De vygotsky a morin entre dois fundamentos da educação inclusiva

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ESP ESP ESP ESP ESPAÇO AÇO AÇO AÇO AÇO DEZ/04 53 INES Informativo Técnico-Científico Espaço, INES – Rio de Janeiro, n. 22 p. 53, julho/dezembro 2004 ATUALIDADES EM EDUCAÇÃO Resumo A educação inclusiva contem- porânea é, sem dúvida, um dos maiores desafios apresentados às ciências humanas desde os pri- meiros momentos da era da es- trutura e dos modelos mentais. Este artigo analisa algumas con- tribuições de Lev Vygotsky e Ed- gar Morin para a necessidade de superação do conceito clássico ideal de cognição e, conseqüen- temente, para a introdução de indivíduos singulares nas práticas escolares, tendo em conta, cen- tralmente, o papel da diversida- de cultural no desenvolvimento do conhecimento e sistemas com- plexos como princípio alternati- vo para a organização de mode- los de significado e verdade. Palavras-chave: educação in- clusiva; cognição humana; mode- los mentais; sistemas complexos. Abstract Abstract Abstract Abstract Abstract Contemporary inclusive education is no doubt one of the biggest challenges presented to human sciences since the very first moments of the age of structure and mental modeling. This article analyzes some contributions of Lev Vygotsky and Edgar Morin to the necessary overcoming of classic ideal concept of cognition and, consequently, to the introduction of singular individuals into school practices, taking into account, centrally, the role of cultural diversity in knowledge development and complex frameworks as alternative modeling principle for meaning and truth. Key words: inclusive education; human cognition; mental models; complex systems. Já se passaram dez anos desde que, na década de 1990, a educa- ção recebia as primeiras orienta- ções no sentido de que se orga- nizasse para atender a imensa demanda pela inclusão de sujei- tos marginados culturais no inte- rior das práticas de escolarização. Tomada como princípio político, a educação inclusiva formou-se desde então como um corpo am- bíguo, ora apreciado pelo cará- ter humanista com que se defen- diam os interesses dos sujeitos até então banidos do espaço públi- co, ora execrado pelo desconfor- to que provocaria na ordem vi- gente do cotidiano da educação formal, ora pelo desarranjo das relações de poder entre classes sociais que caracterizaram e ain- da caracterizam a sociedade mo- derna. Em que pese a demanda institucional pela inclusão ter sido razoavelmente suprida através de instrumentos legais e regimen- tais, a escola ainda encontra se- veras dificuldades para justificar a presença e a permanência dos De Vygotsky a Morin: entre dois fundamentos da educação inclusiva Luiz Antonio Gomes Senna* Luiz Antonio Gomes Senna* Luiz Antonio Gomes Senna* Luiz Antonio Gomes Senna* Luiz Antonio Gomes Senna* *Programa de Pós-Graduação em Educação/UERJ. Material recebido e selecionado em outubro de 2004.

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Informativo Técnico-Científico Espaço, INES – Rio de Janeiro, n. 22 p. 53, julho/dezembro 2004

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ATUALIDADES EMEDUCAÇÃO

Resumo

A educação inclusiva contem-porânea é, sem dúvida, um dosmaiores desafios apresentados àsciências humanas desde os pri-meiros momentos da era da es-trutura e dos modelos mentais.Este artigo analisa algumas con-tribuições de Lev Vygotsky e Ed-gar Morin para a necessidade desuperação do conceito clássicoideal de cognição e, conseqüen-temente, para a introdução deindivíduos singulares nas práticasescolares, tendo em conta, cen-tralmente, o papel da diversida-de cultural no desenvolvimentodo conhecimento e sistemas com-plexos como princípio alternati-vo para a organização de mode-los de significado e verdade.

Palavras-chave: educação in-clusiva; cognição humana; mode-los mentais; sistemas complexos.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

Contemporary inclusiveeducation is no doubt one of thebiggest challenges presented tohuman sciences since the very firstmoments of the age of structureand mental modeling. This articleanalyzes some contributions of LevVygotsky and Edgar Morin to thenecessary overcoming of classicideal concept of cognition and,consequently, to the introductionof singular individuals into schoolpractices, taking into account,centrally, the role of culturaldiversity in knowledge developmentand complex frameworks asalternative modeling principle formeaning and truth.

Key words: inclusive education;human cognition; mental models;complex systems.

Já se passaram dez anos desde

que, na década de 1990, a educa-ção recebia as primeiras orienta-ções no sentido de que se orga-nizasse para atender a imensademanda pela inclusão de sujei-tos marginados culturais no inte-rior das práticas de escolarização.Tomada como princípio político,a educação inclusiva formou-sedesde então como um corpo am-bíguo, ora apreciado pelo cará-ter humanista com que se defen-diam os interesses dos sujeitos atéentão banidos do espaço públi-co, ora execrado pelo desconfor-to que provocaria na ordem vi-gente do cotidiano da educaçãoformal, ora pelo desarranjo dasrelações de poder entre classessociais que caracterizaram e ain-da caracterizam a sociedade mo-derna. Em que pese a demandainstitucional pela inclusão ter sidorazoavelmente suprida através deinstrumentos legais e regimen-tais, a escola ainda encontra se-veras dificuldades para justificara presença e a permanência dos

De Vygotsky a Morin:entre dois fundamentosda educação inclusivaLuiz Antonio Gomes Senna*Luiz Antonio Gomes Senna*Luiz Antonio Gomes Senna*Luiz Antonio Gomes Senna*Luiz Antonio Gomes Senna*

*Programa de Pós-Graduação em Educação/UERJ.Material recebido e selecionado em outubro de 2004.

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incluídos na educação formal,disto resultando que os alunossupostamente beneficiados pelainclusão escolar ainda amargam afrustração de não serem reconhe-cidos – pelos outros e por si mes-mos – como sujeitos dignos dacondição de alunos.

Não há, todavia, como impu-tar à escola a responsabilidadepela atual dificuldade de se darcorpo de fato à educação inclusi-va, uma vez que, como sujeitossociais acima de tudo, os profes-sores reagem segundo orienta-ções seculares que determinam arazão de ser e os modos da edu-cação formal. A solução para oproblema da inclusão escolar nãoreside no tensionamento das re-lações entre escola e sociedade,tendo-se por parâmetro a infun-dada crença de que os professo-res sejam sujeitos adversos às prá-ticas de inclusão. Não é tampoucopossível buscar solução em fórmu-las metodológicas que ofereçamcertas condições mais adequadaspara o ensino de tudo aquilo quese consagrou como necessário erecorrente na experiência curri-cular da educação formal, semque se leve em conta o fato deque a materialidade socioculturale cognitiva dos sujeitos incluídosnão necessariamente legitime al-guma necessidade nos conteúdosformais do ensino. É, portanto,

inócua uma discussão sobre edu-cação inclusiva que tome por pres-suposto algum tipo de inabilida-de, ou desinteresse, do professo-rado quanto à adoção de práticasde adaptação do ensino formal,pois é impossível provocar adap-tações que incorporem os exclu-ídos sem que se provoque umaverdadeira ruptura com certasbases da educação, que estão si-tuadas muito além da sala deaula e da própria escola.

Em paralelo à questão políti-ca imediatamente associada aosindicadores internacionais de in-clusão social, existe uma outraesfera de poder público cuja in-tervenção política sobre as práti-cas de educação formal se faz demodo direto: a cultura científica.A sociedade moderna instituiu-seatravés da crença dogmática sobrea Razão científica e nela se baseoupara se instituir como uma uni-dade cultural, em detrimento dosdemais segmentos humanos, osquais, por força de imposiçõessociais ou de outros dogmas não

baseados na Razão moderna, fo-ram mantidos à distância. O sen-tido social da escola – tal como aconcebemos ainda hoje – estáfortemente associado, tanto aodogma da Razão, quanto ao prin-cípio do banimento, ambos soli-dariamente agregados comoícones de uma cultura que nãotolera as diferenças e se senteameaçada por elas. Ainda é mui-to forte em nosso imaginário oprincípio sintetizado no dito po-pular em que se declara ser preci-so ir à escola para ser gente navida, aludindo-se, assim, aos nãoescolarizados como não-gentes,como sujeitos desprovidos deRazão, como os outros.

Movida pelo fascínio da Razão,a cultura científica desenhariapara si um modelo humano base-ado integralmente na figura deum sujeito mítico, idealizadocomo a própria energia da cria-ção, a mais pura e sublime figuraentre as produzidas por Deus,cuja energia lhe era imposta comoum dom inato. O inatismo – em

Movida pelo fascínio da Razão, a culturacientífica desenharia para si um modelo

humano baseado integralmente na figurade um sujeito mítico, idealizado como a

própria energia da criação, a mais pura esublime figura entre as produzidas por

Deus, cuja energia lhe era imposta comoum dom inato.

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muito responsável pelo dogma-tismo que se viria a formar noconceito de homem moderno –imputaria à Razão um caráter in-dividual e atemporal, ambas ca-racterísticas que justificariam asbases de uma ciência que se auto-intitularia universal, não por for-ça de uma generalidade entre oshomens, mas sim por condição deuma estrutura de conhecimentoque se colheria na origem onto-lógica de todas as coisas. Tama-nho racionalismo, todavia, escon-deu por trás de si uma profundaincoerência, já que se tomou porreconhecer verdadeiro somenteo conhecimento que se produzis-se por certos sujeitos sociais,edificados que fossem à imageme semelhança de valores sociaisrigidamente prescritos pela or-dem cultural da sociedade mo-derna. Aos outros, legou-se a de-bilidade e a escravidão.

Ainda que supostamente pró-prio da natureza humana, o co-nhecimento inato – responsávelpor toda a revelação do mundo –permaneceu exclusivo de unspoucos que dele pudessem dis-por com eloqüência pública, naforma como nos definiu Foucault,pois que os outros humanos nãoeram reconhecidos como sujeitoscapazes de construir verdadesconfiáveis. Foi deste modo, en-tão, que a verdade do conheci-mento passa a ser tratada comoverdadeiro dogma social, algo

que revelaria, não uma crençapropriamente, mas o estado depertencimento a um grupo soci-almente autorizado a produzirconhecimentos de forma legítimae irrefutável. Assim sendo, a fa-mosa expressão de Descartes,“Penso, logo existo”, com a qualeste define a máxima racionalistade que a existência de todas ascoisas é produto da Razão, podetambém ser interpretada comomarco de uma posição frente àdefinição de quem se elege, ounão, como sujeito da sociedademoderna.

Não se observaria mudançasubstantiva quanto à posição dosexcluídos da cultura científicanem mesmo quando, no séculoXIX, os antagonistas do inatismotrouxeram à tona as teses deter-ministas de que resultaram opositivismo e o behaviorismo. Ain-da que se deslocasse momentane-amente o centro da atenção parafora das discussões clássicas sobreo inatismo, apresentando-se comodefensores de um experien-

cialismo que teria por pressupos-to a absoluta incapacidade huma-na de produzir conhecimentospor atitude cognoscente, os de-terministas somente asseverarama prerrogativa cultural da socie-dade moderna sobre os outroshomens, imputando-lhes, atravésdas mais variadas formas de vio-lência, seus padrões de compor-tamento e seu saber hegemônico.Contudo, talvez por reação à for-ça avassaladora dos deterministasno século XIX, bem como peloevidente sinal de decadência so-cial, diversos movimentos come-çaram a surgir na sociedade comoum todo e, ainda que de formamais contida, na comunidade ci-entífica, na busca por espaço parao reconhecimento do direito àvida e à voz na sociedade.

A primeira grande contribui-ção que viria a introduzir mudan-ças realmente significativas na or-dem científica moderna foi-nostrazida por Lev Vygotsky, sobmotivação das orientações temá-ticas da literatura de Karl Marx.

Não se observaria mudança substantivaquanto à posição dos excluídos da culturacientífica nem mesmo quando, no século

XIX, os antagonistas do inatismo trouxeramà tona as teses deterministas de que

resultaram o positivismo e o behaviorismo.

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Nas primeiras décadas do séculoXX, em meio a um turbilhão demovimentos outros, particular-mente na esfera das artes e nointerior dos movimentos operá-rios, tendo por marco a Revolu-ção Russa, em 1917, Vygotsky pro-poria as bases de uma revoluçãogeral da cultura científica, ao or-ganizar o primeiro modelomental não orientado segundo osprincípios da individualidade e dauniversalidade.

Advogado e lingüista, Vygotskyfaz introduzir nos estudos sobrea epistemologia do conhecimen-to um viés pragmático que influ-enciaria a criação de toda umaescola, desde Wittgenstein, seucontemporâneo, a Habermas, to-dos tendo como princípio o fatode que as dinâmicas sócio-interacionais (jogos comunicati-vos, segundo Wittgenstein, e atoscomunicativos, segundo Habermas)propriamente determinam, nãosomente estruturas, mas todo osistema de valores em torno dosquais a verdade se constrói. Osócio-interacionismo pioneira-mente defendido por Vygotsky

desloca a discussão relativa aoconhecimento da naturezaontológica dos objetos mentaispara a sua natureza conceitual,determinada a partir de suas rela-ções diversas com os sujeitos queos vivem e os representam. Aindaque não desprezando a naturezalógico-essencial das representa-ções mentais, o modelo mentalproposto centraliza justamente anatureza pragmática e vivente dasrepresentações, vindo, então, adefinir a produção de conheci-mento como dinâmica e determi-nada pelo intercâmbio de concei-tos, que nada mais são do querepresentações com valor cultu-ral determinado, local e temporal.

O modelo mental de Vygotskyaponta, portanto, para uma jane-la até então desprezada na cultu-ra científica, à medida que paraalém dela encontrar-se-iam todosos sujeitos banidos da sociedademoderna, não mais tomadoscomo débeis alienados, mas simcomo sujeitos de seus própriosconceitos de mundo. Abria-se,assim, uma nova era de possibili-dades para a Modernidade, tanto

menos próxima de uma verdadeuniversal quanto mais próxima deum Homem universalmente aco-lhido e reconhecido como sujei-to cognoscente.

O mecanismo mental descritoem seu modelo epistemológiconão difere em muito do análogoproposto em Piaget no que serefere às dinâmicas de funciona-mento, mas guarda especificida-des outras que a cultura científi-ca tentou desprezar por longotempo. Segundo Vygotsky, a men-te humana é um sistema de valo-res, e não de categorias atômicas;é um sistema que deriva e inter-preta conceitos de mundo, nãodedicado, portanto, ao ajuiza-mento lógico e essencial das re-ferências de mundo. O princípiode equilibração, também presen-te em Piaget, é adotado no mo-delo de Vygotsky para explicar omovimento de incorporação denovos conceitos possíveis a umconceito prévio, de modo queresulta necessariamente do con-fronto entre dois ou mais valorespragmáticos distintos relativos aum único objeto ou contexto.Neste sentido, apresentam-se osestágios de desenvolvimento dedeterminado conceito como “zo-nas de desenvolvimento”, dentreas quais a “zona de desenvolvi-mento proximal” explica o pro-cesso através do qual dois sujei-tos buscam mutuamente compre-ender os sentidos que dão corpoaos respectivos conceitos que cadaqual emprega para ajuizar deter-minado objeto ou contexto demundo.

O impacto do modelo mentaldefendido por Vygotsky frente aomodelo de sujeito social da cul-tura científica é enorme, justa-mente pelo fato de que o desen-

O impacto do modelo mental defendido porVygotsky frente ao modelo de sujeito socialda cultura científica é enorme, justamente

pelo fato de que o desenvolvimentoproximal não opera, em tese, sobre a prer-rogativa de algum conceito com relação ao

outro no processo de interação.

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volvimento proximal não opera,em tese, sobre a prerrogativa dealgum conceito com relação aooutro no processo de interação.Ao contrário, defende-se justa-mente o oposto, ou seja, o prin-cípio de que todo conhecimentoresulta da aproximação entre doisconceitos, da qual resulta um ter-ceiro conceito que é a síntese dosanteriores. Em termos concretos,isto significa apresentar à socie-dade moderna a tese de que in-cluir os “outros” implica, propri-amente, incluir novos conheci-mentos, novas perspectivas demundo.

Interrompido por sua morte epelo incômodo que sua tese pro-vocou pelos quatro cantos domundo, Vygotsky deixou por he-rança à cultura científica o desa-fio de se consolidar o estudo do

desenvolvimento proximal e,com ele, dar-se prosseguimentoao processo de inclusão dos ex-cluídos sociais, sujeitos ao pre-conceito da ignorância científica.Passar-se-iam várias décadas atéque se retomassem as questõesteóricas necessárias à consolida-ção dos estudos iniciais sobre odesenvolvimento proximal. A fimde que se pudesse garantir aodesenvolvimento proximal umvalor reconhecido na cultura ci-entífica, deste modo assegurandovoz e eloqüência aos sujeitos emaproximação, teve-se de esperaraté que as bases da ciência mo-derna viessem a ser objeto de dis-cussões apuradas e que o concei-to dogmático de verdade fosseposto à prova.

Neste sentido, há que se assi-nalar que a continuidade do pro-

jeto de inclusão social iniciadoem Vygotsky ganharia novo fôle-go com as contribuições de cadaum dos estudos que, no séculoXX, apresentaram críticas ao mo-delo científico de produção deverdades. Afinal, que verdade?Em seus quatro volumes de OMétodo, Edgar Morin reúne osmais diversos argumentos em fa-vor, sobretudo, da desdog-matização do conceito científicode verdade, instaurando a dúvi-da quanto à possibilidade de ha-ver verdade possível a partir dejuízos produzidos desde umolhar individual e supostamenteuniversal para os fatos de mun-do. Morin defende a concepçãode mente como um fenômenocomplexo, permeado por variá-veis contextuais e historicamen-te determinadas, cuja naturezacolide frontalmente com a possi-bilidade de juízos a priori. Mes-mo que não abordando a ques-tão do desenvolvimento pro-ximal, Morin aproxima-nos doproblema observado por Vygotskyà medida que pluraliza as verda-des possíveis e fragiliza a hege-monia de uma concepção de va-lores centrada em um único sis-tema de valores, a-contextual epragmaticamente amorfo, já quebanido da vida conceitual.

O percurso atual da educaçãoinclusiva não pode desprezar ofato de que a situação dos incluí-dos nos sistemas de escolarização

Interrompido por sua morte e pelo incômodoque sua tese provocou pelos quatro cantosdo mundo, Vygotsky deixou por herança àcultura científica o desafio de se consolidaro estudo do desenvolvimento proximal e,

com ele, dar-se prosseguimento ao processode inclusão dos excluídos sociais, sujeitos ao

preconceito da ignorância científica.

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formal está diretamente vinculadaao processo de ruptura com osdogmas com que a cultura cientí-fica definiu – para si e para a esco-la – o conceito de verdade. Entre-tanto, se, por um lado, Vygotsky

prenunciou um espaço de desen-volvimento em que as pluralidadespodem interagir, por outro, osagentes de inclusão escolar neces-sitam reorientar suas práticas, nãopara novas metodologias de ensi-

no, mas sim para novas meto-dologias de produção de conhe-cimento acadêmico-científico, es-tas sim determinantes de uma ver-dadeira possibilidade de diálogocom as diferenças culturais.