida. Afinal, a

desonra da moça era um desaforo para os códigos que regiam a sociedade

patriarcal rural, pois não apenas a honra da mulher estava manchada, mas “da

família também estava prejudicada” (FALCI, 2002, p. 267). A moça virava “mulher

perdida”, caso não se casasse, daí o pai interpelar pela força o rapaz a fazê-lo. Isto

pode ser percebido no trecho seguinte:

Malaquias andava furioso. Jurava que havia de capar o miserável que desgraçara sua filha. A princípio quisera pôr Onorina para fora de casa, mas os prantos de sua mulher venceram. E Malaquias resolvera adiar o castigo até encontrar o miserável. Caparia ele e depois faria casar com Onorina. Assim lavaria a sua honra e daria a ambos o castigo merecido. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 73).

A vergonha da família pela “desonra” da mulher, nesse universo social, era

grande e as sanções que a sociedade impunha aos homens que tentassem escapar

à responsabilidade que lhe era atribuída, também. Segundo Falci (2002, p. 267), “a

vingança era mandada fazer pelo pai ou irmão para limpar a honra da família”.

O coronel Damasceno, tentando se livrar do problema, arranja um

casamento para Onorina com Antonio Ferreira, um de seus agregados, a quem

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recompensa com duas novilhas pelo negócio. A jovem apenas cumpre o destino que

lhe é traçado. Não deixa entrever um gesto, uma expressão sequer de indignação

ou desacordo. Há um total silenciamento da personagem, como se estivesse

conformada ao cumprimento daquela sina – casar com um homem sem ter por ele

nenhum afeto, apenas para responder às expectativas daquela sociedade que lhe

exigia uma reparação do mau exemplo, sob pena de ser dela extirpada.

Para Orlandi (2002, p. 31), em razão de sua dimensão política, “o silêncio

pode ser considerado tanto como parte da retórica da dominação (a da opressão)

como de sua contrapartida, a retórica do oprimido (a da resistência)”, podendo,

assim, significar obediência ou resistência. O silêncio de Onorina, a princípio, remete

para a representação de uma mulher subjugada pelo poder opressor patriarcal. Esta

suposta dominação, contudo, desfaz-se frente às ações que imprime no casamento

que a oprime. As possibilidades de reação praticamente inexistem, mas como a

dominação provoca sempre uma reação, dentro dos limites de sua realidade,

Onorina acaba por abrir algumas fissuras capazes de promover-lhe certa

visibilidade, como se pode ver no trecho abaixo.

Antonio Ferreira continuava progredindo. Onorina andava mais bonita do que nunca, botava cheiro no cabelo, vestia vestidos de chitas vistosas, andava num luxo que era um verdadeiro espavento. Os outros agregados diziam que Onorina, se não andasse de pé no chão, parecia até gente da casa de telha. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 101).

O silêncio da personagem sucumbe à voz de seu corpo, outrora castigado,

domesticado; agora perfumado, bem cuidado, de certa forma, sob seu comando.

Sua resistência é suscitada nessas pequenas ações que realiza, deixando-se

mostrar em seu vigor e beleza, sentindo-se dona de si, mesmo depois de casada,

nisto, quebrando regras, subvertendo costumes, pois, segundo Falci:

no sertão a mulher casada passava a se vestir de preto, não se perfumava mais, não mais amarrava seus cabelos com laços de fitas, não comprava vestidos novos. Sua função era ser mulher casada para ser vista somente pelo seu marido. Como mulher-esposa, seu valor perante a sociedade estava diretamente ligado à „honestidade‟ expressa pelo seu recato, pelo exercício de suas funções dentro do lar (...). Muitas mulheres de 30 anos, presas no ambiente doméstico, sem mais poderem passear – porque „lugar de mulher honesta é no lar‟ -, perderam rapidamente os

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traços de beleza e deixaram-se ficar obesas e descuidadas. (FALCI, 2002, p. 269).

A transgressão de Onorina às forças discursivas impostas não se limita a

esses aspectos ligados à maneira como lida com a aparência física, mas se volta

também para o corpo na esfera sexual, ou seja, na traição ao marido com o coronel

Damasceno. Sua honra foi “limpa” mediante a força sacralizada do casamento. Ela,

entretanto, dessacraliza-o cometendo adultério, sem nenhum remorso, como se de

alguma maneira estivesse se vingando daquele que a “adquiriu” em troca de duas

novilhas e de benesses do patrão.

Em princípio Onorina se aproxima do estereótipo da mulher objeto, por

manter um caso com um homem que a tem sem nenhum compromisso, apenas por

prazer, para reafirmar seu poder de macho, já que no romance o coronel

Damasceno é denominado de “o único bom reprodutor da Areia Branca” (CASTELO

BRANCO, 1948, p. 70). Isso também a relaciona com o estereótipo da mulher

desonesta, em quem não se pode confiar. Mesmo sem consciência política, ela

subverte padrões morais vigentes ao mostrar-se dona de seu corpo, utilizando-o

como deseja, podendo transformar-se em agente da situação ao concretizar seus

desejos pessoais.

Outra personagem pertencente ao espaço rural é Piedade, uma adolescente

que vive sob o domínio de um pai violento, No entanto, mesmo sob vigilância, essa

personagem cria, desde garota, estratégias de resistências a este poder controlador,

mediante a pequenas ações cotidianas, como passear sozinha com Teodoro

“pegando borboleta, chupando caju na beira da estrada, procurando ninho de

passarinho nos galhos dos mulungus” (CASTELO BRANCO, 1948, p. 112) ou indo

correr com o garoto pela “baixada, para irem sonhar acordados, à beira do rio”

(CASTELO BRANCO, 1948, p. 112). Estas ações da personagem desconsertam, de

alguma forma, a forte disciplinarização que a encurrala, evidenciando um não

conformismo em relação ao que lhe é imposto, bem como desloca, mesmo sem

consciência, alguns papéis de gênero demarcadores do lugar conveniente à mulher,

pois tais atividades, eram consideradas impróprias para meninas, que deveriam

estar sob a vigilância dos pais e não andando livremente na companhia do sexo

oposto, que não fosse o pai ou irmão.

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Outro momento em que se observa a tentativa dessa personagem de resistir

aos rígidos padrões instituídos pelo pai é demonstrado por suas fugas, à noite, para

se encontrar com Teodoro, em razão da proibição de Malaquias.

Teodoro ia encontrá-la e saiam os dois. Ficavam às vezes debaixo de uma árvore, conversando, ou caminhavam pela estrada, ou iam até a beira do rio, olhar a água correndo e a lua brilhando lá em cima, clareando tudo. Os meses passavam e ninguém descobria o doce segredo de Teodoro e Piedade. A noite encobria suas fugas, seus primeiros beijos de amor, deitados na relva, ou sentados juntinhos, no barranco

do rio. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 117).

Piedade saltava a janela e ia ao encontro de Teodoro. Por meio dessa

pequena ação a personagem constrói mecanismos de resistências ao controle

paterno a fim de experimentar momentos de liberdade e emoções vividas ao lado do

jovem. Age de forma provocante ao tentar burlar o poder exercido pelo pai,

encenando assim, “suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as

ocasiões, sua „piratarias‟ suas clandestinidades” (CERTEAU, 1994, p. 94). Nesse

sentido, essas táticas do cotidiano que ocorrem no ambiente doméstico sinalizam

para a compreensão de que as mulheres do sertão nordestino subvertiam, sim,

dominações impostas, pois em qualquer esfera social quando “as mulheres e o

papel que desempenham nas relações de gênero são enfocados é possível observar

paradigmas de submissão cristalizados ao longo dos séculos e modelos de

resistência que ultrapassam os muros da domesticidade” (ALMEIDA, 2007, p. 49).

Mesmo ainda na sua adolescência, Piedade já encena atitudes de astúcias

prenunciadoras do feminino como ser ousado, pois parte dela a iniciativa de se

aproximar de Teodoro e também de despertar nele as primeiras emoções e

sentimentos amorosos, como mostra o texto a seguir:

Um dia, quando estava com Teodoro no mato, escorregou num buraco e procurou se apoiar nele. Seus pequenos seios, que despontavam, se esfregaram no companheiro, e uma moleza doce tomou conta de seu corpo. Teodoro também sentiu aquela coisa esquisita, uma onda de ternura invadindo seu coração. Teve vontade de agarra-la, prendê-la nos braços e cobri-la de beijos, e ficar assim a vida inteira. Ele estava pensando se deveria fazê-lo, os olhos dele nos olhos dela, os olhos dela nos olhos dele. (CASTELO BRANCO,

1948, p. 113).

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A representação da personagem, nesse episódio, recai para o estereótipo da

mulher que faz uso da “habilidade” considerada tipicamente feminina: a sedução.

Concepção trazida pelo imaginário masculino e representativa de personagens

famosas da literatura brasileira como, por exemplo, Capitu, do romance Dom

Casmurro (1997), de Machado de Assis. À semelhança da personagem machadiana,

Piedade se mostra sedutora e provocante. Ao se insinuar para o companheiro através

do movimento do corpo, do diálogo dos olhares, ela cria uma situação de desejo, o

que anuncia o início do namoro entre os dois.

Esta imagem do feminino implícita na mulher sedutora, segundo Farias

(2007), foi construída de modo a assumir matrizes negativas acerca de

comportamentos audaciosos de mulheres que contrariam regras patriarcais impostas

a elas. Diante disso, pode-se evidenciar uma ambivalência na representação dessa

personagem, pois embora se sobressaia tal modelo, a habilidade de seduzir pode

ser lida como astúcia desviante da normatização do recato, cuja prerrogativa era de

que não fazia parte da atribuição feminina a iniciativa da conquista, pois tal atitude

deixaria a mulher “mal vista”, correndo o risco de ser considerada fútil. Seu poder

sedutor pode sugerir, assim, uma forma de desafiar a força dos discursos

convencionais dessa categoria de feminilidade, mesmo que o faça de forma

inconsciente.

Outro momento em que a representação de Piedade se dá em conformidade

com as expectativas tradicionais dos papéis reservados à mulher é o que mostra a

personagem após voltar dos passeios que realizava com Teodoro.

Piedade, agora, sentia uma coisa esquisita dentro dela. Às vezes, ficava sozinha, na porta de casa, quando a noite vinha descendo, pensando no futuro. E imaginava-se com Teodoro, construindo uma palhoça só deles, uma palhoça bonita e grande, muito limpinha, como a palhoça de Siá Ana. Junto de sua palhoça haveria um bredo bonito e grande, que ficava com a copa toda vermelha no tempo de flor, vermelha como a cabeça dos galos-de-campina. E haveria também muito cajueiro de frutos doces, mangueiras de mangas rosa e rosadas, que pareciam grandes flores e um pé de cajá tão grande que seus galhos entravam pelas janelas e ela apanhava os frutos gostosos de dentro de casa. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 112).

O texto mostra como a subjetividade da personagem é perpassada pelo

discurso que naturalizou o casamento como sendo o destino último da mulher, sob a

prerrogativa de que nele se efetivaria a realização plena de sua feminilidade.

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No projeto de futuro de Piedade, o casamento ganha centralidade e atributos

de perfeição, visto que é situado em um cenário com vestígios românticos. O

espaço do lar é imaginado como um mundo povoado de beleza e sossego como se

nele ela se blindasse das intempéries externas. Nisto reproduzindo o

comportamento socialmente construído de que a mulher deve permanecer no recinto

seguro do lar, protegida “das injunções da vida pública e seus perigos”, discurso que

visava, sobretudo, “a preservação da ordem vigente” (ALMEIDA, 2007, p. 73).

Piedade se encontra imersa na hierarquia de uma sociedade patriarcal, onde

a pureza feminina, garantida pela normatização dos corpos, era controlada “pela

exacerbada vigilância de pais, irmãos e maridos, encarregados de extirpar nas

mulheres sob sua guarda qualquer tentativa de pecado carnal” (ALMEIDA, 2007, p.

65). Em se tratando do espaço do sertão nordestino, tal vigilância se torna mais

severa e as punições à quebra dos padrões socialmente instituídos, também, como

se pode verificar no trecho a seguir:

Uma noite, quando Piedade saltava a janela, de volta de sua doce fuga, Malaquias estava acordado e ouviu o barulho. Levantou-se para ver o que era e surpreendeu Piedade dando adeus para Teodoro, lá longe, debaixo do tamarineiro. Malaquias pegou o “umbigo de boi” e pôs-se a malhar as costas de Piedade. Teodoro, lá fora, ouvia os gritos e o relho batendo no lombo de sua amada. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 117-118).

A tentativa de dominação do poder patriarcal sobre a mulher se institui,

nesse episódio, mediante a violência doméstica. Essa prática manifesta a ideia de

posse do pai sobre o corpo da filha ao castigá-la. Tendo com isto, o intuito de

condicionar seu comportamento, além de demonstrar que ela não possui o controle

de seu corpo, nem o domínio de sua própria vida. Segundo Perrot (2007, p. 77),

“bater na mulher e nos filhos era considerado um meio normal, para o chefe da

família, de ser o senhor de sua casa”.

A partir desse episódio, há um silêncio em torno de Piedade. O último

esboço de reação apresentado foram os gritos dados antes que a violência os

sufocasse. É forte o poder repressor que a família (representada na figura do pai)

exerce sobre ela. Não há mais nenhum registro de suas ações. Este silêncio que se

sobressai acaba por comunicar a condição em que a mulher foi colocada. Ela é

retirada de cena, até para que Teodoro construa sua história em outro cenário:

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Parnaíba. A trama se move em direção a este outro espaço e quem precisa está no

palco é ele.

Para Zolin (2004), na narrativa de autores masculinos, tudo apresenta uma

perspectiva e um direcionamento masculinos, logo, as personagens femininas são

deixadas em segundo plano. Piedade iria aparecer apenas nos projetos imaginados

por Teodoro para o futuro.

Ele agora não teria para onde levar Piedade. Não. Ele esperaria mais um pouco. Faria uma palhoça na Coroa. E então, sim, viria buscar Piedade. Assim, quando voltasse de suas viagens, ela estaria lá, à sua espera, com seus carinhos, com seus beijos, com seus braços abertos, para as longas noites de amor. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 147).

Piedade é pensada por Teodoro como ser passivo confinado ao espaço

privado, limitado a um lugar estreito, cômodo, enquanto ele estaria em contato com

o espaço amplo, instigante de descobertas e liberdade. Nessa relação, ele se

constituiria como provedor do lar, enquanto a imagem do feminino é reforçada como

sendo marcada pela passividade e incapacidade de transpor os limites do lar, posto

que vive em função de agradar o marido, de proporcionar-lhe prazer.

Esse discurso da mulher passiva naturalizado no imaginário masculino era

tão bem aprendido, que Teodoro, mesmo sendo um rapaz generoso, sensível e em

contato com saberes do universo urbano, não conseguiu transcender a tal discurso e

pensar outro papel para Piedade que não fosse o de esposa.

Finalmente, Teodoro retorna a Areia Branca. Não o fizera ainda, pois queria,

antes, preparar uma casa para os dois, afinal ao homem cabia o papel de promover

a estabilidade da mulher. Nesse sentido, o compartilhamento de papéis de gênero

não se realiza nesta representação. Ele volta após vários anos com a convicção de

que Piedade “haveria de curar sua alma, com seus olhos guajeru” (BRANCO, 1948,

p. 237). Essa concepção de feminino designada para ela por Teodoro, associada à

tarefa de cuidar, como evidenciado nesse anseio dele, evoca o instinto maternal

historicamente imputado à natureza da mulher, que termina por operar a anulação

de seu ser, enquanto sujeito possuidor de sonhos, desejos, realizações, visto que

suas energias são consumidas pelos que a cercam. Além disso, ela é posicionada

como objeto da ação dele, como se em todos esses anos estivesse permanecido na

imobilidade, à sua espera.

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Assim, mesmo cercada pelas malhas do domínio patriarcal, Piedade abre

algumas possibilidades de enfrentamento a esse poder mediante estratégias

sinalizadoras de resistência. Como não é fácil se desvencilhar de toda uma herança

de dominação, a personagem acaba por interiorizar os discursos que legitimam o

lugar da mulher no espaço do lar, confirmado pelo casamento. Assim, embora

adotando no início, uma imagem desconcertante da conduta preconizada pelo

ideário patriarcal, Piedade não dispõe de autonomia capaz de confirmá-la nessa

posição. Importa, contudo, observar que esta personagem não é tão somente

dominada, ela também tece suas artimanhas, nos passeios e brincadeiras que

realiza sozinha ao lado de Teodoro, nas fugas que empreende e na sedução

envolvente.

Verifica-se que, no espaço rural de Teodoro Bicanca, os discursos de

dominação patriarcal se apresentam em exercício efetivo sobre as personagens

femininas examinadas, disciplinando-as em várias situações. Ao mesmo tempo,

contudo, elas promovem suas resistências cotidianas através de astúcias, coragem,

perspicácia, ousadias e silêncios.

4.3.2 A mulher no espaço urbano

Outro espaço presente em Teodoro Bicanca é a cidade de Parnaíba, no

Piauí. Nesse cenário, hábitos e costumes dos habitantes locais são denunciadores

da força dos discursos construídos em relação à mulher, com seu poder de guiá-la e

aprisioná-la a um cotidiano de moralismos e sujeições à mentalidade patriarcal.

Dona Genoveva é uma das personagens inseridas nesse espaço. Trata-se de

uma mulher de classe média baixa, mas que alimenta status de classe mais

elevada. Ela se confunde com a própria cidade, pelos moralismos, aparências e

aprisionamento à mentalidade patriarcal. Aliás, nela, Parnaíba é personificada,

conforme observa o narrador: “Dona Genoveva (...) é um símbolo da alma e dos

preconceitos de centenas de donas Genovevas que ditavam o código de moral de

Parnaíba” (CASTELO BRANCO, 1948, p. 177).

Nessa representação, produz-se o apagamento da individualidade feminina,

fortalecendo uma perspectiva universalizante, aspecto que confere à personagem

uma identidade sintetizadora do que é negativo, a partir do qual

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não haveria absolutamente qualquer diferença e todas as mulheres seriam ou diferentes personificações de alguma essência arquetípica da mulher, ou personificação mais ou menos sofisticadas de uma feminilidade metafísico-discursiva. (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 48-49).

De passiva, fiel e boa esposa, dona Genoveva passa a assumir a posição de

comando e controle da casa e da família. É deslocada do estereótipo que inscreve a

mulher numa posição de dependência, para outro que a situa no papel de autoritária

e controladora. Nos dois estereótipos, o espaço para a construção de individualidade

é sufocado.

Nos primeiros anos após o casamento, procura colocar-se na posição de esposa fiel e obediente. Mas, à proporção que percebia as fraquezas do marido, tivera que ir tomando o lugar de cabeça do casal (...). Quando morreu o guarda-livros da firma, criando uma oportunidade para Tenório, foi Genoveva que teve que ir falar com o coronel Carvalho e pleitear a posição para o marido. Desde então, oficializou-se de uma vez a ascendência de dona Genoveva. de que Tenório era um pamonha e assumira a direção de tudo. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 174-175).

Dona Genoveva apresenta uma conduta com traços do masculino, ao

praticar ações que, dentro de códigos sociais, são considerados próprios desse

gênero, como o poder de subjugar, de controlar.

Nesse papel, dona Genoveva é representada como mulher megera, um dos

tipos de estereótipos femininos da literatura canônica brasileira (ZOLIN, 2004). Para

esta autora, há uma conotação positiva subjacente à negatividade dos estereótipos

da mulher megera, sedutora, entre outros; tendo em vista que podem ser (re)lidos

como lutas interiores e exteriores desse sujeito, na tentativa de se libertar da

inferioridade a que o patriarcalismo a relegou. A partir dessa visão, pode-se

conceber uma independência subentendida na figura da personagem quanto à

representação de mulher megera no romance Teodoro Bicanca.

A postura de mulher controladora termina, contudo, por construir uma visão

ambivalente de sua representação, pois a suposta resistência se confunde com

papéis legitimados pelo discurso patriarcal. Desse modo, supõe-se que para a

mulher ter autonomia precisa adotar atitudes masculinas.

Dona Genoveva também é uma guardiã dos valores religiosos. Sua ligação

com este universo acaba desencadeando uma conduta de completo desequilíbrio e

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anulação de sua subjetividade. Reage à demissão de Abedias, da empresa

Carvalho, Carvalho & Cia, por ocasião das perseguições políticas, entregando-se à

religião como uma espécie de abrigo de sua miséria, “passava o dia na igreja

rezando, fazendo novenas. Só voltava praticamente, para dormir” (CASTELO

BRANCO, 1948, p. 225), alienando-se e sucumbindo à decadência, “Isto porque as

religiões são, ao meso tempo poder sobre as mulheres e poder das mulheres”

(PERROT 2007, p. 83). No caso dessa personagem, a religião funciona como um

instrumento impeditivo de sua mobilidade, ao contrário de Siá Ana que a tem como

um instrumento de poder por meio do qual ela intimida e também cura.

Joaninha é outra personagem que transita no espaço urbano do romance.

Morena, alta, bonita, meiga e rica. Filha do coronel Carvalho, dono da maior

empresa de exportação da cidade de Parnaíba. É considerada por algumas

mulheres da elite local como um bom partido, haja vista, verem-na como prendada e

de boa família. Mas é, também tida como vulgar pelas mulheres de classe social

menos favorecida, por considerarem seu comportamento desviante para uma moça

de sua classe social. Ela se constitui, então, como alvo dos olhares da cidade.

Joaninha demonstra ter consciência destes lugares que lhe são atribuídos e, a

despeito de transitar ou não por eles, não deixa de construir uma terceira via: a de

quem rasura alguns papéis de gênero tradicionalmente instituídos, embora dentro do

lugar social e das possibilidades que lhes são favorecidas à época.

Em um primeiro momento, Joaninha é apresentada no papel de moça

casadoura, vigiando a passagem do “bom partido” que chegara recentemente a

Parnaíba – o advogado Abedias.

A Joaninha, filha do coronel Carvalho, então, era infalível. Chegavam a dizer que ela punha moleque no portão de casa o dia todo, vigiando, para avisá-la quando apontasse, lá no fim da rua, a barata do doutor Horceno. Não se sabia ao certo qual dos dois era o preferido de Joaninha. E Doloriza resolvera o problema sentenciando que “para aquela isso não fazia diferença – tudo que caísse na rede era peixe”. Mas a dúvida cedo se desfez, quando o coronel Carvalho, por intermédio de Tenório, mandara convidar o doutor Abedias para advogado de sua firma. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 181 – 182).

Pelo texto, vê-se que a personagem parece se inserir no modelo patriarcal

que coloca o feminino na invisibilidade, à medida que se posiciona no papel da

mulher à espera de um bom partido, sem receio de se acomodar à conveniência de

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uma relação amorosa arranjada. Nas atitudes de Joaninha, a imagem da aparente

submissão feminina. Aparente porque é possível verificar, nessas suas ações,

estratégias para conseguir o que deseja, mantendo o status de filha do comerciante

mais rico da Parnaíba. Contudo, não é passiva nesse papel, antes, tem o controle

dele, apresenta consciência do que faz. O fato de ser “mal falada”, como sendo uma

“mulher fácil”, apresenta Joaninha como feminino mais livre, com vontade própria.

Em razão disso, não se torna invisível, ao contrário, é o centro das atenções em sua

cidade. E, ela se mune de uma característica particular: o caráter decidido, embora

atuando no interior de estratégias de sedução tidas como femininas, conforme

demonstrado no baile do clube Cassino, importante local de encontro da elite

parnaibana. Na cena, Abedias se encontra absorto, envolvido pelas lembranças do

passado, enquanto aquela cidade ali representada aguardava o momento em que o

jovem advogado tiraria Joaninha para dançar.

Joaninha passava, nesse momento, rodopiando uma valsa com o Domingão, seu velho pretendente. Conversava animada, procurando despertar ciúmes. Dona Genoveva estava inquieta. No „sereno‟, a filha do Quincas exultava. Duas correntes de comentários já se haviam estabelecido: os inimigos do coronel Carvalho achavam „bem feito, para aquela sirigaita perder o topete‟. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 188).

Esta ação de Joaninha a revela como uma mulher destemida, movendo-se a

partir de seus desejos. Não se preocupa com os olhares vigilantes da cidade,

enfrenta-os segura de si, valsando de forma a provocar a atenção de Abedias, que

até então era indiferente a ela, por supô-la fútil e frívola como as demais moças de

sua classe social. Mas ela não se abate frente à rejeição do rapaz. Em contrapartida,

mostra estar aprendendo um novo modo de ser mulher, construindo forma própria

de conduta, manifestando alegria no envolvimento com o futebol, praticado por

homens, ali, experimentando momentos de alegria e prazer. Assim, embora

interessada em Abdias, inicia um namoro com Domingão, não para fazer ciúmes a

Abedias, mas por ser Domingão a maior estrela do Parnaíba, seu time de paixão.

Fora num desses bailes de vitória, do “Parnaíba”, quando Domingão era o herói do dia e o ídolo da cidade, que o coração de Joaninha se comovera e ela aceitara sua corte. Mas Domingão não era brilhante, não era bonito, não era rico. Era apenas grandalhão e um center–half excepcional. E Joaninha, passado o entusiasmo coletivo, esquecera o

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amor de Domingão. Ele, porém, não esquecera, pois Joaninha era brilhante, era bonita e era rica. E se transformara no seu fiel e permanente admirador. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 193-194).

A relação de Joaninha com Domingão se dá sem os compromissos que a

sociedade atribuía ao namoro das moças de sua classe social. Ela vive tal

experiência como forma de diversão, sob o clima da paixão esportiva. Tanto que ao

perceber discrepâncias entre eles, toma a iniciativa de por fim ao relacionamento.

Com isto, exercitando a racionalidade, característica tida como pouca feminina.

Assim, rasura o modelo de mulher naturalizado pela mentalidade patriarcal de que

as ações do feminino se restringem ao campo do emocional, ao tempo em que

afirma o que não deseja para si.

Joaninha, ao longo da narrativa, vai sendo representada como uma mulher

que procura novas formas de se constituir como sujeito feminino em uma sociedade

regida pelas instâncias convencionais dos tradicionalismos. Através de pequenas

ações, vai imprimindo sua resistência a estas instâncias e sobressaindo-se de entre

as outras personagens de sua classe, narradas sob estas regras. Isto pode ser

verificado no posicionamento que assume em relação a Abedias quando ele é

acusado de ter engravidado uma moça do cais.

Joaninha, um dia depois do escândalo, encontrara-se com Abedias na Praça da Matriz e viera falar-lhe, que não acreditava nos boatos que corriam em torno dele e que ela, apesar de tudo, continuava sua amiga. Abedias comoveu-se com sua atitude. E só então percebeu que Joaninha era bela e meiga, que era morena e alta, que tinha um corpo formoso e os olhos ternos e românticos. Antes, Joaninha era para ele apenas uma moça encerada, bronzeada, avacalhada, como dizia a Doloriza. Mas aquela atitude revelara-lhe algo mais de Joaninha – todo um encanto que permanecera oculto para seus olhos até então. Abedias não sabia agradecer aquela solidariedade corajosa e comovente. - Você é um anjo, Joaninha, foi tudo o que soube dizer. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 197-198).

Com maturidade e inteligência, Joaninha analisa os boatos envolvendo

Abedias. Ela compreende que estes eram forjados para desmoralizá-lo perante a

sociedade, em razão, de ele, naquele momento, constituir-se um perigo à ordem

vigente, pois estava à frente do sindicato dos vareiros e estivadores, profissões

fundamentais para a economia local. Denota, com tal postura, uma personalidade

firme, como observa o próprio Abedias. Sem rancores e sem medo, fica do seu lado,

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quando toda a sociedade parnaibana o via com desconfiança e temor. Joaninha se

coloca, então, na contramão da expectativa dos papéis reservados à mulher na

sociedade patriarcal, deslocando o estereótipo do sexo frágil e incapaz de envolver-

se com questões de ordem política e social.

Mesmo vendo em Joaninha uma mulher destemida, Abedias ainda se deixa

interpelar pela concepção de minimização feminina em relação ao seu envolvimento

em lutas libertárias, quando afirma que ela seria, inclusive, empecilho a seu projeto

revolucionário, caso a tivesse como namorada. Como se a mulher não pudesse se

apropriar desse espaço. Ao construir a visão do feminino, nesse trecho, Abedias se

coloca no mesmo plano cujos autores masculinos brasileiros, em geral,

posicionaram-se para representá-lo, colocando-o em posições extremas, onde

raramente sinalizou-se para o meio termo. Assim, ele a inscreve no plano idealizado,

retirando-a do estereótipo de vulgar para o de santa, posto que era “avacalhada”,

agora é “anjo”. O advogado não consegue percebê-la como um sujeito que se

construiu além desses dois pólos.

A atitude de resistência de Joaninha, ao padrão estabelecido para o feminino,

é fortalecida, apresenta-se, ainda, no episódio em que os vareiros e estivadores, sob

o comando de Abedias, desfilam nas ruas centrais de Parnaíba. Era aniversário da

cidade (14 de agosto de 1935). Temendo uma revolução desses trabalhadores, as

autoridades só lhes permitiram desfilar no horário oposto aos demais grupos.

À tarde, quando o Sindicato dos Vareiros iniciou o seu desfile, o aspecto da cidade modificara-se por completo. Perdera o ar festivo e rumoroso, para se transformar numa cidade morta e deserta. (...) Ao passar pela casa do coronel Carvalho, Joaninha estava na janela – único rosto feminino que presenciou o desfile, as únicas mãos que, timidamente, bateram palmas para os vareiros. Abedias, ao vê-la, fez um sorriso. E sentiu, encabulado, que seus olhos se enchiam d‟água. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 218-220).

Essa microação de Joaninha altera o desenho do comportamento feminino

pautado na obediência e submissão, pois mostra sua atitude de enfrentamento a

valores enraizados em convenções morais. Enquanto todas as demais moças eram

impedidas de assistir ao desfile, ela estava apresentando sua resistência, era o

“único rosto feminino” a apoiar o grupo, pois parecia compreender a importância e o

caráter daquela organização sindical, destoando de boa parte da população local.

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Assim enfrenta execração das “boas famílias” ao apoiar o movimento proletário e ao

se colocar ao lado de Abedias em tempos de rumores de que ele era um líder

comunista. Ele, por seu turno, só a ela confidencia os perigos que antevê. Embora

saiba dos riscos que corre apoiando-o como amigo, recusa-se a ir para o Rio de

Janeiro a mando do pai.

O coronel Carvalho, esgotadas as esperanças de afastá-la de Abedias, resolvera mandá-la para o Rio, para tirá-la daquele ambiente. Joaninha quisera recusar-se a ir. Mas Abedias aconselhara-a a obedecer o pai e fizera-a a ver que não havia outra solução. (CASTELO BRANCO, 1948, p. 224).

Essa conduta de enfrentamento ao pai mostra que essa personagem

ultrapassa os padrões tradicionais vigentes. Ao acatar o conselho de Abedias, que

não consegue se livrar dos discursos sobre a mulher como ser frágil, ela revela,

contudo, não possuir ainda a independência necessária para efetivamente quebrar o

ciclo das convenções que definem seu lugar como mulher na sociedade do seu

tempo. Acaba indo para o Rio de Janeiro, a fim de não ser alvo das perseguições do

estadonovista, conforme a ordem do pai e o desejo de proteção do amigo.

Tal conduta é compreensível. Não era fácil, no contexto, reverter padrões de

dominação masculina, muito menos o envolvimento em lutas revolucionárias, pois

excedia aos limites daquela sociedade, julgada, sobretudo, sob o olhar masculino.

Com efeito, considerando-se as restrições impostas ao feminino, à época,

pode-se concluir que Joaninha apresenta resistências tanto no gênero, quanto no

sentido social. Vê-se que ela escapa de várias regras padronizadas às mulheres de

sua classe, como por exemplo, o casamento realizado pela escolha da família, o

namoro apenas sob compromisso e o distanciamento às questões de ordem pública.

Contrapondo-se a estes preceitos sociais, promove publicamente sua resistência,

colocando-se ao lado daqueles considerados perigosos subversivos e, assim,

construindo-se como mulher corajosa e segura.

Assim, do aparente ajustamento às convenções vigentes aos vários

comportamentos transgressivos, Joaninha cria brechas por meio das quais se

posiciona como uma espécie de elementos (des)centralizador das personagens

femininas da elite parnaibana, as quais são narradas em seu cotidiano feminino, a

partir do moralismo e da tradição.

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Finalmente, tendo em vista que o acesso à representação feminina em

Teodoro Bicanca é dado por um narrador masculino, procurou-se operar nas

entrelinhas do romance, como sugere Dias (1995), buscando entrever nas práticas

cotidianas da mulher sertaneja nordestina, fissuras configurantes de resistências ao

poder patriarcal normatizador dos códigos de conduta feminina nesse espaço. Com

isto, verificando como essas resistências produziram a representação desse

feminino.

Dadas às condições históricas que reservam o lugar privilegiado aos

homens na ideologia patriarcal, cujos resquícios dão sustentação ao espaço de

inserção das mulheres em Teodoro Bicanca, é possível perceber que em alguns

momentos elas parecem aceitar as regras impostas pelos padrões correntes,

deixando-se ler de forma limitada ao ideário patriarcal. Algumas há que, em dadas

situações encarnam papéis estipulados culturalmente como seus. Em outros

momentos, a maioria delas encontra maneiras de resistir, mesmo que discretamente,

às imposições masculinas através de suas estratégias de “invenções cotidianas”.

Assim, longe de serem frágeis, passivas e ingênuas, as mulheres do sertão

nordestino, não raro, apresentam-se fortes, destemidas e inteligentes.

Por meio de práticas que ultrapassam a representação de papéis ligados à

submissão da mulher, algumas personagens em Teodoro Bicanca contribuem para

instalar maneiras várias de atuação social e pessoal do feminino na região, como é o

caso de Siá Ana e Joaninha. Duas gerações distantes, ocupando espaços distintos

na arena social. Duas mulheres que em suas vivências cotidianas rasuram, em

vários momentos, o discurso uníssono tradicional da identidade feminina sujeitada e

frágil. Ambas se constituem como mulheres notadas pela firmeza e coragem com

que enfrentam forças opressivas do poder (Siá Ana) e da moral (Joaninha) vigentes.

Para o sertão nordestino de Teodoro Bicanca, Renato Castelo Branco traz, à

luz de seu tempo, a visibilidade da condição feminina, ora se rendendo aos códigos

de postura inscritos pela mentalidade patriarcal para as mulheres, ora se

“desenredando” das tramas tecidas para elas ao promover aberturas que as

representam como sujeitos que rompem com o sistema patriarcal, visto que instaura,

mesmo sob instâncias de poder disciplinadoras, suas resistências cotidianas. Tanto

no espaço rural quanto no urbano, tramam suas astúcias, contrariando, em vários

momentos, padrões prescritos pela ideologia patriarcal.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alguma pesquisa chega a seu término, a sua conclusibilidade? Não, pois

muitas são as veredas que a busca do conhecimento suscita. O próprio caráter de

inesgotabilidade que caracteriza o texto literário - e no caso específico, o romance

de Renato Castelo Branco – é expressivo de tal inconclusão. Desse modo, espera-

se que a pesquisa tenha descortinado novos caminhos para o estudo da obra de

Renato Castelo Branco que, afinal, é praticamente esquecido mesmo em seu

estado, o Piauí, apesar de sua relevância para a literatura brasileira.

Acredita-se que a articulação entre os estudos literários, os estudos

culturais, a teoria pós-moderna e os estudos de gênero viabilize uma compreensão

maior das diversas facetas do sujeito sertanejo/nordestino representado em Teodoro

Bicanca. Isto pode ser confirmado em relação às representações que constroem

esse sujeito, forjando uma visibilidade na elaboração de um conjunto de imagens

que se pretendem essenciais e não discursivas, não raro, sob o peso da

estereotipia. Os diálogos dos estudos literários com estas esferas do saber

possibilitaram também, que se verificasse outras representações em que esse

sujeito se mostra com seus “crespos”, suas maneiras diversas de ser sertanejo/a

nordestino/a, ou seja, com o que se denominou de sertanidades de Renato Castelo

Branco.

Os conceitos de representação e identidade se constituíram como fios

condutores do primeiro capítulo, servindo de base para investigação do romance

Teodoro Bicanca. Dessas categorias ressaltou-se o aspecto discursivo que as

implica, demonstrando-se como se apoiam no poder de produção de significados

que a linguagem possui. Sendo, assim, construídas a partir de lutas auto-afirmativas

frente ao “outro”.

A representação é concebida como uma realidade de múltiplos sentidos,

construída no âmbito de disputas configurantes das estruturas culturais de uma dada

época. Sendo elaborada a partir dos locais onde os sujeitos articulam seus

discursos. Nesse sentido a representação é marcada por interesses individuais ou

coletivos, revestida de sentidos subjetivos construídos histórica e socialmente.

A identidade também compartilha desse aspecto ligado a um campo de

batalha, haja vista seu processo de construção se encontrar imerso em constante

luta pela imposição e incorporação de significados. Sendo fruto de uma construção

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discursiva, a identidade mostra-se inacabada, à disposição para ser ”infinitamente”

ressignificada.

Abordou-se vários discursos sobre sertão, cujo significado vai de espaço

geográfico a lugar simbólico. Representado por diversos ângulos, porém, indicando,

“quase sempre uma tensão diante dos contrastes, das desigualdades e dos

problemas que acompanham o debate sobre modernidade na sociedade brasileira”

(LIMA, 1999, p. 207).

Como espaço geográfico, não raro, sertão é representado com imagens de

pobreza, aridez, infertilidade, bem como área ligada ao tradicional, ao primitivo.

Como tal, associada ao atraso, à expressão do antimoderno. Nisto apresentando-se

de forma ambivalente, pois ao tempo em que é tido como reserva da nacionalidade,

pelo caráter tradicional com que é visto, tal aspecto também o coloca como

impeditivo do processo de unificação do país, no que diz respeito ao

desenvolvimento econômico.

Observa-se que nesta representação de sertão, o dualismo litoral/interior

(sertão) comparece no pensamento social brasileiro como um dos elementos mais

representativos do processo de construção da nacionalidade. Sendo tais cenários

construídos, contudo, pelos discursos de intelectuais que descrevem a partir do

lugar onde se encontram, geralmente o litoral. As narrativas sobre este outro lugar (o

sertão) partem dos estranhamentos desses narradores.

Na visão de sertão como lugar simbólico, observou-se seu aspecto

indefinível e inapreensível, assumindo uma conotação de fronteira, de mistura,

superando a dicotomia delimitadora dos espaços litoral/sertão, onde um se coloca

em oposição ao outro. Nesta concepção, sertão reveste-se de polissemia e esvasia-

se de certezas que lhe demarcam uma geografia física.

Observou-se que, o Nordeste, assim como o sertão, também é produzido

discursivamente, a partir de um processo que dialoga com a construção de nação.

Este recorte espacial surge como discurso regional, em um contexto em que o

Estado brasileiro buscava uma unidade nacional para o país. Verificou-se que o

Nordeste emerge ancorado no discurso da seca, alimentado numa espécie de

reserva da cultura brasileira, baseado na saudade e na tradição, decorrendo daí a

produção de um conjunto de imagens que o representa de forma distinta das demais

regiões. Aspecto que acaba por construir uma visibilidade da região associada ao

diferente, ao estranho, ligada à pobreza, ao atraso e a um lugar de freio da história.

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Tais imagens ganharam força em várias expressões artísticas no decorrer do século

XX, especialmente, na literatura, no chamado „romance de 30‟, que se destacou

como instrumento de denúncia da realidade nordestina e como um canal de

divulgação das tradições, enfim, da cultura da região.

Ao examinar os diálogos de Renato Castelo Branco com esse conjunto de

imagens sobre sertão/Nordeste para construção de Teodoro Bicanca, verificou-se

que ele se deixa interpelar pelos discursos que representam estes espaços com

toda uma carga de estereótipos, remetendo-os para uma sociedade atrasada, pobre,

rústica e rural. Por outro lado, Renato Castelo Branco dialoga também com os

discursos que formularam o sertão sem o peso da homogeneização, de forma plural,

como espaço que comporta diversas leituras, aberto a várias interpretações e às

circularidades de saberes, como constatado nos diálogos com Guimarães Rosa.

Tendo em vista a existência do dualismo litoral/sertão, enraizado no

imaginário social brasileiro, e o objeto de estudo ter em sua trama a ação

transcorrendo com prevalência na cidade litorânea de Parnaíba – Piauí – e em uma

fazenda em suas imediações, um problema se apresentou à pesquisa. Tais cenários

poderiam ser tidos como sertão? Para resolver esse problema, observou-se a

compreensão de sertão que transcende um referente preciso, delimitado a uma área

fixa, mas pensado como espaço simbólico, abstrato que implica em uma

representação que vai além da esfera geográfica.

Observou-se que como partes integrantes da nação, sertão e litoral são

unificados pelo pertencimento à mesma brasilidade, não comportando, então, a ideia

de alteridades plenas, sendo, antes, partes complementares de um todo nacional.

(SOUZA, 1997).

Além desse aspecto, apoiou-se na ideia de que a dualidade sertão/litoral é

uma formulação discursiva produzida a partir do imaginário social sobre o país,

oriundo, sobretudo, da ambivalência identitária de intelectuais que falam a partir de

seus próprios referentes (LIMA, 1999).

Para além de uma imagética que significou o sujeito sertanejo/nordestino

como rude, incapaz, dependente e passivo, verificou-se que em Teodoro Bicanca

fissuras se abrem revelando outras representações desses sujeitos, distanciando-se

dos estereótipos já cristalizados. Os saberes pertencentes às personagens do

romance é uma dessas representações. Através de práticas cotidianas exercidas na

convivência dos grupos, na relação com a natureza, nas narrativas das histórias

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vividas, na habilidade em lidar com as adversidades, as personagens se deixam

conhecer em sua riqueza de saberes, demonstrando uma hábil capacidade de

reinventar a vida. Esse conjunto de saberes representa também todo um legado –

herança de histórias de vida construídas por mulheres e homens.

No enfoque do poder, ressaltou-se os micropoderes tidos por Foucault

(1999) como dispositivos difusos no cotidiano, caracterizados como múltiplas formas

de poder circulante na sociedade, como se verificou em Teodoro Bicanca em que as

relações de poder se exercem em diferentes camadas do corpo social, por meio de

diversas estratégias utilizadas pelas personagens.

Ao olhar para os dizeres das personagens em Teodoro Bicanca, é possível

constatar que através das falas e diálogos de algumas delas, estes se apresentam

revestidos pela estereotipia de uma linguagem que as identifica com “uma maneira

de ser regional,” atribuindo-lhe uma identidade de sujeito ignorante, iletrado e sem

escolaridade. Por outro lado, uma representação dos dizeres do sujeito

sertanejo/nordestino se contrapõe a essa construção estereotipada, à medida que é

instaurada no romance a pluralidade linguística presente no vocabulário da região,

criado a partir das expressões culturais desses sujeitos. Isso pode ser observado

também por meio da força expressiva dos provérbios e da maneira com que são

habilmente utilizados. Assim, os dizeres que ora estigmatizam o sujeito

sertanejo/nordestino, fixando-o em uma condição de miserável e inferior, na

marginalidade da variante culta, também demonstram que existem várias outras

maneiras de dizer e sentir a vida no sertão nordestino.

A análise realizada nesta dissertação também se voltou para a perspectiva

que mostra a representação da mulher no sertão nordestino. Nessa abordagem,

constatou-se que a constituição dos papéis de gênero se dá através de processos

sociais sustentados por práticas discursivas responsáveis pela construção do

cerceamento do feminino. Por outro lado, confirmando-se a concepção de Foucault

(1990) de que os sujeitos não são inteiramente assujeitados, as representações do

feminino em Teodoro Bicanca também alocam outros sentidos para as mulheres do

sertão. Não obstante o olhar masculino do narrador e o peso do cerceamento das

estruturas de poder, demonstra-se que a mulher sertaneja consegue impor uma

resistência ao poder patriarcal, mesmo que nos limites de suas possibilidades,

mediante práticas do fazer cotidiano.

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Constatou-se, afinal que, em que pesem as estereotipias no imaginário

sobre o(a) sertanejo(a)/nordestino(a), em Teodoro Bicanca, fissuras se abrem no

romance, possibilitando que estes sujeitos se deem a conhecer não apenas sob os

discursos estereotipados feitos, em geral, por um Outro, mas que se mostrem

também em outros sentidos, associados a um espaço de farturas: de folclore, de

saberes, de riqueza de linguagem, sem escassez de resistências.

Em suma, pode-se verificar que em Teodoro Bicanca, sertão não habita

apenas na demarcação dos pastos, traço que alimenta os estereótipos da carência

exagerada: seca de tudo. Renato Castelo Branco significa o sertão, também, como

espaço de porteiras abertas para as vivências, experiências, sentimentos e saberes.

Porteiras que se abrem para lutas, para resistências e para dizeres que ultrapassam

uma linguagem instauradora de subalternidade. Esse sertão vibra no ranger das

engrenagens das suas porteiras, pois suas personagens são porta-vozes do dentro

e do fora, do aqui e do acolá e não sucumbem ao discurso tradicional de sertão.

Afinal, ele se faz de pastos e porteiras.

Assim, espera-se que este trabalho sirva de apoio a outros olhares

interpretativos da obra de Renato Castelo Branco. Que outras indagações sejam

feitas, possibilitando o abrir de novas porteiras em seu universo literário.

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