De Um Curso a Um Discurso - edição 4

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Revista de Psicologia “DE UM CURSO A UM DISCURSO” EDIÇÃO 4

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Revista Eletrônica do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva

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Revista de Psicologia

“DE UM CURSO A UM DISCURSO”

EDIÇÃO 4

Revista de Psicologia

“DE UM CURSO A UM DISCURSO”

EDIÇÃO 4

Centro Universitário Newton PaivaCampus Silva Lobo , 1730 - Nova Granada

Belo Horizonte – Minas Gerais

Copyright©2011 by Núcleo de Publicações Acadêmicas do Centro Universitário Newton Paiva

4ª Edição2012

EDITORIAL

TERRITÓRIOS DE UMA CLÍNICA-ESCOLA

Os territórios de uma clínica-escola conjugam o fazer da psicologia e o fazer

da academia.

Os saberes e os campos da Psicologia são visitados pelo exercício da profi ssão,

quer seja pelos psicólogos-professores-supervisores, quer seja pelos acadêmicos-es-

tagiários, na construção de sua prática. Esse encontro das teorias da Psicologia e do

fazer clínico produz a tessitura dos textos em revista “De um curso a um discurso”.

Apresenta-se aqui o Curso de Psicologia traduzindo em Discurso, a ética que

nos orienta pelos territórios da Clínica-Escola: as Políticas de Gestão e as Políticas de

Saúde e Clínica.

A Comissão Editorial

EXPEDIENTE

Edição

Núcleo de Publicações Acadêmicas do Centro Universitário Newton Paiva

Cinthia Mara da Fonseca PachecoEmerson Luiz de CastroEustáquio Trindade NettoJuniele Rabêlo de Almeida Marialice Nogueira Emboava

Editora de Arte e Projeto Gráfi coHelô Costa - 127/MG

Diagramação: Fillipe Gibram Geisiane de OliveiraNayara Perez(estagiários da Central de Produção Jornalística da Newton Paiva - CPJ)

núcleo de publicações acadêmicasCENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA

PROFESSORESLucas Fernandes LoureiroMargaret Pires do CoutoRaquel Neto AlvesSheyla Rosane de Almeida SantosWanderley Magno de Carvalho

COMISSÃO EDITORIAL Délcio Fernando GuimarãesFabrício RibeiroFernando DórioJunia Maria Campos LaraGeraldo Majela MartinsMarluce GodoyMaxleila ReisMerie Bitar Moukachar

Revisão de PortuguêsVanderléa Martins da Rocha

Presidente do Grupo SpliceAntônio Roberto Beldi

Pró-Reitor AcadêmicoSudário Papa Filho

Diretor Administrativo e FinanceiroMarcelo Vinicius Santos Chaves

Secretária GeralDorian Gray Rodrigues Alves

Coordenadora do Curso de PsicologiaJúnia Maria Campos Lara

Coordenadora da Clínica de PsicologiaMerie Bitar Moukachar

Coordenação do Centro de Excelência para o EnsinoFernanda Amaral Ferreira

EXPEDIENTE

SUMÁRIO

Nos territórios das Políticas de saúde e clíNica

Um modo de existir psicóticoAline Tamietti Braga Silva, Raquel Neto Alves.................................................................................................................................... 08

Pai: não vês que não me protege!Arlene Vieira de Faria Coelho, Margaret Pires do Couto......................................................................................................................10

O sintoma da criança e o desejo do outro Hélida Rabelo Fonseca, Margaret Pires do Couto...............................................................................................................................12

A percepção de si a partir da autoimagem: um caso clínicoLuciana Neves Ferreira, Raquel Neto Alves........................................................................................................................................14

De quem é o sintoma? Marcela Diegues Sarti Silva, Margaret Pires do Couto.........................................................................................................................17

Déficit de atenção ou resposta do sujeito?Marcos Gomes Ferreira, Rosângela Pereira do Patrocínio, Margaret Pires do Couto...............................................................................19

A contribuição da psicanálise para a educação Roberta Ribeiro Barbosa, Margaret Pires do Couto.............................................................................................................................21

Nos territórios das Políticas de Gestão

Consultoria e gestão de mudanças em empresa familiar Raquel Braga, Sheyla Rosane de Almeida Santos................................................................................................................................23

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Um modo de existir psicótico

Aline Tamietti Braga Silva1

Raquel Neto Alves2

ResUmo:Este trabalho tem como finalidade compreender a subjetividade e a realidade vivida, ausente da realidade propriamente dita, com os conceitos existenciais de alteridade, alienação e relação interpessoal. Para a elaboração deste estudo foram utilizados embasamentos teóricos, da Abordagem Existencial-Fenomenológico e a vivência de atendimentos a uma jovem.

PalavRas-chave: Alienação. Alteridade. Realidade.

1 INTRoDUÇÃoO presente trabalho tem como objetivo articular as vivências

clínicas, de uma jovem, a partir de atendimentos psicoterapêuti-cos de acordo com a teoria Fenomenológico-Existencial. Algumas questões existenciais, tais como a relação com o outro, a psico-patologia e a alienação, serão enfocadas, conforme aparecem na existência dela.

A cliente que se chamará de Joana para preservar sua identi-dade chega à clínica de Psicologia encaminhada pelo Departamen-to de Odontologia. Segundo os profissionais que a atendiam, ela se queixava de dores de cabeça, possuía uma grande dificuldade na fala e relatava fatos de sua vida de forma desconexa, não pro-duzindo sentido aparente para eles.

Joana tem 24 anos e, por sua grande dificuldade na fala, é necessária bastante atenção para compreendê-la. No primeiro atendimento, se dirigiu ao consultório relatando sobre um namo-rado que amava muito e que o mesmo, estava preso há um ano e meio, depois de ter sido encontrado pela polícia com drogas. Joana espera este namorado sair da cadeia com promessas de se casar. Segundo ela, já se relacionou com vários homens, porém nenhum deles era igual ao que estava preso.

O discurso da cliente era baseado, na maior parte, neste ro-mance, que, na percepção da psicoterapeuta, é um amor impossí-vel e criado para que ela dê conta de sua realidade. Joana, fala pou-co sobre sua família e diz que sonha sair de casa, pois, em seu lar há grandes brigas e se sente explorada por todos. No decorrer dos atendimentos foi possível observar o seu modo de existir psicótico.

2 QUesTÕes soBRe RealIDaDe e alIeNaÇÃoPara Romero (2001), alienar-se é tornar-se alheio à sua pró-

pria realidade, ou seja, é estar ausente de sua realidade. A re-alidade mencionada é tudo o que nos toca e afeta de maneira inevitável. Para ele, esta realidade poderá ser discernida sem es-

forços, pois ela é constituída de maneira clara pela vida e configura o mundo de cada indivíduo, como o corpo, os relacionamentos interpessoais, o trabalho e as obrigações cotidianas. Estas configu-rações de realidade se definem como um complexo de relações que se mantém com vários objetos do mundo. A partir do que o indivíduo cria, ele se relaciona e se transforma, sendo isso, que mantém a sua própria realidade.

Neste ponto de vista, é possível observar, pelo discurso de Joana, uma realidade relatada por ela constituída de maneira di-ferente. Daí o seu mundo é configurado podendo relacionar e suportar os conflitos que vivencia. Por exemplo, o de sonhar em se casar com um rapaz que está preso e dizer que ele iria lhe dar uma casa ou um apartamento e que, quando saísse da cadeia, iria lhe presentear com um celular de última tecnologia. Na verdade, ele está preso, não trabalha, não possui renda e nem mesmo con-dição de realizar o que Joana almejava.

Segundo Duarte (2006), ao entender a idéia de percepção como base de uma nova relação do homem com o mundo, observa-se algumas limitações desta relação entre a pessoa e o mundo em que está inserido. Sendo assim, é possível destacar a realidade do indivíduo tal como ele se apresenta e a partir das limitações e incertezas de uma demanda, o psicoterapeuta deverá compreender os rearranjos sociais apresentados.

Em uma construção intersubjetiva da realidade, percebe-se que essa se manifesta para a sua vivência e não para a manipulação do sujeito. Sendo assim, fará com que o homem perceba o mun-do a seu modo e se relacione com o que ele traz de associações passadas, presentes e das relações com o outro. (DUARTE, 2006)

O autor relata que a construção das percepções subjetivas e do perceber-com-o-outro, não é a de um indivíduo isolado em toda a sua vida, mas de uma vivencia dia a dia, no compartilhar dos sentimentos e espaços.

No caso de Joana, é possível compreender a sua relação com o mundo baseada na percepção do outro, como o de sonhar que

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seu namorado estava saindo da cadeia e acreditar ser verdade, buscando uma comprovação do que estava acreditando à psicote-rapeuta. Em seu sonho, o namorado iria deixar todas as mulheres que o rodeavam para ficar com ela. Para ela, o sonho lhe trouxe alento para acreditar ser amada por ele.

3 RelaÇÃo com o oUTRo e comPReeNsÃo De sI

De acordo com Augras (1994), a relação do homem como, “um ser social e o crescimento individual depende em todos os aspectos, do encontro com os demais”. (AUGRAS, 1994, P.55)

A autora relata que ser no mundo é o ser com os outros, sen-do que o indivíduo está configurado em sua relação com o outro e, a partir daí, ele é compreendido e aceito. No momento em que há esta compreensão de si, há o reconhecimento da coexistência e, ao mesmo tempo, constituir-se-á compreensão do outro.

Augras (1994) relata que:

O que, então, assegura a compreensão de si? A situação do ser no mundo é marcada pela estranheza. Nesse sentido, a compreensão do outro não descansa ape-nas na compreensão de si, mas se justifica a partir da situa-ção do homem como desconhecido de si mesmo. Ou seja: a coexistência é também a co-estranheza. O outro fornece um modelo para a construção da imagem de si. Por ser outro, contudo ele também revela que a imagem de si comporta uma parte igual de alteridade. (AUGRAS, 1994, P. 56)

Percebe-se então que, no caso de Joana, mesmo com toda a sua realidade particular marcada por grandes conflitos e sua difi-culdade em se comunicar no decorrer dos atendimentos, houve uma compreensão por parte do psicoterapeuta dos fenômenos que ali se apresentavam. A deficiência da fala que antes era um desafio no sentido de ser compreendida, pois apresentava certa estranheza, passou a se tornar aceita e compreendida contribuin-do, assim, no processo psicoterapêutico.

Romero (1999) destaca a importância da relação terapeuta--cliente como uma forma de encontro interpessoal, pois esta rela-ção é marcada pela compreensão e proporciona que o encontro seja uma forma de o indivíduo encontrar-se consigo mesmo. No momento em que o psicoterapeuta se coloca em inteira disposi-ção do cliente, este poderá favorecer na cura, pois as máscaras são retiradas, havendo a consciência de si e do outro.

4 coNclUsÃoPode-se perceber, a partir dos preceitos apresentados, a im-

portância da relação como um papel fundamental na construção

da realidade. Como prova disso, destaca-se o relato de Joana dizendo da importância de estar em psicoterapia, “quando estou aqui fico mais calma”.

Observa-se então, o lugar diferencial da psicoterapia, livre de pré-julgamentos, havendo uma busca da compreensão do indi-víduo em seu modo de ser. Dessa forma, é possível observar o homem não mais como um sujeito determinado, mas capaz de construir a sua própria realidade e destino.

Conclui-se então que a psicoterapia no caso de Joana pro-porcionou uma compreensão de si mesma e do outro de acordo com a realidade. Independentemente do que fala ou da manei-ra como se comporta, Joana foi aceita e compreendida em seu modo de ser e existir.

De acordo com a percepção do psicoterapeuta, no decorrer dos atendimentos, viu-se uma mudança em sua maneira de expres-sar e falar. Joana passou a ser mais clara no que queria dizer, dei-xando de falar do outro e falando de si, sobre seus medos e sonhos.

ReFeRÊNcIasAUGRAS, Monique. O outro. In: _______. O Ser da Compreensão. 3 ed.

Petrópolis: Vozes, 1993. p. 55 - 74.

Duarte, Matusalém de Brito. Leituras do “lugar-mundo vivido” e do “lu-

gar-território” a partir da intersubjetividade. 2006. 136p – Instituto de

Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Disponí-

vel em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/MPBB-

-6YTKVJ/4/disserta__o___sum_rio.pdf>. Acesso em: 12 de outubro de 2011.

ROMERO, Emílio. A Dimensão Social e Interpessoal. In:______. As dimensões

da vida humana: existência e experiência. 3. ed. São José dos Campos: Novos

Horizontes, 1999. p. 69 – 184.

ROMERO, Emílio. Inquilino do Imaginário: formas de alienação e psicopatia.

2. ed. São Paulo: Lemos. 295 p.

NoTas De RoDaPÉ1 Graduanda do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva

2 Professora Supervisora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.

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Pai: não vês que não me protege!Arlene Vieira de Faria Coelho1

Margaret Pires do Couto2

ResUmo:O presente artigo tem por objetivo articular o caso clínico Ricardo³ com a teoria psicanalítica, principalmente a de orientação la-caniana. Nesta articulação apresentar-se-á o entrelaçamento do sintoma da criança às fantasias parentais, pois, a criança com seu sintoma responde ao que há de sintomático na estrutura familiar. Sendo assim, o sintoma da criança inclui a ação da metáfora paterna.

PalavRas-chave: Sintoma. Castração. Função Paterna.

“Não quero mais ir ver meu pai, porque ele não me prote-ge”. Esta fala é de Ricardo, uma criança que não conseguia apren-der a ler e escrever, porque não enxergava o que a professora es-crevia no quadro. No entanto, os exames clínicos oftalmológicos, não diagnosticaram problemas orgânicos. Em virtude da ausência de anomalias visuais, Ricardo foi encaminhado, pela escola, para atendimento psicológico.

A queixa apresentada pela mãe na entrevista de acolhimento foi a de que Ricardo está com dificuldades para aprender, porque não enxerga o que é escrito no quadro. Nos dizeres da mãe: “Quando Ricardo entrou para a escola aos cinco anos, apresentava um bom desempenho, mas, na nova escola, as professoras, que são muito exigentes e incompreensivas, começaram a queixar que ele não pres-ta atenção nas aulas e, por isso, está com dificuldades para aprender a ler e escrever. O problema é que ele senta longe do quadro, por isso não enxerga o que é escrito no quadro, mas as professoras não compreendem que é por isso que ele não aprende”.

Segundo a mãe, conforme relatado na entrevista inicial, quan-do conheceu e uniu-se ao pai de Ricardo, ambos já tinham filhos de outro relacionamento, por isso o marido não via necessida-de de eles terem mais filhos. Mas, segundo diz, ela se descuidou e ficou grávida. O marido não quis saber da gravidez e exigiu o aborto. Por não ter coragem e não saber como fazer um aborto seguro e acreditando que se fosse um menino, o marido iria amá--lo e se tornaria um homem dócil, ela não atendeu sua solicitação.

A mãe acrescenta que seu marido era um homem muito vio-lento e batia muito nas crianças, quando ela estava trabalhando, até mesmo em Ricardo, desde que ele era bebê. Por não saber o que fazer para proteger os filhos, “ela fingia não ver” os hemato-mas deixados, pelo marido, nos corpos dos filhos.

Ricardo, de acordo com a mãe, era uma criança quieta e obe-diente, mas, atualmente, às vezes, tem crises de agressividade. Ela não sabe o porquê da sua agressividade, mas acredita que é porque ele sente falta do pai. [...] O pai de Ricardo foi preso por tentar abusar sexualmente da enteada adolescente. Após cumprir

a pena, ele foi proibido de se aproximar da enteada, por isso não pode ir ver Ricardo. [...] Ricardo dormia com a irmã, mas, depois da prisão do pai, passou a dormir com a mãe, porque passou a ter medo do escuro.

Nas primeiras sessões, Ricardo chegava ao consultório, muito angustiado e pouco falava. Durante as brincadeiras, a morte era o tema principal de suas poucas falas: “Este é o chefe dos bichos. O que ele manda fazer, os outros obedecem, senão ele mata. [...] O homem mandou os caras baterem os aviões nos prédios, para suicidar. Vi muita gente, que estava pegando fogo, pulando pelas janelas. [...] Minha irmã mandou prender meu pai. Ela disse que ele fez uma coisa, mas ele não fez. [...] Meu pai me contou que lá na prisão ninguém pode olhar no olho do outro, porque pode morrer. [...] Na prisão, tem muita gente morta. Vi muitos corpos queimados e muitas cabeças no chão. [...] Tenho medo do es-curo, então, quando sinto medo, fecho os olhos, para não ver. [...] Não quero mais ir ver meu pai, porque ele não me protege.”

A última fala de Ricardo, rica em significantes, remete à queixa inicial trazida pela mãe: “ele diz que não vê” e anuncia um pai que falha na função de protegê-lo. Mas, do que esse pai não prote-ge? A que o sintoma de Ricardo responde? São a estas perguntas que este estudo se propõe, fundamentado na teoria psicanalítica, a discutir.

Analisando o discurso da mãe e o sintoma de Ricardo, per-cebe-se a existência de uma intrínseca relação entre ambos. Isso se explica porque, segundo Lacan (1969, citado por Bernardino, 1997), há um entrelaçamento do sintoma da criança às fantasias parentais. A neurose dos pais tem um papel fundamental na eclo-são dos sintomas da criança, pois esta fixa sua existência num lugar determinado pelos pais em seu sistema de fantasias e desejos. A criança encena, “fala” de algo do real da historia dos pais que está fora de suas cadeias associativas. Com seu sintoma, a criança res-ponde às falhas que encontra na estrutura familiar.

Segundo Lacan (1969, citado por Couto, 2011), mesmo que o sintoma se afirme como emergência do Real no corpo da criança, ele

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é um dizer que pertence ao campo simbólico daqueles que trazem a queixa. O sintoma da criança pode ser o representante da verda-de do par parental ou se constituir para satisfazer a fantasia materna, obturando a falta onde se especifica o desejo materno. No sintoma, “os significantes fundamentais da história do sujeito provenientes do Outro se fazem presentes” (COUTO, 2011, p. 97). Nos dizeres de Lacan, (2003), em seu texto “Nota sobre a criança”:

A distância entre a identificação com o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe, quando não tem me-diação (aquela que é normalmente assegurada pela função do pai), deixa a criança exposta a todas as capturas fan-tasísticas. Ela se torna o “objeto” da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto. (LACAN, 2003, p. 369)

Visto que o sintoma da criança anuncia um fracasso na mediação da função do pai na relação mãe-criança, Tendlarz (1997) menciona que o sintoma da criança, algumas vezes, não representa somente a verdade do discurso da mãe, mas inclui a ação da metáfora paterna. Então, para se entender o sintoma da criança, primeiramente, se faz necessário compreender a ação da metáfora paterna.

O pai para a psicanálise, conforme Chaves (2008), não é o pai progenitor. O pai é uma função, um representante da Lei que interdita a folia inebriante da díade mãe-bebê. A Lei que instau-ra o espaço facilitador das operações simbólicas. Logo, a função paterna marca a entrada da criança na trama edípica ao introduzir o terceiro elemento, o pai, na relação mãe-criança. A entrada do pai nessa relação salva o filho de ser, para sempre, o objeto de desejo da mãe ao convocar mãe e filho a reconhecerem que um não completa o outro. A entrada do pai provoca uma estrutura, convoca à cena edípica.

O pai, segundo Lacan (1957-1958, citado por, Couto, 2011), no complexo de Édipo, intervém em diversos planos, porém sua intervenção central é proteger o filho do risco de devoração, ar-ticulando o princípio do complexo de Édipo à lei da proibição do incesto. É tarefa da função paterna é dar condição para que o filho possa ser desejante.

O pai biológico, conforme Flecha (2004) é um, entre os outros possíveis, operador que organiza a cadeia de significantes e barra a satisfação incestuosa mãe-criança ao unir o desejo à lei. Com a ausência em sua função, a lei não vigora. Quando esse pai falha em cumprir sua função de ser agente da castração, de acordo com Bernardino (1997), o sintoma da criança se apresenta como uma ferramenta para barrar o gozo e fazer surgir o sujeito do desejo.

Avaliando o sintoma de Ricardo atrelado ao que falta a essa mãe que “não vê e não sabe” e ao “não ver e não saber” de

um pai gozador, que falha em proteger o filho, pode-se inferir a existência de uma articulação entre seu sintoma e o declínio da função paterna.

A psicanálise, principalmente a de orientação lacaniana, en-tende a alienação da criança ao discurso da mãe como a expres-são do fracasso da articulação dos significantes parentais e da lei. Neste sentido, o sintoma é um dispositivo que protege a criança de permanecer alienada à mãe. Portanto, pode-se pensar o sin-toma de Ricardo como uma resposta ao que há de sintomático nessa estrutura familiar.

Nos últimos atendimentos, realizados com Ricardo, ele falou do delito do pai e manifestou alguns desejos: “Hoje vou brincar com os tijolinhos. Acho que ainda sei construir um castelo. [...] Vou fazer um buraco aqui e um aqui, mas não vai cair, porque eu enxergo bem e sei onde posso mexer. Vamos jogar varetas, [...] eu pego muitas, porque vejo as que estão livres e sei como fazer para pegar a de cima, sem mexer as outras. Quando você voltar de férias, vamos montar um quebra cabeça”.

Durante o tratamento psicanalítico de Ricardo, foi possível verificar o deslocamento do sintoma de um significante a um ou-tro significante, ao possibilitar que seja dito o que ainda não foi colocado em palavras.

ReFeRÊNcIasBERNARDINO, Leda Mariza Fischer. Sim, Toma! In: _____ (org.). Neurose

infantil versus neurose da criança. Salvador: Algama, 1997. p. 53- 65.

COUTO, Margaret Pires do, O fracasso escolar e a família: o que a clínica

ensina? Belo Horizonte: Faculdade de Educação/UFMG, 2011.

CHAVES. Maria Prisce Cleto Teles. Ausência paterna e o impacto na men-

te da criança. 2008. Disponível em: http://www.fundamentalpsychopathology.

org/8_cong_anais. Acesso em: 15 abr. 2012.

FLECHA, Renata Dumont. Freud e a função paterna: psicanálise e reli-

gião. Belo Horizonte: Newton Paiva, 2004.

LACAN, Jacques, 1901-1981. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003,

p.369-370.

TENDLARZ, Silva Elena. De que sofrem as crianças? A psicose na infância.

Rio de Janeiro: Sete Letras, 1997.

NoTas De RoDaPÉ1 Acadêmica de nono período do curso de Psicologia do Centro Universitário

Newton Paiva.

2 Psicóloga e Professora do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton

Paiva

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o sINToma Da cRIaNÇa e o DeseJo Do oUTRoHélida Rabelo Fonseca1

Margaret Pires do Couto2

ResUmo: O presente artigo visa discutir o sintoma da criança e sua relação com os pais. Para tanto, fez-se a revisão do conceito de sintoma para Freud para, em seguida, trabalhar-se em torno da exposição de Lacan acerca do sintoma e da clínica da criança.

PalavRas-chave: Sintoma. Criança. Psicanálise.

Freud, em Sintoma, Inibição e Angústia (1926 [1925], p. 95), indica que sintoma “é um sinal e um substituto de uma satisfação” pulsional que decorre do processo de recalcamento. Como for-ma de exemplificar, Freud (1926 [1925], p. 105) afirma que, no caso Pequeno Hans, não é o medo que Hans tinha de seu pai um sintoma, mas o deslocamento realizado de substituição do pai ao cavalo, que produziu o medo do último.

Para a psicanálise, o sintoma tem um sentido. Quinet (2008, p. 131) aponta dois caminhos para esta compreensão: um pri-meiro, em que o sintoma apresenta um sentido não propria-mente a priori, mas que, quando constatado, “leva alguém a procurar saber qual é o seu sentido”, e um segundo em que “o sentido do sintoma é o sentido que o sujeito atribui aos ditos do Outro, que ele interpreta como desejo do Outro”. Vale ressal-tar que, no caso que se seguirá, observarvar-se-á principalmente este segundo ponto.

Uma criança de oito anos foi trazida para atendimento psi-cológico na clínica de psicologia do Centro Universitário Newton Paiva por iniciativa da própria mãe. Durante o relato da queixa inicial, a mãe afirma que seu filho tem fracassado na escola, o que lhe causa muito sofrimento, uma vez que o sucesso escolar faz parte de uma grande expectativa da mãe. Segundo ela, boa parte do fracasso advém do pouco esforço que o filho faz para atender suas orientações quanto aos estudos.

A mãe relata, repetidas vezes, a hostilidade da criança dire-cionada aos professores e escola onde estuda. Certa vez, ao ser questionada sobre o desejo da criança em estudar nessa escola, a mãe afirmou que, enquanto crianças, não é possível que os filhos possuam muita autonomia e precisam, desta forma, atender aos desígnios dos pais. Relata que fez a escolha (da escola) para o filho pelo fato de ter desejado, em sua juventude, estar no lugar onde ele se encontra agora, reforçando que desejara que seu pai lhe tivesse dado tal oportunidade e que, desde então, objetivara que, se tivesse um filho, ele receberia esta dádiva.

A criança trazia aos atendimentos uma angústia a tal ponto

de sentir que as paredes pareciam vir a esmagá-la em certo mo-mento. Por várias vezes, durante brincadeiras, simulava uma luta entre um mocinho que morre ou não se recupera de um com-bate e um monstro vitorioso. Além disto, nos jogos realizados em consultório, hora demonstrava empenho para vencer, hora fazia de tudo para causar um empate. À luz da psicanálise, pode--se compreender que o movimento de sempre buscar “empatar com o Outro”, representava uma tentativa de preenchimento da demanda exigente deste Outro, ou seja, não desagradá-lo. A análise pode ser complementada pelo ensinamento de Quinet (2008, p. 130) de que a verdade do sintoma se manifesta para o sujeito “como uma mensagem cifrada do Outro cujo significado ele deve decifrar”.

Em certa sessão, enquanto a mãe expunha suas queixas em relação ao filho, a criança a interrompe dizendo ser muito difícil entender o que realmente a mãe quer. Lacan (2003, p. 369) aponta que “o sintoma da criança acha-se em condição de res-ponder ao que existe de sintomático na estrutura familiar”. Isso leva a compreender que, para a psicanálise, o sintoma da criança está relacionado aos seus pais e a suas subjetividades. Contudo, como indica Spínola (2001, p.62), Freud direciona “mais além das carências do ambiente familiar na determinação e na escolha da posição do sujeito, e mais além de uma dimensão realista da implicação subjetiva dos pais no sintoma da criança como tam-bém no seu tratamento.” É a cena fantasmática que define a re-alidade do sujeito.

Spínola (2001, p. 66) ainda indica que são duas vertentes sintomáticas advindas da criança: “o sintoma que responde à ver-dade do par familiar e o sintoma que diz respeito à verdade da mãe”. No caso supracitado, percebe-se que o sintoma da criança diz respeito à primeira vertente, ou seja, o sintoma apresenta aquilo que tropeça na relação do par parental.

Ao longo dos atendimentos, percebe-se que o terceiro na relação mãe-criança, o pai, é muito depreciado pela mãe que, de algum modo, o considera um fracasso. A criança traz ao con-

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sultório relatos sobre o fracasso do pai, como dizer que ele não possui determinado veículo desejado pela mãe, mas, em seu lu-gar, um que se torna seu alvo de zombaria. No decorrer dos atendimentos, percebe-se que a criança traz uma identificação a esta posição de fracasso do pai afirmada pela mãe, ao ponto de repetir até mesmo um objeto de medo deste.

Spínola (2001, p. 67) aponta que “de fato, não há criança que não esteja incluída como objeto no fantasma da mãe. É com seu fantasma que ela acolherá a criança. É seu fantasma que lhe possibilita subjetivar a criança real”.

Por outro lado, Spínola (2001, p. 65) também ensina, a par-tir de Lacan, que a intervenção no complexo de Édipo decorre dos efeitos da presença do significante do Nome-do-Pai no in-consciente da criança, instalando “a dialética do desejo no lugar do Outro”. O caso nos ilustra tais pontos: a criança afirma que, quando crescer, terá um carro ainda melhor que o desejado pela mãe e melhor do que o pai tem. Contudo, diz que a mãe nunca entrará nele, pois não terá sua autorização. Assim, se por um lado, o sujeito adere a este desejo do Outro, por outro, demarca seu lugar de sujeito desejante ao colocar um obstáculo em satisfazê-lo plenamente.

Diante de tais exposições, cabe ressaltar que psicanálise não visa direcionar objetivamente os pais às supostas posições que po-

deriam indicar seus filhos a uma vida saudável. Pode-se identificar que esta é uma clínica da escuta, o que indica a importância de, na clínica de crianças, ouvir as crianças, mas também aos pais.

ReFeRÊNcIasFREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade, 1926 [1925]. In: ______. Um

estudo Autobiográfico, Inibições, Sintoma e Ansiedade, Análise leiga e

outros trabalhos. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu e Cristiano Mon-

teiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996, v. XX, p. 81 – 171.

QUINET, Antonio. A descoberta do inconsciente. In: ______. As vertentes do

sintoma. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 117 – 156.

LACAN, Jacques. Nota sobre a criança. In: ______. Outros Escritos. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 369 – 370.

SPÍNOLA, Suzana Barroso. Psicanálise de criança: A presença dos pais. Revista

Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, v. 15/ 16, p. 61 – 68,

abr. 2001.

NoTas De RoDaPÉ1 Aluna do Centro Universitário Newton Paiva

2 Professora do curso de psicologia do Centro Universitário Newton Paiva

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a percepção de si a partir da autoimagem: um caso clínicoLuciana Neves Ferreira1

Raquel Neto Alves2

ResUmo: O artigo a seguir trabalha a autoimagem e a sua relação com o corpo, com o tempo e com a morte, a partir da teoria Existen-cial–Fenomenológico. Será realizada uma interlocução com um caso clínico para melhor elucidação da questão.

PalavRas-chave: Autoimagem. Corpo. Tempo. Morte. Existência.

O presente trabalho pretende articular a experiência clí-nica de uma cliente atendida na Clínica do Centro Universi-tário Newton Paiva, durante o período de um ano. Para isso, articula os conceitos da Teoria Existencial-Fenomenológico. Para preservar sua identidade, a cliente receberá um nome de fictício, de Joana.

Joana traz para o setting psicoterapêutico uma dificuldade em relação à sua autoimagem, possuindo uma concepção ne-gativa de si. Essa dificuldade impossibilita Joana a compreender e dar significado ao seu projeto de vida e faz com que ela vi-vencie um mal-estar em relação ao seu corpo. Também não consegue lidar com a questão da temporalidade. Erthal (1989, p.65) considera que “para encontramos o projeto original de um indivíduo, precisamos compreender a imagem que ele aprendeu a ter de si próprio; a totalidade de significação que ele assegura à sua existência”. Desta maneira, articula-se a teoria com algumas situações trazidas por Joana no encontro psicoterápico.

Para compreender a existência do ser humano, é necessá-rio percebê-la em sua totalidade, em seu processo de abertura, como ser-no-mundo. A teoria Existencial–Fenomenológico afir-ma que a existência precede à essência. Isso significa dizer que o homem não possui uma essência pronta, algo já determinado, é sempre um vir-a-ser. Assim, a existência não é concebida como algo estável. Ela está sempre em um processo de construção. É, a partir das escolhas que o indivíduo realiza em sua vida ligada à sua existência, que ele poderá construir o seu ser.

Porém, escolher não se constitui em uma missão fácil, Erthal (1989) menciona que escolher se torna um risco, por causa, de sua incerteza. Nesse manejo, existir é escolher, é escolher sua essência. Assim, a pessoa no processo, se expõe ao risco de ter que se deparar com a responsabilidade de construir por si só o destino de sua vida. No projeto de existir, ela é sempre um de-vir. Na visão heideggeriana, o ser humano deve ser compreen-dido como um Dasein, ou seja, o ser-aí, o homem em abertura para o mundo.

O ser humano, conforme relatado por Erthal (1989), é um

ser paradoxal, pois consegue descrever-se externamente para alguém, porém, possui dúvidas a respeito de sua identidade. Não consegue, por vezes, dizer o significado de sua própria vida. Nesse contexto, o significado que se encontra está ligado às escolhas que se realizam. O valor que se dá às coisas destaca na verdade a autoimagem. A autoimagem do indivíduo irá de-terminar seu comportamento perante o mundo. Desta forma, compreender a imagem é assumi-la com responsabilidade. E ter consciência de seu projeto é uma escolha que acarretara riscos para a vida da pessoa.

A autora citada pondera ainda que a existência psicológica de uma pessoa encontra-se na forma de um eu. Logo, o primeiro aspecto a ser desenvolvido é o eu-corporal. Sendo o corpo a parte material mais visível, é ele que será o principal fundador para a identidade. “O esquema corporal proporciona o conheci-mento da posição do corpo. Schilder o preferiu chamar de ima-gem corporal”. (SCHILDER, 1950 apud ERTHAL, 1989, p.60).

Pode-se compreender que a imagem que o indivíduo tem de si está interligada com a relação dele com o próprio corpo. Esse corpo irá interligar a pessoa com o mundo no qual ela está envolta. O corpo como meio de comunicação e interlocução com a imagem do eu irá permitir que o indivíduo possa realizar não somente uma interpretação do que ele percebe que é, mas também do que ele deseja ser.

Augras (1989, p. 39) considera que, “o corpo tem como função estabelecer a relação entre o eu e o mundo exterior. Manifestação da individualidade, garantia da identidade, o corpo expressa toda a ambigüidade existencial”. Assim, em uma visão Existencial-Fenomenológico, o corpo é compreendido como uma expressão da manifestação da subjetividade. É nesse corpo que se vai experienciar a percepção de si e do mundo. Essa per-cepção de si e do mundo diz respeito a como cada pessoa lida com sua identidade corpórea, ou seja, de como cada pessoa se percebe e relaciona com as coisas que estão à sua volta.

Em relação à Joana, percebe-se que ela tem uma deprecia-ção de sua autoimagem. Não consegue enxergar-se em seu pró-

Revista de Psicologia l 15

prio projeto vital. Essa diminuição, em relação a sua autoimagem, foi transferida diretamente para o corpo. Ela se percebe como sendo uma pessoa feia, (sic) “Não me acho bonita. É desde sem-pre. Nunca me achei bonita. Não consigo me olhar no espelho. Quando vou olhar no espelho só olho para arrumar meu cabelo. Nunca olho verdadeiramente. Não consigo me ver”.

A cliente traz uma angústia em relação à sua imagem corpo-ral. Ela, por vezes, menciona que o que é pior em seu corpo é a barriga. Joana possui um horror em relação à barriga, deslocando esse sentimento para as outras pessoas, principalmente para os homens. Segundo Joana, ela não suporta homens barrigudos, (sic) “não suporto homens barrigudos, nunca me imaginei possuindo algum relacionamento com um homem assim”.

A percepção que Joana tem de si compromete a sua forma de relacionar com os outros, pois sempre se coloca em uma posi-ção de inferioridade. Em vários momentos, a cliente relata possuir um grande talento para fazer trabalhos manuais, realizando es-ses, muitas vezes, na escola onde trabalha como faxineira. Obtém como resposta dos outros muitos elogios. Ao ser questionada so-bre por que não utiliza suas possibilidades como trabalho, ela não acredita que seja capaz de realizar tal tarefa.

Quando se fala de corpo não se pode desvincular a relação que possui com o tempo. A questão da temporalidade para a abordagem Existencial–Fenomenológico é diferente da relação que o senso comum em geral, lida com a questão do tempo. Conforme Michelazzo (2003), o tempo não é um conceito, nem algo que se trata fora do homem. Não é o tempo cronológico, que se observa em relógios. Não é um tempo dado, nem conta-bilizado nos calendários.

Michelazzo (2003, p. 27), relata que:

só poderemos finalmente, compreender o fenômeno funda-mental do corpo, como expressão da existência temporal, quando, então esse cruzamento de encontros for por nós pensado, experimentado, assumido. Só assim nosso corpo, tal como as mãos do poeta, poderá realizar o seu miste-rioso destino de ser corpo, enquanto porta de acesso ao Aberto da existência.

Em relação à dimensão temporal, Joana tem dificuldades em lidar com sua idade. Ela tem 50 anos, mas sempre em seu discur-so quer deixar bem claro que não se percebe com essa idade. Diz sentir-se jovem, que se percebe como uma pessoa animada, ex-trovertida e bem humorada. Porém, traz consigo um sentimento de que em sua vida tudo ocorreu muito tarde. (Sic) “Meu primei-

ro emprego, eu tinha 35 anos. Meu primeiro relacionamento, de verdade, foi com mais de 40. Meu filho nasceu quando eu tinha 45 anos. Tudo em minha vida é tarde”.

Nota-se que Joana sente que os acontecimentos em sua vida são vivenciados tardiamente, causando, assim, certo hor-ror com o seu passar. Esse tempo reflete sua imagem, seu corpo. Um corpo não mais jovial. Não possui a mesma vitali-dade de antes.

Nessa percepção do tempo, o futuro é algo que jamais po-derá ser dado. Muitas vezes, ele poderá ser sonhado ou temido. Essa limitação causa na pessoa certa valorização de seu futuro, na vivência do seu presente e na tentativa de entender seu passado. A esse horizonte existencial se dá o nome de morte. “O ser para frente de si mesmo nada mais é do que o ser para a morte” (AU-GRAS, 1986, p.32).

O medo da morte é uma realidade trazida por Joana dentro do encontro psicoterápico. Joana já chegou a dizer que possui muito medo de morrer. Ela se justifica dizendo que o medo está ligado à preocupação com o filho pequeno. Relata que tem medo de morrer, pois saberia que seu filho ficaria desamparado, já que ela é quem o cria sozinha.

Joana relata que não consegue se envolver com homens de sua idade, que sua atração é apenas por homens mais jovens. Menciona que o pai de seu filho é mais de 20 anos mais jovem do que ela. Mesmo hoje, não possuindo um relacionamento, quando pensa em um homem para se relacionar, sempre lhe vem em mente homens mais jovens.

Pode-se pensar na hipótese de Joana, por vivenciar o medo da morte e ter horror com o passar do tempo, não consegue se envolver com homens da sua idade, porque eles são como espe-lho, do que ela é, um ser de finitude.

Assim pode-se compreender que a cliente busca a ajuda psi-coterápica por ter uma dificuldade para aceitar a sua autoimagem. Desta forma, conforme Erthal (1989), o trabalho da psicoterapia é possibilitar que o cliente possa compreender e determinar qual é a sua autoimagem. O psicoterapeuta deverá buscar o sentido que o indivíduo dá para sua existência. E tentar compreender como que ele lida com sua autoimagem, seu corpo, com o tempo e com a questão da morte. O processo psicoterápico irá proporcionar o cliente uma maximização de sua autoconsciência, aumentando, assim, suas possibilidades de escolhas.

Compreender as possibilidades que cercam seu projeto exis-tencial permitirá que o indivíduo seja autêntico em suas escolhas, tomando a direção de sua vida de forma mais responsável e reco-nhecendo em si mesmo as suas próprias escolhas.

16 l Revista de Psicologia

ReFeRÊNcIasAUGRAS, Monique. O ser da compreensão: fenomenologia da situação de

psicodiagnóstico. 3ed. Petrópolis: Vozes, 1986. 96 p.

ERTHAL, Tereza Cristina Saldanha. Terapia vivencial: uma abordagem existen-

cial em psicoterapia. Rio de Janeiro: Vozes, 1989 183 p.

MICHELAZZO, José Carlos. Corpo e tempo. Associação Brasileira de Da-

seinsanalyse. São Paulo, n. 12, 2002.

SCHILDER, P. The image and appearence of th human body. Nova Iorque, In-

ternacional University Press, Inc, 1950 apud ERTHAL, Tereza Cristina Saldanha.

Terapia vivencial: uma abordagem existencial em psicoterapia. Rio de Janeiro:

Vozes, 1989 183 p.

NoTas De RoDaPÉ1 Aluna do curso de Psicologia, do Centro Newton Paiva.

2 Professora Supervisora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.

Revista de Psicologia l 17

De quem é o sintoma?Marcela Diegues Sarti Silva1

Margaret Pires do Couto2

ResUmo: Este artigo fundamenta-se na prática do Estágio Supervisionado IV oferecido pela Clínica de Psicologia Newton Paiva. O objetivo é discutir o que é o sintoma da criança e como se apresenta na clínica. Além disso, indaga-se qual a posição do analista na clínica da criança. Para essa discussão, partiu-se do conceito psicanalítico de sintoma da criança, trabalhado por Lacan no seu texto “Nota sobre a criança”.

PalavRas-chave: Sintoma da criança. Psicanálise.

Laura3 é uma menina de oito anos de idade, filha de pais separados. A queixa da mãe, que vem se repetindo desde a ins-crição na clínica, refere-se ao medo de que a filha se ressinta pelo fato de seu pai não morar com ela, de não estar presente em sua vida, como os pais de outras crianças.

No decorrer dos atendimentos, Laura conversa bastante, é brincalhona, reclama das médias perdidas e do excesso de dever de casa, porém não aparece a queixa trazida pela mãe. Aliás, a criança quase não fala sobre o pai e a qualquer questionamento sobre ele Laura responde de forma sucinta e não rende o assunto. Apenas uma única vez, Laura diz que o final de semana foi “ruim”4, pois teve aula no sábado e não pôde ver o pai naquela semana5.

Em um dos atendimentos, Laura relata que faz de tudo para agradar a mãe, mas que para esta nada está bom. Além disso, Laura acostumou-se a levar duas pastas para os atendimentos, cada uma com folhas, estojo e lápis de cor. Indagado o porquê de duas pastas, ela respondeu que uma era da sua mãe e a outra do seu pai.

A partir das conversas na supervisão, foi estabelecido que se deveria desvalorizar as pastas, ou seja, não dar importância a elas como era de costume. Essa orientação baseou-se na hipótese de as pastas representarem os próprios pais, não podendo haver um entendimento entre ambos. Atualmente, Laura não leva as pastas para o atendimento, a cada dia ela traz uma novidade, maquia-gem, esmaltes ou bonecas.

Durante as entrevistas com a mãe de Laura, foi escutado que a queixa trazida à clínica era uma demanda dela, a qual tem difi-culdade em lidar com as questões da separação, principalmente, no que tange à divergência de comportamento entre ela e o ex--namorado. Ademais, verificou-se que a mãe de Laura não faz distinção entre o pai da paciente e o homem que existe além deste pai, o que provoca conflitos na relação entre os três, mãe--criança-pai.

No último atendimento com a mãe de Laura, apareceram queixas pessoais. Se antes todo o discurso da mãe estava voltado

para as questões da criança, agora a mãe diz de si, da mulher que existe por trás da mãe. Dessa forma, pode-se questionar de quem era a demanda? Será que Laura apresenta algum sintoma? O que cabe ao analista em uma situação como essa?

Para tentar esclarecer tais questões, partiu-se do conceito de sintoma da criança. Segundo Lacan (1969), o sintoma da criança responde ao que há de sintomático na estrutura familiar, a saber, ou o sintoma revela a verdade do par parental ou ele responde ao fantasma da mãe. De tal modo, compreende-se que o sintoma da criança é uma maneira encontrada pela própria criança de inscre-ver-se no discurso familiar. Ainda, conforme Fléchet6 (1989, apud FERREIRA, 2000), o sintoma da criança não tem um enunciado próprio e sim, encarna o dizer dos Outros que trazem a queixa.

Laura encontra-se nessa posição de resposta, de atender a demanda do Outro, da mãe. Ao dizer: “Faço tudo para agradar ela7, mas para ela nada está bom.”, pode-se interpretar que Laura responde ao que há de sintomático na estrutura familiar, pelo fato de que não há relação sexual, ou seja, entre os pais algo sempre tropeça. Outrossim, Laura encarna o sintoma da mãe, apresen-tando, no brincar, a dificuldade do encontro entre a mãe e o pai, o que por sinal, é um receio da mãe.

Laura ocupa o lugar de sutura da falta da mãe, mas fracassa nisso. A mãe abdicou das amizades, da faculdade e até do dinheiro em prol da filha. Queixa-se que não tinha outra opção. Surge, na fala, o sintoma da mãe. Um sintoma não significado por Laura, apenas respondido.

A função da análise, nesse sentido, é deslocar a criança do lugar que ela ocupa, bem como proporcionar que o sujeito cons-trua seu próprio fantasma e encontre a causa do seu desejo. (FER-REIRA, 2000) Dessa forma, na clínica da criança, é importante a presença dos pais para que se possa implicá-los “naquilo que se queixam.” (FERREIRA, 2000, p.63) No caso de Laura, escutar a mãe possibilitou a implicação dela (a mãe) na queixa, diferen-ciando o que é dela e o que é de Laura e surgindo, então, uma demanda de análise da mãe.

18 l Revista de Psicologia

O caso de Laura, juntamente com a orientação lacaniana, mostra como é tênue a relação entre o sintoma da criança e o sintoma dos pais, uma vez que o sintoma da criança revela o que há de não dito no discurso parental. A verdade velada é desvelada através do sintoma da criança. Portanto, a criança apresenta o que há de insuportável no discurso parental, sendo então, levada para análise. O dever ético do analista é diferenciar qual é o sintoma da criança e qual o sintoma dos pais. (FERREIRA, 2000, p. 121)

Neste caso, não se sabe ao certo qual o sintoma de Laura, contudo ela está saindo dessa posição de resposta ao sintoma do Outro para construir seu próprio sintoma. Ou seja, segundo Lau-rent, Laura deixa de se perguntar “o que quer minha mãe?”8 e começa a se perguntar “o que quer a mulher?”9.

A mãe de Laura iniciou um atendimento psicológico e impli-cou-se nas queixas trazidas, percebendo que o motivo que levou Laura ao atendimento é uma questão sua (da mãe). No entanto, coube escutar tanto o sintoma da filha quanto o da mãe e possibi-litar a construção do sintoma da criança.

ReFeRÊNcIasFERREIRA, Tânia. As estruturas clínicas. In: ______. Escrita na clínica: psicaná-

lise com crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.47-84.

FERREIRA, Tânia. A posição dos pais na psicanálise com crianças. In: ______. Escrita

na clínica: psicanálise com crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.111-126.

LACAN, Jacques. Nota sobre a criança. In: ______. Outros Escritos. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 369-370.

LAURENT, Eric. Existe um final de análise para as crianças. Revista Opção

Lacaniana, n. 10. Abril/Junho, 1994.

NoTas De RoDaPÉ1 Aluna do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.

2 Psicóloga e Professora do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.

3 Nome fictício dado à cliente, a fim de preservar sua identidade.

4 Fala da paciente Laura

5 O pai de Laura há vê aos sábados, caso ambos não tenham compromissos.

6 SOUZA, Auduísio (org). FLÉCHET, Martine Lerude. Algumas observações sobre

os sintomas da criança, Psicanálise de crianças – interrogações clíni-co/teóricas, v.1. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

7 A mãe.

8 LAURENT, Eric. Existe um final de análise para as crianças. Revista

Opção Lacaniana, n. 10. Abril/Junho, 1994.

9 LAURENT, Eric. Existe um final de análise para as crianças. Revista

Opção Lacaniana, n. 10. Abril/Junho, 1994.

Revista de Psicologia l 19

Déficit de atenção ou resposta do sujeito?Marcos Gomes Ferreira

Rosângela Pereira do PatrocínioMargaret Pires do Couto

ResUmo: Este artigo tem como objetivo discutir os efeitos produzidos em um grupo de crianças com queixas de dificuldade escolares, in-quietude, agressividade e algumas com diagnóstico de TDAH, que foram encaminhadas para tratamento na clinica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. Esses comportamentos inadequados para o ambiente escolar foram tratados como uma resposta do sujeito e não como déficits diversos.

PalavRas-chave: Psicanálise. Dificuldades escolares. Agressividade. TDAH.

Os atendimentos clínicos foram realizados na Clínica de Psi-cologia do Centro Universitário Newton Paiva com três crian-ças entre 11 e 12 anos, por dois estagiários, na disciplina Estágio Supervisionado IV, Estágio Conversando com as crianças, sob a supervisão da professora Margaret Pires do Couto.

Primeiramente, foram realizadas entrevistas com os respon-sáveis pelas crianças que trouxeram a história de vida delas e a queixa que apresentavam no momento. Apresentaram também relatos de profissionais da escola onde elas estudam. As principais queixas diziam respeito à dificuldade de concentração, à agitação em sala de aula, à dificuldade em prestar atenção nas atividades propostas, que foram nomeadas pelos educadores como déficit de atenção e hiperatividade.

A partir das entrevistas com os responsáveis e dos aten-dimentos das crianças, pôde-se constatar que as dificuldades apresentadas pelos sujeitos constituíam uma resposta às situa-ções vivenciadas no dia a dia, seja com seu Outro parental ou Outro escolar.

Durante os referidos atendimentos, pôde-se verificar tam-bém que a instalação da transferência possibilitou uma escuta dos sintomas como uma mensagem, ou seja, como querendo dizer alguma coisa. O acolhimento da mensagem e o trabalho de decifração de seu sentido permitiu, por parte dos sujeitos, uma construção de saber sobre aquilo que estava bem em sua vida. Após algumas sessões, as mães foram ouvidas novamente e rela-taram que houve melhora das crianças referente à queixa trazida.

O sintoma da criança, para Lacan (2003), é um “representan-te da verdade”, respondendo ao que há de sintomático na estrutu-ra familiar. É um sintoma que pode representar o sintoma do casal

ou ser produto da subjetividade da mãe, como “correlata de uma fantasia que a criança é implicada” (LACAN, 2003, p. 369).

Lacan discute o sintoma da criança em dois momentos fundamentais de seu ensino: em 1956/1957, no Seminário 4: A relação de objeto e, em 1969, em Notas sobre a crian-ça. No primeiro momento, no seu Seminário, Lacan eviden-cia a clínica da neurose como uma clínica das questões, na medida em que a neurose é organizada e estruturada como uma questão, uma “questão fechada” para o sujeito. O sinto-ma advém de como uma resposta é dada pelo sujeito a essa questão, mas não sabe a que responde. Na clínica das ques-tões é preciso que o analista faça uma escuta das modalida-des de resposta que o sujeito produz e que se manifestam pela via do sintoma, uma resposta inventada ao enigma que é, para o sujeito, o Outro.

É nesta vertente, na escuta da criança como sujeito do in-consciente, que o analista virá a operar, possibilitando que ela venha a formular uma questão, dirigir ao analista seu sintoma com valor de mensagem e, sob transferência, venha a produzir algum saber sobre a falta do Outro.

Desse modo, os atendimentos com as crianças nos permi-tiram perceber que a prática clínica, ao oferecer a palavra, dá condições de mediar as situações conflitantes para o sujeito. A conversação em grupo, ao fazer circular a palavra, oferece uma troca de saberes e experiências permitindo a cada um elaborar e construir soluções inéditas para os impasses que vivenciam.

O resultando disso foi a melhora dos sintomas trazidos no momento da entrevista e permitindo então a essas crianças reor-ganizar seus laços sociais.

20 l Revista de Psicologia

ReFeRÊNcIasFERREIRA, Tânia. A escrita da clínica: psicanálise com crianças. Belo Horizon-

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RABINOVICH, Diana S. O psicanalista entre o mestre e o pedagogo. In:

Cadernos de Psicologia. Belo Horizonte, 2001.

NEME, Leila. O a–prender na constituição do sujeito. A criança e o sa-

ber. Publicação da Letra Freudiana – Escola de Psicanálise, n.23, 1999.

LACAN, Jacques. Os Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

LACAN, Jacques. Nota sobre a criança. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1993.

LACAN, J. O seminário, livro 4: a relação de objeto (1956/57). Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1995. 456 p.

NoTas De RoDaPÉ1 Aluna do curso de Psicologia, do Centro Newton Paiva.

2 Professora Supervisora do curso de Psicologia do Centro Universitário

Newton Paiva.

Revista de Psicologia l 21

a contribuição da psicanálise para a educação Roberta Ribeiro Barbosa1

Margaret Pires do Couto2

ResUmo: O presente artigo pretende apresentar a contribuição da psicanálise à educação. Para tanto, se fez necessário apresentar um es-tudo teórico sobre a sexualidade infantil, sobre o surgimento do desejo de saber nos sujeitos e sobre a transferência. Para ilustrar a discussão, apresenta-se um caso clínico, que demonstra o deslocamento do sujeito em sua pulsão de morte em pulsão de saber.

PalavRas-chave: Sexualidade. Pulsão de saber. Transferência. Pulsão de morte.

Quais as contribuições da psicanálise à educação e ao campo da aprendizagem? Segundo Kupfer (1989), entre as obras comple-tas de Freud, menos de 200 páginas são dedicadas às reflexões, análises e críticas sobre a educação. Estas páginas estão dispersas ao longo de sua obra em textos que tratam de diferentes questões. Essa dispersão não indica um descaso de Freud, mas, ao contrário, a educação o acompanhou por toda a extensão da sua obra.

Freud escreveu um ensaio em 1905, intitulado: “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, sendo “A sexualidade in-fantil”, o segundo ensaio. Nesse ensaio, Freud (1905) demonstra que a pulsão sexual, pode ser decomposta em pulsões parciais. De acordo com Kupfer (1989), Freud descobre que, durante a constituição sexual dos seres humanos, há práticas de natureza perversa que, mais tarde, não resistirá à repressão, pois terá que se submeter ao domínio das práticas genitais com o objetivo da procriação. Têm-se como exemplos as práticas perversas: exibi-cionismo, curiosidade relacionada aos órgãos genitais das outras pessoas, manipulação dos órgãos genitais, prazer de sucção, pra-zer ligado à defecação, entre outros. As perversões adultas seriam resultados da permanência de uma dessas perversões parciais in-fantis que se recusaram ao domínio da genitalidade.

Assim, Kupfer (1989) afirma que as pulsões parciais possuem e a sexualidade infantil confirma um caráter errático. A pulsão sexual é passível de se dirigir a outros fins que não sejam necessariamente sexuais, já que o objeto pelo qual se satisfaz lhe é indiferente e o seu objetivo pode ser atingido por caminhos diversos. Contribuin-do desta forma, para os estudos de Freud e a educação.

Nesse caso, a pulsão sexual é capaz de dirigir-se por caminhos socialmente úteis, ou seja, é passível de sublimação, tendo a educa-ção um papel primordial neste processo. Com isso, torna possível que o individuo se volte para atividades socialmente aceitáveis e va-lorizáveis, sendo elas: a produção científica, artística e todas aquelas que promovem uma qualidade de vida aos seres humanos.

Desse modo, de acordo com Kupfer (1989), para Freud, a origem propulsora do desenvolvimento intelectual é sexual. A pulsão poderá ser sublimada em pulsão de saber. No entanto, Freud nunca se preocupou em construir métodos educativos ou técnicas. Esperava que os próprios educadores, tomando conhe-cimento das teorias psicanalíticas, se encarregassem disso. Assim, Kupfer (1989) exemplifica: o educador, orientado psicanalitica-mente, poderia oferecer argila a uma criança que manipulasse suas fezes em vez de agir com fúria e recriminação, ameaçando esta criança com castigos.

No intuito de ilustrar a discussão da contribuição da psica-nálise ao campo do saber, apresentar-se-á o caso de João³, um garoto de 11 anos, que foi encaminhado a Clínica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva, com a queixa inicial de dificuldades de aprendizagem e oferecimento do seu corpo ao perigo. Esta queixa foi trazida por sua avó que possui a guarda de João devido ao abandono da mãe.

João, frequentemente, trazia nos atendimentos, discursos de morte retratados pelos filmes, pela música, pelas estórias e pelo diálogo. Têm-se como exemplo as estórias relatadas de assassina-to e de cadáver, as conversas sobre o momento da morte dele e da estagiária, o relato dos filmes, Exterminador do futuro, Palhaço assassino e Boneco assassino, entre outros.

De acordo com a avó, constantemente, João estava envolvido em acidentes, sendo necessária, certa vez uma intervenção cirúrgi-ca. Este oferecimento do corpo ao perigo e o discurso de morte revelam a tendência à autodestruição, ou seja, a presença da pulsão de morte na subjetividade da criança e sua colocação em ato.

No decorrer dos atendimentos, foi possível perceber o deslo-camento operado por João para a dimensão mortífera de seus atos. Como diz Freud (1913), João estava se deslocando para discursos socialmente úteis: ele disse que, quando fosse adulto, seria bom-beiro ou químico, profissões que demandam cuidado, já que traba-

22 l Revista de Psicologia

lham com o perigo. Também começou a produzir desenhos que, de acordo com ele, são “desenhos artísticos”. É neste momento que João demonstra seu interesse pela natureza e pela vida.

João passa então a demonstrar interesse por outras coisas que não diretamente pela morte, apesar de ela estar implícita na profissão que diz querer seguir. Enfim, percebeu-se a possibilida-de de reorientação de sua pulsão de morte em pulsão de saber.

ReFeRÊNcIasFREUD, Sigmund. A sexualidade infantil. In:______. Três ensaios sobre a Te-

oria da Sexualidade. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.

177- 206. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas,7.)

______. O interesse educacional da psicanálise. Trad. de Jayme Salomão. Rio de

Janeiro: Imago, 1996. p. 224- 226. (Edição standard brasileira das obras psicoló-

gicas completas,13.)

KUPFER, Maria Cristina. Freud e a educação: o mestre do impossível. São

Paulo: Scipione, 1989. (Série: Pensamento e Ação no Magistério).

NoTas De RoDaPÉ1 Aluna do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.

2 Psicóloga e Professora do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton

Paiva.

Revista de Psicologia l 23

consultoria e gestão de mudanças em empresa familiar

Raquel Braga1

Sheyla Rosane de Almeida Santos2

ResUmo: O presente artigo visa discorrer acerca da mudança organizacional em uma empresa familiar. Para tal será abordada a atuação da consultoria, bem como sobre algumas dificuldades e interfaces nesses contextos. Será problematizada a atuação da consultoria em ações que convoquem mudanças organizacionais e as possíveis resistências delas decorrentes. As informações descritas nesse artigo, bem como a escolha por esse tema, tem origem em uma pesquisa, feita em uma marcenaria situada na capital de Belo Horizonte. Para a coleta de dados, foram feitas visitas iniciais para o reconhecimento da estrutura física da organização, entrevistas individuais com gestores e colaboradores, e aplicação do QDO* (Questionário de Diagnóstico Organizacional) e o IBACO* (Instrumento Brasileiro para a Avaliação da Cultura Organizacional).

PalavRas-chave: Consultoria. Empresa familiar. Mudança organizacional. Resistência à mudança.

1 coNsUlToRIa oRGaNIZacIoNal A consultoria organizacional tem sido, na atualidade, um

atrativo campo de mercado para diversos profissionais. Em tem-pos de constantes mudanças, cada vez mais, as empresas apre-sentam necessidade de adaptação, crescimento ou manutenção dos patamares já atingidos. De acordo com Oliveira (1999),

Esta situação também tem ocorrido no Brasil, principal-mente a partir de meados da década de 60, sendo que as principais causas são, primeiramente, o crescimento do parque empresarial e, em segundo lugar, a necessidade de conhecimento atualizado das técnicas e metodologias de gestão empresarial, para fazer frente ao novo contexto de concorrência entre as empresas, resultante da globaliza-ção da economia. (OLIVEIRA, 1999, p. 21)

Há uma demanda crescente em entender e identificar pro-blemas assim como se antever a eles e, nesses casos, faz-se fundamental o uso de um diagnóstico efetivo, aplicado por um profissional capacitado, que permita uma visão holística sobre a situação da empresa. Isso porque

[...] a consultoria empresarial é um processo interativo de um agente de mudanças externo à empresa, que assume a responsabilidade de auxiliar as pessoas nas tomadas de decisões, não tendo, entretanto, o controle direto da situ-ação. (OLIVEIRA, 1999, p. 30)

Para tanto, faz-se necessário salientar a importância de

um bom consultor, tendo em vista sua imparcialidade, uma vez que se trata de um agente externo, qualificado e atualiza-do (espera-se) em relação às técnicas e metodologias perti-nentes para atuação no campo organizacional.

Como um agente externo à organização, ele deve trazer um olhar “genuíno” que possibilite verificar muitas variáveis que, até então, não haviam sido percebidas pelos que passam o dia dentro da empresa. Contudo, Oliveira (1999) enfoca que o con-sultor, tal como um agente externo de mudanças, não detém um controle direto sobre a situação não sendo, assim, o único elemento responsável pela implementação do apontado como necessário nas “investigações” feitas na empresa.

Para tal, faz-se fundamental a ampla adesão, em primeira ins-tância, daqueles que estão à frente da empresa. Enfatiza-se aqui a importância de estabelecer parcerias junto aos gestores, executi-vos e profissionais da referida empresa, tendo em vista que eles devem ser auxiliados a proporcionar melhorias na metodologia de trabalho, bem como nas técnicas e processos, possibilitando uma sustentação para a tomada das melhores decisões.

Destaca-se ainda que o “olhar clínico” do consultor, que deve estar atento e apontar problemas e potencialidades da or-ganização, possivelmente, já percebidos por aqueles que traba-lham ou estão à frente da empresa. Entretanto, o que muda com a entrada desse “estranho”, conforme dito, é a presença de um olhar imparcial e técnico, possibilitando, assim, uma maior atua-ção estratégica. A ação do consultor deve também se estender ao auxílio de construções que possibilitem angariar e mobilizar recursos, disponíveis ou não, para sanar problemas ou investir em pontos fortes que, até então, não foram observados ou po-

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tencializados pela organização.Outro ponto fundamental, no que se refere à consultoria,

refere-se aos limites impostos ao trabalho. Esses serão necessá-rios, mas, em muitos casos, tratarão de sinalizar ao consultor o nível de desenvolvimento da empresa e de seus gestores para en-tenderem e consolidarem as mudanças apontadas como neces-sárias em uma análise diagnóstica. Oliveira (1999) destaca ainda que o consultor deve ser capaz de desenvolver competências e processos que possibilitem à empresa transacionar proativa e in-terativamente com os diversos fatores empresariais. Nesse caso, ressalta-se a importância de se fomentar a autonomia da empresa, tendo em vista que a consultoria deve ter objetivos, propostos a partir de um diagnóstico, que devem ser negociados cuidadosa-mente com os gestores. Tal consultoria será também perpassada pelo fator “tempo” uma vez que não se pode manter “eterna-mente” junto à empresa. E possui ainda, caráter emancipador, uma vez que deve possibilitar ao cliente um aprendizado que o auxilie a lidar com as situações que hoje demandam consultoria, em atuação autônoma, no futuro. Considerem-se, então, as pa-lavras seguintes:

O senso comum sustenta que a mudança, basicamente, é boa, além de ser um processo contínuo que não aca-ba. Entretanto, todos os projetos significativos têm come-ço, desenvolvimento e fim. Sem objetivo e sem etapas que possam ser avaliadas quantitativamente, os esforços de mudança feitos para melhorar o rendimento da empresa poderão converter-se em frases sem conteúdo. (HSM MA-NAGEMENT, 1998, p. 58; 59)

Portanto, o consultor deve estar sensível aos muitos sinais que serão apresentados acerca do preparo disponível nas ques-tões da empresa-cliente para as sugestões de mudanças propostas por ele. Ressalta-se aqui o viés interativo do processo de consul-toria. Segundo Oliveira (1999, p. 21), como processo interativo, a consultoria “é o conjunto estruturado de atividades sequenciais que desenvolvem ação recíproca, lógica e evolutiva, visando en-tender e, preferencialmente, suplantar as expectativas e neces-sidades dos clientes” podendo ocasionar profundas mudanças e respectivas resistências.

2 mUDaNÇa oRGaNIZacIoNalCada vez mais o indivíduo tem que se adaptar às transfor-

mações que incidem na sociedade, seja em função do mundo do trabalho, da escassez de tempo ou pela mudança nos atuais pa-drões familiares e relacionais. Enfim, a sociedade muda o homem

e o homem por sua vez interfere diretamente nos padrões e na forma como a sociedade e a cultura se organizam. Nas empresas a situação não é diferente. Ou seja,

As organizações, aqui no sentido amplo, evoluíram ao lon-go do tempo por variáveis dinamizadas dentro dos proces-sos civilizadores. Dependendo da maior ou menor escala de influências impostas pela cultura, o comportamento e a tecnologia as organizações passaram por processos de mudança em decorrências maiores ou menores de tempo. A capacidade inovadora da sociedade foi fundamental à ruptura de paradigmas e, naturalmente à inflexão a novos padrões de modernidade. (VIEIRA, 2003, p. 102)

As empresas estão, em sua totalidade, incluídas nessa esfera de constante mudança. As organizações que buscam longevidade e sobrevivência no mercado competitivo devem buscar se adaptar às oscilações da economia, além das mudanças nas demandas de seus clientes externos e internos, dentre outras variáveis. Adaptar--se e, consequentemente, mudar passa a ter caráter quase que obrigatório para a sobrevivência. Todavia, as alterações estratégi-cas e programadas que têm como foco os processos e a estrutura das empresas, parecem ser de extrema valia para as organizações que desejam se antever aos problemas. Assim,

Quem se adapta às mudanças apenas sobrevive. Para re-almente obter sucesso, é preciso bem mais, como ter ca-pacidade de prever as transformações e agir velozmente, além de fazer com que o maior número possível de pessoas participem do processo de transformação. (HSM MANA-GEMENT, 1998, p. 64)

Cabe ressaltar ainda que um fator parece estar presente de forma quase total na incidência das mudanças: o agente humano. São as pessoas que, na maioria das vezes, demandam, aceitam, implantam, avaliam e rejeitam a mudança. (Não necessariamente nessa mesma ordem). Assim, poder contar com todos aqueles que compõem o contexto de mudança é fundamental para sua legitimação e sucesso na organização, porque

A atividade empresarial mais importante da atualidade consiste em conceber e desenvolver mudanças em gran-de escala, a fim de melhorar o nível de rendimento. Hoje, mais do que nunca, as grandes organizações procuram adaptar-se rapidamente a um mundo em transformação, redefinindo fronteiras, remodelando processos, eliminando atividades não-estratégicas, buscando a participação de

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clientes e fornecedores. A mudança ideal afeta a integri-dade da empresa e concentra-se na estratégia. Ela leva a um rendimento elevado, melhora os resultados e termina por criar diferenças palpáveis. Alimenta-se com a energia mais intensa e com as idéias mais criativas dos funcionários. (HSM MANAGEMENT, 1998, p. 58)

As mudanças dentro das organizações são perpassadas por questões delicadas que, muitas vezes, se configuram como “re-sistência” à mudança. O fato tem caráter natural, tendo em vista a perturbação de um equilíbrio pré-estabelecido. Alterar o status quo, em muitos casos, é difícil, tendo em vista o desconforto ge-rado nas pessoas pela alteração de sua rotina de trabalho, formas de gerir, pensar, agir e se relacionar. As maneiras vigentes podem ter dado certo por muitos anos e, como tal, terem sido motivo de sucesso, lucro e reconhecimento. É claro que alterar isso pare-ce, à primeira vista, muito complicado. Kurt Lewin apud Caldas e Hernandez (2001), descreve que:

[…] as organizações poderiam ser consideradas processos em equilíbrio quase estacionário, ou seja, a organização seria um sistema sujeito a um conjunto de forças opostas, mas de mesma intensidade que mantêm o sistema em equilíbrio ao longo do tempo. Esses processos não estariam em equilíbrio constante, porém mostrariam flutuações ao redor de um determinado nível. As mudanças ocorreriam quando uma das forças superasse a outra em intensidade, deslocando o equilíbrio para um novo patamar. Assim, a resistência à mudança seria o resultado da tendência de um indivíduo ou de um grupo a se opor às forças sociais que objetivam conduzir o sistema para um novo patamar de equilíbrio. (CALDAS; HERNADEZ, 2001, p.33)

Conforme já tratado, a abertura ou resistência à mudança irá impor limites que, muitas vezes, apontarão para a limitação do desenvolvimento dos gestores, diretores ou colaboradores, além de envolver componentes emocionais dessas pessoas. Por tal motivo, faz-se necessária cautela e profissionalismo ao lidar com a resistência. O consultor deve ter extremado cuidado para lidar, conforme descrito por Block (2001), com algumas formas de manifestação da resistência, a começar pela excessiva demanda de detalhes e informações acerca de tudo que está sendo feito. O que é comum nesses casos. Ressalta-se a importância de o clien-te estar em consonância e informado daquilo que será feito na empresa. Nesse caso, todavia, as perguntas se fazem excessivas, podendo comprometer o bom andamento das reuniões.

O referido autor aponta também o fator tempo, mais preci-

samente a falta dele, por parte do cliente, como uma expressão de resistência. No caso, a possibilidade de agendar reuniões fica escassa e, quando elas acontecem, são permeadas por diversas interrupções, as quais nunca podem esperar. Block (2001) infor-ma que a impraticabilidade, com que é vista as sugestões muitas vezes propostas pelos consultores, também se pode tratar de resistência. Será verificada aqui uma intensa demanda de desafio ao profissional acerca de como operacionalizar as suas sugestões. Pontuações como “isso não se aplica aqui” ou “está fora da reali-dade da empresa hoje” são também muito comuns.

O ataque por parte do cliente também se trata de outra for-ma de resistência. Os gritos e demais reações pouco corteses ou até mesmo agressivas também dizem de uma dificuldade de a pessoa aceitar o que está posto ou sendo proposto. Consequen-temente, tem-se uma explosão de cunho emocional.

Block (2001) aponta ainda para a confusão, apresentada como um “não entender” o que está sendo exposto, indepen-dente de quantas vezes, ou das variadas formas, que a informação ou proposta tenha sido transmitida ao cliente. Não entender trata--se aqui de um “não querer saber” que também é uma forma de resistir à mudança ou não apreender a sua necessidade. Outra perigosa forma de resistência, segundo o autor, é o silêncio. A ausência de questionamentos, objeções e apontamentos por par-te do cliente nunca significará algo positivo para a implantação do projeto. Geralmente o silêncio vem acompanhado de uma discre-ta apatia e falta de envolvimento com o que está sendo proposto.

A intelectualização pode também apresentar-se como for-ma de resistência, segundo Block (2001). O cliente buscará, através da elaboração de diversas teorias, entender o que está acontecendo. Compreender a situação é realmente importan-te, mas gastar excessivo tempo e energia teorizada acerca dos problemas da empresa, não. Nesse caso, trata-se de uma ten-tativa de evitar a angústia pela situação ou problema enfrentado pela empresa por parte dos gestores e diretores. Entra como resistência, ainda, a moralização que é o sentimento de supe-rioridade em relação a pessoas que não fazem ou entendem as coisas como deveriam ser na empresa. Tal superioridade é uma estratégia de defesa para não encarar o problema, ou para não entender a situação como um problema.

Outro tipo de resistência, possível de ser encontrada, segun-do o autor, é a submissão. No caso o cliente concorda com tudo o que o consultor diz, acata todas as sugestões, parece valorizar o serviço e respeitar a experiência do profissional. Seria perfeito se não faltasse um componente da mudança organizacional: a resis-tência. Cabe ao consultor desconfiar desse tipo de postura, uma vez que a necessidade de mudança, em muitos casos, é oriunda de algo que não vai bem. Aceitar isso não é tarefa das mais fáceis,

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nem alterar os processos de trabalho ou a forma como a empresa está sendo gerida é confortável para aquele que está no controle da organização. A submissão, nesse caso, pode apontar o desejo de respostas e soluções rápidas (o que quase nunca ocorre) ou a transferência de total responsabilidade dos rumos que a empresa irá tomar ao profissional da consultoria. Para o sucesso das ações, deve haver o engajamento de todos e compreensão real da ne-cessidade de agir e trabalhar de modo diferente.

A discussão excessiva sobre a metodologia adotada pelo con-sultor também pode estar encobrindo a resistência. Questiona-mentos em demasia acerca dos instrumentos utilizados, que con-somem muito o tempo da reunião, devem ser interpretados com cautela pelo profissional. Em muitos casos, irão servir para a mu-dança de foco do problema e das ações que visam solucioná-lo.

Observa-se, contudo, a existência de fatores que podem auxiliar para que as mudanças necessárias possam contar com o engajamento, de todos os envolvidos no processo, bem como serem implementadas de forma a superar as possíveis resistências. A começar pela fase de comunicação às pessoas que atuam na empresa acerca das modificações e transformações vislumbradas pelos que estão à frente da organização. No que se refere a ges-tão da mudança organizacional, quando tal comunicação faz-se escassa torna-se uma considerável fonte de problemas:

Alguns dos principais problemas relativos à gestão de mu-dança organizacionais intencionais identificados na literatu-ra referem-se a dificuldades de: comunicar os objetivos da organização; tornar esses objetivos compreensíveis para as pessoas; e fazer com que as pessoas assimilem os objetivos e adotem as mudanças. (SILVA, VERGARA, 2003, p. 11)

Assim, a comunicação acerca da mudança deve ser a mais assertiva possível, uma vez que se trata do primeiro passo para contar com o engajamento daqueles que farão com que as trans-formações propostas se tornem uma nova realidade a ser viven-ciada. Segundo Block, (2001, p. 186), reunir pessoas é uma arte a qual ele chama de “engajamento, ou seja, como alternativa ou melhoramento às estratégias de instalação.” Nesses casos, anga-riar o apoio das pessoas faz-se tão importante quanto a obtenção dos demais recursos necessários para as transformações. São os colaboradores os responsáveis pela execução das estratégias ela-boradas pela consultoria juntamente com gestores, diretores ou executivos. Block (2001) aponta a importância do apoio do públi-co interno da empresa para a construção de um suporte que se faz fundamental para a implementação das mudanças propostas pelo consultor:

Na verdade, a implementação não começa até que as pessoas que executam o trabalho decidam se irão fazer as mudanças reais ou simplesmente seguirão a maré. Mu-danças reais requerem comprometimento real, e parte de sua função é ajudar a acender a fagulha. Para desenvolver seriamente o comprometimento interno entre aqueles que vivem no sistema onde você é apenas uma visita, precisa-mos antes dissipar as crenças convencionais que na reali-dade atrapalham o processo (BLOCK, 2001, p. 186).

O autor ainda alerta para o risco que o consultor corre ao acreditar que convencendo os chefes, gerentes, diretores, em suma, os que estão à frente da organização, as ações transcorre-rão naturalmente. Nesses casos, lembra que empresa nenhuma é administrada sozinha (Block, 2001). Outro perigo é a do consultor não compreender as limitações de sua atuação e ainda acreditar que depende somente de seu trabalho para que a empresa obte-nha o sucesso resultante das mudanças.

2 . 1 empresas familiares e gestão de mudanças

Alguns aspectos culturais que tendem a se perpetuar ao longo do tempo em empresas familiares podem tornar-se dificultadores do processo de mudança. As mudanças, na maioria das vezes, são propostas pelo consultor trazendo um convite a uma quebra de pa-radigmas. Contudo, a adesão dessa mudança em empresas de gestão familiar esbarra em uma questão extremamente delicada: a de que a cultura de cada empresa diz do universo cultural de seus diretores e proprietários, o qual está amplamente presente no comportamento dos colaboradores. A cultura organizacional é assim:

[...] um conjunto de crenças e valores que moldam o com-portamento das pessoas na organização. O clima organi-zacional manifesta-se por um conjunto de características ou atributos relativamente constantes do ambiente inter-no que é experimentado por todos os seus integrantes e influencia significativamente o seu comportamento. É um fenômeno decorrente da interação dos vários elementos da cultura organizacional, por isso o estudo de ambos deve ser feito de maneira concomitante. (PEREIRA, 1999, p. 149)

Desse modo, percebe-se que a adesão à mudança irá ser transpassada por valores pessoais, bem como temores e crenças individuais. Assim, a mudança só ocorre de modo efetivo caso aqueles que estejam à frente da organização estejam dispostos a rever alguns de seus padrões de interação com as pessoas, com o trabalho e com a empresa como um todo. Isso é fundamental,

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uma vez que todos os membros da organização estão também imersos nessa cultura organizacional. Tais padrões de comporta-mentos são internalizados por todos porque tem caráter de um sistema, muitas vezes, velado. Vejam-se as palavras de Pinto & Souza (2007) sobre o tema:

A transformação cultural é o último passo indicado para a implementação de um processo de mudança, porque de-manda muito tempo para que seja efetiva. Os valores com-partilhados são produto de muitos anos de experiência da organização e, portanto, diversos anos da nova experiência são necessários para que qualquer alteração seja consoli-dada. (PINTO; SOUZA; 2007, p. 14)

Claro que o traquejo do consultor faz-se fundamental para balizar o processo, mas, se tratando de valores e crenças pessoais, algo sempre escapará ao profissional, tendo em vista que esse é um universo a que não se pode ter acesso caso não seja con-vidado. Daí nascem os desencontros e as resistências, que são, na maioria das vezes, transpassadas pelo não dito. Cabe ressaltar que, mesmo quando as primeiras negociações são feitas satisfato-riamente e a implementação figura-se como um acordo já fecha-do, as resistências ainda estarão presentes. O profissional deve estar sobremaneira atento a suas formas de se manifestar, porque

A resistência não morre quando a decisão de prosseguir é tomada. Temos a esperança de que, se fizermos uma consultoria impecável durante os eventos preliminares, a resistência durante a implementação será reduzida. A re-sistência continuará lá, entretanto, especialmente naqueles que não foram envolvidos nas fases primárias do projeto. Tenha em mente que a resistência que você encontra du-rante a implementação nasce de preocupações idênticas que fundamentam as fases primárias – perda de controle e vulnerabilidade. (BLOCK, 2001, p. 194)

O consultor deve estar atento para tais resistências buscan-do vencê-las ao longo do processo. Saber manejá-las é impor-tante, bem como manter bom relacionamento com todos que compõem a empresa. Outro aspecto, já trabalhado, que deve ser sempre alvo de atenção, é o fato dos limites que serão impostos à atuação do consultor. Atuar na quebra de resistência é importan-te, mas saber verificar o que é possível ao cliente, principalmente em um viés comportamental, tem caráter fundamental. Deve-se sempre lembrar que boa parte dos gestores que estão à frente das empresas familiares, nem sempre serão lideranças tão desen-volvidas como é possível esperar. As empresas crescem e nem

sempre os gestores / proprietários conseguem-se profissionalizar ao mesmo passo.

Há ainda uma tendência desses gestores em centralizar tare-fas, o que também remete a uma insegurança vinda da perda de poder dentro da empresa. Têm-se aí gestores sobrecarregados e colaboradores, em muitos casos, extremamente capacitados, que não conseguem avançar em seu desenvolvimento dentro da empresa. O fato decorre da não delegação de importantes tarefas que fazem parte da empresa. Cabe também ao consultor, admi-nistrar possíveis conflitos decorrentes de impasses na tomada de decisões entre gestores de empresas familiares.

3 a emPResa oBJeTo Da coNsUlToRIa

A empresa objeto deste estudo possui uma gestão familiar e atua no ramo de marcenaria, desde 1990, oferecendo soluções persona-lizadas em móveis e instalações, com atendimento personalizado e com projetos e orçamentos para serviços de qualquer porte.

Atualmente, possui vinte e dois funcionários. Verifica-se que a empresa cresceu em número de colaboradores, na sua estrutu-ra física, na experiência daqueles que a dirigem, no faturamento, mas também na demanda de novas responsabilidades e preocu-pações. Faz-se necessário manter a excelência do serviço presta-do ao cliente, mas também a de seu relacionamento interno que impacta diretamente no externo, ou seja, na resposta que chega ao cliente. Justificou-se assim a importância do diagnóstico organi-zacional, que objetivou auxiliar nas práticas de gestão de pessoas.

Para realização desta pesquisa, foram feitas visitas iniciais para o reconhecimento da estrutura física da organização, entrevistas individuais com gestores e colaboradores, e aplicação do QDO* (Questionário de Diagnóstico Organizacional) e o IBACO* (Ins-trumento Brasileiro para a Avaliação da Cultura Organizacional). O uso do IBACO teve como objetivo avaliar a cultura organiza-cional, por meio dos valores de seus gestores, além das práticas que a tipificam.

3. 1 o diagnóstico organizacional

Dentre os principais problemas apontados pela pesquisa do clima organizacional da citada empresa está a insatisfação com o sistema de recompensas e com a estrutura da mesma. No que se refere às re-compensas, aproximadamente, metade dos colaboradores disseram estar insatisfeitos com o programa de salários e benefícios adotado, bem como, com o aprendizado, com o crescimento pessoal e pro-fissional proporcionado pelo trabalho. Sobre a estrutura da empresa, também metade do corpo de colaboradores está insatisfeita com a organização do trabalho e com os aspectos físicos e tecnológicos.

A partir da análise de entrevistas feitas com os colaboradores,

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foram apontados ainda alguns outros dificultadores. Os ajudantes de marcenaria representam 52% das queixas que se referem à falta de coordenação da empresa acerca da disponibilidade deles para auxiliar os marceneiros e necessidade de definição de critérios para tarefas que realmente necessitam de ajudantes. Os ajudantes, por sua vez, demonstram falta de motivação nas tarefas que possibilita-riam sua profissionalização, uma vez que não podem desenvolver maiores aprendizados devido à rotatividade das funções.

Os resultados apontam ainda que 23% dos colaboradores alegam que a direção da empresa deveria consultar, ou pelo me-nos ouvir, a equipe de trabalho antes de fechar boa parte dos pra-zos para entrega com clientes. Citaram ainda que ocorre acúmulo de serviço pelo fato de não haver organização de tempo para terminar um serviço antes de assumir novos. Afirmaram que esse fato compromete a qualidade final do produto, uma vez que eles próprios não conseguem terminar o que começaram.

Aproximadamente 46% dos colaboradores disseram ser ne-cessário haver melhorias no que se refere à interação, união e tra-balho em equipe na empresa. Apontam como uma das principais causas da dificuldade de interação o clima de desconfiança exis-tente dentro da equipe. Tal fato, segundo eles, decorre principal-mente de ciúme existente dos profissionais com mais tempo de serviço em relação aos novatos. A situação torna-se mais evidente quando os últimos apresentam um bom rendimento.

Outro ponto relatado diz de uma falta de receptividade para com os recém-chegados e o oferecimento de sugestões duvido-sas ao trabalho do outro que, se executadas, ocasionam erros. Informam também um excesso de vigilância do trabalho alheio e a ausência de boas sugestões. Acreditam que o resultado de tal clima são as fofocas e o receio contra aqueles que realmente de-sejam ajudar, uma vez que acabam por ser ser mal interpretados. Cabe ressaltar que não são todos os colaboradores antigos que têm dificuldade em relacionar-se como os mais novos, sendo tais percepções aqui mencionadas foram também relatados por eles.

De modo geral, 65% afirmam-se relacionar bem com os su-periores. As ressalvas feitas pelos demais apontam para a falta de reconhecimento do trabalho quando é feito com excelência. Afir-mam só receberem retorno de trabalhos que não foram conside-rados bons por parte da empresa. Outro ponto colocado trata da distância existente entre o diretor da empresa e os colaborado-res. Afirmam que ele não tem estado presente e gostariam que se aproximasse mais. Sentem falta de confraternizações e mais reuniões, principalmente aquelas que têm como objetivo ouvir a opinião de toda a equipe. Citam ainda a necessidade de manter o que é decidido nas reuniões.

De modo sucinto, como sugestões de intervenção propostas pela consultoria, propôs-se uma definição de processos e roti-

nas padronizadas e um maior acompanhamento do trabalho da equipe. O objetivo foi a organização da distribuição das tarefas, o tempo destinado a cada projeto e a possibilidade de os auxiliares poderem-se apropriar mais efetivamente do ofício. Outra suges-tão refere-se à elaboração de um treinamento de integração para os colaboradores recém contratados, bem como um treinamento técnico que se sugeriu, inclusive, estender em um nível mais avan-çado aos funcionários antigos.

Acerca dos problemas relacionados ao sistema de remune-ração, sugeriu-se a estruturação de cargos e salários. Para tal, foi proposta a implantação da avaliação de desempenho e de um programa de renumeração variável. No que se refere à escassez dos momentos de confraternização e à possibilidade de maior es-treitamento dos vínculos entre as pessoas da empresa, foi reco-mendada a criação de um cronograma de confraternizações para os aniversariantes do mês. Outros eventos também poderiam ocorrer com esse fim, desde que não necessitem de grande dis-pêndio de custo para a empresa. Outro apontamento foi a neces-sidade em haver mais reuniões com o diretor e sua presença nos momentos de confraternização, bem como em cafés informais.

3.2 a resistência à implementação das mudanças propostas

Foi observado o quão difícil ainda é para as empresas familia-res, em especial para as que cresceram rápido, se abrirem para certas mudanças ou sugestões de melhoria. Durante a negociação da implantação das sugestões, verificou-se a grande dificuldade da empresa em sair do status quo para ocupar um lugar de promo-ção de mudanças programadas que objetivavam sanar e antever os problemas. A consultoria encontrou obstáculos, também, na centralização do poder e funções em um dos diretores devido ao temor em delegar tarefas as quais, segundo ele, os colaboradores “não dariam conta”. Verificou-se, ainda, o quanto esse discurso retrata limitações no comportamento dele.

Houve ainda vetos a sugestões como a descrição de cargos e salários sob o argumento de que não se aplica àquela empresa por ela ser ainda pequena. A questão foi exaustivamente proble-matizada, tendo em vista as queixas dos funcionários em relação ao salário, aos benefícios e da baixa expectativa em crescer e se desenvolver na organização. Contudo, não foi possível qualquer implantação nesse aspecto.

A avaliação de desempenho, também não foi efetivada, uma vez que os responsáveis pela empresa acreditam que os colabora-dores não possuem maturidade ou entendimento suficientes para serem submetidos ao processo.

A padronização das rotinas e acompanhamento, mais pró-ximo dos marceneiros, na execução do trabalho, também não

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se fez interessante mesmo sendo mostradas diferentes formas de fazê-lo. O treinamento técnico, tanto para os novatos quanto para o aperfeiçoamento dos veteranos, também não foi aprovado.

Ressalta-se ainda que foi implantado o treinamento de inte-gração sugerido, com o formato de uma cartilha de boas-vindas e de uma tutoria dos funcionários mais novos pelos antigos. A inciativa poderá aproximar a equipe e auxiliar os novatos a se so-cializarem no ambiente de trabalho com a ajuda dos veteranos, bem como se apropriarem do espaço e do trabalho. Outra me-dida implantada foi a comemoração dos aniversariantes do mês toda última sexta- feira de cada mês. Houve ainda a implanta-ção de um quadro de avisos como estratégia de endomarketing buscando um canal de comunicação mais direto e menos formal com os colaboradores. Tratou-se, através do quadro, de assuntos referentes à saúde e à segurança no trabalho, da divulgação de eventos culturais com entrada franca, de datas comemorativas e de prestação de homenagem aos funcionários do mês.

4 coNclUsÃoA implementação das mudanças nesta consultoria esbarrou

em crenças e valores inerentes à cultura da empresa, as quais, conforme já tratado, só abarcam mudanças que acontecem de forma lenta e gradual. Constata-se que a gestão de mudanças em empresas familiares com pouca profissionalização é impedida pelo controle excessivo dos gestores que se sentem ameaçados ante o medo da perda de controle. O trabalho foi um início de desen-volvimento nesse aspecto e tem-se a certeza de que nada impede que maiores transformações possam ocorrer futuramente.

Conclui-se que o resultado do trabalho realizado pode não ter sido tão positivo como a consultoria e os funcionários almeja-ram, porém um novo olhar sobre a gestão das pessoas foi planta-do nessa organização.

Acredita-se que as problematizações e longas conversas acer-ca da gestão de pessoas ficarão de alguma forma registrada junto a todos que estão à frente da empresa.

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NoTas De RoDaPÉ1 Formanda do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.

2 Professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.