Desenho - Um Ensaio de Abordagem

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Desenho - um Ensaio de Abordagem 1 Menandro Ramos Anos atrás, contava-se uma anedota sobre o paciente de um manicômio que se divertia às custas dos seus companheiros internos. Na ocasião em que todos saíam para o banho de sol, o tal paciente traçava uma linha no chão do pátio e organizava filas para ver quem conseguia passar por baixo do risco. Todo o final da “brincadeira” era o mesmo: pacientes no chão contorcendo-se com dores-de-cabeça, e o autor da idéia a contorcer-se de riso. O caso sempre suscitava gargalhadas e sua “lógica”, possivelmente, tem base no fato de o paciente espertalhão ter ludibriado os seus companheiros com a simulação de uma barra qualquer ou de uma corda suspense no ar. Ou seja, o desenho da linha no chão fazia passar por um objeto tridimensional. O logro se dá, no caso, pela verossimilhança. O significante é confundido com o próprio referente, e o ouvinte acha sempre hilariante o fato de os paciente não terem percebido o óbvio. Assim, é o inesperado que vai provocar o riso ou, pelo menos, esta é uma das possíveis hipóteses para explicá-lo. O mesmo impacto do absurdo também esteve presente em alguns números exibidos pela TV, na década de setenta, quando, dentre outras coisas, o artista plástico e humorista Juarez Machado desenhava uma bicicleta na parede, com giz ou material similar e nela saía pedalando. Em ambos as ilustrações, acima, encontra-se a magia do desenho. Cabe, então a indagação: o que é o Desenho? O Desenho é, sobretudo, uma representação de algo, seja num suporte material, seja na própria mente, seja do visto, seja do imaginado; é manifestação; é síntese; é concepção; é signo e, como tal, é uma das formas do ato sêmico, definido como aquele dotado de intencionalidade. Ninguém duvida da intenção (evocatória, mágica, propiciatória ou outra qualquer) dos autores das pinturas e dos desenhos milenares encontrados nas paredes das grutas de Altamira, de Lascaux ou do sítio arqueológico de São Raimundo Nonato. O Desenho pode também ser visto como uma das formas de concretizar a emoção ou, ainda, enquanto projeto, como uma espécie de avant-garde da materialização propriamente dita da idéia. Seguindo-se as trilhas de Roman Jakobson, ainda que de maneira parcial e reconhecendo a diferença entre os códigos, pode se pensar o Desenho do ponto de viste de sua função. Nessa perspectiva, as preocupações 1 Retirado de: http://www.faced.ufba.br/~menandro/textos/textos_mr.htm Acesso: 10/10/2012

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Desenho - um Ensaio de Abordagem1

Menandro Ramos

Anos atrás, contava-se uma anedota sobre o paciente de um manicômio que se divertia às custas dos seus companheiros internos.  Na ocasião em que todos saíam para o banho de sol, o tal paciente traçava uma linha no chão do pátio e organizava filas para ver quem conseguia passar por baixo do risco.  Todo o final da “brincadeira” era o mesmo: pacientes no chão contorcendo-se com dores-de-cabeça, e o autor da idéia a contorcer-se de riso. 

O caso sempre suscitava gargalhadas e sua “lógica”, possivelmente, tem base no fato de o paciente espertalhão ter ludibriado os seus companheiros com a simulação de uma barra qualquer ou de uma corda suspense no ar.  Ou seja, o desenho da linha no chão fazia passar por um objeto tridimensional.  O logro se dá, no caso, pela verossimilhança.  O significante é confundido com o próprio referente, e o ouvinte acha sempre hilariante o fato de os paciente não terem percebido o óbvio.  Assim, é o inesperado que vai provocar o riso ou, pelo menos, esta é uma das possíveis hipóteses para explicá-lo. 

O mesmo impacto do absurdo também esteve presente em alguns números exibidos pela TV, na década de setenta, quando, dentre outras coisas, o artista plástico e humorista Juarez Machado desenhava uma bicicleta na parede, com giz

ou material similar e nela saía pedalando.  Em ambos as ilustrações, acima, encontra-se a magia do desenho.  Cabe, então a indagação: o que é o Desenho? 

O Desenho é, sobretudo, uma representação de algo, seja num suporte material, seja na própria mente, seja do visto, seja do imaginado; é manifestação; é síntese; é concepção; é signo e, como tal, é uma das formas do ato sêmico, definido como aquele dotado de intencionalidade. 

Ninguém duvida da intenção (evocatória, mágica, propiciatória ou outra qualquer) dos autores das pinturas e dos desenhos milenares encontrados nas paredes das grutas de Altamira, de Lascaux ou do sítio arqueológico de São Raimundo Nonato. 

O Desenho pode também ser visto como uma das formas de concretizar a emoção ou, ainda, enquanto projeto, como uma espécie de avant-garde da materialização propriamente dita da idéia. 

Seguindo-se as trilhas de Roman Jakobson, ainda que de maneira parcial e reconhecendo a diferença entre os códigos, pode se pensar o Desenho do ponto de viste de sua função.  Nessa perspectiva, as preocupações de Da Vinci, ao representar, por meio do desenho, informações verdadeiras sobre o corpo humano, na sua riqueza anatômica, de forma clara, objetiva, observável e verificável, ou, pelo menos, com tal presunção, apontam para a função referencial, matriz de toda comunicação.  Essa função define as relações entre a mensagem e o objeto referente.  Um desenho dito técnico tem também pretensões semelhantes. 

Uma caricatura, por sua vez, concentra o destaque no emissor.  Este elabora a mensagem, cuja forma se manifeste através da deformação e exagero do desenho, carregados emocionalmente dos sentimentos do autor.  Nesse caso, identifica-se a função emotiva ou expressiva do desenho, que define as relações entre a mensagem e o emissor.  O desenho de uma criança sobre um tema qualquer, um desenho lírico ou o desenho emotivo de Picasso, na pintura “Guernica”, motivado

1 Retirado de: http://www.faced.ufba.br/~menandro/textos/textos_mr.htm Acesso: 10/10/2012

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pelo bombardeio de aviões nazistas à cidade do mesmo nome, podem ser categorizados de maneira similar. 

Além das citadas, mais funções podem ser evocadas, como a conativa, a poética e outras tantas, cujo reconhecimento da predominância na mensagem é tão importante para a identificação de intenção de seu emissor, aspecto da leitura crítica do Desenho. 

Com os avanços tecnológicos e, diga-se de passagem, com o pensamento humano eternamente irrequieto, cada vez mais se multiplicam os meios de representar as formas e de materializar as idéias. O mesmo pode ser dito em relação às superfícies ou aos suportes sobre os quais esses meios atuam.  Sem muita dificuldade, um piloto hábil pode manifestar o seu afeto pela amada, desenhando um coração de fumaça a centenas de metros do chão.  A mesma mensagem já não surpreende os moradores dos grandes centros urbanos, mais familiarizados com a tecnologia de ponta, se for desenhada com luz, quando o laser passa a ser o lápis, e o ar rouba o lugar do papel. 

De quantas maneiras se pode desenhar? 

Com um carvão, por exemplo, com uma pedra, ou um osso, ou um instrumento pontiagudo qualquer, ou um giz, ou um pincel, ou uma pena, ou mesmo um dedo ferido... ou com um computador (aqui, o ponto é chamado de pixel ), e de tantos outros modos que, certamente, seria exaustivo tentar enumerá-los. 

Sabe-se que todos esses apetrechos não passam de meros hardwares, usando o linguajar contemporâneo, à espera de bons softwares.  Sabe-se que, também, por trás de tudo isso está o cérebro humano ávido por conhecer, por desvendar, por buscar novas soluções. 

Por fim, pode-se perguntar, o que significa o Desenho no contexto da sociedade? 

Ora, o Desenho é muito mais do que uma profusão de pontos, linhas e manchas; é, sobretudo, uma das possibilidades de realização da comunicação humana e sem esta a vida em sociedade torna-se impossível.  Desenhar é um ato eminentemente social.

Desenhar não é um ato neutro como se pode imaginar num primeiro momento.  Desenhar também é um ato político: desenha-se para reproduzir um modelo anacrônico de sociedade; desenha-se para buscar uma sociedade melhor.  Leonardo Da Vinci, dentre outras coisas, buscou a função referencial do desenho, tão importante para a compreensão e socialização do saber das Ciências Naturais; Albert Speer, arquiteto e ministro do III Reich, colocou suas linhas a serviço do Führer e de sua ideologia espúria; Henfil insurgiu-se, através do seu traço, contra as

mazelas de uma sociedade injusta e contra o arbítrio de uma época.  Assim, o Desenho é também um auxiliar importante para a realização da Cidadania e uma extraordinária ferramenta na construção da Utopia a ser conquistada.