Denise Jodelet - Retorno Ao Sujeito

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    O MOVIMENTO DE RETORNO AO SUJEITOE A ABORDAGEM DAS REPRESENTAES

    SOCIAISDenise Jodelet*

    Resumo:O artigo constata, nas cincias sociais, um retorno noode sujeito capaz de inspirar uma nova abordagem da subjetividadeno campo de estudo das representaes sociais. Aps um exame dosmomentos que signicaram a morte e a ressurreio da noo de

    sujeito, so abordados os principais temas que caracterizaram a suareintegrao na Histria, na Sociologia e na Antropologia. Essestemas permitem descartar o risco de uma viso solipsista no exameda parte subjetiva das representaes sociais. Para esse m, um

    esquema tripartite proposto, relacionando a gnese e as funesdas representaes sociais a trs esferas (subjetiva, intersubjetivae transubjetiva) e ilustrado por uma anlise dos debates relativosao clebre episdio das caricaturas de Maom. As reexes nais

    propem que o estudo das representaes sociais se oriente para as

    relaes entre pensamento e mudana social.

    Palavras-chave: representaes sociais, sujeito, subjetividade,intersubjetividade, transubjetividade, horizonte,pensamento.

    A partir de agora possvel quebrar o silncio imposto atodas as concepes do sujeito, de suas representaes e desuas batalhas.

    Alain Touraine (2007, p. 18)

    * Directrice dtudes, cole des Hautes tudes en Sciences Sociales (Laboratoire dePsychologie Sociale, Institut Interdisciplinaire dAnthropologie du Contemporain).E-mail:[email protected]

    Texto originalmente publicado em: Connexions, n. 89, p 25-46, 2008 reproduzido com a

    autorizao dos editores.

    Traduo de Lucelena Ferreira.E-mail:[email protected]

    Artigo recebido em 31 jul. 2009 e aprovado em 23 out. 2009.

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    Desde a abertura do campo de estudo das representaescoletivas e sociais, a construo terica destes objetos e o estudoemprico dos fenmenos que lhes correspondem no deixa de

    levantar uma interrogao sobre sua relao com as representaesindividuais e sobre o estatuto concedido ao sujeito enunciador eprodutor das representaes, seja ele individual ou social. Estaquesto se encontra expressa, explicitamente ou no, na maneiracomo a noo de representao social ou coletiva foi elaboradaao longo do tempo, tanto pelo precursor, Durkheim (1895), e peloiniciador, Moscovici (1961, 1975), deste campo de investigao,

    como pelos diversos autores atuais e trabalhos que desenvolveram.1

    Se, para Durkheim, a relao entre representaes individuaise coletivas tomou a forma de uma oposio radical, para Moscovici,o fato de tratar a representao social como uma elaboraopsicolgica e social e de abordar sua formao a partir datriangulao sujeito-outro-objeto2(19703, 1984, 2000), conduziu

    ao questionamento sobre o lugar reservado ao sujeito. Este tratadomais ou menos explicitamente, nas diferentes abordagens, sejacomo resposta elementar dos agregados que denem uma estrutura

    de representao, seja como lugar de expresso de uma posiosocial, seja como portador de signicados circulantes no espao

    social ou construdos na interao. Alguns autores preocupam-se com a relao entre as representaes que so individuais eaquelas que so sociais, chegando a falar em representaes sociaisindividualizadas, nos limites do carter social de representaesobtidas pela convocao dos contedos trazidos pelos indivduos,ou na necessidade de identicar a maneira como os indivduos se

    apropriam das representaes socialmente partilhadas. Entretanto, foroso reconhecer que a questo do sujeito no , at o presente,objeto de uma reexo sistemtica na abordagem terica das

    representaes sociais.

    Pode-se atribuir aquilo que, em uma certa medida, parece um

    vazio terico a duas razes. Em Psicologia Social, a denio de

    Representaes

    individuais e

    sujeito enunciador.

    Em Moscovici,

    r.s. elaborao

    psicolgica e

    social.

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    seu objeto prprio conduziu a uma centralizao nos fenmenos de

    interao e de comunicao, localizando o estudo das representaes

    sociais no espao intermedirio tecido pelas relaes sociais,

    arriscando perder de vista a dimenso subjetiva de sua produo.

    Uma outra razo interveio, a meu ver, de maneira mais decisiva. Diz

    respeito ao destino que conheceu a noo de sujeito nas cincias

    e na losoa sociais, particularmente durante a segunda metade do

    sculo XX.

    Logo depois da Segunda Guerra Mundial, vrias correntes

    de pensamento convergiram para desacreditar a noo de sujeito.Entretanto, as conjunturas histricas e epistemolgicas que marcaram

    o m do sculo se traduziram em recolocar em questo paradigmas

    at ento dominantes, tentando uma inverso de posies que a

    Psicologia Social no podia evitar de levar em conta. Essa inverso

    associa reabilitao da noo de sujeito um reconhecimento da

    noo de representao como fenmeno social maior. O exame deste

    destino deveria fornecer algumas pistas para avanar na reintegraodo sujeito na abordagem terica das representaes sociais.

    A morte do sujeito

    Grosso modo, pode-se dizer que a noo de sujeito, associada

    s idias de individualismo, de humanismo e de conscincia, foirejeitada sob o golpe de antemas oriundos do positivismo, do

    marxismo, do estruturalismo e do ps-modernismo, ou resultantes

    da combinao de algumas dessas perspectivas. Em primeiro lugar,

    e desde o sculo XIX, comeou um movimento do qual Nietzsche

    foi uma gura de destaque, recusando a idia de que o pensamento

    prprio de um sujeito individual e responsvel. Esse movimento

    apoiou-se no conjunto das teorias da desconana,4

    quedenunciaram o carter ilusrio de uma conscincia transparente a ela

    mesma. Mais especicamente, o antema encontrou duas expresses,

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    anulando o sujeito sob a determinao de causalidades objetivantes.

    Por um lado, em Psicologia, o behaviorismo eliminou o sujeito em

    razo de sua identicao com a noo de conscincia, de caixa preta

    inacessvel investigao cientca. Por outro lado, nas Cincias

    Sociais, o objetivismo, reicando os processos sociais, reduziu o

    mundo a um teatro de marionetes, segundo a imagem de Simmel.

    O antema marxista, enxergando no individualismo o produto de

    uma ideologia de classe e rejeitando a idia de uma conscincia

    livre cortada de suas condies materiais, situou o sujeito do lado

    da falsa conscincia. O antema estruturalista, responsabilizando o

    discurso do humanismo, obliterou o sujeito originrio e fundamental

    sob o jogo dos funcionamentos inconscientes de ordens psquicas,

    lingustica e social. O antema ps-moderno, alvejando o sujeito

    do cartesianismo e seu carter unitrio e substancial, dispersou o

    Si (Soi, no original francs) o selfque uma objetivao da

    identidade e no um sujeito sob as tcnicas sociais de saturao,

    para resgatar uma expresso de Gergen (1991).

    Estas condenaes subentenderam o que Touraine (2007)

    chama de discurso interpretativo dominante, que desloca a

    pesquisa na direo dos lugares exteriores ao sujeito na anlise e

    interpretao dos fatos sociais e das condutas humanas e sociais,

    com um efeito sobre os paradigmas de investigao psicolgica e

    social. No campo da Psicologia Social, este movimento de rejeio

    teve consequncias positivas no sentido de reintroduzir a dimensosocial na abordagem dos fenmenos estudados. Mas, ao mesmo

    tempo, isto conduziu eliminao da idia de sujeito como entidade

    psicolgica e mental, com a ateno se voltando unicamente sobre os

    fenmenos de interao, excluindo todo um espao relacionado com

    a dinmica psquica que subentende a produo do pensamento e da

    ao e deixando em segundo plano os fenmenos de representao.

    Esta orientao ocasionou o esquecimento ou a negligncia

    de certas contribuies que comearam, desde a abertura do campo

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    de estudo das representaes sociais, a aproximar sua dimenso

    subjetiva.5Eu penso, entre outras, na contribuio de Kas (1976),

    relativa ao aparelho psquico dos grupos, ou naquela da ego-

    ecologia (Zavalloni, 2007), que h trinta anos se dedica, a propsitodos processos identitrios, s relaes entre representaes sociais

    e subjetividade. Esses pontos de vista remetem a um sujeito que

    no seria um indivduo isolado no seu modo de vida, mas seria

    autenticamente social; um sujeito que interioriza, se apropria das

    representaes ao mesmo tempo em que intervm na sua construo.

    Seria o momento, quando se observa uma mudana de perspectiva

    nas cincias humanas, de restabelecer relaes com esta tradio.Contanto que os estudos realizados no campo das representaes

    sociais mirem tanto os indivduos que esto inseridos em e so

    inuenciados pelas redes e contextos sociais quanto os coletivos

    de natureza diversa (grupos, comunidades, conjuntos denidos por

    uma categoria social etc.).

    Para avanar nesta direo, convm abrir um parntese sobreas reexes realizadas, em plano losco, sobre a noo de sujeito.

    Isto por duas razes: por um lado, ressalta-se que as cincias humanas

    se abriram ao dilogo com a losoa (Dosse,1995); por outro lado,

    em Psicologia Social, os crticos da abordagem das representaes

    sociais buscam frequentemente um apoio nos textos loscos,

    tratando particularmente dos fenmenos mentais e discursivos.

    obvio que, no escopo deste artigo, no seria o caso de cobrir todas asdiscusses relativas ao conceito de sujeito. Eu me limitarei, ento,

    a algumas referncias que tm relao direta com a articulao da

    subjetividade e das representaes, aps um desvio pelo debate

    sobre a tradio clssica.

    Excursussobre o sujeito cartesiano

    De fato, muitos discursos de recusa do sujeito tm por

    alvo central um pretenso sujeito cartesiano que associado

    Sujeito social:

    interioriza, se

    apropria das

    representaes,

    ao mesmo tempo

    em que intervmna sua construo.

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    representao. Essas crticas tiveram um efeito notvel sobre aconcepo da representao social como modo de conhecimento queliga um sujeito e um objeto, afastando a validade de uma explorao

    das formas mentais em proveito da discursividade e levantando aquesto de relaes com as cincias cognitivas.6

    Ora, com o m do sculo XX, algumas vozes se levantaram

    para esclarecer algumas interpretaes equivocadas do dualismode Descartes, cuja reexo constituiu, segundo Chomsky (2006, p.

    98), a primeira revoluo cognitiva que estimulou fortemente a

    segunda revoluo cognitiva contempornea, sob trs referncias,a saber: o interesse pela natureza da conscincia e da lgica quepreside a coerncia das aes humanas, as teorias do esprito e suasrelaes com os funcionamentos corporais, o estudo da linguagemmarcado pela conuncia de idias no estilo tradicional esquecido

    h muito tempo .

    Pode-se falar, a propsito das armaes do ps-modernismo

    ou da losoa do esprito, de um cartesianismo de caricatura

    (Jacques, 2000) em razo dos contrassensos operados por certosautores anglo-saxes assimilando o Cogito ao sentido ntimo, introspeco que Descartes rejeitava, ou substancializandoaquilo que era apenas uma proposio existencial pela qual o eu,o mim[moi, no original francs] se coloca diante de Deus ou domundo. A limitao da losoa de Descartes dualidade alma-

    corpo ou ao dualismo pensamento-entendimento corresponderia aum uso incerto das cincias humanas e a uma tradio cultural queconduziram a uma m leitura e a lugares comuns, traduzindodiversas incompreenses ligadas ao desconhecimentode um projetoantropolgico fundado sobre a unio da alma e do corpo (Milon,2007). E, de fato, alguns autores apontaram, na articulao do corpoe do ego em Descartes,7 as premissas do uso losco da noo

    de carne como pensamento encarnado (Merleau-Ponty, 1964)8e dopressuposto fenomenolgico de uma intersubjetividade (Husserl,1950).9

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    Para outros, as expresses sujeito cartesiano e subjetividade

    cartesiana correspondem a uma inveno que um quiproqu

    de traduo referido sobretudo em Kant, mas que induz em outros

    autores, notadamente Heidegger, a erros de interpretao do sentido

    do Cogito(Balibar; Casin; Libera, 2004). Enm, encontra-se hoje

    um lsofo como Zizek (2007) para rearmar o sujeito cartesiano

    contra o pacto tcito que o esvazia, retomando uma leitura poltica

    e psicanaltica do cogitoque lhe nega a transparncia e mostra sua

    face obscura.

    Por outro lado, insistiu-se na dimenso de reivindicao e decrtica que comporta a posio do Eu, como o indica Canguilhem

    (1989, p. 29): pensar um exerccio do homem que requer a

    conscincia de si na presena no mundo, no como a representao

    doEu, mas como sua reivindicao, pois esta presena vigilante e

    mais exatamente de monitorao. [...] OEumonitorador do mundo

    das coisas e dos homens tanto o Eude Spinoza quanto o Eude

    Descartes. [...] Atribuir losoa a tarefa especca de defendero Eucomo reivindicao inalienvel de presena-vigilncia lhe

    reconhecer somente o papel da crtica.

    A emergncia da subjetividade

    Esta inscrio ativa no mundo encontra um eco em toda

    reexo contempornea que situa a questo do sujeito em uma

    perspectiva poltica e histrica. Esta reexo interessa sobretudo

    ao meio intelectual francs, mas ela inuenciou o pensamento de

    correntes contestadoras, particularmente o feminismo do outro lado

    do Atlntico, aquele de Butler (1997). Isto quer dizer que ela tem

    implicaes importantes para as Cincias Sociais, como resultado da

    identicao entre a problemtica da subjetividade e a da sujeio.

    Assim, para Deleuze e Guattari (1980), o sujeito moderno do

    sistema capitalista descrito por dois paradigmas: o da servido,

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    que vem do latim servus, a escravizao, e o da sujeio, o

    assujeitamento do indivduo a regras e objetivaes. A sada de

    um e de outro estado supe uma liberao na construo da relao

    consigo mesmo por meio de diversas modalidades prticas. As

    formas e as guras da subjetividade so criadas e moldadas, na

    histria, pelas condies sociais e instituies, que Guattari chama

    de equipamentos coletivos de subjetivao, que so de ordem

    religiosa, poltica, tcnica, artstica etc. Constatao que deixa

    aberta uma possibilidade de mudana: a subjetividade permanece

    hoje massivamente controlada por dispositivos de poder e de saberque colocam as inovaes tcnicas, cientcas e artsticas a servio

    das guras mais retrgradas da sociabilidade. E, no entanto, outras

    modalidades de produo subjetiva as processuais e singularizantes

    so concebveis. Estas formas alternativas de reapropriao

    existencial e de autovalorizao podem se tornar amanh a razo

    de vida das coletividades humanas e dos indivduos que se recusam

    a se abandonar entropia mortal caracterstica do perodo que nsatravessamos (Guattari, 1986, p. 18).

    Um movimento semelhante se observa em Foucault, que

    arma ter se preocupado sempre com o sujeito, leitmotiv de sua

    reexo. Em 1982, denindo o objetivo de seu trabalho ao longo dos

    ltimos vinte anos, ele arma que no era analisar os fenmenos de

    poder nem lanar as bases de uma tal anlise. Eu busquei produziruma histria dos diferentes modos de subjetivao do ser humano

    na nossa cultura (Foucault, 2001b, p. 1041). Nesta inteno geral

    se situa o empreendimento de uma histria da sexualidade como

    experincia, entendendo por experincia a correlao, em uma

    cultura, entre domnios de saber, tipos de normatividade e formas

    de subjetividade (p. 1559). E a tarefa que ele atribui losoa

    uma emancipao do sujeito: sem dvida, o objetivo principalhoje no descobrir, mas sim recusar aquilo que ns somos.

    necessrio imaginar e construir aquilo que poderamos ser para nos

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    desvencilharmos daquele tipo de duplo constrangimento poltico

    que so a individualizao e a totalizao simultneas das estruturas

    de poder moderno. No se trata de tentar libertar o indivduo do

    Estado e de suas instituies, mas de nos libertarmos nsmesmos

    do Estado e do tipo de individualizao a ele associado. necessrio

    que promovamos novas formas de subjetividade recusando o tipo

    de individualidade que nos foi imposto durante muitos sculos (p.

    1051).

    Foucault situa nos anos 1950 a sada da fascinao hegeliana

    graas a autores como Bataille, Blanchot, Klossowski, queressaltaram o problema do sujeito como problema fundamental

    para a losoa e o pensamento moderno, com o abandono da idia

    defendida pela losoa clssica e combatida pelos estruturalistas,

    segundo a qual o sujeito tem um carter fundamental e originrio.

    O sujeito tem uma gnese, o sujeito tem uma formao, o sujeito

    tem uma histria; o sujeito no originrio (Foucault, 2001b, p.

    590). Em sua busca de um novo pensamento acerca do sujeito,Foucault tenta assim explorar aquilo que poderia ser uma genealogia

    do sujeito, embora sabendo bem que os historiadores preferem a

    histria dos objetos e que os lsofos preferem o sujeito que no

    tem histria. O que no impede de me sentir uma parente emprica

    daqueles que so chamados de historiadores das mentalidades

    e de uma dvida terica em relao a um lsofo como Nietzsche

    que colocou a questo da historicidade do sujeito (Foucalt, 2001a,p. 506).

    Aqueles que se interessam pelas representaes sociais s

    podem ser sensveis a esta proximidade declarada com a histria

    das mentalidades e no podem, por outro lado, deixar de notar que

    quando Foucault (2001a) trata especicamente do sujeito, como o

    caso no curso Hermenutica do sujeito, do Collge de France, elerecorre noo de representao como conjunto de idias. A obra

    a nica cujo ndice comporta o termo representao, que referido

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    dezoito vezes. As passagens onde esse termo utilizado deixam

    entrever que a representao intervm no processo de subjetivao

    como objeto de um trabalho de reexo e de escolha, no domnio

    das tcnicas do si e do conhecimento do si exercidas na Antiguidade.

    Alm disso, o trabalho sobre as representaes se d sob a orientao

    de um diretor de conscincia, o que remete ao papel que desempenha

    a interao na elaborao da representao de si.

    O retorno do sujeito nas Cincias Sociais

    A ligao entre sujeito historicizado e representaes comoa correlao de sua transformao vo se reencontrar nos novos

    paradigmas das Cincias Sociais. O m das grandes narrativas,

    o abandono daquilo que chamamos de pensamento russo ou

    pensamento chins (Rioux; Sirinelli, 1997), aps o desmoronamentoda empiria sovitica e a emergncia de um pensamento ps-moderno,

    ocasionaram, nas Cincias Sociais, perturbaes que tiveram porconsequncia, ao mesmo tempo, a reabilitao do conceito derepresentao e a armao da necessidade de um retorno idia

    de sujeito ativo e pensante bem como uma nova interrogaosobre o vnculo social. Segundo Dosse (1995), as cincias humanas,no seu conjunto, levaram em conta uma concepo que no mais nem a da divinizao do sujeito nem a de sua dissoluo. A

    complexidade crescente dos problemas os conduz a postular umaforma de indeterminao tornando impossvel e vo o connamentodo homem numa lgica exclusivista, seja moral, nacional, gentica,neuronal. Por outro lado, esta nova interrogao sobre o vnculosocial implica uma outra escala de anlise, mais prxima dos atoressociais. No cotidiano, as representaes desempenham o papel dealavancas metodolgicas que permitem interessar-se antes peloinstituinte do que pelo institudo (Dosse, 1995, p. 418).

    Assim, a maneira na qual o indivduo foi conceitualizado na

    sua relao com a sociedade mudou. A relao indivduo/sociedade,

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    inicialmente formulada em termos de oposio entre ator ou agente

    e sistema social ou estrutura, evoluiu em um sentido que aproxima,

    na sua acepo das noes de ator e de agente e os faz juntar-se

    noo de sujeito.

    Afastando-se de uma concepo de indivduo orientado por

    seus interesses e suas intenes privadas, o termo ator tem um uso

    generalizado nas Cincias Sociais, desde Parsons. Inicialmente, o

    ator foi considerado como se manifestando por condutas sociais,

    pessoais e coletivas. Essas reetem as atribuies de papel, de

    estatuto e dependem de processos de socializao. Elas so denidaspor sua conformidade ou seu desvio em relao ao sistema das

    normas dominantes, em funo do qual seu signicado xado.

    Esta interpretao colocava em posio de subordinao o ator que

    desempenha os papis impostos por um lugar social, sem autonomia

    diante de uma sociedade regida pelos imperativos do poder e do

    lucro. A evoluo do tratamento da noo de ator colocou, mais tarde,

    em destaque a possibilidade de escolhas racionais e a capacidade deoposio aos constrangimentos do sistema, aproximando-a daquela

    de agente, particularmente desenvolvida na tradio inglesa,

    inspirada por Giddens.

    Colocar o indivduo como agente implica reconhecer neste

    ltimo um potencial de escolha de suas aes, permitindo-lhe

    escapar da passividade diante das presses ou constrangimentossociais e intervir, de maneira autnoma, no sistema das relaes

    sociais, como detentor de suas decises e senhor de suas aes.

    Desenvolvendo a noo de agente, Giddens (1982) denunciou o

    erro introduzido no pensamento francs pelo estruturalismo, que

    confundiu uma histria sem sujeito transcendental com uma histria

    sem sujeitos humanos conhecedores (knowledgeable)e capazes de

    exercer uma reexo sobre sua situao e seu saber. Contra a idiade uma histria sem sujeito (subject-less-history), ele prope, na sua

    teoria da estruturao, considerar os seres humanos como agentes

    O termo ator.

    O agente tem

    potencial de

    escolha.

    Giddens: sujeitos

    conhecedores e

    capazes de

    exercer uma

    reflexo sobre

    sua situao e seu

    saber.

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    conhecedores, mesmo se eles agem dentro de limites historicamente

    especicados que determinam condies sociais que eles no

    reconhecem e consequncias de seus atos que eles no podem prever.

    Concepo que se aproxima singularmente daquela de sujeito e

    coloca em primeiro plano a questo dos modos de conhecimento

    sobre os quais se ancora a ao.

    A evoluo paralela dos dois termos culmina nas reexes

    recentes de Touraine (2007). Ele fora a aproximao entre ator

    e sujeito at produzir uma teoria do sujeito, a m de integrar as

    transformaes que afetam, devido globalizao, a reexo deindivduos e de grupos que marcam uma vontade de liberdade,

    de armao de sua singularidade ou de sua particularidade, e

    uma reivindicao identitria, um desejo de reconhecimento para

    si e os outros. Para cercar esta nova realidade que se impe ao

    olhar do pesquisador, necessrio abandonar nossos princpios

    aparentemente mais garantidos, nossas representaes mais clssicas

    da sociedade e dos atores sociais. A nova demanda social aquelado direito a ter direitos; a idia de sujeito convocada pela

    transformao de uma conscincia de si que se torna mais forte

    do que a conscincia das regras, das normas e das exigncias dos

    sistemas em que se vive e age (p. 16).

    A virada subjetivista na Histria e na Antropologia

    A mudana de perspectiva se encontra nas outras disciplinas

    sociais em razo de uma crise que se situa a partir dos anos 1980. De um

    ponto de vista epistemolgico, esta crise decorre tanto da considerao

    dos determinismos econmicos e dos condicionamentos sociais

    como da recusa do modelo positivista ou do carter dogmtico da

    virada lingustica. Disto resultou, nas contribuies correspondentes chegada do terceiro milnio, o destaque da historicidade, do

    pragmatismo e dos modelos interpretativos se oferecendo a uma

    Agentes conhecedores, mesmo se agem dentro de limites historicamente especificados.

    Sujeito em

    Touraine.

    Desejo de

    econhecimen-

    o para si e

    para os outros.

    Uma conscin-

    cia de si que se

    torna mais forte

    que a conscin-

    cia das regras.

  • 8/13/2019 Denise Jodelet - Retorno Ao Sujeito

    13/34

    691O movimento de retorno ao sujeito e a abordagem das representaes...

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    apropriao desligada do oposto das transposies mecnicas, por

    aplicao, do pensamento pronto para pensar10 dos esquemas

    tericos ossicados (Lepetit, 1995, p. 15).

    Este movimento desembocou, particularmente em Histria,

    sobre uma dupla perspectiva. Por um lado, um recurso sistemtico

    noo de representao, como dizia Boreau (1995, p. 20): A noo

    de representao, depois de quinze anos, se implantou fortemente

    no ateli do historiador. Este sucesso no um modismo, j que est

    ligado a um verdadeiro progresso na descrio dos estados mentais

    e de sua expresso segundo sua ligao com o processo histrico ousocial. Por outro lado, a emergncia de uma corrente de crtica prpria

    ao campo histrico.11Em conseqncia das perspectivas abertas, a

    Antropologia e a micro-histria12 forneceram aos historiadores as

    razes de uma mudana de escala na abordagem e na denio dos

    objetos de estudo. Elas preconizaram o respeito complexidade dos

    fenmenos estudados, a reabilitao da experincia dos atores sociais,

    considerados na sua singularidade e sublinhando a importncia docontexto particular que d sentido experincia.

    Sobre o plano coletivo, isto levou a considerar o papel

    dos sujeitos tidos por pensantes e que agem e a reconhecer a

    importncia das reivindicaes identitrias nas lutas pela dominao

    e reconhecimento social. O estudo dessas lutas que envolvem

    a estruturao do social acentua as estratgias simblicas que

    determinam posies e relaes e constroem, para cada classe,

    grupo ou meio, uma percepo de si constitutiva da sua identidade

    (Chartier, 1989). Tais armaes apresentam uma singular

    aproximao com a tica psicossocial, j que ela desloca o centro

    de gravidade do indivduo que manifesta sua pertena grupal para

    a armao identitria de uma coletividade por meio de processos

    simblicos que regem as relaes sociais.

    Pode-se, assim, falar de um novo paradigma, o paradigma

    subjetivista, para utilizar uma expresso de Noiriel (1989). Este

    Sujeitos tidos

    por pensantes que

    agem.

    Reivindicaes

    identitrias nas

    lutas pela domina-

    o e reconheci-mento social.

    Percepo desi constitutiva

    da sua

    identidade.

  • 8/13/2019 Denise Jodelet - Retorno Ao Sujeito

    14/34

    692 Denise Jodelet

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    ltimo, evocando para a Sociologia a possibilidade de contribuir

    com a superao dos impasses da histria quantitativa, prope que

    se recorra a noes como a da experincia vivida e de signicados

    investidos pelos indivduos em suas condutas, por um lado, e, poroutro, as da objetivao sob a forma de evidncia cotidiana e de

    interiorizao referente ao processo pelo qual as normas e valores

    sociais so integrados no espao interior dos indivduos.

    Em Antropologia, a integrao das contribuies da

    psicanlise e das cincias cognitivas em autores como Godelier

    (2007) e Descola (2006) orientou a ateno em direo aos processospsquicos e cognitivos que participam das organizaes sociais e

    estruturam a formao das identidades dos sujeitos sociais inscritos

    em uma ordem simblica e poltica. Assim, Godelier, reconstruindo

    o nascimento de si do sujeito social, insiste no fato de que, por

    meio da linguagem, os outros esto nele e com ele, e que, por

    meio das interaes, ele interioriza a viso cultural de seu eu. A

    presena ideal e emocional nos indivduos de relaes sociais quecaracterizam sua sociedade constitui a parte subjetiva destas relaes

    sociais, um conjunto de representaes e de valores que esto

    presentes tanto no indivduo quanto nas suas relaes com outros, j

    que eles do signicado a suas relaes. Desta forma, vemos que as

    relaes sociais no existem somente entre os indivduos, elas esto

    igualmente neles sob diversas formas (p. 179). Descola lana

    a hiptese de que a maneira de estruturar a experincia do mundoe do outro nas diferentes culturas e pocas regida por processos

    cognitivos. Ela ocorre em duas modalidades operadas e assumidas

    por todos os membros de um coletivo: por um lado, a identicao

    pela qual so colocadas as diferenas e semelhanas entre si e os

    outros humanos e no humanos com base na imputao de uma

    interioridade (estado de conscincia, alma etc.) e de uma sicalidade

    (materialidade, corporeidade); por outro lado, a relao denidorados laos estabelecidos entre os existentes, baseados seja em sua

    equivalncia a troca, o dom , seja sobre sua dependncia a

    Experincia

    vivida e significadosinvestidos por

    indivduos em suas

    condutas.

    As relaes sociais

    no existem somente

    entre os indivduos,

    mas tambm esto

    neles.

  • 8/13/2019 Denise Jodelet - Retorno Ao Sujeito

    15/34

    693O movimento de retorno ao sujeito e a abordagem das representaes...

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    produo, a proteo, a transmisso. Essa caracterizao a partir de

    um funcionamento cognitivo que remete a uma interioridade, seno

    a uma subjetividade, permite estabelecer modelos de organizao

    de relaes sociais que poderiam ser aplicados ao estudo das

    representaes sociais em espaos sociais denidos.

    As representaes sociais e o sujeito

    Todas estas evolues ocorridas nas cincias sociais

    deveriam incitar os psiclogos sociais que tratam de representaesa aprofundar os meios de anlise de tudo que diz respeito

    subjetividade. Reconhecer a existncia de um sujeito no implica

    supor nele um estado de solipsismo. Os modelos de interiorizao

    dos quais o parmetro o habitusde Bourdieu, o da psicanlise e as

    diferentes concepes sociais da relao com o outro (Jodelet, 2003)

    interiorizam o outro no sujeito. Em Psicologia Social, Zavalloni

    (2007) mostra a parte que se refere representao da alteridade naestruturao de uma identidade que envolve tambm a corporeidade.

    Mais recentemente, Markova (2007), inspirada por Bakhtin, remete

    dialogicidade tanto a formao das categorias de pensamento

    como a das representaes, numa retomada ontolgica da oposio

    distintiva emprestada da Antropologia.13Entretanto, a necessidade

    de afastar uma viso solipsista do sujeito no implica de modo algum

    em relacionar os sistemas de pensamento a uma pura estruturaopela troca linguageira (langagier, no original em francs). O lugar

    do encontro intersubjetivo est, como mostra Merleau-Ponty (2003),

    no campo da instituio que signica estabelecimento em uma

    experincia (ou em um aparelho construdo) de dimenses (no senso

    comum, cartesiano: sistema de referncias) em relao s quais toda

    uma sria de outras experincias tero sentido e constituiro uma

    sequncia, uma histria. O sujeito como outro inseparavelmenteinstitudo e instituidor: Eu me projeto nele e ele em mim, h uma

    projeo-introjeo, produto do que eu fao nele e do que ele faz

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    694 Denise Jodelet

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    em mim, verdadeira comunicao atravs de um movimento lateral:

    trata-se de um campo intersubjetivo ou simblico, o dos objetos

    culturais, que nosso meio, nossa articulao, nossa juno (p. 35-

    38).

    O que parece importante para o futuro estudar de que

    maneira um trabalho sobre representaes pode, ao mesmo tempo,

    tirar partido e contribuir para um trabalho sobre a subjetivao, de

    um duplo ponto de vista terico e prtico. A viso geral, certamente

    limitada, que acaba de ser traada, poderia, considerando a ligao

    entre subjetividade e representao, fornecer certas orientaessobre o plano da produo de conhecimentos e signicaes, dos

    efeitos sobre os contedos representacionais imputados s formas de

    subjetivao ligadas aos quadros sociais e histricos ou do papel das

    representaes na constituio das subjetividades e de sua armao

    identitria.

    Sob este ponto de vista, seria interessante ver como ainterveno sobre as representaes endossadas por eles poderia

    contribuir para uma mudana de subjetividade. Esta perspectiva

    no nova. Foucault a abordou a propsito das tcnicas do eu.

    Sobre o plano emprico, suciente recorrer aos diferentes modelos

    propostos pela interveno social tanto em Sociologia como em

    Psicossociologia (Jodelet, 2007b). Para induzir a uma mudana,

    seja por meio de modos de inuncia ou de processos de interaoe de negociao de signicado em vista de uma ressignicao

    da experincia dos atores sociais, esses modelos de interveno

    fazem sempre referncia a um trabalho sobre as representaes,

    individuais, sociais ou coletivas. Esse trabalho supe a correo de

    crenas consideradas como inadequadas ou falsas, a valorizao

    de saberes do senso comum, a conscientizao crtica das posturas

    ideolgicas, a reinterpretao das situaes de vida, a colocao emperspectiva das posies em funo de uma anlise dos contextos

    de ao e do ponto de vista dos atores. Estas perspectivas implicam

  • 8/13/2019 Denise Jodelet - Retorno Ao Sujeito

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    695O movimento de retorno ao sujeito e a abordagem das representaes...

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    que a abordagem de representaes sociais pode fornecer, para uma

    mudana social ao nvel individual ou coletivo e qualquer que seja o

    domnio de interveno, a melhor contribuio, mas tambm a mais

    difcil. A melhor, porque os modos que os sujeitos possuem de ver,

    pensar, conhecer, sentir e interpretar seu modo de vida e seu estar

    no mundo tm um papel indiscutvel na orientao e na reorientao

    das prticas. A mais difcil, pois as representaes sociais so

    fenmenos complexos, incitando um jogo de numerosas dimenses

    que devem ser integradas em uma mesma apreenso e sobre as quais

    necessrio intervir conjuntamente. A este respeito, eu proponho

    um quadro analtico que permita situar o estudo da representao

    social no jogo da subjetividade.

    As trs esferas de pertena das representaes sociais

    Para analisar as representaes sociais produzidas pelos

    indivduos e os grupos localizados em espaos concretos

    da vida e, ultrapassando o estgio da simples descrio de

    estados representacionais, denir as modalidades de uma ao

    transformadora, eu proponho o esquema seguinte, que delimita as

    esferas ou universos de pertena das representaes.

    As esferas de pertena das representaes sociais

    No h pensamentodescarnado

    No h indivduoisolado

    Intersubjetivo Subjetivo

    RS

    TransubjetivoContexto social de

    interao e inscrioEspao social e

    pblico

  • 8/13/2019 Denise Jodelet - Retorno Ao Sujeito

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    696 Denise Jodelet

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    Em se tratando de sua gnese e de suas funes, as

    representaes sociais podem ser relacionadas a trs esferas

    de pertena: a da subjetividade, a da intersubjetividade e a da

    transubjetividade. De acordo com a teoria das representaes sociais(Moscovici, 1961, 1976; Jodelet, 1989), toda representao social

    relacionada a um objeto e a um sujeito. Ainda que devamos sempre

    levar em considerao o tipo do objeto referido no estudo de uma

    representao social, o comentrio do esquema ser focalizado,

    por razes analticas, exclusivamente sobre o sujeito pensante.

    Vale sublinhar, como indicado nos ngulos do esquema, que os

    sujeitos devem ser concebidos no como indivduos isolados, mas

    como atores sociais ativos, afetados por diferentes aspectos da vida

    cotidiana, que se desenvolve em um contexto social de interao e de

    inscrio. A noo de inscrio compreende dois tipos de processos

    cuja importncia varivel segundo a natureza dos objetos e dos

    contextos considerados. Por um lado, a participao em uma rede de

    interaes com os outros, por meio da comunicao social aqui eu

    me rero ao modelo da triangulao sujeito-outro-objeto proposto

    por Moscovici (1984). Por outro lado, a pertena social denida em

    vrios nveis: o do lugar na estrutura social e da posio nas relaes

    sociais, o da insero nos grupos sociais e culturais que denem a

    identidade, o do contexto da vida onde se desenrolam as interaes

    sociais, o do espao social e pblico.

    A noo de subjetividade nos conduz a considerar os processosque operam no nvel dos indivduos eles-mesmos. Ainda que nossas

    pesquisas visem a deduzir os elementos representacionais partilhados,

    seria reducionista eliminar de nosso exame aquilo que corresponde

    aos processos pelos quais o sujeito se apropria e constri suas

    representaes. Esses processos podem ser de natureza cognitiva,

    emocional, e dependem de uma experincia de vida (Jodelet, 2006).

    Eles remetem igualmente aos estados de sujeio ou de resistnciade que falamos acima. Deste ponto de vista, convm distinguir as

    representaes que o sujeito elabora ativamente daquelas que ele

  • 8/13/2019 Denise Jodelet - Retorno Ao Sujeito

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    697O movimento de retorno ao sujeito e a abordagem das representaes...

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    integra passivamente, no contexto das rotinas de vida ou sob a presso

    da tradio ou da inuncia social. Vale ainda ressaltar que o sujeito

    se situa no mundo, em primeiro lugar, por seu corpo, como estabelece

    a fenomenologia. A participao no mundo e na subjetividade passapelo corpo: no h pensamento desencarnado, utuando no ar.

    Isso nos conduz a integrar na anlise das representaes os fatores

    emocionais e identitrios, ao lado das tomadas de posio ligadas

    ao lugar social (Doise, 1990) e das conotaes que vo caracterizar,

    em funo da pertena social, a estrutura das representaes (Abric,

    1994). As diversas facetas que qualicam o sujeito no entram em

    jogo de maneira sistemtica na produo das representaes sociais e

    sua importncia relativa deve evidentemente ser relacionada ao tipo

    de objeto representado e situao na qual se forja a representao.

    Levar em considerao o nvel subjetivo permite compreender uma

    funo importante das representaes. As representaes, que so

    sempre de algum, tm uma funo expressiva. Seu estudo permite

    acessar os signicados que os sujeitos, individuais ou coletivos,

    atribuem a um objeto localizado no seu meio social e material, e

    examinar como os signicados so articulados sua sensibilidade,

    seus interesses, seus desejos, suas emoes e ao funcionamento

    cognitivo.

    A esfera de intersubjetividade remete s situaes que, em um

    dado contexto, contribuem para o estabelecimento de representaes

    elaboradas na interao entre os sujeitos, apontando em particular aselaboraes negociadas e estabelecidas em comum pela comunicao

    verbal direta. So numerosos os casos que ilustram o papel da troca

    dialgica de que resultam a transmisso de informao, a construo

    de saber, a expresso de acordos ou de divergncias a propsito de

    objetos de interesse comum, a interpretao de temas pertinentes

    para a vida dos participantes em interao, a possibilidade de criao

    de signicaes ou de ressignicaes consensuais. Esse tipo detroca objeto privilegiado da Psicologia Social e das intervenes

    de tipo teraputico ou daquelas que so destinadas a indivduos que

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    698 Denise Jodelet

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    desejam modicar sua relao com uma situao de vida em um

    contexto comunitrio, ou de trabalho em um contexto organizacional.

    Nesses espaos de interlocuo, recorre-se, tambm, a um universo

    j constitudo, no plano pessoal ou social, de representaes. Estas

    intervm como meio de compreenso, ferramentas de interpretao

    e de construo de signicaes partilhadas em torno de um objeto

    de interesse comum ou de acordo negociado.

    Finalmente, a terceira esfera, a da transubjetividade, foi menos

    levada em considerao, ao menos no decorrer dos ltimos anos.

    Ela se compe de elementos que atravessam o nvel tanto subjetivoquanto intersubjetivo. Sua escala domina tanto os indivduos e os

    grupos quanto os contextos de interao, as produes discursivas

    e as trocas verbais. O emprego da noo de transubjetividade,

    presente na fenomenologia, aqui diretamente tributrio da reexo

    de R. Boudon (1995) sobre a racionalidade subjetiva e as razes

    transubjetivamente vlidas de endossar uma crena indexada em

    uma situao (quadro espao-temporal, campo social ou institucional,universo de discurso) ou derivada de um entrelaamento de

    princpios, evidncias empricas, lgicas ou morais e de partilh-la

    coletivamente porque ela faz sentido para os atores implicados.

    Na formao das representaes sociais, a esfera da

    transubjetividade se situa diante da intersubjetividade e remete a

    tudo que comum aos membros de um mesmo coletivo. Este aspectocomunitrio pode ter, efetivamente, vrias origens. Ele pode resultar

    do acesso ao patrimnio de recursos fornecidos, para a interpretao

    do mundo, pelo aparelho cultural. Este oferece os critrios de

    codicao e de classicao da realidade, os instrumentos mentais,

    os repertrios que servem para construir as signicaes partilhadas

    e constitui o pano de fundo que permite a intercompreenso (Searle,

    1979). Ele pode depender do jogo de constrangimentos ou depresses ligadas seja s condies materiais de existncia, seja s

    imposies da estrutura das relaes sociais e de poder, seja aos

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    sistemas de normas e valores, seja ao estado de mentalidades que os

    historiadores tratam como sistemas de representaes que orientam

    as prticas coletivas e garantem o lao social e a identidade coletiva.

    Ele remete igualmente ao espao social e pblico onde circulam

    as representaes provenientes de fontes diversas: a difuso pelos

    meios de comunicao de massa, os contextos impostos pelos

    funcionamentos institucionais, as hegemonias ideolgicas etc.

    Atravessando os espaos de vida locais, esta esfera constitui um meio

    onde mergulham os indivduos. Pela sua circulao, as representaes

    assim geradas ultrapassam o quadro das interaes e so endossadas,

    sob a forma de adeso ou de submisso, pelos sujeitos. Para dar um

    exemplo do funcionamento desta esfera, citarei o caso do jogo de

    representaes na compreenso de um acontecimento poltico.

    A compreenso dos acontecimentos

    As tendncias recentes de interpretao da ao nas cinciassociais acentuam a importncia do acontecimento, evento inesperado

    em uma ordem temporal e um estado de coisas. Duas direes so

    seguidas quando se trata de dar signicado a um acontecimento.

    Para a cincia, so as consequncias do acontecimento que permitem

    analisar suas signicaes e seu alcance. Para o senso comum, estas

    ltimas decorrem da ancoragem do acontecimento no sistema de

    pensamento preexistente das pessoas que o interpretam. Segundo ospertencimentos sociais, os engajamentos ideolgicos, os sistemas de

    valores referenciais etc., um mesmo acontecimento pode mobilizar

    representaes transubjetivas diferentes, que o situam em horizontes

    variveis. Decorrem dos sujeitos interpretaes que se constituem

    em objeto de debate e podem levar a situaes de consenso ou de

    dissenso.

    A noo de horizonte, emprestada da fenomenologia, designa

    aqui os domnios segundo os quais um mesmo objeto pode ser

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    700 Denise Jodelet

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    situado. O objeto que um sujeito observa pode ser considerado em

    horizontes diferentes. Por exemplo, eu posso apreender uma rvore

    no horizonte externo que constitui a oresta ou o jardim onde ela

    est plantada, buscando suas diferenas e sua especicidade, sua

    contribuio ao efeito esttico do todo. Ou eu posso apreend-la no

    seu horizonte interno, concentrando-me na textura de sua casca, no

    arranjo de seus galhos, na forma de sua folhagem para denir sua

    espcie, seu desenvolvimento, seu estado de sade ou sua beleza etc.

    Esses dois horizontes de observao permitem deduzir, de acordo

    com a perspectiva adotada, propriedades diferentes. A noo dehorizonte na qual encaixado o objeto permite ultrapassar o carter

    puramente individual da noo de perspectiva. Pois este modo

    de se aproximar dos objetos e dos acontecimentos que povoam

    nosso mundo cotidiano remete aos sistemas de representaes

    transubjetivas que modelam e matizam nossas percepes.

    Para ilustrar este fenmeno de atribuio de signicado,

    tomarei o exemplo recente do caso das caricaturas de Maom,

    que surgiram na Dinamarca h dois anos.14Esse caso uma boa

    ilustrao da noo de horizonte e do jogo das representaes

    transubjetivas elaboradas pelos sujeitos e convocadas nas retricas

    sociais. A anlise de contedo dos debates suscitados por esse caso

    e que ocuparam durantes vrios meses o espao pblico (imprensa,

    rdio, TV) mostra que os argumentos dos protagonistas diferiamsegundo o horizonte no qual eles se situavam.

    Do lado dos que se colocaram contra as caricaturas,

    distinguem-se referncias a:

    1) um horizonte religioso que leva a qualicar as caricaturas

    de blasfmia de fato, nas religies judaica e muulmana, a

    imagem de Deus no pode ser objeto de uma representaopictrica. O profeta, encarnao de Deus, no pode ser

    representado. As caricaturas so uma violao de uma

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    proibio sagrada, uma blasfmia que deve ser condenada

    como foram os Versos Satnicosde Salman Rushdie.

    2) um horizonte comunitrio os muulmanos formam umacomunidade e todo gesto que afeta um de seus elementos

    um atentado comunidade no seu conjunto. Desenvolve-

    se, ento, uma dupla argumentao. A caricatura pode

    ser vista como uma humilhao. Sendo uma zombaria,

    ela interpretada como um insulto dirigido ao conjunto

    dos muulmanos que reivindicam seu direito a crer e

    a defender sua crena. O insulto percebido como umahumilhao pelas pessoas, frequentemente ex-colonizados,

    que se sentem sempre expostas ao desprezo e tomam a

    caricatura como uma ferida narcsica. E a caricatura pode

    ser vista comopreconceito. Fazendo parecer que todos os

    muulmanos pertencem a uma seita islmica extremista

    e terrorista, ela se constitui em preconceito contra todos

    aqueles que se classicam como muulmanos. O amlgama

    entre terrorismo e muulmano racista e opera em

    detrimento de toda comunidade que se encontra rejeitada

    em um mesmo oprbrio.

    Do lado dos que defendem as caricaturas, observa-se tambm

    uma argumentao fundada sobre dois horizontes de referncia. Sob

    o horizonte da democracia e da Declarao dos Direitos do Homem,

    de 1948, a caricatura remete a um direito inalienvel e universal,

    assegurando a liberdade de expressoque deve prevalecer sobre a

    crena religiosa. Sob um horizonte poltico, aponta-se a histria de

    uma manipulao. Embora condenando o jornal dinamarqus por

    sua orientao de extrema direita, sublinha-se o atraso da reao por

    parte dos meios muulmanos. Denuncia-se, ento, na mobilizaodas massas, uma manipulao islmica, um controle do poltico

    sobre a credulidade das multides.

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    702 Denise Jodelet

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    A interao entre as esferas de pertena

    das representaes

    A anlise dos debates mostrou no somente a irredutibilidadedas posies, mas tambm o fato de que os horizontes no so

    necessariamente compatveis ou cumulativos no interior de uma

    mesma tomada de posio. Este exemplo mostra que um mesmo

    objeto ou acontecimento visto por horizontes diferentes d lugar

    a negociaes de interpretao, confrontos de posio pelos quais

    os indivduos exprimem uma identidade e uma pertena. Cada

    um desses horizontes pe em evidncia uma signicao centraldo objeto em funo de sistemas de representaes transubjetivas

    especcos dos espaos sociais ou pblicos nos quais evoluem os

    sujeitos. Estes se apropriam dessas representaes em funo de sua

    adeso, de sua aliao a esses espaos.

    A esfera da transubjetividade, por ter sido associada a

    um nvel social global ou relacionada a um sistema rgido de

    determinao, no foi objeto de uma ateno especca no estudo

    das representaes sociais, sendo eliminada das preocupaes dos

    pesquisadores que desejavam respeitar o potencial de criatividade e

    de liberdade prprio da nova modernidade. Entretanto, como indica

    o exemplo das caricaturas, no apenas no se pode descuidar de

    consider-la, como ela permite anar a anlise do jogo das idias e

    das representaes. Alm disso, como mostra a experincia (Jodelet,

    2006), novas perspectivas tentam estabelecer uma ponte entre esta

    esfera e as outras. Enm, o encontro entre essas esferas abre um

    espao de comunicao e de liberdade, como mostram autores como

    Arendt e Habermas.

    Para Arendt (1983, p. 43), as condies de existncia,

    sejam naturais ou criadas pelos homens, moldam a experincia

    subjetiva: a inuncia da realidade do mundo sobre a existncia

    humana sentida, recebida como fora de condicionamento. Essas

    condies de existncia so a mola do exerccio do pensamento,

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    703O movimento de retorno ao sujeito e a abordagem das representaes...

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    distinto, de acordo com Kant, do conhecimento, que se refere

    a um saber positivo. Arendt arma que ns pensamos a partir de

    nossa prpria experincia e que, pelo vis do pensamento, nossa

    vida se torna comunicvel, partilhvel e compreensvel para os

    outros. O pensamento reformula aquilo que nossas condies de

    existncia impem, e o torna vlido para uma comunidade de seres

    humanos e no somente para uma nica pessoa. De tal forma que

    o pensamento do sujeito, moldado pela esfera transubjetiva, aqui

    encarnada nos condicionamentos sociais, tornam-se uma voz/via de

    intersubjetividade. Ao que podemos acrescentar, no que concerne

    relao pensamento/conhecimento, o fato de que o pensamento

    prprio do sujeito tambm uma maneira de resistir e de armar sua

    autonomia em relao ao saber e ao conhecimento cientco. Uma

    reexo de Canguilhem (1978) a respeito do campo mdico ilustra

    isto perfeitamente: o doente um Sujeito, capaz de expresso, que

    se reconhece como Sujeito em tudo aquilo que ele s sabe designar

    pelos possessivos: sua dor e a representao que ele faz dela, sua

    angstia, suas esperanas e seus sonhos. [...] impossvel anular na

    objetividade do saber mdico a subjetividade da experincia vivida

    pelo doente. Esta manifestao da existncia merece ser entendida,

    considerando que ela ope racionalidade de um julgamento bem

    fundado o limite de um tipo de teto impossvel de rebentar.

    Da mesma forma encontramos em Habermas (1987) um

    reconhecimento dos constrangimentos que constituem um espaode transubjetividade, conferindo intersubjetividade e linguagem

    umstatusde garantia de liberdade:

    A infraestrutura lingustica da sociedade um momento deum contexto que, sempre mediado pelos smbolos, constitui-seigualmente por meio dos constrangimentos reais: o de naturezaexterna, que repercute nos procedimentos do domnio tcnico, e o

    de natureza interna, que se reete nas represses que exercem asrelaes de fora social. Estas duas categorias de constrangimentosno so somente objeto de interpretao; revelia da linguagem,

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    elas agem sobre as regras prprias da gramtica em funo das quaisnos interpretamos. (Habermas, 1987, p. 220).

    Diante disto, o logos, o pensamento, que toma corpo nalinguagem ordinria e na comunicao, permite aos interlocutores

    guardar a liberdade de exercer, como sujeitos, por meio da expresso

    de seus entendimentos, um poder que os une.

    As reexes desses autores tm uma pertinncia direta para

    nossa prtica de pesquisa sobre representaes sociais, no seio das

    quais ns podemos distinguir o que do domnio do conhecimento,

    do saber, do que do domnio de um pensamento que se desenvolvea partir de nossa experincia concreta. Elas nos convidam a levar

    em considerao a negociao entre as condies transubjetivas e

    a libertao que autoriza um pensamento subjetivo comunicvel

    e comunicado na intersubjetividade, bem como a desvendar,

    no jogo dessas trs esferas, as condies de uma liberdade que

    sustentar as intervenes visando mudana social. A relao

    dialtica estabelecida entre modos de formao e funes das

    representaes sociais segundo sua atribuio topolgica mereceria

    desenvolvimentos mais amplos, ilustrados por casos empricos.

    Eu espero que o quadro que acabou de ser esboado em traos

    largos permita que se mensurem as potencialidades da perspectiva

    subjetivista adotada.

    Concluso

    Ao m de um percurso, sem dvida ambicioso, mas necessrio,

    que concluses tirar? O sujeito aparece sob diferentes guras: a de uma

    iluso ou de uma enganadora transparncia; a de uma objetivao em

    subjetividades historicamente constitudas; a de um poder reexivo

    de resistncia ou de vigilncia; a de uma liberdade que reivindicaseus direitos, suas referncias identitrias, sua responsabilidade; a

    de um desao nos combates simblicos e polticos. Permitiu-se ver

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    a evoluo do tratamento da noo de sujeito, os horizontes onde

    ela situada, os debates que ela gera, os efeitos que ela ocasiona

    na prtica das cincias humanas e nas proposies de interveno

    em vista de uma mudana. Por a se desenham os contornos de

    um territrio de estudo das representaes de cada poca (Jodelet,

    2007a), quer dizer, das representaes sociais, coletivas, cientcas,

    estreitamente ligadas ao futuro social e histrico.

    Por outro lado, pudemos entrever algumas relaes que o

    sujeito mantm com as representaes, produtos e cristalizaes de

    sentido que ele confere a seu universo de vida, ou interiorizaesdas imposies sociais que o constituem, mediaes da expresso

    de suas identidades. Haveria matria a desenvolver, assinalando a

    urgncia de reintroduzir esta noo na reexo psicossociolgica

    sobre o pensamento social.

    Falar de sujeito, no campo de estudo das representaes sociais,

    falar de pensamento, ou seja, referir-se a processos que implicamdimenses fsicas e cognitivas, a reexividade por questionamento

    e posicionamento diante da experincia, dos conhecimentos e do

    saber, a abertura para o mundo e os outros. Processos que tomam

    uma forma concreta em contedos representacionais expressos

    nos atos e nas palavras, nas formas de viver, nos discursos, nas

    trocas dialgicas, nas aliaes e nos conitos. Esta especicidade

    da representao do sujeito como pensamento abre um espao depesquisa que ainda precisa ser balizado. Para os autores citados, o

    termo sujeito aparece frequentemente como tendo uma natureza

    conceitual, abstrata, um carter programtico. S nos resta dar-lhe

    carne. O que no ser tarefa fcil!

    Notas

    1 Para uma apresentao sucinta deste campo de pesquisa, ver Jodelet

    (2006b).

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    2 Nota da tradutora: sujet-alter-objet, no original francs.

    3 Deve-se lembrar que, desde 1970, Moscovici utilizava esta triangulao

    para superar as diculdades encontradas pela Psicologia Social nadenio de sua unidade de anlise e de observao. Para vencer a

    tica individualista de pontos de vista taxionmica ou diferencial, elepropunha uma tica social tomando como ponto focal a unidade global

    constituda pela interdependncia, real ou simblica, de vrios sujeitosna sua relao com um meio comum, seja este de natureza fsica ou

    social. Tal perspectiva aplicada tanto aos fenmenos de grupo quantoaos processos psicolgicos e sociais e incorpora o fato da relao social

    na descrio e explicao dos fenmenos psicolgicos e sociais. Nestecaso, a relao Sujeito-objeto mediada pela interveno de um outrosujeito, de um Outro, e torna-se uma relao complexa de sujeito asujeito e de sujeitos a objetos (p. 33).

    4 Esto includas nesta categoria o marxismo, a psicanlise, oestruturalismo.

    5 Em 1970, Moscovici declinando daquilo que lhe parecia entrar nostemas prioritrios que constituem o que se pode chamar de objeto de

    uma cincia, incluiu, ao lado da ideologia, da comunicao, as relaesentre e nos grupos sociais de que o estudo remete a um problemafundamental da psicologia social: aquele da constituio do sujeito

    social (indivduo ou grupo) que recebe na e pela relao existncia eidentidade sociais (p. 63).

    6 Seria conveniente discutir tanto os recursos quanto os limites quecomportam uma referncia no somente aos modelos da cogniosocial mas tambm queles da losoa do esprito (Fisette, Poirier,

    2002). Discusso que ultrapassa o escopo deste artigo.

    7 Ver, na sexta Meditao ([1641] 1949, p. 217), a clebre frase: Eu noestou alojado no meu corpo como um piloto no seu navio, mas estouligado a ele muito estreitamente, to confundido e misturado que eu

    componho um todo com ele.

    8 A idia cartesiana do corpo humano como humano no fechado, aberto

    por ser governado pelo pensamento talvez a mais profunda idia da

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    unio da alma e do corpo. a alma interferindo em um corpo que no

    de si(se fosse, ele seria fechado como um corpo animal), no pode ser

    corpo e vivo humano que se completa em uma vista de si que o

    pensamento (Merleau-Ponty, 1964, p. 283).

    9 unicamente pela ligao da conscincia e do corpo em uma unidade

    natural devida intuio emprica que possvel algo como uma

    compreenso mtua entre os seres animados que pertencem a um

    mesmo mundo. [...] unicamente por esse meio que cada sujeito de

    conhecimento pode descobrir o mundo total como algo que o engloba,

    ele e outros sujeitos, e ao mesmo tempo o reconhece como sendo o

    nico mundo de vida comum a ele e aos outros sujeitos (Husserl, 1950,p. 179).

    10 Nota da tradutora: no texto original, Jodelet utiliza a expresso prt-

    -penser, criando um jogo de palavras que remete a prt--porter,

    expresso usada no universo da moda e que se refere s roupas

    compradas prontas para vestir, em oposio quelas feitas sob medida.

    11 Colocou-se em questo o modelo do longo prazo de Braudel que, durantemuito tempo, orientou a escola dos Anais e denunciou uma reicao

    de conceitos como a classe, o territrio, assim como o privilgio dado

    aos processos globais.

    12 A micro-histria emergiu na Itlia nos anos 1970, com a escola de

    Bolonha e autores como Ginzburg e Levi, cujos trabalhos, centrados

    em personagens singulares, um padre, um moleiro, inscritos em uma

    histria familiar e uma rede de relaes sociais, aderiram necessidadede fazer entender, de dar voz aos atores desconhecidos e de mostrar

    como os grandes fenmenos como a industrializao, a modernizao,

    a formao do Estado so resultado de estratgias e de trajetrias

    individuais e familiares. De modo que os fenmenos de agregao e

    desagregao sociais se encontram reconstrudos do ponto de vista das

    condutas e identidades individuais.

    13 Note-se que, mesmo na antropologia, diversas interpretaes destaoposio foram propostas desde Evans-Prichard, que a entende como

    decorrente de um processo de diferenciao social onde o no-ns

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    necessrio armao identitria de um ns, at Hritier, que

    baseia a formao binria das categorias de pensamento na experincia

    originria e primordial do corpo sexuado.

    14 Vou recordar rapidamente esse episdio e seus desdobramentos. Um

    jornal dinamarqus de extrema direita publicou uma srie de caricaturas

    do profeta Maom das quais uma em particular (uma cabea do

    profeta barbudo cujo turbante branco servia de ninho a uma pomba),

    desencadeou, quatro meses mais tarde, em vrios meios e pases

    islmicos, um movimento de protesto com amplitude e violncia raras

    (manifestaes de rua, ataque s embaixadas dinamarquesas, cremao

    de efgies e bandeiras etc.). Esse movimento ocasionou diversasreaes de reprovao e, no contexto democrtico francs, uma defesa

    da imprensa. Assim, a publicao semanal Charlie-Hebdoreproduziu

    as caricaturas em gesto de solidariedade e armao da liberdade

    de imprensa. Essa publicao gerou acalorados debates pblicos e

    tomadas de posio contraditrias. O veculo, que foi citado em justia

    por um rgo ocial de representao da comunidade muulmana,

    recebeu apoio de diversas personalidades do mundo cientco, jurdico

    e poltico. O julgamento indeferiu as queixas.

    The return to the notion of subject and the approach of socialrepresentations

    Abstract:The article notes a return, in social sciences, to the notion

    of subject likely to lead to a new approach of subjectivity in theeld of study of social representations. After an examination of

    the moments that have signied the death and resurrection of the

    notion of subject, it develops the different themes characterizing thereintegration of this notion in history, sociology and anthropology.These themes allow to rule out the risk of a solipsist vision inthe treatment of the subjective part of social representations. Forthat purpose, a schema is proposed, relating the genesis and the

    functions of social representations to three spheres (subjective,inter-subjective, trans-subjective), and illustrated by an analysis ofthe debates concerning the famous Mahomets caricatures affair.

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 679-712, set./dez. 2009

    The nal remarks claim to orient the study of social representations

    towards the relations between thinking and social change.

    Keywords: social representations; subject; subjectivity; inter-subjectivity; trans-subjectivity; horizon; thinking.

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