De Pé, de Leonardo Mathias

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Livro de poemas "De Pé", de Leonardo Mathias. O livro impresso está à venda no site da Editora Patuá: www.editorapatua.com.br Lançamento dia 19/06 (domingo) no Bar Rose Velt, Praça Roosevelt 124 - São Paulo

Transcript of De Pé, de Leonardo Mathias

Copyright © Editora Patuá, 2011.

De Pé © Leonardo Mathias, 2011.

EditoresAline RochaEduardo Lacerda

RevisãoAline Rocha

Projeto Gráfico e Capa

Leonardo Mathias | flickr.com/leonardomathias

Todos os direitos desta edição reservados à:

M379d Mathias, Leonardo B.

De Pé / Leonardo B. Mathias. São Paulo: Editora Patuá, 2011.

ISBN 978-85-64308-06-0

1.Poesia brasileira I. Título. CDD – 869.91

Editora PatuáRua Lobato, 86

CEP 03288-010 São Paulo - SP • Brasil

Tel.: 11 9768-2712 • 11 7022-0339

www.editorapatua.com.br

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Primeiro Ato: da Imaginação

(fiapo de noite velha. O tapete simétrico empoeirado.

Finge desenhar mandalas. Em seguida, breu)

Poeta Adentro a casa.

Panorâmico: o olhar pela parede não se fixa nas letras inscritas. Sei o que são palavras. Também sei de rimas, escritores, metáforas.

Enxergo apenas os vãos.

Vazio Do objeto retangular que segura,

apenas segure. Ler o poema é saber corporificar-se nele.

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Segundo Ato: da Emoção

Poeta

Sento como se esperasse o café. Estamos parados.

As palavras e eu sabemos de nossas ausências.

Vazio

Estou no meio da cena: há alguém que segura o livro.

Outro espera o café.A sensação de perda

são cócegas incontroláveis. (risos)

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Terceiro Ato: Vago

Poeta

Mudo? Meu corpo em esse: insisto, atravesso. A medida do nome, chamei de eu.

Vazio

Está dentro do corpo? Verbo algum tem seu nome.

Vaza a palavra e cobre.

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Último Ato: Inevitável

Poeta

Vale o pecado de um livro vazio.Estar na casa já é habitá-la.

Vazio

Resta virar a página.Mova, gaste as pontas soltas.

Nunca escrevi de luvas, mas com angústia.De novo, o livro da verdade.

Taís Bushatsky Mathias

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à mira & virginia; thor, barão, léo e balta; barros e bushatsky.

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“Toda a palavra é como uma mácula desnecessária no silêncio e no nada.” Samuel Beckett

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à Waly Salomão

senta o cante do reinventeonde ir adianteé sempre excedente

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meio quevireium lixo que vale a pena

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para Ana C.

haurirdiluir em largos algosgastar em grafiasgestos

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para tirar as palavrasé precisonada

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à Wittegeinstein

da conversaa promessa avessade calarvaza vaziafrouxafriae me falta

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à Mira Schendel

o cantobrancobrinca

que marcaa dobrado vago

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un homme qui dort

no dorso do dia mordenteadormecido na vanguarda da vidaonde ante sua vontaderasga e remonta a mentira

o poeta pode desistir

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tudo o que me inquietase insinua

seta tesaquietanua

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à P. Leminski

toco os lábios na parede fria:

cada coisatem seu dia

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à D.

vaiverela émesmo melhor

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fizissomesmo quemeio sem porquê

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à Charles Bukowski & Allen Ginsberg;and Serge Gainsbourg

quando andorindorente à mortesinto-intuoe entooque a vida idaé eco secoa esse seusuposto oposto

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kind of blue

secoque a todomeiose dobroperco

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Zapíski iz pódpol’ia & Stellet licht

entorno da tensãodo sexoexalao sil em cio

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seus elosseu selo

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ótimo!omito

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arquitetura ideal

urbebreu inebriante

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à Noigandres, Apollinaire, Mallarmé and e.e.cummings

giro imóvelao redor doe ixoeix os/eixo

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o tempo interpela a poesiaenquanto conversa comigo

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o tomo fosco do escuro desvela o conteúdodo que, agudo,se escora sob sua escara.

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escopo de tarde brancaescapatubo branco contra a boca

os olhos secos prendem sonhos

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calo a calodesce cedo o soldo sonho mal feito

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à Yves Klein

sem percorreradentro

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emesseme

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to H. Oiticica & Lygia Clark;and Antonin Artaud

tear a artenuma teia tamanhaater a aranha

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de pépousado no plexo calmo do acasoo vórtice come concreto:corpos velhosdissolvem no espaço do corpo;correm espaços-esboçosdiluindo estruturas no corpoqual entorna distraídotodo seu entorno

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blue

induzir é poucoperpetuar inútilparartalvezatravesse o ser

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to Charles Baudelaire and Roland Barthes

res

pi

rar

ar

de

ar

te

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o poema precipita tudo(pressão dentro do crânio)a cena sem moldura se apresenta;sento-mee o poema me pressente.

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à t.

eu falo você fala eu falo você fala

nexo contra nexo;

talvez soltosdentro da liberdade triste da solidão soturna.

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olor lato, letal:a linguagem quando muda,...

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para quando Virginia dorme.

tudo acontece aquém de mimalém do ao longeaquionde o ausente se esconde

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to Proust & Rilke

contempla-se,no interior de um cigarro,a inteira paisagem, que paira,na imóvel janela.

insolente instante,insistente,cessa em cinza, cresta-se,transubstancia em vapor barato, solto no vento.

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o verbo, por vir,ainda sem nome,cismae some.

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Requiem for a Dream; à Ana L.

contemplo e compilo coisaspupilas dilatampratas, pretas, prontas:

prostro-me,pelo próximo instante indesejado.

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Waking Life

pensamentos tropeçamno extensosomdo

con

ta

go

tas.

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there will be blood

olor vivonovovelhovermelho.

52 | leonardo MAthias

vazios volúveis

o corpoescondedentroo corpo

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(

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(

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dentro do escassoo espaçoesparsa.

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à Virginia Woolf & Herman Hesse

vida inventada, dia vadio:

alegria solta,dentro do eixo do tédio.

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nigth notes never broke.

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mimetizoo silêncio:oscilo.

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à Gebser & Mira Schendel

entre desesperos,um ameno movimentosalienta tudoo que não foi forjado.

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à Andrei Tarkovski

apostas,pra uma futura saudade:

lisa,límpida,úmida.

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à Andy Warhol

o forasedentoprima por me engarrafarem meu lugardentro.

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à H.P Lovercraft, Franz Kafka; David Cronemberg & Willam Burroughs.

imemorável móbilede moscas mortasariscasque acariciam-me dispostassobre as carnes vivasdos meus calcanhares cerzidosentre-triscam suas facesoferecem-se murchasesfumaçam silênciopor seus ásperos hálitosatravés de zunidosinexistentes

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a urbe encobreabafa agrefulgores dos buçosdos púbis sujossexos ressecados:pênisanusconasseios;dilatam-Irritamrasuram rubrosatritam.

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à Jorge Luis Borges

desembocoentre paralelepípedos ocos,sedimentos consistentes,de um passado - óbitoobsoleto.

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arquejo secotragado à queima roupachoca quente – orvalho o porodo rubro anel convulso;intumescido escarroo bizarro distúrbiotrevadelírio torsoa culpa pulsa.

68 | leonardo MAthias

à Samuel Beckett

áridos vaporesentre si dissipam,ínfimos hálitos,sopram-meatam-me:hora ao chãohora ao não:

os sóis reascendem falhos.

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l’étranger

poeiras flutuantesamórficas formamadivinhações desvendadas,unidirecionais nomes,

o céu asseadonão molda.

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Vargtimmen

dentro do não,as coisas nasceme, aos poucos, não mais nele cabem.

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à Jean-Paul Sartre & Marcel Duchamp

coisasoutras coisassão

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dentro das gretas dos sonhos,presas debaixodo espelho dos olhos,as coisas,ensejam seus ritmos secretos, descobertos,num impassíveltalvez.

73 | de pé

obturo,sob a sustentabilidade do sonho,o resquíciode tudo o que nego.

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à Jorge Mautner e D.

que seu lumeemule meus sonhos.

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entre vazioso vãomove

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à M.

a voz lhe sai da bocacom um certo cuidadocasto, gasto, aceso.

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à Chet Baker and Billie Holiday

difuso,induzo as pontas soltasdeixadas dentrodo espaço em silêncio.

78 | leonardo MAthias

frêmito fosco:

a sededesceseca atéo pé.

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à Hilda Hilst

ao vibrar de meus lábiosestanco,a ralhar palavras,o precioso espectroque delas reverberaria.

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à Werner Herzog & Stanley Kubrick

flutuo,num flerte inerte,com o futuro turvo:

somosquem inda nãosomos.

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à Alfred Hitchcock

o papel que embala o medo,e o papel que embala a fomeestão sempre presostesosnas paredes do abdome.

82 | leonardo MAthias

tijolos quedam;pesos de papelfindam,

na beira dos lábios.

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der siebente kontinent

objetosexprimempessoas

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à Wassily Kandinsky

a ideia,sem amparo expande,inexiste.

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à Henri Miller

a mentesujao sexo

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à João Cabral de Melo Neto

adenso o nãotornando-o imaginário

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a verve espanana superfície da boca

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à Caio F. Abreu

pelos compridos passospedras se dissolvemno vão do inevitável

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tênis sem cadarço,coço o torso,esqueço.

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der steppenwolf

alguém diz: - precisamos ter nomes!esse de mim, qual?

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não-nada,não-nada,passa.

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cut ups

o momento intentafraudulento alcance;é figura falsa,ímpeto-impotente de abarcartudo o que varia.

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contraio, num segundo,todo o alfabeto oculto,preso detrás do p mudo.

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lânguidaslâminas talhama sutil transparência:

a esperança seca,despenca.

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pausa,não sei o que faço

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rútilos; à Jozu

dentro do espectro,do poema,esfacelo o poço sem furode tudo o que penso.

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rútilo nada

o muroem mim impregna; eameaça furtar a fartura insípida,dum lustroso hoje.

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à Guilles Deleuze

o oco corpoesgotaboceja sombrasexpele faltas.

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à Anna Akhamátova

o amor do âmagoa neuróticas náuseas

habita.

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à Ferreira Gullar & Mário de Sá Carneiro

frescor do impulsoo corposem corpoque o espaço expele.

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Móbiles Cantábiles: o corpo do poema sustenido prepara um suicídio: uma breve leitura do livro De Pé, de Leonardo Mathias

[...]

III A ideia é não ceder à tentação de escrever o poema desse não-lugar, desse círculo congelado, sem vasos comunicantes, fechado em si, em sua pose, sua espera, a ideia é alcançar a outra esfera. Não aquela onde tudo flui tão lento, nem a outra, comum no movimento, mas a última, a roda da vertigem (esteja ela no fim ou na origem), a ideia é pôr as duas mãos no centro nervoso do delírio (aquele vento na praça), para que a palavra ativa congele a vida, enfim, mas a conviva, mesmo ferida de paralisia, mobilidade fixa, a poesia.

[...]

(Carlito Azevedo)

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Muitos são os caminhos de leitura para os poemas do livro De Pé, de Leonardo Mathias. Muitos são os diálogos estabelecidos: diálogos e nuances entre as impossibilidades do discurso, que não limitam o poeta. Diálogos com a própria poesia, com as epígrafes, as dedicatórias e, principalmente, com o verbo e a palavra que se tornam corpo – do poema –, e com o corpo que se torna palavra e verbo. Cantáveis, estes poemas se tornam móbiles, movidos por forças extremas e naturais que impulsionam a criação, mesmo quando ela parece impossível. Mas, ao mesmo tempo, levam esses móbiles e cantos para o imprevisto e para o desconhecido. Os movimentos acontecem entre extremos – o não, o vazio, o nada, o silêncio e fazem oposições não hierárquicas ao sim, ao ir, ao tudo e à palavra. Palavra, já definida por Beckett na epígrafe de De Pé, como “mácula desnecessária no silêncio e no nada.” Pensando mais detalhadamente nesses caminhos de leitura, o que faremos aqui é delineá-los.

A impossibilidade, assim como a possibilidade, é plural. E as impossibilidades são uma das matérias para a realização e construção do discurso na poesia desde o modernismo. A resignação, mas também a tentativa de superação perante estas impossibilidades de aproximação ou comunicação

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– física, espiritual ou de linguagem – com o outro e também com o coletivo têm marcado boa parte, principalmente, da produção poética contemporânea. Os sentimentos de aniquilação, fracasso e ruína como ponto de chegada para o discurso que se sabe incapaz de alterar a realidade marcam a direção da partida. O poeta se sente desnecessário, sem voz e talvez sem caminhos.

Leonardo Mathias não estará deslocado do que afirmamos: o nada, o silêncio, o não, entre outras tantas palavras que carregam o sentido da impossibilidade, aparecem em sua obra de maneira decisiva. Porém, em sua poesia, a impossibilidade não é tomada como elemento estanque, mas é o princípio de toda uma construção ornada, não pela aparente necessidade de superexposição dos métodos que há na literatura contemporânea, mas, sobretudo, pela voz de um corpo que pulsa diante do seu próprio vazio: “entre vazios / o vão / move”. No movimento de continuidade, avanço e criação a partir dos elementos de negação apontados, Leonardo delineará todo um percurso que sua poesia tomará em De Pé e que poderá ser percebido em poemas como “frescor do impulso // o corpo / sem corpo / que o espaço expele.” ou ainda em “de pé /

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pousado no plexo calmo do acaso / o vórtice come concreto: / corpos velhos / dissolvem no espaço do corpo; / correm espaços-esboços / diluindo estruturas no corpo / qual entorna distraído / todo seu entorno”, mas principalmente em um poema como: “calo a calo / desce cedo / o sol / do sonho mal feito”. É necessário apontar os múltiplos significados de “calo”, do verbo calar; “calo” como experiência adquirida; e “calo” como uma resposta da pele à repetição de pressões e movimentos em uma região do corpo. Aqui, mesmo existindo a impossibilidade da fala e do andar, há a experiência que possibilita não só o movimento, mas a repetição do próprio movimento (calo a calo como passo a passo). Ou seja, o movimento acontecerá, mesmo que em um sonho mal feito, que não é pesadelo, mas que é marcado pela imperfeição. Há também na atual poesia, como dito, uma superexposição dos métodos. A impossibilidade, nesse caso, se daria por um excesso de possibilidades, perfeição e detalhes necessários ao poeta que domina a técnica de seu instrumento de trabalho e deixa esse “domínio” explícito na realização do poema. Lembremos o conto “Do Rigor da Ciência” no livro História Universal da Infâmia, de Borges:

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“Naquele império, a arte da cartografia atingiu tal perfeição que o mapa duma só província ocupava toda uma cidade e o mapa do império, toda uma província. Com o tempo... os colégios de cartógrafos levantaram um mapa do império que tinha o tamanho do império e coincidia ponto por ponto com ele. Menos apegadas ao estudo da cartografia, as gerações seguintes entenderam que esse extenso mapa era inútil...” Ora, não estaria a poesia contemporânea de tal modo ofuscada por seus próprios métodos e sistemas a ponto dessa explicitação retirar toda a poesia da própria poesia, tornando-a apenas um simulacro de si mesma? De alguma maneira, é o que nos lembra Benedito Nunes:

“Mas poderá ocorrer, como certos sinais pressagiam, que a literatura venha a perder, algum dia, sua ressonância crítica, se não vier ela própria, também, a definhar, tornando-se, à falta de leitura, um simulacro de si mesma”

Leonardo Mathias, também nesse ponto, não estará desvinculado ou na contramão de boa parte da literatura contemporânea, desconhecendo ou negando a técnica, mas ao mesmo tempo não estará submetido a ela, chegando mesmo

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a reconhecer, em alguns poemas, como se insere e situa nessa questão: “tear a arte / numa teia tamanha / ater a aranha”. Nesse poema é certo associar e refletir sobre o conflito entre as palavras arte, tear e ater, a começar pelo fato de que todas elas constituem um anagrama. Desse modo, a aranha, no ato de tear – ou seja, produzindo a sua arte –, não está longe de, fatalmente, ser detida pela própria teia, similarmente ao conto de Borges, em que o império, em busca da representação mais fiel, acaba por construir um mapa sem nenhuma utilidade. Outros poemas desenvolverão a percepção do próprio poeta sobre si, sobre a poesia e o fazer poético, não utilizando-se de uma metalinguagem explicativa, mas demarcando a relação entre o poema e o poeta: entre o corpo e o verbo: “dentro do espectro, / do poema, / esfacelo o poço sem furo / de tudo o que penso.” ou em “o poema precipita tudo / (pressão dentro do crânio) / a cena sem moldura se apresenta; / sento-me / e o poema me pressente.” ou ainda “no dorso do dia mordente / adormecido na vanguarda da vida / onde ante sua vontade / rasga e remonta a mentira // o poeta pode desistir”.

O verbo, em De Pé, parece pouco a pouco assumir

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uma autonomia: “o verbo, por vir, / ainda sem nome, / cisma / e some.” A partir da expressão “por vir”, a chegada do verbo é anunciada (em contraposição à passagem bíblica: “No princípio, era o Verbo [...] E o Verbo se fez carne.” (João, 1:1), em que, contrariamente, o Verbo anuncia o porvir), mas, mesmo que anunciado, esse verbo, além de não ter nome, cisma e desaparece antes de se firmar. “Cismar” é um ato de consciência, ou que provém de estar consciente, então, o verbo assume características que o personificam – e por que então não podemos dizer que o corpo do poeta se instaura nele? Na mesma linha, é certo afirmar que cismando provoca uma tensão e instabilidade e oscila assim como o poeta que diz: “mimetizo / o silêncio: //oscilo.” E o poeta continua, espécie de móbile, movendo-se sobre seu eixo: “giro imóvel / ao redor do / e ixo / eix o / s/eixo”. Destacamos que esse giro, impossível, é imóvel, mas que, embora o seja, não é estático. A criação a partir das impossibilidades, já destacadas, percorrerá também o movimento em De Pé: “sem percorrer / adentro” e “dentro do não, / as coisas nascem / e, / aos poucos, / não mais / nele cabem.”.

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O verbo e a palavra da poesia tomam forma entre os poemas e se tornam, em muitos momentos, o corpo – da poesia, do poeta, da vida –, à beira de um precipício, num movimento de contemplação do abismo. Lembremos, inclusive, todas as leituras em abismo encontradas na poesia de Leonardo, como no poema (vazios volúveis), um dos poucos que possuem um título – um nome: “o corpo / esconde / dentro / o corpo”. É certo dizer que o vazio é sempre preenchido, ainda que seja por um vazio, que por sua vez é sempre preenchido, ainda que seja por um vazio.

Por fim, destacamos o poema: “imemorável móbile / de moscas mortas / ariscas / que acariciam-me dispostas / sobre as carnes vivas / dos meus calcanhares cerzidos / entre-triscam suas faces / oferecem-se murchas / esfumaçam silêncio / por seus ásperos hálitos / através de zunidos / inexistentes.”. Palavras com prefixos de negação iniciam e terminam o poema que nos apresenta um poeta afirmando que este “móbile” é imemorável e que os “zunidos” são inexistentes. Mas ele reconhece que “moscas mortas”, e pensemos na expressão que define pessoas sem iniciativa ou paradas e indiferentes – que aqui pode representar a imagem do coletivo – acariciam “dispostas” – que também pode, ambiguamente

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e em dois extremos, significar “postas sobre” ou “cheias de vontade” – este seu “calcanhar” – imageticamente, ponto fraco de um homem invencível, de um herói (calcanhar de Aquiles: um herói de um canto épico). Calcanhar que também é o ponto de apoio e eixo para o caminhar: de pé. Estas moscas mortas estão sobre carnes vivas. A carne do poeta, o corpo da poesia. Pensemos nos móbiles que percorrem De Pé. Não devemos considerá-los manipuláveis somente pelas múltiplas significações e forças que podem alterar as leituras em cada poema, mas também pela constituição de cada peça que, ainda sendo um elemento único, se encaixa perfeitamente entre as outras peças do poema formando novas imagens e dando, novamente em abismo, novas possibilidades de construção.

por Aline Rocha e Eduardo Lacerda

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Aline Rocha é graduanda em Letras com habilitação em Português e Francês pela Universidade de São Paulo e editora da Editora Patuá. Realiza pesquisa sobre o poeta Paulo Henriques Britto e sobre a Estética da Recepção. Também escreve de vez em quando.

Eduardo Lacerda é poeta, produtor cultural e editor da Editora Patuá. Iniciou a graduação em Letras com habilitação em Português e Linguística pela Universidade de São Paulo, mas não concluiu. É ex coeditor da Revista Metamorfose e do Jornal O Casulo.

Esta obra foi composta em Helvetica Neue e Optima,em Maio de 2011 para a Editora Patuá.

Leonardo Mathias tem como seus principais amuletos as gatas Mira Schendel e Virginia Woolf,

que o ensinam sobre o silêncio conquistado.

Tiragem de 100 exemplares.