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Transculturação e heterogeneidade nas narrativas: “Diálogo de Cajamarca”, de
Garcilaso de La Vega; “Los Rios Profundos”, de José Maria Arguedas e no poema
América, de Gabriela Mistral
Ma. Claudiane Prass - SEED/PR
Resumo: Enunciado pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz, o conceito de transculturação
explica as fases da ação de mudança de uma cultura para outra e se difere do termo aculturação.
Entretanto, o termo passa a ser aplicado pelo crítico uruguaio Ángel Rama, o qual retoma as
definições de Ortiz, ao enfatizar que se trata da perca parcial de uma cultura, a qual sofre a
inserção de outra, surgindo, então, uma nova cultura. Já o conceito heterogeneidade, criado
pelo crítico literário peruano Antonio Conejo Polar, enfatiza a diversidade cultural e plural
Andina, que se estende à América Latina. O autor se focará, em especial, à literatura
indigenista, na qual é possível encontrar a forte presença da heterogeneidade, pois esta
representa com propriedade esse universo de conflitos socioculturais. O exemplo concreto
dessa disparidade de mundos, hispânico e indígena, perpassada pela oralidade e a escrita,
encontra-se na crônica de Garcilaso de la Vega, no “Diálogo de Cajamarca”; na narrativa de
José Maria Arguedas, “Los rios profundos”; e, em Gabriela Mistral, escritora que também
deixou marcas da sua origem em seus textos, e, conforme explica Adolfo Castañon (2010),
ficou conhecida como “a Índia”, não apenas por sua escrita, mas por seus traços físicos.
Palavras chave: Transculturação; heterogeneidade; literatura hispano-americana.
Resumen: Enunciado por el antropólogo cubano Fernando Ortiz, el concepto de
transculturación explica las fases de la acción de cambio de una cultura a otra y se diferencia
del término aculturación. Sin embargo, el término pasa a ser aplicado por el crítico uruguayo
Ángel Rama, donde retoma las definiciones de Ortiz, al enfatizar que se trata de la pérdida
parcial de una cultura, la cual sufre la inserción de otra, surgiendo entonces una nueva cultura.
El concepto heterogeneidad, creado por el crítico literario peruano Antonio Conejo Polar,
enfatiza la diversidad cultural y plural Andina, que se extiende a América Latina, marcadas por
las culturas europeas, indígenas y africanas y por la acción de colonización y neocolonización,
consecuentemente, se enfocará, en especial, la literatura indigenista, en la cual es posible
encontrar la fuerte presencia de la heterogeneidad, pues ésta representa con propiedad ese
universo de conflictos socioculturales. El ejemplo concreto de esta disparidad de mundos,
hispánico e indígena, atravesada por la oralidad y la escritura, se encuentra en la crònica de
Garcilaso de la Vega, en el "Diálogo de Cajamarca"; en la narrativa de José María Arguedas,
"Los rios profundos; y, en Gabriela Mistral, escritora que dejó huellas de su origen en sus textos
y, como explica Adolfo Castañon (2010), quedose conocida como "La India", no sólo por
escrito, sino por sus rasgos físicos.
Palavras-claves: Transculturación; heterogeneidad; literatura hispano-americana.
Reflexão sobre os conceitos de transculturação e heterogeneidade na literatura Latina -
Americana
Ambos os conceitos, tanto o de transculturação como o de heterogeneidade, estão
relacionados à literatura regionalista, a qual se encontra interligada ao processo de
modernização. Entretanto, há um impasse nessa questão de transição cultural, já que o
regionalismo busca resgatar a cultura local, conservando elementos próprios, autóctones e/ou
acrioulados e, a cultura modernizada das cidades pretende unificar/homogeneizar as produções
literárias ou culturais a partir dos parâmetros da cultura urbana e elitista sufocando, assim, as
demais, sendo que “A suposta unidade da cultura modernizadora opõe-se, por outro lado, a
pluralidade das culturas regionais.” (RAMA, s/d, p.226).
Proposto pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz em sua obra “Contrapunteo cubano
del tabaco y el azúcar” (1940), o conceito de transculturação explica melhor as fases dessa
ação de mudança de uma cultura para outra e se difere do termo aculturação, pois, esse consiste
em apenas adquirir uma nova cultura de modo passivo, já o novo vocábulo retrata o processo
que implica a perda parcial, desculturação, e a criação de novos fenômenos culturais, os quais
denomina de neoculturação.(ORTIZ F., 1983, p.90).
O conceito passa a ser aplicado pelo crítico uruguaio Ángel Rama em sua obra
“Transculturação narrativa na América Latina” (1982), onde retoma as definições de Ortiz, ao
enfatizar que se trata da perca parcial de uma cultura, a qual sofre a inserção de outra, surgindo,
então, uma nova cultura. No entanto, o autor acrescenta que há dois processos de
transculturação, a externa, entre as cidades latino-americanas e a metrópole e outra interna,
entre as cidades e as regiões interioranas. Ángel Rama explica que “A cultura modernizadora
das cidades, respaldada nas fontes externas, transfere para o interior da nação um sistema de
dominação” (s/d, p.213), agora, ainda segundo o autor, com o respaldo do uso de instrumentos
como a tecnologia, os quais não proporcionam uma significativa melhora, porém intensifica a
sua submissão. Nesse sentido, mantém-se a antiga dicotomia entre dominação e subordinação,
fruto do processo colonizador da América Latina.
Além de esse processo ser interno e externo, conforme Rama, ele ocorre também em
três níveis: o primeiro nível é linguístico, o segundo é cultural e, o último, é da cosmovisão.
No linguístico, a transculturação ocorre a partir da recriação da linguagem, se antes os dialetos
das diferentes regiões apareciam apenas na fala dos personagens, distinguindo-a da fala culta
do escritor. Agora, a fala regional passa a ser integrada à totalidade do texto, sem
constrangimentos por parte do artista que se apropria desse sistema linguístico e o transforma
esteticamente, pois, “(...) será de seu interesse [do escritor] trabalhar as possibilidades que seu
próprio comportamento linguístico lhe apresenta para construir, a partir dele, uma língua
literária, específica da criação artística” (RAMA, s/d, p.220), assim o autor fala a partir daquela
comunidade linguística. Como exemplo, Rama cita que no Brasil Guimarães Rosa com seu
romance Grande Sertões Veredas representa esse tipo de transição.
Pode-se dizer que a distinção entre os três níveis é tênue, pois, de certo modo se
entrelaçam, principalmente, o nível cultural e o nível cosmovisão. De acordo com Ángel Rama,
o papel do artista será de intermediador, entre o diálogo do regionalismo e do modernismo, ao
se voltarem às culturas regionais. Ao estabelecerem contato com as fontes orais e ao permear
os sentidos mais profundos dos mitos, eles se opõem à dominação e a ação homogeneizadora:
“Em áreas aparentemente submersas, destinadas a ser devoradas pelos processos de
aculturação, surgem grupos de pesquisadores, artistas e escritores que reivindicam valores
locais e se impõem à indiscriminada submissão que lhes é exigida.” (Idem, p.229). O
intelectual, portanto, desempenha paralelamente à cultura o seu papel político e ideológico,
integrando as diferentes expressões culturais:
(...) os escritores da transculturação mantêm-se apegado a seus meios rurais – campo e vilarejo
– conseguindo que as errantes populações do sertão, os adormecidos povoados tropicais da
costa caribenha, as aldeias empinadas da serra peruana ou os abandonados casarios do planalto
mexicano voltem a ser partes legítimas da América Latina, com autenticidade e vigor [...]
evitando o estereótipo folclorista ou crioulista superficial, esse apelo acrescenta uma centelha
à escrita, como a que só nasce de uma apreensão viva do real. (RAMA, s/d, p.232)
A valorização da cultura regional necessita do terceiro nível. Sem o reconhecimento e
a compreensão do universo cognitivo mítico dessas populações locais, ou seja, sem a
‘apreensão viva do real’, as particularidades dessas regiões dificilmente se manteriam. Temos
vários exemplos de autores nesse campo: Gabriel García Marquez possui maior destaque com
a reconhecida obra “Cem anos de Solidão, e, Ruan Rulfo com “Pedro Páramos” é a
representação da mescla desses três níveis.
Já o conceito heterogeneidade, criado pelo crítico literário peruano Antonio Conejo
Polar, enfatiza a diversidade cultural e plural Andina, que se estende à América Latina,
marcadas pelas culturas europeias, indígenas e africanas e pela ação de colonização e
neocolonização. Portanto, “O conceito de heterogeneidade é utilizado justamente para definir
uma produção literária complexa e plural, fruto da convergência conflitiva de pelo menos dois
universos socioculturais diferentes.” (ORTIZ G., 2005, p. 147), consequentemente, o autor se
focará, em especial, a literatura indigenista, na qual é possível encontrar a forte presença da
heterogeneidade, já que esta representa com propriedade esse universo de conflitos
socioculturais.
Garcilaso de La Vega: entre a voz, a letra e o conflito iniciam-se as primeiras
manifestações heterogêneas
Para Cornejo o escritor, também, possui um compromisso político de lutar contra as
formas de opressão, ao enfatizar a diversidade, ao afirmar e defender as diferenças, opondo-se,
assim, a unificação de um sistema literário. Friedhelm Schimdt explica que Cornejo, ainda,
defende a existência de uma pluralidade de sistemas literários em cada país, enquanto, Rama
considerava que a literatura latina apresentava uma unidade, fruto de uma dependência cultural
e da homogeneização estabelecendo, assim, um só sistema literário para América - Latina.
(ORTIZ G., 2005, p. 157).
O que importava para o autor peruano era o resgate de pequenos relatos históricos,
culturais e literários. Desse modo, trazer o cotidiano, incluir a oralidade, a fala das classes mais
baixas da sociedade à forma escrita, foram tentativas válidas dos escritores indigenistas, mesmo
que estes não fossem índios, de acordo com Cornejo, que, também, “(...) evidencia a
complexidade das relações entre a voz e a letra numa sociedade que, nas primeiras décadas do
século XX, estava conformada por uma população, em sua maioria, analfabeta e bilíngüe.”
(Idem, p.149). O exemplo concreto dessa disparidade de mundos, hispânico e indígena,
perpassada pela oralidade e a escrita encontra-se nas narrativas do “Diálogo de Cajamarca”.
Segundo Antonio Conejo Polar, o começo da heterogeneidade nas literaturas andinas
inicia-se com o episódio ocorrido no dia 16 de novembro de 1932, em Cajamarca, que se tornou
conhecido como “Diálogo de Cajamarca”. Relato que graças ao registro escrito das crônicas
voltadas às descobertas deste “novo mundo” puderam ser revisitados após cinco séculos, “[...]
o tema contado por testemunhos de Cajamarca possui suficiente consistência simbólica para
ser re-contado infinitas vezes (durante toda colônia e até hoje) em crônicas e outros relatos
produzidos por aqueles que tinham à sua disposição uma copiosa tradição escrita e oral sobre
o assunto” (Conejo Polar, 2000, s/p).
A partir do estudo deste material, o crítico literário peruano constatou que dentro das
muitas crônicas que relatavam o fato, havia uma unidade, cujas narrativas relatavam o fato em
que um padre espanhol Vicente Valverde se encontra com o chefe inca Atahualpa e entrega-
lhe um livro sagrado, que seria a Bíblia ou um breviário, pedindo-lhe a submissão para que se
evitasse a guerra a fogo e sangue, entretanto este se nega atirando o então símbolo sagrado do
poder de deus ao chão. De acordo com o autor, entre as muitas versões busca-se uma
justificativa para a ação truculenta de destruição não apenas de uma civilização, mas de todo
um império pelo desígnio divino, para levar-se a evangelização, “ [...] mas é claro que toda esta
cuidadosa armação historiográfica está a serviço de uma precisa interpretação dos
acontecimentos de Cajamarca como parte do cumprimento de um desígnio divino: a
evangelização das Índias.” (Idem)
O pesquisador constatou, ainda, que apesar da existência de vários relatos sobre o
acontecido, em sua maioria de autores hispanos, a única voz dissidente encontrada nas diversas
versões foi a escrita por um indígena mestiço, Garcilaso de la Vega:
O leitor terá notado que, em versões precoces ou mais ou menos tardias,
boa parte do discurso cronístico oferece em pontos básicos um
esquema argumentativo muito homogêneo, se bem que variem detalhes
e sobretudo modificam-se os julgamentos que o episódio de Cajamarca
merece, e embora, como acabo de indicar, algumas versões indígenas
não outorguem maior importância a este acontecimento. A grande voz
dissidente é Garcilaso. (Conejo Polar, 2000, s/p).
Por sua vez, essa voz dissidente, não resulta especificamente pelo fato de ser indígena,
mas, por incluir em seu relato, a cobiça dos espanhóis incapazes de um diálogo de fato,
lembrando que desde o princípio da colonização os indígenas em sua consciência coletiva
acreditavam que os espanhóis fossem deuses, então a justificativa da não submissão do povo
inca ao representante de deus e do rei (Padre Valverde) não é plausível, e assim enfatiza-se o
fato do chefe inca (Atahulpa) ter jogado o livro sagrado ao chão muito mais pela tentativa em
buscar, nas versões dos cronistas hispanos, inocentar a violência dos colonizadores e o saque
das riquezas do império Inca. Como explica Conejo Polar, será este o diferencial da narrativa
de Garcilaso:
Não é o caso de analisar a complexa versão garcilasiana (que resumi
em excesso), mas convém anotar alguns pontos. Em primeiro lugar,
Garcilaso tem especial interesse em indicar que não houve
propriamente conquista, porque a autoridade do Rei e a verdade do
catolicismo foram (ou puderam ser) livremente aceitas pelos índios,
empenho que é ainda mais enfático em Guamán Poma e outros
cronistas índios, com o acréscimo de que o ato principal da conquista
– seu cume heróico – reduz-se a uma explosão de cobiça dos espanhóis
incapazes mesmo de esperar que termine o “diálogo” entre Atahualpa
e Valverde [...]. Finalmente, e é o que me interessa sublinhar, a versão
de Garcilaso retira qualquer importância ao livro e instala
integralmente o drama de Cajamarca no horizonte da pura oralidade. ”
(2000, s/d).
Além de ser modelo da relação deste mundo díspar, há na escrita do Inca Garcilaso a
presença nítida da transculturação. O jovem já não é apenas índio, nem é totalmente hispano,
mas a mescla de ambos, sofrendo o que Ortiz chama de desculturação, a perca de parte de sua
cultura; e, por meio da inserção da outra, ao fazer o uso escrita e da língua espanhola para
descrever a versão indígena, resulta a neoculturação, ou, uma nova cultura, fruto dessa
mestiçagem.
Temos também a presença da heterogeneidade, porque, assim como as Crônicas do
Novo Mundo constituíam as primeiras manifestações de heterogeneidade, decorrentes do
caráter fundador, nas quais se inscrevem dois universos de confronto (ORTIZ G., 2005, p.148),
o Diálogo de Cajamarca também o constitui. Contudo, os processos da transculturação e da
heterogeneidade passaram a ser discutidos e compreendidos apenas recentemente, assim como,
a apreensão da importância da catástrofe de Cajamarca, “(...) fato e símbolo da destruição não
só do império, mas da ordem de um mundo, embora esses significados só fossem
compreendidos socialmente com o correr dos anos.” (CORNEJO, 2000).
O processo transculturador, a disparidade de mundos, em “Los rios profundos” de José
Maria Arguedas
Outro exemplo resultante do processo de transculturação dessa disparidade de mundos, entre o
colonizador hispânico e o nativo indígena, encontra-se na narrativa de José Maria Arguedas, “Los rios
profundos”, em que são perceptíveis três modos de transculturação, uma na arquitetura, outra na língua
e ainda outra, na religiosidade. De acordo com David Sobrevilla, Arguedas em seu romance “Los Rios
Profundos” recriou a língua espanhola, a fim de sugerir a sintaxe quéchua, elaborando uma estrutura
literária com dois narradores principais com registros linguísticos próprios: a história e o mito, e por
fim evidenciou a coerência e a beleza do mundo andino, além de manifestar suas próprias convicções
políticas, cuja adesão era socialista (2001, p. 23).
Durante a narrativa, o menino Ernesto, protagonista da novela, está caminhando com seu pai
na cidade de Cuzco. Nela observa algumas construções de casa e das ruas, e vê também uma catedral.
Entre perguntas realizadas pelo garoto e respostas dadas pelo seu pai, o narrador – onisciente, mas não
totalmente, pois relata apenas o que o menino poderia conhecer - vai descrevendo a mescla inca e
hispano nas construções avistadas pelo garoto, como no seguinte caso, onde nota a presença de uma
muralha de pedra edificada conforme a cultura inca e a parede branca de origem cultural espanhola,
dividindo as partes como se fossem dois andares, “La construción colonial, suspendia sobre la murralla,
tenia la apariencia de um segun piso. Me había olvidado de Ella. En la calle angosta, la pared española,
blanqueada, no parecía servir sino para dar luz al muro”. (ARGUEDAS, p. 07)
Logo mais, o garoto vê uma catedral e as torres da igreja, na qual o muro também era construído
de pedras e haviam serpentes esculpidas na parte superior da porta, denotando novamente a presença
da mescla das culturas presentes na arquitetura. Intrigado, quer saber quem habita o lugar, seu pai
explica que ali (catedral) ninguém vive somente no local chamado Acllahuasi (atrás dos altos muros de
pedras), onde moram as monjas de Santa Catalina, longe, enclausuradas.
O menino vai com o pai à igreja, mas não ouvem a missa, saem e prosseguem viagem. Apesar
da intervenção da cultura hispânica, para Ernesto sua relação o seu encanto com a natureza não se esvai,
assim como para seus ancestrais, ela possui vida, as pedras cantam o rio canta:
“El viajero oriundo de las tierras frías se acerca al río, aturdido,
febril, con las venas hinchadas. La voz del río aumenta; no ensordece,
exalta. A los niños los cautiva, les infunde presentimientos de mundos
desconocidos. Los penachos de los bosques de carrizo se agitan junto
al río. La corriente marcha como a paso de caballos, de grandes
caballos cerriles.
—¡Apurtmac tnayul ¡Apurímac tnayul —repiten los niños de habla
quechua,con ternura y algo de espanto.” (ARGUEDAS, p.18).
A língua quechua permanece, intercalada com a língua espanhola, porém, para determinadas
situações, somente a língua nativa poderá expressar determinadas relações ou sentimentos como o nome
para o canto/ som produzido pela cachoeira do rio, ¡Apurtmac tnayul ¡Apurímac tnayul.
Se para o colonizador o deus era cristão, homenageado por grandiosas obras e ouro, para os
incas os seus deuses eram a provindos da natureza, que lhes proporcionava a vida e sobrevivência,
devendo ser respeitada e conservada. Nesse sentido, enquanto para Ernesto a natureza era sagrada,
intocável e admirável, para os meninos do povoado vizinho onde se plantavam trigais, essa relação do
homem com a natureza dava-se de certo modo violento, parecendo muitas vezes que esta fosse sua
inimiga, o que representa um choque enorme entre as culturas, “En el pueblo del que hablo, todos los
niños estaban armados con hondas de jebe; cazaban a los pájaros como a enemigos de guerra; reunían
los cadáveres a la salida de las huertas, en el camino, y los contaban: veinte tuyas, cuarenta chihuacos,
diez viuda pisk'os.” (ARGUEDAS, p. 21).
E assim, o autor de “Los rios profundos” tecerá em sua narrativa um mundo de contradições.
Através da memória do protagonista, relata-se o conflito cultural vivenciado pelo menino, os valores
culturais e simbólicos de duas culturas totalmente distintas, entretanto que acabam se entrecruzando e
passam a viver esse confronto no dia a dia, sendo obrigados a aceitarem-se mutuamente.
“La India” Gabriela Mistral: de aborígine ao primeiro Prêmio Nobel de Literatura da
América Latina
Conhecida como Gabriela Mistral, a poeta Lucila Godoy Alcayaga, tornou-se uma
figura renomada nas artes literárias, sendo o primeiro(a) escritor(a) Latino Americano(a) a
receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1945. Porém, somente teve seu trabalho reconhecido
em seu país muito mais tarde, conquistando em 1951 o Prêmio Nacional de Literatura. A
princípio, foi renegada por muitos autores, sendo chamada de velha, mediocre e retardatária,
como explica o escritor Gonzalo Rojas: “Mis compañeros del 38 se burlaban y, sin leerla, le
decían vieja novecentista y retardataria; pese a que ese mismo año se estaba publicando en
Buenos Aires Tala, una obra maestra”. (ROJAS, 2010, p. XVII).
Rojas aponta ainda que a poetisa “(...) habiendo vivido en las vanguardias, no se
encandiló con las vanguardias sino más bien se quedo oyendo sin presa la lengua oral de sus
paisanos de América con arcaísmos e murmullos, como Teresa de Ávila (...)” (Idem, p. XVII).
Assim, Gabriela deixou marcas da sua origem aborígine em seus textos e, conforme explica
Adolfo Castañon, integrante da academia mexicana, ficou conhecida como “a Índia”, não
apenas por sua escrita, mas por seus traços físicos, “A Gabriela le decian “La India”. Y es la
expresión más americana de la mujer: la mujer aborigen.” (CUADRA apud CASTAÑON,
2010, p.XXIV).
A linguagem utilizada pela poetisa é influenciada por suas raízes, remetendo-se a
formas de uso da comunidade rural, se aproximando do espanhol do século XVI. A leitura
dessa linguagem oralisada nos poemas de Mistral segundo o pesquisador pertencente à
academia chilena, Mario Rodriguez Fernández, necessita da compreensão dos modos de pensar
e agir oralmente, renunciando o modo de pensar racionalmente da cidade letrada:
Para no equivocarse el lector debe abrirse “al otro”, al mundo del mito, del
rito, del carácter mágico de la palabra en la cultural oral. La otredad mistralina
al lector y a este lector privilegiado que es el crítico – renunciar a la
“metafísica” de la escritura, más concretamente el caso de la cultura
latinoamericano, a abandonar la racionalidad de la ciudad letrada para ir al
encuentro de un modo de pensar alternativo. A un espacio otro, que entre
algunos de rasgos, guarda una empatía, presenta una familiaridad con las
plantas, los ríos, la cordillera, los animales que la ciudad escrituraria ha
perdido hace tiempo.” (FERNANDES, 2010, p. 679).
Gabriela, portanto, possui uma relação orgânica com seu povo, resgatando a
linguagem viva de sua comunidade, seja pelas marcas linguísticas ou pelas culturais.
Transitando em um processo denominado de transculturação, no qual ocorre a aceitação,
rejeição, ou mescla dos traços orais e religiosos nativos com a língua e religiosidade europeia.
A transculturação na obra mistralina aparece em especial no agrupamento de poesias sob o
título de “América”, presente no livro “Tala”, nos quais deuses incas, mayas substituem o
deus cristão e a há uma constante presença da natureza americana: “En esta América
redescubierta, el sol y la cordillera toman el lugar del Dios Cristiano y del madre de Dios; lo
judeocristiano se ve substituido explícitamente por lo indoamericano[…] (VALDÉS, 2010, p.
666). Entretanto, não são esquecidas marcas da interferência em contato com a “nova” cultura
ocidental citadas no poema por alusões realizadas por nomes como San Jorge, Jesucristiano,
Arca, Alianza, Pascual.
O eu – lírico em América exalta com nostalgia os tempos idos nos versos que buscam
resgatar a identidade ancestral nativa que fora transformada agora em uma nova identidade
marcada pela influência da nova língua e religião, como exemplo seguem abaixo apenas um
pequeno trecho do poema América:
Sol de los Incas, sol de los mayas,
maduro sol americano
sol que mayas y quichés
reconicieron y adoraron,
y en el que viejos aimaráes
como el ámbar fueron quemados
[...]
Sol de los Andes, cifra nuestra,
veedor de hombres americanos,
pastor ardendo de grey ardendo
y tierra ardendo em su milagro,
que ni se funde pueblos mágicos;
llama pasmado em rutas blancas
guiando llamas alucinados
Raíz del cielo, curador
de los índios alanceados;
brazo santo cuando los salvas,
cuando los matas, amor santo.
Quetzalcóatl, padre de ofícios
de la casta de ojo almendrado,
el moledor de los añiles,
el tejedor de algodón cândido;
los telares de índios enhebras
con colibríes alocados [...]
(G. M., 2010, p. 264)
Conclusão
O processo transculturador e a heterogeneidade são características que marcam a
literatura do continente latino americano. Na tentativa em se designar uma Teoria Literária que
pudesse ser aplicada às literaturas desse “Novo Mundo”, cria-se tais conceitos aplicáveis a esta
literatura composta pela escrita de vários autores que representam as marcas da origem desse
povo latino e a mescla das culturas afro, indígena, europeia e o conflito entre estas, surgindo
assim uma nova literatura. Cunhadas pelo processo transculturador e ao mesmo tempo
heterogêneo, pois assim como se proporcionou uma unidade na literatura pós-colonial, ela
também se apresenta de modo contraditório, já que há uma unidade apesar dela ser plural e
heterogênea, resultando deste modo, em uma riqueza ímpar dessa literatura, contudo, é tão
complexa que fica difícil defini-la.
Entretanto, vale observar que a aceitação desse processo foi prolixa, demorou-se para
compreendê-lo, obras muitas vezes foram rechaçadas. Brilhantes autores foram primeiramente
duramente criticados ou até mesmo negados para depois serem reconhecidos, como é o caso
da poeta chilena Lucila Godoy Alcayaga, conhecida por Gabriela Mistral ou do antropólogo
peruano José Maria Arguedas, que em sua obra “Los rios profundos” praticamente faz uma
autobiografia. E, versões como a crônica de Garcilaso de La Vega acabaram sendo pouco
recordadas, quase esquecidas.
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