Desleituras Cinematográficas Literatura Cinema e Cultura

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Desleituras Cinematográficas

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  • Desleitur a s cinematog r f ic a s :

    liter atur a , cinema e cultur a

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  • u niversidade feder al da bahia

    reitor Dora Leal Rosa

    vice-reitor Lus Rogrio Bastos Leal

    editor a da universidade feder al da bahia

    diretor a Flvia Goullart Mota Garcia Rosa

    cult centro de estudos multidisciplinares em cultur a

    coordenao Clarissa Braga

    vice-coordenao Leonardo Costa

    conselho editorial Titulares

    Angelo Szaniecki Perret Serpa

    Alberto Brum Novaes

    Caiuby Alves da Costa

    Charbel Nin El-Hani

    Cleise Furtado Mendes

    Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti

    Evelina de Carvalho S Hoisel

    Jos Teixeira Cavalcante Filho

    Maria Vidal de Negreiros Camargo

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  • M a r i n y z e P r a t e s d e O l i v e i r a

    e E l i z a b e t h R a m o s

    ( O r g a n i z a d o r a s )

    c o l e o c u l t

    e d u f b a

    s a l v a d o r , 2 0 1 3

    Desleitur a s cinematog r f ic a s :

    liter atur a , cinema e cultur a

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  • 2013, by autores

    Direitos para esta edio cedidos edufba.

    Feito o depsito legal.

    coor denao editor ial Flvia Goulart Mota Garcia Rosa

    r eviso Equipe da edufba

    nor malizao Mariclei dos Santos Horta

    diagr amao Ana Carolina Matos

    foto da capa Morguefile

    apoio Conselho Estadual de Cultura da Bahia (cec-ba)

    edufba Rua Baro de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina, Salvador Bahia cep 40170 115 tel/fax 71 3283 6164

    www.eduf ba.uf ba.br eduf ba@uf ba.br

    sistema de bibliotecas ufba

    Desleituras cinematogrficas : literatura, cinema e cultura / Marinyze Prates de Oliveira e

    Elizabeth Ramos (Organizadoras) ; prefcio, Silviano Santiago. - Salvador : edufba,

    2013.

    196 p. - (Coleo cult)

    isbn 978-85-232-1100-4

    1.1. Cinema - Brasil. 2. Cinema e literatura - Brasil. 3. Cultura. 4. Socialismo e arte.

    5. Problemas sociais no cinema - Brasil. 6. Cinema e histria. I. Oliveira, Marinyze

    Prates de. II. Ramos, Elizabeth. III. Santiago, Silviano. IV. Srie.

    cdd - 791.430981

    editor a filiada :

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  • s u m r i o

    7P r e f c i o

    A vo c a o s o c i a l i s t a d o c in e m a ( b r a s i l e ir o)

    S i l v i a n o S a n t i a g o

    21A c a b e a s e m t r ave s s e ir o

    J o s C a r l o s A v e l l a r

    43D i l o g o s l i t e r at ur a e c in e m a :

    a s p e c t o s d a c o nt e mp o r a n e i d a d e n a o b r a d e

    O ln ey S o P aul o

    C l a u d i o C l e d s o n N o v a e s

    67F i lm e e l i t e r at ur a Cyb e r punk :

    B l a d e R unn e r

    D c i o To r r e s C r u z

    89N a r b it a d e M a d a m e B o v a r y :

    Au g u s t in a B e s s a - L u s e M a nu e l d e O li ve ir a e m p a s s e i o

    p e l o Va l e A b r a o

    M a r i a T h e r e z a A b e l h a A l v e s

    117V dize r a e l a qu e R o m e u e J ul i e t a e s t o l n a f ave l a

    E l i z a b e t h R a m o s

    131A C a p it u d o C in e m a N o vo :

    a p r o x im a e s e nt r e l i t e r at ur a , c in e m a e hi s t r i a

    M a r i a d o S o c o r ro C a r v a l h o

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  • 143Ve r e d a s d e um di l o g o :

    l i t e r at ur a , c in e m a e c o nt e x t o s o c i o c ul t ur a l

    M a r i n y z e P ra t e s d e O l i v e i ra

    M a u r c i o M a t o s d o s S a n t o s P e r e i ra

    161C a d e i a : nin g u m c o nh e c e a m o r a di a d a ve r d a d e

    D e n i s e C a r ra s c o s a

    173O r e a l i s m o b r u t a l :

    d a p a l av r a im a g e m e m Cid a d e d e D e u s e Tr o p a d e El i t e

    L c i a S o a r e s d e S o u z a

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    A voc a o Socialist a do cinema (br a sileiro)

    S i l v i a n o S a n t i a g o *

    H livros sorrateiros como o que vo ler. Requerem um pre-fcio, no sentido etimolgico do termo. Uma fala inicial.

    Em cada um dos ensaios ali reunidos o autor quis pr de ime-diato a mo na massa. Cada texto exibe um corpus de estudo, inter-relaciona obras de arte tomadas literatura e ao cinema e enuncia uma proposta especfica e pessoal de leitura para, em seguida, faz-la. O ensasta se preparou para desenvolver a leitura com o cuidado terico e a ateno expositiva que artistas e obras merecem. Cada um dos autores especialista na massa em que pe a mo e, por isso, a espicha com destreza pelas vinte e poucas pginas que lhe foram oferecidas. Nelas borda figuras inteligveis e convincentes do saber artstico que acumulou durante anos de estudo e de docncia. E, pgina aps pgina, transmite com empenho sua experincia ao leitor.

    Prefcio

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  • 8 s i l v i a n o s a n t i a g o

    Na economia geral do livro, o estatuto do prefcio ambiva-lente. Ests l, livro, estou c diz o prefaciador. A margem o lugar que o prefcio ocupa no livro; tambm da margem que a orelha atia, com seduo, a curiosidade do leitor; ela fica na aba da capa que se dobra para dentro. Escreve-se o prefcio (ou a orelha) do lado de fora do livro, embora ele deva comunicar-se ntima e intrinsecamente com o que est l, no lado de dentro. Sem direito a assento no espao original do ndice, cumpre ao prefcio enfrentar o livro e nele abrir uma brecha. Por ela o pre-faciador perceber que alguma coisa uma questo terica, por exemplo, foi sendo deixada no ar pelas sucessivas leituras dos especialistas. No entanto, a coisa est l dentro, em cada ensaio, e serve de espinha dorsal do livro. a garantia da organicidade na mistura sensvel de autores e de textos crticos. O prefcio no , pois, paralelo, intrusivo, to intrusivo quanto uma broca.

    Durante a produo das exegeses das obras de arte escolhidas para anlise e interpretao, os especialistas deixaram alguma coisa subentendida no livro.

    O que foi subentendido l dentro deve ser do entendimento do leitor, antes mesmo de transpor a pgina de rosto e o ndice que abrem a porta para os ensaios que vai ler. E se de repente o que foi subentendido dentro do livro no for do conhecimento da mente do leitor? Se o subentendido no tiver sido entendido a priori por este ou aquele leitor? Desprovido de fala prpria, o leitor sem o subentendido fica tambm no ar e os organizado-res da coleo de ensaios, com uma baita duma batata quente nas mos. Ou se adiantam aos companheiros de livro, ou elegem um deles, e se aventuram na redao de uma fala inicial. Ou, como ltimo recurso, solicitam o prefcio a terceiro.

    Aqui estou eu em lugar ambivalente, como que na aba da capa que se dobra para dentro; aqui estou no Prefcio, margem do livro, a ler a coleo de ensaios e a produzir um texto obrigato-riamente impertinente (por ser repetitivo do que foi sendo dado

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    como subentendido pelos ensastas) e desconfiadamente per-tinente (por desejar prestar algum esclarecimento ao leitor que por ventura o necessitar). O prefcio chove no molhado e s ser apreciado, se o for, por nmero minguado de leitores do livro. Ele expe para ser lido apenas pelo leitor apressado e incorrig-vel; expe para no ser lido pelo ensasta. O subentendido por excelncia a forma expositiva astuciosa que o ensasta moderno desenvolveu no correr dos anos. A ela no pode almejar o pre-faciador, embora seja ela forma expositiva astuciosa sempre almejada pelos grandes criadores.

    O subentendido na coleo de ensaios que iremos ler pode re-ceber nome e merece apresentao. Trata-se da mutao por que a noo de obra de arte vem passando desde o sculo 18, tendo ganhado direito de cidadania s no sculo XX. (Falo de mutao porque a coisa sempre a mesma, a arte; a noo de arte que ganha novos e diferentes significados). A leitura das relaes perigosas entre literatura e cinema, entre cinema e literatura, e a sua discusso s se tornaram possveis a partir do momento histrico em que a filosofia se deu conta de que as novas tcnicas de reproduo transformaram e ainda transformam a noo bem assentada e tradicional de arte. Sem pestanejar, destaco o ensaio seminal de Walter Benjamin (1985), A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica. Nele acentuo o inevitvel sacrilgio que o filsofo germnico comete ao contrariar uma assertiva clssica e extempornea sobre o estatuto da arte, assinada pelo poeta Paul Valry.

    Em mos de Benjamin, a contrariedade s ideias de Paul Valry (e de outros autores que se querem atemporais) visava a expor a nu o momento histrico em que a aura da obra de arte tinha entrado definitivamente em declnio. Abria-se-lhe a oportuni-dade de reconsiderar o significado que se depreendia do conceito de arte e, consequentemente, os critrios de que se deveria valer qualquer crtico para analisar a produo artstica que lhe

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    era contempornea. Benjamin (1985) julgava que seria possvel extrair das obras de arte do seu tempo [...] algumas concluses sobre a organizao da percepo nas pocas em que ela estava em vigor. E problematizava: [...] se fosse possvel compreender as transformaes contemporneas da faculdade perceptiva segundo a tica do declnio da aura, as causas sociais dessas trans-formaes se tornariam inteligveis.

    Benjamin (1985) quer tornar inteligveis as causas sociais (fas-cistas, por um lado, e revolucionrias, por outro) que buscam legitimar a organizao da percepo pelo declnio da aura, em particular em momento agudo dos anos 1930. Na ordem do dia, a questo das massas e das lideranas polticas; das massas e do mundo em guerra. Para tal, retoma e endossa as vrias teses sobre as tendncias evolutivas da arte nas condies produtivas do sculo XX e contraria as palavras de Paul Valry que passo a enun-ciar: [...] reconhecemos a obra de arte pelo fato de que nenhuma ideia que ela suscita em ns, nenhum ato que ela nos sugere pode esgot-la ou conclu-la. E o autor dos poemas de Charmes (cuja eti-mologia carmina, poesia em latim) continua: no h lembrana, pensamento ou ao que lhe possa anular o efeito ou liberar-nos inteiramente do seu poder. A partir de Valry, Benjamin expe a aura como a forma privilegiada de reconhecimento da obra de arte para, em seguida, juntar-se aos muitos produtores de arte que lhe so contemporneos e contrari-la.

    Comenta Lebrun (2006, p. 327): A aura designa o fato de que a coisa se d como enigmtica o bastante para que nenhuma con-templao possa esgotar sua significao. A aura aponta, por um lado, para o enigma da obra de arte e, pelo outro, para o excesso de significado. Indiretamente, ela serve para demarcar limites estreitos na experincia do contemplador (no processo de sua apre-ciao). A obra de arte , pois, indecifrvel e, por isso, inesgotvel e inapreensvel na sua totalidade eis sua aura e o modo como se a reconhece. A aura garante, pois, que a obra de arte seja tambm

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    irreprodutvel, j que a apario nica de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. A coisa no se repete e, em mos hbeis, ela o nico que apenas se desdobra.

    Como esclarece Benjamin (1985, grifo nosso), insistindo no valor de culto da obra de arte:

    Mesmo na reproduo mais perfeita, um elemento est ausente: o aqui e

    agora da obra de arte, sua existncia nica, no lugar em que ela se encon-

    tra. nessa existncia nica, e somente nela que se desdobra a obra de

    arte. [...] O aqui e agora do original constitui o contedo da sua autentici-

    dade, e nela se enraza uma tradio que identifica esse objeto, at os nossos

    dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idntico a si mesmo.

    E conclui: A esfera da autenticidade, como um todo, escapa reprodutibilidade tcnica, e naturalmente no apenas tcnica. (BENJAMIN,1985, grifo do autor)

    No se deve subestimar o carter revolucionrio das teses sobre a reprodutibilidade tcnica, porque atravs da anlise e compreenso delas que o filsofo pode controlar o desvio poltico por que os idelogos de direita as fazem caminhar na atualidade dos anos 1930. Essas teses estariam sendo desapropriadas de sua verdadeira finali-dade pelo fascismo, da a importncia do ensaio que Benjamin (1985) escreve. Por um lado, as novas teses [...] pem de lado numerosos conceitos tradicionais como criatividade e gnio, validade eterna e estilo, forma e contedo. Por outro lado, [...] a aplicao incon-trolada [das teses], e no momento dificilmente controlvel, conduz elaborao dos dados num sentido fascista. Na medida em que manifestao evidente do progresso do homem, a reprodutibilidade tcnica estava sendo apropriada nos anos 1930 pelas foras fascistas. O texto que Benjamin escreve e publica antes de mais estratgico. contra a apoteose fascista da guerra e a estetizao da poltica. Leia-se a ltima frase do ensaio: O comunismo responde com a politizao da arte. (BENJAMIN, 1985, grifo do autor)

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    Como Benjamin (1985) dir no texto Sobre o conceito de his-tria, competia ao filsofo acentuar, dentro do progresso como norma histrica, um estado de exceo radical. Competia ao filsofo ler ou reler as teses sobre as tendncias evolutivas da arte nas condies produtivas do sculo XX, visando a controlar sua aplicao dentro da tradio dos oprimidos e, nesse sentido, competia-lhe apresent-las com finalidade diferente elaborada e difundida pelas foras fascistas. A verdadeira finalidade da reprodutibilidade tcnica da arte vem explicitada desde as pri-meiras pginas do ensaio que estamos glosando: Os conceitos seguintes [refere-se WB ao prprio texto], novos na teoria da arte, distinguem-se dos outros pela circunstncia de no serem de modo algum apropriveis pelo fascismo.

    Segundo Benjamin (1985), a tarefa poltica antifascista partiria de um objeto de estudo em particular, que ser privilegiado: [...] nada mais instrutivo que examinar como [estas] duas funes a reproduo da obra de arte e a arte cinematogrfica repercutem uma sobre a outra. No contexto da reprodutibilidade tcnica da arte e do declnio da aura o cinema objeto valorizado, assim como o ser na coleo de ensaios que iremos ler, onde a escrita literria, de difcil acesso, se reproduz pela escrita cinematogrfica, naturalmente destinada ao grande pblico.1

    Num primeiro momento histrico, o tpico da mutao da noo de arte, que a evoluo tcnica da reproduo da imagem carreia consigo, tem a ver com a passagem da litografia fotografia e com o declnio da aura. Libera-se a mo do artista para que se faa o elogio do olho. Leia-se em Benjamin (1985): Pela primeira vez, no processo de reproduo da imagem, a mo foi liberada das responsabilidades artsticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Num segundo momento histrico, o tpico da mutao tem a ver com a passagem da fotografia ao cinema e com o aperfeioamento tcnico da reproduo do som. Ao olho se junta o ouvido. A reproduo tcnica da imagem e do som

    1A reprodutibilidade tcnica do filme tem seu fundamento imediato na tcnica de sua produo. Esta no apenas permite, da forma mais imediata, a difuso em massa da obra cinematogrfica, como a torna obrigatria. A difuso se torna obrigatria, porque a produo de um filme to cara que um consumidor, que poderia, por exemplo, pagar um quadro, no pode mais pagar um filme. (BENJAMIN, 1985, grifo do autor)

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    [...] atingiu tal padro de qualidade que ela no somente podia transformar

    em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as

    a transformaes profundas, como conquistar para si um lugar prprio

    entre os procedimentos artsticos. (BENJAMIN, 1985, grifo do autor)

    Pelo interstcio das ltimas constataes entra o comentrio revolucionrio do filsofo: Como o olho apreende mais depres-sa do que a mo desenha, o processo de reproduo das imagens experimentou tal acelerao que comeou a situar-se no mesmo nvel que a palavra oral. Paradoxalmente, a sofisticada escrita da imagem tem tudo a ver com o declnio da aura, pois to oral, to accessvel a todos, quanto a fala. O indecifrvel para poucos se torna apreensvel por todos e o inesgotvel, perfeitamente legvel, j que o irreprodutvel, graas tcnica desenvolvida, se torna passvel de reproduo. Ao (novo) artista solicitada uma dupla orienta-o. Observa Benjamin (1985): Orientar a realidade em funo das massas e as massas em funo da realidade um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuio. Sua comparao entre a pintura e o cinema esclarece melhor o para-doxo poltico e esttico sugerido atrs: A reprodutibilidade tcnica da obra de arte modifica a relao da massa com a arte. Retrgrada diante de Picasso, ela se torna progressista diante de Chaplin.

    Alerta Habermas em Mudana estrutural da esfera pblica. Desde o sculo 18, a obra de arte vinha perdendo a condio de mediadora do Absoluto para se tornar algo passvel de ser exibido a um pblico burgus, de que so exemplo os concertos musi-cais abertos, os museus e as exposies. Com o cinema falado, a obra de arte ganha novas e inesperadas perspectivas de acesso ao grande pblico e se distancia definitivamente da condio de mediadora do Absoluto. A tcnica da reproduo destaca da tradio o objeto reproduzido e tambm, ao multiplicar a repro-duo, argumenta Lebrun (2006), [...] substitui a existncia nica da obra por uma existncia serial.

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    No seu todo complexo e revolucionrio, o cinema falado a reprodutibilidade tcnica da arte libera ao que se quer artista contemporneo a possibilidade de se valer da escrita propria-mente literria, cujo fundamento atemporal predeterminado pela noo de arte como aura, a fim de torn-la oral. A oralidade da escrita cinematogrfica o sinal mais evidente do declnio da aura como forma de reconhecimento da obra de arte. Sua re-produtibilidade tcnica torna-a comunicvel ao grande pblico, desde sempre castrado a priori do prazer que ela poderia ter-lhe proporcionado.

    Ao perder a aura, o cinema ganha a noo de perfectibilidade, valor estranho arte clssica e, em particular, escultura grega. Esclarece Benjamin (1985): O filme acabado no produzido de um s jato, e sim montado a partir de inmeras imagens isoladas e de sequncias de imagens entre as quais o montador exerce seu direito de escolha [...]. Montagem e perfectibilidade, nos ensaios que iro ler,2 formam o par que prenunciam o significado indeci-dvel [indcidable, Derrida] de todo e qualquer filme, j que pela combinao sutil das duas que passo a distinguir o leitor comum do filme, cujo inconsciente tico afetado durante a projeo, e o filmlogo, que v e rev a obra com a inteno de analisar e destrinchar os significados que teriam passado despercebidos durante a primeira exposio s imagens em movimento. O filmlogo , pois, o ensasta que encontraremos daqui a pouco l dentro do livro. Insistindo numa comparao j lanada, diremos que o espectador comum de filme o l pela oralidade, enquanto o especialista o l enquanto escrita.

    Importante a assinalar que a reprodutibilidade tcnica da obra de arte se faz acompanhar, no esforo de anlise dos ensa-stas, da reprodutibilidade ad infinitum do filme, ou seja, pela existncia serial da obra de arte, como quer Lebrun (2006). Nos termos do raciocnio que expomos, o que dado como oral na sala de cinema imediatamente escrito por cada um dos espectadores

    2Na vida real, montagem e perfectibilidade significam a liberdade de criao exigida pelo grande cineasta. Os estdios concedem raramente direito montagem a diretores do cinema de arte. Convidado pela Columbia Pictures para rodar Wild Palms, de Faulkner, Glauber Rocha no assinou o contrato porque no teria controle da montagem. Na poca, conhecem-se os desentendimentos entre Antonioni e o estdio (v. Zabriskie Point). No passado, John Huston teve a sua verso de The red badge of courage mutilada por querer apresentar os valores sulistas sob a luz crtica. V. Picture, livro de Lilian Ross (1952).

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    na sua mente. Essa circularidade (escrito/oral/escrito) anotada por Jos Carlos Avelar que, ao analisar a literatura de Rubem Fonseca e o filme de Paul Leduc, lembra a afirmao inesperada de Einsenstein: a essncia do cinema no est nas imagens que vemos num filme, mas no texto visual que construmos com ele. A essa circularidade se voltam os inmeros colaboradores do livro a fim de se responsabilizar cada um pelo enredo que desenrola e dramatiza criticamente. Originalmente, repita-se, a circularidade j est prevista na noo de arte que recusa a aura para se apresentar como um feixe de linguagens artsticas afins, que se comportam como organismos vivos. Pela afinidade, as linguagens artsticas so passveis de se misturarem, criando algo que se afirma no mais pela pureza (a autenticidade, como diria o defensor da aura), mas pelo interstcio, pela impureza da criao artstica desprovida de aura.

    O carter mesclado, caboclo, da arte que nos contempornea leva Cludio C. Novaes a escolher e privilegiar a obra do escritor e tambm cineasta Olney So Paulo. Ela exemplo notvel de uma coescritura em andamento, in progress. Ali se lhe revela [...] a gnese de uma contemporaneidade singular entre o discurso literrio e o flmico, tanto na proximidade cronolgica objetiva entre a escrita e a filmagem, quanto na subjetividade de dispositivos que ref letem a fidelidade entre as obras no sen-tido de convergncia simtrica e assimtrica. Na obra literria de Olney, Cludio observa a incorporao de traos descritivos prprios aos roteiros flmicos; j sua obra flmica, afiana, [...] pode ser cartografada como roteiro de leitura de um leitor pro-fundamente comprometido com a tradio literria modernista fundida ao discurso da vanguarda concretista.

    Dcio Torres Cruz mostra o caminho que leva a pesquisa nas tcnicas de reproduo a ir alm da arte e do humano. Depois da mesclagem dos gneros, adianta-se ele em direo mes-clagem dos meios. Seu ensaio se enquadra no que se chama

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    hoje de ps-humanismo, j que deseja ele apreender as novas snteses de humanos e mquinas. De maneira radical dir que [...] o apagamento entre humano e androide aparece como um tropo caracterstico do ps-moderno, no qual a distino entre original e cpia e entre falso e real obliterada. Por isso, sua discusso extrapola o campo da escrita literria e da escrita ci-nematogrfica, espinha dorsal da coleo de ensaios, para se adentrar atravs de Blade runner, que tenta diluir as fronteiras genricas entre filme e literatura por questes de carter tico que esto na base da discusso filosfica atual sobre a tcnica per se. Ele vai abordar temas onde a subjetividade transborda, abrindo o leque da discusso para livre-arbtrio, moralidade, sentimentos e emoes. Dir que os filmes sobre ciborgues, por exemplo, [...] retratam a desconfiana da sociedade em relao ao desenvolvimento tecnolgico, suas implicaes blicas e amea-adoras do livre-arbtrio. Na sua anlise apurada e sensvel fica difcil distinguir o que vem da fico distpica (de Blade runner) e o que lhe sugerido pela fico utpica (de Jorge Luis Borges).

    Maria Theresa Abelha Alves se adentra pela circularidade literria e flmica valendo-se do recurso a uma metfora feliz a da traduo que, no dito de Jacques Derrida, a voz mltipla de um refazer eterno. Ou, no dizer de Roland Barthes, o uni-verso dos textos incompletamente plurais, onde tout signifie sans cesse et plusieurs fois. De maneira bem particular, Maria Theresa indicia sua entrada na discusso ampla que a coleo de ensaios oferece: Todo tradutor l o texto, deslendo-o, porque para traduzir necessrio interpretar, e o tradutor e intrprete, em sua tarefa, aciona seus prprios desejos, suas particulares experincias, e suas pessoais circunstncias, e no desejos, ex-perincias e circunstncias do autor do original. O jogo entre o eu e o outro corroborado pelo jogo entre o original e a cpia, e os dois jogos nos lembram o precursor S/Z, de Roland Barthes. ao interpretar/traduzir uma novela desconhecida de Honor

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    de Balzac que Barthes se pergunta em momento anterior ao descrito por Maria Theresa sobre o estatuto tanto do desejo de leitura (do criador e do analista) quanto do texto scriptible (nada a ver com o estatuto do texto apenas lisible).

    O texto escrevvel, dizia Barthes, o que merece o desejo e a letra/imagem do leitor e, por isso, ser interpretado/traduzido, compondo novo(s) texto(s). Citemos a pergunta: Pour quoi le scriptible est-il notre valeur? Parce que lenjeu du travail littraire (de la littrature comme travail), cest de faire du lecteur, non plus un consommateur, mais un producteur du texte. A essa pergunta sucede outra: quels textes accepterais-je dcrire (de r-crire), de dsirer, davancer comme une force dans ce monde qui est le mien? Assume Maria Theresa: seriam os textos com-preendidos pelo tringulo do desejo, para retomar a expresso de Ren Girard em Mensonge romantique, vrit romanesque.

    A perspectiva da traduo como forma de compreenso do processo de adaptao da obra literria ao cinema retorna no en-saio de Marinyze Prates de Oliveira e Maurcio Matos dos Santos Pereira, Veredas de um dilogo: literatura, cinema e contexto sociocultural. Segundo eles, os leitores/escritores/cineastas esto imbudos da possibilidade de interferir, rasurar, deslocar ou at mesmo transgredir trechos ou passagens, no processo de traduzir em imagens, contedos, inicialmente codificados por meio de palavras. Esse dialogismo apoiam-se eles em Robert Stam auxilia-nos a transcender as aporias da fidelidade. Esto os dois ensastas devidamente apetrechados para ana-lisar um dos casos mais perturbadores da contemporaneidade brasileira o da traduo (o conceito j se imps) das obras de Guimares Rosa ao cinema.

    Em abordagem da circularidade que se inscreve no poltico e ali finca p, Elizabeth Ramos trabalha o cerne do tpico da deselitizao operada pelo cinema, segundo ela, ou o da ora-lizao do cinema, tal como levantado metaforicamente por

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    Benjamin. Elizabeth se associa a Lucia Murat e ao filme Mar Nossa histria de amor, para traduzir e retraduzir a pea Romeu e Julieta. A ensasta acompanha a cineasta que desloca a pea elisabetana para o gnero musical, fazendo com que a dana se torne a nica possibilidade de leveza, encantamento e liberdade no apenas para os enamorados, mas para os jovens dessa Mar ficcionalizada. Dessa forma, continua ela, o excludo dos gran-des espetculos [...] assume-se como sujeito cosmopolita, em contato com releituras de expresses artsticas do cnone, antes apenas restrita ao cosmopolita rico e academicamente bem for-mado. A atitude ps-moderna da ensasta haja vista as ideias precursoramente desenvolvidas por Andreas Huyssen (1997) em The great divide corroborada pela prpria cineasta, que no distingue e no hierarquiza os registros de alta e de baixa cultura, regulados desde sempre pela noo de aura. Diz Lucia Murat: inegvel que o rigor do conjunto trabalhado pela tcnica do cls-sico sempre me encantou. Um rigor que a vida mostrou poder ser igualmente encontrado na bateria da Mocidade Independente, num espetculo da Broadway ou num bom Lago do Cisne. O rigor a que se refere , sem dvida, a busca de perfectibilidade.

    Na mesma clave adotada por Elizabeth Ramos, agora tran-sitando da literatura dos anos 1930 para o cinema novo, da de-nncia social para o problema poltico e deste para a questo da Histria, Maria do Socorro Carvalho trabalha o inevitvel na cultura brasileira a figura emblemtica de Capitu. Apesar de no se apoiar em bibliografia sobre gnero [gender], a ensasta no capitula diante da dramatizao pioneira de Capitu no embate com o marido, o ex-seminarista e advogado Bento Santiago. Nas pegadas de Roberto Schwarz, ela contrasta os dois personagens e os atualiza: Capitu, o esprito esclarecido, a face moderna da nossa realidade social, Bentinho, signo do obscurantismo, a permanncia da sociedade patriarcal brasileira, representada ento pela ditadura [militar nos anos 1960].

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    To culpado quanto Capitu e to passvel de ser bem compre-endido nos dias de hoje, onde se afigura de importncia crtica o recurso subjetividade e ao corpo como apoio para a anlise po-ltica, a figura do monstro, estudada por Denise Carrascosa, em companhia de Michel Foucault. Ela se atira adaptao para o cinema de obras escritas por Luiz Alberto Mendes, Paulo Sacramento e Druzio Varela. Refere-se ela primordialmente ao filme Carandiru, de Hector Babenco, cujo sucesso de bilhe-teria atesta a favor da deselitizao do cinema, a que se referiu Elizabeth Ramos. Depois de descrio minuciosa dos vrios processos por que passa no s a produo dos textos escritos como tambm do texto flmico, Denise chega ao cerne do seu argumento: ela quer entender tendo o cuidado preliminar de se diferenar de Gayatri Spivak esse espao de autoria difusa como um territrio, paradoxalmente desterritorializador, em que pode o subalterno falar.

    Nesse ponto do livro, aclara-se que o smbolo para a represen-tao da represso na sociedade brasileira atual est nas narrati-vas sobre a violncia urbana, sobre a cadeia e o encarcerado. Lcia Soares de Souza abre seu texto de maneira conclusiva: Na cultu-ra brasileira contempornea, produto de uma era ps-ditadura, o bandido geralmente um traficante de drogas, habitante das neofavelas, torna-se o outro dos sistemas hegemnicos.

    As correlaes histricas so de sua responsabilidade. Numa cartografia da violncia, nossa era ps-ditadura no se diferencia das demais eras passadas. O novo heri [sic] semelhante ao n-dio na era ps-independncia, ou o sertanejo, durante o sculo XX. Ele o outro da resistncia; diz Lcia que ele encarna a vio-lncia que ficou depois que a ditadura acabou e , por isso, que o sistema poltico atual no faz mais abstrao dele. J a neofavela est para a favela assim como o quilombo esteve um dia para a senzala. A neofavela emblemtica, diz ela, da construo de um corpo grotesco de metrpole-mundo, composto de vrios

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    indivduos que se desterritorializam para se reterritorializarem em um novo local arranjado para eles, ou invadido por eles.

    Nesse espao de barbrie humana, o outro lado da civilizao urbana, que a neofavela, escreve Lcia maneira de concluso da coleo de ensaios que iremos ler, assiste-se epifania dos personagens marginais que encarnam mltiplas facetas, at e inclusive suas paradoxais convergncias nos seus cdigos de solidariedade e fidelidade.

    31 de janeiro de 2012

    R e f e r n c i a sBENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1.

    LEBRUN, Gerard. A filosofia e sua histria. So Paulo: Cosac Naify, 2006.

    HUYSSEN, Andreas. Memrias do modernismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

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    A c abe a sem tr avesseiro

    J o s C a r l o s A v e l l a r *

    O livro comea num dentista: a boca aberta, o dente de trs doendo muito (como que tinha deixado os dentes ficarem naquele estado?), as mos grandes, o pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos (vou ter que arrancar!), a injeo de anestesia na gengiva (poucos dentes, e se no fizer um tratamento rpido vai perder todos os outros), a pancada estridente nos dentes da frente, (inclusive estes aqui!) e finalmente o l de trs na ponta do botico (a raiz est podre, v?). O filme comea tambm no dentista. Transpe para o cinema o que se conta no livro a boca aberta, a dor de dente, o botico e as mos grandes do dentista com a preocupao de se manter fiel tanto ao texto, cena que ocorreu em algum lugar do passado e que nos contada pelo narrador, quanto ao cinema, onde, na

    *Crtico de cinema, autor, entre outros livros, de O cho da palavra cinema e literatura no Brasil; A ponte clandestina - teorias de cinema na Amrica Latina; Glauber Rocha, rascunho de pssaro; e O cinema dilacerado - entre o AI-5 e a Abertura. consultor do Festival Internacional de Cinema de Berlim e curador de cinema do Instituto Moreira Salles.

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    aparncia sem narrador algum, a cena acontece, no tempo pre-sente, no preciso lugar diante de nossos olhos. Assim, para con-tar o que acontece no dentista, o texto, essencialmente, narra, comenta, explica, traduz em palavras o que se passou entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no meu pescoo. Abri a boca e disse que meu dente de trs estava doendo muito ; o filme, essencialmente, mostra, d a ver, testemunha o que acontece no instante mesmo em que acontece

    a testa franzida, os olhos esbugalhados, a expresso de poucos amigos do homem na cadeira do dentista. Para ser igual, preciso ser ao mesmo tempo um pouco diferente. Esse mesmo-e-outra-

    -coisa na abertura de Cobrador in God we trust, o filme de Paul Leduc, e na abertura de O cobrador, o conto de Fonseca (2004), retrata a relao que existe entre o cinema e a literatura. E retrata tambm a relao, diferente mas igual, que existe entre um texto e seu leitor (ler conduz a imaginar um filme para ampliar o prazer do leitor?), entre um filme e seu espectador (ver conduz a imagi-nar um texto para ampliar o prazer do espectador?).

    Estas palabras que escribo andan en busca de su sentido y en esto consiste todo su sentido.

    A frase de Paz(1974). Est num texto que discute a diferena entre a pintura (la pintura nos ofrece una visin) e a literatura (la literatura nos incita a buscarla); a diferena entre a imagem (la pintura construye presencias) e o texto (la literatura emite sentidos). Sentido, prossegue, aquilo que se encontra alm das palavras (es aquello que se fuga entre las mallas de las palabras y que ellas quisieran retener o atrapar). O sentido no est en el texto sino afuera, sublinha Paz (1974)antes de anotar ao final de um pargrafo de El mono gramtico o que est acima: estas pa-labras que escribo andan en busca de su sentido y en esto consiste todo su sentido.

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    A afirmao pode parecer estranha, mas na realidade a es-sncia do cinema no est nas imagens que vemos num filme, mas no texto visual que construmos com elas.

    A frase de Sergei Eisenstein (1974). Est num breve ensaio que refuta uma afirmao do crtico e roteirista hngaro Bla Balsz (o fundamental no cinema est no trabalho do fotgra-fo) e afirma que a expresso cinematogrfica resulta de inter-dependncias: o sentido no est nas imagens, mas fora delas, nas relaes entre elas Paz diria que o sentido das imagens es el que se fuga entre las mallas de las imgenes. Um filme fotografa uma pessoa em movimento no para mostrar como ela e se movimenta, mas para coloc-la em relao com outras pessoas e coisas. Cinema, diz Eisenstein (1974) em Bla esqueceu a tesoura, est mais prximo da literatura que da pintura ou do teatro; mais prximo do discurso, da fala que atribui um sentido simblico (no literal, no ao p da letra, no fotogrfico), um novo signifi-cado concreto e material, s pessoas e coisas visveis na imagem.

    Se existe um mestre que nos inspira a todos que fazemos fil-mes documentrios, ele no est no cinema e sim na literatura: Guimares Rosa.

    A frase de Walter Salles numa conversa sobre seus documen-trios os que fez para televiso antes de dedicar-se ao cinema e os que fez para cinema depois de seus primeiros filmes de fico. Literatura como lio de cinema: Guimares Rosa, porque ele ensina a ver, a ouvir e a dividir o que viu e ouviu com outros; porque sua literatura se inventa tal como um filme documentrio recebe do tema selecionado a histria que vai contar e o modo de contar tal histria.

    A montagem destas trs afirmaes a de Eisenstein, num tex-to de 1926; a de Paz, num texto de 1974; a de Walter, numa conversa com o crtico Carlos Heli de Almeida (2002) em 1998 desenha o espao em que se realiza o encontro do cinema com a literatura.

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    Eisenstein (1974), pouco antes dos primeiros filmes sonoros, via o cinema no comeo de um segundo perodo literrio: o hbito de ir aos livros buscar uma histria para contar comeava a ser substitudo pela identificao de possveis procedimentos es-tilsticos comuns ao cinema e literatura e pela anlise do que, por ser prprio do texto literrio, poderia ser tomado como um desafio ou estmulo para o cinema inventar-se. A literatura, nesse mesmo instante, vivia tambm o comeo de um segundo perodo cinematogrfico: depois de se antecipar inveno do cinema com propostas de narrativas que s se realizariam plenamente com a imagem em movimento, passava a tomar o processo de montagem, tal como apropriado e ampliado pelos filmes, como um desafio ou estmulo para a escrita inventar-se. A pintura, por sua vez, seguia a lio que o cinema aprendera com a literatura, reafirmava que o fundamental na arte a estrutura de composio que conduz a viso para alm dos limites do visvel.

    Uma pintura tem limites espaciais, pero no tiene principio ni fin; nisso difere do texto, que una sucesin que comienza en un punto y acaba en otro, observa Paz (1974). Uma imagem de cinema, prossegue Eisenstein, como uma pintura. S conta alguma coisa, s avana no tempo, quando se insere numa rela-o de interdependncia com outras imagens. Ninguna pintura puede contar porque ninguna transcurre, prossegue Paz (1974. Em nenhum quadro, sin excluir a los que tienen por tema aconte-cimientos reales o sobrenaturales y a los que nos dan la impresin o la sensacin del movimiento, pasa algo. Ao contrrio, falar e escrever, contar y pensar, es transcurrir, ir de un lado a otro: passar. Assim , se aceitarmos que, simultaneamente, texto e imagem so tambm o contrrio: um romance pode forar seus limites e se fazer como se fosse uma pintura, uma pintura pode se fazer como se fosse um texto, romance e pintura podem se fazer como se fossem cinema. Convm no esquecer que na pri-meira metade do sculo XIX a pintura, tanto quanto a literatura

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    e mesmo um pouco antes dela, esboou formas de representao que s se realizariam plenamente com o cinema. O empenho de Constable para pintar o que se passa no instante mesmo em que se passa um bom exemplo. Seus estudos de nuvens, pinturas e desenhos anotados muito rapidamente, ao ar livre, pouco antes ou pouco depois de um dia de chuva, e marcados por uma indicao precisa da hora, local e condies de tempo, so uma antecipao da fotografia e do fotograma. O cinematgrafo de Lumire ainda no existia, no existia nem mesmo a cmera fotogrfica de Nipce, mas a inveno plstica, aqui, 1810, 1820, nascia de um processo cinematogrfico. E esse processo, antes mesmo de gerar os equipamentos materiais sensveis que tor-naram possvel a produo de filmes, e tambm depois deles, foi apropriado pelas artes de um modo geral, da msica escultura, do desenho literatura.

    Talvez seja possvel imaginar um processo de inveno liter-ria que passe pelo cinematogrfico, como se o autor, ao escrever, procurasse tornar possvel uma impossibilidade: transportar a imagem cinematogrfica para a escrita, contar em palavras o filme que viu projetado por ele e s para ele, mas sem o controle dele enquanto sonhava acordado ou dormindo. Da mesma forma, talvez seja possvel imaginar uma operao idntica na direo contrria, um processo de inveno cinematogrfica que passe pelo literrio como se o diretor, ao filmar, procurasse tornar possvel a impossibilidade inversa: apagar o texto escrito por ele e s para ele, na imaginao para retornar imagem, invisvel e no controlada pela razo, na origem da palavra.

    Imaginemos que um romance, depois de ser o que efetivamen-te , seja tambm o relato de um espectador, e que um filme, de-pois de ser o que efetivamente , seja tambm a palavra na frao de segundo antes de se articular como escrita. Imaginemos assim no para reduzir o filme e o livro, ao gesto mecnico de traduzir para uma linguagem a ideia que nasceu em outra, no para

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    sugerir que preciso pensar em palavras antes de fazer um filme e pensar em imagens antes de escrever um livro. Literatura e cine-ma se alimentam de si mesmos: o livro, de imagens puramente verbais; o filme, de imagens puramente cinematogrficas ainda que seja difcil em termos de inveno artstica dizer que uma fonte seja puramente pura. As linguagens so organismos vivos, se misturam, a arte essencialmente impura: o cinema pode ter ouvido uma fuga de Bach antes de descobrir que poderia fazer uma imagem sair de dentro de outra numa fuso. A msica pode ter visto um travelling no cinema antes de Philip Glass compor uma frase musical que se move como as sequncias fotogrfi-cas de Edwaerd Muybridge em The Photographer. A literatura talvez tenha ouvido Pixinguinha e Os oito batutas, ou Louis Armstrong e os Hot Five, antes de Oswald de Andrade montar o texto maneira do jazz, do choro e do cinema da dcada de 1920 em Memrias sentimentais de Joo Miramar. No sculo do cinema, a msica se faz para acompanhar um filme Arnold Schnberg e sua Msica para acompanhar uma cena cinema-togrfica/Begleitungsmusik zu einer Lichtspielscene, opus 34 . A poesia se faz com o cinema na cabea, como reafirma Mrio de Andrade em carta a Manuel Bandeira: a mquina cinematogrfica do subconsciente do poeta projeta no cran das folhas brancas o filme modernssimo dum poema! E o cinema se faz com a lite-ratura (no s ela, as outras artes tambm, mas um pouco mais que todas, a literatura) na cabea.

    Cinema e literatura: no se trata de fazer como, mas de apren-der a fazer com. Uma fico, Rosa, como modelo de filme do-cumentrio. Antes de escrever, filmar ter presente diante dos olhos o que a palavra vai buscar em seguida. Antes de filmar, ler, escrever, porque filmar (no s, mas tambm) traar um caminho, es contar y pensar, es transcurrir, ir de un lado a otro, es imaginar una trayectoria. Imaginemos que a literatura, no um escritor ou um determinado grupo de escritores, mas o

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    processo literrio de contar e pensar, tenha inventado o cinema para poder se reinventar. Imaginemos ainda que, em 1926, no momento em que Eisenstein criticava Balsz pelo esquecimento da tesoura, enquanto os filmes iam aos livros para nessa busca se conhecer melhor, os livros, tambm para se conhecer melhor, iam ao cinema em busca de modos de composio que pudessem ser incorporados escrita.

    Pensemos a imagem assim como Octavio Paz prope que pensemos a palavra: as imagens que filmamos andam em busca de seu sentido e nisto consiste todo o seu sentido. O processo que comea com o que Eisenstein identifica como um segundo perodo literrio do cinema se encontra plenamente estabelecido no momento em que Paz prope um paralelo entre a pintura e a literatura e Walter Salles, um paralelo entre Guimares Rosa e o cinema documentrio. O cinema ento, j se habituara a ir literatura retomar o que os livros apanharam dos filmes tal como a literatura j se habituara a ir ao cinema retomar o que os filmes apanharam dos livros.

    Os jovens de minha gerao queriam ser poetas, mas alguns sonhavam

    com a poesia porque o cinema era um sonho que parecia impossvel. Hoje

    os jovens sonham e se realizam com o cinema. Eu sempre gostei de cine-

    ma, mas tornei-me apenas um cinfilo,

    anota Fonseca (2007) na crnica Cinema e literatura (em O ro-mance morreu) antes de propor, apenas para provocar a seguinte pergunta:

    O que mais importante como arte, a palavra escrita poesia, fico, teatro ou o cinema? Qual das duas pode atingir um nvel de excelncia mais elevado?

    Cobrador in God we trust, que foi a um texto quase para reto-mar o que a literatura tomou do cinema, parece sugerir que o nvel de excelncia mais elevado talvez resulte do permanente desafio

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    entre uma coisa e outra, a palavra escrita e a imagem do cinema.

    O cobrador, de Fonseca (2004), no entra direto na boca aberta do homem na cadeira do dentista. Passa primeiro pela denta-dura grande na porta da rua e pela placa Espere o doutor, ele est atendendo a um cliente na sala de espera vazia antes de chegar ao sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco. Passa ainda pelo guardanapo de papel no pescoo e pelo pequeno espelho na boca. S depois desta meia volta avana em linha reta na boca aberta. O homem com o dente de trs doendo muito odeia dentistas. Odeia tambm comerciantes, advogados, industriais, funcion-rios, mdicos, executivos, essa canalha inteira, se irrita com esses sujeitos de Mercedes. Fica na frente da televiso para aumentar o dio. L os jornais para saber o que eles esto comendo, bebendo e fazendo. Quer viver muito para ter tempo de matar todos eles. Quer muito matar um figuro desses que mostram na televiso a sua cara paternal de velhaco bem sucedido.

    Cobrador - in God we trust, de Paul Leduc, tambm no vai direto boca escancarada com o dente de trs doendo muito. Passa antes pela enorme boca banguela de um garimpo aban-donado, crie no meio da floresta, buraco maior que o do dente de trs. Passa tambm pelo homem que bebe cachaa sentada no banco de madeira, pelo menino que brinca com um carro de brinquedo sobre a mesa, e pela mulher que se aproxima da vitrola mecnica de um bar pobre com paredes pintadas de azul. Passa ainda por alguns becos escuros e sujos, cries no meio de Nova York. S depois, movimento circular no consultrio, o filme avana para o rudo do motor, para o sermo do dentista (we should have seen this before!) e para a exploso de raiva da boca aberta. Estamos, como no livro, num dentista. Mas no exatamente no dentista do livro: o do filme vive nos Estados Unidos e ao concluir o servio adverte: o paciente ter de voltar para arrancar outro dente e fazer novas obturaes em ouro. O dentista do livro, ter-

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    minada a extrao, apresenta a conta. O do filme no tem tempo de apresentar nada. Nem consegue concluir o que dizia sobre as obturaes: a dor de dente lhe d uma cotovelada na barriga.

    No temos no filme o que a essncia do conto, a palavra do cobrador, os pensamentos do homem com a boca aberta na ca-deira do dentista. Podemos perceber a tenso que contrai a boca, o olho, a testa e que congela a cara do cobrador numa espcie de mscara entre a dor e a raiva. Dor e raiva no localizadas. Ele, pare-ce, no tem raiva do dentista, tem raiva de tudo na vida. Tem cara de quem no est gostando de nada. Seu jeito de fera anuncia o que adiante explode de forma inesperada. Quer dizer, tudo nele, acuado na cadeira, j fria, mas quando finalmente a raiva con-tida arrebenta, surge inesperada. Estvamos espera dela, mas ela vai alm do que se esperava. O que j se podia ver na contrao da boca com injeo de anestesia na gengiva pega o espectador de surpresa porque mais brusca e selvagem do que se anunciara. Boca aberta, dente podre, animal ferido, a dor que vem l de trs salta para destruir o que est aqui na frente. Destruir sem anestesia e sem dizer palavra. Na cena, s o dentista fala.

    No filme, ao feroz. No livro, palavra feroz:

    Comecei a aliviar o meu corao: tirei as gavetas dos armrios, joguei tudo

    no cho, chutei os vidrinhos todos como se fossem bolas, eles pipocavam

    e explodiam na parede. Arrebentar os cuspidores e motores foi mais dif-

    cil, cheguei a machucar as mos e os ps. Eu no pago mais nada, cansei de

    pagar!, gritei para ele, agora eu s cobro! (FONSECA, 2004, p. 14)

    A raiva, no livro, nos contada num espao essencialmente verbal, num texto que o personagem narrador recita para si mesmo; ele , ao mesmo tempo, narrador, narrado e narrativa; o algoz e a vtima. Todos falam por meio dele. S ele fala. Ele a palavra e o papel em que a palavra se imprime. Ele o que est escrito e o que l, o escritor e seu nico leitor. O relato tanto pode ser lido

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    como descrio de fatos realmente acontecidos quanto como um delrio, um desejo de exploso selvagem, brutalidade interior que no se exterioriza e nem mesmo explode em discurso aberto, para fora, para a opresso do dia a dia, para a rua cheia de gente. O que diz, o cobrador diz dentro de sua cabea, diz para sua cabea:

    Digo, dentro de minha cabea, e s vezes para fora, est todo mundo me devendo!

    Ele , talvez, um narrador que no nos conta algo que viu, mas algo que vive dentro de sua cabea. No procura, talvez, reconsti-tuir determinada cena de modo objetivo, est muito interessado em descrever o que pensa e sente e nada interessado pelas outras pessoas em cena. Tudo pode ter acontecido ou se passar apenas na cabea do cobrador narrador. Tudo pode ser mais sonho que relato objetivo, sem que isso diminua a ferocidade da histria: a violncia que o texto mostra no aquela imediatamente visvel. O que se v/l em primeiro plano , sem dvida, de uma agressividade extrema, mas o que importa, o que de verdade chega ao leitor, a violncia do contexto em que a histria se passa. Mais importante que o quadro o fora de quadro.

    No filme, a mesma operao de concentrar a ateno no qua-dro para conduzir o espectador para o fora de quadro. Operao igual, mas diferente. Entre outros motivos porque, no cinema, antes de se dar conta do ponto de vista subjetivo de onde a cena observada, o espectador percebe a ao como se estivesse l, como se estivesse vendo com seus prprios olhos e no atravs dos olhos de um narrador que torna a cena visvel. Percebe como se fosse uma testemunha da cena, como se no existisse ne-nhum intermedirio, nenhum narrador entre ele e a histria, como se a ao estivesse acontecendo naquele exato momento, ali, ao vivo, no presente, diante dele. Enquanto um filme passa na tela um espectador est simultaneamente em quadro e fora de quadro, como aponta Carlos Fuentes, numa observao sobre o comportamento do espectador em torno do primeiro filme de

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    Paul Leduc, Reed Mxico insurgente (1970), inspirado no livro de John Reed:

    No me gusta hablar de perfeccin, porque no creo en ella. Pero creo que en este caso si cabe hablar de perfeccin. Est uno adentro y al mismo tiempo no deja uno de ser espectador. Eso me parece un gran logro.

    Talvez seja possvel dizer que o fora de quadro do livro o quadro do filme e vice-versa: a imagem fica todo o tempo do lado de fora, na aparncia das coisas, para por meio dele sugerir o lado de dentro, tal como o texto fica todo o tempo no interior para sugerir o lado de fora. Desse modo, o que na pgina do livro, em O cobrador, discurso interior, na tela do cinema, em Cobrador in God we trust, transformado em pele, trazido para a superfcie. O filme toma um outro caminho, o que lhe prprio, para conduzir o espectador a uma sensao semelhante que toma conta do leitor no final do texto de Fonseca (2004): a violncia muda que na tela arrebenta o dentista que fala muito, uma vez sentida como cena de verdade, pode tambm ser com-preendida como ao que se projetou s como um pesadelo de uma cabea sem travesseiro.

    As imagens que concluem o filme remetem o espectador de volta ao que ele viu no comeo. No mesmo bar de paredes de um azul desbotado, no mesmo bar em que um menino se distrai com um carro brinquedo e uma mulher caminha para a vitrola mecnica, nesse mesmo bar, reencontramos o homem com o dente de trs doendo muito. Ele examina uma nota de um dlar, escreve alguma coisa em seu caderno, vai ao espelho ver o dente que di, passa pela televiso do bar. A mulher que vai at a vitrola ao mesmo tempo a que vimos na cena de abertura e, por um instante, outra: tambm a fotgrafa argentina que o homem com dor de dente encontrou no Mxico. A sugesto de que tudo pode ter acontecido de verdade ou ter sido apenas imaginado pelo cobrador to ligeira quanto a imagem em que a mulher ao

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    lado da vitrola mecnica aparece com o rosto da jovem argentina. Verdade ou imaginao, no importa. O que importa a verdade da imaginao, a imagem. Imagem, o exterior da ao, nenhum discurso. A cena agride o discurso.

    A agresso se desenha no que aparece primeira vista: feroci-dade muda, silncio que rosna. O homem com dor de dente que no diz palavra ataca o dentista que fala sem parar. O que se faz de mudo ataca a fala no h entendimento possvel. O cobra-dor no fala, age: d uma cotovelada na barriga da reprimenda, salta no pescoo do comentrio sobre o mal estado dos dentes. A cotovelada pega firme no espectador.

    At certo ponto, o dentista, que no entende o que se passa, ( people suffer for no reason... I just dont get it) pode ser visto como uma projeo do espectador (melhor: como projeo de metade do espectador). Como o dentista, ele no tem tempo de reagir agresso desarticulada: o agressor agride sem motivo algum, sem objetivo algum: simplesmente agride. A metade-

    -razo do espectador est com o dentista, que lamenta o estado dos dentes e diz o que recomenda o bom senso: o senhor j tem poucos dentes e se no fizer um tratamento rpido vai perder todos os outros. A resposta do cobrador, no livro, uma ironia feroz: S rindo. Esses caras so engraados. A resposta, no fil-me uma ferocidade feroz: cotovelada na barriga, golpe duro com as mos fechadas na cabea do dentista. A outra metade do espectador est com o agressor irracional e no com o agredido de bom senso, est homem com dor no dente, solidrio com a vontade dele, arrebentar aquele discurso intil com um golpe to forte como o que ele usa para arrancar o dente dos fodidos.

    Projetar-se, simultaneamente, nos dois personagens desse pesadelo perturbador para um pblico habituado, pelo contato regular com a produo industrial mais amplamente difundida, a se posicionar ao lado do personagem dotado de razo e bom equilbrio e a fazer dele o seu heri. Aqui, metade do espectador

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    agride a outra metade. Na plateia, ele se encontra numa cadeira incmoda (numa cadeira de dentista), metade com dor de dente, metade com o botico do dentista. O quadro desloca o espectador de sua identidade, de seu lugar, de sua posio definida. O cinema de Leduc, no apenas nesse filme, desarticula a narrativa, recusa o discurso que, na aparncia bem disciplinado, parece no apenas mostrar mas explicar o que se passa. Desconforto semelhante existe no conto de Fonseca O cobrador , na medida em que o leitor levado a se projetar na cabea do cobrador para, l dentro, perdido no meio de um fluxo delirante, dar-se conta do que se passa. Assim, no texto, mais do que encontrar uma histria, ou um modo de contar uma histria, que queria transpor para o cinema, o diretor, talvez, teve a sensao de reencontrar, num texto, num fluxo de palavras, o que no cinema costuma fazer num fluxo de imagens quase sem palavra alguma: levar o espec-tador a ver, viver, presenciar, e no a entender, a cena.

    A cmera de Cobrador in God we trust parece se perder no meio da cena, como se, surpresa ela tambm, no entendesse o que se passa. Faz assim para, por exemplo, agredir no s o dis-curso do dentista, mas todo aquele que, falsamente organizado, finge ser a voz do bom senso para agredir a razo aparente com ferocidade idntica do homem com o dente de trs doendo muito. No se trata de levar o espectador a presenciar um crime violento e inexplicvel: ver um homem atacar brutalmente o dentista que arrancou o dente de trs que estava doendo muito. O que o espectador v exatamente isto, mas tambm, e prin-cipalmente, outra coisa. A ao visvel, com toda a aparncia de coisa verdadeira, mais linguagem que registro, reconstituio ou documento. Embora diferente da do livro, a fria do filme em sua essncia como a do livro. Uma e outra se referem a uma fria ainda maior que a que se pode ver e ler. A fria do filme igual do livro, ainda que (vale a pena dizer mais uma vez), por ser filme, diferente. No filme, quem nos d a ver a raiva do ho-

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    mem com dor de dente um cmplice dele, um quase-ele. Mas no ele. Ou ele, mas ento dotado daquela capacidade prpria dos narradores de cinema, a capacidade de alm de ser quem ser tambm, em simultaneidade, diferente de quem . Capaz de sair de dentro de si para se narrar de fora, sem dizer palavra.

    Leduc faz como um leitor que depois de entrar no livro re-produz no exatamente o que leu, mas o fora de campo do que leu; conta no os fatos anotados no texto, mas o que sentiu e compreendeu na leitura, a memria afetiva da leitura. A cmera, o narrador do filme, parte da sensao de que o texto que gerou a vontade de filmar, na verdade, fala de uma condio trgica: falar no mais possvel, ou no tem mais serventia. O dente de trs di tanto que o entendimento no mais possvel. No conto, discurso interior, travelling, plano sequncia, a palavra nos diz que no existe mais lugar para palavra. Vai alm de uma imagem verbal, parece imagem cinematogrfica no papel. Por isso a estrutura do filme, mesmo sem se concentrar apenas nele, no conto O cobrador, parte dele. Parte dele e se realiza em fuso com a msica de Tom Z, em fuso com as quatro perguntas cantadas, em Curiosidade,1 num quase sussurro:

    Quem que est botando dinamite na cabea do sculo?

    Quem que est botando tanto piolho na cabea do sculo?

    Quem que est botando tanto grilo na cabea do sculo?

    Quem que arranja um travesseiro para a cabea do sculo?

    A cano pode ser vista como uma sinopse do filme. O que Cobrador in God we trust conta por meio do personagem com uma dor que vem l de trs est exatamente a, nesta sequncia de perguntas sem respostas. O espectador v uma interrogao, vive a imagem sem que nada explique ou analise o que ele v. O filme prope uma conversa fora da palavra, antes da palavra. Ou talvez: uma conversa no anterior, mas posterior a toda e

    1A msica Curiosidade foi gravada por Tom Z especialmente para o filme. Tom Z o diretor musical de Cobrador In God We Trust.

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    qualquer palavra. No antes da escrita, no antes da linguagem. No antes: depois. Depois da falncia da palavra. No dentro de uma cabea incapaz de se articular verbalmente, mas numa cabea que se articula de outro modo. No dez mil anos atrs, mas agora. Por onde passa, o superaquecimento global derrete o asfalto. Fala-se ingls, fala-se espanhol, fala-se portugus, mas a palavra no consegue dar conta da questo que o filme discute. Ou o que se discute uma questo provocada por um desvio dela, pelo mau uso da palavra.

    O personagem no livro fala todo o tempo, se revela pela raiva de sua fala interior:

    [...] esto me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automvel,

    relgio, dentes, esto me devendo. To me devendo colgio, sanduche

    de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.

    Esto me devendo xarope, meia, cinema, fil mignon e buceta [...]. (FON-

    SECA, 2004, p. 14)

    O personagem no livro s interior, discurso dentro da cabe-a, palavra no pronunciada nem impressa. No filme, cinema mudo: o cobrador que Lzaro Ramos interpreta para Paul Leduc s imagem, no diz uma nica palavra ao longo do filme. Nem na cena de abertura, quando salta com a boca sem o dente de trs para devorar o dentista, nem em nenhum outro momento do filme. Nada mais fiel ao texto de Rubem Fonseca, nada menos servil ao texto. O conto se estrutura na fronteira entre a fala e a impossibilidade da fala. O filme radicaliza essa fronteira. No livro, quando o personagem consegue realizar o que viu certa vez num filme asitico vou cortar a cabea de algum num golpe s, vi no cinema , quando imita o ritual de cortar a cabea de um bfalo com um golpe nico de faco e arranca a cabea de um tipo de gravata borboleta com um golpe preciso brock! o cobrador grita um uivo comprido e forte para que todos os bichos tremessem e

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    sassem da frente. No filme, sequer um uivo. A imagem emudece a cabea, nega o travesseiro piolho e dinamite, em vez de. No lugar da palavra, exploso do silncio. Num silncio cheio de raiva, o cobrador do filme caminha no meio da rua, como se o asfalto fosse a calada. Um carro protesta com a buzina insistente e forte. O berro mecnico tem como resposta outro berro mecnico: o co-brador d um tiro no cap. Ferido, soltando fumaa, o carro tenta recuar. Ele atira de novo, no para-brisa, no motorista, e segue o passeio. Como no livro: onde eu passo o asfalto derrete. Nenhuma palavra do motorista, nenhuma palavra do pedestre. A buzina, o tiro, outro tiro, outro mais, e a cena acaba. Nada que explique o gesto do motorista ou o do cobrador. Nada que acompanhe o resul-tado do gesto. No texto, a fala do cobrador parece fazer sentido e o incmodo da leitura vem exatamente da, do fato de uma raiva destituda de sentido se articular como um discurso dotado de lgica. O que no tem razo (ou ao contrrio: o que tem razo?) pa-rece cheio de razo (ou ao contrrio: sem razo alguma?). O leitor atravessa a histria conduzido no tanto pelo cobrador, embora s conhea as palavras dele, quanto por Ana Palindrmica, que sai de casa para morar com o cobrador e ensina:

    Nada de sair matando a esmo, sem objetivo definido, nada de no saber o que quer, nada de dio desperdiado. Sei que se todo fodido fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo. (FONSECA, 2004, p. 29)

    No texto, narrativa palindrmica: Ana. O irracional como palndromo do racional. O modo de articular os fatos que com-pem a narrativa tem mais importncia que os fatos narrados. No filme, uma igual e diferente Ana Palindrmica: cada ima-gem, cada pedao de cena faz (e desfaz) sentido logo primeira vista. assim nas cenas de maior ferocidade, como a briga de vida e morte no consultrio do dentista, e nas de maior quietude, como aquela em que o cobrador anota uma qualquer coisa no pequeno caderno que traz no bolso. assim nas cenas de extrema

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    perversidade, como a do motorista que persegue e atropela a mu-lher na sada do mercado com uma brutalidade indiferente, e as de extrema suavidade, como a do samba por baixo da frase na parede da gafieira: lembre-se que enquanto houver dana haver esperana. O sentido aparece logo e logo desaparece, porque o processo narrativo, o modo de articulao das imagens, segue a tradio da pintura. Cobrador in God we trust, nasce de uma obra literria, mas, de um certo modo, dialoga mais com a pin-tura (relembremos a anotao de Paz: Ninguna pintura puede contar porque ninguna transcurre) que com a literatura (relem-bremos Paz: una sucesin que comienza en un punto y acaba en otro) para compor uma narrativa palindrmica: contar como um palndromo do no contar.

    Tambm em Reed, Mxico insurgente, igualmente inspirado pela literatura, um livro de John Reed, Leduc libera a cmera da histria que conta para contar tambm, ao mesmo tempo, uma segunda aventura que comenta aquela narrada nas aes registradas na primeira. A cmera no se contenta em seguir os personagens para ver o que eles dizem e fazem. Caminha mais ou menos independente, passeia em crculos em torno da ao. Deixa de lado um detalhe na aparncia significativo para se fixar num gesto menos importante, talvez, mas que conduz a imagi-nao a perceber e analisar algo que no se mostrou diretamente ao olhar. E em Frida, naturaleza viva (1984), o cinema ento inspirado pela pintura, Leduc libera a cmera da histria que conta para compor um jogo de espelhos com a pintura de Frida Kahlo: em lugar de uma sequncia mais ou menos cronolgica de fatos para compor uma biografia da pintora, uma histria contada tal como a pintura conta uma histria tal como Frida pintou a histria de sua vida.

    Com a imagem cinematogrfica solicitada a agir com maior liberdade no a servio da cena diante dela, mas estimulada pela cena diante dela talvez se possa dizer que, mais radicalmente, em

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    Cobrador in God we trust a cena existe como suporte ou pretexto para as imagens. O que se tem a contar, conta-se nas imagens, no atravs delas. A imagem no ilustra o que foi pensado em termos literrios: no reproduz, produz. Produz uma imagem em movimento que, como toda imagem cinematogrfica, se refere tambm a algo que no est ali dentro dela, pelo menos no em primeiro plano. Por exemplo: no vemos propriamente a destruio das torres gmeas de Nova York na imagem. Vemos numa televiso num canto da cena. O atentado s torres gmeas no faz parte da histria contada no filme, mas tambm disso que se fala. As imagens no so s um meio de ver a ao que nelas se retrata: so a ao.

    O homem que agride furiosamente o dentista no conclui nem d incio a uma histria no uma parte, um todo. A cena conta, atravs do que est ali visvel, pelo particular modo de articular o visvel, algo que no pode ser contado em palavras nem mesmo na direta viso da imagem que a retrata. A cena no a ao fotografada, no o que a fotografia em movimento apresenta como uma espcie de relatrio do visvel. No um registro das gentes, objetos, luzes e sons. A cena a fotografia. A imagem no apresenta, representa. Uma criana com um carro de brinquedo, na mesa de um bar, imita o rudo do motor, um adulto no volante de um carro parado imita o rudo do motor. A imagem no diz que a criana brinca de viver como um adulto ou que o adulto regride ao tempo de criana. A imagem figura uma perturbadora sensao de que existe uma qualquer coisa quase infantil na brutalidade desumana do homem que sai para suas cobranas de carro, e que algo estranho permanece fora do quadro com o menino que brinca com o carro na mesa do bar. A imagem no conta a fria assassina de um homem com dor de dente. Conta, por meio dessa que se v, uma outra fria: na cabea do sculo sem travesseiro o dente de trs est doendo muito.

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    Nem tudo em Cobrador in God we trust se resume ao co-brador que encontramos de boca aberta no dentista. Existem no filme personagens que brigam por palavras exatas, como a jovem argentina interpretada por Antonella Costa (estoy podri-da de que me hablen en abstracto), ou que se escondem por trs de palavras imprecisas, como o americano interpretado por Peter Fonda (were not into gold anymore, were into oil, gas, energy). Nem tudo no filme o cobrador, mas tudo passa por ele. O filme, na realidade, monta quatro contos de diferentes livros de Fonseca: Passeio noturno (de Feliz ano novo, 1975), O cobrador (do livro de mesmo nome, 1979), Placebo (de O buraco na parede, 1994) e Cidade de Deus (de Histrias de amor, 1995), mas no procura formar com eles uma s histria. Guarda uma estrutura prxima daquela de um livro de contos os relatos se relacionam entre si, pertencem ao mesmo universo, ao mesmo momento, mas mantm o carter de fragmento independente: embora partes de uma sequncia no perdem a autonomia; embora dotadas de um sentido completo, ganham novos signi-ficados quando vistas lado a lado, uma em conflito com a outra. O espectador acompanha o filme como quem l (leitura possvel s no cinema) simultaneamente trs ou quatro histrias de um livro de contos, passando mais ou menos aleatoriamente de uma pgina de um deles para uma pgina de outro.

    Ver assim, como quem se desvia para a leitura de uma segunda histria antes de terminar a leitura da primeira, uma experi-ncia semelhante que o espectador viveu em Guerra conjugal (1974), de Joaquim Pedro de Andrade, adaptao de 16 contos (Na pontinha da orelha; Chapeuzinho vermelho; As uvas; O rou-po; A velha querida; O anjo da perdio; Cafezinho com sonho; Minha querida madrasta; Menino caando passarinho; Os mil olhos do cego; Cena domstica; Um sonho de velho; Alegrias de cego; Eis a primavera; Dia de matar porco e A sopa) de seis livros de Dalton Trevisan (Novelas nada exemplares, Desastres do amor,

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    O vampiro de Curitiba, Cemitrio de elefantes, O rei da terra e Guerra conjugal). Do que viveu tambm em duas adaptaes de contos do livro Primeiras estrias de Joo Guimares Rosa: A terceira margem do rio (1994) de Nelson Pereira dos Santos (que rene A menina de l, Fatalidade, Sequncia, Os irmos Dagob e A terceira margem do rio) e Outras estrias (1998) de Pedro Bial (que rene Os irmos Dagob, Famigerado, Nada a nossa condio, Substncia, e Soroco, sua me, sua filha). E ainda, do que viveu em A erva do rato (2008) de Jlio Bressane, adaptao de dois contos de Machado de Assis, Um esqueleto (publicado em outubro de 1875, no Jornal das Famlias, do Rio de Janeiro) e A causa secreta (publicado em agosto de 1878, na Gazeta de Notcias, do Rio de Janeiro).

    Como Joaquim, como Nelson, como Bial, como Bressane, Leduc prope um cinema maneira de um livro de contos que embaralha as histrias que conta. A volta ao personagem com a cara fechada e a boca aberta no dentista serve de baliza para o constante movimento de vai-e-vem de um conto a outro e permite reconhecer que os demais personagens, cada um a seu modo, tambm so cobradores. O que no diz palavra, o que cobra a dor, o que se joga como uma fera sobre o dentista, resu-me exemplarmente as relaes desse quadro social que derrete o asfalto: as relaes entre as pessoas, as relaes de trabalho, as relaes polticas e econmicas, as relaes familiares e as relaes amorosas (se que aqui elas existem) so redutveis em ltima anlise a uma atitude de cobrador.

    Ana argentina, imagem cinematogrfica da Ana Palindrmica do conto, cobra a identidade que esto lhe devendo (Yo necesito saber quien soy yo), cobra os pais que lhe esto devendo (se a vos te dijeran que tus padres no son tus padres, que tus padres mataron tus padres). O pedestre cobra a tiros o automvel que lhe devem, o industrial cobra em passeios de automvel o que toda gente lhe deve, o policial cobra o ouro que a gente da mina

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    cariada lhe deve, os trabalhadores cobram o que os polticos lhes devem. E a amante cobra de seu homem: ele deve ser o seu cobrador. Ela foi desconsiderada por uma qualquer, preciso cobrar o respeito que lhe devem: matar um inocente, o filho dessa qualquer, menino de sete anos que no tem nada a ver com a desconsiderao (no precisa fazer o garoto sofrer muito), mas com a morte dele, a qualquer vai sofrer muito.

    No dentista, o homem com a dor l de trs cobra no apenas o dente que perdeu: cobra. o cobrador, isso o que o espectador sabe dele. O poder exige que o devedor pague tudo o que no deve. O dente de trs di muito, o cobrador est cansado de pagar. No paga mais, cobra a vida que lhe devem. Os panfletos das ltimas cenas, como legendas no p da imagem, como notas de p de pgina, repetem que a cabea cheia de piolhos no repousa em nenhum travesseiro:

    No somos guerrilleros ni terroristas, no somos ladrones ni narcotrafi-

    cantes, pero nos deben mucho, nos deben todo.

    Nos devem muito: namoradas, alegria, respeito, memria...tm muitas

    coisas para pagar.

    Nos deben saber quines son nuestros padres.

    Simplesmente estamos cobrando, enquanto estiverem nos devendo, ns

    continuaremos cobrando.

    Enquanto isso, em outro contexto, a literatura continua a cobrar o que o cinema lhe deve e o cinema o que a literatura lhe deve, cobrana igual e ao mesmo tempo diferente, porque nela o cinema serve de travesseiro para a cabea da literatura e essa de travesseiro para a cabea do cinema.

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    R e f e r n c i a sALMEIDA, Carlos Heli de. Walter Salles: uma entrevista. Edio do Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, 2002. p. 8.

    COBRADOR, in God We Trust. Direo e roteiro de Paul Leduc. Produo: Bertha Navarro. Intrpretes: Lzaro Ramos, Peter Fonda, Antonella Costa, Milton Gonalves, Dolores Heredia e Isela Vega. Mxico, Espanha, Brasil, Argentina, Frana: Salamandra Produciones, 2006. Baseado em quatro contos de Rubem Fonseca: O cobrador (do livro do mesmo nome, de 1979) Passeio noturno (de Feliz ano novo, 1975), Cidade de Deus (de Histrias de amor, 1995) e Placebo (de O buraco na parede, 1994).

    EISENSTEIN, Sergei. Bela esquece a tesoura. In: ______. Au-del ds toiles. Paris: Union Generale dEditions, 1974. p. 157-167.

    ______. Bla forgets the scissors. In: ______. Eisenstein Writings 1922-1934. Indianapolis: Indiana University Press, 1987. p.77- 81.

    FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    ______. O cobrador. 4. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 11-29.

    ______. O buraco na parede. 3. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

    ______. Histrias de amor. So Paulo: Companhia das Letras, 1997.

    ______. Cinema e literatura. In: ______. O romance morreu. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 43-52.

    PAZ, Octavio. El mono gramtico. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1974. p. 11-112.

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    Dilog os liter atur a e cinema :a spec tos da contempor aneidade na obr a de Olney S o P aulo

    C l a u d i o C l e d s o n N o v a e s *

    I n t r o d u oAo analisarmos os dilogos entre os discursos li-

    terrios e os cinematogrficos, articulamos aspectos das teorias culturais contemporneas e dos conceitos tradicionais da filosofia da linguagem, para mapear relaes secretas do imaginrio das narrativas e poticas da literatura nas montagens cinematogrfi-cas. E no sentido inverso, tambm problematizamos os reflexos do olhar do cinema na transformao da linguagem literria moderna. Acionamos a noo de contemporaneidade neste dilogo e perspectivamos a temporalidade alm da cronologia, f lagrando o signo do mesmo no outro no movimento de adaptao de formas e contedos entre as escrituras.

    *Ps-doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ) e doutor em Teorias da Comunicao pela Universidade de So Paulo (ECA/USP). Professor Pleno da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), onde coordena o Ncleo de Estudos em Literatura e Cinema (NELCI) e atua nos programas de ps-graduao em Literatura e Diversidade Cultural (PPGLDC) e Desenho, Cultura e Interatividade (PPGDCI).

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    Portanto, a competncia lingustica do leitor contemporneo mobiliza a leitura das imagens do mundo a partir de uma mem-ria que inclui inexoravelmente o imaginrio do cinema, como afirma Carrire (200, p. 46):

    Bastaram quatro geraes de frequentadores de cinema para que a lingua-

    gem ficasse gravada em nossa memria cultural, em nossos reflexos, talvez

    at em nossos genes. As sequencias cinematogrficas que nos envolvem e

    nos inundam hoje em dia so to numerosas e interligadas que se poderia

    dizer que elas constituem o que Milan Kundera chama de rio semntico.

    Agamben (2009, p. 59), ao propor respostas para [...] o que significa ser contemporneo, analisa dispositivos da constitui-o do ser da/na linguagem. Para ele, alguns autores conseguem estabelecer o distanciamento crtico necessrio do seu tempo, evitando o anacronismo, pois, aqueles que [...] coincidem muito plenamente com a poca, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, no so contemporneos porque, exatamente por isso, no conseguem v-la, no podem manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEN, 2009, p. 59)

    Ao analisarmos as articulaes entre a literatura e o cinema se-guimos na direo deste conceito de contemporaneidade, enfo-cando os dispositivos que tornam os discursos contemporneos, no pela convergncia no tempo imediato, mas porque remetem ao presente, ao passado e ao futuro, simultaneamente, apesar do jogo da diferena entre o tempo e o espao na diegese dos textos e das diferentes formas de representao e recepo dos conte-dos enunciados extradiegticos na superfcie das linguagens dos textos literrios e cinematogrficos. O conceito de contempo-raneidade mira na potncia discursiva do jogo tradio/traio, e no paradoxo da continuidade na ruptura, estabelecendo uma ponte clandestina entre a fonte e os seus desdobramentos em diferentes olhares e formas do texto de chegada.

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    Discutir estas estratgias de deslocamentos no dilogo con-temporneo entre a literatura e o cinema enriquece os estudos da adaptao literria no discurso cinematogrfico e problematiza as interpretaes das estratgias de fruio do discurso flmico na forma da escrita da literatura. A fidelidade da aproximao de um discurso ao outro se potencializa na proporo em que os olhares so capazes de interpretar os significados e atualiz-los de uma obra para a outra, mantendo o distanciamento necessrio para poder refletir o sentido singular contemporneo de cada texto. Portanto, contemporneos so os discursos que atualizam criticamente os signos tradicionais, criando um campo de tenso paradoxal no contraponto das teorias e prticas discursivas, dos conceitos e das categorias de linguagem, transformando o di-logo num jogo tico e esttico que desloca por dentro a tradio, sem anular os significados do texto de origem e sem inibir a potncia dos novos dispositivos contemporneos nas imagens do texto de chegada.

    A problemtica da comparao entre textos adaptados da litera-tura ao cinema nos remete a interrogaes do campo perceptivo: o que vemos na imagem? Questo potencializada na filosofia contempornea a partir do instrumental simblico e da tecno-logia do cinema, desdobrando-se em outro questionamento: o que vemos na imagem cinematogrfica?

    Estas questes so respondidas por um pensamento de reverso: a imagem reflexo puro de conjuno causal de cores, formas e linhas do objeto fsico abstrado da realidade; mas tambm a imagem ao sugestiva de interpretaes sobre a realidade ima-ginada e representada. A duplicidade desta conjuno resvala no carter narrativo e potico do cinema e torna-se problemtica fundamental da contemporaneidade, para se pensar sobre o es-pelhamento da realidade nas imagens. A segunda resposta sobre o que a imagem estilhaa o conceito objetivo da primeira, mas no prescinde totalmente dele para compor a ideia de representao,

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    mesmo que a presena da realidade pura seja representada pela escavao da imagem convencional ausente, pois ela j faz parte do imaginrio e do esteretipo.

    Investigar este processo, no dilogo entre a literatura e o cinema, fundamental para discutir as formas de apropriao do texto literrio no flmico contemporaneamente, ou vice-versa, obser-vando como o imaginrio pr-concebido numa linguagem se reestabelece na outra como representao. O objetivo tradicional de buscar a semelhana entre o discurso fonte e o de chegada desloca-se para outras possibilidades de percepo do olhar con-temporneo, pois a fidelidade est para alm da coincidncia entre as imagens de um texto repetido no outro. O movimento de dobra estabelece na contemporaneidade uma equivalncia convergente e divergente, ao mesmo tempo, independente das relaes entre os discursos nos espaos fsicos e na cronologia.

    Neste artigo, problematizamos estas estratgias de leituras dos deslocamentos entre os significados das teorias tradicionais da linguagem e a possibilidade de novos conceitos nos estudos das adaptaes do texto literrio ao cinema. Discutimos tambm formas de observao do imaginrio cinematogrfico apropriado no discurso da literatura. Neste vis, observamos os padres estticos e ticos das obras como um jogo da contemporanei-dade, que caracterizado pela tenso entre o olhar cultural e as dobras estticas da produo artstica nacional. Isto nos permite mapear no dilogo intersemitico entre o texto literrio e o ci-nematogrfico as formas suplementares da tradio e da ruptura no discurso cultural.

    Para esse agenciamento crtico da noo de contemporaneida-de no dilogo entre literatura e cinema, tomamos como corpus de anlise aspectos da obra do cineasta e escritor baiano Olney So Paulo. Ele tem a sua trajetria tica marcada pelas contradies da histria cultural brasileira, e a atuao esttica crivada pelo contraponto entre a literatura e o cinema. O nosso interesse

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    perceber como Olney reconstri os paradigmas modernos do movimento entre as linguagens, seja como cineasta que se mo-vimenta entre a adaptao e a reconstituio de significados de textos literrios na sua cinematografia ficcional e documental; seja enquanto escritor de um gnero literrio com marcas dos dispositivos cinematogrficos, ao escrever narrativas literrias com traos implcitos do cinema, ou seus contos e novelas ex-plicitamente identificveis como roteiros flmicos.

    O objetivo central deste artigo mobilizar as teorias contem-porneas das relaes entre literatura e cinema, para observar os sentidos de uma obra no limiar do modernismo e do ps-

    -modernismo, do cinemanovismo e do ps-cinema novo que caracterizam a produo discursiva da literatura e do cinema de Olney So Paulo. O nosso intuito verificar nesta obra a tenso do contraponto entre a poltica cultural dos movimentos sociais dos anos 1950/60 e o projeto nacional-popular nascido do mo-dernismo dos anos 1920. Esta tenso define a poltica dos autores deste perodo de transformao formal, ao tornar contempor-neo o discurso nacionalista tradicional moderno da literatura traduzida no cinema. Neste sentido, discutimos, atravs da obra de Olney, os conceitos contemporneos de identidade nacional e as tcnicas de composio de imagens da literatura e do cinema, tensionando a sua formao tradicional versus a produo de um discurso de vanguarda em sua obra.

    Olney So Paulo reflete como poucos as condies e contradi-es do seu tempo. A sua formao intelectual creditada leitu-ra dos romances modernistas de 1930, como ele declara em carta escrita a Jorge Amado. Assim como sua linguagem do cinema declaradamente influenciada pelo discurso literrio, enquanto escritor, ele se define, em outra carta para Alex Viany, como nascido para fazer cinema. (SO PAULO, 1956a,b) A biografia de Olney So Paulo indica suas inclinaes para as linguagens do cinema e da literatura desde a sua juventude em Feira de Santana,

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    no interior da Bahia, onde aproveitou o contato com as geraes iniciadoras do cinema moderno no Brasil, participando de pro-dues cinemanovistas de cineastas que desbravavam o serto telrico, ao mesmo tempo em que ele construa a sua formao intelectual nos manuais clssicos da histria do cinema.

    Este ambiente singular experimentado por Olney biografa-do na dissertao de mestrado escrita e publicada pela jornalista Jos (1999), onde se desvela um esboo da vida cinematogrfica no garoto sertanejo, que, desde cedo, declara sua vontade de fazer cinema tornando-se um marco do cinema nacional, ao produzir e dirigir com amigos o seu primeiro filme, que se torna advento cinematogrfico realizado fora da capital do Estado por cineasta de dentro da regio real e imaginria do serto baiano. Um crime na rua (1955) fico com aspectos documentais dialogando com personagens da literatura modernista. O pano de fundo da narrativa de ao do filme a feira-livre da cidade, poca, grande repositrio pblico do imaginrio sertanejo, sendo uma das maiores concentraes comerciais a cu-aberto do Nordeste brasileiro, por onde circulavam diversas tradies narrativas locais absorvidas nas imagens da locao.

    Este filme no resistiu ao tempo e no pode mais ser visto, mas a sua memria do imaginrio local na histria do cinema de Olney permite afirmar que fruto do entrelaamento entre literatura e cinema numa narrativa sem hierarquias de linguagens, o que j espelha o devir da forma singular de adaptao na obra do autor. O cenrio neorrealista e os personagens cotidianos, concebidos por atores no profissionais, so os elementos apreendidos da literatura moderna e fundidos aos elementos do cinema clssico de ao que confirmam a conscincia criativa de Olney. Neste sentido, aspectos da literatura popular do cordel e da literatura erudita entram na constituio dos personagens, assim o cinema clssico de aventura assistido nas salas locais pelo jovem diretor confluem para os dispositivos dinamizadores das tcnicas que

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    tornam contemporneas as influncias que marcam sua obra desde a primeira realizao.

    O desbravamento do cinema por Olney deu-se por estratgias diversas no campo da poltica cultural e da atuao artstica. Ele teve formao intelectual autodidata nos manuais e nas primei-ras histrias do cinema mundial, onde os primeiros ensaios de teorias da narrativa cinematogrfica tomavam de emprstimos os suportes metodolgicos da anlise da literatura. Ele completava seu aprendizado em experincias artesanais no comeo da sua histria com o cinema, como ressalta em suas cartas endereadas ao Rio de Janeiro para Alex Viany e Jorge Amado, junto aos quais procurava abrir seu caminho na arte nacional, estabelecendo um cruzamento definitivo na sua formao de cineasta-literrio e de escritor que traduzia os dispositivos cinematogrficos na forma da escrita. (SO PAULO, 1956a,b)

    Olney atua na produo audiovisual desde o incio dos anos 1960, quando cria a produtora Santana Filmes. Segundo ele, agncia local para produzir filmes com a mesma competncia que as produtoras no mercado do Sul do pas. Desde o incio, as condies polticas e econmicas demonstram que o capital da empresa era o entusiasmo de seu idealizador. Olney capta recursos para a sua primeira produo de longa-metragem atra-vs da Santana: filmar a histria de Lucas da Feira, personagem emblemtico do imaginrio da literatura popular feirense, que se torna referncia em vrias outras narrativas populares e eru-ditas, dos livretos de cordel ao romance moderno, passando pela msica e pelo teatro. O projeto nunca ser realizado, o que simboliza o dilema que ser a trajetria de Olney no cinema nacional: o constante abandono de projetos idealizados, devido escassez de recursos, mas, aps cada obstculo, ao invs do colapso, mais nimos e energias para viabilizar outras investidas no campo cinematogrfico, simultaneamente aos projetos de escrita literria que traduziam para o gnero dos contos e novelas

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