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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Desigualdade e democracia na América Latina: o papel da inércia na construção de uma cultura política democrática Marcello Baquero 1 Jennifer Azambuja de Morais 2 Resumo Neste trabalho, problematizamos o processo de construção democrática na América Latina. Por meio do desenvolvimento do conceito de inércia democrática, buscamos colocar em perspectiva a compreensão contemporânea sobre democracia. Priorizamos, especificamente, a análise de três dimensões conceituais: (1) cultura política e instituições políticas, pontualmente partidos políticos, (2) desenvolvimento econômico e (3) investimentos sociais, cujo entrelaçamento desemboca no que denominamos de democracia inercial. Argumentamos que este tipo de democracia, típica de países que estão em processo de construção da democracia num sentido amplo, tem limitado e, em alguns casos, até prejudicado esse objetivo. Partimos do pressuposto de que a manutenção de uma democracia com as características de inércia, deriva de uma estratégia da elite política dirigente que muda procedimentos econômicos e políticos, além de instituições, sem alterar a essência de uma práxis política e econômica que não proporcionam bases sólidas de transformação social permanente. Palavras-chave: Democracia Inercial; América Latina; Cultura Política. Introdução O estudo da relação entre desigualdade e fortalecimento democrático, além da dimensão formal, na região latino-americana não é simples e não se enquadra pacificamente em modelos que não levam em conta as peculiaridades do contexto estudado. Nos países latino-americanos existe um processo simultâneo que combina a situação econômica e política, não permitindo afirmar com certeza a relação causal para fortalecer a democracia na sua dimensão substantiva. Enquanto alguns fatores, tais como capital humano, democracia e o estado de direito, produzem riqueza econômica, também é possível que a causalidade seja na direção oposta ou que essas duas dimensões sejam intervenientes. Tal situação deriva da complexidade da relação entre economia e política em sociedades hibridas. Por exemplo, enquanto elevados níveis de educação num país pode gerar riqueza, essa riqueza também pode produzir níveis elevados de educação. Igualmente, uma forma democrática 1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS. E-mail: [email protected] 2 Doutoranda em Ciência Política da UFRGS. E-mail: [email protected]

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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

Desigualdade e democracia na América Latina: o papel da inércia na construção de uma

cultura política democrática

Marcello Baquero 1

Jennifer Azambuja de Morais 2

Resumo

Neste trabalho, problematizamos o processo de construção democrática na América Latina. Por meio

do desenvolvimento do conceito de inércia democrática, buscamos colocar em perspectiva a

compreensão contemporânea sobre democracia. Priorizamos, especificamente, a análise de três

dimensões conceituais: (1) cultura política e instituições políticas, pontualmente partidos políticos,

(2) desenvolvimento econômico e (3) investimentos sociais, cujo entrelaçamento desemboca no que

denominamos de democracia inercial. Argumentamos que este tipo de democracia, típica de países

que estão em processo de construção da democracia num sentido amplo, tem limitado e, em alguns

casos, até prejudicado esse objetivo. Partimos do pressuposto de que a manutenção de uma

democracia com as características de inércia, deriva de uma estratégia da elite política dirigente que

muda procedimentos econômicos e políticos, além de instituições, sem alterar a essência de uma

práxis política e econômica que não proporcionam bases sólidas de transformação social permanente.

Palavras-chave: Democracia Inercial; América Latina; Cultura Política.

Introdução

O estudo da relação entre desigualdade e fortalecimento democrático, além da dimensão

formal, na região latino-americana não é simples e não se enquadra pacificamente em modelos que

não levam em conta as peculiaridades do contexto estudado. Nos países latino-americanos existe um

processo simultâneo que combina a situação econômica e política, não permitindo afirmar com

certeza a relação causal para fortalecer a democracia na sua dimensão substantiva. Enquanto alguns

fatores, tais como capital humano, democracia e o estado de direito, produzem riqueza econômica,

também é possível que a causalidade seja na direção oposta ou que essas duas dimensões sejam

intervenientes. Tal situação deriva da complexidade da relação entre economia e política em

sociedades hibridas. Por exemplo, enquanto elevados níveis de educação num país pode gerar riqueza,

essa riqueza também pode produzir níveis elevados de educação. Igualmente, uma forma democrática

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS. E-mail: [email protected] 2 Doutoranda em Ciência Política da UFRGS. E-mail: [email protected]

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de governo pode fomentar o crescimento econômico como também é possível que a riqueza

possibilite que países se tornem democráticos.

Atribuir, portanto, à democracia latino-americana contemporânea o status de consolidação está

longe de refletir as exigências que envolvem a construção de uma cultura política democrática. Os

avanços formais evoluem paralelamente com clientelismo, patrimonialismo, corrupção

institucionalizada e impunidade. Embora o processo de democratização formal seja fundamental,

dadas as características dos países desta Região, ele tem se mostrado insuficiente para mitigar ou

erradicar a desigualdade social, econômica e política. Frequentemente, o projeto e as dinâmicas da

construção democrática são constrangidos pelas condições de desigualdade existentes, as quais, em

termos práticos, resultam não apenas da regressão na luta contra a desigualdade, mas em reforço da

estrutura de desigualdade existente, comprometendo não só a qualidade, mas, fundamentalmente, o

fortalecimento da democracia. Com base nessas afirmações este trabalho busca problematizar a

relação assimétrica entre desenvolvimento econômico, cultura política e o surgimento de uma

democracia inercial.

O significado de democracia inercial

Presentemente, existe um conjunto de modelos de democracia. Na sua maioria esses modelos

postulam a necessidade de tornar as democracias contemporâneas mais eficientes, participativas e

responsivas. O que não está claro é como alcançar esses objetivos por meio de modelos não ocidentais

de democracia, uma vez que os vários modelos sinalizam caminhos diferentes e às vezes

contraditórios. Essas divergências sugerem que se pense a construção democrática em termos de

regiões específicas e não na aplicação de um modelo universal. Esse esforço poderá gerar subsídios

práticos para revitalizar a aparente estagnação democrática de países que enfrentam obstáculos de

toda ordem em virtude de assimetrias entre desenvolvimento econômico e político. Neste trabalho,

pretendemos examinar o processo de inércia que historicamente tem limitado e adiado avanços

substantivos da democracia.

As razões para o descontentamento das pessoas com a democracia são muitas e têm sido

pesquisadas a partir de diferentes enfoques. No caso pontual da região latino-americana, as

preocupações recaem sobre o agravamento das condições de qualidade de vida e bem-estar da

população, bem como a dificuldade em manter e promover o progresso social equitativo. Vários

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autores têm apontado para o paradoxo da persistência da democracia eleitoral com elevados níveis de

desigualdade socioeconômica, exclusão social, violência, crime organizado, além de choques e crises

econômicas recorrentes (HAGOPIAN e MAINWARING, 2005; SMITH, 2005). Isso demonstra que,

embora tenha se avançado na compreensão sobre a questão da qualidade da democracia, ainda

existem lacunas importantes que precisam ser explicadas. Não existe um consenso entre

pesquisadores, por exemplo, em relação às condições ou características centrais para construir e

fortalecer um sistema democrático. Há divergências em relação ao papel que a cultura, as instituições,

a história, a economia e os legados autoritários desempenham na solidificação, ou não, da democracia.

Três razões importantes podem ser apontadas para explicar a situação paradoxal dessa

Região em termos de deficiências no avanço democrático: (a) a fragilidade das novas e das já

existentes instituições democráticas em gerar condições de igualdade efetivas; (b) a apropriação do

processo político por certos grupos e setores privados em detrimento do interesse geral; e (c) o peso

de algumas instituições informais e, consequentemente, suas práticas, que, em alguns casos, têm

freado o progresso democrático e o estabelecimento de níveis de igualdade social. Aliado a esses

fatores, cabe destacar, que a política e a democracia, propriamente dita, tendem a desapontar

segmentos importantes da sociedade que ficam à margem dos benefícios de políticas públicas, por

ser um resultado de processo de decisões coletivas com base num conjunto múltiplo e competitivo de

interesses e opiniões (STOKER, 2006).

Tal situação deixa, em aberto, muitas questões que suscitam um campo amplo para outras

explicações com vistas a melhor compreender os dilemas e obstáculos do desenvolvimento

democrático na América Latina. É dentro desse espírito que propomos o conceito de “democracia

inercial” para a democracia latino-americana. Como ponto de partida, argumentamos que o que se

observa na América Latina, do ponto de vista de mudanças, segue um padrão onde mudanças

econômicas, políticas e sociais ocorrem dentro de uma continuidade de um modelo político que não

se altera significativamente, independente da ideologia do governo incumbente, uma vez que

coexistem de forma inercial com ingredientes preexistentes. Tal situação possibilita que as políticas

sociais e econômicas sigam um padrão que pouco se modifica. Se num contexto de mudanças as

coisas precisam mudar para que fiquem iguais, então se pode esperar que num contexto de

(re)democratização com inércia as instituições mudem, sem no entanto, alterar, numa direção

positiva, as normas, valores e crenças normativas da população em relação à democracia.

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Do ponto de vista de uma democracia inercial pode-se compreender o porquê, em alguns

casos, países emergentes com crescimento econômico positivo não conseguem transformar esses

recursos em investimentos sociais sólidos, produzindo frustração nos cidadãos a qual se materializa

em desconfiança nas instituições políticas e na política em geral. É fundamental, portanto,

problematizar como o crescimento econômico com estagnação (ou aumentos nominais) em

investimentos sociais, associados a uma percepção negativa, hostil e de desconfiança nas instituições

políticas, por parte dos cidadãos, produzem desconfiança institucional, contribuindo para criar uma

“inércia democrática”.

Argumentamos que essa situação foi gerada pela lógica de natureza convencional

(institucional), subjacente ao pensamento político hegemônico, o qual não se direciona para a

promoção da estabilidade política dos países em desenvolvimento, pois negligencia os interesses

majoritários, favorecendo o atendimento dos interesses das elites e grupos poderosos. Contribui, nesse

sentido, para manter a maioria dos cidadãos numa situação de desempoderamento político. O

resultado é a vulnerabilidade política dos cidadãos à soberania doméstica do Estado, suas instituições

e seus representantes, uma vez que os governos não adotam os mecanismos necessários para fomentar

a constituição de uma democracia substantiva, que se desenvolva paralelamente com os avanços

formais e procedimentais. Na Figura 1, apresentamos as dimensões conceituais que contribuem para

a constituição de uma sociedade onde prevalece a inércia democrática.

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Figura 1 – Modelo de democracia inercial na América Latina

Fonte: Elaboração própria.

O modelo acima não é linear e sim de efeitos recíprocos. O ponto de partida é a critica ao

pensamento hegemônico que passou a aceitar sem maiores questionamentos a ideia de que, em virtude

da racionalidade subjacente dos atores sociais num sistema político, os avanços formais e

institucionais acarretariam automaticamente na solução de problemas socioeconômicos e políticos.

Não haveria, assim, grandes preocupações com o processo de politização ou estruturação de uma

cultura política, na medida em que os procedimentos institucionais seriam suficientes para catalisar

uma cultura política democrática.

Propomos que tal raciocínio negligência o processo adverso que ocorre entre

desenvolvimento de procedimentos democráticos formais, concomitante com uma memória

catalisada pelos próprios gestores públicos e assimilada pela população, de manter uma prática

política com base em práticas tradicionais e ultrapassadas. Tal assimetria prejudica o

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desenvolvimento de uma sociedade democrática em virtude de produzir efeitos contraditórios aos

esperados pela democracia representativa, ou seja, materializa efeitos de imobilidade ou resistência

às mudanças propostas pelos órgãos públicos, uma vez que não há reação quando estão em contato

um com o outro – procedimentos formais e cultura política. A inércia democrática gera, assim, um

movimento de reprodução de práticas políticas de tal forma que padrões de comportamento negativo

do passado se (re)atualizam no presente. Ou seja, a memória do passado age como fator estruturante

na constituição de um tipo de cultura política, neste caso, pouco afeita a se envolver em assuntos de

natureza política.

Uma democracia inercial apresenta as seguintes características:

1. Eventualmente aumenta o grau de competitividade de um país no mercado

internacional face ao crescimento econômico moderado e aumento da capacidade de arrecadação de

impostos;

2. Uma vez estabelecidos padrões de desigualdade e despolitização dos cidadãos,

materializam-se atitudes e comportamentos que resistem a mudanças impostas pelo contexto

hegemônico da política;

3. Produz uma perda progressiva de valores democráticos;

4. Ativa uma “memória simbólica” de um passado melhor;

5. Propicia o reaparecimento de práticas políticas que erodem princípios democráticos;

6. Gera o surgimento de uma cultura política híbrida;

7. Institucionaliza relações terciárias (Estado-cidadão) ao invés de relações secundárias

(partidos políticos);

8. Produz instituições deficientes e descontextualizadas que privilegiam a desigualdade

econômica e política desembocando numa inércia democrática.

A democracia inercial, portanto, se refere a uma situação na qual os vícios de um passado

autoritário, que afetavam negativamente os princípios democráticos não são eliminados no novo

contexto de democratização, com consequências deletérias para o desenvolvimento econômico e

político e a construção de uma cultura política participativa. Exemplos desses vícios são: clientelismo,

paternalismo, privatismo, corrupção e patrimonialismo. Tais elementos produzem um efeito

contaminado na democracia contemporânea. Assim, é possível ter estabilidade governamental com a

ausência de estabilidade democrática. As conquistas formais da democracia, nesse contexto, não

eliminam práticas políticas negativas corrosivas, e a desigualdade social e econômica são

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reproduzidas em novos cenários tecnológicos (por exemplo, o analfabetismo tradicional é substituído

por analfabetismo digital).

Metodologia

Utilizamos três dimensões conceptuais para identificar uma democracia inercial: a dimensão

econômica, a dimensão de investimentos sociais e a dimensão da cultura política. As diferentes

variáveis incluídas em cada unidade medida são indicadores quantitativos que provêm de várias

fontes: dados agregados secundários e dados de pesquisa tipo survey. Abaixo apresento as medidas

das três unidades de análise.

Dimensão Econômica:

- Indice de Gini: O Índice de GINI mede a extensão na qual a distribuição de renda ou gastos com

consumo de indivíduos ou famílias em uma economia se desvia de uma distribuição perfeitamente

igual.

- Produto Interno Bruto (PIB): Porcentagem anual de crescimento do PIB a preços de mercado

baseados na moeda local constante.

- Capacidade de arrecadação de impostos: A taxa total de impostos mede a quantidade de impostos

e contribuições obrigatórias pagáveis por empresas após contabilização para deduções permitidas e

isenções como uma parte dos lucros comercias

- Exportação de commodities: As exportações de bens e serviços representam o valor de todos os

bens e outros serviços de mercado fornecidos para o resto do mundo

Dimensão de investimentos sociais

- Investimentos em segurança: % do PIB.

- Investimentos em saúde: % do PIB.

- Investimentos em educação: % do PIB.

Dimensão de desconfiança política

- Desconfiança no Congresso

- Desconfiança nos partidos políticos

- Desconfiança no governo

- Desconfiança nos governos locais

- Desconfiança no Presidente

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- Desconfiança na administração pública

- Desconfiança na democracia

- Desconfiança no judiciário

A moldura teórica

A distância entre o ideal e a realidade da democracia em países com experiências recentes

de democratização tem gerado questionamentos sobre seu futuro. Num sentido amplo, as

preocupações emanam da ausência de explicações consistentes a respeito de: Quais as razões que

explicam a diferença em termos de prosperidade democrática entre as nações industrializadas e em

desenvolvimento ou emergentes? Até que ponto as normas socioculturais desempenham papel

significativo na manutenção dessas diferenças? As instituições limitam ou promovem a democracia

nas nações redemocratizadas?

Numa análise retrospectiva se constata que muitas das democracias da terceira onda

(HUNTINGTON, 2000) surgiram com condições iniciais complexas e desafiadoras, sendo as mais

significativas: a expansão da pobreza e da desigualdade, a dependência econômica num pequeno

número de commodities, os elevados níveis de fragmentação política, a falta de efetividade das

instituições políticas em prover uma medição política e a continuação de práticas de corrupção.

Quando as condições iniciais da construção democrática são adversas, uma das principais

consequências é a centralização do poder político-econômico. No entanto, independente dos

constrangimentos que potencialmente limitam o avanço democrático, há um consenso de que os

benefícios da democracia e a coexistência democrática superam significativamente os custos, assim,

a expansão da democracia deve ser promovida e não desencorajada (FUKUYAMA e MCFAUL,

2007).

Se normativamente tal desiderato é um imperativo, na prática o caminho para assegurar tal

requisito está longe de ser um fato materializado. A história tem se encarregado de mostrar que, apesar

da democracia ter persistido por mais de dois séculos, ainda não há consenso sobre seu significado.

Para Dahl (2000), por exemplo, a própria longevidade da democracia tem contribuído para produzir

confusão e discordâncias, pois esse termo tem significado diferentes coisas para diferentes pessoas

em diferentes épocas e lugares.

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Da mesma forma que a maioria dos conceitos na ciência política, o conceito de democracia

sofre de polissemia por ser uma forma difícil de governo para se identificar, estabelecer, manter e

funcionar. Esses obstáculos, segundo Alexander e Sztompa (1990), não têm permitido que se

estabeleça um consenso sobre o significado atual de “progresso democrático”. Pensamos que a

dificuldade em defini-la e colocá-la em prática tem produzido desafios constantes na sua

operacionalização, principalmente nas novas democracias, uma vez que, mesmo que esses países

continuem a mostrar uma prevalência formal e procedimental da democracia, há também

possibilidades de uma estagnação nesse processo, levando na pior das hipóteses, a uma regressão

institucional. Nas condições atuais das democracias em desenvolvimento parece razoável esperar que,

nos próximos anos, alguns países continuem sendo democracias frágeis e inertes.

O perigo imediato, portanto, não se refere a um colapso da democracia, já que há um

consenso de que a prevalência da democracia é inevitável, marcando uma era de prosperidade e de

direitos humanos. Esse consenso é construído com base nos estudos de Inglehart e Welzel (2005),

para quem os aspectos dominantes contemporâneos da democracia são compostos por valores

culturais, de independência, de individualidade, de liberdade e de valores e méritos de sucesso

individual. Esses valores se fortaleceram ainda mais em decorrência da ideia proposta por Fukuyama

(1992) sobre o fim da história e o fim do último homem e a hegemonia da democracia liberal.

Por não haver um modelo universal de democracia, a maior parte dos países se localiza

dentro de um campo amplo de diversos tipos de democracias políticas ou poliárquias, onde

prevalecem carências e deficiências em vários dos seus atributos, principalmente de natureza

substantiva o que as tornam democracias limitadas e incompletas que requerem outras formas de

estudo além da tradicional democracia-autoritarismo. Por exemplo, a despeito de estudos e pesquisas

que têm avaliado o papel da dimensão econômica na construção democrática, continua a existir

dúvidas sobre o impacto do agravamento das condições econômico-sociais na estagnação da

democracia. Um fato incontestável diz respeito à insatisfação da população com os governos de

plantão quando o Estado se mostra incapaz de dar respostas consistentes para a melhoria do seu bem-

estar e qualidade de vida.

Tal situação é observável nas democracias da terceira onda, onde as vicissitudes da

democracia e da participação política estão vinculadas ao desempenho deficiente das instituições

convencionais de mediação e representação política, bem como à existência de desigualdades sociais.

No caso da América Latina, considerada uma região mais democrática do que outras partes do mundo,

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incluindo a Ásia, nenhuma nação apresenta uma história ininterrupta de governos democráticos,

(talvez, a exceção seja a Costa Rica) e desvios nesses países em termos de governos autoritários,

supressão de direitos humanos e civis têm se materializado em ações estatais de natureza violenta

(FUKUYAMA, 2008).

A questão central, portanto, se refere a se as democracias podem ser reduzidas meramente a

regras eleitorais. Taapagera (2003), por exemplo, coloca em dúvida o efeito causal de arranjos

eleitorais em outras características do sistema político. Por sua vez, Cranenburgh (2006), em estudo

realizado na África, defende que a cultura política e o comportamento das elites devem ser

consideradas variáveis importantes em sistemas de um partido dominante. Spinner (2007, p. 24), na

sua análise da União Soviética, constatou que “a cultura política da elite não era consensualista, apesar

da presença de um cenário institucional de consenso democrático”. Para ele as instituições são

moldadas pelas memórias coletivas de conjunturas históricas impactantes.

No caso da América Latina, Jose Nun (1993) apontava, há três décadas, que a ênfase em

regras e procedimentos não levava em conta as configurações das relações de poder e negligenciava

as variadas formas de como os atores interpretam as regras, negociam em torno delas e as aplicam

em função de recursos de poder os quais são distribuídos de forma desigual. Nesse sentido, as

transições democráticas tinham uma familiaridade com o paradigma teórico democrático, ou seja, se

assemelhavam a democracias e apresentavam elementos das democracias, porém não o eram.

Sociedades com essas características, segundo Baloyra (1993), podiam ser mais adequadamente

caracterizadas como regimes de “despotismo autoritário”, pois misturavam procedimentos eleitorais

com autoritarismo.

A história tem demonstrado que quando a democracia é reduzida a aspectos meramente

formais, as pessoas internalizam “rituais democráticos” a serem cumpridos. Do ponto de vista dos

eleitores, a participação eleitoral se constitui no procedimento adequado e único na escolha de seus

representantes num ambiente competitivo entre partidos. As elites dirigentes, por sua vez, negociam

o estabelecimento das regras e procedimentos para se manterem ou conquistarem o poder com base

nas relações de poder existentes (político, militar e econômico). Estabeleciam-se também os assuntos

que podiam ser legitimamente apresentados e discutidos e quais não podiam, ou seja, as elites

definiam o que era ou não considerado democrático. A consequência não podia ser outra senão o

enraizamento de atitudes e comportamentos conflitivos entre Estado e sociedade.

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Embora do ponto de vista formal eleições tenham se tornado uma pratica padronizada

globalmente e o direito ao voto tenha sido promovido pela comunidade internacional, pelos

movimentos populares e saudado, como um sinal de legitimidade dos governos eleitos, tais fatores

estão longe de garantirem uma democracia plena. A institucionalização da política eleitoral não tem

catalisado, necessariamente, a consolidação da estabilidade política ou econômica. Os mecanismos

formais da política eleitoral têm se enraizado de forma duradoura, no entanto a interseção entre

construção democrática e credibilidade institucional tem se tornado um dos principais desafios para

os cientistas políticos explicarem.

Outro fator, para melhor compreender o papel das instituições no processo democrático em

países emergentes, diz respeito à premissa central que considera que as mesmas já nascem com poder

institucional e que as regras são estáveis e obedecidas. Tal pressuposto não parece ser o mais

apropriado para o contexto das democracias da terceira onda, tendo em vista a fragilidade institucional

histórica desses países. Por exemplo, ao analisar o contexto latino-americano, Weyland (2008)

argumenta que modelos que utilizam a teoria do equilíbrio pontual (punctuated equilibrium) são

insuficientes, pois esta Região se caracteriza por ser uma área onde mudanças institucionais são

descontinuadas. Caso típico seria a previsão de alguns autores que, após a transição política, ocorreria

uma institucionalização perversa fruto da influência das Forças Armadas na política, determinando

um tipo de democracia tutelada (VALENZUELA, 1992), o que não se confirmou. Nessa perspectiva,

a teoria de equilíbrio pontual não produziu uma continuidade institucional.

A alternativa para esse dilema proposta por Chang (2000), e com a qual nos concordamos, é

aprender com a história. Os países em desenvolvimento podem aprender das experiências dos países

desenvolvidos sem ter que pagar os custos envolvidos no desenvolvimento de novas instituições. Este

processo é fundamental, pois uma vez estabelecidas, pode se tornar bastante difícil mudar o

funcionamento das instituições. Nesse sentido, a abordagem institucionalista padeceria do mesmo

problema da abordagem da cultura política, qual seja mudar os valores e normas dos cidadãos a curto

e médio prazo. Em face desse obstáculo, o desafio da construção democrática nos países emergentes

é como conciliar um desenvolvimento paralelo entre instituições e valores políticos. Quando esses

dois aspectos se movimentam em direções opostas, o resultado, em nossa opinião é a inércia

democrática.

A presença da inércia impacta o papel que as instituições têm no processo de garantir

estabilidade política. Por exemplo, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, a cultura política

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prioriza o consenso e o compromisso com a governabilidade por parte dos cidadãos que foram

socializados dentro dos parâmetros de respeito à lei e à autoridade (seja no sentido contratualista ou

comunitário). O mesmo não pode se dizer da América Latina, onde os conflitos sociais têm sido mais

severos e a habilidade de grupos sociais no uso de instituições formais para resolver, mediar ou

mitigar esses conflitos tem sido pouco eficiente. Enquanto que reformas das instituições formais

podem aliviar alguns tipos de disfunções políticas, as raízes causais da instabilidade política e

governança frágil provavelmente existem nos níveis mais profundos da estrutura social ou da cultura

política.

A importância estratégica da cultura política na promoção da estabilidade política e

socioeconômica de um país, segundo Nye, (2015) depende, dentre outros fatores, da existência de um

poder macio (soft power) que resulta da cultura, dos valores políticos e da política externa.

Igualmente, conhecimento e capital humano possibilitam a uma economia manter as taxas de

crescimento que são independentes do nível de riqueza que já existe.

Os dois primeiros fatores – cultura e valores políticos – são produzidos, preponderantemente,

pela sociedade civil e pelas instituições que transmitem esses valores, normas e crenças sobre o

mundo político, estruturando, dessa maneira, um determinado tipo de cultura política. Embora possa

ser argumentado que crenças, atitudes e comportamentos são conjunturais ou cíclicos, no caso da

América Latina, algumas características são estruturais e exercem uma influência decisiva na

manutenção de determinados traços da personalidade política dessas nações, que sem ser

deterministas da estrutura política, auxiliam na sua manutenção.

Um fenômeno universal?

A situação da perda de credibilidade das instituições políticas não é privilégio das democracias

emergentes. Dalton, Scarrow e Cain (2004) mostraram preocupação com as dúvidas dos cidadãos de

democracias industriais a respeito do funcionamento eficiente dos governos democráticos com base,

unicamente, nos princípios e instituições do governo representativo. Pesquisas têm mostrado

recorrentemente (Latinobarômetro, Pesquisa Mundial de Valores) que na maioria desses países, os

cidadãos tornaram-se céticos em relação a políticos, partidos políticos e instituições políticas. Para os

autores, esses sinais apontam para a institucionalização da insatisfação com as instituições e a

democracia representativa.

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A ineficiência da democracia representativa contemporânea, inclusive nos países

considerados consolidados, é ilustrada pelos Estados Unidos. A percepção dos cidadãos nesse país

sobre sua democracia é de que não se constitui uma verdadeira democracia porque consideram que o

processo de tomada de decisões tem sido usurpado por várias gerações de autoridades eleitas que

agem em benefício próprio. O resultado dessa usurpação tem se manifestado na estagnação da

economia, no desemprego, na queda de salários e poder aquisitivo (ROSEFIELDE e MILLS, 2010).

Na mesma direção, Unger (2002) argumenta que a despeito dos Estados Unidos ser uma

nação hegemônica com um senso de sucesso em relação aos outros países desenvolvidos, os cidadãos

se sentem excluídos, parte de uma maioria fragmentada e marginalizada, sem poder para reformar as

bases coletivas dos problemas coletivos que enfrentam. Ao mesmo tempo, consideram que a sua

mobilidade social está bloqueada para eles e seus filhos no que é supostamente uma sociedade sem

classes. Eles acreditam que os gestores públicos e os grandes negócios estão juntos numa conspiração

predatória. Se sentem desacorçoados em relação à política e aos políticos, e buscam uma escapatória

individual desse predicamento social.

Para Lynn (2014), atualmente, os Estados Unidos se constitui na maior democracia desigual

entre os países desenvolvidos, pois detém a maior concentração de renda no topo social. A

desigualdade medida em termos de concentração de renda no topo coloca os Estados Unidos lado a

lado, do ponto de vista da desigualdade, com América Latina. Segundo a autora, o país enfrenta o

maior desafio de exclusão social desde a Grande Depressão de 1929. As políticas públicas e o gasto

social não têm sido suficientes para aliviar a pobreza e a desigualdade das pessoas menos

aquinhoadas. Nessa perspectiva, destaca a importância de entender uma relação que tradicionalmente

foi negligenciada pelos estudos na América Latina, e que coloca no centro do debate da desigualdade,

à relação entre economia e política.

Percepção semelhante é a de Roselfilde e Mills (2010), para quem o país tem ingressado

numa época de paralisia política, crise e declínio. Para eles o governo federal norte-americano tem se

degenerado num sistema de consenso que controla a população. Nesse cenário, onde representantes

eleitos avarentos controlam os serviços e recursos públicos para seus próprios benefícios, a

democracia se torna sem substância, sendo seus representantes adjetivados como “politarcas”, e o

sistema que eles desenham e controlam em colaboração com os grandes negócios (big bussiness) e a

“grande advocacia social” é referido como uma politocracia (politocracy).

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Esse modelo postula que os políticos atuais, junto com os grandes negócios e a advocacia

social, coletivamente determinam a agenda nacional e doutrinam o povo de tal forma que lhes permite

não somente supertributar, mas usufruir via controle monetário e fiscal, da inflação, de subsídios, de

preferencias e de gastos com recursos arrecadados de impostos. Tal situação se aplica tanto interna

quanto externamente, tendo como resultado a diminuição da competitividade, eficiência e potencial

de crescimento. Igualmente, coloca a macroeconomia num estado de desiquilíbrio perpetuo, resultado

de gastos deficitários permanentes, aumento da dívida interna, criação excessiva de crédito e

regulações financeiras frágeis. A vitalidade econômica, a ineficiência governamental, o desperdício,

a fraude, o abuso e a corrupção são consequências correlatas de um sistema politárquico.

Some-se a isso a construção de um panorama no imaginário coletivo da população norte-

americana de que a democracia e suas instituições podem sanar todos os problemas, apesar de um

considerável ceticismo com a política. Essa percepção é tributária da tradição Jeffersoniana que

postula que a desconfiança e ceticismo em relação às instituições políticas podem ser salutares, pois,

quando se examina o cenário político constitucional, as atitudes são preponderantemente positivas

(cerca de 90% dos norte-americanos consideram seu país o melhor lugar para se viver e a democracia

a melhor forma de governo). Uma percentagem reduzida considera que o governo é ineficiente,

justificando sua derrocada.

Os dados empíricos

A seguir apresentamos a evolução dos indicadores das dimensões conceituais utilizadas,

tentando identificar o ponto de saturação entre economia e democracia, ou seja, onde passam a se

movimentar em direções opostas. Iniciamos com a análise do índice de desigualdade existente na

América Latina (GINI)

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Gráfico 1 – Índice de GINI na América Latina 1996-2010

Fonte: Banco Mundial, 1990-2010.

Tabela 1 – Índice de Gini (1996 a 2010)

País Média Desvio padrão Curva normal

Teste Skewness

ARGENTINA 49,572667 2,9279673 0,15

BOLIVIA 58,367778 1,9897285 1,466

BRASIL 58,235385 2,1209377 -0,483

COLOMBIA 54,036667 1,6470782 -0,824

COSTA RICA 57,897692 1,3152323 0,328

CHILE 48,407143 1,8333426 -0,179

ECUADOR 53,441 3,3869896 0,608

SALVADOR 55,956667 1,7568001 1,438

GUATEMALA 57,181538 2,3218378 -0,182

HONDURAS 48,87 1,8296174 0,296

MÉXICO 42,923333 2,387935 -0,257

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NICARAGUA 55,408 2,2241892 -0,522

PANAMA 50,956429 5,4607841 -2,057

PARAGUAY 54,454167 2,1766758 -0,16

PERÚ 50,245833 2,8189052 -0,027

URUGUAY 45,595714 1,6044588 -0,823

VENEZUELA 47,73625 1,4112906 -1,286

América Latina 52,38394383

Fonte: Banco Mundial, 1990 a 2010.

Um sistema político dificilmente pode ser considerado democrático quando a maioria dos

cidadãos convivem com profundas desigualdades de todo tipo e sem perspectivas futuras de uma

melhoria estrutural. Para Altimir (1994) há um movimento perverso de reciprocidade causal na qual

a desigualdade aumenta a pobreza e esta, por sua vez, expande as desigualdades, possibilitando que

o crescimento econômico e a crescente pobreza se tornem compatíveis. A evolução do índice de

desigualdade, medido pelo GINI e apresentado no Gráfico 1, mostra que no período 1996-2010, não

houve uma redução significativa da desigualdade, se mantendo na média de 52 pontos.

Nesse cenário, cabe perguntar: quais são as possibilidades de fortalecimento democrático

quando cerca da metade da população está fora dos benefícios gerados pelo desenvolvimento? O

conflito latente que se gesta entre as classes mais abastadas (que se sentem ameaçadas pela

possibilidade de mobilidade social generalizada) e as classes mais pobres (que responsabilizam os

que se localizam no topo da hierarquia social) é inevitável. Tal situação é agravada pela magnitude

dos investimentos sociais como pode ser visto no próximo Gráfico.

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Gráfico 2 – Investimentos na educação na América Latina (1999-2010)

Fonte: Banco Mundial, 1990 a 2010.

Tabela 2 – Investimento em Educação (1996 a 2010)

País Média Desvio padrão Curva normal

Teste Skewness

ARGENTINA 4,592225 0,7878356 0,499

BOLIVIA 6,259693 0,9979745 0,451

BRASIL 4,654013 0,737373 0,249

COLOMBIA 4,130013 0,382082 0,469

COSTA RICA 4,866628 0,5880229 0,949

CHILE 3,571215 0,4402531 -0,013

ECUADOR 1,988542 1,3342795 1,519

SALVADOR 2,983093 0,5480383 0,616

GUATEMALA 2,71481 0,6578161 -2,002

HONDURAS

MÉXICO 4,932572 0,3428013 -0,841

NICARAGUA 2,923022 0,8662603 1,793

PANAMA 4,344801 0,4160422 0,284

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PARAGUAY 4,01803 0,4001423 -0,075

PERÚ 2,879386 0,2444277 0,349

URUGUAY 2,535746 0,2950655 -0,224

VENEZUELA 4,723687 1,8629318 1,731

América Latina 3,974141

Fonte: Banco Mundial, 1990 a 2010.

Não se pode deixar de reconhecer o impacto favorável dos esforços da política fiscal em

matéria de educação. De fato, provavelmente esse investimento tenha sido a contribuição mais

importante da política social na redução da desigualdade. A ampliação dos novos esquemas de

transferências, também tem contribuído para a melhoria distributiva, porém seu impacto tem sido

menor do que se sugere em alguns estudos recentes. Domínguez (2008), por exemplo, argumenta que

a insuficiência de investimentos na formação de recursos humanos qualificados tem gerado uma

moldura institucional adversa ao crescimento econômico. Nesse cenário, apesar das iniciativas das

autoridades responsáveis no sentido de introduzir novas medidas para romper com a inércia, elas têm

sido ineficazes, contribuindo para o aprofundamento da mesma.

No gráfico 2, se constata que a despesa com educação de 1999 a 2007 oscilou pouco,

experimentando um aumento que pode ser considerado significativo somente a partir de 2007 até

2009, e caindo a partir desse ano, resultado da crise mundial de 2008, que teve início nos EUA.

Na Figura 2, apresentamos um resumo comparativo dos conceitos que levam a

institucionalização de uma democracia inercial na América Latina.

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Figura 2 – Análise comparativa das dimensões da democracia inercial

Fonte: Banco Mundial (1990-2010), Cepal (1990-2012) e Latinobarômetro (1996-2010).

Os dados da Figura 2, indicam que nos últimos 23 anos (1990-2013), as economias latino-

americanas se encontram em situação de instabilidade macroeconômica, crescimento estagnado,

investimentos sociais insuficientes e um crescimento da desconfiança dos cidadãos nas instituições

da democracia representativa.

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Temos, assim, mais dois elementos que tipificam a democracia inercial latino-americana; (1)

políticas econômicas que não favorecem as massas excluídas e que mantém o desemprego inalterado

e estagnado, e (2) a estagnação da renda média anual dos latino-americanos, produzindo uma queda

na qualidade de vida.

Algumas considerações finais

Nas conclusões que se seguem tentamos coordenar os diferentes conceitos e os argumentos

que constituem a gramática do que chamamos de democracia inercial. A tentativa é desafiar

gramáticas existentes em virtude das novas demandas democráticas. Neste trabalho, consideramos as

preocupações teóricas tradicionais, tanto na sua dimensão da retórica quanto na dimensão das práticas

e sua influência na estruturação de um tipo específico de cultura política na América Latina, tentando

ir além.

Nosso objetivo é tentar redefinir os parâmetros do debate sobre democracia na América

Latina, questionando determinadas generalizações que buscam se assentar como teoremas universais

e que têm e são aceitos como tais. O resultado tem sido uma distorção permanente da história dos

nossos países que são geralmente explicados por meio de uma epistemologia alheia a nossa realidade,

atrasando, portanto, o fortalecimento democrático na sua dimensão substantiva.

Um dos pontos principais do nosso argumento é de que a correlação entre fatores

econômicos, investimentos sociais e tipo de cultura política, quando assimetricamente relacionados,

produzem um tipo específico de democracia, não contemplado por teorias anteriores. Os teóricos da

transição proporcionaram o ponto de partida sobre este tema ao identificar a necessidade de

reconceitualizar e reterritorializar a evolução democrática de diferentes países com características

variadas e distintas. Para Carrothers (2008) não há uma sequência linear de estágios – do colapso a

consolidação democrática – que todos países atravessam no seu caminho para a democracia, após

regimes autoritários. Pelo contrário, o autor argumenta que muitos países engajados em transições

democráticas estavam, de fato, situados numa zona cinzenta, da qual não havia certeza se a curto

prazo – ou se de fato – emergiriam como democracias liberais.

O dilema que América Latina enfrenta para fortalecer a democracia na sua dimensão

substantiva reside em desenvolver esforços que nos mostrem outros caminhos a serem seguidos para

alcançar esse objetivo.

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