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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS II - ALAGOINHAS/ BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL CRISTIANA DA CRUZ ALVES O JUNCO: lugar-personagem na obra dos escritores d’essa terra Alagoinhas/BA 15 de agosto de 2011 CRISTIANA DA C. ALVESO JUNCO: lugar-personagem na obra dos escritores d’essa terra ALAGOINHAS 2011

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE EDUCAO CAMPUS II - ALAGOINHAS/ BAHIA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CRTICA CULTURAL

CRISTIANA DA CRUZ ALVES

O JUNCO: lugar-personagem na obra dos escritores dessa

terra

Alagoinhas/BA

15 de agosto de 2011

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE EDUCAO CAMPUS II - ALAGOINHAS/ BAHIA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CRTICA CULTURAL

CRISTIANA DA CRUZ ALVES

O JUNCO: lugar-personagem na obra dos escritores dessa

terra

Alagoinhas - BA

15 de agosto de 2011

CRISTIANA DA CRUZ ALVES

O JUNCO: lugar-personagem na obra dos escritores dessa

terra

Dissertao apresentada ao Programa de

Ps-Graduao em Crtica Cultural do

Departamento de Educao DEDC II da

UNEB como requisito obteno do ttulo

de mestre em Crtica Cultural.

Orientadora: Prof. Dr. Luciano Rodrigues Lima

Alagoinhas - BA

15 de agosto de 2011

Biblioteca do Campus II / Uneb

Bibliotecria: Rosana Cristina de Souza Barretto - CRB: 5/902

A474j Alves, Cristiana da Cruz.

O junco: lugar personagem na obra dos escritores dessa terra. /

Cristiana da Cruz Alves. Alagoinhas, 2012.

248f.; il

Dissertao (Mestrado em Critica Cultural) Universidade do

Estado da Bahia. Departamento de Educao. Colegiado de Letras.

Campus II. 2012.

Orientador: Prof. Dr. Luciano Rodrigues Lima

1. Memria na literatura 2. Autobiografia 3. Autobiografia na

literatura I. Lima, Luciano Rodrigues. II. Universidade do Estado da

Bahia. Departamento de Educao. III. Ttulo

CDD. 809.93592

O JUNCO: lugar-personagem na obra dos escritores dessa

terra

CRISTIANA DA CRUZ ALVES

Esta dissertao foi julgada para obteno do ttulo Mestre em Crtica Cultural. rea de

concentrao em Letras e aprovada em sua forma final pelo curso de Ps-Graduao em Crtica

Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus II.

BANCA EXAMINADORA:

__________________________________________________

Prof. Dr. Luciano Rodrigues Lima (Orientador)

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

__________________________________________________

Prof. Dr. Roberto Henrique Seidel (Titular)

Universidade do Estado de Feira de Santana (UEFS)

__________________________________________________

Prof. Dr. Cludio Cledson Novaes (Titular)

Universidade do Estado de Feira de Santana (UEFS)

_________________________________________________

Prof. Dr. Carlos Jesus Ribeiro (Suplente)

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

_________________________________________________

Prof. Dr. Jailma dos Santos Pedreira Moreira (Suplente)

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Dedico a todos aqueles que compem as figurativas pginas do Junco

e queles que me ajudaram a l-las, sejam escritores, professores,

crticos culturais, revisores de texto ou leitores do cotidiano. Bem

como aos que fazem parte de minha histria pessoal.

ABREVIATURAS

ABL_ Academia Brasileira de Letras

AB_ Abimael Borges

AO _ Allan Oliveira

AT Antnio Torres

ART Arzio Torres

BPMAT _ Biblioteca Pblica Municipal Antnio Torres

CA _ Cristiana Alves

CR _ Carlos Ribeiro

CEDEPS _ Colgio Democrtico Estadual Professor Edgard Santos

FPC- Fundao Pedro Calmon

JF _ Juca Ferreira

MinC Ministrio da Cultura

MT _ Marcelo Torres

RB_ Rubem Braga

RT _ Ronaldo Torres

PELL _ Plano Estadual do Livro e da Leitura

PMLL _ Plano Municipal do Livro e da Leitura

PNLL _ Plano Nacional do Livro e da Leitura

SMC _ Sistema Municipal de Cultura

SNC _ Sistema Nacional de Cultura

RESUMO

Estudam-se, neste trabalho, as redes de intercmbio socioculturais, que se entrelaam

atravs da literatura, no espao geogrfico que d origem ao tema O Junco: lugar-

personagem na obra dos escritores dessa terra. Sob o vis da crtica cultural, faz-se

uma reflexo sociocultural, na qual so entrecruzados os fios da subjetividade, das

autobiografias, da memria individual e coletiva existentes nas obras literrias

abordadas. O Junco figura, aqui, como o entrelugar do real e do ficcional, do local e do

global e est presente tanto nas obras quanto nas entrevistas com os autores da cidade de

Stiro Dias, Bahia. Discute-se, ao mesmo tempo, os aspectos intrnsecos das obras e os

elementos extrnsecos, como o modo de produo, editorao, publicao, circulao e,

por fim as Polticas Pblicas para o Livro e a Leitura (PPLL) na regio. Ao final,

conclui-se que o Junco, espao mtico e ficcional nas obras dos autores estudados,

uma reinveno desterritorializada do prprio mundo da vida desses autores.

Palavras chaves: Escrita autobiogrfica. Entrelugar. Polticas Pblicas para o Livro e a

Leitura. Memria. Junco.

ABSTRACT

The socio-cultural exchange networks that intertwine through literature, in the

geographic space that gives rise to "The Junco: character-place in the work of the

writers of this land" are studied in this work. Under the bias of cultural criticism, it is

made a socio-cultural reflection, in which the threads of subjectivity, autobiographies

and the existing individual and collective memory in literary works are discussed. The

Junco figures, here, as the distance between the real and the fictional place, the local

and global and it is present both in the literary works and in interviews with the authors

of the city of Stiro Dias, Bahia. At the same time, the intrinsic and extrinsic elements

and aspects of the literary works, such as the mode of production, editing, publication,

circulation and, finally, the Public Policy for books and reading in the region are here

discussed. At the end, it is concluded that the "Junco", mythical and fictional space in

the works of the authors studied, is but are invention of the living world of the these

authors, now deterritorialized.

Keywords: Autobiographical writing. Public Policies for Books and Reading. Memory.

Between-place. O Junco.

SUMRIO

INTRODUO 11

CAPTULO I 15

1 DO COTIDIANO LITERATURA: O JUNCO COMO POTNCIA DE

REINVENO CULTURAL, SUBJETIVA E LITERRIA 15

1.1 Para ler o Junco: no campo de batalha do cotidiano 16

1.2 Alagoinhas como metrpole: um olhar a partir do Junco 25

1.3 Imagem e projees literrias de Alagoinhas e microrregio 33

1.4 Stiro Dias sob o caleidoscpio da cultura: literatura e modo de produo e

circulao 38

CAPTULO II 60

2 NO TEAR DA LITERATURA: ESCRITORES DO JUNCOENTRELAAM

SEUS FALARES 60

2.1 Da metodologia usada nas entrevistas 60

2.2 O inventor do Junco literrio: entrevista com Antnio Torres 62

2.3 Reinventor do Junco em crnicas: Marcelo Torres 76

2.4 Histrias do Arraial do Junco e crnicas de sua existncia:

entrevista com Ronaldo Torres 86

2.5 Pra comeo de conversa, fala do Junco na introduo de Quem

conta um conto...: Ademilton Saldanha 94

2.6 Das pginas de papel avulso s pginas eletrnicas, estrelando

o Junco: entrevista com Luiz Eudes 96

2.7 Em A marcha da vida, o Junco e seus causos tm cor local de Malhada

da Pedra: entrevista com Allan Oliveira 100

CAPTULO III 111

3 NO TEAR DA CULTURA: O JUNCO, O LIVRO E A LEITURA 111

3.1 Polticas Pblicas para o Livro e a Leitura: a atuao poltico-cultural

dos escritores do Junco 111

3.1.1 Modos de produo, circulao e divulgao do livro dos escritores do

Junco 128

3.1.2 O estopim da dinamite na poltica cultural do Junco: como a violncia do

mundo globalizado ativa uma discusso sobre o livro, a leitura e a biblioteca

entre escritores e leitores do Junco? 135

3.2 Vises de cultura: quando o cnone se torna marginal? 141

3.3 Uma possvel leitura dos stiros da vida reinventada pela literatura:

do Junco ao Paraso 146

4 CONSIDERAES FINAIS 159

REFERNCIAS 162

ANEXOS 169

Anexo I: Biografia de Antnio Torres 169

Anexo I: Biografia de Marcelo Torres 171

Anexo III: Biografia de Ronaldo Torres 172

Anexo IV: Biografia de Luiz Eudes 173

Anexo V: Biografia de Ademilton Saldanha 174

Anexo V: Biografia de Allan Oliveira 175

Anexo VII: Biografia de Cristiana Alves 176

Anexo VIII: Entrevistas com Antnio Torres 177

Anexo IX: Entrevistas com Marcelo Torres 195

Anexo X: Entrevistas com Ronaldo Torres 209

Anexo XI: Transcrio da apresentao do livro Quem conta um conto...

substitui entrevista com Ademilton Saldanha 224

Anexo XII: Entrevista com Luiz Eudes concedida a Abimael Borges 226

Anexo XIII: Entrevista com Allan Oliveira 228

Anexo XIV: Formulrio com dados da BPMAT 235

Anexo XV: Decreto de Lei n 02/92 - Criao da BPMAT 245

Anexo XVI: Fotografias de Stiro Dias 246

Anexo XVII: Audio com entrevista de Antnio Torres 248

11

INTRODUO

Toda pessoa sempre as marcas

das lies dirias de outras tantas pessoas.

(Caminhos do Corao/ Gonzaguinha)

O Junco: lugar-personagem na obra dos escritores dessa terra, emerge como um

desejo de analisar a potencialidade cultural de Stiro Dias1, o Junco

2 literrio presente

na obra dos escritores Antnio Torres3, Marcelo Torres

4, Ronaldo Torres

5, Luiz Eudes

Andrade6, Ademilton Saldanha

7 e Allan Oliveira

8. Dentre esses, apenas Antnio Torres

reconhecido como escritor de Literatura Brasileira pertencente ao cnone. Assim,

pesquisar o local de fala desses escritores faz circular o global e o local tanto nas suas

falas, em entrevistas, quanto em suas obras.

A produo cultural do Junco que circula atravs da literatura, neste contexto,

analisada a partir de entrevistas com os escritores, de pesquisa bibliogrfica e pesquisa

etnogrfica. O acervo da Biblioteca Pblica Municipal Antnio Torres, em Stiro Dias,

constitui-se em uma das fontes, pois dispe de material que viabiliza a pesquisa e

possibilita a visibilidade cultural do patrimnio simblico. Esse acervo visto na

cidade como local que v na Literatura um objeto de revoluo cultural, acreditando-se

que cada classe dominante cria sua cultura e, por conseguinte sua arte9.

Observando a multiplicidade de discursos sobre o Junco literrio, percebe-se nos seus

escritores a florao do imaginrio coletivo. Eles se tornam guardies do patrimnio

imaterial, pois, embora a escrita possa ser uma forma de violncia e excluso, neste

contexto, ela ressignificada e torna-se instrumento que possibilita a

1Stiro Dias um municpio brasileiro do estado da Bahia. Sua populao estimada em 2004 era de

19.084 habitantes.Distante 205 km de Salvador, o municpio situa-se no litoral norte/agreste baiano, no

nordeste da microrregio de Alagoinhas. Sua emancipao poltica se deu em 14 de agosto de 1958. 2Junco, ou Arraial do Junco, antiga denominao da sede do atual municpio de Stiro Dias, quando ainda

pertencia ao municpio de Inhambupe. 3Ver anexo I.

4Ver anexo II.

5 Ver anexo III.

6Ver anexo IV.

7Ver anexo V.

8Ver anexo VI.

9TROTSKI, Leon. Literatura e Revoluo. Rio de Jnaeiro, Zahar, 2007. p. 149.

http://pt.wikipedia.org/wiki/14_de_agostohttp://pt.wikipedia.org/wiki/1958

12

transculturao10

na qual o local e o global se mesclam, quebram suas fronteiras e cria-

se uma identidade mltipla, em que o desejo de revoluo molecular provoca a

transformao das margens. Neste sentido, diz Stuart Hall:

O poder, a extenso global e as capacidades de realizao histrica do

capital; a questo de classe social, os relacionamentos complexos

entre o poder termo esse que mais fcil integrar aos discursos

sobre cultura do que a explorao11

.

Analisando o contexto sociocultural de Stiro Dias, a partir da fala de Hall, pode-se

observar que os escritores de Stiro Dias recriam o Junco atravs da literatura, tornando-

o imprescindvel para o registro das memrias do passado que se pretende representar,

no como real, mas como um entrelugar que possibilita ao sujeito redimensionar o olhar

sobre sua prpria cultura. Ler as entrelinhas de uma obra literria torna-se importante

para perceber o jogo semitico, as metforas da modernidade que os estudos culturais

agenciam ao fazer dialogar a teoria e as relaes cotidianas e sociais num mesmo espao

cultural, no qual o conhecimento tradicional colocado em xeque, fazendo emergir os

posicionamentos distintos entre teoria e prtica culturais de uma sociedade em constante

transformao.

Naquilo que diz talo Calvino:de uma cidade, ns no aproveitamos as suas sete ou

setenta e sete maravilhas, mas a resposta que d s nossas perguntas12

, encontra-se a

resposta do porqu a pesquisadora, Cristiana da Cruz Alves13

,escolheu como objeto de

estudo o Junco e sua potencialidade cultural. Tendo nascido em Alagoinhas, Bahia, e

sido registrada como natural de Stiro Dias-Bahia, morando na fazenda Cansano,

zona rural desse municpio, nos primeiros anos de vida, desde bem pequena, o Junco14

,

a Rua15

eram topnimos que faziam parte de seu cotidiano como espao geogrfico e

cultural, sendo esse o primeiro ponto de convergncia com a obra e o escritor Antnio

Torres. Ambos foram crianas da roa, que tinham no Junco o espao de socializao de

suas infncias, salientando-se que, para a pesquisadora, o lugar j era outro,

10

Transculturao o processo que ocorre quando um indivduo adota uma cultura diferente da sua. Ela

est ligada transformao de padres culturais locais a partir da adoo de novos padres vindos das

fronteiras culturais, em encontros envolvendo sempre diferentes etnias e elementos culturais. 11

HALL, Stuart. Da Dispora : Identidades e Mediaes Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG,

Braslia, representao da UNESCO no Brasil. 2003, p.203. 12

CALVINO, talo. As cidades invisveis. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 44. 13

Ver anexo VII, aps referncias bibliogrficas. 14

Lugar-personagem da obra de Antnio Torres e outros escritores de Stiro Dias, primeiro nome da sede

do municpio de Stiro Dias antes de tornar-se vila e posteriormente emancipar-se. 15

A Rua era a forma pela qual moradores da zona rural, a Roa, chamavam a sede do municpio de

Stiro Dias, o Junco, que na dcada de 70 se emancipara.

13

pois,em1972, o Junco j figurava nas pginas de Um co uivando para a lua, primeiro

romance publicado por Antnio Torres, como lugar da ficcionalizao e da reinveno

cultural. Nesta poca, o Junco j no existia como topnimo, j havia sido emancipado

em 1958 e se chamava Stiro Dias. Mas, foi em 1976, com a publicao de Essa Terra,

que o lugar entrou para o mapa-mndi atravs das pginas literrias, que reinventavam a

cultura e o modo de vida de um espao que, naquele momento, se tornava veculo de

transformao social e cultural, um lugar real reinventado, o entrelugar, Junco-Stiro

Dias.

Assim, o tecido cultural elaborado nas malhas das letras desta dissertao tem fortes

traos identitrios e comea ser produzido no cotidiano desde a minha infncia. Foi

neste perodo que conheci os garotos que anos depois se tornariam os escritores

Ademilton Saldanha, Luiz Eudes e Marcelo Torres. Os dois ltimos e eu temos matriz

familiar em comum com o escritor Antnio Torres, pertencemos famlia Cruz. Em

1993, ocorreu outro fato importante para o meu interesse pelo tema desta pesquisa.

Conheci o escritor Antnio Torres na inaugurao da biblioteca pblica municipal de

Stiro Dias, que tem o seu nome. Aquele dia foi muito importante na vida dos

moradores de Stiro Dias e na minha, pois percebi que se um garoto nascido no

Junco, na dcada de 40,conseguiu vencer as adversidades e tornar-se um grande

escritor, ele era um incentivo para mim e outros escritores de Stiro Dias, bem como

para a comunidade em geral dessa terra para ler, pesquisar, escrever. J Ronaldo Torres,

conheci no lanamento do livro Arraial do Junco: Crnica de sua existncia, em 2004.

Quanto a Allan Oliveira, nos conhecemos desde sua infncia, fui sua professora no

Ensino Mdio e cheguei a ler alguns dos rascunhos dos seus contos, muito antes de

serem publicados no livro A marcha da vida.

Stiro Dias, o antigo Arraial do Junco, fundado por Joo da Cruz, formado por um

grande cl, os Cruz, dentre outras famlias, que com essa, entrecruzam suas histrias. O

fundador ancestral direto da pesquisadora e de todos os escritores aqui trabalhados,

exceto Ademilton Saldanha. Sabe-se que uma tradio do lugar os contadores de

histrias e esses fazem parte da fundao do imaginrio dos escritores aqui estudados.

Operando na fronteira entre a narrativa do cotidiano e a teoria da crtica cultural, esta

dissertao composta por trs captulos. O primeiro captulo, Do cotidiano

literatura: O Junco como potncia de reinveno cultural, subjetiva e literria,

14

subdividido em quatro tpicos, sendo os trs primeiros uma anlise do contexto cultural

do Junco como um entrelugar entre o real e a fico, visto numa perspectiva local,

microrregional e global; j o quarto tpico traz o suporte terico que utilizado para

fazer a leitura deste contexto sob o vis dos estudos culturais. O segundo captulo,

Vozes do Junco: os escritores por eles mesmos, traz a metodologia usada para fazer

emergir das entrevistas as vozes dos escritores de Stiro Dias, revelando a

potencialidade cultural de um lugar que circula no cotidiano, quebrando as fronteiras

entre o global, o nacional e o local ao possibilitar um dilogo entre um escritor do

cnone e aqueles que esto margem da literatura cannica, atravs da anlise dessas

entrevistas feitas com os mesmos, que encontram-se na integra nos anexos. O terceiro

captulo, No tear da cultura: O Junco, o livro e a leitura, traz no primeiro tpico uma

abordagem sobre as polticas pblicas para o livro e a leitura, incluindo discusses sobre

a produo, editorao, divulgao e circulao do livro e polticas para biblioteca; no

segundo tpico, discute-se o cnone literrio e seus critrios para ABL, e o terceiro

tpico traz uma releitura do Junco a partir da obra destes autores, analisando o Junco,

lugar-personagem, respeitando-se os diversos contextos, vivncias e imaginrios de seus

autores.

Em suma, o espao autobiogrfico, a produo do imaginrio coletivo que, nas

fronteiras do deslocamento, promove a revoluo das margens, atravs de seus

escritores, faz do Junco um entrelugar da cultura, no qual o prprio Junco personagem

principal da reinveno do sujeito desterritorializado que busca neste no-lugar a sua

identidade cultural hbrida. Nesta perspectiva, este trabalho aborda, simultaneamente,

aspectos intrnsecos da literatura produzida em Stiro Dias ou sobre Stiro Dias (Junco)

como as referncias diretas e indiretas realidade local e elementos extrnsecos, ou seja,

uma espcie de sociologia, ou etnografia da criao, (as motivaes, as relaes

interpessoais dos escritores, suas micropoticas, etc.), bem como do modo de circulao

das obras (Quem so os leitores? Quem os publica? Como as obras circulam e

influenciam as vidas dos leitores?).

15

CAPTULO I

1. DO COTIDIANO LITERATURA: O JUNCO COMO POTNCIA DE

REINVENO CULTURAL, SUBJETIVA E LITERRIA

Este captulo composto por quatro partes que se complementam. A primeira parte,

Para ler o Junco: no campo de batalha do cotidiano traz um arsenal terico da crtica

cultural com o qual se pode ler no campo de batalha do cotidiano a fim de ressiginificar

o contexto cultural de cidade de Stiro Dias, atravs do seu personagem principal, o

Junco. Este arcabouo terico continua a se desenvolver e ser aplicado nas trs partes

que se seguem abordando diferentes pocas e contextos do Junco enquanto espao

geogrfico e cultural ficcionalizado pela literatura, podendo ser considerado um lugar-

personagem16

, que se reinventa no cotidiano atravs da reconstituio da subjetividade

dos agentes socioculturais, que nele circulam. Assim, na segunda parte, Alagoinhas

como metrpole: um olhar do Junco, o espao abordado a partir do imaginrio

coletivo local, que atravs de seus escritores e agentes culturais fazem do cotidiano

desse lugar, a cidade grande mais prxima, um espao de reinveno cultural. Na

terceira parte, Imagem e projees literrias de Alagoinhas e microrregio, vem

cena O Junco dentro de um contexto regional, no qual, a literatura um veculo ou uma

via de leitura para refletir uma sociedade e seu contexto sociocultural. Na quarta parte,

que conclui o bloco deste captulo, Stiro Dias sob o caleidoscpio da cultura:

Literatura e modos de produo e circulao, observa-se a potencialidade de

mobilizao cultural da sociedade civil e dos artistas em prol de melhorias culturais para

o local, que insere o Junco no mundo globalizado.

16

O Junco se apresenta como espao fsico com estrutura de lugar, entretanto exercendo um relao

dialgica to forte com as personagens que em alguns momentos pode ser lido como sendo o prprio

espao o protagonista da narrativa, pois o espao modifica o comportamento das personagens, no sendo

o homem objeto do meio, mas tornando-o sujeito de dilogo. Pode-se fazer uma leitura comparativa entre

o Junco do Essa Terra, de Antnio Torres e o Cortio So Romo, de O Cortio, de Alusio de Azevedo,

no para analisar as teorias cientficas do sculo XIX, mas para observar as relaes de tenso e de

insero do homem no espao no qual habita.

16

1.1 Para ler o Junco: no campo de batalha do cotidiano

Antes de adentrar a discusso, que envolve o Junco como potncia de reinveno

cultural, subjetiva e literria, importante situar a histria dos Estudos Culturais. Assim

contextualizando, segundo afirma Richard Johnson, em O que , afinal, Estudos

Culturais?17

:

Raymond Williams e Richard Hoggart, de modos diferentes, desenvolveram a

nfase leavisiana na avaliao ltero-social, mas deslocaram-na da literatura para a

vida cotidiana. Ocorreu um processo similar de apropriao relativamente

disciplina de Histria. O momento mais importante, aqui, foi o desenvolvimento das

tradies de Histria Social, no ps-guerra, com seu foco na cultura popular ou na

cultura do povo, especialmente sob suas formas polticas. Foi fundamental, nesse

caso, o grupo de historiadores do Partido Comunista, com seu projeto _ dos anos 40

e do incio dos nos 50 _ de historicizar o velho marxismo, adaptando-o, ao mesmo

tempo, situao britnica.18

Partindo do pressuposto de deslocamento dos estudos da literatura, que se encerrava

nela mesma com a crtica literria, para uma crtica cultural, que envolve a vida

cotidiana com sua potencialidade simblica, fica claro que para ler o Junco, no campo

de batalha do cotidiano, preciso fazer uma reflexo sobre o conceito de cultura e as

noes que envolvem os Estudos Culturais no mbito da identidade e territorialidade.

Assim, esta dissertao ser uma travessia dos estudos literrios para os estudos

culturais, sendo este ltimo o objetivo desta pesquisa que envolve as noes de

transculturao19

, desterritorialidade20

, culturas de fronteiras21

, culturas hbridas22

, senso

de pertencimento, identidades cambiantes, entrelugar23

, lugar intervalar24

, terceiro

17

JOHONSON, Richard. O que , afinal, Estudos Culturais? Organizao e traduo de Tomaz Tadeu de

Silva. Belo Horizonte:Autentica, 1999. 18

Idem. p. 10-11. 19

Transculturao - conceito usado por Angel Rama em Transculturacin narrativa em Amrica Latina,

1982. 20

Na perspectiva de Foucault e Derrida deslocar, descentrar, reforar as ideias de lugar centro e

construo transitrios. 21

Conceito aplicado por Ana Pizarro e S.Pesavento 22

O conceito de hibridismo trabalhado por HomiBhabha. Trata-se de uma forma de conhecimento, um

processo para entender ou perceber o movimento de trnsito ou de transitao ambguo e tenso que

necessariamente acompanha qualquer tipo de transformao social sem a promessa de clausura

celebratria, sem a tendncia das condies complexas, confiantes, que acompanha o ato de traduo

cultural. (Bhabha, H.K. 2002) trad. Lynn Mario T. Menese de Sousa In: Hibridismo e tradio cultural

emBhabha. 23

Este termo aparece pela primeira vez no ensaio em SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso

latino americano In: Uma literatura nos trpicos: ensaio sobre a dependncia cultural. Rio de Janeiro:

Rocco, 2000, p. 9. Constitui um importante operador de leitura no campo das cincias humanas, que se

costumou chamar Estudos Culturais. 24

Conceito usado por E. Glissant.

17

espao25

, espao intersticial26

, zona de contato27

, espao glocal28

, caminho do meio29

,

alteridade30

. Tambm sero atravessados os conceitos de autobiografia, biografia e

arquivo, pois, para falar das obras literrias produzidas por escritores do Junco, tambm

sero analisadas entrevistas de teor autobiogrfico e do entrecruzamento das obras e dos

relatos pessoais. Assim se tecer o contexto cultural do objeto de estudo desta

dissertao.

Retomando a viagem pela crtica cultural que se encontra no horizonte dos estudos

culturais, preciso falar dos conceitos de cultura e da importncia dos estudos culturais,

bem como das relaes mais evidentes desses estudos com os estudos literrios. Esta

abordagem encontra-se no entrelugar do campo da literatura com os estudos culturais.

Desse modo, segundo Madalena Chau:

[...] na sua origem a palavra cultura vem do verbo latino colore, que

significa cultivo, cuidado. Era concebida como ao de conduzir a

plenas realizaes da potencialidade de pessoas e coisas, era o ato de

fazer brotar, frutificar, florescer e cobrir de benefcios31.

Nesse conceito, a cultura, o cultivo tinha ntima relao com a terra, a agricultura, com

os deuses e com o sagrado. Sabe-se que, no decorrer da histria do ocidente, esse

sentido foi sendo mudado, at que no sculo XVIII, a palavra ressurgiu na filosofia

Iluminista com o sentido de civilizao. Esta nova percepo de cultura apareceu,

primeiro, na Frana e na Inglaterra, grafada primeiramente como Cultur e, mais tarde,

como Kultur. Tendo conhecimento de que a palavra civilizao deriva do conceito de

vida civil, percebe-se a ligao feita pela Filosofia Iluminista entre cultura, vida poltica

25

Tercerespacio A Moreiras. 26

Conceito de H. K. Bhabha. 27

M.L. Pratt 28

Conceito usado por Roland Walter. 29

Conceito de Z Bernd. 30

ALTERIDADE(latim- Alteritas, Alietas; ingls otherness; francs - Altrit; Alemo Anderheit,

Anderssein; italiano Alterita). Ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro. A alteridade um

conceito mais restrito que a diversidade e mais extenso que a diferena. Hegel utiliza o conceito para

definir a natureza com relao ideia, que a totalidade racional da realidade. A natureza a idia na

forma de ser outro(Anderssein).Desse modo,a negao de si mesma exterior a si mesma: de modo que

a exterioridade constitui a determinao fundamental da natureza(Enc. 247). Mas, de modo mais geral,

pode-se dizer que, segundo Hegel, a alteridade acompanha todo o desenvolvimento dialtico da ideia,

porque inerente ao momento negativo, intrnseco a esse desenvolvimento. De fato, to logo estejam fora

do ser indeterminado, que tem como negao o nada puro, as determinaes negativas da ideia tornam-se,

por sua vez, alguma coisa de determinado, isto , um ser outro que no aquilo mesmo que negam. A

negao no mais como o nada abstrato, mas como um ser determinado e um algo somente forma

para esse algo, um ser outro (Enc., 91). 31

CHAU, Marilena. Cultura e democracia. Salvador: SECULT, 2007.

18

e regime poltico. Assim, a cultura passa a ser vista como padro ou crdito que mede o

grau de civilizao de uma sociedade. Esse conceito vem sendo repensado e

ressignificado at nossos dias.

H vrias maneiras de entender o que cultura. Entretanto, as definies mais

frequentes baseiam-se em dois aspectos bsicos: o primeiro analisa a cultura como

realidade social. Assim, cultura diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a existncia

social de um povo ou nao, ou ainda em grupos do interior da sociedade. No segundo

aspecto, diz-se que cultura refere-se mais especificamente a conhecimento, ideias e

crenas. Assim, cultura e sociedade esto intimamente ligadas e so conceitos mutveis

que, s vezes, se confundem.

Em O conceito de Cultura32

, Thompson aborda a percepo dos filsofos do sculo

XVIII e XIX no que se refere ao tema cultura como um processo de desenvolvimento

intelectual ou espiritual, um processo que diferia, sob certos aspectos, do conceito de

civilizao. A partir dessa concepo, ele faz uma distino entre os conceitos de

cultura sob duas concepes, as quais se distinguem como concepo descritiva e

concepo simblica: a primeira refere-se a um variado conjunto de valores, crenas,

costumes, convenes, hbitos e prticas histricas; a segunda muda o foco para o

interesse com o simbolismo. Os fenmenos culturais, de acordo com esta concepo,

so fenmenos simblicos e um estudo da cultura est sempre interessado na

interpretao dos smbolos e de sua ao simblica.

Terry Eaggleton, em a Ideia de cultura33

, traz outra noo de cultura entre a liberdade e

o determinismo, voltando-se para a experincia de fazer arte, a qual, para o artista d a

sensao de ser livre e ter nessa liberdade uma necessidade de criao, porm podada

pelas restries do contexto poltico-cultural entre evoluo e revoluo. Isso pode ser

visto na concepo filosfica de Friedrich Nietzsche, quando se buscava uma prtica

que possa desfazer a oposio entre evoluo e revoluo, pois a evoluo orgnica e

a revoluo, espontnea. A liberdade de criao inerente subjetividade humana. A

forma de produo obedece aos ditames da cultura na qual ela se insere, mesmo quando

o devir revolucionrio. Assim, citando Eegleton:

32

THOMPSON, JONH B. Transmisso da Cultura e Comunicao de Massa.In: Identidade e Cultura

Moderna: Crtica Social na era dos meios de comunicao de Massa.2 ed. Petrpolis. RJ: Vozes,

1995. 33

EAGLETON, Terry. A ideia de cultura.trad. Sandra Castello Branco; reviso tcnica Cezar Mortari.

So Paulo: Editora UNESP, 2005.

19

H outro sentido em que a palavra cultura est voltada para duas

direes opostas, pois ela pode tambm sugerir uma diviso dentro de

ns mesmos, entre aquela parte de ns que se cultiva e se refina, e

aquilo dentro de ns, seja l o que for, que constitui a matria-prima

para esse refinamento. Uma vez que a cultura seja entendida como

autocultura, ela postula uma dualidade entre faculdades superiores e

inferiores, vontade e desejo, razo e paixo, dualidade que ela, ento

prope-se imediatamente a superar. 34

Ao trazer esse conceito de cultura, mais subjetivo, no espao fronteirio da formao da

identidade do artista, deseja-se chamar a ateno para o posicionamento dos escritores

do Junco, sendo que literatura uma dentre as diversas expresses artsticas. Como

esses escritores operam entre a arte e o cotidiano ao descreverem o espao de criao

cultural? A vontade e o desejo, a razo e a paixo, o real e a fico se misturam na

fico que transforma o Junco no entrelugar dos discursos culturais que se entrelaam.

Por sua vez, Marilena Chau, em Cultura e Democracia, fala do deslocamento do

conceito de cultura, que na sociedade atual vem se tornando um conceito fluido, no

sendo mais vista como lugar fechado. Desse modo, no se deve falar em cultura, mas,

em culturas que circulam no hipertexto cotidiano.

Se identidades culturais no so sistemas fechados, como queria certa

orientao estruturalista, mas sim um colar de significaes

renovveis pela cristalizao de cada nova sntese, ento preciso

discutir cultura brasileira a partir da amplitude dos aspectos

contemporneos, da multiplicidade de olhares disciplinaras e,

sobretudo da multiplicao de prticas construtivas da vida nesse tal

territrio Brasil.35

Nessa citao, Marilena Chau localiza o Brasil, mas pode-se pensar qualquer lugar

dentro do contexto de globalizao, atravs desta sua fala, tomando por base qualquer

outra cultura. Aqui nos interessa essa ideia de cultura como lugar de ressignificao de

conceitos, como diz Chau, no o sistema fechado da orientao dos estruturalistas, mas

a possibilidade de se pensar a cultura como mecanismo vivo e mutvel que se organiza

de modo democrtico no fazer cotidiano, nas aes cotidianas. Esse conceito de cultura

vai alm das manifestaes artsticas e hbitos de vida de um povo, pois Avanamos

bastante quando a conscincia de que a invisibilidade a maior inimiga dos processos

de diversificao da oferta e da democratizao da cultura36

. Entretanto, ainda temos

um longo caminho a trilhar at chegarmos consolidao das transformaes da viso

34

Idem. p. 15 35

CHAU, Marilena. Cultura e democracia. Salvador: SECULT, 2007. p. 15

36 Idem. p 16

20

da cultura como uma nova economia de mercado, que vai alm do conceito a ela

aplicado, as culturas perifricas que emergem e ganham foras, o modo de produo de

povos diversificados que tm suas estratgias particulares da sobrevivncia, pois [...]

nessa poca de entrelugar entre a teoria e a ao cultural, entre o contemporneo e o

ancestral, entre o que achamos que fomos e o que vislumbramos ser que brota a

pergunta sobre o que mesmo cultura brasileira37

, ou o que seria cultura em qualquer

outro mbito. A cultura no se detm no local, no lugar, nem fruto do estrangeiro, do

outro, ela se faz no espao de convvio local no qual a alteridade se faz

imprescindvel. Nesse sentido, Jos Mrcio Barros, ao falar da necessidade de se

diferenciar a mudana da cultura de uma Cultura de mudana38

, esclarece:

Por cultura entende-se, como a Antropologia o faz, um processo

atravs do qual o homem atribui sentidos ao mundo. Cdigos atravs

dos quais pessoas, grupos e sociedades classificam e ordenam a

realidade. A cultura a instncia em que o homem realiza sua

humanidade. Como fenmeno anterior e exterior ao indivduo, a

cultura realiza-se quando incorporada e tornada identidade. Nessa

linha de raciocnio, possvel afirmar que no existem culturas

estticas, sim sociedades em que o lembrar ocupa uma centralidade

estruturante e outras em que a memria possui menor pregnncia do

passado, caracterizando-se pela multicentralidade. Lembrar e esquecer

so, no entanto, dois momentos de toda e qualquer cultura.39

Lendo as obras dos escritores do Junco ou suas entrevistas, percebe-se esta impregnao

do passado, de que fala Jose Mrcio Barros. A cultura de outrora aflora no imaginrio, e

ao cotidiano so misturados traos das histrias, que se perlaboram atravs da

linguagem e torna o Junco o espao do nem isso nem aquilo, o no-lugar, o espao de

trnsito, entre o passado e o futuro.

Em Dez lies sobre os Estudos Culturais40

, Maria Eliza Cevasco traz uma abordagem

de cultura dentro dos Estudos Culturais. Sua leitura fundamenta a releitura do Junco

como entrelugar do cotidiano ficcionalizado. importante a contextualizao de

suadefinio de cultura:

Uma das coisas que ficam evidentes neste apanhado rpido das

mudanas de significado de cultura que o sentido das palavras

acompanha as transformaes sociais ao longo da histria e conserva,

37

Idem. 38

Disponvel em: acesso em 10 dez. 2004. 39

BARROS, Jos Mrcio. A diversidade cultural e os desafios de desenvolvimento e incluso: por uma

cultura de mudanas in: As mediaes da cultura: arte, processo e cidadania/ org. Jos Marcio Barros.

Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2009.p. 28-29. 40

CEVASCO, Maria Eliza. Dez lies sobre os Estudos Culturais. 2ed. So Paulo: Boitempo Editorial,

2008.

21

em suas nuanas e conotaes, muito dessa histria. Na Inglaterra dos

anos 50, momento de estruturao da disciplina de estudos culturais, o

debate sobre a cultura parece concentrar muito do sentido de mudana

de uma sociedade que se organiza no segundo ps-guerra. Raymond

Willians (1921-1988), figura central na fundao dos estudos

culturais, conta como a palavra cultura comea a ser cada vez mais

usada como eixo dos debates desses rumos. No processo, uma de suas

acepes de antes da guerra, a da distino social, cultura como posse

por parte de um grupo seleto, comea a desaparecer e dar lugar

preponderncia do uso antropolgico, cultura como modo de vida. O

outro sentido de cultura, designa as artes e, no contexto ingls em

especial, a literatura, se inflete com a predominncia da crtica sobre a

criao, um dos eixos do projeto intelectual dominante na academia

inglesa, o Cambridge English.41

Refletindo essa fala, pode-se dizer que cultura engloba os bens de produo cultural e

seus meios de transmisso, sendo que, atravs das artes, o homem recria sua vida

cotidiana em diversas estticas e perspectivas. Entretanto, o cerne da cultura se encontra

na prpria vida cotidiana e em suas relaes simblicas. Assim, cada grupo social traz

em seu prprio estilo de vida as marcas de diversas culturas que compem o dia-a-dia,

por isso no se pode falar de uma nica cultura, mas de uma diversidade cultural que

imprime suas marcas em cada indivduo, que traz consigo a fora ideolgica dos

discursos e das culturas em que est imerso.

Ao articular uma leitura do Junco ficcional, como espao de reinveno cultural, no

qual os escritores deste mesmo lugar atuam como agentes culturais, com O que uma

literatura menor?42

, de Deleuze e Guattari, promove-se uma mudana de sentidos, na

qual a linguagem provoca o jogo de sentidos, e toda representao de uma cultura pode

ser posta em xeque e reinventada pela emergncia da multiplicidade de falares de seus

prprios inventores. Desse modo, o Junco torna-se um no-lugar, um espao fronteirio

entre a realidade e a fico, sendo que a prpria Literatura ganha uma mobilidade que a

faz adentrar no espao se sua prpria inveno, lembrando que, no Brasil, o

Modernismo instaura condies que estabelecem a possibilidade de se politizar o

cotidiano.

Entre o modernismo que conquistou a lngua literria e estabeleceu as

condies da possibilidade de uma conscincia do Brasil e uma

cultura ps-64 que adota as runas da linguagem como lugar da

inveno e deixa de lado o nacional e o universal para cotidianizar a

poltica e politizar o cotidiano, cremos que com uma nova poltica

41

Idem .p. 11 42

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Flix. O que uma literatura menor? In:Kafka: por uma literatura

menor. Trad. Jlio Castaon Guimares. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

22

cultural em curso e seus eixos de atuao nos mais de 5.000

municpios brasileiros cultura como bem simblico; cultura como

um acesso no apenas as obras universais, mas aos modos de

produo; cultura como possibilidade de gerar emprego e renda, j

pode vislumbrar outra nao brasileira, cujos protagonistas o povo

brasileiro, formaram-se com o biscoito fino massivamente

distribudo pelo tropicalismo e esto se empenhando maneira dos

modernistas, para fazerem dos tristes trpicos ou Anel Equatorial o

lugar da alegria e da reinveno da humanidade43

O Junco um desses lugares imaginveis, no qual a subjetividade d lugar criao e

quebra as fronteiras, pois cultura uma atividade significativamente simblica44

, e a

diversidade cultural alicera a poltica do cotidiano, que revela e localiza os prprios

circuitos culturais por onde transitam seus agentes. Desse modo, os escritores tornam-se

agenciadores de cultura, pois fazem circular no hipertexto uma concentrao da

diferena cultural que se entrelaa misturando aspectos do local com o global, gerando,

assim o espao glocal.

Se a cidade um lugar de interpretao com sua particularidade

significativa, a rua estruturante no imaginrio em que a cidade

significava: via pblica, calada, passantes. Lugar do pblico, lugar

comum. Nesse espao comum, a relao entre o corpo do texto e o

texto do corpo, este ltimo sendo significado pela simbiose, que estou

procurando mostrar na narratividade urbana, entre a materialidade da

cidade e a materialidade do sujeito (novayorquizo) em suas

emoes, sentidos/sensaes pelas suas prticas ideolgicas,

memrias, faz com que, nas mesmas palavras, funcione a divergncia.

Como sabemos, no so as palavras, expresses que significam. Elas

tiram o sentido das formaes discursivas em que se inscrevem. E o

modo de funcionamento desse mesmo, essa materialidade na qual se

d o significar, desliza outros sentidos, rompe os limites. A

textualizao do discurso urbano, nessa narrativa, joga no limite das

formaes discursivas desenhadas, mostrando o seu jogo. Como as

pardias, que funcionam por passarem ao lado de, no sendo assim

meras repeties. Nesse jogo no se reproduz, se atravessa o

esteretipo45

.

importante lembrar que esse discurso urbano mesclou-se ao rural, que na era da

globalizao, o sujeito do Junco pode circular pelo mundo, fazendo o percurso de ida e

volta como Nelo (personagem-narrador do romance Essa Terra, que retorna em O

cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha, trilogia de Antnio Torres), que nesse

processo torna-se um agente da transculturao, enquanto ele perambula pelo mundo

43

MOREIRA, Osmar. Um Oswald de bolso: crtica cultural ao alcance de todos. Salvador. UNEB.

Quarteto Editorial, 2010. 44

RUHERFORD, Jonathan. O terceiro espao: uma entrevista com Stuart Hall. Revista do Patrimnio

Histrico, n 24, 1996. 45

ORLANDI, P. Eni. A cidade dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2004. p. 49

23

produz o contato entre as culturas, torna-se elemento da zona de contato. Alm dos

sujeitos que circulam no cotidiano, como o caso de Nelo e depois de Totonhim46

,

temos os meios de comunicao que tambm chegam ao Junco. o caso da crnica A

CNN no Junco, de Marcelo Torres, em que a comunidade v o atentado terrorista de 11

de setembro pelas TVs com parablicas. Este conto mescla as informaes que circulam

no espao global com as reaes da populao local, com um tom humorstico, tpico do

escritor Marcelo Torres.

Aqui o espao tudo, pois o tempo j no anima a memria. A

memria coisa estranha! no registra a durao concreta, a durao

no sentido bergsoniano. No podemos reviver as duraes abolidas.

S podemos pens-las, pens-las na linha de um tempo abstrato

privado de qualquer espessura. pelo espao, no espao que

encontramos os belos fsseis de durao concretizados por longas

permanncias. O inconsciente permanece nos locais. As lembranas

so imveis, tanto mais slida quanto mais bem espacializadas.

Localizar uma lembrana no tempo no passa de uma preocupao de

bigrafo e corresponde praticamente a uma espcie de histria

externa, uma histria para uso externo para ser contada aos outros.

Mas profunda que a biografia, a hemenutica deve determinar os

centros de destinos, desembaraando a histria do seu tecido temporal

conjuntivo que no atua sobre nosso destino. Mais urgente que a

determinao de datas , para o conhecimento da intimidade, a

localizao dos espaos da intimidade.47

Recorrer memria de um tempo, retomar a biografia do lugar ou do indivduo algo

recorrente na literatura produzida por escritores de Stiro Dias. Isso aparece de forma

muito expressiva na obra de alguns deles, entretanto em Arraial do Junco: Crnica de

sua existncia48

, o autor e seus colaboradores deixam isso bem evidente. Essa memria

biogrfica inserida na literatura num contexto semelhante ao abordado por Leonor

Arfuch:

No que diz respeito ao biogrfico, na medida em que os fatos da

vida de algum exigem igualmente uma historicidade do

acontecido, em que direo a balana se inclinara? Ao que parece,

os gneros cannicos (biografias, autobiografias, memrias,

correspondncias) jogaro um jogo duplo, ao mesmo tempo histria e

fico, entendida essa ltima menos como inveno do que como

obra literria, integrando-se assim, com esse estatuto, ao conjunto de

obras de um autor no caso de escritores e operando

46

Esta personagem irmo de Nelo, o narrador do romance Essa Terra, que retorna em O cachorro e o

loboePelo fundo da agulha, trilogia de Antnio Torres. 47

BRACHELARD, Gaston. A potica do espao; Trad. Antonio de Pdua Danesi. 2ed. So Paulo:

Martin Fontes, 2008. p. 28-29. 48

TORRES, Ronaldo. Arraial do Junco: crnica de sua existncia. Alagoinhas: Dany Graff, 2004.

24

simultaneamente como testemunho, arquivo, documento tanto para

uma histria individual quanto de poca.49

No caso da Literatura produzida por escritores do Junco, em que as obras recorrem

memria, no com a inteno de registrar a histria do lugar, este lugar poderia ser

qualquer aldeia global. Apenas Arraial do Junco: Crnica de sua existncia apresenta a

inteno de ser um livro de histria, baseado em relatos de vida da comunidade. Ele

documenta a saga de um lugar, a partir das memrias da famlia do fundador do arraial,

hoje cidade de Stiro Dias. Esse olhar documental, registra um vis da histria, a

histria dos colonizadores, conquistadores e, de seus aliados polticos de renome,

pessoas de prestgio social na comunidade. Sob este vis, a obra torna-se excludente,

no h as histrias dos loucos, dos suicidas, dos artistas, das mulheres, dos bbados,

que aparecem nas obras ficcionais.

Nos termos habituais em que se descrevem as identidades humanas,

elas so inefveis. So a encarnao dos undecidables de Jacques

Derrida. Entre pessoas como ns, elogiadas pelos outros e que se

orgulham de dominar as artes da reflexo e da auto-reflexo, elas no

so apenas intocveis, mas impensveis. Num mundo completo de

comunidades imaginadas, so os imaginveis. E recusando-lhes o

direito de serem imaginados que os outros, reunidos em comunidades

genunas, ou que assim pretendem vir a ser buscam credibilidade para

seus prprios esforos de imaginao.50

Em tal sentido, a fico torna-se o espao de recriao do real, o lugar no qual o artista

pode revelar as suas inquietaes sociais e culturais sem ofender os ditames da cultura

hegemnica, porm atingindo-a na veia, pois atravs da arte se recriam novas

realidades, o sujeito pode repensar o seu lugar no mundo deslocando-se, olhando-se no

espelho do outro, a personagem, a sua realidade to prxima que exige um

afastamento para conseguir olh-la como um terceiro espao, no qual possvel se

produzir uma cartografia do desejo51

, com ressonncia no cotidiano:

A inveno, a nvel do cotidiano, faz-se mais presente e significativa

em sociedades dependentes, pobres e em constante necessidade dos

meios indispensveis para a sobrevivncia humana. Tanto no plano

individual quanto no familiar, tanto no plano dos grupos sociais

quanto no da comunidade, a escassez me da inveno no

atribuladoe catico dia-a-dia das sociedades em via de

modernizao. Ela d origem a formas de fazer que so

49

ARFUCH, Leonor.O espao biogrfico: dilemas da subjetividade contempornea.Trad. Paloma

Vidal. Rio de Janeiro:EdUERJ, 2010,p. 117-118 50

BAUMAN, Zygmunt. A humanidade em movimento. Tempos lquidos. Traduo de Carlos Alberto

Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 51-52. 51

Guatttari F, Rolnik S. Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis: Editora Vozes, 1985.

25

manifestaes de subterfgios e expedientes. Essas atitudes e

disposies acabam por ser antidisciplinares e a-histricas,

irrompendo a todo momento na tela do cotidiano coletivo para

desenh-lo de maneira menos dolorosa, ainda que desajeitada.52

Algo equivalente ao que pode ser observado nesta fala de Silviano Santiago que o

Junco se reinventa na literatura, para atravs do simblico reestruturar sua histria

cotidiana, sua identidade cultural, pois enquanto espao geogrfico, Stiro Dias vive

muitas carncias, mesmo com o desenvolvimento e o progresso que so anunciados

atravs das polticas pblicas e das polticas de governo. Desse modo, as artes

permanecem lugares da subjetividade nos quais os artistas podem denunciar as mazelas

do contexto social no qual esto inseridos e trazer tona informaes que, em outras

pocas, seriam negadas populao. A literatura ps 64 uma arma blica de

transformao cultural, mesmo quando no utilizada como literatura de militncia

poltica. A literatura, em si, j um agente de transformao social.

Para sintetizar, atravs da literatura a ideia do Junco como espao de transculturao, o

entrelugar da cultura, o espao glocal, no qual as fronteiras so quebradas e o sujeito se

torna um cidado do mundo e, que subverte a linguagem, tornando-a fundamental.

Percebe-se os vrios enfoques sobre a produo cultural que renem os mesmos

elementos que permeiam e constroem um terceiro espao no qual o hibridismo

revoluciona o discurso hegemnico e cria novas e interessantes perspectivas dentro da

diversidade.

1.2Alagoinhas como metrpole: um olhar a partir do Junco

Ns nascemos, por assim dizer, provisoriamente, em algum lugar; pouco a pouco que compomos, em ns, o lugar de nossa origem,

para l nascer mais tarde e, cada dia, mais definitivamente.

Rainer-Maria Rilke

Esta citao faz refletir sobre a memria que compe cada um de ns desde o

nascimento e do conjunto de memrias que se forma um imaginrio coletivo, capaz de

potencializar discursos e aes que ressignifiquem a histria de um lugar. Assim, falar

de Alagoinhas como metrpole do Junco remontar histrias pessoais que fazem do

52

SANTIAGO, Silviano. As ondas do cotidiano in: Vale o quanto pesa: ensaios sobre questes poltico-

culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 157.

26

imaginrio coletivo uma realidade aparentemente visvel, mas que esconde muitas

histrias.

Atualmente, para os habitantes de Stiro Dias (velho Junco),Alagoinhas continua sendo

sua primeira metrpole, pois a cidade mais prxima que tem maior relevncia no

cenrio artstico, cultural, nas reas de sade, educao e no comrcio sendo o centro

comercial e cultural da microrregio do Litoral Norte e Agreste da Bahia. Sendo assim,

possvel buscar as memrias dessa relao entre as duas cidades, remontando o

imaginrio dos habitantes de Stiro Dias e de sua metafrica metrpole, Alagoinhas, a

cidade dos sonhos dos meninos do Junco de outrora, para onde os jovens de hoje ainda

viajam, no mais em lombos de burro ou em paus-de-arara, mas em transportes

modernos, em busca de sonhos semelhantes Educao.

A relao comercial entre o antigo Junco e Alagoinhas de velha data, segundo

narrativa de filhos de antigos moradores do Junco. Essa prtica vem do incio do sculo

XX, quando o povoado comeou a se formar. Era comum o trabalho de tropeiros como

os senhores Jlio Lopes, Timteo Bertoldo entre outros que empreendiam viagens para

Alagoinhas com tropas de burros nas quais transportavam produtos agrcolas como o

feijo, carne de porco fresca entre outros. Posteriormente, enviava-se para a capital.

Na Laginha53

, os tropeiros vendiam os produtos do Junco. Na volta, traziam de l

farinha e molhados para as vendas de seu lugarejo. Eles eram os intermedirios

comerciais da poca, que faziam o intercmbio entre as terras civilizadas e a roa.

Eles tm grande importncia para recontar a histria de Alagoinhas como metrpole do

Junco, pois eles iam alm do seu universo rural local, tinham conhecimento das terras

civilizadas, conheciam a estao de trem, sabiam que seus produtos passavam por

Alagoinhas para depois serem encaminhados para a Bahia54

. Enquanto os fazendeiros

preocupavam-se com o poder e a poltica local, os tropeiros eram exmios negociantes.

Mesmo quando, na dcada de 60, comeam a passar por Stiro Dias caminhes fazendo

a distribuio de produtos comerciais, a prtica de trabalho dos tropeiros ainda era

constante, isso perdurou at o incio da dcada de 80, quando as dificuldades com

transportes rodovirios para o municpio ainda eram grandes.

53

Laguinha era a forma como os moradores do Arraial do Junco chamavam Alagoinhas.

54

Bahia forma como as pessoas do Junco chamavam a capital, Salvador.

27

Na primeira dcada do sculo XXI, as relaes comerciais entre Alagoinhas e Stiro

Dias ainda so constantes. Ainda, em Alagoinhas que as pessoas de Stiro Dias

costumam fazer suas compras. Outrora a Laguinha servia de intermediria nas

transaes comerciais entre o Junco e a capital, atualmente, isso j no ocorre, h um

livre comrcio, como comum no mundo globalizado.

Por muito tempo, Alagoinhas tambm foi o centro onde a populao do Junco buscava

recursos para sade, mdicos como Dr. Linaldo, Dr. Brito (in memorian). Eles eram

quase deuses junto populao de certo poder aquisitivo. Entretanto, mesmo as pessoas

mais carentes conheciam esses profissionais e quando doentes, iam buscar neles o

ltimo recurso. Era comum presentearem os mdicos com produtos extrados da roa,

mesmo aps terem feito pagamento em dinheiro, hbito de sertanejo roceiro55

. O

presente no um pagamento, um gesto de delicadeza, uma forma de agradecer pela

sade e, geralmente, era dado na visita de reviso.

Ainda no mbito da sade, eram oferecidos servios de ortopedia, neurologia,

psiquiatria, obstetrcia, entre outros, a moradores do Junco, que vinham buscar, na

cidade grande, esses recursos. A parte mais carente da populao buscava tambm do

setor pblico a assistncia mdica em Alagoinhas. O Hospital Dantas Bio e a

Maternidade de Alagoinhas eram muito utilizados. Como no Junco s havia Posto de

Sade, muitas crianas de Stiro Dias tm Alagoinhas como Terra Natal. O primeiro

parto cesariano de uma filha de Stiro Dias foi feito em Alagoinhas. So inmeros os

casos de gratido de pais que agradecem a vida de seus filhos aos mdicos de

Alagoinhas, em especial aos dois mencionados. Em fins de 70, construram as primeiras

clnicas particulares em Stiro Dias, entretanto isso no diminuiu a procura por sade

em Alagoinhas; no setor pblico, na dcada de 80, o posto de sade de Stiro Dias

contava com mdicos filhos de Alagoinhas e um destes, Jasmiro Pinto, fixou residncia

em Stiro Dias, por alguns anos, depois retornou Alagoinhas. Anos depois, foram

chegando outros mdicos vindos da mesma Alagoinhas e de outras cidades. Foram

criados dois hospitais: o Hospital Tancredo Neves e o Hospital Geral de Stiro Dias,

este ltimo tendo um filho de Alagoinhas como dono, o Dr. Joaquim Belarmino

55

Roceiro neste caso uma forma de se autoidentificar daqueles que possuam uma vida rural ou mesmo

os que moravam na pequena cidade, como marca identitria, registro de um povo que se orgulha de sua

origem e usa a palavra roceiro como elemento de resistncia. A propsito dessa identidade de

roceiro, o sinnimo tabaru do Junco aparece e pode ser lido em Torres, Antnio. Essa Terra. Rio de

Janeiro: Record, 2001, p. 16.

28

Cardoso, que posteriormente se tornaria prefeito da cidade. O hospital tornou-se, ento,

referencial em sade pblica na regio e diminuiu o ndice de pessoas que procuravam

servios mdicos em Alagoinhas. A partir desse momento, passa a ocorrer o contrrio:

parte da populao menos favorecida de Alagoinhas procurava, em Stiro Dias, recursos

para sade e havia verdadeiro intercmbio nesse setor, pois era constante a presena de

profissionais da sade em Stiro Dias, vindos de Alagoinhas, e a pequena cidade, alm

de acolher mdicos e enfermeiras, tambm recebia pacientes nos hospitais, tanto de

Alagoinhas quanto de cidades da regio. Nesse perodo, o Dantas Bio, em Alagoinhas,

passava por uma crise. O Hospital Tancredo Neves foi desativado, h alguns anos;

atualmente, o Hospital Geral de Stiro Dias presta servios populao, porm o fluxo

de pacientes que buscam especialistas em Alagoinhas ainda grande, principalmente no

setor privado.

Alagoinhas tambm serve como campo de trabalho para os habitantes da atual Stiro

Dias, que no desejam viajar para a grande So Paulo, ou outras capitais. comum

encontrar no comrcio de Alagoinhas, jovens funcionrios vindos de Stiro Dias.

Geralmente, so jovens que acabaram de concluir o Ensino Mdio e sonham com uma

realidade melhor, numa cidade mais desenvolvida. Tendo crescido num pequeno centro

urbano, no se sentem seguros para comear por uma metrpole como Salvador. J no

sonham com So Paulo como um eldorado, ento comeam a buscar realizaes

profissionais comeando por Alagoinhas. A cidade dos sonhos dourados de jovens

como o escritor Antonio Torres, que outrora se encantou por Alagoinhas e suas luzes

verdes, ainda encanta os jovens de hoje pela possibilidade de uma vida melhor, trabalho,

faculdade, diverso nas horas livres.

No campo do trabalho, o intercmbio entre Alagoinhas e Stiro Dias mostra a fora da

mais valia, o poder de troca, no qual a metrpole se sobressai, porm o Junco ainda

lugar de resistncia, pois tem em si o desejo de inserir-se na metrpole para dela retirar

a energia necessria para ressignificar o seu local. Isso percebido nos trabalhadores

especializados que transitam entre as duas cidades. De Alagoinhas para Stiro Dias so

importados professores universitrios, advogados, engenheiros, agrnomos, mdicos,

assistentes sociais e outros profissionais liberais. De Stiro Dias para Alagoinhas so

exportados jovens estudantes, que buscam na cidade grande trabalho em funes que

os aceitem com seu ainda limitado grau de conhecimento acadmico ou apenas que

desejam estudar.

29

Atualmente, o nmero de jovens que estudam em Alagoinhas e retornam para Stiro

Dias vem aumentando. Alguns seguem o caminho de jovens de outrora como o escritor

Antonio Torres, seus irmos Dcio Cruz, Ronaldo Torres, entre outros, que tiveram em

Alagoinhas sua primeira metrpole. Anos depois, vieram a Alagoinhas com o mesmo

objetivo de expandir as fronteiras do conhecimento, os jovens Luiz Eudes Andrade,

Ademilton Saldanha e Marcelo Torres. Atualmente, passeiam pelo mundo das Letras e

recriam o cotidiano atravs de contos e crnicas, sendo que o ltimo jornalista e d o

seguinte depoimento:

Se havia uma cidade que ns queramos conhecer era Alagoinhas, a

nossa metrpole. Quando fui cidade pela primeira vez - eu um

menino de dez anos, que nunca tinha sado do Junco -, achei a coisa

mais linda do mundo, diferente, uma cidade que cheirava a leo,

asfalto e onde havia muito calor, pois ns estvamos sempre com a

domingueira, vestindo cala, sapato, meia etc. Viajar para Alagoinhas

era uma festa.

O centro de Alagoinhas tinha um cheiro de caf, aquela praa

principal, a 24 de Maio. Picol na Praa Kennedy, onde moravam

meus tios, meus primos.

Quando conclu o 1 grau e tinha que estudar fora, o velho Adauto

disse que eu tinha que primeiro passar por Alagoinhas, como

preparao para ir para Salvador. E assim foi, e assim eu fui. L

cheguei em 1984. Morei num pensionato que funcionava onde hoje

tem um prdio na esquina da subida Ruy Barbosa/Praa Kennedy

(perto da Pestalozzi, igreja de So Francisco, IBGE - ser que essas

coisas ainda esto l?).

Naquele ano (1984), naqueles primeiros meses, rolavam os primeiros

comcios pelas Eleies Diretas para Presidente. Eu no sabia,

naquela poca, mas hoje vejo que uma das coisas "universais" em

Alagoinhas sobre minha histria foi o movimento "Diretas J".

Em Alagoinhas, pela primeira vez entrei num prostbulo (eu era um

menino de 16 anos). Era o "brega" no Alecrim, perto do Tiro de

Guerra, perto da Praa Kennedy. Tambm era chamado de "Zefo",

que era o nome da dona, que virou uma tia minha, pois era me de

Gilberto Gomes de Oliveira, popular "Macarro"; ele estudara com a

gente em Stiro Dias em 1983. Gilberto chamava o brega da me de

BOATE, pois era a mais chique e a mais cara tambm. Como eu era

amigo do filho da dona, eu passei a "usar os servios" das "meninas

mais bonitas" da casa sem pagar.

Em Alagoinhas eu fui ter contato com telefone, pois Stiro Dias

ainda no tinha telefone nas casas (s no posto da Telebahia, que

chegou ao Junco em 1982). Foi em Alagoinhas que conheci um

estdio de futebol, uma partida de futebol profissional. Festas no

Tnis e na ACRA, que as pessoas tambm chamavam "no ACRA".

ACRA era clube de rico, Tnis era dos remediados.

30

Uma coisa engraada para mim foi a seguinte: eu sempre gostei de

olhar placas de carro (at hoje sou leitor de placas de automveis).

Ento, naquela poca a placa tinha duas letras. Ento, uma das placas

de Alagoinhas comeava com F (porque F a 6 letra do alfabeto e

Alagoinhas era a 6 regio) e A, pois era a "capital" da regio, a sede

do Ciretran. FA era a placa de Alagoinhas, FB era Acajutiba, FC

Apor...etc. Stiro Dias, por ser a 17 cidade em ordem alfabtica, era

FQ (pois Q a 17 letra)... Na gozao, diziam que FQ era "Fuxico

Quente". E a placa FA de Alagoinhas para mim era F... ramos

todos fs de Alagoinhas, uma capital para ns. 56

Como para esses garotos, que na dcada de 80, como afirma Marcelo Torres, comeam

seu percurso por Alagoinhas, investiram em estudos e foram alm dos limites das duas

cidades, que marcaram suas histrias pessoais. Alagoinhas ainda continua sendo para

muitossatirodienses a primeira metrpole, pois estes veem no Prtico de ouro do

Litoral Norte a primeira escala para o mundo do progresso e do desenvolvimento.

Mesmo com as facilidades do mundo globalizado, que levam aos mais remotos lugares

diversas facilidades, Alagoinhas ainda exerce lugar de destaque no cotidiano dos antigos

junquenses e jovens satirodienses. Ainda que alguns optem pela capital da Bahia,

Alagoinhas ainda ponto de passagem ou primeira estao na viagem da vida cotidiana

que leva o povo do Junco a se jogar no mundo. Alagoinhas ainda perpassa pelo sonho

de uma vida melhor, mesmo para os que continuam com residncia fixa em Stiro Dias.

H tambm o caso daqueles que habitam as duas cidades, trabalhando em uma,

estudando na outra. Isso faz dos cidados que vivem este processo pessoas que esto no

entrelugar de uma cultura que perpassa pelo modo de vida dos dois lugares.

Pela proximidade e pelo grande fluxo migratrio entre Alagoinhas e Stiro Dias,

algumas vezes, sua cultura se confunde. At mesmo na hora de dizer onde mora

algumas pessoas de confundem, pois diariamente esto na estrada de cem quilmetros

que conduzem os habitantes de uma cidade para outra. Estes literalmente esto no

entrelugar, no so isso nem aquilo, so cidados do mundo olhando o seu lugar como o

espao da possibilidade de reinveno do prprio sujeito. Refazer o self tarefa

constante desses sujeitos contemporneos. Os habitantes do Junco se encontram em

diversas cidades do pas e ainda seguem os passos do Sr. Adalto, que enviou seu filho

Marcelo Torres para Alagoinhas, sua primeira metrpole, antes de seguir viagem Brasil

a fora.

56

Texto escrito por Marcelo Torres em correspondncia pessoal para a autora deste artigo, devidamente

autorizado para publicao.

31

Na histria da Educao de Stiro Dias, o desejo constante por educao formal,

permaneceu vivo no satirodiense. Se hoje jovens estudantes vm buscar em Alagoinhas

a possibilidade de obter uma vida melhor atravs dos estudos, este no um anseio

novo. Muitos jovens do Junco j sonharam com a vida que teriam aps estudarem em

Alagoinhas. Uma das possibilidades para as moas era o internato no convento das

freiras, o Colgio Santssimo Sacramento. L estariam privadas de muitas regalias da

liberdade, teriam que se disciplinar segundo a prxis religiosa, mas valeria a pena,

teriam a educao que desejavam. Se muito se esforassem sairiam de l professoras.

Para os pais, o convento era uma boa opo j que sempre seguiam os preceitos da

religio catlica. Chegando-se ao Junco, percebe-se o orgulho e o comprometimento

religioso dos primeiros habitantes do lugar pela construo da igreja.

A segunda opo de estudo era mudar-se com toda famlia para Alagoinhas. Alguns

homens enviavam esposa e filhos para a cidade grande e continuavam vivendo na roa.

No estavam separados de suas famlias. Essa era um estratgia utilizada para os filhos

obterem educao. Outras famlias enviavam apenas os filhos homens para morar em

pensionatos. Nessas famlias, as mulheres s seriam encaminhadas para Alagoinhas a

fim de estudos se tivessem um parente que as acolhesse em sua casa e se se

responsabilizasse como se fossem pais. Foi desta forma que muitas famlias de Stiro

Dias passaram a habitar em Alagoinhas e adotaram para si mesmas duas cidades de

origem. Isso refora o que foi dito na epgrafe. Depois de nascermos, a cada dia, vamos

construindo a nossa origem, somos cidados do mundo, carregando em nossos corpos as

marcas da subjetividade, das experincias vividas. O sujeito contemporneo no

tbula rasa, tem experincias de vidas anteriores que fazem do registro de suas

memrias fontes de pesquisa de um imaginrio cultural, que se mistura no contato de

pessoas que desejam reescrever suas histrias a partir do contato com o outro. A

alteridade marca do cidado do Junco e tambm do cidado de Alagoinhas que, como

todo sujeito contemporneo, busca a multiplicidade da diferena cultural, por ser um

cidado do mundo e desejar estar inserido nele.

A apropriao cultural de Alagoinhas por Stiro Dias, o desejo de ver-se reinventada a

partir da antropofagia, constante. Alagoinhas devorada e degustada pelo novo

Junco, que busca para si uma identidade mais consistente na sociedade

contempornea com seus embates polticos cotidianos.

32

O Junco vai alm de Stiro Dias, ele se reinventou atravs da Literatura quando

Antnio Torres o tornou um espao personagem, no qual circulam cidados que saem

de sua terra e se jogam no mundo em busca de oportunidades, Alagoinhas o local de

passagem. Assim, tanto na arte quanto na vida cotidiana, Alagoinhas tem papel

fundamental para a vida cultural de Stiro Dias. Seus filhos tm uma viso afetiva e

cultural muito prxima. Veem a metrpole dos sonhos dourados dos meninos de

ontem, hoje escritores, como o primeiro espao a conquistar na busca de seus objetivos.

Atualmente, Alagoinhas e Stiro Dias tm um grande intercmbio cultural,

principalmente em relao s artes, dentre as quais, a literatura, o cinema, a msica, a

pintura, o teatro. Nos ltimos anos, houve lanamentos de livros nas duas cidades com

participao de escritores de ambas. Em 2007, a Casa do Poeta de Alagoinhas foi a

Stiro Dias pela segunda vez, no apenas representada como em 2003, mas com

diversos de seus membros. Em lanamentos em Alagoinhas, constante a representao

do municpio de Stiro Dias atravs de um de seus escritores. Em 2009, o Centro de

Cultura de Alagoinhas exibiu o documentrio Caminhos de Feira, de Abmael Borges,

visualizando o potencial cultural da feira de Stiro Dias, premiado pelo Revelando

Brasis. A imprensa local tambm notificou o acontecimento atravs do jornal

Expresso 18. O grupo de flautista de Stiro Dias, apresentou-se no Centro de Cultura

de Alagoinhas na Conferncia Territorial de Cultura 2009. Em Stiro Dias, constante a

realizao de shows de artistas de Alagoinhas, principalmente, no estilo MPB, voz e

violo.

Atravs deste olhar oblquo, que o Junco lana sobre Alagoinhas como metrpole,

percebem-se reflexos de uma cultura mltipla, que quebram as fronteiras entre o local e

o universal. Ambos os locais esto inseridos em projetos culturais que visam ir alm das

fronteiras locais. Alagoinhas, como polo cultural da regio do Litoral Norte e Agreste

da Bahia, traz no seu projeto de desenvolvimento cultural ideias que abarcam as cidades

circunvizinhas, e Stiro Dias busca estar inserida neste processo ao divulgar o seu

potencial artstico-cultural no apenas na regio, mas nacionalmente, e mesmo alm dos

limites do nacional. Culturalmente, esta uma regio muito rica e com as polticas

pblicas que vm sendo adotadas, pode-se revelar o que h de diferente. Atravs das

particularidades da cultura local, so inmeras as possibilidades de visualizao de uma

Alagoinhas que se projeta para o mundo, no olhar dos meninos do Junco de outrora. O

segundo espao entre o local e o universal, uma vez que saem do Junco, passam por

33

Alagoinhas, a primeira metrpole, para s depois lanarem-se ao mundo, carregando

consigo marcas dos dois espaos primeiros (JuncoAlagoinhas) para comporem suas

histrias de vida pessoal e cultural.

Por fim, podemos perceber uma integrao muito grande entre as duas cidades, uma

relao de afeto, bem-estar entre seus habitantes, cordialidade nas relaes comerciais,

educacionais, culturais. Isso permite a apropriao e ressignificao de elementos dessas

duas culturas para a formao de uma identidade mltipla. Assim, o cidado do Junco

tambm sente Alagoinhas como seu lugar de origem. Poderia ser qualquer outro espao,

mas Alagoinhas, a metrpole do Junco, no olhar de muitos daqueles que descrevem as

duas cidades em prosa e em versos e tambm na viso de muitas pessoas que saram do

Junco, passaram por Alagoinhas e de l alaram voos para terras distantes.

1.3 Imagem e Projees Literrias de Alagoinhas e Microrregio

A produo literria da regio Norte agreste de Alagoinhas-Ba vem sendo discutida pelo

Mestrado em Crtica Cultural da UNEB no Campus II Alagoinhas, e durante o Pr-

Frum de crtica Cultural em dezembro de 2009, teve como uma de suas propostas a de

refletir a ausncia de um mapeamento e seleo crtica dos estudos sobre a imposio,

circulao e recepo locais da cultura hegemnica no campo da literatura. Sabe-se que

a produo literria da regio vem crescendo, porm a circulao das obras ocorre em

eventos organizados com pblicos seletos, em locais fechados, no atingindo a

populao local. Isso afasta a comunidade de leitores da lavra de novos autores, que

vem se juntar aos que j so reconhecidos escritores da regio. Assim, percebe-se a

necessidade de se visualizar este cenrio literrio que vem se redesenhando, bem como

resgatar a memria dos escritores pstumos que, muitas vezes, so esquecidos.

importante salientar que, mesmo havendo uma vasta produo literria na regio, a

leitura das obras de autores locais ainda restrita a um pequeno pblico de amantes da

literatura. Os livros desses autores no chegam ao mercado como produto cultural

comercializado, geralmente, so produzidos de modo independente, no tm divulgao

na mdia, sendo vendidos pelo prprio autor a preo de custo. Na tentativa de fazer

34

circular a obra, fazem doaes em bibliotecas para dar acessibilidade ao pblico leitor.

a estratgia da democratizao do livro.

Os escritores, principalmente, os poetas so reconhecidos pela populao como artistas,

porm comum a populao, at mesmo estudantes e professores j terem ouvido falar

de alguns desses autores, entretanto jamais terem lido suas obras. Em Alagoinhas os de

maior reconhecimento so Maria Feij, Jos Olvio Paranhos, Jorge Galdino, Jos

Cirillo, Pedro Rodrigues e Pedro Machado, porm existem aqueles que no aparecem

com a mesma frequncia como os j citados. o caso de Luzia Senna, Maria Jos (Lia)

e muitos outros que permanecem no anonimato, mesmo com livros publicados, so

desconhecidos do pblico leitor de sua cidade, o caso da professora Milfa Valrio,

autora de Como gua e Pedra, um livro de contos. Bastante diferente de Jean Wyllys

que em 2001, lanou Aflitos uma obra de teor literrio elaborado, premiada pela

Fundao casa de Jorge Amado, que no alcanou grande reconhecimento do grande

pblico. Porm, Ainda Lembro, seu segundo livro lanado, foi recorde de pblico, num

evento de literatura em Alagoinhas, devido publicidade adquirida no programa

televisivo Big Brother Brasil da Rede Globo. Este fato mostra a importncia da

publicidade, da divulgao e a influncia da mdia sobre o leitor.

Ainda sobre a Literatura de Alagoinhas, importante atentar para a necessidade de

fazer emergir escritores que tm suas obras em esquecimento, por no terem atingido

em vida a expressividade de uma autora como Maria Feij. importante revisitar a obra

desses escritores, tentar resgatar suas memrias. Esse o caso de Ary Conceio, autor

de Alegria de Viver; Manuel Macas, Efeerre Dias, com preciso valorizar o Homem,

Antnio Ornelas dos Santos, autor de Retalhos DAlma, do comediante Geleno Jos

com suas Piadas de Salo, entre outros e possveis annimos.

Por outro lado, Stiro Dias, cidade pouco conhecida para alm das fronteiras locais, tem

no escritor Antnio Torres o seu maior expoente e divulgador. Autor de Essa terra, O

Cachorro e o lobo, Pelo fundo da Agulha, Carta ao bispo, entre outros, atravs do

lendrio Junco um lugar-personagem ou Malhada da Pedra faz Stiro Dias viajar pelo

mundo como um potencial de reinveno de realidades. Nesse local ficcional, habitam

os mais variados tipos humanos o suicida, o poltico, a moa da janela que espera o

rapaz de fora para casar, o garoto que sonha com a escola e faz discursos como gente

35

grande, o Nego de Roseno e outras histrias. O Junco reconhecido

internacionalmente, junto com seu reinventor, Antnio Torres, um grande incentivo

para jovens escritores e leitores de sua aldeia que conta com aproximadamente dez

escritores publicados individualmente, alm de inmeros poetas publicados em

Antologias e alguns esperando oportunidade de publicao. Para um municpio de cerca

de 20 mil habitantes um ndice considervel.

Em Inhambupe pode-se destacar Ronaldo Leite, que ao lado de Jos Olvio Paranhos,

em 2009, representaram escritores e poetas da microrregio no TAL (Tempo de Arte

Literria) na etapa regional Alagoinhas. Embora tenhamos destacado Ronaldo Leite

pelo reconhecimento na regio, Inhambupe tambm possui escritores no anonimato.

o caso do autor de Vida Velha, Esmeraldo Jos da Silva, publicado postumamente.

Alm dessas cidades aqui mapeadas pela sua literatura, quais os outros autores da

microrregio que esto produzindo e no temos conhecimento dessa obra circulando

como lugar de produo cultural, de difuso de um modo de vida de um lugar, como

espao de ressignificao cultural de um povo? importante mapear os escritores,

poetas, agitadores culturais da regio para fazer dialogar, circular essa produo que se

fecha em arquivos pessoais, empoeirada nas estantes jamais sendo lida.

Quem so os escritores da microrregio? Saber apenas nomes pouco, quais as suas

obras? necessrio fazer um mapeamento dessa produo literria, analisar os modos

de imposio da cultura hegemnica. Como se d a produo circulao e recepo das

obras que circulam globalmente e as da produo local? Quais estratgias devem ser

utilizadas para revitalizar essa literatura local? Como anda esse processo em Acajutiba,

Alagoinhas, pora, Aras, Aramari, Cardeal da Silva, Catu, Conde, Crispolis, Entre

Rios, Esplanada, Inhambupe, Itanagra, Itapicuru, Jandara Mata de So Joo Olindina,

Oriangas, Pedro, Pojuca, Rio Real e Stiro Dias? So situaes que precisam ser

mapeadas a fim de se legitimar as PPLL, que vm sendo construdas e exigem maior

envolvimento dos escritores e interessados.

Em aes isoladas, desde o incio 2009, temos conhecimento que foram lanados na

microrregio A Marcha da Vida, de Allan Oliveira e Luiz Eudes Andrade, Sabor de

uma Lembrana, de Cristiana Alves, autores de Stiro Dias; Pedro, de Jorge Gaudino

e o mais recente Refgio dAlma, de Galdy Galdino. Os estilos so diversificados: h

36

livros de contos, crnicas, documentrios e poesias. Cada autor com seu gnero vem

valorizando a literatura da microrregio e fazendo sua reviso da Histria da Literatura

local. Entretanto, faltam dados da circulao de obras publicadas e pode haver outros

autores no citados aqui, devido falta de circulao dessas informaes.

Na cidade de Alagoinhas, a UNEB, atravs do curso de Letras, vem acompanhando o

desenvolvimento lento, porm constante dessa arte milenar, que, em Alagoinhas e

microrregio, tem uma produo ativa, entretanto pouco conhecida da populao. A

literatura ainda continua sendo uma Arte de Academia, Casa do Poeta, Universidades e

continua distante do povo que, quando l, d preferncia literatura de autoajuda,

literatura policial estrangeira. Mesmo com a proposta de aproximar esta arte milenar do

povo, a universidade e os grupos de escritores locais ainda esto muito distantes do que

diz o poeta Milton Nascimento: [...] todo artista tem de ir aonde o povo est [...]57

Ainda na cidade de Alagoinhas, o lanamento de Histria de Minhas Andanas, de

Haide Lina de Amorim Ramos, dia 12 de dezembro de 2009, na Cmara de Vereadores

de Alagoinhas, s 19h e 30 min, representou mais um livro que compor a histria e a

literatura de Alagoinhas, um livro que parte de um esforo coletivo de familiares e

amigos para realizar o sonho de uma professora e advogada envolvida em diversas

causas sociais e culturais em prol de Alagoinhas.

A divulgao via rdio, jornais, internet no suficiente, a circulao da produo

literria entre estudantes universitrios no basta, preciso levar a literatura aos

colgios, s ruas, s praas pblicas. Se o leitor no tem contato com as obras, como ir

gostar de ler? Muitos veem a literatura como arte de intelectuais, algo que se distancia

da realidade, mesmo quando o contedo que nela circula est no cotidiano, nas relaes

humanas que perpassam pela vida.

Assim, imprescindvel pensar por que a populao no l os autores da regio? Como

incentivar os leitores a conhecer a literatura local? Como ser este pblico leitor? Quais

os autores mais lidos pela populao? Qual a faixa etria que mais se dedica leitura?

preciso conhecer o pblico para saber o que oferecer a fim de conhecer o potencial

literrio da microrregio.

57

NASCIMENTO, Milton e BRANT, Fernandes. Nos Bailes da vida.

37

importante a promoo de eventos pblicos, no fechados em salas de aula e

bibliotecas, convidando a populao atravs dos meios de comunicao a seguir o

preceito de Castro Alves A praa do povo como o cu e do Condor. Transformar as

praas pblicas em palcos e fazer saraus, recitais abertos ao pblico, aproximando o

poeta, o escritor do povo, ler publicamente trechos de obras de grandes pensadores,

encenar peas ao ar livre, no meio da feira livre, levar a obra literria ao povo, no

trancafi-la em arquivos e estantes de bibliotecas. Visualizar culturalmente esta Arte

sacralizada, que precisa se despir para o pblico e viver no cotidiano toda a sua

potencialidade.

Esta uma provocao a escritores, agitadores culturais, professores, leitores e

populao em geral convocando-os a integrar a cultura literria ao seu cotidiano e

revisar sua prpria histria a partir da reflexo deste cotidiano reinventado. preciso

levar a Literatura as ruas como dela os escritores extraem suas histrias e as

transformam em obras de arte.

Para esta discusso, foram convidados todos aqueles que se inquietam com a distncia

entre a literatura e a vida cotidiana. Foram encaminhados convites a escritores de

diversas partes do pas afim de participarem para discusso, dentre esses, o escritor

Antnio Torres, que se fez presente. Tambm foram convidados grupos de estudos

especializados, dirigentes de cultura da microrregio que estiveram noPr-Frum em

Crtica Cultural, que teve no GT2 a proposta de refletir a ausncia de um mapeamento e

seleo crtica dos estudos sobre a imposio, circulao e recepo locais da cultura

hegemnica. Esse GT foi importante por repensar o modo de produo dos autores do

Junco estabelecendo um paralelo comparativo com os autores da microrregio.

Enfim, se na literatura contempornea o cotidiano circula e flui como a prpria vida,

necessrio que os saberes que saem das ruas para os livros retornem a elas para

visualizar a potncia de construo de sentidos e saberes que circulam no dia a dia do

cidado comum como num lance de d