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Transculturação e heterogeneidade nas narrativas: Diálogo de Cajamarca”, de Garcilaso de La Vega; Los Rios Profundos”, de José Maria Arguedas e no poema América, de Gabriela Mistral Ma. Claudiane Prass - SEED/PR Resumo: Enunciado pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz, o conceito de transculturação explica as fases da ação de mudança de uma cultura para outra e se difere do termo aculturação. Entretanto, o termo passa a ser aplicado pelo crítico uruguaio Ángel Rama, o qual retoma as definições de Ortiz, ao enfatizar que se trata da perca parcial de uma cultura, a qual sofre a inserção de outra, surgindo, então, uma nova cultura. Já o conceito heterogeneidade, criado pelo crítico literário peruano Antonio Conejo Polar, enfatiza a diversidade cultural e plural Andina, que se estende à América Latina. O autor se focará, em especial, à literatura indigenista, na qual é possível encontrar a forte presença da heterogeneidade, pois esta representa com propriedade esse universo de conflitos socioculturais. O exemplo concreto dessa disparidade de mundos, hispânico e indígena, perpassada pela oralidade e a escrita, encontra-se na crônica de Garcilaso de la Vega, no “Diálogo de Cajamarca”; na narrativa de José Maria Arguedas, “Los rios profundos”; e, em Gabriela Mistral, escritora que também deixou marcas da sua origem em seus textos, e, conforme explica Adolfo Castañon (2010), ficou conhecida como “a Índia”, não apenas por sua escrita, mas por seus traços físicos. Palavras chave: Transculturação; heterogeneidade; literatura hispano-americana. Resumen: Enunciado por el antropólogo cubano Fernando Ortiz, el concepto de transculturación explica las fases de la acción de cambio de una cultura a otra y se diferencia del término aculturación. Sin embargo, el término pasa a ser aplicado por el crítico uruguayo Ángel Rama, donde retoma las definiciones de Ortiz, al enfatizar que se trata de la pérdida parcial de una cultura, la cual sufre la inserción de otra, surgiendo entonces una nueva cultura. El concepto heterogeneidad, creado por el crítico literario peruano Antonio Conejo Polar, enfatiza la diversidad cultural y plural Andina, que se extiende a América Latina, marcadas por las culturas europeas, indígenas y africanas y por la acción de colonización y neocolonización, consecuentemente, se enfocará, en especial, la literatura indigenista, en la cual es posible encontrar la fuerte presencia de la heterogeneidad, pues ésta representa con propiedad ese universo de conflictos socioculturales. El ejemplo concreto de esta disparidad de mundos, hispánico e indígena, atravesada por la oralidad y la escritura, se encuentra en la crònica de Garcilaso de la Vega, en el "Diálogo de Cajamarca"; en la narrativa de José María Arguedas, "Los rios profundos; y, en Gabriela Mistral, escritora que dejó huellas de su origen en sus textos y, como explica Adolfo Castañon (2010), quedose conocida como "La India", no sólo por escrito, sino por sus rasgos físicos. Palavras-claves: Transculturación; heterogeneidad; literatura hispano-americana. Reflexão sobre os conceitos de transculturação e heterogeneidade na literatura Latina - Americana Ambos os conceitos, tanto o de transculturação como o de heterogeneidade, estão relacionados à literatura regionalista, a qual se encontra interligada ao processo de

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Transculturação e heterogeneidade nas narrativas: “Diálogo de Cajamarca”, de

Garcilaso de La Vega; “Los Rios Profundos”, de José Maria Arguedas e no poema

América, de Gabriela Mistral

Ma. Claudiane Prass - SEED/PR

Resumo: Enunciado pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz, o conceito de transculturação

explica as fases da ação de mudança de uma cultura para outra e se difere do termo aculturação.

Entretanto, o termo passa a ser aplicado pelo crítico uruguaio Ángel Rama, o qual retoma as

definições de Ortiz, ao enfatizar que se trata da perca parcial de uma cultura, a qual sofre a

inserção de outra, surgindo, então, uma nova cultura. Já o conceito heterogeneidade, criado

pelo crítico literário peruano Antonio Conejo Polar, enfatiza a diversidade cultural e plural

Andina, que se estende à América Latina. O autor se focará, em especial, à literatura

indigenista, na qual é possível encontrar a forte presença da heterogeneidade, pois esta

representa com propriedade esse universo de conflitos socioculturais. O exemplo concreto

dessa disparidade de mundos, hispânico e indígena, perpassada pela oralidade e a escrita,

encontra-se na crônica de Garcilaso de la Vega, no “Diálogo de Cajamarca”; na narrativa de

José Maria Arguedas, “Los rios profundos”; e, em Gabriela Mistral, escritora que também

deixou marcas da sua origem em seus textos, e, conforme explica Adolfo Castañon (2010),

ficou conhecida como “a Índia”, não apenas por sua escrita, mas por seus traços físicos.

Palavras chave: Transculturação; heterogeneidade; literatura hispano-americana.

Resumen: Enunciado por el antropólogo cubano Fernando Ortiz, el concepto de

transculturación explica las fases de la acción de cambio de una cultura a otra y se diferencia

del término aculturación. Sin embargo, el término pasa a ser aplicado por el crítico uruguayo

Ángel Rama, donde retoma las definiciones de Ortiz, al enfatizar que se trata de la pérdida

parcial de una cultura, la cual sufre la inserción de otra, surgiendo entonces una nueva cultura.

El concepto heterogeneidad, creado por el crítico literario peruano Antonio Conejo Polar,

enfatiza la diversidad cultural y plural Andina, que se extiende a América Latina, marcadas por

las culturas europeas, indígenas y africanas y por la acción de colonización y neocolonización,

consecuentemente, se enfocará, en especial, la literatura indigenista, en la cual es posible

encontrar la fuerte presencia de la heterogeneidad, pues ésta representa con propiedad ese

universo de conflictos socioculturales. El ejemplo concreto de esta disparidad de mundos,

hispánico e indígena, atravesada por la oralidad y la escritura, se encuentra en la crònica de

Garcilaso de la Vega, en el "Diálogo de Cajamarca"; en la narrativa de José María Arguedas,

"Los rios profundos; y, en Gabriela Mistral, escritora que dejó huellas de su origen en sus textos

y, como explica Adolfo Castañon (2010), quedose conocida como "La India", no sólo por

escrito, sino por sus rasgos físicos.

Palavras-claves: Transculturación; heterogeneidad; literatura hispano-americana.

Reflexão sobre os conceitos de transculturação e heterogeneidade na literatura Latina -

Americana

Ambos os conceitos, tanto o de transculturação como o de heterogeneidade, estão

relacionados à literatura regionalista, a qual se encontra interligada ao processo de

modernização. Entretanto, há um impasse nessa questão de transição cultural, já que o

regionalismo busca resgatar a cultura local, conservando elementos próprios, autóctones e/ou

acrioulados e, a cultura modernizada das cidades pretende unificar/homogeneizar as produções

literárias ou culturais a partir dos parâmetros da cultura urbana e elitista sufocando, assim, as

demais, sendo que “A suposta unidade da cultura modernizadora opõe-se, por outro lado, a

pluralidade das culturas regionais.” (RAMA, s/d, p.226).

Proposto pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz em sua obra “Contrapunteo cubano

del tabaco y el azúcar” (1940), o conceito de transculturação explica melhor as fases dessa

ação de mudança de uma cultura para outra e se difere do termo aculturação, pois, esse consiste

em apenas adquirir uma nova cultura de modo passivo, já o novo vocábulo retrata o processo

que implica a perda parcial, desculturação, e a criação de novos fenômenos culturais, os quais

denomina de neoculturação.(ORTIZ F., 1983, p.90).

O conceito passa a ser aplicado pelo crítico uruguaio Ángel Rama em sua obra

“Transculturação narrativa na América Latina” (1982), onde retoma as definições de Ortiz, ao

enfatizar que se trata da perca parcial de uma cultura, a qual sofre a inserção de outra, surgindo,

então, uma nova cultura. No entanto, o autor acrescenta que há dois processos de

transculturação, a externa, entre as cidades latino-americanas e a metrópole e outra interna,

entre as cidades e as regiões interioranas. Ángel Rama explica que “A cultura modernizadora

das cidades, respaldada nas fontes externas, transfere para o interior da nação um sistema de

dominação” (s/d, p.213), agora, ainda segundo o autor, com o respaldo do uso de instrumentos

como a tecnologia, os quais não proporcionam uma significativa melhora, porém intensifica a

sua submissão. Nesse sentido, mantém-se a antiga dicotomia entre dominação e subordinação,

fruto do processo colonizador da América Latina.

Além de esse processo ser interno e externo, conforme Rama, ele ocorre também em

três níveis: o primeiro nível é linguístico, o segundo é cultural e, o último, é da cosmovisão.

No linguístico, a transculturação ocorre a partir da recriação da linguagem, se antes os dialetos

das diferentes regiões apareciam apenas na fala dos personagens, distinguindo-a da fala culta

do escritor. Agora, a fala regional passa a ser integrada à totalidade do texto, sem

constrangimentos por parte do artista que se apropria desse sistema linguístico e o transforma

esteticamente, pois, “(...) será de seu interesse [do escritor] trabalhar as possibilidades que seu

próprio comportamento linguístico lhe apresenta para construir, a partir dele, uma língua

literária, específica da criação artística” (RAMA, s/d, p.220), assim o autor fala a partir daquela

comunidade linguística. Como exemplo, Rama cita que no Brasil Guimarães Rosa com seu

romance Grande Sertões Veredas representa esse tipo de transição.

Pode-se dizer que a distinção entre os três níveis é tênue, pois, de certo modo se

entrelaçam, principalmente, o nível cultural e o nível cosmovisão. De acordo com Ángel Rama,

o papel do artista será de intermediador, entre o diálogo do regionalismo e do modernismo, ao

se voltarem às culturas regionais. Ao estabelecerem contato com as fontes orais e ao permear

os sentidos mais profundos dos mitos, eles se opõem à dominação e a ação homogeneizadora:

“Em áreas aparentemente submersas, destinadas a ser devoradas pelos processos de

aculturação, surgem grupos de pesquisadores, artistas e escritores que reivindicam valores

locais e se impõem à indiscriminada submissão que lhes é exigida.” (Idem, p.229). O

intelectual, portanto, desempenha paralelamente à cultura o seu papel político e ideológico,

integrando as diferentes expressões culturais:

(...) os escritores da transculturação mantêm-se apegado a seus meios rurais – campo e vilarejo

– conseguindo que as errantes populações do sertão, os adormecidos povoados tropicais da

costa caribenha, as aldeias empinadas da serra peruana ou os abandonados casarios do planalto

mexicano voltem a ser partes legítimas da América Latina, com autenticidade e vigor [...]

evitando o estereótipo folclorista ou crioulista superficial, esse apelo acrescenta uma centelha

à escrita, como a que só nasce de uma apreensão viva do real. (RAMA, s/d, p.232)

A valorização da cultura regional necessita do terceiro nível. Sem o reconhecimento e

a compreensão do universo cognitivo mítico dessas populações locais, ou seja, sem a

‘apreensão viva do real’, as particularidades dessas regiões dificilmente se manteriam. Temos

vários exemplos de autores nesse campo: Gabriel García Marquez possui maior destaque com

a reconhecida obra “Cem anos de Solidão, e, Ruan Rulfo com “Pedro Páramos” é a

representação da mescla desses três níveis.

Já o conceito heterogeneidade, criado pelo crítico literário peruano Antonio Conejo

Polar, enfatiza a diversidade cultural e plural Andina, que se estende à América Latina,

marcadas pelas culturas europeias, indígenas e africanas e pela ação de colonização e

neocolonização. Portanto, “O conceito de heterogeneidade é utilizado justamente para definir

uma produção literária complexa e plural, fruto da convergência conflitiva de pelo menos dois

universos socioculturais diferentes.” (ORTIZ G., 2005, p. 147), consequentemente, o autor se

focará, em especial, a literatura indigenista, na qual é possível encontrar a forte presença da

heterogeneidade, já que esta representa com propriedade esse universo de conflitos

socioculturais.

Garcilaso de La Vega: entre a voz, a letra e o conflito iniciam-se as primeiras

manifestações heterogêneas

Para Cornejo o escritor, também, possui um compromisso político de lutar contra as

formas de opressão, ao enfatizar a diversidade, ao afirmar e defender as diferenças, opondo-se,

assim, a unificação de um sistema literário. Friedhelm Schimdt explica que Cornejo, ainda,

defende a existência de uma pluralidade de sistemas literários em cada país, enquanto, Rama

considerava que a literatura latina apresentava uma unidade, fruto de uma dependência cultural

e da homogeneização estabelecendo, assim, um só sistema literário para América - Latina.

(ORTIZ G., 2005, p. 157).

O que importava para o autor peruano era o resgate de pequenos relatos históricos,

culturais e literários. Desse modo, trazer o cotidiano, incluir a oralidade, a fala das classes mais

baixas da sociedade à forma escrita, foram tentativas válidas dos escritores indigenistas, mesmo

que estes não fossem índios, de acordo com Cornejo, que, também, “(...) evidencia a

complexidade das relações entre a voz e a letra numa sociedade que, nas primeiras décadas do

século XX, estava conformada por uma população, em sua maioria, analfabeta e bilíngüe.”

(Idem, p.149). O exemplo concreto dessa disparidade de mundos, hispânico e indígena,

perpassada pela oralidade e a escrita encontra-se nas narrativas do “Diálogo de Cajamarca”.

Segundo Antonio Conejo Polar, o começo da heterogeneidade nas literaturas andinas

inicia-se com o episódio ocorrido no dia 16 de novembro de 1932, em Cajamarca, que se tornou

conhecido como “Diálogo de Cajamarca”. Relato que graças ao registro escrito das crônicas

voltadas às descobertas deste “novo mundo” puderam ser revisitados após cinco séculos, “[...]

o tema contado por testemunhos de Cajamarca possui suficiente consistência simbólica para

ser re-contado infinitas vezes (durante toda colônia e até hoje) em crônicas e outros relatos

produzidos por aqueles que tinham à sua disposição uma copiosa tradição escrita e oral sobre

o assunto” (Conejo Polar, 2000, s/p).

A partir do estudo deste material, o crítico literário peruano constatou que dentro das

muitas crônicas que relatavam o fato, havia uma unidade, cujas narrativas relatavam o fato em

que um padre espanhol Vicente Valverde se encontra com o chefe inca Atahualpa e entrega-

lhe um livro sagrado, que seria a Bíblia ou um breviário, pedindo-lhe a submissão para que se

evitasse a guerra a fogo e sangue, entretanto este se nega atirando o então símbolo sagrado do

poder de deus ao chão. De acordo com o autor, entre as muitas versões busca-se uma

justificativa para a ação truculenta de destruição não apenas de uma civilização, mas de todo

um império pelo desígnio divino, para levar-se a evangelização, “ [...] mas é claro que toda esta

cuidadosa armação historiográfica está a serviço de uma precisa interpretação dos

acontecimentos de Cajamarca como parte do cumprimento de um desígnio divino: a

evangelização das Índias.” (Idem)

O pesquisador constatou, ainda, que apesar da existência de vários relatos sobre o

acontecido, em sua maioria de autores hispanos, a única voz dissidente encontrada nas diversas

versões foi a escrita por um indígena mestiço, Garcilaso de la Vega:

O leitor terá notado que, em versões precoces ou mais ou menos tardias,

boa parte do discurso cronístico oferece em pontos básicos um

esquema argumentativo muito homogêneo, se bem que variem detalhes

e sobretudo modificam-se os julgamentos que o episódio de Cajamarca

merece, e embora, como acabo de indicar, algumas versões indígenas

não outorguem maior importância a este acontecimento. A grande voz

dissidente é Garcilaso. (Conejo Polar, 2000, s/p).

Por sua vez, essa voz dissidente, não resulta especificamente pelo fato de ser indígena,

mas, por incluir em seu relato, a cobiça dos espanhóis incapazes de um diálogo de fato,

lembrando que desde o princípio da colonização os indígenas em sua consciência coletiva

acreditavam que os espanhóis fossem deuses, então a justificativa da não submissão do povo

inca ao representante de deus e do rei (Padre Valverde) não é plausível, e assim enfatiza-se o

fato do chefe inca (Atahulpa) ter jogado o livro sagrado ao chão muito mais pela tentativa em

buscar, nas versões dos cronistas hispanos, inocentar a violência dos colonizadores e o saque

das riquezas do império Inca. Como explica Conejo Polar, será este o diferencial da narrativa

de Garcilaso:

Não é o caso de analisar a complexa versão garcilasiana (que resumi

em excesso), mas convém anotar alguns pontos. Em primeiro lugar,

Garcilaso tem especial interesse em indicar que não houve

propriamente conquista, porque a autoridade do Rei e a verdade do

catolicismo foram (ou puderam ser) livremente aceitas pelos índios,

empenho que é ainda mais enfático em Guamán Poma e outros

cronistas índios, com o acréscimo de que o ato principal da conquista

– seu cume heróico – reduz-se a uma explosão de cobiça dos espanhóis

incapazes mesmo de esperar que termine o “diálogo” entre Atahualpa

e Valverde [...]. Finalmente, e é o que me interessa sublinhar, a versão

de Garcilaso retira qualquer importância ao livro e instala

integralmente o drama de Cajamarca no horizonte da pura oralidade. ”

(2000, s/d).

Além de ser modelo da relação deste mundo díspar, há na escrita do Inca Garcilaso a

presença nítida da transculturação. O jovem já não é apenas índio, nem é totalmente hispano,

mas a mescla de ambos, sofrendo o que Ortiz chama de desculturação, a perca de parte de sua

cultura; e, por meio da inserção da outra, ao fazer o uso escrita e da língua espanhola para

descrever a versão indígena, resulta a neoculturação, ou, uma nova cultura, fruto dessa

mestiçagem.

Temos também a presença da heterogeneidade, porque, assim como as Crônicas do

Novo Mundo constituíam as primeiras manifestações de heterogeneidade, decorrentes do

caráter fundador, nas quais se inscrevem dois universos de confronto (ORTIZ G., 2005, p.148),

o Diálogo de Cajamarca também o constitui. Contudo, os processos da transculturação e da

heterogeneidade passaram a ser discutidos e compreendidos apenas recentemente, assim como,

a apreensão da importância da catástrofe de Cajamarca, “(...) fato e símbolo da destruição não

só do império, mas da ordem de um mundo, embora esses significados só fossem

compreendidos socialmente com o correr dos anos.” (CORNEJO, 2000).

O processo transculturador, a disparidade de mundos, em “Los rios profundos” de José

Maria Arguedas

Outro exemplo resultante do processo de transculturação dessa disparidade de mundos, entre o

colonizador hispânico e o nativo indígena, encontra-se na narrativa de José Maria Arguedas, “Los rios

profundos”, em que são perceptíveis três modos de transculturação, uma na arquitetura, outra na língua

e ainda outra, na religiosidade. De acordo com David Sobrevilla, Arguedas em seu romance “Los Rios

Profundos” recriou a língua espanhola, a fim de sugerir a sintaxe quéchua, elaborando uma estrutura

literária com dois narradores principais com registros linguísticos próprios: a história e o mito, e por

fim evidenciou a coerência e a beleza do mundo andino, além de manifestar suas próprias convicções

políticas, cuja adesão era socialista (2001, p. 23).

Durante a narrativa, o menino Ernesto, protagonista da novela, está caminhando com seu pai

na cidade de Cuzco. Nela observa algumas construções de casa e das ruas, e vê também uma catedral.

Entre perguntas realizadas pelo garoto e respostas dadas pelo seu pai, o narrador – onisciente, mas não

totalmente, pois relata apenas o que o menino poderia conhecer - vai descrevendo a mescla inca e

hispano nas construções avistadas pelo garoto, como no seguinte caso, onde nota a presença de uma

muralha de pedra edificada conforme a cultura inca e a parede branca de origem cultural espanhola,

dividindo as partes como se fossem dois andares, “La construción colonial, suspendia sobre la murralla,

tenia la apariencia de um segun piso. Me había olvidado de Ella. En la calle angosta, la pared española,

blanqueada, no parecía servir sino para dar luz al muro”. (ARGUEDAS, p. 07)

Logo mais, o garoto vê uma catedral e as torres da igreja, na qual o muro também era construído

de pedras e haviam serpentes esculpidas na parte superior da porta, denotando novamente a presença

da mescla das culturas presentes na arquitetura. Intrigado, quer saber quem habita o lugar, seu pai

explica que ali (catedral) ninguém vive somente no local chamado Acllahuasi (atrás dos altos muros de

pedras), onde moram as monjas de Santa Catalina, longe, enclausuradas.

O menino vai com o pai à igreja, mas não ouvem a missa, saem e prosseguem viagem. Apesar

da intervenção da cultura hispânica, para Ernesto sua relação o seu encanto com a natureza não se esvai,

assim como para seus ancestrais, ela possui vida, as pedras cantam o rio canta:

“El viajero oriundo de las tierras frías se acerca al río, aturdido,

febril, con las venas hinchadas. La voz del río aumenta; no ensordece,

exalta. A los niños los cautiva, les infunde presentimientos de mundos

desconocidos. Los penachos de los bosques de carrizo se agitan junto

al río. La corriente marcha como a paso de caballos, de grandes

caballos cerriles.

—¡Apurtmac tnayul ¡Apurímac tnayul —repiten los niños de habla

quechua,con ternura y algo de espanto.” (ARGUEDAS, p.18).

A língua quechua permanece, intercalada com a língua espanhola, porém, para determinadas

situações, somente a língua nativa poderá expressar determinadas relações ou sentimentos como o nome

para o canto/ som produzido pela cachoeira do rio, ¡Apurtmac tnayul ¡Apurímac tnayul.

Se para o colonizador o deus era cristão, homenageado por grandiosas obras e ouro, para os

incas os seus deuses eram a provindos da natureza, que lhes proporcionava a vida e sobrevivência,

devendo ser respeitada e conservada. Nesse sentido, enquanto para Ernesto a natureza era sagrada,

intocável e admirável, para os meninos do povoado vizinho onde se plantavam trigais, essa relação do

homem com a natureza dava-se de certo modo violento, parecendo muitas vezes que esta fosse sua

inimiga, o que representa um choque enorme entre as culturas, “En el pueblo del que hablo, todos los

niños estaban armados con hondas de jebe; cazaban a los pájaros como a enemigos de guerra; reunían

los cadáveres a la salida de las huertas, en el camino, y los contaban: veinte tuyas, cuarenta chihuacos,

diez viuda pisk'os.” (ARGUEDAS, p. 21).

E assim, o autor de “Los rios profundos” tecerá em sua narrativa um mundo de contradições.

Através da memória do protagonista, relata-se o conflito cultural vivenciado pelo menino, os valores

culturais e simbólicos de duas culturas totalmente distintas, entretanto que acabam se entrecruzando e

passam a viver esse confronto no dia a dia, sendo obrigados a aceitarem-se mutuamente.

“La India” Gabriela Mistral: de aborígine ao primeiro Prêmio Nobel de Literatura da

América Latina

Conhecida como Gabriela Mistral, a poeta Lucila Godoy Alcayaga, tornou-se uma

figura renomada nas artes literárias, sendo o primeiro(a) escritor(a) Latino Americano(a) a

receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1945. Porém, somente teve seu trabalho reconhecido

em seu país muito mais tarde, conquistando em 1951 o Prêmio Nacional de Literatura. A

princípio, foi renegada por muitos autores, sendo chamada de velha, mediocre e retardatária,

como explica o escritor Gonzalo Rojas: “Mis compañeros del 38 se burlaban y, sin leerla, le

decían vieja novecentista y retardataria; pese a que ese mismo año se estaba publicando en

Buenos Aires Tala, una obra maestra”. (ROJAS, 2010, p. XVII).

Rojas aponta ainda que a poetisa “(...) habiendo vivido en las vanguardias, no se

encandiló con las vanguardias sino más bien se quedo oyendo sin presa la lengua oral de sus

paisanos de América con arcaísmos e murmullos, como Teresa de Ávila (...)” (Idem, p. XVII).

Assim, Gabriela deixou marcas da sua origem aborígine em seus textos e, conforme explica

Adolfo Castañon, integrante da academia mexicana, ficou conhecida como “a Índia”, não

apenas por sua escrita, mas por seus traços físicos, “A Gabriela le decian “La India”. Y es la

expresión más americana de la mujer: la mujer aborigen.” (CUADRA apud CASTAÑON,

2010, p.XXIV).

A linguagem utilizada pela poetisa é influenciada por suas raízes, remetendo-se a

formas de uso da comunidade rural, se aproximando do espanhol do século XVI. A leitura

dessa linguagem oralisada nos poemas de Mistral segundo o pesquisador pertencente à

academia chilena, Mario Rodriguez Fernández, necessita da compreensão dos modos de pensar

e agir oralmente, renunciando o modo de pensar racionalmente da cidade letrada:

Para no equivocarse el lector debe abrirse “al otro”, al mundo del mito, del

rito, del carácter mágico de la palabra en la cultural oral. La otredad mistralina

al lector y a este lector privilegiado que es el crítico – renunciar a la

“metafísica” de la escritura, más concretamente el caso de la cultura

latinoamericano, a abandonar la racionalidad de la ciudad letrada para ir al

encuentro de un modo de pensar alternativo. A un espacio otro, que entre

algunos de rasgos, guarda una empatía, presenta una familiaridad con las

plantas, los ríos, la cordillera, los animales que la ciudad escrituraria ha

perdido hace tiempo.” (FERNANDES, 2010, p. 679).

Gabriela, portanto, possui uma relação orgânica com seu povo, resgatando a

linguagem viva de sua comunidade, seja pelas marcas linguísticas ou pelas culturais.

Transitando em um processo denominado de transculturação, no qual ocorre a aceitação,

rejeição, ou mescla dos traços orais e religiosos nativos com a língua e religiosidade europeia.

A transculturação na obra mistralina aparece em especial no agrupamento de poesias sob o

título de “América”, presente no livro “Tala”, nos quais deuses incas, mayas substituem o

deus cristão e a há uma constante presença da natureza americana: “En esta América

redescubierta, el sol y la cordillera toman el lugar del Dios Cristiano y del madre de Dios; lo

judeocristiano se ve substituido explícitamente por lo indoamericano[…] (VALDÉS, 2010, p.

666). Entretanto, não são esquecidas marcas da interferência em contato com a “nova” cultura

ocidental citadas no poema por alusões realizadas por nomes como San Jorge, Jesucristiano,

Arca, Alianza, Pascual.

O eu – lírico em América exalta com nostalgia os tempos idos nos versos que buscam

resgatar a identidade ancestral nativa que fora transformada agora em uma nova identidade

marcada pela influência da nova língua e religião, como exemplo seguem abaixo apenas um

pequeno trecho do poema América:

Sol de los Incas, sol de los mayas,

maduro sol americano

sol que mayas y quichés

reconicieron y adoraron,

y en el que viejos aimaráes

como el ámbar fueron quemados

[...]

Sol de los Andes, cifra nuestra,

veedor de hombres americanos,

pastor ardendo de grey ardendo

y tierra ardendo em su milagro,

que ni se funde pueblos mágicos;

llama pasmado em rutas blancas

guiando llamas alucinados

Raíz del cielo, curador

de los índios alanceados;

brazo santo cuando los salvas,

cuando los matas, amor santo.

Quetzalcóatl, padre de ofícios

de la casta de ojo almendrado,

el moledor de los añiles,

el tejedor de algodón cândido;

los telares de índios enhebras

con colibríes alocados [...]

(G. M., 2010, p. 264)

Conclusão

O processo transculturador e a heterogeneidade são características que marcam a

literatura do continente latino americano. Na tentativa em se designar uma Teoria Literária que

pudesse ser aplicada às literaturas desse “Novo Mundo”, cria-se tais conceitos aplicáveis a esta

literatura composta pela escrita de vários autores que representam as marcas da origem desse

povo latino e a mescla das culturas afro, indígena, europeia e o conflito entre estas, surgindo

assim uma nova literatura. Cunhadas pelo processo transculturador e ao mesmo tempo

heterogêneo, pois assim como se proporcionou uma unidade na literatura pós-colonial, ela

também se apresenta de modo contraditório, já que há uma unidade apesar dela ser plural e

heterogênea, resultando deste modo, em uma riqueza ímpar dessa literatura, contudo, é tão

complexa que fica difícil defini-la.

Entretanto, vale observar que a aceitação desse processo foi prolixa, demorou-se para

compreendê-lo, obras muitas vezes foram rechaçadas. Brilhantes autores foram primeiramente

duramente criticados ou até mesmo negados para depois serem reconhecidos, como é o caso

da poeta chilena Lucila Godoy Alcayaga, conhecida por Gabriela Mistral ou do antropólogo

peruano José Maria Arguedas, que em sua obra “Los rios profundos” praticamente faz uma

autobiografia. E, versões como a crônica de Garcilaso de La Vega acabaram sendo pouco

recordadas, quase esquecidas.

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