Deus na Filosofia: Apresentação de Quatro Artigos · opúsculo foi gradualmente passando de uma...

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1 Deus na Filosofia: Apresentação de Quatro Artigos Autor da Apresentação: Sávio Laet de Barros Campos. Bacharel-Licenciado e Pós-Graduado em Filosofia Pela Universidade Federal de Mato Grosso. Revisor da grafia e etimologia gregas: Otávio de Lima, Bacharel em Artes Visuais pela UFMS, acadêmico de Filosofia na Universidade Católica Dom Bosco e estudante de grego e hebraico pela Hebrew University of Jerusalem — Israel. Introdução Cientes de que em nossos dias, tempo das mídias sociais, a extensão tornou-se quase um atentado violento ao pudor, valer-nos-emos ainda assim deste expediente. Usá-lo-emos para apresentar quatro modestos ensaios de nossa lavra. São eles: Deus na Filosofia Grega, Deus na Filosofia Cristã, Deus na Filosofia Moderna e Deus na Filosofia Contemporânea. A obra que nos inspirou esta árdua empreitada foi o opúsculo de Étienne Gilson, God and Philosophy, cuja tradução portuguesa por Aida Macedo – Deus e a Filosofia – trazida à baila pelas Edições 70, está sob nossos olhos já faz anos. Ora, o trato com a obra de Gilson deu-se, inicialmente, à guisa de fichas. Não nos referimos aqui ao modo de fichar acadêmico, mas à glosa e à paráfrase. Aliás, convém lembrar que, mesmo antes de parafrasearmos o texto, tentamos separar o que nele há de substancial daquilo que figura apenas como acidental. Isto se deu por meio de uma espécie de compilação de passagens que, ao nosso sentir, constituíam os verdadeiros argumentos arrolados pelo medievalista francês. De todo modo, a lida com o opúsculo foi gradualmente passando de uma exposição quase literal ao texto para um comentário propriamente dito. Finalmente, a versão que ora apresentamos já pode ser considerada um pequeno ensaio do que pretende ser, no futuro, talvez uma dissertação, quem sabe uma tese, oxalá um livro, ou, quiçá, não passe de um ensaio. Para esta empresa, valemo-nos de algumas fontes primordiais. Além das obras clássicas, mormente as do Aquinate, que citaremos ao longo do texto, lançamos mão da magnífica preleção sobre os “pré-socráticos” e o nascimento da filosofia do célebre pensador

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    Deus na Filosofia:

    Apresentao de Quatro Artigos

    Autor da Apresentao: Svio Laet de Barros Campos. Bacharel-Licenciado e Ps-Graduado em Filosofia Pela Universidade Federal de Mato Grosso. Revisor da grafia e etimologia gregas: Otvio de Lima, Bacharel em Artes Visuais pela UFMS, acadmico de Filosofia na Universidade Catlica Dom Bosco e estudante de grego e hebraico pela Hebrew University of Jerusalem Israel.

    Introduo

    Cientes de que em nossos dias, tempo das mdias sociais, a extenso tornou-se quase

    um atentado violento ao pudor, valer-nos-emos ainda assim deste expediente. Us-lo-emos

    para apresentar quatro modestos ensaios de nossa lavra. So eles: Deus na Filosofia Grega,

    Deus na Filosofia Crist, Deus na Filosofia Moderna e Deus na Filosofia Contempornea. A

    obra que nos inspirou esta rdua empreitada foi o opsculo de tienne Gilson, God and

    Philosophy, cuja traduo portuguesa por Aida Macedo Deus e a Filosofia trazida baila

    pelas Edies 70, est sob nossos olhos j faz anos. Ora, o trato com a obra de Gilson deu-se,

    inicialmente, guisa de fichas. No nos referimos aqui ao modo de fichar acadmico, mas

    glosa e parfrase. Alis, convm lembrar que, mesmo antes de parafrasearmos o texto,

    tentamos separar o que nele h de substancial daquilo que figura apenas como acidental. Isto

    se deu por meio de uma espcie de compilao de passagens que, ao nosso sentir, constituam

    os verdadeiros argumentos arrolados pelo medievalista francs. De todo modo, a lida com o

    opsculo foi gradualmente passando de uma exposio quase literal ao texto para um

    comentrio propriamente dito. Finalmente, a verso que ora apresentamos j pode ser

    considerada um pequeno ensaio do que pretende ser, no futuro, talvez uma dissertao, quem

    sabe uma tese, oxal um livro, ou, qui, no passe de um ensaio.

    Para esta empresa, valemo-nos de algumas fontes primordiais. Alm das obras

    clssicas, mormente as do Aquinate, que citaremos ao longo do texto, lanamos mo da

    magnfica preleo sobre os pr-socrticos e o nascimento da filosofia do clebre pensador

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    italiano, Emanuele Severino. De Severino colhemos a maioria das etimologias e a nossa

    preferncia por este estudioso, ainda pouco conhecido do grande pblico brasileiro, tem uma

    razo muito especfica. Para alm da gramtica e do significado esttico dos vocbulos, ele

    privilegia em sua anlise o que o termo expressa na dinmica da cultura de onde proveio.

    Entende Severino que, para alm do significado esttico e consignado por escrito, os termos

    exprimem conotaes mltiplas que s podem ser contempladas e devidamente distinguidas

    por quem se der ao trabalho de inserir-se no contexto cultural e textual em que eles foram

    empregados.1 Por levarmos em conta tais pressupostos, que contam com a nossa anuncia,

    1 Urge que expliquemos a existncia de dois excessos. Por um lado, h o filologismo, o qual consiste unicamente em esmiuar a origem das palavras e pensar o texto a partir disso. O mais das vezes, este excesso faz-nos descurar o contexto textual para considerarmos apenas o contexto cultural no qual o termo foi empregado. Por outro lado, pode ocorrer certo teoreticismo, que consiste em interpretarmos o texto, pura e simplesmente, a partir de juzos e raciocnios pautados to somente no contexto textual, sem levarmos em conta o contexto cultural em que o texto foi escrito e os termos foram usados. Ora, a verdadeira interpretao do texto, segundo nos parece, deve seguir uma justa medida, isto , devemos ser capazes de pensar o texto passando das premissas s concluses, mas no sem concedermos um justo enfoque ao que exprime certas palavras-chaves. Assim, evitamos a falta de desvelo tanto com o contexto cultural em que o texto foi escrito quanto com o contexto textual em que se encontra tecido. O Prof. Giovanni Reale, por ocasio do seu Comentrio Metafsica de Aristteles, enfatiza com justeza e presteza estes dois excessos, ao mesmo tempo que aponta para uma via intermediria. Pensamos que o parecer de Reale no se restringe Metafsica, mas vale para a maioria esmagadora do pensamento clssico. Ouamo-lo: REALE, Giovanni. Metafsica III: Sumrios e Comentrio. 3 ed. Trad. Marcelo Perine. Rev. Marcelo Perine. So Paulo: Loyola, 2002. p. XII: Com efeito, como a Metafsica, a meu ver, no pode e no deve fechar-se nos estreitos horizontes do filologismo, como se se tratasse de explicar meras palavras ou coisas mortas; e de modo anlogo, deve evitar reler os textos antigos como se se tratasse de meras ocasies ou de pretextos para autocompreender-se e autoexprimir-se; como j se disse, deve trilhar aquela precisa via que indiquei e que , no caso que diz respeito, a justa via intermediria. Um exemplo jocoso da insuficincia do teoreticismo e do filologismo. Certa feita, conversando com um nclito professor doutra nacionalidade, disse-lhe em portugus chulo: no Brasil, quem aborta, exceto por estupro ou quando a gravidez coloca em risco a vida da gestante (A normatizao destas duas excees j lastimvel), comete crime e pode ir pro xilindr, pro xadrez! Ele disse: xilindr? Disse eu, sim, vai parar em cana! Retrucou: o qu? Respondi, vai ver o o sol nascer quadrado. Replicou novamente: sol quadrado? Por fim, analisou o significado de sol e quadrado e no chegou a nenhuma concluso. Da, finalmente, outros que assistiam ao debate e que j estavam inseridos no contexto, advertiram-no: professor, a mulher pode ser presa, detida, ir para a cadeia, etc.! S ento entendeu. Outro exemplo jocoso. Daqui a milhares de anos, quem estar em condies de, em determinadas circunstncias por exemplo, num texto mais intrincado distinguir, pela simples anlise dos termos, uma decapitao de um ato descabeado? Ex: fulano perdeu a cabea, o rapaz no tem cabea, ele um descabeado. Outros tantos exemplos poderiam ser arrolados: tapar o sol com a peneira, no esquenta a moringa, fica frio, gol de bicicleta, Que frango!, sou vidrado nisto, etc. E isto s para ficar no popular. Lembremos somente que o que queremos destacar aqui no so propriamente as expresses, mas justamente o fato de pela simples anlise dos termos que as compem no podermos chegar s coisas. Mutatis mutandis, na traduo ou interpretao de um texto clssico, certamente o gramtico hodierno poder traduzir o significado esttico de todos os termos e at dar-nos a precisa etimologia deles, mas como saber com exatido o que se quis expressar, naquele momento e naquele contexto, com aquela expresso ou termo? De fato, nem o puro compor e dividir do raciocnio, nem uma filologia que, ademais, ignore que a lngua viva e a linguagem dinmica, tornam possvel o acesso a um texto antigo. De fato, s poder atestar o correto sentido do texto aquele que se preocupar em, de algum modo, inserir-se naquela cultura. Reiteramos: apenas aquele que se obrigar a isto ter a possibilidade de distinguir as mltiplas facetas que um mesmo termo pode comportar e os mltiplos significados em que pode ser empregado. Com efeito, quem prescindir dessas nuances, poder facilmente ser levado a uma anlise espria, isto , fora da pureza daquele contexto. Ora, aplicando isso ao incio do pensamento filosfico, quem houver por bem no ficar a par do contexto cultural em que nasceram determinados termos, certamente poder at produzir obra assaz persuasiva e perspicaz, porm, fictcia, imaginria, idealista. Por isso, em nosso texto, tomamos como referencial terico as anlises do Prof.

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    elegemo-lo como um aporte para o nosso texto, com a importante ressalva de que nem sempre

    damos a nossa aquiescncia s aplicaes que Severino faz das suas prprias descobertas.2

    Ademais, deixamos claro que a nossa orientao francamente tomasiana e que

    desejamos expressamente conjugar as notas presentes na gnese do filosofar com o filosofar

    do Mestre de Aquino, mostrando que as marcas preponderantes do pensamento filosfico

    desde os seus primrdios esto vigentes em Toms de Aquino. Grave esta advertncia, a fim

    de que se evite pensar que a nossa abordagem anacrnica. Com efeito, exemplificar como o

    pensamento do Aquinate est inserido na filosofia a partir das categorias constitutivas da

    mesma, e que, portanto, inobstante telogo, foi um autntico filsofo, eis um dos objetivos

    precpuos dos nossos textos.

    De mais a mais, mudamos o ttulo dos ensaios. Em vez de Deus e a Filosofia, como

    nos prope Gilson, optamos por Deus na Filosofia. E esta mudana no foi gratuita. Com ela

    quisemos pontuar que, bem ou mal colocada, a questo de Deus est presente desde o incio

    do filosofar. Mxime a Sua existncia, uma questo filosfica. Porm, para que entendamos

    Severino, a fim de podermos chegar a algo talvez menos arguto, mas decerto mais realista, porquanto fruto de uma observao dos fatos. A propsito, Toms de Aquino, citando Aristteles, j nos advertia acerca da necessidade de o filsofo encarnar-se, incorporando-se, deveras de forma crtica, na cultura sobre a qual vai pensar: TOMS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios. Trad. Odilo Moura. Rev. Luiz A. De Boni. Porto Alegre: Sulina, 1990. I, 1 (2): A terminologia vulgar, que o Filsofo diz ser conveniente respeitar ao se dar nome s coisas (II Tpicos 1, 109) (...). Por outro lado, escusado ser dizer que, para traduzir um termo ou texto filosfico antigo, no basta to somente inserir-se na cultura ou na escrita em geral de um povo, seno que tambm necessrio ser um historiador da filosofia, isto , um estudioso da literatura especificamente filosfica do perodo, e isto implica inserir-se tambm no contexto propriamente filosfico em que o termo ou o texto em questo se coloca. Agora bem, a nosso ver, inteirar-se deste cabedal de conhecimentos precisamente estar em condies de ser um autntico intrprete do termo ou do texto em questo. Em outras palavras, ser capaz de pensar aquele texto filosoficamente. Temos, portanto, que fugir tanto do filologismo quanto do teoreticismo, unindo ao raciocino uma filologia viva. Frisa Reale: Idem. Ibidem. pp. XII e XIII: Reconstruir uma histria de ideias implica mergulhar, de diferentes modos, no interior delas, pr-se em sintonia com elas, e, particularmente, alcanar uma maturidade hermenutica que possibilite entender aquela alteridade histrica em que se situam, e que, portanto, possibilite realizar a ampliao daquele raio do crculo que nos permite compreender o sentido. Mas o filologismo que tem como fim a pura palavra mais do que o pensamento, e, por outro lado, o teoreticismo que tem por fim a pura teoria em sentido abstrato e global (e, portanto, que atualiza tudo o que pensa), no so capazes de alcanar este objetivo. Por conseguinte, filologia e raciocnio devem andar juntos, assim como a considerao do contexto cultural e do contexto textual nunca devem separar-se. Disto depreendemos, que a concluso a que chega o Prof. Giovanni Reale perfeita e vale no somente para a Metafsica de Aristteles, mas para grande parte dos clssicos: REALE, Giovanni. Metafsica vol. I: Ensaio introdutrio. 2 ed. Trad. Marcelo Perine. Rev. Marcelo Perine. So Paulo: Edies Loyola, 2005. p. 14: Em suma: no h modo de o tradutor se eximir de ser um verdadeiro intrprete. Antes, poder-se-ia certamente dizer que, em certo sentido, um tradutor da Metafsica s poder ser tal se tiver sabido ser intrprete e, mais ainda, na medida em que tiver sabido ser intrprete. Ora, ao nosso sentir, o Prof. Severino, por estar plenamente consciente da necessidade destes predicados, utiliza-os com descortino em suas anlises. 2 A nossa fonte primria ser: SEVERINO, Emanuele. I Presocratici e la nascita della filosofia. Roma: La repubblica e Lespresso, 2009. DVD (O1:30:51). (Collana Il Caff Filosofico, v. 1).

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    bem esta presena intrnseca do divino na especulao filosfica, importa ponderarmos certos

    aspectos que se ressaltam desde a origem do filosofar.

    Decodificando o nosso modo proceder, diremos o seguinte: primeiro abordaremos o

    thama () como origem do filosofar. Em seguida, discorreremos acerca da etimologia

    do vocbulo filosofa (), entendida como fila () sofa (), que se

    desabrocha na persecuo e consecuo da altheia (), luz inconteste. Depois,

    falaremos da filosofia como thera (), isto , como contemplao que se d quando

    da posse da altheia, que, alcanada atravs do dilogos () e esquematizada, d

    origem epistm (). Tentaremos mostrar como a filosofa enquanto tal implica

    essencialmente a considerao do then (), e que, por isso, o Thes () est

    intrinsecamente ligado filosofia. Prosseguindo, esmeraremos por demonstrar concisamente

    como os medievais, sobremaneira Toms, herdam este modo de filosofar dos gregos mediante

    a disputatio. Dando continuidade, passaremos s consideraes finais, esforando-nos para

    atestar, sucintamente, como a sntese de Toms fundamentalmente uma abertura verdade.

    Conseguindo, pois, provar que Deus est essencialmente ligado gnese do filosofar, este

    projeto por ns traado ter alcanado o seu termo prprio.

    Passemos s consideraes a que nos propusemos.

    1. Do mito filosofia: o thama como origem do filosofar

    Com efeito, diz Aristteles na Metafsica que a filosofia nasce do thama ().3

    Ora, o termo thama, comodamente traduzido por maravilhar-se, evoca muito mais do

    que comumente se pensa, a saber, um indivduo que se admira diante de algo que antes

    simplesmente no lhe causava espanto algum. No original, thama quer dizer medo,

    terror. Mas medo de qu? Sobretudo da dor, da morte e da infelicidade. Por conta disso,

    3 ARISTTELES. Metafsica. I, 2 982 b 10. In: REALE, Giovanni. Metafsica II: Texto grego com traduo ao lado. 2 ed. Trad. Marcelo Perine. Rev. Marcelo Perine. So Paulo: Edies Loyola, 2005. p. 11: De fato, os homens comearam a filosofar, agora como na origem, por causa da admirao (thaymzein), na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples (...). (O parntese nosso). Observemos a razo da admirao: ficavam perplexos, assustados ou assombrados diante das dificuldades mais simples. Ademais, importa ressaltarmos que Aristteles, aqui, d realce a um dito de Plato: PLATO. Teeteto. 155 D. In: REALE, Giovanni. Metafsica III: Sumrio e Comentrios. 3 ed. Trad. Marcelo Perine. Rev. Marcelo Perine. So Paulo: Edies Loyola, 2011. p. 15: prprio do filsofo isso (...), ser cheio de admirao; e a filosofia no tem outro princpio alm desse.

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    mais correto seria dizer que a filosofia nasce do terror, isto , do medo do homem face

    morte e dor.

    Entretanto, este caminho conheceu prembulos. Na verdade, diante do estupor causado

    pelos fenmenos da natureza por vezes terrificantes e at ameaadores o homem, a priori

    sem recursos acurados para explic-los, comeou por atribu-los vontade arbitrria de

    figuras humanas que se lhe apresentavam como mais potentes do que ele. Ora, a estas figuras

    humanas denominou deuses. Por isso, os deuses foram os que, por primeiro, passaram a dar

    sentido a todos os fenmenos naturais e a ser a explicao natural do homem ante a

    precariedade da sua existncia, to contingente quanto s coisas que o cercam. A respeito do

    medo do homem ao perceber-se contingente, isto bem assinalado por Selvaggi:

    Se, com efeito, o mundo existe quando os outros eus no existiam e continua a existir quando eles no existem mais, no eram necessrios para o mundo, so temporais e contingentes, porque o mundo pode existir sem eles e, de fato, existia ou existe. Mas o que vale para os outros vale tambm para mim, que lhes sou semelhante. Portanto tambm eu no sou necessrio para o mundo, sou temporal e contingente; e o mundo, o mundo real que o meu mundo, pode existir sem mim.4

    Mas o fato que, com estas primeiras espcies de narraes, o homem tentava dar

    sentido a sua estupefao diante dos fenmenos naturais, ao mesmo tempo que se esmerava

    por responder sua vulnerabilidade perante eles. Agora bem, hoje conhecemos estas

    narraes pelo nome de mitologia. A princpio, eram apenas tradies orais. Contudo,

    Homero e Hesodo, na Grcia, valendo-se de uma linguagem potica, comearam a consignar

    por escrito estas narraes, incorporando-as, desta feita, ao registro da histria. Aqui muito

    importante notarmos o marco que a mitologia d, porquanto, doravante, o homem no procura

    mais defender-se da dor e da morte, e de tudo o que ameaa a sua vida, somente mediante

    tcnicas rudimentares ou procedimentos meramente prticos, mas tambm buscando

    adquirir um senso do mundo que, de certa forma, sirva de proteo sua vulnerabilidade.

    Reiteramos que isso absolutamente marcante, porque o dar sentido s coisas e a prpria

    existncia passam a servir como uma espcie de remdio ao homem que se sente ameaado.

    Aristteles chega a dizer que quem ama o mito j , sob certo ponto de vista, filsofo:

    4 SELVAGGI, Filippo. Filosofia do Mundo: Cosmologia Filosfica. Trad. Alexander A. Macintyre. Rev. H. C. de Lima Vaz. So Paulo: Edies Loyola, 1988. p. 28.

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    Ora, quem experimenta a sensao de dvida e de admirao reconhece que no sabe; e por isso que tambm aquele que ama o mito , de certo modo, filsofo: o mito, com efeito, constitudo por um conjunto de coisas admirveis. De modo que, se os homens filosofaram para libertar-se da ignorncia, evidente que buscavam o conhecimento unicamente em vista do saber e no por alguma utilidade prtica.5

    Destarte, necessrio acentuarmos ainda outro aspecto: o homem vive o mito no

    como uma fbula, e a grafia mtica em forma de poesia no diminui em nada a fora que o

    mito exerce sobre ele. Por isso, preciso esclarecermos que, quando se diz que o mito uma

    narrao potica, isto no significa, de forma nenhuma, que o homem vetusto o acolhe como

    uma fbula; antes, ele o recebe como algo produzido (potico vem de posis [] =

    produo) por ele mesmo, a partir da observao de fatos atestveis e a fim de responder

    precariedade existencial com a qual se depara e que o assombra a todo instante.

    Acontece, no entanto e vale salientarmos que isto peculiar ao gnio grego que os

    mitos, aos poucos, vo-se tornando insuficientes, porque, ao final das contas, todos eles so

    passveis de ser negados, visto que, se respondem sorte infausta do homem pelas

    representaes fantsticas, no respondem a ela com o rigor de um raciocnio irrefutvel.

    Nasce, ento, o desejo de saber6, isto , de adquirir um conhecimento to slido quanto

    indestrutvel, ou seja, um conhecimento que no seja mais negvel, nem passvel de ser

    desmentido. E adquirir este saber mister, pois sem ele o homem pode sempre volver ao

    estado de escravo do medo da dor e da morte pela dvida. Por isso, urge a aquisio deste

    saber seguro e irrefutvel que possa resguardar o homem do temor da morte e do infortnio.

    Ora, esta procura incessante por um saber indefectvel apresenta-se como uma espcie de

    busca ininterrupta por algo a que chamamos verdade e que no seno a marca primeira e a

    mola propulsora do prprio filosofar. Portanto, a filosofia nasce existencial, uma vez que, por

    ela, o homem espera encontrar o remdio definitivo que o ajude a se libertar da escravido da

    dor, da morte e da desdita.

    5 ARISTTELES. Metafsica. I, 2 982 b 15 e 20. In: REALE, Giovanni. Metafsica II: Texto grego com traduo ao lado. 2 ed. Trad. Marcelo Perine. Rev. Marcelo Perine. So Paulo: Edies Loyola, 2005. p. 11. 6 ARISTTELES. Op. Cit. I, 1, 980 a 25. In: REALE, Giovanni. Metafsica II: Texto grego com traduo ao lado. 2 ed. Trad. Marcelo Perine. Rev. Marcelo Perine. So Paulo: Edies Loyola, 2005. p. 4: Todos os homens, por natureza, tendem ao saber.

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    2. Filosofia e altheia: a filosofia como phila sopha

    Mas dizamos acima acerca da busca da verdade. O que a verdade? Para o grego

    antigo, a verdade altheia (). Agora bem, o a, aqui, uma partcula privativa,

    enquanto lth () significa esquecimento. Logo, altheia o que no se pode

    esquecer, porque patente, evidente, manifesto. Dizamos ainda que quem busca a verdade o

    filsofo. Mas o que a filosofa ()? Ora, este termo comumente traduzido e

    explicado por amor sabedoria. Mas isso no basta para diz-lo em seu sentido mais

    profundo. De fato, que amor este? Flos () deriva de fila (), que significa um

    amor de ateno, amor de cuidado, amor de curadoria. Sofa (), por seu lado, vem de

    safs (), que significa claro, luminoso. Com efeito, o fs de safs vem de fs

    (), que designa luz. Da, por exemplo, a nossa palavra: foto-grafia (-) =

    grafia da luz. Por conseguinte, sofa o que no se esconde, o que essencialmente se

    mostra, e o que, precisamente por no poder ser negado por ser uma luz incontestvel, no

    pode ser tomado como uma mera iluso, passando a figurar, ento, como um saber

    imorredouro.

    Desta sorte, o que a filosofia? a busca cuidadosa, a vontade de alcanar a sofa, a

    saber, a claridade, a luz que se mostra e que no se esconde, e que, por isso, no pode ser

    negada. Por outro lado, j sabemos que a verdade, altheia, a que possui estes predicados.

    Destarte, a filosofia a procura constante da sabedoria, que se possui quando da posse da

    verdade, isto , da luz incontrovertida, da luz inexpugnvel, a qual, por sua vez, ser como

    que o unguento a mitigar o nosso medo da dor, da morte e da desventura. Alis, acerca da

    filosofia como sendo essencialmente a busca da verdade, j dizia Toms de Aquino: O

    estudo da filosofia no visa saber o que os homens pensaram, mas como se apresenta a

    verdade das coisas7.

    Portanto, a filosofia nasce existencial, porque, de algum modo, procedente do terror do

    homem ante a morte iminente, mas tambm nasce desejosa de preciso, sedenta de rigor

    demonstrativo. Ora, este aspecto rigoroso que o filosofar reclama desde a sua origem, nasce,

    nele, sob o signo do ser. Dito doutra forma, a filosofia busca o que perene, procura o que

    no passa nem est sujeito mudana, busca o fundamento do devir. E a isto ela chama

    7 TOMS DE AQUINO. De caelo, lib. 1, 22 n. 8. In: NASCIMENTO, Carlos Arthur R. Santo Toms de Aquino: O Boi Mudo da Siclia. So Paulo: EDUC, 1992. p. 50.

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    propriamente ser. Por conseguinte, a filosofia nasce tambm ontolgica, tambm como

    cincia. De mais a mais, este rigor muito bem frisado por Toms de Aquino, quando

    afirma: (...) os argumentos filosficos no so acolhidos pela autoridade de quem diz, mas

    pela validade do que se diz8. Alhures, diz tambm o Aquinate:

    Quando o debate (disputatio= disputa) debate (disputatio= disputa) de escola, magistral, no para refutar um erro, mas para instruir os ouvintes e lev-los compreenso da verdade que se ensina; necessrio apoiar-se em razes que procuram a raiz da verdade, que fazem saber como verdadeiro o que dito. Caso contrrio, se o mestre determina uma questo por autoridades nuas, o ouvinte estar, por certo, assegurado de que a coisa assim, mas nada adquirir de cincia e inteligncia, e voltar vazio, vacuus abscedet.9

    Notemos, todavia, como a ontologia nasce distinta do aspecto existencial, embora

    inseparvel dele. De fato, enquanto a perspectiva existencial enraza-se na perplexidade do

    homem perante o devir das coisas e dele prprio, a perspectiva ontolgica consiste na resposta

    adequada do homem frente a esta angstia, resposta esta que se encontra na aquisio da

    verdade, isto , da ptrea sabedoria que no seno o ser enquanto fundamento do real.

    Temos, ento, que o aspecto existencial e o ontolgico, inobstante distintos, no se encontram

    justapostos, mas indissociveis.10

    8 TOMS DE AQUINO. Super De Trinitate, pars 1. q. 2 a. 3 ad 8. In: LAUAND, Luiz Jean. Toms de Aquino: Vida e Pensamento Estudo introdutrio geral (e questo Sobre o verbo). So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 3. 9 TOMS DE AQUINO. Quodlibet IV, q. 9 a. 3 co. In: NICOLAS, Marie-Joseph. Introduo Suma Teolgica. So Paulo: Edies Loyola, 2001. p. 32. (Os parnteses so nossos). E ainda: TOMS DE AQUINO. Quodlibet III, q. 14 a. 2 ad 1. In: MOURA, Odilo. Introduo Suma Contra os Gentios. Porto Alegre: Sulina, 1990. p. 11: Provar recorrendo a uma autoridade, no provar demonstrativamente, mas pela f opinar sobre uma coisa. 10 Em Toms, ambas as questes, a saber, a da existncia e a ontolgica, so colocadas sob o signo do ser, mas, na concepo de Toms, o ser comporta duas acepes, vale dizer, a de ato de ser e a de definio que expressa a quididade ou essncia da coisa. Afirma ele: TOMS DE AQUINO. Suma Teolgica. Trad. Aimom- Marie Roguet et al. So Paulo: Loyola, 2001. I, 3, 4, ad 2: Deve-se dizer que ser se diz em dois sentidos: primeiro, para significar o ato de existir (actum essendi: ato de ser); segundo, para significar a composio de uma proposio, qual a mente chega, unindo um predicado a um sujeito. (O parntese nosso). Sem podermos desenvolver aqui toda a riqussima metafsica do ser de Toms, digamos o essencial. No Aquinate h uma distino entre ente, essncia, quididade e ser (esse), sendo este ltimo concebido como ato de ser (actus essendi). Ente (ens) aquilo que existe ou pode existir; essncia (essentia) o que aquilo que existe ; o ser, concebido como ato de ser, aquilo pelo qual uma substncia (substantia) torna-se um ente; e a quididade (quidditas) a essncia enquanto esta, expressada no conceito (conceptus), d-nos a conhecer o que a coisa , o seu quid est. Para Toms, nas criaturas haver sempre esta distino fundamental entre essncia e ser, porque nenhuma delas de tal sorte que a sua essncia seja o seu prprio ato de ser, seno que todas so contingentes e, por isso mesmo, reclamam, no final das contas, a existncia de um Ipsum Esse Subsistens, onde essncia e existir se identifiquem ou se coincidam. Ora, este Ipsum Esse Subsistens, cuja essncia ato puro de ser ou de existir no outro que no o prprio Deus. Diz Toms: TOMS DE AQUINO. O ente e a essncia. 2 ed. Trad. Carlos Arthur do Nascimento. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005. V, 61: Com efeito, h algo, como Deus, cuja

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    essncia seu prprio ser; e, por isso, encontram-se alguns filsofos que dizem que Deus no tem qididade ou essncia, pois sua essncia no algo outro que o seu ser. No bojo do artigo Deus na Filosofia Crist, explicaremos com maior detena e exao este tpico fundamental do pensamento tomasiano. Para isso, lanaremos mo das agudas anlises de tienne Gilson, que consagrou pginas clssicas a respeito desta questo e que dispensa maiores apresentaes, e das do Prof. Battista Mondin, um dos fundadores e que foi tambm um dos presidentes da SITA: Societ Internazionale Tommaso dAquino. Dentre tantas, uma das grandes contribuies do Prof. Mondin, Doutor em Filosofia e em Teologia pela Universidade de Harvard, alm de escritor profcuo e professor durante anos da Pontifcia Universidade Urbaniana, foi distinguir, nitidamente, a tese de Toms da de Martin Heidegger. Em Heidegger, o ser como que se confunde com o nada. Melhor, para Heidegger, o nada enquanto condio de possibilidade de tudo o que . Em Toms, ao contrrio, o ser, concebido como ato de ser (actus essendi), uma noo intensiva, e Deus, o Ipsum Esse Subsistens, uma pessoa. Deus Aquele que, atravs do ato criador, d origem a todas as coisas que so. E todas as coisas que so, so mantidas no ser enquanto sustentadas por Deus, de cujo ser participam. Portanto, confundir a concepo de Toms com a de Heidegger , de fato, uma extravagncia sem tamanho. Seja-nos permitido citar aqui, duas passagens emblemticas nas quais o Prof. Mondin ilustra, com meridiana clareza, que o anacronismo est antes em ns do que em Toms: MONDIN, Battista. Quem Deus? Elementos de Teologia Filosfica. 2 ed. Trad. Jos Maria de Almeida. So Paulo: Paulus, 2005. p. 225: O ser mesmo, a realidade suprema que d origem a todas as outras, esse ser subsistente que tem como prpria essncia toda a plenitude, toda a riqueza, toda a atualidade do ser, corresponde, como nota o prprio Toms, quilo que os filsofos costumam chamar com o nome de Deus. Ns, modernos, vtimas de inumerveis preconceitos em relao ao ser, depois das graves distores e dos profundos artifcios a que o submeteram o idealismo, o positivismo, o existencialismo, o neopositivismo e a anlise lingstica, hesitamos em atribuir a Deus o nome de o ser mesmo (esse ipsum). Mas o escrpulo no tem nenhum fundamento, se por ser entendemos o mesmo que Toms de Aquino, ou seja, aquela perfeio suprema que recolhe em si todas as perfeies que costumamos atribuir a Deus. Para Toms, o esse ipsum, ao invs de ser um ttulo annimo, como pode parecer a ns, modernos, um ttulo personalssimo; ou melhor, o nico nome prprio de Deus. (O itlico nosso). Idem. Op. Cit. p. 227: Do que dissemos conclui-se que o discurso ontolgico de Toms destaca-se nitidamente do discurso ontolgico de Heidegger, embora ambos dem grande revelo diferena ontolgica que existe entre o ente e o ser. De fato, na especulao heideggeriana a diferena apenas aparente, com a conseqente dissoluo dos entes no ser, ou, pior ainda, do ser nos entes. O esvaziamento da distino real entre ente e ser impede Heidegger de levar a srio o discurso metafsico (dando preferncia ao discurso potico) e de ter um conceito correto da divindade. Toms de Aquino, porm, ao apostar na diferena ontolgica, por um lado reconhece nos entes uma dignidade ontolgica prpria e, por outro, capta a sua (deles) dependncia do ser, o qual goza de total e absoluta autonomia em relao aos entes. Concluindo, no arbitrrio afirmar que existe a possibilidade de elaborar uma slida via ontolgica, isto , uma via do ser que leva at Deus e o apresenta sob aquele aspecto que s a ele pertence, a esseidade plena, completa, perfeita, infinita, eterna, imutvel. Por essa via encaminhou-se Toms de Aquino no momento culminante da sua metafsica do ser, formulando vrias argumentaes exemplares e rigorosas, como pudemos mostrar examinando alguns textos menos clebres mas no menos importantes da Summa Theologiae. A prova ontolgica a grande via para Deus traada por Toms de Aquino e tambm a nica prova que pode ser chamada de especificamente tomista. (Os itlicos so nossos). Poder-se-ia objetar ainda: este argumento ontolgico no seria um retorno ao clebre argumento de Anselmo, do qual justamente Toms parece decididamente afastar-se? No. Toms, no resta dvida, refuta o argumento de Anselmo, tal como ele (Toms) o conheceu. Na verdade, se o Aquinate chega ao Ser subsistente, no chega a Ele a partir do seu conceito. Toms no descende do Ipsum Esse Subsistens aos entes finitos, seno que ascende da carncia ontolgica dos entes dados na experincia sensvel ao Ipsum Esse Subsistens. Destarte, a prova ontolgica tomasiana a posteriori e no a priori. O Prof. Mondin no menos claro quanto a este ponto: Idem. Op. Cit. p. 223: Santo Toms absolutiza o ser (como Parmnides), mas no absolutiza os entes. Estes certamente enrazam-se no ser e ao ser devem toda a sua realidade, mas no se apropriam dele de forma permanente (caducidade-finitude), de modo total (participao), de modo absoluto (gradualidade). Todavia, Toms no conclui pela subsistncia do Ser a priori: no da riqueza do seu conceito que ele conclui imediatamente pela sua existncia. O argumento ontolgico de Toms de Aquino no tem carter dedutivo, como o de Anselmo, mas indutivo. No da realidade do ser que ele deduz a datidade dos entes; antes, da datidade, carente e injustificada, dos entes que ele remonta ao Esse ipsum subsistens. (O itlico nosso).

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    3. A filosofia como thera: o nascimento da epistm

    pelo proceder do dilogos

    Agora bem, o que se segue quando o homem se depara com a verdade? Inebriado

    desta luz, nasce nele a thera (), termo costumeiramente traduzido por contemplao.

    Porm, uma vez mais, a traduo reclama esclarecimentos. Na Grcia antiga, thera

    significava, antes de tudo, festa. Thera , antes de qualquer coisa, espetculo. Pois bem, a

    thera filosfica no seno a festa pela descoberta da verdade. o homem absorto ante a

    claridade de uma luz inabarcvel. Como Plato narra na Repblica, o espetculo do filsofo

    a posse da verdade.11 De fato, diante da verdade, no h mais o que se temer: nem a dor, nem

    a morte, nem a infelicidade. Thera, portanto, trata-se de uma espcie de celebrao

    salvfica, na qual o homem se encontra em condies de superar o medo da dor e da morte e

    isto de uma vez por todas, ou seja, de uma forma incontestvel, vale dizer, sem a incerteza

    que a mitologia comportava. Sendo assim, nada mais inexato do que ler thera como algo

    puramente abstrato. Falamos, isto sim, de um evento, ao mesmo tempo, profundamente

    existencial e ontolgico. Chamamos thera, antes de mais nada, a um acontecimento feliz,

    posto que por ele o homem celebra o encontro do remdio para a sua existncia enferma.

    Dito, agora, positivamente, a filosofia tem sua arkh () num pthos () pela

    eydaimona (), isto , pela felicidade que s se perfaz quando se est sob a gide de

    um saber indestrutvel, de uma luz inconfundvel.

    Digamos, ainda, que os antigos gregos tinham um nome para este conhecimento

    vivificante. Designavam-no epistm (). Geralmente traduz-se o vocbulo

    simplesmente por conhecimento ou cincia. Mas o fato que ele no qualquer

    conhecimento, nem mesmo qualquer cincia. Ep () significa sobre e stamai

    () estar em p. Epistm, por conseguinte, nomina um saber que est em p e, por

    isso, permanece. Em outras palavras, a nomenclatura epistm fala-nos de um saber que

    permanece em p, porque sustentado sobre uma argumentao racional que alcanou a

    verdade (altheia), que alcanou a sabedoria (sofa). Assim sendo, epistm um

    conhecimento fundado na verdade acerca da existncia humana.

    11 PLATO. A Repblica. Trad. Enrico Corvisieri. So Paulo: Nova Cultural, 2000. V. 475 E. p. 183: Glauco Quais so, ento, na tua opinio, os verdadeiros filsofos? Scrates Os que amam o espetculo da verdade.

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    Finalmente, como alcanamos este conhecimento, a saber, a epistm? Atravs do

    dilogo (). O termo di () geralmente traduzido como atravs12, enquanto

    lgos () como palavra, discurso. Todavia, di contm a partcula di ()13, a qual

    indica diviso14 e, no caso especfico, diferena entre dois lgoi () que se separam e se

    distanciam por se contrastarem, e se dissociam justamente por no possurem, num mesmo

    termo, a verdade. De todo modo, esta diviso, para os gregos, a causa, pois, de uma

    espcie de distenso intelectual, que constitutiva do prprio dilogo. Por meio dela, o

    dilogo acontece. O qu do dilogo est exatamente nisto: num conhecimento que se

    produz e se fundamenta enquanto se estende por meio de argumentos que se contrastam. De

    forma que, longe de ser uma concordncia, o dilogo pressupe uma discordncia e se inicia

    por ela. Todos os dilogos platnicos alongam-se, alargam-se e como que se tornam cada vez

    mais claros, luminosos e fulgurantes a partir das respostas que Scrates d s objees que

    so levantadas ao seu prprio pensamento. , pois, do dilogo, assim concebido como duas

    falas (lgoi/) que se contrastam, que nasce a epistm, isto , a clareza, o

    esclarecimento, a certeza inabalvel sobre uma determinada tese. No h o que negar: s

    dilatamos o nosso pensamento, s alcanamos um saber inequvoco, quando pensamos por

    contrastes. Toms acenava para isso:

    Se algum quiser escrever contra minhas solues, ser-me- muito agradvel (acceptissimum= aceitabilssimo). De fato, no h melhor maneira de descobrir a verdade e de refutar o erro que precisar defender-se dos opositores.15

    Assim como no tribunal no se pode pronunciar um juzo sem ter ouvido as razes das duas partes, assim tambm quem se ocupa de

    12 FREIRE, Antnio. Gramtica grega. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 209. 13 Tanto o quanto o (forma suprimida) pode ser encarado como advrbio (separando, dividindo) ou como preposio (PEREIRA, 1957, p. 127; FREIRE, 2008, p. 209). Como preposio, ele possui dois casos: genitivo e acusativo. Como genitivo, ele significa "atravs de", como geralmente traduzido (PEREIRA, 1957, p. 127). Como acusativo, pode indicar a causa ("por causa de") e, desta feita, podendo servir como elemento identificador de um gnero literrio em particular, como o caso das etiologias. Tambm no caso acusativo, ele pode significar "com o auxlio de" (PEREIRA, 1957, p. 127). Como substantivo, ele parece seguir a linha de acepo do advrbio: dividindo, separando, dispersando, dum e doutro lado, de onde advm diretamente os vocbulos diviso, separao, distanciamento. O , enquanto eliso de , tambm amparado pela gramtica grega de Antnio Freire (2008, p. 275) e pelo dicionrio grego-portugus de Isidoro Pereira (1957, p. 127). (N. do R.) 14 PEREIRA, Isidoro. Dicionrio grego-portugus e portugus-grego. 2 ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1957. p. 127. 15 TOMS DE AQUINO. De perfectione, cap. 26. In: NICOLAS, Marie-Joseph. Op. Cit. So Paulo: Edies Loyola, 2001. p. 33. (O parntese nosso).

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    filosofia chegar mais facilmente a uma soluo se conhecer o pensamento e as dvidas de diversos autores.16

    4. A filosofia e o Thes: A presena do then na Filosofia

    Afirmado isto, resta-nos ainda a interrogao: onde o aspecto teolgico no incio do

    filosofar? Onde o Thes ()? Agora bem, dizamos acima, da verdade ou sabedoria como

    uma luz indestrutvel. Ora, no grego arcaico, Deus, Zeus ou divindade denominado por

    , cujo atributo por antonomsia Dos (), que designa brilhante, luminoso. De

    modo que Deus, Zeus e divindade, para o grego antigo, tinha invariavelmente a conotao de

    algo luminoso, brilhante. Destarte, a ideia de que Deus se identifica com a Luz, a Verdade e a

    Sabedoria comea a se delinear precisamente no esprito grego. E a filosofia, enquanto busca

    da verdade, da luz e da sabedoria, manifesta-se, desta sorte, tambm como uma teologia, isto

    , como uma procura racional por Deus, nica resposta incontrovertida existncia

    contingente do homem. Donde se dizer com razo:

    Neste sentido, a filosofia , desde o incio, teologia, expresso racional do then, do divino. Podemos, pois, datar dos filsofos pr-socrticos o nascimento da teologia.17

    Passemos a considerar, especfica e brevemente, as relaes entre os primrdios do

    filosofar e o filosofar de Toms de Aquino.

    16 TOMS DE AQUINO. Sententia Metaphysicae, lib. 3, 1 n. 5. In: NICOLAS, Marie-Joseph. Op. Cit. So Paulo: Edies Loyola, 2001. p. 33. 17 VAZ, Henrique Cludio de Lima. Escritos de Filosofia: Problemas de Fronteira. 3 ed. Rev. Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci. So Paulo: Edies Loyola, 2002. p. 74.

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    5. Toms de Aquino e a Philosopha: Do dilogos

    disputatio

    Vista assim de seu cume, temos que a filosofia nasce magnificente. Porm, ao nosso

    sentir, os gregos ficaram aqum de uma resposta que realmente satisfizesse os seus prprios

    porqus. Por outro lado, tampouco a modernidade, uma vez que negou o que herdou da

    tradio, e a contemporaneidade, cujo materialismo cientificista baseia-se unicamente em

    transpor para o corpo os atributos da alma, atingiram o pice desta forma de saber que

    chamamos de filosofia. Pensamos, de fato, que a filosofia encontrar o seu apogeu, o seu

    pncaro, nos escolsticos, sobretudo em Toms de Aquino. Acreditamos que Toms, como

    nenhum outro, conseguiu unir, numa sntese coesa e orgnica, porquanto formada por

    argumentos convincentes e convergentes, toda a riqueza a que os gregos aspiraram. Em outras

    palavras ainda, ele conseguiu reunir, numa sntese eminente, todos os pilares da filosofia que

    acabamos de coligir. Com efeito, em Toms o aspecto existencial encontra-se palpitante, pois

    se acha em p sobre a pujana das demonstraes apodticas. Ao mesmo tempo, os

    preambula fidei a tambm vicejam por uma lgica invicta, abrindo assim caminho para

    uma vvida cincia teolgica, cujo fim ltimo no ser outro seno a beatitude eterna, que

    consiste na contemplao festiva da Verdade na luz da glria. Sim, Deus visto face a face, eis

    o fim verdadeiramente ltimo da prpria filosofia, ainda que buscado por ela somente indireta

    e negativamente. Acerca da angstia metafsica como abertura f divina, dom de Deus, j

    que a indagao racional somente em parte consegue responder a ela, arrazoa nosso Penido,

    exmio intrprete de Toms:

    Deixa-se um homem arrastar pela vida automatizada de todos os dias; os problemas da sobrevivncia individual da famlia, da profisso, o alternar-se de afazeres e distraes, os infinitamente pequenos enfim de que entretecida a cotidiana monotonia, levam-lhe o tempo todo. No pensa muito alm do futuro imediato, sobretudo no cogita na morte. Mas eis que um acontecimento inesperado perigo, malogro, doena, perda de um ente querido, pouco importa arranca-o rotina e nele desperta a angstia metafsica. Verifica ento que no auto-suficiente, que no consegue sozinho dar um sentido aceitvel prpria vida, que embora o vertiginoso progredir das cincias estamos mais longe do que nunca de responder s questes fundamentais. Sente sobretudo o chamamento da morte, a vertigem desse instante em que cedo ou tarde e por mais tarde que seja, sempre cedo demais tudo nos faltar e deveremos arrancar-nos s coisas a que ainda mais

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    legitimamente nos apegamos, para mergulhar na imensa noite. Do seio dessa angstia metafsica, surgem em tropel as interrogaes inoportunas: Valer a pena viver? Qual a razo de ser desses curtos anos de luta? Ser a existncia um amontoado de perguntas sem respostas ou, se lhe cabe um sentido, qual ser ele? Que fim dever o homem perseguir? Gozar todos os prazeres desde os mais grosseiros at os mais requintados? Cultivar harmoniosamente o esprito procura do saber? Dominar a natureza para produzir e amontoar riquezas? Estancar em si a sede de viver e engolfar-se na indiferena do nirvana? Por entre este tumulto, levanta-se uma voz serena e augusta, a voz da Igreja, portadora da eterna e infalvel sabedoria: nico o sentido da vida: Deus! nica, por conseguinte a definio verdica, exata, da vida: o caminhar do homem at Deus. Mas, indagamos, como logramos atingir to transcendente meta? Deus est longe demais, inacessvel demais; algum O viu porventura? E a resposta se faz ouvir: Sem f impossvel agradar a Deus porque necessrio que aquele que se aproxima de Deus creia que Ele existe e o galardoador dos que o buscam (Hb 11, 6). A f e s ela pode dar um sentido satisfatrio vida, porque ela e s ela indica a meta real de nosso itinerrio e os meios de atingi-la. (...) Deus sendo o trmino autntico da vida, e a f o meio de consegui-lo, no ter f votar-se por necessidade ao malogro final.18

    Sem pretendermos entrar nos meandros que nos levam do conhecimento natural de

    Deus ao sobrenatural, e atendo-nos aqui ao mbito filosfico, sobremodo ao da Summa

    Theologiae, mas tambm ao de outras obras do Aquinate, urge dizer que este conhecimento

    filosfico do qual falamos neste artigo buscado em suas obras atravs duma forma

    aprimorada do mtodo grego do dilogo, a saber, a disputatio. A Summa , pois, uma

    espcie de chama acesa e ardente, uma luz que no se apaga, uma obra literalmente sem ponto

    final, porque nela palpitam as disputas; um projeto aberto, um pensamento que se dilata, um

    conjunto de ideias que se esclarecem por objees. Nela, os argumentos se expandem quando

    contraditos, e a clareza resplandece quando a resposta distende-se em respostas s objees.

    Na Summa, o contraditrio sempre uma oportunidade de aprofundamento. Desta sorte, a

    Summa obra sem fecho, um cume, sim, mas aberto a um horizonte sem fim, bem diversa,

    portanto, da imagem que nos advm dela pelo famoso delrio de Brs Cubas.19 Neste sentido,

    18 PENIDO, Maurlio Teixeira Leite. Iniciao Teolgica I: O Mistrio da Igreja. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1956. pp. 8 e 9. 19 ASSIS, Machado de. Memrias Pstumas de Brs Cubas. 9 ed. So Paulo: tica, 1982. p. 19 In: NASCIMENTO, Carlos Arthur R. Santo Toms de Aquino: O Boi Mudo da Siclia. So Paulo: EDUC, 1992. pp. 87 e 88: Logo depois, senti-me transformado na Summa Theologica de S. Toms, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; idia que me dava ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

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    nada h nela de cadavrico, seno o contrrio: uma dignidade, uma eminncia do gnio

    humano perto da qual nossas produes contemporneas apresentam-se como que obradas por

    caverncolas. Um no adepto do pensamento de Toms, R. Bongli, que traduziu parte da

    Metafsica de Aristteles para o italiano no sculo XIX, acerca do Comentrio de Toms

    Metafsica do Estagirita, j dizia:

    Grande figura, verdadeiramente, Santo Toms! Que pensamento agudo e slido! Quanta clareza e equilbrio! No h dificuldade que o desencoraje, questo que o afaste, obstculo que o detenha. Tentar compreender no para ele uma curiosidade, mas uma obrigao: e o esforo da inteligncia o demonstra, mas no o anuncia. Jamais um desprezo, uma maldio, uma trapaa, uma ira, uma reprovao, um riso para os seus adversrios de qualquer espcie: sempre pronto a discutir, seguro de suas armas sem ser pretensioso.20

    Tambm nosso coetneo, o celebrrimo historiador italiano da filosofia, Giovanni

    Reale, no sendo tampouco um tomasiano, por ocasio do seu estupendo Comentrio

    Metafsica de Aristteles, confessa que as intuies geniais de Toms no envelheceram;

    inclusive do ponto de vista histrico, no podem ser relegadas ao passado:

    E, particularmente, no sendo tomista, minha escolha de Toms foi determinada justamente pela verificao de sua excelncia objetiva e utilidade inclusive, do ponto de vista histrico.21

    Ainda nesta mesma linha, recordemos que, em latim, plica significa dobra. Da a

    nossa palavra complicada significar, antes de qualquer coisa, algo no visto porque dobrado

    e redobrado. Lembremos, ademais, que o termo ex, em latim, significa, o mais das vezes,

    para fora. Donde o nosso termo explicar denotar, antes de tudo, um lanar para fora as

    dobras, um desdobrar, um desfazer as dobras a fim de que o leitor ou ouvinte possa ver o que

    antes as dobras no lhe permitiam contemplar.22 Ora, a Summa e as Questes Disputadas dos

    medievais, preponderantemente as de Toms, no so seno partes que se desdobram em

    questes que, por sua vez, desmembram-se em artigos, que, por seu lado, desdobram-se em

    argumentos e respostas s objees. Por isso, a Summa no algo inerme ou inerte, mas em

    20 Metafisica dAristotele, volgarizzata e commentata da R. Bonghi, Livros I-VI, Turim, 1854. In: REALE, Giovanni. Metafsica vol. I: Ensaio introdutrio. 2 ed. Trad. Marcelo Perine. Rev. Marcelo Perine. So Paulo: Edies Loyola, 2005. pp. 18 e 19. 21 REALE. Metafsica vol. I: Ensaio introdutrio. p. 19. 22 LAUAND, Luiz Jean. As dobras da lngua. Disponvel em: Acesso em: 06/06/2013.

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    seu prprio constituir-se, ela consiste num vigoroso movimento no qual a verdade se desvela

    com o fito de ser simplesmente dita. Seus argumentos, porquanto provindos direta ou

    indiretamente do ensino, so verdadeiros sinalizadores [Notemos que o verbo ensinar

    (insignare, insignire) significa sinalizar]23, e s o so, ratificamos, enquanto Toms os

    recolhe das Disputas escolares do seu tempo, cujo dinamismo exige um pensar que se

    desabrocha e se consolida somente lidando com as objees. Assim, a obra de Toms afigura-

    se como o ensino da verdade a desenvolver-se em permanente erudio, erudio esta que no

    seno, segundo nos sugerem os prprios termos dos quais provm o vocbulo, ex/rude,

    um lanar para fora tudo quanto nos embrutece, um lapidar o quanto se ache em ns em

    estado bruto. , pois, assim que a verdade descoberta e reluz de forma inegvel a quem quer

    que se depare com ela. O Aquinate, em diversos momentos, aponta para isso:

    (...) preciso amar tanto aquele de quem adotamos a opinio como aquele de quem nos separamos; pois um e outro aplicaram-se busca da verdade, e um e outro so nossos colaboradores.24

    Os pensadores so tambm ajudados indiretamente por seus predecessores, pelo fato de os erros desses fornecerem meios de descobrir a verdade por uma reflexo mais sria. Portanto, convm sermos gratos a todos os que nos ajudam a conquistar o bem da verdade.25

    Passemos s consideraes finais deste trabalho.

    Concluso: a verdade , sob certo aspecto, filha do tempo

    (Veritas temporis filia)

    Eis, pois, os nossos artigos como uma primeira tentativa de mostrar como os

    medievais foram os mais legtimos representantes do gnio helnico, frisando sempre o

    coeficiente de singularidade com o qual, entre eles, compareceu Toms de Aquino. Com

    23 LAUAND, Luiz Jean. RUBIO, Juliana Bassana. As razes da lngua: cultura e ensino de ingls. CEMOrOC-Feusp/IJI-Universidade do Porto: Notatum 30, set-dez 2012. p. 88. 24 TOMS DE AQUINO. Sententia Metaphysicae, lib. 12, 9 n. 14. In: NICOLAS, Marie-Joseph. Op. Cit. So Paulo: Edies Loyola, 2001. p. 33. 25 TOMS DE AQUINO. Sententia Metaphysicae. Lib. 2, 1 n. 15 e 16. In: NICOLAS, Marie-Joseph. Op. Cit. So Paulo: Edies Loyola, 2001. p. 33.

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    outras palavras, mais do que trazer a razo pela qual no somos cartesianos, kantianos, etc.,

    queremos apresentar a existncia de um pensamento tomasiano e o porqu de sermos

    tomasianos e no cartesianos, kantianos, etc. Escusado ser dizermos que ser tomasiano no

    significa somente aderir formalmente filosofia de Toms, mas, aderindo formalmente

    filosofia de Toms, conjugar, no presente e no futuro, o verbo filosofar em Toms, isto , a

    partir do seu legado: a busca da verdade em sua integralidade. Ser tomasiano , pois, pensar

    o nosso tempo com Toms, ou seja, desde a sua sntese, mpar por ter como protagonista

    unicamente a verdade. Entretanto, este jeito de pensar tomasiano , ao mesmo tempo, um

    estar aberto, como o prprio Toms, verdade, venha ela de onde vier. Quando consultado

    por um confrade sobre como se adquire a sabedoria, Toms, entre outras coisas, recomendou-

    lhe: No atentes a quem disse, mas ao que dito com razo e isto, confia-o memria.26 Na

    Suma, afirma sem pestanejar:

    Portanto, deve-se dizer que toda verdade (omne verum), dita por quem quer que seja (quocumque dicatur), vem do Esprito Santo enquanto infunde em ns a luz natural e nos d a moo necessria para entender e exprimir esta verdade (intelligendum et loquendum veritatem). 27

    Com efeito, o Aquinate, em diversos momentos da sua imensa obra, sinaliza para um

    movimento que consiste justamente num progresso do pensar que se d por um

    aprofundamento e no por uma substituio do que j foi conquistado. Ora, reiteramos,

    procurar e estar aberto a estes novos aprofundamentos, , precisamente, ter um jeito de pensar

    tomasiano.28 De fato, como anes sobre os ombros de gigantes de acordo com a sugestiva e

    instigante metfora de Bernardo de Chartres tambm Toms acreditava que s podemos ver

    mais longe, quando no nos esquecemos do que passado pelo tempo, mas perene pela

    26 TOMS DE AQUINO. De modo studendi (Carta sobre o modo de estudar). 9. Trad. Luiz Jean Lauand. In: LAUAND, Luiz Jean (Org.) Cultura e Educao na Idade Mdia: Textos do Sculo V ao XIII. Martins Fontes: So Paulo, 1998. p. 304. 27 TOMS DE AQUINO. Suma Teolgica. I-II, 109, 1, ad 1. (Os parnteses so nossos). 28 MARITAIN, Jacques. Sete Lies Sobre o Ser. 2 ed. Trad. Nicols Nyimi Companrio. So Paulo: Edies Loyola, 2001. p. 17: Onde predomina, ao contrrio, o aspecto mistrio, trata-se de penetrar sempre mais no mesmo. O esprito permanece no lugar, gravita em torno de um centro, ou penetra cada vez melhor uma mesma densidade. um progresso no mesmo lugar, um progresso por aprofundamento. desta forma que no aumento intensivo dos hbitos a inteligncia, como diz Joo de Santo Toms, no deixa de mergulhar no objeto, no mesmo objeto, vehementius et profundius, mais veementemente e mais profundamente. Deste modo, podemos ler e reler sempre o mesmo livro, ler e reler a Bblia, e, a cada vez, ocorre uma descoberta nova e mais profunda. Claro est que, na vida da humanidade uma tradio intelectual, a continuidade estvel de uma doutrina fundada sobre princpios que no mundam so a condio de tal progresso.

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    validade. Entretanto, preciso acentuar: a cada gerao o condo, o mnus de aprofundar-se

    na verdade:

    Se algum procedendo atravs do tempo, investiga a verdade, o tempo o ajuda a encontr-la. No s enquanto a um mesmo homem, que depois de um tempo ver o que no vira ao princpio, mas tambm enquanto a diversos homens, como quando um capta as coisas que descobriram seus predecessores e acrescenta algo. Para qualquer homem pertence agregar o que falta no considerado pelos predecessores.29

    Da parte da razo, porque parece ser natural da razo humana chegar gradualmente do imperfeito ao perfeito. Por isso, vemos nas cincias especulativas que aqueles que por primeiro filosofaram, transmitiram algumas coisas imperfeitas, que depois, pelos psteros, se tornaram mais perfeitas.30

    Por fim, fazemos nossas as palavras de Bocio, o ltimo dos romanos e o primeiro

    dos escolsticos, em sua clebre imagem da Filosofia, feita quando, em seu crcere, esperava

    a morte que lhe era iminente. De algum modo, esta magnfica descrio de Bocio abarca

    tudo quanto dissemos e como pensamos que deva ocorrer este aprofundamento na verdade, a

    saber, com um engajamento vital:

    Enquanto refletia silenciosamente sobre estas coisas e consignava por escrito os meus amargos queixumes, pareceu-me que sobre a minha cabea se erguia a figura de uma senhora de mui venerando aspecto. Seu olhar era extraordinariamente vivo e penetrante. Sua tez era luzidia e seu vigor inesgotado, embora, por sua grande idade, parecesse pertencer a outra gerao que no nossa. Era de estatura varivel. Ora assumia propores humanas comuns, ora o alto da sua cabea parecia tocar o cu; e ao ergu-la algo mais, penetrava o prprio cu, subtraindo-se vista humana. Suas vestes, artisticamente confeccionadas do mais fino tecido, eram feitas de material imperecvel. Segundo me fez saber mais tarde, ela mesma as tecera com suas mos. Seu brilho, como o de uma pintura esfumada, empanara-se pela ao do tempo. Na orla inferior lia-se, bordada no estofo, a letra grega , e, na superior, a letra (filosofia prtica e teortica). Entre as duas letras

    29 TOMS DE AQUINO. Comentrio de Toms de Aquino tica a Nicmaco. L. I, Lect. 11, n. 3. Trad. LIMA, Jos Jivaldo. In: Revista Signum, 2010, vol. 11, n. 2. p. 340. Disponvel em: Acesso em: 25/01/2013. 30 TOMS DE AQUINO. Suma Teolgica. I-II, 97, 1, C.

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    parecia delinear-se uma srie de degraus, guisa de escada, ligando o smbolo inferior ao superior. Contudo, aquela mesma veste fora dilacerada por mos violentas. Cada qual lhe arrancara os fragmentos que pudera alcanar. Na mo direita trazia alguns livros, e na esquerda, um cetro.31

    Os links dos referidos artigos: Deus na Filosofia Grega: A aporia entre Religio e Filosofia: http://www.filosofante.org/filosofante/?mostra=noticia&ver=1&id=9&le=F12&label Deus na Filosofia Crist: A concordncia entre Filosofia e Religio sob a Primazia do Esse: http://www.filosofante.org/filosofante/?mostra=noticia&ver=1&id=8&le=F12&label Deus na Filosofia Moderna: A perda do primado do Esse: http://www.filosofante.org/filosofante/?mostra=noticia&ver=1&id=7&le=F12&label Deus na Filosofia Contempornea: Deus e a Cincia: http://www.filosofante.org/filosofante/?mostra=noticia&ver=1&id=6&le=F12&label

    31 BOCIO. De Consolatione Philosophiae. I, I. In: BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. Histria Da Filosofia Crist: Desde as Origens at Nicolau de Cusa. 7a ed. Trad. Raimundo Vier. Rio de Janeiro: VOZES, 2000. p. 222.

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