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DEFESA E SEGURANÇA; GUERRA E NÃO-GUERRA: CONCEITOS TEÓRICOS; REFLEXOS PRÁTICOS Walfredo Bento Ferreira Neto 1 RESUMO: O presente artigo visa refletir sobre Defesa e Segurança, e suas repercussões sobre as Operações de Guerra e Não-Guerra. Como público-alvo, pretende-se atingir os agentes públicos que tratam com esses temas, dentro de um escopo de administração da violência na forma legítima. Face às novas exigências, compreender o significado desses conceitos torna-se premissa para que uma atuação com o uso da força esteja dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito e pelo ordenamento jurídico internacional. Como hipótese, Defesa está associada à Segurança Militar, logo, às Forças Armadas. Já Segurança, um conceito bem mais amplo, inclui outros órgãos e instituições, inclusive a própria sociedade. Nesse sentido, dentro de Segurança, além da probabilidade da guerra, está o combate ao narcotráfico e ao crime organizado, as ações humanitárias e as de defesa civil. Dividindo-se o estudo, no primeiro momento trabalha-se com Segurança e Defesa, contextualizando-se a discussão, por meio de fontes documentais oficiais e acadêmicas. Em um segundo instante, analisa-se o significado recente desses conceitos. Verifica-se, então, a necessidade de uma nova construção, para atender a um espectro maior de demandas. Assim, como resultado, sugere-se uma tipologia calcada nas atribuições dos órgãos estatais. Finalizando, aborda-se o papel da ONU e seus reflexos para a formação na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Palavras-chave: Defesa. Segurança. Guerra. Não-Guerra. 1. INTRODUÇÃO O presente artigo visa refletir sobre os tradicionais conceitos de Defesa e Segurança, e algumas de suas repercussões nas abordagens sobre Operações de Guerra e Não-Guerra, assim como os respectivos reflexos no mundo real. Como público-alvo prioritário, mas não exclusivo, este escrito pretende atingir os agentes públicos, lato sensu, que cuidam, direta ou indiretamente, de temas correlacionados à 1 Capitão QCO Geografia. Professor de Relações Internacionais e de Geografia da AMAN. É mestre em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pelo INEST/UFF. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1278766634926371. Contato: [email protected].

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DEFESA E SEGURANÇA; GUERRA E NÃO-GUERRA:

CONCEITOS TEÓRICOS; REFLEXOS PRÁTICOS

Walfredo Bento Ferreira Neto1

RESUMO: O presente artigo visa refletir sobre Defesa e Segurança, e suas repercussões

sobre as Operações de Guerra e Não-Guerra. Como público-alvo, pretende-se atingir os

agentes públicos que tratam com esses temas, dentro de um escopo de administração da

violência na forma legítima. Face às novas exigências, compreender o significado desses

conceitos torna-se premissa para que uma atuação com o uso da força esteja dentro dos

parâmetros estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito e pelo ordenamento jurídico

internacional. Como hipótese, Defesa está associada à Segurança Militar, logo, às Forças

Armadas. Já Segurança, um conceito bem mais amplo, inclui outros órgãos e instituições,

inclusive a própria sociedade. Nesse sentido, dentro de Segurança, além da probabilidade da

guerra, está o combate ao narcotráfico e ao crime organizado, as ações humanitárias e as de

defesa civil. Dividindo-se o estudo, no primeiro momento trabalha-se com Segurança e

Defesa, contextualizando-se a discussão, por meio de fontes documentais oficiais e

acadêmicas. Em um segundo instante, analisa-se o significado recente desses conceitos.

Verifica-se, então, a necessidade de uma nova construção, para atender a um espectro maior

de demandas. Assim, como resultado, sugere-se uma tipologia calcada nas atribuições dos

órgãos estatais. Finalizando, aborda-se o papel da ONU e seus reflexos para a formação na

Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN).

Palavras-chave: Defesa. Segurança. Guerra. Não-Guerra.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo visa refletir sobre os tradicionais conceitos de Defesa e Segurança, e

algumas de suas repercussões nas abordagens sobre Operações de Guerra e Não-Guerra,

assim como os respectivos reflexos no mundo real.

Como público-alvo prioritário, mas não exclusivo, este escrito pretende atingir os

agentes públicos, lato sensu, que cuidam, direta ou indiretamente, de temas correlacionados à

1 Capitão QCO Geografia. Professor de Relações Internacionais e de Geografia da AMAN. É mestre em Estudos

Estratégicos da Defesa e da Segurança pelo INEST/UFF. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1278766634926371.

Contato: [email protected].

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Defesa e à Segurança, dentro de um escopo de administração da violência (LASSWELL apud

HUNTINGTON, 1996, p. 29) na forma legítima (WEBER, 2002[1967], p. 56). Tratar-se-á,

portanto, em um primeiro momento, dos militares das Forças Armadas (FA) e das Forças

Auxiliares, de agentes da segurança e da administração pública, em todos os níveis da

federação, e de pesquisadores desta área e afins.

Face às novas exigências relativas à Segurança que se impõem aos agentes estatais,

planejadores e operativos, compreender o significado desses conceitos torna-se premissa, para

que uma atuação, embora com o uso da força, coercitiva ou coativa, física ou psíquica, esteja

dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito, tal como é o caso

brasileiro, ou pelo ordenamento jurídico internacional, como ocorrem no caso das operações

sob a égide da Organização das Nações Unidas (ONU). É por isso que o objeto desse debate

também transcende as fronteiras nacionais e regionais da América do Sul, sendo teor de

discussões, inclusive, na própria ONU.

Ainda, faz-se premissa também o tratamento desse assunto, na medida em que o sólido

entendimento desses conceitos facilitará o discernimento na “hora de agir”, sobretudo na

diferenciação entre um inimigo e um infrator.

No cerne de todas as questões estará, indubitavelmente, o princípio da

proporcionalidade entre meios e fins no (e do) emprego da força em cada caso específico. É

nesse sentido que uma construção teórica bem elaborada refletirá em uma maior

probabilidade de êxito nas operações práticas, mesmo considerando a ocorrência de

imponderáveis.

Como hipótese central, Defesa está associada à Segurança Militar, logo, às Forças

Armadas, e Segurança, um conceito bem mais amplo, inclui outros órgãos e instituições,

inclusive a própria sociedade, representante do verdadeiro significado da expressão

cidadania. Nesse sentido, dentro de Segurança estão as Operações da Garantia da Lei e da

Ordem, o combate ao narcotráfico e ao crime organizado, as ações humanitárias e as de defesa

civil, além da probabilidade da guerra, por exemplo.

Para se atingir o objetivo proposto, este trabalho fica assim estruturado: no primeiro

momento, trabalha-se com os conceitos de Segurança e Defesa, a fim de defini-los e

contextualizá-los, por meio de fontes oficiais e acadêmicas que tratam sobre esses termos. Em

um segundo instante, analisa-se o significado recente dado a esses conceitos, procurando

enquadrá-los na realidade atual. É nessa parte que se verifica a necessidade de uma nova

construção para esses conceitos, a fim de atender a um espectro maior de demandas.

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Assim chega-se à terceira parte do trabalho, na qual, como resultado, sugere-se um

enfoque para os temas Defesa e Segurança calcado nas competências, nas funções ou nas

atribuições de cada órgão estatal responsável pela aplicação desses conceitos. Finalizando, a

quarta parte traz esses temas com foco no Sistema Internacional, contemplando o papel da

ONU e seus reflexos para a formação do oficial combatente do Exército Brasileiro na

Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN).

2. SEGURANÇA E DEFESA: DISCUSSÃO QUE PERPASSA ESPAÇOS E TEMPO

Segurança e Defesa são temas que perpassam vários lugares e diversas épocas na

história política. Pela literatura ocidental, em grande parte advinda da Europa dos séculos

XVI, com Maquiavel e Bodin; XVII, com Hobbes e Grotius; XVIII, por Vattel, Kant e

Rousseau; alcançando-se o XX, a partir de Max Weber e Aron, todos preocupados com a

consolidação de um organismo central e soberano capaz, dentre outras atribuições, de garantir

a segurança. Dos Estados Unidos, também no séc. XX, destaca-se Samuel Huntington, com

sua teorização acerca da relação entre o Soldado e o Estado, sob a névoa de um conflito

nuclear.

Decerto que essa discussão encontra-se em constante reformulação, acompanhando as

exigências do contexto no qual está inserida. E isso não é diferente nos dias atuais.

A fim de apresentar o teor e a problemática que orbita em torno desses temas hoje,

segue abaixo um questionamento feito pelo Embaixador José Antonio Bellina Acevedo,

Diretor Geral de Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa da República do Peru, em

2008, tentando sintetizar essa discussão:

[…] são segurança e defesa dois temas totalmente separados que não podem ser

tratados simultaneamente? Uma resposta definitiva afirmaria que a segurança

compete ao ambiente interno e, portanto, exclusivamente às forças policiais ou às

forças de segurança e a defesa unicamente ao plano externo, e, por assim ser, faz-se

da competência das forças armadas. (ACEVEDO, 2008, p. 103)

O recorte textual acima remete ao complexo tema acerca da terminologia e do

significado de Defesa e Segurança, seja pelas mudanças do ambiente internacional, sobretudo

com o fim da Guerra Fria; da manutenção, por algumas unidades políticas, do aparato bélico

nuclear; da interdependência e de seus múltiplos canais de comunicação, e da difusão de

“novas ameaças”, essas últimas favorecendo a (des)territorialização estatal; seja, ainda, pelas

mudanças das agendas políticas regionais e locais, no caso específico de países da América

Latina.

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Alertou o embaixador peruano acima aludido que a resposta para essa pergunta “não

pode ser tão definitiva, porque teria que ser vista a partir de diferentes perspectivas e,

principalmente, da situação de cada país.” (ACEVEDO, 2008, p. 103). Nessa linha, o

diplomata peruano está em consonância com Barry Buzan (1991), ao afirmar que as

percepções de ameaças são afetas a cada nação e estão intimamente ligadas à sua localização

(geográfica) e à sua capacidade (poder).

Pela Constituição Federal do Brasil, mais precisamente em seu artigo 142, e em

documentos oficiais daí derivados, por exemplo, a Lei Complementar Nr 97, de 1999, e suas

alterações (LC 117 e 136)2, e a Política Nacional de Defesa (2012), pode-se apreender que as

atividades de Defesa são a finalidade maior das Forças Armadas (FA), na qual se pressupõe

uma ameaça externa, isto é, uma ação contrária vinda de outro ator estatal, prioritariamente.

Historicamente, como outro indicador, também é possível continuar nessa linha,

quando se tratar de Defesa, ao se entender que as funções do Ministério da Defesa são as

correlatas às do extinto Ministério da Guerra. Trata-se, portanto, de uma atividade e

respectiva instituição voltada para a ameaça externa clássica.

Contudo, a título de exemplificação, têm-se as Operações de Garantia da Lei e da

Ordem (Op GLO), que envolvem a participação do Ministério da Defesa (MD) e que se

caracterizam por serem não contra uma ameaça externa, mas sim contrárias a alguma

desordem pública ou institucional, logo, ações de natureza subsidiária para as Forças

Armadas, que, primeiramente, são de competência dos órgãos de segurança pública, inclusive

como previsto constitucionalmente (art. 144).

Essa diferenciação, como se vê a seguir, é bem importante, pois uma interpretação

equivocada pode levar a conflitos, tanto no mundo das normas, como no das operações reais,

com reflexo nas regras de engajamento e no modus operandi do militar, por falta de um

oportuno Exame de Situação3.

3. SEGURANÇA E DEFESA: UM DEBATE ALÉM DO BINÔMIO SENSAÇÃO-AÇÃO

Tradicionalmente, costuma-se adotar a dualidade sensação-ação para diferenciar os

termos Segurança e Defesa. Por Segurança, o Manual Básico da Escola Superior de Guerra

2 A Lei Complementar Nr 136 é também resultado do previsto na Estratégia Nacional de Defesa (END), de 2008,

em suas “Ações Estratégicas – Garantia da Lei e da Ordem” (END, 2008, p. 55). 3 O Chefe do Centro de Doutrina do Exército, Gen Div Araújo, chama atenção para esse aspecto, principalmente

no contexto das “operações de amplo espectro” (ARAÚJO, 2013, p. 25), ou, como abordou Joseph Nye, em uma

operação “dentro do espaço de três quarteirões contíguos” (NYE, 2012, p. 74), que resgata o “The strategic

corporal: leadership in the three blocks war”, do General Charles Krulak (1999).

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(ESG), em seu volume I, expõe o seguinte: “Segurança é a sensação de garantia necessária e

indispensável a uma sociedade e a cada um dos seus integrantes, contra ameaças de qualquer

natureza.” (ESG, 2009, p. 59).

Como complemento, aponta a ESG, a Segurança, sendo uma sensação, não pode ser

medida, pois é abstrata, subjetiva, e esse grau de subjetividade depende da percepção que se

tem dos “fatores perturbadores” (ameaças). É justamente no trato dessas ameaças percebidas

que se encontra o que a ESG entende por Defesa. Portanto, para essa Escola, a Defesa “trata

da neutralização, da redução e/ou anulação de ameaças” (ESG, 2009, p. 60), por meio de

ações, medidas e atitudes. Na definição de Defesa, assim elabora a ESG: “Defesa é um ato ou

conjunto de atos realizados para obter ou resguardar as condições que proporcionam a

sensação de Segurança.” (ESG, 2009, p. 60). Logo, a Escola Superior de Guerra conclui que

Segurança é sensação e Defesa é ação. (Figura 1).

Todavia, se for simplesmente assim, tem-se, para uma Segurança Nacional, uma

Defesa Nacional – o que é perfeitamente plausível. Mas, continuando dentro do enfoque

esguiano, para atender a realidade da ampliação do conceito de Segurança (BUZAN, 1991;

ONU, 1994), visando, por exemplo, a uma Segurança Alimentar, tem-se uma “Defesa

Alimentar”, para uma Segurança Ambiental, uma “Defesa Ambiental”; e, para uma Segurança

Econômica, uma “Defesa Econômica”, assim por diante.

A Política Nacional de Defesa (PND) 4

, de 2012, em um primeiro momento, parece

reforçar esse entendimento: “A segurança, em linhas gerais, é a condição em que o Estado, a

sociedade ou os indivíduos se sentem livres de riscos, pressões ou ameaças, inclusive de

necessidades extremas. Por sua vez, defesa é a ação efetiva para se obter ou manter o grau de

segurança desejado”.

Permanecendo-se, então, apenas com o binômio sensação-ação, não se consegue

atingir o significado dado a esses termos atualmente e, ainda, compreender as demandas daí

derivadas, visto que a Segurança tende a se ampliar, envolvendo outras temáticas e níveis de

4 Entregue pela Presidente Dilma Roussef ao Congresso Nacional, por meio da Mensagem Nr 323, de 17 Jul 12.

Figura 1: binômio tradicional Segurança e Defesa

Nacional.

Segurança

(Nacional)

Defesa (Nacional)

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referência, e não só os condizentes ao nível do Estado, nem apenas aos setores político e

militar (high politics).

Para a compreensão dessas mudanças, caracterizando esse jogo de ação e reação do

sistema, dos Estados e, mais recentemente, dos indivíduos, faz-se necessário resgatar alguns

fatos.

3.1 Fatos que refletiram na ampliação do conceito de Segurança

A ONU, em 1994, pelo Relatório sobre Desenvolvimento Humano do Programa de

Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), sugeriu uma mudança do conceito de

Segurança, de uma visão meramente estatocêntrica para uma baseada no indivíduo. Pelo

conceito recomendado – o de Segurança Humana – questões de natureza econômica,

ambiental, alimentar e de saúde, por exemplo, estariam incluídas no objeto da Segurança.

Na verdade, conforme apontou Medeiros Filho (2010) e Aguilar (2010), a ampliação

do conceito de Segurança e a inserção do indivíduo como objeto maior de proteção vinha

sendo discutida desde a década de 1980, pela Escola de Copenhagen5, mais precisamente por

Barry Buzan. Foi Buzan (1991, p. 26), que questionou (“What is the referent object for

security?”) a centralização da Segurança apenas no nível estatal e propôs sua análise para uma

forma multidimensional, ampliando-se setorialmente (alimentos, energia, saúde,...) e nas

escalas internacional, nacional e individual (Figura 2).

5 Uma das correntes de pensamento, de viés liberal, dos estudos de Relações Internacionais.

Figura 2: Conceito de Segurança e sua Ampliação

Segurança Estatal

Fonte: adaptado de Marques e Medeiros Filho, 2010.

Segurança Cibernética

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Em 1980, o Informe Brandt, da Comissão Independente para o Desenvolvimento

Internacional da ONU, inseriu o complemento “econômica” ao conceito de Segurança, ao se

referir à dificuldade de desenvolvimento dos países do Hemisfério Sul. Nesse sentido,

inúmeros reflexos foram observados, ainda que não tão imediatos.

Em 1987 foi a vez da inserção da preocupação com o meio ambiente e com os

alimentos, por meio do conceito adotado pela Comissão Brundtland e pela FAO (Programa

Mundial de Alimentos da ONU), respectivamente. O Chile, apenas como uma ilustração, em

2002, acompanhou essa construção e incluiu no conceito de Segurança a preocupação com o

desenvolvimento social e econômico.

No âmbito regional, a Organização dos Estados Americanos (OEA), em outubro de

2003, traduziu os reflexos dessa discussão, ampliando concretamente o conceito de

Segurança. Na Cidade do México, por meio da Declaração de Segurança das Américas,

problemas relacionados ao tráfico de armas e de drogas, ao meio ambiente, à saúde (AIDS), à

pobreza e aos desastres naturais foram inseridos.

Essas mudanças textuais não estão soltas, sem contexto. Pelo contrário, a discussão

atual acerca desses conceitos se dá em um sistema não mais bipolar – mas que continua sob o

“guarda-chuva” atômico. Apesar de tudo indicar que a Major War está em desuso, ou por

questões racionais, ou pelas morais e éticas, é preciso frisar que as ameaças continuam,

inclusive com caráter bastante difuso, nem sempre vindas de outro ente do mesmo status, ou,

pior, nem sempre com possibilidade de se detectar a origem e a autoria, e possuindo

capacidade de ocasionar grande dano, mesmo considerando a permanência de casual

assimetria.

Ocorre que essa difusão qualitativa de ameaças nem sempre é possível ser combatida

por meio do uso da força militar. Dessa forma, a proposta da Política Nacional de Defesa,

enviada em 17 de julho de 2012 ao Congresso Nacional, em um segundo momento, assim

previu:

2.3. Gradualmente, ampliou-se o conceito de segurança, abrangendo os campos

político, militar, econômico, psicossocial, científico-tecnológico, ambiental e outros.

Preservar a segurança requer medidas de largo espectro, envolvendo, além da defesa

externa: a defesa civil, a segurança pública e as políticas econômica, social,

educacional, científico-tecnológica, ambiental, de saúde, industrial. Enfim, várias

ações, muitas das quais não implicam qualquer envolvimento das Forças Armadas.

(BRASIL, 2012)

O constructo feito até aqui requer um aperfeiçoamento da Figura 1, pois haverá

necessidade cada vez maior de especialização das ações envolvendo Segurança e Defesa, que,

por sinal, englobarão muitos outros órgãos e setores, além do Ministério da Defesa.

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Ainda assim, esses são apenas de caráter exemplificativo, pois para a Segurança

Humana, por exemplo, poderia ser incluído o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o do

Esporte (ME), e para a Segurança Econômica, o Ministério da Integração Nacional (MI)6.

O Ministério da Defesa e as Forças Armadas, precipuamente, estão encarregados de

questões que venham a refletir diretamente na Segurança Militar. As ações de natureza de

defesa civil, de combate à criminalidade e aos delitos transfronteiriços, dentre outras, são,

para o MD, de caráter subsidiário, como aponta o ordenamento jurídico em vigor.

Entretanto, mister registrar que em todas as áreas ou setores estratégicos para o País, o

MD deve possuir pontos de contato, interseção, como demonstrado na Figura 3, uma vez que um

dano causado em uma estrutura estratégica, ainda que à primeira vista não-militar, pode

ocasionar severos prejuízos ao Estado e à sua sociedade, como é o caso do sistema elétrico, de

telecomunicações, de transportes, de abastecimento de água, dentre outros.7

Pode-se inferir, como exemplo de deslindes dessa discussão e de seu grau de importância

na agenda política estatal, especificamente quanto à existência dessa zona de interseção entre

Defesa e Segurança Pública aplicada em um setor estratégico (o cibernético), a conferência de

abertura no III Seminário de Defesa Cibernética, em outubro de 2012, pois assim se pronunciou

o Ministro da Defesa do Brasil:

Não tenho dúvidas, por exemplo, de que a proteção de estruturas críticas do país –

usinas hidroelétricas, linhas de transmissão, bases de dados do sistema financeiro, para

6 Siglas do gráfico, referentes aos órgãos públicos, extraídas de:

- http://pt.wikipedia.org/wiki/Minist%C3%A9rios_do_Brasil#Minist.C3.A9rios_do_Brasil. 7 O exemplo mais recente é o caso de espionagem da Agência de Segurança Nacional Americana (NSA) em e-

mails governamentais e de dados de empresas estratégicas, como a Petrobras.

MPOG/

MF

MJ / Polícias

MCT/MC

MD/F

A

MME

MMA

Seg Hum

Seg Econ

Seg Amb

Seg Energ

Seg

Info/Cib

er

Seg

Inst/Pub

Seg

Mil

“Seguranças” demandadas Órgãos e “ações de defesa”

Figura 3: Segurança e Defesa funcionalmente

MD /

FA

MEC/MDS/MPA

/MPS

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não falar dos próprios meios das Forças Armadas – pertencem à Defesa. A identificação

e perseguição de hackers e crackers é tarefa da Segurança. Mas há áreas cinzentas entre

uma e outra. Essa questão seria, por si, matéria para um outro seminário. (AMORIM,

2012)

Decerto que esses conceitos são construídos e modificados ao longo do tempo. Assim,

no período de disputa Washington X Moscou, tinha-se a construção dos conceitos de Defesa,

interna e externa, e de Segurança, interna e externa. A diferenciação suficiente entre eles

ocorria no binômio sensação-ação, tendo o Estado como o único ator privilegiado na análise.

Nessa visada, enquanto Defesa pressupunha ação (fazer), Segurança correspondia a

um estado (ser/estar). Portanto, sentir-se seguro ou ter a sensação de segurança era garantido a

partir de ações, que, por sua vez, caracterizavam a Defesa. Isso, por si só, era o suficiente para

entender e responder às necessidades do contexto da época, face à natureza de suas principais

ameaças.

Contudo, acredita-se que hoje se faz um tanto quanto confusa a separação de

competências e de responsabilidades dos órgãos e instrumentos que lidam com a Segurança

sob o enfoque apenas do binômio sentir-fazer. À guisa de exemplo, o emprego das FA na

seara da garantia da lei e da ordem é operação de Defesa ou de Segurança? Pelo binômio até

então construído, tanto faria a resposta, já que Defesa “é o conjunto de ações para garantir a

segurança”. Contudo, as Op GLO possuem o caráter nitidamente de Segurança, ou melhor, de

Segurança Pública ou, em uma escala ascendente de gravidade, de Segurança Institucional,

voltada para o ambiente interno, para questões de instabilidade interna, fruto de

vulnerabilidades sociais, por exemplo. O inimigo externo, a priori, não faz parte desse

contexto.

Outro exemplo dessa incompatibilidade pode ser encontrado no emprego dos

“capacetes azuis”. Os integrantes de uma força armada estatal, quando participantes de uma

missão de paz, sob a égide da ONU, estariam exercendo ações de Defesa? Crê-se que não,

pois esse tipo de missão está previsto em um ordenamento próprio (a Carta da ONU), aceito

por todos os seus países membros. Assim, essas operações, embora empregando agentes

militares de força armada (de Defesa)8, dizem respeito a questões que envolvem a segurança e

a paz do ambiente internacional, isto é, o objeto a ser buscado é de interesse comum de todos

ou pelo menos de sua grande maioria. Em outras palavras, é legítimo e legal, e obedece a uma

ordem.

É também por isso que as regras de engajamento e o modus operandi de uma tropa

nesses contextos são baseados em outros princípios e regras que não aqueles regidos nos

8 Que trazem, por conseguinte, cargas afetivas como a identidade cultural e o nacionalismo (nationness).

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conflitos interestatais, derivados da anarquia do sistema9. Por isso, a definição entre

Segurança e Defesa deve ir além de mera sensação-ação. Esses dois conceitos devem ser

considerados sob a ótica de instituições e de suas respectivas funções.

4. SEGURANÇA E DEFESA COMO INSTITUIÇÕES: UMA CHAVE PARA

COMPREENSÃO

Como pressuposto para a discussão sobre Segurança e Defesa vistas como instituições,

precisa-se registrar que, derivado do poder soberano, um dos elementos essenciais do Estado,

há um poder voltado para o âmbito interno, a fim de atender às funções políticas de

normatização, de administração e de jurisdição. Essas funções são representadas pelos Três

Poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, baseadas na clássica divisão tripartite de

Montesquieu.

A saber, é incumbência do Poder Executivo uma dessas funções – a administrativa –,

pela qual o Estado dirige, no âmbito interno, a administração pública e, no externo, conduz as

relações internacionais. Com relação à administração, esse poder corresponde ao que na

doutrina jurídica é denominado poder de polícia. A sua definição é encontrada na legislação

Pátria apenas no Código Tributário Nacional – Decreto-lei Nr 5.172, de 1966, recepcionado

como Lei Complementar pela Constituição Federal de 1988 –, conforme recorte seguinte:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que,

limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou

abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene,

à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de

atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à

tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou

coletivos. (BRASIL, 1966)

Como se apreende, esse poder não trata apenas das polícias. Vai além, significando o

poder que possui o Estado, no âmbito interno, para garantir, em síntese, o seu ordenamento.

Assim, encontra-se como previsão questões ligadas à higiene (vigilância sanitária), aos

costumes (fiscalização em festas por parte do juizado da criança e do adolescente, censura

etc.), às atividades econômicas e ambientais (concessão de licença para construção, exigência

de Estudo de Impacto Ambiental e o relatório daí derivado – RIMA), dentre outras, o que nos

9 Nesse sentido afirma Fabio Brandt, na reportagem intitulada Não se pode combater o crime com o Direito de

Guerra: “Para as guerras, o Direito Humanitário Internacional (DHI) estabelece regras específicas. Por exemplo:

ninguém vai a julgamento por matar um soldado inimigo. Isso é normal nessas circunstâncias, avalia o assessor

do CICV (João Paulo Charleaux, assessor de comunicação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha para

Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai) [...]” (Disponível em: Revista Consultor Jurídico, 3 nov. 2007).

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deixa com a percepção que o teor intrínseco desse poder é a restrição de direitos individuais

em detrimento da ordem coletiva.

A ordem, então, passa a ser o objetivo maior a partir de uma série de atribuições, em

diferentes setores. O poder de polícia – desmistificando-o – está presente no cotidiano dos

cidadãos, não correspondendo, a priori, ao uso de violência física propriamente dita, nem ao

uso de armas ou de equipamentos para esse fim.

A partir do entendimento acerca do poder de polícia, chega-se a duas funções nele

originadas: a de polícia administrativa e a de segurança pública (ESG, 2009, p. 28). É nesta

última que se encontra o dever do Estado em oferecer as condições de Segurança à sociedade,

seja no plano pessoal, seja no coletivo, consistindo no “poder-dever estatal de prevenir e

reprimir o crime e a criminalidade” (ESG, 2009, p. 28).

Saint-Pierre, baseando-se nos estudos de Karl Schimitt, aponta para a diferença da

aplicação do poder soberano no ambiente interno (de polícia) e no externo (política):

Para seu interior – dirá Schimitt – o soberano é a polícia e, no sentido estrito da

palavra, só haverá política para o exterior. A estrutura institucional responsável por

este objetivo é a do Judiciário e seu instrumento é o sistema policial. É da polícia

preparada, treinada, capacitada, armada e doutrinada para manter a ordem e reprimir

os “fora da lei”, que se constitui o conteúdo sociológico desse instrumento. (SAINT-

PIERRE, 2012, p. 42, tradução do autor)

Continua Saint-Pierre, pormenorizando seu ponto de vista e concluindo-o:

Note-se que é o mesmo monopólio legítimo da violência que emana energia para

manter a ordem interna (segurança) e para garantir a soberania externa (defesa). No

entanto, a diferença de emprego (monopólio internamente e livre concorrência

externamente) define e distingue o campo interno do externo da unidade política. É

também esse mesmo fenômeno que mostra claramente a natureza diferente da força

utilizada em cada caso: ordenadora e protetora, internamente; defensora e letal,

externamente. (SAINT-PIERRE, 2012, p. 43, tradução do autor)

Dessa forma, emprega-se os quadros abaixo, na tentativa de ilustrar o debate até aqui,

demonstrando, em um curto lapso temporal, tentativas de aprimoramento de propostas acerca

desses conceitos:

Termo Origem/Natureza Agentes Ambiente

Defesa Conflito/Guerra Forças Militares Externo

Segurança Desordem/Delito Forças Policiais Interno

Fonte: MEDEIROS FILHO, 2010.

Quadro 1: Defesa e Segurança: tipologia com base na natureza institucional

Page 12: DEFESA E SEGURANÇA; GUERRA E NÃO-GUERRA: … · Verifica-se, então, a necessidade de uma nova construção, para atender a um espectro maior de demandas. Assim, como resultado,

Quadro 2: Conceito funcionalista ampliado de defesa e segurança

Ação Natureza Agentes Ambiente

Principal

Ambiente

Secundário

Defesa Conflito/

Guerra Forças Militares Externo Interno

Segurança Desordem/

desordem Forças Policiais Interno Externo

Fonte: FERREIRA NETO, 2013.

Sabe-se que as divergências ainda existem, pois há casos que não são fáceis de serem

solucionados. Dessa forma, sugere-se a utilização de ferramentas da língua portuguesa para se

equacionar essa aparente confusão: o termo Defesa, com a inicial em maiúsculo, versa sobre o

emprego da expressão militar, prioritariamente, voltada para ameaças externas, geralmente de

um ente político de mesmo status no sistema, enxergando a guerra, ou a sua sombra, como

pano de fundo (Defesa como instituição). Já defesa, com inicial em minúsculo, utiliza-se para

indicar as ações preventivas adotadas para fins de consecução ou manutenção das

“seguranças”, não necessariamente apenas a militar. Essa diferenciação se faz importante,

principalmente, face às publicações e documentos oficiais que tratam do tema e que, pelo

menos aparentemente, trazem ou podem provocar certa confusão.

No tocante à Segurança, considera-se como pano de fundo não apenas a guerra, mas

também vulnerabilidades de todos os tipos e níveis dentro de um arcabouço jurídico-

normativo já existente. Nesses termos, ainda se utilizando do vernáculo, propõe-se o uso de

um complemento ao nome “Segurança”, empregando um adjetivo, a fim de maior delimitação

do objeto em tratamento, o que favorecerá uma melhor consciência situacional (awareness)

dos agentes públicos em geral.

Quadro 3: Segurança, Instituições Responsáveis e Âmbito de Atuação

Fonte: MATIAS e MATIJASCIC, 2011.

Page 13: DEFESA E SEGURANÇA; GUERRA E NÃO-GUERRA: … · Verifica-se, então, a necessidade de uma nova construção, para atender a um espectro maior de demandas. Assim, como resultado,

Esse esforço teórico nem sempre abarca toda a realidade. Como exemplos, tem-se as

denominadas ações de natureza constabular (constabulary), isto é, ações que se localizam “em

uma zona de interseção entre as questões de Defesa Nacional e de Segurança Pública”

(MEDEIROS FILHO, 2010; FERREIRA NETO; RIBEIRO, 2011), como o combate ao

tráfico internacional de drogas, de armas, de pessoas e os crimes ambientais, enfim, delitos de

ordem transnacional/transterritorial, ou ações que, mesmo não partindo de outro ator estatal,

possam causar graves danos ao País. Mas isso, contudo, não causaria a invalidação dessa

tipologia. Pelo contrário, reforçá-la-ia, pois se teria a exata noção do seu posicionamento na

escala de uso da força (militar).

5. SEGURANÇA E DEFESA COM FOCO NO SISTEMA INTERNACIONAL: DA

ONU AOS BANCOS ESCOLARES DA AMAN

No que diz respeito ao termo Segurança Internacional, não se estaria falando somente

da guerra, mas sim, também, de vulnerabilidades do Sistema Internacional, ou melhor, de uma

Sociedade Internacional10

constituída e, em parte, vinculada por interesses comuns e que

almeja ordem, por meio do uso de mecanismos institucionais de caráter normativo-jurídico,

não obstante a anarquia.

É o caso, por exemplo, dos “capacetes azuis” em Operações de Paz. Nas operações de

natureza impositiva pelo uso da força, apesar de haver ações nos níveis tático e operacional

típicas de guerra, no arcabouço jurídico ao qual estão submetidas essas medidas, essas passam

a ser interpretadas como sendo de polícia, de Segurança, no espectro internacional, isto é,

10

Conceito que diverge do de Sistema Internacional, por conter a ideia de ordenamento, de valores e de

interesses comuns dentro de um determinado grupo, no caso a própria sociedade mundial, mesmo considerando a

anarquia.

Fonte: MEDEIROS FILHO, 2010.

Figura 4: Defesa Nacional, Segurança Pública e Ações Constabulares

Page 14: DEFESA E SEGURANÇA; GUERRA E NÃO-GUERRA: … · Verifica-se, então, a necessidade de uma nova construção, para atender a um espectro maior de demandas. Assim, como resultado,

para combater algum delito ou infringência aos dispositivos da Carta da ONU, um dos

ordenamentos normativos internacionais. Daí não serem consideradas intervenções, mas sim

ações a partir da competência impositiva desse organismo, construção bem próxima do que

ocorre com o poder de polícia no âmbito intraestatal.

Nesse aspecto, concorda-se com Medeiros Filho (2010), no sentido de que a Escola

Inglesa das Relações Internacionais, por meio dos trabalhos de Heddley Bull (2002),

proporciona uma chave, ainda que parcial, para essa diferenciação, assim ajudando na

tipologia a ser definida, ao constatar que, embora existam interesses comuns e possibilidade

de jogos de soma positiva para as partes, o conflito sempre estará como pano de fundo.

Para a Escola Inglesa, no âmbito internacional, pode-se concluir que Defesa

“pressupõe unidades políticas em disputa no Sistema Internacional” (MEDEIROS FILHO,

2010, p. 46), enquanto Segurança possui como pressuposto uma Sociedade de Estados, com

interesses e ordenamento comuns11

.

Diferentemente do contexto da socialização, na competição oriunda da anarquia esses

mesmos atores buscam maximizar seus ganhos, agindo racionalmente para, em última

instância, garantirem sua sobrevivência. Aí tratar-se-ia da Defesa, face à anarquia.

À luz desse suporte teórico, temos que a diferenciação analítica pode ser feita entre as

expressões “combate em guerra” e “combate ao crime” (MEDEIROS FILHO, 2010). É dessa

forma que se entende o porquê do combate às “novas ameaças” não ser suficiente apenas com

o emprego unilateral da Força Armada. O problema é comum e perpassa vários países, por

meio de redes que conseguem superar, muitas vezes, as barreiras fronteiriças. Assim também

é que se compreende a necessidade de cooperação interestatal, intersetorial e de operações

interagências, porque essas ameaças são de natureza e de atores difusos.

O debate sobre essa temática possui tanta capilaridade e apresenta tantas maneiras de

ser conduzido que perpassa a ONU, os seus Estados membros, principalmente os

permanentes, alcançando-se até os bancos escolares das academias militares.

No ano de 2011, à guisa de exemplo, a Academia Militar das Agulhas Negras iniciou

o processo de “Transformação do Ensino”. Uma das consequências, tanto da mudança do

contexto global, quanto do processo de ensino, trata do debate acerca das denominadas

Operações de Guerra e de Não-Guerra. Esses são alguns questionamentos que conduzem

essa discussão: “O que caracteriza cada uma dessas operações e, por conseguinte, o que as

difere? Há dispositivo legal para emprego da tropa militar em ambas? Quais? Como preparar

11

Essa diferenciação também foi notada por Keneth Waltz (1979 apud SARFATI, 2005, p. 146), no que chamou

de socialização dos atores, referindo-se a uma das formas indiretas de causalidade da estrutura no sistema.

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as habilidades do futuro oficial para essas demandas difusas?”. Enfim, uma série de

indagações complexas e que, por isso, vem trazendo desafios ao modelo até então vigente.

Por enquanto, têm-se as seguintes conclusões, ainda que parciais: quanto às Operações

de Guerra, estão incluídas ações típicas de Forças Armadas, envolvendo conflito de poder

militar no cenário entre Estados, considerando a anarquia do sistema. É a ameaça clássica,

típica da Defesa, fruto da lógica competitiva do sistema de Estados. Caracterizaria a

Segurança Militar propriamente dita.

Nas operações de Não-Guerra, estão enquadradas as ações/operações típicas de

Segurança que não a militar, essencialmente: combate aos delitos transterritoriais/

transnacionais; operações de garantia da lei e da ordem, missões de paz, defesa civil, ações

humanitárias; ou seja, a utilização da expressão do poder militar em “outras seguranças” que

não necessariamente envolvem, em um primeiro momento, o binômio tradicional Segurança

Nacional – Defesa Nacional. A participação do Exército como Força Coordenadora das ações

de Segurança (lato sensu) nos eventos Rio+20 (2012) e Copa das Confederações (2013), e nas

vindouras Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016) são alguns exemplos desse tipo de

operação, que refletem essa fundamentação.

6. CONSIDERANDOS FINAIS: SINTETIZANDO A TEORIZAÇÃO E OS

REFLEXOS PRÁTICOS

Por fim, como conclusão acerca dos conceitos de Defesa e Segurança, tem-se por

Segurança um conceito mais abrangente do que o de Defesa, envolvendo o “sentir-se seguro”

em diversos níveis e em vários setores (segurança multidimensional). Nesse conceito, estão

abrangidas tanto ameaças das diversas escalas – ligadas ao indivíduo, ao Estado e ao Sistema

Internacional (este com alguns pontos comuns que o impõe certa ordem normativa) –, quanto

dos setores político, militar, alimentar, energético, ambiental, econômico, cibernético, por

exemplo.

E, por Defesa, entende-se a Instituição Forças Armadas de um Estado e o seu

emprego, prioritariamente, para garantia da Segurança Militar. Esse conceito trabalha com as

hipóteses de guerra, em um ambiente anárquico, no qual imperam as relações de poder – e,

portanto, de conflito. Assim, a Defesa constitui apenas uma das instituições estatais

responsáveis pela Segurança, no caso a tipificada como Militar e, em alguns casos, Política.

Por consequência, ao se tratar de grau de intensidade do uso de força, a instituição Defesa é

considerada a ultima ratio do ser político estatal.

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Todavia, sabe-se que essa teorização e, principalmente, a compreensão por parte dos

agentes públicos em geral, e em especial os que possuem a prerrogativa do uso da força de

forma legítima, não é fácil, pois demanda uma visão multidisciplinar e seus respectivos

pontos de conexão, além de uma consciência dos diversos níveis de análise. Quanto a estes, o

exame de situação ou a consciência situacional demandará o “saber” da exata localização, no

espaço e no tempo, do emprego de determinada fração no Sistema Internacional, que pode

variar tanto do nível estatal ao internacional (ONU/OEA), como ao do indivíduo.

Com relação aos campos do saber, isto é, aos “saberes” inseridos nessa discussão,

juntamente com o aprendizado inerente às disciplinas da área técnico-profissional, as lições e

os conceitos advindos do Direito, das Relações Internacionais, da Geopolítica, da Sociologia,

da Filosofia e da Psicologia, por exemplo, devem fazer parte do cabedal de conhecimento da

autoridade ou da liderança, decisora ou executora. Somente dessa forma o emprego da força

garantirá seu status de legitimidade e de legalidade perante as sociedades, nacional e

internacional, confluindo o conhecimento, as habilidades e as atitudes com o “saber-

aprender”, o “saber-fazer”, o “saber-ser” e o “saber-conviver”.

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