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Helena Angelica de Mesquita

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  • Espao agrrio brasileiro: excluso e incluso social

    Brazilian agrarian space: social exclusion and inclusion

    Helena Anglica de Mesquita Universidade Federal de Gois / [email protected]

    Resumo

    Este texto traz algumas reflexes acerca do espao agr-rio brasileiro, espao este marcado por grandes conflitos e lutas de resistncias das populaes excludas do pro-cesso scio-econmico. uma luta desigual em todos os sentidos, inclusive no registro pela histria oficial, que ignora as lutas do povo e no reconhece os lutadores populares.

    Palavras-chave: excluso social; campesinato; latifndio

    Abstract

    This text brings some analysis upon the Brazilian agrarian space. This space is featured by intense disputes and re-sistance fights taken by a part of the population excluded from the social and economical process. It is an unequal fight in all levels considered. Even the official historical record underestimate the peoples fight and does not rec-ognize the brave fighters emerged from the people.

    Key-words: social exclusion; peasantry; land concentra-tion

    Boletim Goiano de Geografia Goinia - Gois - Brasil v. 28 n. 1 p. 127-142 jan. / jun. 2008

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    ...No lugar que havia mata,home h perseguio1Grileiro mata posseiro s pra lhe roubar seu choCastanheiro, seringueiro j viraram at peoafora os que j morreram como aves de arribaoZ de Nana t de provanaquele lugar tem cova,gente enterrada no cho

    Pois mataram o ndio, que matou grileiroque matou posseirodisse o castanheiro para o seringueiroque o estrangeiro roubou seu lugar...

    Vital Farias1

    Introduo

    Na virada do III milnio, cinco sculos do descobrimento da Amrica e do Brasil. O tempo passou, mas no passaram os massacres contra os trabalhadores, os meninos de rua e meninos do campo. No bastara o sofrimento impingido a eles pelo salrio mnimo, ms condi-es de vida e desemprego puro e simples, ainda so protagonistas de episdios como os da Candelria, Carandiru, Eldorado do Carajs, Co-rumbiara, Favela Naval e tantos outros locais que serviram de palco para massacres e execues. As respostas do governo quando chacoalha-do por um episdio violento anunciar medidas paliativas, tais como, aumentar a represso com mais armamento para a polcia, aumentar os efetivos militares, treinar melhor os policiais, a reduzir a idade de responsabilidade criminal, e aventa-se at a possibilidade de pena de morte, enquanto as pessoas que podem, circulam em carros blindados e se escondem em fortalezas de muros e alarmes.

    O Brasil figura tristemente entre os pases de maiores diferenas so-ciais. Num pas com tais condies sociais, qualquer poltica de natureza re-pressiva ter pouca eficcia. Criminalizar meninos de rua e sem terra, alm de ser um exemplo de poltica medocre, no resolve os problemas.

  • 130 Espao agrrio brasileiro: excluso e incluso social.Helena Anglica de Mesquita- CAC/UFGBGGAs aes das populaes reprimidas e excludas so classificadas

    como subverso da ordem. Este estado de coisas tem como uma das causas a questo agrria no resolvida. Questo agrria no sentido mais amplo, que vai alm da prpria reforma agrria, que, no dizer de Jos de Souza Martins2, seria a soluo da questo, daquela que diz respeito s terras dos ndios, dos posseiros, dos seringueiros, assim como s polticas agrcolas e agrrias, e at mesmo ambientais, que acabam por privilegiar o latifn-dio em detrimento de grande parcela de trabalhadores que so excludos, inclusive, do acesso terra de trabalho. E os trabalhadores tm uma com-preenso clara desta situao, como mostra o depoimento de um sem terra de Rondnia:

    Os fazendeiros querem a gente sem terra para a gente ser empregado deles, ser peo, ser escravo ou quase escravo nas fazendas. Querem a gente trabalhan-do para eles ficarem cada vez mais ricos, mais poderosos e ns trabalhando para comprar comida para os filhos. A gente no quer comprar o nosso arroz, o nosso feijo, a gente quer ver a lavoura crescer e os filhos crescer tambm. A gente quer ir para a roa, para a nossa roa, ajudado pelos filhos, pela esposa, traba-lhando todos juntos e voltando para casa juntos. E a famlia trabalhando unida, vivendo unida. Isso tudo que a gente quer. Mas primeiro a gente precisa ter a terra... (Quebra-Mola. Ji Paran 30/09/97)

    A histria tem mostrado que os desterrados e desterritorializados tm-se organizado e enfrentado esta estrutura secular de dominao e espoliao. Os camponeses tm conseguido romper este cerco e, de certa forma, colocar a questo em evidncia.

    No governo FHC, os meios de comunicao notificaram que a reforma agrria foi feita porque assentou um nmero grande de famlias. Mas segun-do o professor Dr Bernardo Manano Fernandes3, os assentamentos no se constituem em reforma agrria, porque, em sua maioria, so criados a partir de ocupaes promovidas pelos camponeses, e ento o governo forado a agir. Das 299.332 famlias assentadas no governo FHC, 256.4674 so famlias que ocuparam terras. E os assentamentos, apesar de necessrios e muitas vezes eficientes, no alteram o poder dos latifundirios, porque a estrutura bsica dos latifndios continua intocada e intocvel.

    Se o governo FHC promoveu a reforma agrria, por outro lado au-mentou as dificuldades dos pequenos produtores e reduziu os empregos no campo, e o que mais grave, a represso aos movimentos dos trabalhadores foi muito mais pronta e ferrenha. Mesmo assim, cresceram as reivindicaes e protestos. Novos movimentos surgiram nas cidades e no campo eviden-

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    ciando a resistncia do povo. O que isso significa em termos de repensar a questo agrria e a reforma agrria no Brasil?

    Novas e eficazes polticas de acesso terra precisam ser implementa-das urgentemente. No se pode empurrar meninos e meninas para as Can-delrias da vida. mais humano, mais econmico e mais cristo desapro-priar as Santa Elinas5 do Brasil e assentar esses guerreiros, possibilitan-do a eles as condies para se tornarem cidados.

    Histria do campo brasileiro: algumas consideraes

    As atividades agrcolas e agrrias compem um setor importante da economia que no necessariamente absorvido pelo processo de industria-lizao. H vrias correntes de anlise sobre o campo, no Brasil, que con-sideram a agricultura subordinada ao processo industrial, principalmente porque o modelo desenvolvimentista implantado no pas se expande ao campo, e uma dessas vias de expanso foi o Estatuto da Terra de 1964, que previu a transformao das unidades agrcolas em empresas rurais. A trans-formao em muitos casos, do proprietrio da terra em empresrio rural, segundo Martins (1986, p. 69), no suprime a contradio que a terra repre-senta no desenvolvimento capitalista.

    Embora o centro da economia capitalista esteja na indstria, a agricultu-ra relevante, assim como o seu estudo, porm precisa ser considerada em suas especificidades. necessrio estudar o campo e o campesinato que, segundo Martins (1996), o lado moderno e revolucionrio, enquanto o latifndio o lado atrasado e arcaico da estrutura econmica, social e poltica no Brasil.

    Muitos estudiosos seguem a teoria clssica do ponto de vista da ex-panso do capitalismo no campo, com a consequnte homogeneizao das relaes de produo, e consideram o campesinato como algo do passado, pois o processo de diferenciao gerou a proletarizao inexorvel de todos os que no puderam ou no quiseram bancar os custos do processo de mo-dernizao. Dentro de tal concepo do processo de penetrao da moderni-zao, a proletarizao seria resultado do prprio mercado, que se encarre-garia de excluir o campons do processo produtivo. Os latifndios ento no precisam desaparecer, desde que assumam o carter capitalista, ou seja, modernizem os latifndios.

    O pressuposto histrico desta e de outras tendncias o desapare-cimento do campesinato, pois os camponeses entrariam num processo de

  • 132 Espao agrrio brasileiro: excluso e incluso social.Helena Anglica de Mesquita- CAC/UFGBGGdiferenciao, se tornando pequenos capitalistas ou se proletarizando. Tais tendncias parecem esbarrar na realidade brasileira que est a evidenciar o recrudescimento de latifndio e a criao e recriao do campesinato, com a expanso do campo de lutas e resistncia.

    Os processos recentes de transformao permitem, em muitos casos, que o proprietrio de terra e o capitalista sejam unificados, pois lhes permi-tem obter lucro e renda fundiria. Ento, se por um lado recriam as condi-es para expanso do latifndio, pelo outro, contraditoriamente, criam e recriam o campesinato, ou seja, uma classe em oposio ao latifundirio.

    o campesinato que quer entrar na terra, que ao ser expulso, com freqncia terra retorna, mesmo que seja terra distante daquela de onde saiu. O nosso campesinato constitudo com a expanso capitalista, como produto das con-tradies dessa expanso. Por isso, todas as aes e lutas camponesas recebem do capital, de imediato, reaes de classe: agresses e violncias, ou tentativas de aliciamento, de acomodao, de subordinao. (MARTINS, 1986, p. 16).

    Esta anlise est mais prxima da realidade brasileira, e vem procuran-do explicaes para a permanncia do campesinato, pois segundo Martins, o prprio capitalismo cria e recria as relaes no capitalistas de produo. a ampliao da produo camponesa combinada ou no dentro da contra-dio capitalista. O campesinato e o latifndio devem ser compreendidos dentro do capitalismo, e no fora dele. (OLIVEIRA, 1986, p. 11).

    Para se compreender que tais pressupostos so mais compatveis com a realidade brasileira, basta ver os sujeitos sociais e polticos que se apresen-tam como a UDR, o MST, os posseiros, os ndios, os grileiros, os colonos, os latifundirios, os ruralistas etc., evidenciando que a questo mais comple-xa do que parece.

    No nosso caso, o avano do capitalismo no dependeu da abertura de um espa-o livre ocupao de capital. O trabalhador j era expropriado. Foi o prprio capital que, com a crise do trabalho escravo, instituiu a apropriao camponesa da terra; uma contradio evidente num momento em que o capital necessita-va de fora de trabalho, de trabalhadores destitudos de sua prpria fora de trabalho. Por essa razo, o nosso campons no um enraizado. Ao contrrio, o campons brasileiro desenraizado, migrante, intinerante. (MARTINS, 1986, p. 17).

    O processo histrico constitudo pelas relaes sociais, pelas rela-es e antagonismos de classe. Assim, para Martins, o campesinato brasi-leiro resultado e conseqncia do prprio desenvolvimento capitalista no

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    campo, e considera algumas questes como a sua resistncia e formas de luta. As respostas s lutas e reivindicaes camponesas tm sido sempre respostas e reaes de classe, haja vista os conflitos mais intensos como Ca-nudos, Contestado, Trombas e Formoso e, mais recentemente, Corumbiara e Eldorado do Carajs, assim como os conflitos permanentes pelo acesso e posse da terra so tenses, e esto onde esto as cercas do latifndio. Os con-flitos, em muitos casos, so resolvidos de maneira brutal. So conflitos de classes transformados em massacres contra os camponeses. Para entender tais questes, preciso dialogar com as evidncias e ultrapassar as aparn-cias para compreender a realidade como expresso do exerccio do poder, o poder de ocultar, excluir, esquecer, e o poder de mostrar e de no esquecer, o que seria um outro poder.

    Os indgenas esto h quinhentos anos lutando, fugindo, morrendo e resistindo numa luta contra o capital, representado por jesutas, por senho-res de engenho, e hoje, por grileiros, madeireiros, latifundirios, com o apoio do Estado.

    Se a Amaznia era o ltimo refgio dos povos indgenas (OLIVEIRA, 1996, p. 12), disse bem o autor era, porque, por exemplo, em Rondnia, os projetos de colonizao dirigidos pelo INCRA no tm considerado os seus territrios. E embora tenha criado algumas reas de reserva indgena, que so muito mais espao de confinamento, tais reas no so respeitadas e o massacre dos ndios continua.

    O ndio, se no foi formalmente escravizado, foi e est sendo sistemati-camente desterritorializado e, conseqentemente, sendo exterminado, numa luta desigual, como a luta dos negros que chegaram ao Brasil na condio de escravos, ou seja, marginalizados priori e constituram a fora de tra-balho que moveu a colnia, como trabalhadores e, ao mesmo tempo, merca-dorias. Os negros que entraram na histria do pas como excludos, saem da mesma em 1888 com a Lei urea, mas no chegam a se tornar cidados, pois o que lhe garantiria tal possibilidade seria o acesso terra. Qual terra, neste imenso territrio? A apropriao das terras j estava garantida aos senhores brancos e catlicos, desde o tempo das capitanias hereditrias, sesmarias e legitimadas pela Lei de Terras de 1850. A Lei 601/1850 instituiu o que Martins chama de Cativeiro da Terra no momento da transio da mo-de-obra escrava para a mo-de-obra livre, e segundo o mesmo autor, livre, no necessariamente assalariada, o que seria a lgica capitalista. A contradio se estabeleceu quando, para se reproduzir, o capital passou a utilizar-se da propriedade privada da terra e da renda que ela podia proporcionar. A mo-

  • 134 Espao agrrio brasileiro: excluso e incluso social.Helena Anglica de Mesquita- CAC/UFGBGGde-obra, por sua vez, precisava tambm corresponder nova ordem mun-dial de expanso de consumo e produo de matrias-primas para as naes em processo de industrializao, e especialmente, para a nova potncia que emerge na prpria Amrica e que tambm tinha sua lei de terras, mas com uma letra e um esprito muito diferentes de nossa legislao.

    Emlia Viotti da Costa, ao tratar destas questes6, analisa as diferenas e semelhanas no contexto da lei de terras brasileira e norte-americana, e evidencia, que no Brasil as foras mais conservadoras foram as que articu-laram e criaram o que lhes garantiu o poder sobre a terra, poder da terra e o poder sobre o poder, e ao mesmo tempo, garantiu mo-de-obra, inicialmen-te mesmo escrava, com a possibilidade de manejo dos estoques de escra-vos de uma regio para outra, assim como tambm, a imigrao do pobre europeu, especialmente italianos, que, de certa forma, tambm almejavam o acesso terra. Mas sua posse lhe fora antecipadamente dificultada pela lei de 1850. Isto evidenciava que havia um novo segmento de pessoas que tambm aspirava pela terra como possibilidade de vida. Formava assim um novo grupo social que passou a engrossar e modificar os processos de luta pela terra.

    As lutas dos ndios j duram tanto quanto a histria do pas. Negros e ndios lutavam contra o cativeiro, na nova ordem estabelecida pela Lei de Terras, a luta era contra o cativeiro da terra, contra a expropriao, contra a expulso e contra a excluso, o que marca a histria dos trabalhadores desde a luta dos escravos, da luta dos imigrantes, da formao da luta dos campo-neses (FERNANDES, 2000, p. 25), do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), do MCC (Movimento Campons Corumbiara), do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), etc.

    Os negros entraram na histria do pas como escravos, e com o adven-to da Repblica, foi dificultada a eles, a cidadania por falta de uma poltica que lhe possibilitasse o acesso terra. Mas eles esto sempre lutando por terra, assim como os imigrantes europeus que tambm aspiravam terra. Este foi o caldo dos muitos conflitos que aconteceram no pas.

    Importante movimento de resistncia dos negros foram os quilombos que se formaram no territrio brasileiro. Os quilombos eram dos mais varia-dos tipos, e o maior deles foi Palmares que resistiu por mais de um sculo. Palmares era uma outra sociedade que pouco considerada pelos livros de histria e pela histria oficial, que a histria da classe dominante, sem povo, sem contexto. A histria oficial glorifica Domingos Jorge Velho, o ban-deirante que massacrou Palmares e foi o algoz de Zumbi seus pares.

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    A Repblica Brasileira j nasceu sob o signo do latifndio e da ordem e progresso, inserindo o pas no contexto do liberalismo. Essa Repblica, que foi um arranjo entre os latifundirios e os militares, foi sacudida por um dos maiores movimentos de resistncia dos trabalhadores: Canudos. Ca-nudos foi combatido pela Igreja, pelos coronis/latifundirios e pelo Estado positivista. A ordem em Canudos era construir uma comunidade solidria, e o progresso certamente seria o bem estar de todos. Canudos era uma comu-nidade de lutadores que se negou a sucumbir diante do latifndio.

    A luta dos trabalhadores tem momentos e espaos de maior inten-sidade como foi Canudos, Contestado, Trombas e Formoso, Corumbiara7, Eldorado do Carajs, que fazem parte da luta pela terra e pela liberdade (OLIVEIRA, 1996, p. 13). Oliveira diz que so memrias da capacidade de resistncia e de contestao da expropriao, e so tambm memrias da capacidade destruidora do capital e dos capitalistas.

    O modelo de desenvolvimento do pas, especialmente o que se refere ao campo, como no processo de modernizao da agricultura, gerador de concentrao e excluso. A estratgia da modernizao adotada foi claramen-te conservadora, e teve como objetivo bsico o aumento da produo e da produtividade da terra e do trabalho. A forma foi uma renovao tecnolgica com utilizao de equipamentos, insumos, tcnicas e mtodos modernos, e o emprego mnimo de mo-de-obra, com tendncia especializao da mes-ma. No se modificou a estrutura fundiria, pelo contrrio, a opo foi pelo modelo concentrador8. A opo por este modelo comeou a ser implantada a partir de 1950, principalmente com a triticultura e, posteriormente, com a soja, cujo incremento de cultivo se deu na dcada de 1970, coincidindo com as crises do petrleo, quando o pas necessitava de novos produtos para o equilbrio da balana de pagamentos. No mesmo perodo, houve um avano tambm nas lavouras de cana-de-acar para a produo de combustvel al-ternativo, e esses cultivos, altamente capitalizados e multiplicadores de ca-pital, se expandiram pelas regies centrais do pas, em substituio a culti-vos tradicionais ou mesmo ocupando reas de cerrados, incorporando estas novas terras ao processo capitalista, modificando ecossistemas, destruindo veredas, contaminando mananciais, erodindo longas extenses de solos, e alterando completamente as paisagens com os mares de soja.

    A expanso territorial da modernizao se fez em ondas concntricas a partir do Centro-Sul e atingiu, de forma diferenciada, os diversos segmen-tos sociais, desencadeando um movimento migratrio de dois tipos distin-tos. O primeiro movimento, que atingiu um nmero maior de pessoas, foi

  • 136 Espao agrrio brasileiro: excluso e incluso social.Helena Anglica de Mesquita- CAC/UFGBGGconstitudo pelos que ficaram marginalizados do processo produtivo que se instalava: foram os posseiros, empregados e pequenos proprietrios que ficaram alijados do contexto modernizante. O segundo movimento, ou seg-mento social que se deslocou, foi o dos empresrios bem sucedidos. Estes, aps verem diminuir suas possibilidades de expanso no lugar de origem, estavam aptos a ocupar outras reas onde as terras eram mais baratas, e onde podiam expandir seus empreendimentos e estend-los sobre terras in-dgenas e de posseiros em um processo predatrio com total apoio do Esta-do. Normalmente tais empresrios dispunham de vultoso capital financeiro e know how aliados a uma legislao agrria e agrcola que incentiva e privi-legia a grande produo, principalmente a destinada a exportao9.

    A partir de 1965, no Brasil, foram introduzidas novas variedades de trigo, arroz e milho. Os produtores foram induzidos a usar novas tcnicas de correo dos solos, fertilizantes, combate s pragas e doenas, assim como utilizar equipamentos e tcnicas mais modernas, cujo mercado pro-dutor estava em plena expanso10, caracterizando a articulao dos espaos monopolistas. O resultado inicial foi o controle sobre os produtores rurais, a introduo de novas culturas, de tcnicas de cultivo e manuseio do solo, e uma reorientao alimentar, integrando ao modelo econmico/agrcola internacional. Foi constitudo tambm um embate ideolgico, legitiman-do o moderno contra o atrasado, o moderno contra o arcaico modo de produzir e de viver do homem do campo. H um processo artificial de va-lorizao do urbano e a desvalorizao do roceiro e da roa ofuscado pelo fascnio urbano.

    O Brasil confirmou sua opo pelo modelo modernizante internacio-nal ao fazer, entre outras iniciativas, uma legislao compatvel com tal op-o. Destaque para o Estatuto do Trabalhador Rural de 1963 que, de certa forma, estendia os benefcios scio-trabalhistas dos operrios urbanos aos trabalhadores rurais11. Embora tal legislao tenha sido pouco eficaz no que se referia aos benefcios para o trabalhador, foi uma pretensa valorizao do trabalhador do campo e a legitimao de novas relaes sociais, no entanto, o instrumento mais especfico para o avano da modernizao conservadora foi, sem dvida, o Estatuto da Terra de 1964, cuja letra sugeria, inclusive, reforma agrria, mas cujo esprito era to somente fortalecer e legitimar o po-der dos empresrios rurais. Nesse sentido, o Estatuto foi muito eficiente, pois possibilitou a implantao das empresas rurais, criando os instrumentos efi-cazes para garantir maior articulao do processo produtivo e expanso do latifndio. Todos estes mecanismos institucionais colaboraram no sentido

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    de viabilizar a opo modernizadora altamente excludente. O Estatuto da Terra vinha para burocraticamente viabilizar a modernizao da agricultura e reprimir as lutas dos trabalhadores.

    Em 1964, o golpe militar tentou golpear tambm a resistncia dos trabalhadores, caando, matando e sumindo com as lideranas em uma tentativa de destruir qualquer movimento que questionasse o regime. Os latifundirios que apoiaram a ditadura militar desde o nascedouro, se forta-leceram legalmente, legitimados pelo Estatuto da Terra. O Estatuto, segundo Oliveira, foi uma espcie de bandeira militar levada ao campo em luta para, atravs da guerra, impor a paz na terra.

    O regime militar, com seus AI1, AI5 e outras arbitrariedades, embora tenha conseguido calar, literalmente, muitas vozes, no conseguiu impedir que os camponeses continuassem sua luta na sua trajetria de liberdade.

    Conflitos por terra surgiram em muitos lugares do Brasil e foram cres-centes as tenses sociais, especialmente na Amaznia, relacionadas direta-mente natureza das migraes produzidas pela estrutura fundiria. Mar-tins constatou:

    Fala-se muito da concentrao da propriedade da terra como um dos fatores da violncia, o que verdade. O recenseamento de 1980 revelou que 45% das ter-ras do pas estavam concentradas em menos de 1% dos estabelecimentos rurais e que metade dos estabelecimentos, que garantem a maior parte da produo, tinham apenas 2,4% da terra. O Estatuto da Terra, implantado pela ditadura militar, teria a suposta finalidade de resolver esse problema, se redistribusse as terras dos grandes proprietrios, como ocorreu em outros pases, mas dando preferncia aos pequenos agricultores sem-terra na ocupao de novas terras das regies da Amaznia. No entanto, aconteceu o contrrio. Antes do golpe mi-litar, entre 1950 e 1960, as terras novas foram ocupadas do seguinte modo: 85% para estabelecimentos com menos de 100 ha e 15% para estabelecimentos com mais de 100 ha. J na vigncia do Estatuto, entre 1960 e 1970, essa distribui-o de terras novas sofreu modificaes, beneficiando os grandes proprietrios: 35% dessas terras foram para os pequenos e 65% para os grandes. Entre 1970 e 1980, a dcada da grande violncia no campo, os pequenos receberam 6% das terras novas e os grandes ficaram com 94%. (MARTINS, 1986, p. 48 e 49).

    A Nova Repblica (1985) j nasceu velha, velha e ranosa, pois a nova arrumao do poder continuou calcada na influncia dos latifundi-rios que para legitimar a violncia no campo criaram a Unio Democrtica Ruralista (UDR) para contrapor ao MST e maioria da sociedade, na Cons-tituinte. A UDR, gestada quando Iris Rezende era Ministro da Agricultu-ra, 1985, teve como seu primeiro presidente o mdico ortopedista Ronaldo

  • 138 Espao agrrio brasileiro: excluso e incluso social.Helena Anglica de Mesquita- CAC/UFGBGGCaiado. Este deputado federal votou contra o impeachment de Collor e faz parte de uma sangrenta oligarquia agrria de Gois (SILVA, 1991, p. 47). A UDR utilizava uma retrica modernista, em um fantstico poder miditico que o dinheiro lhe conferia, procurava convencer at pequenos produtores a empunhar a bandeira da integridade pessoal, a propriedade, a moral e contra a corrupo.

    A UDR prosperou rapidamente e atingiu o seu principal objetivo, que foi interferir na Constituinte, e foi sob esta influncia que a proposta de reforma agrria, inserida na Constituio de 1988, no correspondeu aos anseios de milhes de trabalhadores que no puderam marchar sobre Bra-slia para fazer ouvir suas vozes.

    Com a criao da UDR, institucionalizou-se o crime no campo, pois foi grande o envolvimento dela com a violncia e sua ingerncia tambm na impunidade.

    So muitos os movimentos que lutam por terra no pas do latifndio. Uma outra forma de excluso o modelo energtico brasileiro. O modelo excludente porque a energia, que deveria ser um bem pblico, no chega casa de milhes de brasileiros. excludente tambm por provocar a migra-o compulsria de milhares de trabalhadores que no conseguem refazer suas vidas no campo e menos ainda na cidade, onde so derrotados na luta pelo emprego.

    A luta dos atingidos por barragens inicialmente pleiteava indeni-zaes mais juntas a reassentamentos. O surgimento do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) serviu para unificar estas lutas, e o enfre-tamento, que antes era contra o Estado, hoje contra os conglomerados econmicos que privatizaram o Estado brasileiro atravs da privatizao da energia e da gua.

    Se tem havido conflitos no campo porque, de certa forma, est ha-vendo reao por parte dos que esto sofrendo violncia. So muitos os su-jeitos da luta secular no campo brasileiro: as naes indgenas e a luta pela demarcao dos seus territrios; os posseiros em luta pela terra de trabalho; os pees lutando contra a peonagem; os camponeses enfrentando as desa-propriaes nas grandes obras do Estado; como exemplo, a luta contra a construo das barragens; o movimento dos camponeses contra a subordi-nao da indstria; o movimento dos brasiguaios; o movimento dos bias-frias; o sindicalismo no campo; e o movimento dos trabalhadores sem terra, mostrando que os campos de luta so muitos, as estratgias de resistncia so diversificadas, mas todos esto lutando contra as injustias do latifndio

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    e as polticas que o legitimam. So os movimentos em luta permanente pelo acesso e permanncia na terra.

    Nota

    1 Saga da Amaznia. CD Cantoria.2 MARTINS, Jos de Souza. Revisando a questo agrria. In boletim do militante, n 27,

    dezembro/96. p. 30-57.3 Prof. Dr. Bernardo Manano Fernandes. UNESP, Presidente Prudente.4 Folha de So Paulo, 02/01/2000. Brasil 1-11.5 Em 14/7/1995 cerca de 600 famlias ocuparam a fazenda Santa Elina no municpio de Co-

    rumbiara, Rondnia. Rapidamente a justia expediu a liminar de manuteno de posse em favor do fazendeiro e o juiz encaminhou ofcio ao comando da PM exigindo a IMEDIATA retirada dos posseiros. No dia 9 de agosto a liminar foi cumprida, resultando em um dos maiores massacres da histria recente do pas. Houve, ento, grande repercusso do fato nos noticirios nacionais e internacionais. Logo depois, a prpria mdia foi, aos poucos, apagan-do Corumbiara dos noticirios e da memria dos brasileiros. Mas as marcas de Corumbiara estaro naqueles corpos, naquelas almas e naquele cho, para sempre.

    6 Da Senzala Colnia e Da Monarquia Repblica. 7 Na edio renovada de A Geografia das Lutas no Campo o autor acrescenta uma parte

    sobre o Massacre de Corumbiara.8 O processo de modernizao da agricultura, no Brasil, foi importante no sentido do des-

    locamento de populao e prosseguimento do modelo poltico concentrador da renda e de terras.

    Onde estariam os camponeses que perderam suas terras? Alguns se tornaram empregados dos latifundirios, outros foram para a cidade tentar a sorte e certamente milhares esto engrossando o movimento dos que lutam por terra.

    9 Em Rondnia isto fica muito claro, visto que os camponeses tiveram dificuldade em entrar na terra e mais dificuldades ainda em se manter na terra. E os empresrios rurais expandem, no tanto seus empreendimentos produtivos, mas suas reas de especulao.

    10 O mercado produtor de implementos e equipamentos agrcolas norte-americano estava em franca expanso, ento h uma sincronia entre a produo e a criao de um mercado con-sumidor de tais produtos no Brasil.

    11 O Estatuto gerou, em muitos lugares, a expulso dos trabalhadores que viviam na condio de moradores e agregados. Os proprietrios trataram logo de acertar as contas com os trabalhadores nessas condies com a justificativa de que eles poderiam adquirir direitos e viriam a ser uma ameaa propriedade, com possibilidade de pleitear na justia a posse daquele lugar onde estava a casa, o quintal, a horta, enfim, aquele pedacinho da roa na qual moravam h muitos anos.

  • 140 Espao agrrio brasileiro: excluso e incluso social.Helena Anglica de Mesquita- CAC/UFGBGGReferncias

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    Helena Anglica - Professora Adjunta do Curso de Geografia CAC/UFG Coordenadora do grupo de pesquisa: Geografia, Trabalho e Movimentos Sociais (GETeM)

    Recebido para publicao em maro de 2008

    Aceito para publicao em abril de 2008