Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

download Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

of 10

Transcript of Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

  • 8/17/2019 Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

    1/10

    DESEMPREGO E EXCLUSÃO SOCIAL

    3

    DESEMPREGO E EXCLUSÃO SOCIAL

    morre de medo de perder o emprego, todo mundo  queperde o emprego e tem mais de 50 anos jamais encontraoutro, todo mundo que se forma vai para a pós-graduaçãoou acumula bicos porque emprego, que é bom, não se en-contra nem com lupa e assim por diante. Todo mundo serefere a uma maioria limitada nos países do centro e auma quase maioria no Brasil. Um dado expressivo, emnosso caso, é que literalmente a metade da PopulaçãoEconomicamente Ativa contribui para a Previdência So-cial (49,9% em 1981, 47,7% em 83, 49,9% em 86 e 50,1%em 90) (IBGE, 1994:Tabela 7). Parece ser uma boa hipó-tese que o problema do desemprego, de que todo mundofala, atinge sobretudo a metade que contribui para a Pre-vidência Social. É muita gente, mais de 31 milhões em1990, mas não são todos.

    Para colocar o desemprego em perspectiva, é necessá-rio explicitar e examinar criticamente uma série de pres-supostos que o discurso corrente subentende. Em primei-ro lugar, o fato de que o que se necessita é de ocupação,que não é sinônimo de emprego. Este último conceitoimplica assalariamento – uma relação de emprego só existequando alguém, em geral uma firma, dá um emprego a

    alguém. A própria linguagem é enganadora. Não há qual-quer dação, mas compra e venda. O emprego resulta deum contrato pelo qual o empregador compra a força detrabalho ou a capacidade de produzir do empregado. Osempresários gostam de falar de oferta de emprego, comose o emprego fosse alguma dádiva que a firma faz aoempregado. Na realidade, é o contrário: é o trabalhadorque oferece, ele que é o vendedor e a mercadoria não é oemprego, mas a capacidade de produzir do trabalhador.A firma empregadora é o comprador, o demandante e,como tal, paga o preço da mercadoria – o salário.

    Todo mundo, no mundo inteiro, fala do desem-prego. A falta de bons empregos – de empregosque pagam e oferecem estabilidade, perspecti-

    vas de carreira, seguro-desemprego, seguro contra aciden-tes, enfermidades, velhice e morte – é sentida em pratica-mente todos os países desenvolvidos e semidesenvolvidos.Este sentimento “universal”, é bom que se diga logo, épartilhado pela assim chamada classe média que, no Bra-sil, tende a ser restrita aos ricos, mas nos países cêntricosabrange o conjunto dos assalariados formais. Os pobres,por motivos óbvios, sempre careceram de empregos dotipo descrito acima; se não carecessem, não seriam po-bres. É duvidoso que o problema pseudo-universal do

    desemprego de fato atinja os pobres “antigos”, os que hádécadas vivem de bicos, do comércio ambulante, de tra-balhos sazonais, da prestação de serviços que não exigemqualificação, incluídos a prostituição, a mendicância e as-semelhados. É provável, porém, que o desemprego estejacontribuindo para o avultamento da pobreza.

    O MAL-ESTAR NO FIM DO SÉCULO XX

    Uma das causas dos mal-entendidos é a fantástica ca-pacidade da classe média de generalizar. Todo mundo

     Há um sentimento de exclusão, de mal-estar em vastos

    segmentos das sociedades ricas integradas na

    economia global, alimentando a violência e, em alguns

    casos, atitudes de xenofobia.

    Fernando Henrique Cardoso, na Índia(Folha de S.Paulo, 28/01/96)

    PAUL SINGERProfessor do Departamento de Economia da USP. Autor dos livros Economia Política da Urbanização

    e Um Governo de Esquerda para Todos

  • 8/17/2019 Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

    2/10

    SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(1) 1996

    4

    No mercado de trabalho capitalista, como nos demaismercados, o freguês sempre tem razão. Este dito refleteuma tendência bastante geral, de que a concorrência ten-de a ser mais intensa entre os vendedores do que entre os

    compradores. Isto decorre do fato não universal, mas fre-qüente, de que a oferta supera a demanda. Excetuados osmercados monopólicos ou fortemente oligopolizados, osdemais se apresentam quase sempre com esta caracterís-tica; e os consumidores estão acostumados a ser bajula-dos e seduzidos porque os ofertantes precisam deles maisdo que o contrário. Uma das razões para isso é que quan-do a oferta tende a ser menor que a demanda na maioriados mercados, a tendência à inflação torna-se muito for-te, o que exigiria controles extramercado para contê-la.(Nossa experiência com o Plano Cruzado em 1986 e como Real em 1994/95 ilustra isso). Hoje estes controles são

    fortemente combatidos pelos governos (quase todos libe-rais) e, em conseqüência, a relativa estabilidade dos pre-ços requer permanente contenção da demanda, de onderesulta o tipo de “equilíbrio” que faz com que o freguêssempre tenha razão.

    É claro que isso vale sobretudo para o mercado de tra-balho. As políticas fiscais e monetárias têm em vista im-pedir que a economia se “aqueça” em demasia, o que, naprática, implica manter uma generosa margem de sobre-oferta de força de trabalho. Neste sentido, o desempregonão é um “mal”, mas um efeito funcional de políticas deestabilização exitosas. Quando a demanda por mercado-rias, seja para consumo seja para inversão, é contida paraque os preços não subam, é óbvio que as empresas ven-dem menos, portanto produzem menos e ipso facto em-pregam menos. A concorrência intensificada entre asempresas obriga-as a reduzir custos e, portanto, a aumen-tar ao máximo a produtividade do trabalho, o que impli-ca reduzir ao máximo a compra de força de trabalho.Os desempregados, que outrora eram denominados deexército industrial de reserva, desempenham o mesmopapel que as mercadorias que sobram nas prateleiras: elesevitam que os salários subam.

    É melhor falar em exército industrial de reserva do queem “desempregados”, em primeiro lugar para que fique

    claro o importante papel estabilizador que desempenham.E, em segundo lugar, porque o exército de reserva (hojemais terciário do que industrial) não se compõe apenasdos que são vítimas do desemprego aberto, ou seja, dosque estão ativamente procurando e solicitando empregoque, em geral, representam uma proporção limitada dapopulação economicamente ativa. No Brasil, onde o se-guro-desemprego ainda é um privilégio de poucos, estaproporção dificilmente passa de 5%. (Nos países que uni-versalizaram o seguro-desemprego, o desemprego abertocostuma se situar entre 10 e 20%). Mas, ao lado dos de-

    sempregados ativos, há um outro componente do exérci-to de reserva. São os “pobres”, os socialmente excluídos,que se sustentam por meio de ocupações precárias, comoexemplificamos no primeiro parágrafo. Estes pobres são

    candidatos potenciais a emprego no setor formal da eco-nomia, tão logo este expanda suas compras de capacida-de de produzir.

    É por isso que dissemos acima que, na realidade, o quenecessitamos é de ocupação e não de emprego. Ocupa-ção compreende toda atividade que proporciona sustentoa quem a exerce. Emprego assalariado é um tipo de ocu-pação – nos países capitalistas o mais freqüente, mas nãoo único. Temos aqui outra generalização provavelmenteenganadora. Como a falta de ocupação é chamada de “de-semprego”,  pressupõe-se implicitamente que a únicamaneira de alguém ganhar a vida é vender sua capaci-

    dade de produção ao capital. Deixam-se de lado as múl-tiplas formas de atividade autônoma que, na realidade,estão crescendo no mundo inteiro e no Brasil, na medidamesma em que o capital contém seu ritmo de acumulaçãoe tendencialmente reduz o volume de força de trabalhoque emprega. Na Tabela 1, a seguir, a evolução da estru-tura ocupacional da população economicamente ativa podeser acompanhada no Brasil, na década de 80.

    TABELA 1

    População Ocupada, Segundo Categorias Sócio-Ocupacionais

    Brasil – 1981-1990

    Em porcentagem

    Cate gorias Sóc io-O cupa ci onai s 1 98 1 1 98 3 1 98 6 1 99 0

    Total 100,0 100,0 100,0 100,0

    Empregadores 3,2 3,2 3,5 4,7

    Empregados Públicos 8,0 8,3 9,2 9,7

    E mpregados d e Fi rma s Parti cu lares 5 0, 4 5 0, 5 5 0, 5 4 8,8

    Trabalhadores Autônomos 22,3 22,1 22,4 22,6

    Trabalhadores Domésticos 6,1 6,6 6,7 6,2

    Não-Remunerados 10,0 9,3 7,7 8,1

    Fonte:  IBGE, 1994.

    A primeira coisa que chama a atenção nesta Tabela é apequena dimensão das mudanças verificadas ao longodestes nove anos. Esta imobilidade relativa da estruturaocupacional da população ocupada contrasta vivamentecom o dinamismo exibido por esta quando a economiabrasileira estava em pleno desenvolvimento. A décadaanterior – 1970-80 – abarca o rápido crescimento do “mi-lagre econômico”; neste período, a proporção de empre-gados de firmas particulares passou de 41,7% para 52,2%,a de empregados públicos de 7,3% para 8,8%, ao passo

  • 8/17/2019 Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

    3/10

    DESEMPREGO E EXCLUSÃO SOCIAL

    5

    cido como Terceira Revolução Industrial e pela crescen-te globalização das atividades econômicas?

    Em outras palavras, o mal-estar na civilização capita-lista, que ressurgiu no fim do século XX, é resultado ape-

    nas da reviravolta político-ideológica ou apresenta carac-terística estrutural, sendo traço inevitável de uma novaépoca na história do capitalismo? Sem colocar a questãono contexto das mudanças sistêmicas em curso, é de setemer que ela seja subestimada.

    CONSEQÜÊNCIAS DA TERCEIRAREVOLUÇÃO INDUSTRIAL

    Todas as revoluções industriais acarretaram acentua-do aumento da produtividade do trabalho e, em conse-qüência, causaram desemprego tecnológico. Os desloca-

    mentos foram grandes, milhões de trabalhadores perderamsuas qualificações à medida que máquinas e aparelhospermitiram obter com menores custos os resultados pro-dutivos que antes exigiam a intervenção direta da mãohumana. Mas, a Segunda Revolução Industrial tambémgerou inúmeros novos produtos de consumo, que têm pro-longado e enriquecido a vida humana. O nível de consu-mo cresceu mais do que a produtividade do trabalho, demodo que os setores novos da economia absorveram maisforça de trabalho do que aquela liberada por setores anti-gos renovados. Como os que ocuparam os novos empre-gos gerados pela tecnologia nem sempre foram aquelesexpulsos dos empregos eliminados pela tecnologia, as ca-lamidades sociais acarretadas pelo desemprego tecnoló-gico não devem ser menosprezadas. Foi para minorar es-tas calamidades que se criaram os diversos seguros sociaise o compromisso histórico de cada governo de manter aeconomia o mais próximo possível do pleno emprego.

    A Terceira Revolução Industrial sob diversos aspec-tos difere das anteriores. Ela acarreta acelerado aumentoda produtividade do trabalho tanto na indústria como emnumerosos serviços, sobretudo dos que recolhem, proces-sam, transmitem e arquivam informações. Como ela estáainda em curso, é difícil prever seus desdobramentos pró-ximos e longínquos. Além da substituição do trabalho

    humano pelo do computador, parece provável a crescen-te transferência de uma série de operações das mãos defuncionárias que atendem o público para a própria usuá-ria. É a difusão do auto-serviço, facilitado pelo empregouniversal do microcomputador. O que pode significar quecada cidadã ou cidadão gastará mais tempo para consu-mir e administrar o consumo presente e futuro de si e dosque dela ou dele dependem.

    Por outro lado, a multiplicação de novos produtos écomparativamente diminuta. Para o consumidor final, aTerceira Revolução Industrial tem oferecido principalmen-

    que a de autônomos caiu de 33,8% para 25,2% e a de não-remunerados de 9,9% para 5,3%. Também a proporçãode empregadores aumentou de 1,5% para 2,6%. Como odesenvolvimento tomava a forma de expansão de firmas

    capitalistas, nada mais natural que uma parcela crescenteda população ocupada abandonasse ocupações rurais, emque é mais freqüente a ocupação autônoma e não-remu-nerada (de membro da família), para se inserir na estrutu-ra ocupacional como empregado público ou de firma par-ticular (a expansão das redes públicas de ensino, saúde,comunicações, etc. foi elemento condicionante do desen-volvimento). Portanto, o fato de cerca de 13% dos ocu-pados terem-se transformado, entre 1970 e 1980, de au-tônomos e não-remunerados em empregados de firmasparticulares, empregados públicos e empregadores ape-nas reflete o desenvolvimento da economia.

    Mas, na década de 80, a história foi outra. Para come-çar, a economia quase não cresceu e o desenvolvimentofoi parco. Por isso, as mudanças foram poucas, até 1986insignificantes mesmo. Apenas no último subperíodo seobservam algumas alterações: a proporção de emprega-dos de firmas particulares cai de 50,5% em 1986 para48,8% em 1990, ao passo que aumentam as proporçõesde empregadores (de 3,5% para 4,7%), de empregadospúblicos (de 9,2% para 9,7%) e de não-remunerados (de7,7% para 8,1%). O sentido das mudanças em 1986-90foi oposto ao das verificadas em 1970-80: enquanto nosanos 70 a parcela dos empregados em firmas privadasaumentou às custas das parcelas de autônomos e não-re-munerados, em 1986-90 a parcela dos empregados emfirmas privadas se contraiu, expandindo-se as demais. Éverdade que em ambos os períodos as parcelas de empre-gados públicos e de empregadores cresceram, mas a in-versão da tendência da categoria sócio-ocupacional maiore mais importante, a dos empregados de firmas particula-res, indica que a dinâmica social sofreu uma mudançasignificativa. No Brasil assim como nos outros países.

    A Tabela 1 ilustra o que afirmamos anteriormente: oproblema da ocupação não pode e não deve ser reduzidoao do emprego. O aumento da proporção de empregado-res e de não-remunerados, em 1986-90, sugere que hou-

    ve alguma descentralização do capital, com a multiplica-ção de pequenas firmas, que são aquelas que ocupam, alémde trabalhadores autônomos, auxiliares não-remunerados,em geral aparentados ao “empregador”. A grande inda-gação a este respeito é a seguinte: deve-se atribuir o res-surgimento do desemprego em escala crescente em qua-se todos os países capitalistas apenas à voga do liberalismoe ao conseqüente abandono das tentativas de preservar opleno emprego mediante políticas keynesianas ou deve-se atribuí-lo também às transformações econômicas oca-sionadas pelo conjunto de mudanças tecnológicas conhe-

  • 8/17/2019 Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

    4/10

    SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(1) 1996

    6

    te novas formas de entretenimento. Mas, o seu usufrutoexige mais tempo e para muita gente a jornada de traba-lho não só não foi reduzida mas até aumentada. De modoque o grande aumento do consumo, trazido pelo automó-

    vel, pelo avião, pela televisão e pela medicina curativano segundo e terceiro quartéis deste século, não encontrasimilar atualmente. Os aumentos de produtividade per-mitem baratear produtos e isso, sem dúvida, expande oseu consumo, mas raramente tanto quanto cai o empregode trabalho em sua confecção. Por isso, o volume total deocupação tende a cair.

    Um dos efeitos mais controversos da Terceira Revo-lução Industrial é que ela parece estar descentralizando ocapital. Esta hipótese se justifica por dois motivos: pelamaior flexibilidade que o computador confere ao parqueprodutivo, eliminando certos ganhos de escala, tanto na

    produção quanto na distribuição; e pelo barateamento dopróprio computador e de todo equipamento comandadopor ele. O resultado parece ser que as grandes empresasverticalmente integradas estão sendo coagidas, pela pres-são do mercado, a se desintegrar, a se separar das ativida-des complementares que exerciam para comprá-las nomercado concorrencial ao menor preço. É o que tem sidochamado de “terceirização”. Outro resultado é que as gran-des empresas horizontais – que operam estabelecimentossemelhantes em dezenas de países e milhares de cidades– se vêem coagidas, pela pressão da concorrência, a darautonomia às suas filiadas, tomando crescentemente oformato de rede, cujos componentes se ligam à matriz pormeio de contratos de franqueamento.

    Muitos autores críticos contestam a tendência à des-centralização do capital, com o argumento de que esta éapenas formal e que, ao contrário, o controle financeirodas empresas está se centralizando cada vez mais, atra-vés de sucessivas ondas de fusões e aquisições. O funda-mental, do ponto de vista do desemprego e da exclusãosocial, que nos interessa aqui, é que muitas atividadesdesconectadas do grande capital monopolista passam aser exercidos por pequenos empresários, trabalhadoresautônomos, cooperativas de produção, etc. O que trans-forma um certo número de postos de trabalho de “empre-

    gos” formais em ocupações que deixam de oferecer as ga-rantias e os direitos habituais e de carregar os custoscorrespondentes. Se for verdadeira a hipótese de que ocapital se descentraliza ou que ele prefere cada vez maisexplorar o trabalho humano mediante compra de servi-ços, em vez de contratar força de trabalho, as relações deprodução essenciais do capitalismo estão sofrendo umatransformação radical. Neste caso, diagnosticar a crescenteexclusão social que se verifica na maioria dos países comoresultado do “desemprego” pode representar um enganofatal.

    É praticamente impossível separar os efeitos da Ter-ceira Revolução Industrial de outras mudanças concomi-tantes que vêm ocorrendo nos diferentes países. O que dápara admitir com razoável segurança é que ela afeta pro-

    fundamente os processos de trabalho e, com toda certeza,expulsa do emprego milhões de pessoas que cumpremtarefas rotineiras, que exigem um repertório limitado deconhecimentos e, sobretudo, nenhuma necessidade de im-provisar em face de situações imprevistas. É neste tipode tarefas que o cérebro eletrônico se mostra superior aohumano, tanto em termos de eficiência quanto de custos.Ao mesmo tempo, as aplicações da microeletrônica cri-am novos postos de trabalho, provavelmente em menornúmero, dos quais uma parte requer qualificação elevada(programadores, por exemplo) e outra requer apenas prá-tica (digitadores, por exemplo).

    A GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICAE SUAS REPERCUSSÕES

    Esta questão também ganha nitidez quando colocadaem perspectiva histórica. A economia capitalista indus-trial tende a superar os limites do estado-nação quase desdeseu início. A livre movimentação de mercadorias e decapitais sobre as fronteiras nacionais atingiu seu primei-ro auge por volta da segunda metade do século XIX, quan-do o padrão-ouro proporcionou moedas automaticamen-te conversíveis e se criou um conjunto de instituiçõesdestinadas a garantir o livre-câmbio e as inversões estran-geiras. Esta primeira tentativa de globalização afundoucom a Primeira Guerra Mundial (1914-18) e, pouco de-pois, com a grande crise dos anos 30, seguida pela Se-gunda Guerra Mundial (1939-45). Durante mais de 30anos, as economias nacionais trataram de proteger suasindústrias e comandar a acumulação de capital dentro deseu território, caindo o intercâmbio comercial e financei-ro entre elas a níveis irrisórios.

    Após a última Grande Guerra, os vencedores, capita-neados pelos Estados Unidos, colocaram a retomada daglobalização econômica como objetivo primordial. Asinstituições criadas na Conferência de Bretton Woods,

    ainda em 1944, receberam um claro mandato neste senti-do (a União Soviética só se manifestou contra quando serecusou a participar do Plano Marshall e do FMI, mas suaoposição só teve efeito sobre os países de sua área de in-fluência).

    Pode-se dizer que a globalização é um processo que serealiza sem solução de continuidade já há mais de 50 anos.É fácil comprovar isso, observando o crescimento contí-nuo do valor das trocas internacionais e dos investimen-tos diretos estrangeiros. De acordo com Maizels (1963:Table 4.1), entre 1948-50 e 1957-59, a produção indus-

  • 8/17/2019 Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

    5/10

    DESEMPREGO E EXCLUSÃO SOCIAL

    7

    trial do mundo cresceu 60%, ao passo que o comérciomundial de produtos industriais cresceu 90%; a produ-ção mundial de produtos primários aumentou 30% e ocomércio internacional dos mesmos, 57%. O aumento

    maior do intercâmbio em relação à produção é uma dasmedidas da globalização. Dunning (1964:64) dizia: “Des-de a guerra, uma notável retomada teve lugar nos movi-mentos internacionais de capital, cujo volume subiu maisdepressa que o comércio mundial e a produção industrialdurante os últimos quinze anos. (...) No período de 1946a 1950, o fluxo líquido de capitais privados de longo prazodos países que são exportadores de capital  tradicional-mente foi em média de 1,8 bilhão de dólares ao ano (igualà metade da média dos anos 20). Na década seguinte, elesubiu para 2,9 bilhões ao ano, chegando ao pico de 3,6bilhões em 1958 ...”

    A globalização em curso apresenta duas etapas: a pri-meira, do fim da guerra ao fim dos anos 60, quando elaabarcava sobretudo os países hoje considerados desenvol-vidos; a segunda, que já dura cerca de um quarto de sécu-lo e que inclui uma boa parte do Terceiro Mundo e, maisrecentemente, os países que compunham a União Sovié-tica e seus antigos satélites. Como se vê, pouco a pouco aglobalização vai fazendo jus a seu nome. Para entenderseus efeitos, convém apreciar brevemente o resultado desua primeira etapa.

    Ao final da Segunda Guerra Mundial, os países quehoje compõem o Primeiro Mundo experimentavam con-dições muito diferentes. Os Estados Unidos estavam noauge de sua hegemonia, com elevados níveis de produ-ção e consumo, produtividade e salários; os demaispaíses tinham suas economias afetadas pelo conflito, ca-rência de recursos e dificuldades de reabsorver os ex-combatentes. A primeira etapa da globalização foi domi-nada pela transferência maciça de recursos dos EstadosUnidos à Europa e ao Japão. As grandes companhiasnorte-americanas implantaram filiais e adquiriram firmasda Europa Ocidental, retomando assim sua multinacio-nalização. Os países europeus e o Japão reconstruíram seusparques industriais e ativamente incorporaram tecnolo-gia e padrões de consumo dos Estados Unidos. Gradati-

    vamente, as diferenças entre todas economias envolvidasna globalização foram sendo eliminadas até constituíremum todo econômico bastante homogêneo.

    A integração econômica do que hoje compõe o PrimeiroMundo deu-se num período de intenso crescimento e plenoemprego, que ficou conhecido como anos dourados. Porisso, produção e consumo, produtividade e salários ten-deram a ser homogeneizados para cima. Todas as econo-mias nacionais cresceram, mas as mais debilitadas pelaguerra (Alemanha e Japão) cresceram mais do que asoutras, de modo que, após algumas décadas, o conjunto

    se equiparou aos padrões que inicialmente apenas os Es-tados Unidos detinham. O processo foi um círculo virtu-oso, em que a conversibilidade monetária e a queda dasbarreiras alfandegárias abriam espaço para uma crescen-

    te repartição de ganhos.De 1970 em diante, as economias capitalistas desen-

    volvidas abriram seus mercados internos aos produtosindustrializados do Terceiro Mundo. Ao mesmo tempo, acrise do dólar levou à flutuação das taxas de câmbio e àconstituição de um grande mercado financeiro interna-cional – o mercado de eurodivisas – não submetido a qual-quer controle público. O resultado das duas mudanças foium novo grande salto adiante do comércio internacionale do investimento direto estrangeiro. O grande capitalpassou a implantar, sobretudo em países em processo deindustrialização, todo um novo parque industrial destina-

    do a abastecer os mercados dos países do Primeiro Mun-do. O Brasil foi um dos mais importantes protagonistasda globalização nos anos 70, quando tivemos o “milagreeconômico”. Nos anos 80, a crise do endividamento ex-terno prejudicou a América Latina e o fluxo industriali-zador se dirigiu sobretudo à Ásia oriental: Hong Kong,Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura viram suas economi-as crescerem em ritmo intenso, estimuladas pela expan-são das exportações industriais sobretudo ao Norte.

    A globalização é um processo de reorganização da di-visão internacional do trabalho, acionado em parte pelasdiferenças de produtividade e de custos de produção en-tre países. No início da segunda etapa, os países semi-industrializados apresentavam ao capital global vantagenscomparativas, que consistiam de grande disponibilidadede mão-de-obra já treinada e condicionada ao trabalhoindustrial a custos muito menores que nos países desen-volvidos. Na mesma época, as lutas de classe nos paísesindustrializados haviam se intensificado, alimentadas porcrescente insatisfação de uma classe operária de escola-ridade elevada com um trabalho monótono e alienante.Grandes jornadas grevistas eram resolvidas com eleva-ções salariais que superavam os ganhos de produtividadee pressionavam os lucros. A transferência em grande es-cala de linhas de produção industrial para a periferia foi a

    resposta das empresas. Grandes centros industriais naEuropa e na América do Norte foram literalmente esvazi-ados, com prédios fabris abandonados e grande númerode desempregados. Ao contrário da primeira etapa, destavez a globalização assumia o papel de causador de “de-sindustrialização” e empobrecimento de cidades e regiõesinteiras.

    Parece claro que a globalização não reduz o nível ge-ral de emprego nas economias que dela participam.À medida que uma economia se abre ao comércio inter-nacional, aumentam suas importações e exportações.

  • 8/17/2019 Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

    6/10

    SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(1) 1996

    8

    O acréscimo de exportações cria novo emprego, ou me-lhor, novas ocupações; o acréscimo de importações eli-mina postos de trabalho, que são transferidos aos paísesde onde provêm os produtos importados. Se o país ex-

    porta mais do que importa, tem um ganho líquido de em-pregos. E vice-versa. Como o desequilíbrio entre vendase compras do resto do mundo não pode aumentar sem-pre, a eliminação de postos de trabalho por este efeito numdeterminado país tem de ser limitada. Em outras palavras,quando os países desenvolvidos passaram a importar pro-dutos industriais do Terceiro Mundo, os empregos cor-respondentes foram transferidos do centro à periferia. Mas,a periferia também passou a importar mais do centro, demodo que este também pôde criar novos empregos.

    A mesma discussão pode ser feita em relação ao in-vestimento direto estrangeiro. O país que exporta capital

    deixa de criar postos de trabalho, que aparecem no paísem que o capital é investido. Mas, via de regra, a novafilial importa da matriz insumos e lhe transfere lucros, oque deve levar à multiplicação de postos de trabalho nopaís desenvolvido. Além disso, a maior parte do investi-mento direto estrangeiro se realiza entre países desenvol-vidos, entre os quais não há diferenças de produtividadee custo. Estes investimentos visam aproveitar oportuni-dades de penetrar em novos mercados, criadas pela que-da das barreiras aduaneiras. Nos anos 70, o investimentodireto estrangeiro era, em média, de 21 bilhões de dóla-res por ano, dos quais 76% se dirigiam aos países desen-volvidos; em 1986-90, o fluxo médio era de 155 bilhõesao ano, 83% destinadas aos países desenvolvidos; em1992, ano de recessão, ele foi de 126 bilhões, dos quais68% para países do Primeiro Mundo. Estima-se que to-das as multinacionais em conjunto empreguem 73 milhõesde pessoas no mundo, sendo 44 milhões nas matrizes,17 milhões em filiais situadas em países desenvolvidos e12 milhões em filiais no Terceiro Mundo (OIT, 1995:Cuadro 11). Estes dados sugerem que a explosão de in-vestimento direto estrangeiro, que está se verificando, di-ficilmente afeta os níveis globais de ocupação dos paísesenvolvidos.

    Só que isso está longe de encerrar a discussão. Se a

    globalização não reduz, pelo menos de forma sistemáticae contínua, a ocupação nos países exportadores de capi-tal e importadores de produtos industriais, não há dúvidade que ela ocasiona “desemprego estrutural”. Ela faz comque milhões de trabalhadores, que produziam o que de-pois passou a ser importado, percam seus empregos e quepossivelmente milhões de novos postos de trabalho se- jam criados, tanto em atividades de exportação como emoutras. O “desemprego estrutural” ocorre porque os quesão vítimas da desindustrialização em geral não têm prontoacesso aos novos postos de trabalho. Estes vão sendo ti-

    picamente ocupados por mão-de-obra feminina, muitasvezes empregada em tempo parcial, ao passo que os ex-operários moram em zonas economicamente deprimidas,são muitas vezes arrimos de família, que dispõem de se-

    guro-desemprego proporcional aos salários que ganhavamantes, geralmente mais elevados do que os proporciona-dos pelas novas ocupações.

    O desemprego estrutural, causado pela globalização,é semelhante em seus efeitos ao desemprego tecnológi-co: ele não aumenta necessariamente o número total depessoas sem trabalho, mas contribui para deteriorar omercado de trabalho para quem precisa vender sua capa-cidade de produzir. Neste sentido, a Terceira RevoluçãoIndustrial e a globalização se somam. As duas mudançasatingiram, no Primeiro e no Terceiro Mundos, os traba-lhadores mais bem organizados que, ao longo de muitos

    anos de lutas, conseguiram conquistar não só boa remu-neração, como também o que Jorge Mattoso (1993) cha-ma aptamente de segurança no trabalho. Foram os traba-lhadores industriais que conseguiram o direito de sesindicalizar, de barganhar coletivamente com os empre-gadores, de fazer greve sem correr o risco de demissão,de ter representação permanente junto à direção da em-presa. Na medida em que foram exatamente estes os tra-balhadores mais atingidos pelo desemprego tecnológicoe pelo desemprego estrutural, a correlação de força entrecompradores e vendedores de força de trabalho, em cadapaís, tornou-se muito mais favorável aos primeiros.

    DESEMPREGO OU PRECARIZAÇÃO ?

    Talvez melhor do que a palavra “desemprego”, seja precarização do trabalho  a descrição adequada do queestá ocorrendo. Os novos postos de trabalho, que estãosurgindo em função das transformações das tecnologiase da divisão internacional do trabalho, em sua maioria nãooferecem ao seu eventual ocupante as compensações usu-ais que as leis e contratos coletivos vinham garantindo.Para começar, muitos destes postos são ocupações porconta própria, reais ou apenas formais. Os primeiros re-sultam muitas vezes do fato de que o possuidor de um

    microcomputador pode viver da prestação de diversosserviços a empresas, sem qualquer contrato além da tran-sação pontual.

    Um exemplo que combina os efeitos da globalizaçãocom os da revolução microeletrônica é o das linhas aére-as e companhias de seguros: estas enviam atualmente osdados de que necessitam à Índia para que sejam analisa-dos por peritos em informática daquele país; os progra-mas criados por estes últimos são objetos de comérciointernacional; os programadores de computador e os pe-ritos em informática da Índia fazem breves viagens de

  • 8/17/2019 Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

    7/10

    DESEMPREGO E EXCLUSÃO SOCIAL

    9

    estudos ao exterior, por conta de empresas multinacio-nais. É conhecido o fato de a Índia ter uma vantagem com-petitiva em relação a outros países, em termos de rendi-mentos e remuneração do trabalho de computação. Esta

    vantagem se concretiza em função da possibilidade degravar em disco e comercializar os serviços de progra-madores e operadores de computador (OIT, 1995:54).

    A ocupação por conta própria pode ser apenas formal.Uma única empresa grande necessita muitas vezes dosserviços em tempo completo de uma equipe profissional,seja de contabilidade, de vigilância, de fornecimento derefeições, de seleção de executivos, de pesquisa de mer-cado, etc. Outrora, a empresa empregava a equipe. Hoje,ela prefere que a equipe se constitua em pequena firmaindependente e lhe preste os serviços. Para a empresa-cliente a vantagem está na flexibilidade do novo relacio-

    namento e também no menor custo do trabalho, pois eladeixa de pagar o tempo morto, quando a equipe não temo que fazer, e as horas extras, quando a urgência da tarefaimpõe trabalho além da jornada normal. Os profissionaisque passam a trabalhar “por conta própria” ganham apossibilidade (teórica) de atender a outros clientes, mascorrem o risco de que “o” cliente se volte para outro for-necedor. Em suma: o ex-empregador ganha graus novosde liberdade, os ex-empregados perdem a segurança quetinham.

    A precarização do trabalho toma também a forma derelações “informais” ou “incompletas” de emprego. Esta“ampliação da insegurança no emprego”, conforme re-lata Mattoso (1993:126), “deu-se em praticamente todosos países avançados (...) através da redução relativa ouabsoluta de empregos estáveis ou permanentes nas em-presas e da maior subcontratação de trabalhadores tem-porários, em tempo determinado, eventuais, em tempoparcial, trabalho a domicílio ou independentes, aprendi-zes, estagiários etc. ...”. O mesmo autor apresenta os se-guintes dados (Tabela 3.7): nos países membros da OCDE,durante a recessão de 1981-83, o emprego em tempo in-tegral diminuiu 0,5% ao ano, ao passo que o emprego emtempo parcial aumentou 3,4% ao ano; durante a longa fasede crescimento de 1983-88, o emprego em tempo inte-

    gral cresceu anualmente em média 1,5% e o emprego emtempo parcial, 2,1%. Durante a recessão, as empresas subs-tituíram empregados em tempo integral por empregadosem tempo parcial e durante a expansão elas voltaram aempregar em tempo integral, porém em ritmo menor doque em tempo parcial. Na França, o número dos que seencontravam em “novas formas de emprego”, todas pre-cárias, era de 2.025.000 em 1982 e de 3.406.000 em 1989(Tabela 3.9).

    A estratégia empresarial que leva a estes resultados foiinterpretada nos seguintes termos: “A flexibilidade externa

    procura traduzir para a gestão do pessoal o que represen-ta o método do  just in time na gestão de estoques. Trata-se de evitar estoques de mão-de-obra sem utilidade ime-diata. Procurar-se-á, pois, ajustar continuamente o nível

    de efetivos o mais rente possível às flutuações do merca-do. Emprego estável só será assegurado a um núcleo detrabalhadores de difícil substituição em função de suasqualificações, de sua experiência e de suas responsabili-dades. Ao redor deste núcleo estável gravitará um núme-ro variável de trabalhadores periféricos, engajados por umprazo limitado, pouco qualificados e, portanto, substituí-veis. As vantagens da flexibilidade externa são evidentesno curto prazo. A empresa pode funcionar com mais fle-xibilidade, sem se preocupar em continuamente enchersua carteira de pedidos e, sobretudo, manter o sindicatoem posição de fraqueza. É difícil organizar os precários

    sindicalmente e a solidariedade entre o pessoal estável eeles é fraca” (Gorz, 1991:69).O sindicato entra nas considerações de Gorz como uma

    consideração lateral. Isto porque em 1991 ele já está de-bilitado. Mas, o processo de precarização só se explicapela derrota decisiva do movimento operário, do qual sin-dicatos e partidos são a espinha dorsal. Mesmo quando opartido historicamente ligado aos trabalhadores vai aogoverno, ele se aparta do movimento sindical e permite aprecarização do trabalho. Foi o que acabou ocorrendo, nosanos 80 e 90, com Mitterand na França e com Gonzalezna Espanha, por exemplo.

    As vantagens da “flexibilidade externa” sempre foramconhecidas e, se as empresas pudessem optar, teriam-napraticado desde sempre. Se até meados dos anos 70 não opuderam fazer é porque foram coagidas pelo poder con- junto de sindicatos e partidos democráticos de massa. Ossindicatos tinham poder para obrigar os empregadores aconceder o padrão legal e contratual de relação de em-prego, ou seja, emprego em tempo integral com todos di-reitos assegurados à totalidade dos que trabalhavam paraeles. Mesmo para os trabalhadores facilmente substituí-veis. Isso é confirmado pelos estudos que fundamenta-ram a teoria da segmentação do mercado de trabalho,feitos no fim dos anos 60 e início dos 70, nos Estados

    Unidos. A teoria sustenta que o mercado de trabalho nosEstados Unidos está dividido em dois segmentos: um pri-mário, em que os trabalhadores são mais bem pagos, têmestabilidade e, sobretudo, perspectivas de carreira; outrosecundário, em que as condições são opostas. Mas, emnenhum destes estudos se constata a precarização do tra-balho no segmento secundário, ou seja, as empresas dis-criminam os trabalhadores deste segmento (sobretudo aolhes pagar menos e não remunerar o ganho de experiên-cia), sem deixar de empregá-los nos mesmos termos con-tratuais que os integrados ao segmento primário.

  • 8/17/2019 Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

    8/10

    SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(1) 1996

    10

    Edwards (1979:167) oferece uma enumeração interes-santíssima das ocupações que compõem o segmentosecundário do mercado de trabalho: postos de baixa qua-lificação em firmas industriais pequenas, não-sindicali-

    zadas; ocupações em “serviços” como faxineiros, garçons,auxiliares de enfermagem, entregadores e mensageiros,recepcionistas, guardas, prestadores de cuidados pesso-ais; posições de baixo nível no comércio atacadista e va-rejista como vendedores, tomadores de pedidos, expedi-dores, estoquistas, etc.; ocupações de escritório de nívelmais baixo como datilógrafos, arquivistas, digitadores,etc.; trabalhadores empregados sazonalmente na agricul-tura; e ainda, ensino em tempo parcial e tecelagem no Suldos Estados Unidos. Todos estes ainda eram assalariados,provavelmente com exceção dos trabalhadores sazonais,nos anos 70. Pois eles estão sendo crescentemente preca-

    rizados desde então, sendo engajados como autônomos,avulsos, trabalhadores em tempo parcial ou por tempolimitado, etc. Isso, quando a ocupação não foi eliminadapelos progressos da informática e telemática.

    Edwards divide os trabalhadores primários em duassubcategorias: primários subordinados e primários inde- pendentes.  Os primeiros compreendem “as ocupações daclasse operária industrial tradicional”, além das “posiçõesde trabalhadores sindicalizados nos níveis mais baixos dotrabalho de vendas, escritório e administração” (Edwards,1979:171) e se distinguem dos secundários, assim comodos primários independentes, pela importância da presençasindical. Os primários independentes, por sua vez, estãoem três tipos de ocupações: posições intermédias (mes-tres, guarda-livros, secretárias), ofícios manuais (eletri-cistas, mecânicos) e cargos de profissionais liberais(investigadores científicos, contadores, engenheiros).O que diferencia os primários subordinados dos indepen-dentes é que as tarefas dos primeiros são “repetitivas, ro-tineiras e sujeitas ao ritmo das máquinas” que operam(Edwards, 1979:172), ao passo que as dos segundos “re-querem iniciativa independente ou ritmo autodetermi-nado” (Edwards, 1979:174).

    Fica claro por esta caracterização que as mudanças tec-nológicas trazidas pela informática afetaram em cheio os

    trabalhadores primários subordinados. A robotização, emparticular, atingiu precisamente o trabalho repetitivo erotineiro, que foi acelerado e tornado mais preciso medi-ante a substituição da mão humana pelos tentáculos dosautômatos programados. O efeito sobre a classe operáriaindustrial tem sido devastador. Além disso, nos paísesdesenvolvidos, somou-se ao desemprego tecnológico,assim produzido, o desemprego estrutural decorrente datransferência de linhas de produção industrial à periferia.O resultado foi a corrosão da base social dos grandes sin-dicatos operários. Os primários independentes foram afe-

    tados em menor grau: o micro reduziu consideravelmen-te a demanda por secretárias e guarda-livros e a descen-tralização de responsabilidades e poder de decisão acha-tou as hierarquias, eliminando postos em posições

    intermediárias. Parece provável que, em termos quantita-tivos, os mais atingidos pelo desemprego tenham sido osprimários subordinados, seguidos pelos primários inde-pendentes e, em último lugar, pelos secundários. Estes têmsido os mais afetados pela precarização.

    O que derrotou os sindicatos e os obrigou a aceitar aprecarização foi a nova mobilidade que o capital adqui-riu na segunda etapa da globalização. O grande capitalmultinacional simplesmente abandonou o campo de ba-talha e se transferiu para países em que a debilidade domovimento operário lhe oferecia plena liberdade de re-formular as relações de produção de acordo com os seus

    interesses. A segmentação do mundo do trabalho, queestava implícita nos Estados Unidos e, certamente, emoutros países industrializados, foi explicitada mediante acriação de uma franja de trabalhadores destituídos dequaisquer direitos exceto o pagamento do serviço presta-do. A resistência sindical pode ser aquilitada pela exten-são com que ramos inteiros de produção foram transferi-dos de suas localizações tradicionais a outras partes dopaís ou a outros países. O que em muitos casos condenouà morte econômica e social as sociedades abandonadas.Não admira que as autoridades políticas tenham abando-nado os sindicatos à sua sorte para tentar impedir que aretirada do capital transformasse cidades e regiões emcemitérios industriais.

    EXCLUSÃO SOCIAL

    A precarização do trabalho não está confinada ao Pri-meiro Mundo. Desde a década passada ela se estende apaíses periféricos que têm legislação trabalhista e fazemobservar os direitos legais dos trabalhadores. No iníciodeste ensaio, comprovamos que ela já se faz sentir noBrasil, ao menos desde 1986-90, e tudo leva a crer que seintensificou desde então. É possível afirmar que o con- junto dos países ativamente envolvidos no processo de

    globalização, isto é, todos os membros da OCDE maisuma ou duas dúzias de países da Ásia e da América Lati-na, estão em graus variados sendo submetidos ao mesmoprocesso.

    A precarização do trabalho inclui tanto a exclusão deuma crescente massa de trabalhadores do gozo de seusdireitos legais como a consolidação de um ponderávelexército de reserva e o agravamento de suas condições.Pode-se falar em consolidação porque depois que as ta-xas de desemprego subiram acentuadamente, entre a re-cessão provocada pelo primeiro choque do petróleo em

  • 8/17/2019 Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

    9/10

    DESEMPREGO E EXCLUSÃO SOCIAL

    11

    1974-75 e a provocada pelo segundo choque em 1980-82, elas passaram a flutuar com a conjuntura sem revelarqualquer tendência secular de crescimento ou decrésci-mo (OIT, 1995:147). (Não estamos considerando o enor-

    me aumento do desemprego decorrente do colapso dosregimes de planejamento centralizado na Europa Orien-tal). Mas as condições qualitativas deste imenso exércitode reserva estão se deteriorando. Aumenta a duração dodesemprego nos países membros da OCDE: os que esta-vam desempregados há mais de um ano em 1980 eram26,6% e em 1989 eram 34% do total de desempregados.Na França, o tempo médio de desemprego em 1979 erade menos de 150 dias, ao passo que dez anos depois che-gava a mais de 380 dias. Com o aumento da duração dodesemprego, cai a proporção de desempregados que ain-da recebe seguro-desemprego. Nos Estados Unidos, esta

    proporção declinou de 50% em 1980 para 33% em 1989(Mattoso, 1993:123-125).Como não poderia deixar de ser, a contra-revolu-

    ção do capital teve como conseqüência em todos os paí-ses o aumento da exclusão social. Trata-se, na realidade,de um processo cumulativo: a precarização do trabalhotornou inefetiva para uma parcela crescente da força detrabalho a legislação do trabalho, inclusive a que limita a jornada a 8 horas, determinando ainda descanso semanale férias. Estas conquistas históricas do movimento ope-rário foram decisivas para limitar a extensão do desem-prego em face do crescimento acelerado da produtivida-de do trabalho durante os anos dourados (1945-73). Agora,todos os ocupados por conta própria, reais ou formais,perderam estes direitos. Seus ganhos via de regra se pau-tam não pelo tempo de trabalho dado, mas pelo montantede serviços prestados. Nesta situação, os trabalhadores porconta própria tendem a trabalhar cada vez mais, na ânsiade ganhar o suficiente para sustentar o padrão usual devida.

    O relatório da OIT (1995:51) observa que nos EstadosUnidos, depois do segundo choque do petróleo, caiu odesemprego graças a um alto nível de criação de postosde trabalho, apesar do forte aumento da oferta de mão-de-obra. “Segundo um estudo do tempo de trabalho, este

    é hoje muito maior. Por conseguinte, nos Estados Unidosnão só havia mais pessoas trabalhando, mas além dissotrabalhavam mais horas, o que pode parecer uma duplaproeza num momento de crescimento persistentementelento”. Não há proeza nenhuma se se considera que pro-vavelmente aumentou a parcela de trabalhadores por contaprópria e o salário médio real caiu nos Estados Unidos0,9% por ano entre 1979 e 1989 (Mattoso, 1993: Tabela3.13). O efeito se torna cumulativo, pois o aumento dotempo de trabalho dos ocupados reduz a possibilidade dossem-trabalho encontrarem ocupação. A flexibilização,

    desregulamentação ou precarização do trabalho divide omontante de trabalho economicamente compensador deforma cada vez mais desigual: enquanto uma parte dostrabalhadores trabalha mais por uma remuneração horá-

    ria declinante, outra parte crescente dos trabalhadoresdeixa de poder trabalhar.

    Isso pode ser observado diretamente nos momentos derecessão, quando aumenta o número dos que vão às ruastentar ganhar a vida como vendedor ou prestador ambu-lante de serviços. Piora a proporção entre os que podemcomprar e os que precisam vender e cresce a parcela dosque acabam alijados até mesmo dos mercados informais.Mesmo sem que o exército de reserva cresça como umtodo, aumenta a quantidade de pessoas há muito temposem trabalho, que acabam sendo definitivamente atingi-das pela exclusão social. Suas vidas pessoais entram em

    crise, muitas se agregam aos que vagam pelas ruas sem-teto ou à legião dos desequilibrados mentais. O que temcomo contrapartida concentração da renda em favor dosque têm investimentos, dirigem empresas ou entidadespúblicas e dos que continuam usufruindo dos direitos tra-balhistas como integrantes do núcleo primário de traba-lhadores estáveis.

    No que se refere ao Primeiro Mundo, Mattoso (1993:144-145) escreve: “A contrapartida da maior concentra-ção da renda e ampliação da desigualdade vem sendo ocrescimento da pobreza, observável em ambos os ladosdo Atlântico Norte. Esta ‘nova pobreza’ é cada vez maisassociada com as transformações estruturais ocorridasdurante a ‘modernização conservadora’ no mercado detrabalho. Segundo a Comissão Européia, citada porStanding, desde 1975 cresceu consideravelmente a pobre-za nos países europeus. Em 1989 existiriam na Europa44 milhões de pessoas vivendo na pobreza, o que repre-sentaria 14% da população, comparado com 11,8% em1975. (...) 17,1% dos norte-americanos eram considera-dos pobres no final da década dos 70, contra 5,6% naAlemanha e 9,7% na Inglaterra. No entanto, na décadade 80, com a redução da participação pública em políti-cas contra a pobreza, a maior redução dos salários maisbaixos e ampliação dos empregos de mais baixa produti-

    vidade e salários, a pobreza ampliou-se ainda mais, tantona ampliação do número de pessoas pobres, quanto noaumento da miséria dos pobres”.

    A “nova pobreza” difere da antiga fundamentalmentepor sua origem. Trata-se de pessoas que pertenciam àampla classe média, que se criara em função das conquistasdos anos dourados, e que perderam seus empregos pararobôs ou para trabalhadores de países periféricos. E quenão foram capazes de se reciclar profissionalmente e dese deslocar para as cidades em que os novos postos detrabalho estavam surgindo. No Brasil, a “nova pobreza”

  • 8/17/2019 Desemprego_ Desemprego e Exclusão_ Paul Singer

    10/10

    SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(1) 1996

    12

    também já se faz notar, embora seu surgimento seja maisrecente. E ela atinge fundamentalmente a classe média,sob a forma de menor demanda por força de trabalho comqualificações tradicionais e, sobretudo, de redução muito

    violenta da remuneração real deste tipo de trabalhador. Acrise de desemprego se manifesta no Brasil por aumentodo desemprego “aberto”, isto é, da proporção de pessoasque não exercem outra atividade que a de ativamente pro-curar trabalho. Estas pessoas em geral pertencem a famí-lias cuja subsistência está assegurada por reservas ou poroutro membro, que está ocupado.

    Os pobres raramente podem se dar ao luxo de ficar“desempregados”. Os pobres ficam “parados” quando aprocura por seus serviços cessa, mas eles não podem per-manecer nesta situação muito tempo. Se não conseguemganhar a vida na linha de atividade a que vinham se dedi-

    cando, tratam de mudar de atividade ou de região, por-que senão correm o risco de morrer de fome. Os pobresnão são diretamente atingidos pelas mudanças que a Ter-ceira Revolução Industrial e a globalização estão ocasio-nando nas relações de produção, embora o aumento doseu número, em função do empobrecimento de parte dosdesempregados, sobretudo dos que ficam sem trabalho porlongos períodos, agrave a concorrência nos mercados in-formais, em que os pobres oferecem seus serviços. A trans-formação de operários metalúrgicos ou têxteis em bóias-frias, por exemplo, deve provavelmente pressionar parabaixo a remuneração desta categoria.

    Cumpre, finalmente, assinalar que a precarização dotrabalho, o aumento do exército de reserva e do númerode pobres no Primeiro Mundo e em alguns países daperiferia têm como contrapartida o crescimento do nú-

    mero de ocupados, do nível de produção e de consumonos países que estão crescendo velozmente. São casos no-tórios os da China, Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong eoutros países da Ásia oriental, aos quais se junta o do Chile,

    em nosso continente. Tudo leva a crer que nesses paíseso aumento da produtividade marcha na frente do aumen-to dos salários e que os direitos trabalhistas devem sermuito modestos. Não obstante, nesses países a pobrezaestá diminuindo, o que permite concluir que a globaliza-ção do capital está redistribuindo renda no plano mun-dial. Este pensamento consolador não nos deve fazer es-quecer, no entanto, que ao mesmo tempo os ricos estãoficando mais ricos em todos os países e que muito da de-gradação e do sofrimento infligidos poderiam ter sidoevitados se a globalização tivesse sido minimamente com-binada com programas internacionalmente coordenados

    de reestruturação produtiva. Mas, neste caso, o que de-nominamos de contra-revolução capitalista nas relaçõesde produção dificilmente teria ocorrido.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    DUNNING, J. “Capital movements in the twentieth century”. In: DUNNING, J.(ed.) International investment . Middlesex, England, Penguin, 1964.

    EDWARDS, R. Contested terrain. The transformation of the workplace in theTwentieth Century. New York, Basic Books Inc., 1979.

    GORZ, A. Capitalisme, socialisme, écologie. França, Galilée, 1991.

    IBGE – Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mapa do mer -cado de trabalho no Brasil . Rio de Janeiro, 1994.

    MAIZELS, A.  Indust ria l growth and wor ld trade . Cambridge, Cambridge

    University Press, 1963.MATTOSO, J. Trabalho e desigualdade social no final do século XX . Campi-

    nas, Instituto de Economia/Unicamp, 1993, (Tese de Doutorado).

    OIT. El empleo en el mundo 1995 . Genebra, 1995.