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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X DIÁLOGOS ENTRE RAÇA, GÊNERO E LINGUAGEM: A DECLARAÇÃO DA NEGRITUDE DE MULHERES EM GRUPOS ONLINE BRASILEIROS SOBRE TRANSIÇÃO CAPILAR Bianca Assis Oliveira de Paula 1 Resumo: Esta pesquisa pretende compreender a relevância da declaração da negritude na luta contra as estruturas racistas que silenciam as tensões raciais baseadas no mito da democracia racial no Brasil. Assim, tenho como objetivos específicos investigar como as identidades/identificações raciais negras das mulheres são construídas, dialogicamente e pela linguagem, em três grupos privados sobre a transição capilar no Facebook e analisar os efeitos dos protagonismos de mulheres negras nos seus enunciados publicados nestes grupos. Neste sentido, me embasarei em teóricos/as como Césaire (2010), Gomes (2012), Fanon (1989), (Hall, 2003 e 2015), Mbembe (2014) e Munanga (2012). Quanto à metodologia de pesquisa, os instrumentos de geração de dados são postagens publicadas por mulheres negras em três grupos virtuais privados na rede socia mencionada sobre Transição Capilar. A análise de dados se ancora em uma perspectiva discursiva enunciativa da linguagem como proposto por Bakhtin (1997) e Maingueneau (2005). Os resultados iniciais mostram que, potencializada pelas plataformas de interação online, a mobilização destas mulheres em torno dos seus cabelos naturais discursivamente percebido como um dos símbolos de sua negritude-, disputam significados raciais, provocam as estruturas de invisibilização da diversidade estética e agregam outras mulheres para entrar neste processo. Palavras-chave: Negritudes, Identidades, Gênero, Redes Sociais, Análise do Discurso. Este trabalho baseia-se na minha pesquisa de mestrado em processo de elaboração, na qual viso, a partir de um breve levantamento histórico do uso político do termo Negritude, especificamente a autodeclaração de raça dos povos pretos de descendência africana na diáspora em resposta ao racismo 2 , e da importância do movimento da Negritude no Brasil e sua relevância na luta contra as estruturas racistas que silenciam as tensões raciais baseadas no mito da democracia racial do país até os dias de hoje, compreender a potência dos movimentos de Transição Capilar articulados em grupos de interesse no Facebook, de forma que a textura natural crespa e/ou cacheada dos cabelos se configura como um gatilho racial identitário de resistência e de combate ao racismo. O artigo se divide em 6 sessões. Na primeira intitulada “Identidade, racialização e colonialismo” situamos o contexto sócio-histórico em que se produzem os sentidos de identidade e 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER) do CEFET/RJ sob orientação do Dr. Fabio Almeida e coorientação da Dra. Glenda Melo, natural do Rio de Janeiro-Brasil. 2 Tido como crença no postulado da hierarquização entre as raças, que mesmo não possuindo embasamento biológico de comprovação científica, articula-se simbólica e discursivamente de forma dialógica, produzidas e sendo concretamente produtoras de exclusões socioeconômicas a determinados grupos denominados negros, em detrimento de outros que colhem as vantagens desta exploração, os brancos.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

DIÁLOGOS ENTRE RAÇA, GÊNERO E LINGUAGEM: A DECLARAÇÃO

DA NEGRITUDE DE MULHERES EM GRUPOS ONLINE BRASILEIROS

SOBRE TRANSIÇÃO CAPILAR

Bianca Assis Oliveira de Paula1

Resumo: Esta pesquisa pretende compreender a relevância da declaração da negritude na luta contra

as estruturas racistas que silenciam as tensões raciais baseadas no mito da democracia racial no Brasil.

Assim, tenho como objetivos específicos investigar como as identidades/identificações raciais negras

das mulheres são construídas, dialogicamente e pela linguagem, em três grupos privados sobre a

transição capilar no Facebook e analisar os efeitos dos protagonismos de mulheres negras nos seus

enunciados publicados nestes grupos. Neste sentido, me embasarei em teóricos/as como Césaire

(2010), Gomes (2012), Fanon (1989), (Hall, 2003 e 2015), Mbembe (2014) e Munanga (2012).

Quanto à metodologia de pesquisa, os instrumentos de geração de dados são postagens publicadas

por mulheres negras em três grupos virtuais privados na rede socia mencionada sobre Transição

Capilar. A análise de dados se ancora em uma perspectiva discursiva enunciativa da linguagem como

proposto por Bakhtin (1997) e Maingueneau (2005). Os resultados iniciais mostram que,

potencializada pelas plataformas de interação online, a mobilização destas mulheres em torno dos

seus cabelos naturais – discursivamente percebido como um dos símbolos de sua negritude-, disputam

significados raciais, provocam as estruturas de invisibilização da diversidade estética e agregam

outras mulheres para entrar neste processo.

Palavras-chave: Negritudes, Identidades, Gênero, Redes Sociais, Análise do Discurso.

Este trabalho baseia-se na minha pesquisa de mestrado em processo de elaboração, na qual

viso, a partir de um breve levantamento histórico do uso político do termo Negritude, especificamente

a autodeclaração de raça dos povos pretos de descendência africana na diáspora em resposta ao

racismo2, e da importância do movimento da Negritude no Brasil e sua relevância na luta contra as

estruturas racistas que silenciam as tensões raciais baseadas no mito da democracia racial do país até

os dias de hoje, compreender a potência dos movimentos de Transição Capilar articulados em grupos

de interesse no Facebook, de forma que a textura natural crespa e/ou cacheada dos cabelos se

configura como um gatilho racial identitário de resistência e de combate ao racismo.

O artigo se divide em 6 sessões. Na primeira intitulada “Identidade, racialização e

colonialismo” situamos o contexto sócio-histórico em que se produzem os sentidos de identidade e

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER) do CEFET/RJ sob orientação do Dr.

Fabio Almeida e coorientação da Dra. Glenda Melo, natural do Rio de Janeiro-Brasil. 2 Tido como crença no postulado da hierarquização entre as raças, que mesmo não possuindo embasamento biológico de

comprovação científica, articula-se simbólica e discursivamente de forma dialógica, produzidas e sendo concretamente

produtoras de exclusões socioeconômicas a determinados grupos denominados negros, em detrimento de outros que

colhem as vantagens desta exploração, os brancos.

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negritude, seja de forma atribuída impositivamente pelos grupos opressores ou declarada voluntária

e politicamente pelos grupos oprimidos. Na segunda, “Racismo e embranquecimento”, refletimos

sobre a institucionalização do racismo e as violências concretas e simbólicas produzidas por estes na

população negra. Na terceira sessão denominada “Resistência e reexistência”, refletimos sobre as

lutas identitárias travadas pelos movimentos negros e sua auto-reinvenção no sentido de afirmar-se

sócio-politicamente. Na quarta sessão, contextualizamos os grupos do Facebook onde são produzidos

os dados da análise na sessão subsequente, com o intuito de verificar os sentidos de negritude

enunciados por mulheres a partir da (re)descoberta da textura original de seus cabelos crespos e

cacheados. Por fim, encerramos com as considerações finais.

Identidade, racialização e colonialismo

Os grandes tráficos negreiros árabes e europeus entre os séculos VIII e XVIII e a

mundialização da hegemonia ocidental no século XVI, embasados em uma visão racista, fizeram da

perda da autonomia cultural, o avassalamento político e a escravização, problemas que não eram

particularmente raciais, concretamente relacionados e essencializados à condição do negro. No

contexto colonial de expansão das potências europeias além-mar, constroem-se as instituições sociais

e políticas modernas, e cristalizam-se as noções sobre o ser humano, orientadas por noções de raça e

de civilidade, no século XVI, que delimitarão de forma totalitária e naturalizante três compartimentos

geográficos: a Europa branca, a Ásia amarela e a África negra (MOORE, 2010). Em contextos como

o colonial, de encontros entre diferentes povos e de dominação e exploração, observa-se complexas

formas de conservar e/ou transformar e rearticular as identidades dos grupos humanos.

A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo

humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura

para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) E a definição dos outros

(identidade atribuída) tem funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território

contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos,

psicológicos, etc. (MUNANGA, 1994, p. 177-178)

Gomes (2012) articula a compreensão sobre identidade baseando-se em dois intelectuais:

Silvia Novaes e Jacques d'Adesky. Novaes (1993) considera a identidade como um conceito vital

para grupos contemporâneos que o reivindicam, sendo um recurso para criação de um "nós" coletivo

que só pode ser usado no plano do discursivo, visto que a igualdade não pode ser verificada muito

objetivamente, no entanto, configura-se como recurso indispensável ao sistema de representações de

um grupo social. É considerada, também, um instrumento de visibilidade dos grupos submetidos ao

apagamento historicamente, portanto, a identidade não é inata, é uma forma de ser no mundo e nas

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relações, partindo de uma construção sócio-histórica, e não de uma essência. A ênfase na identidade

resultaria da ênfase na diferença. E por outro lado, Jacques d'Adesky (2001) formula a identidade

como interação. Nenhuma identidade pode ser construída no isolamento, pois para ele a ideia de si

necessariamente se soma ao reconhecimento do outro. As identidades (interiores e exteriores) são

formadas em diálogo aberto, dependendo constantemente das relações dialógicas estabelecidas com

outros.

Sobre a questão identitária, alguns dilemas permanecem, pois é um grande desafio

compreender um conceito como a Negritude e sua abrangência vasta e complexa sobre diversos

grupos humanos de africanos no continente e descendentes na diáspora, e para isso, Munanga (2012)

nos ajuda, apontando a articulação dos grupos excluídos pelas estruturas decorrentes do colonialismo

ao formular que a caracterização da identidade cultural de um indivíduo ou grupo se dá por três

fatores: o fator histórico3, o fator linguístico4 e o fator psicológico5.

A busca da identidade negra não é, no meu entender, uma divisão de luta dos oprimidos. O negro tem

problemas específicos que só ele sozinho pode resolver, embora possa contar com a solidariedade dos

membros conscientes da sociedade. Entre seus problemas específicos está, entre outros, a alienação do

seu corpo, de sua cor, de sua cultura e de sua história e consequentemente sua “inferiorização” e baixa

estima; a falta de conscientização histórica e política, etc. Graças à busca de sua identidade, que funciona

como uma terapia de grupo, o negro poderá despojar-se do seu complexo de inferioridade e colocar-se

em pé de igualdade com os outros oprimidos, o que é uma condição preliminar para uma luta coletiva.

A recuperação dessa identidade começa pela aceitação dos atributos físicos de sua negritude antes de

atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e psicológicos, pois o corpo constitui a sede

material de todos os aspectos da identidade. (MUNANGA, 2012, p. 19)

É neste sentido abordado por Munanga, que compreenderemos a importância da organização

das mulheres em grupos online sobre Transição Capilar e a rede de encorajamento e reconstrução da

autoestima e da beleza de um de seus traços negros, que seria a textura crespa e/ou cacheada natural

de seus cabelos, que, não por coincidência, mas por pertencerem a uma sociedade estruturalmente

racista e historicamente exultante de seu progressivo embranquecimento, fora escondido sob alisantes

químicos e físicos por anos a ponto de não lembrarem como são, durante o processo inquietante de

espera para o corte total dos resquícios da química.

A negritude e/ou identidade negra no Brasil, tem sua marca na cor da pele, mas não se delimita

às questões biológicas. A negritude se estabelece em uma história comum de opressão, exploração e

3 Sentimento de continuidade compartilhado – consciência da perda da história na diáspora e necessidade simbólica

de uma África idealizada. 4 Criam-se outras linguagens que constituem identidade: estilos de cabelo e penteado e estilos musicais, por exemplo. 5 Não possui base biológica, mas o compartilhamento por um grupo de condições sócio-economicas e estruturas

sociais historicamente condicionadas.

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desumanização sofrida por povos que a colonização ocidental branca europeia chamou de negros,

destruindo e negando sua cultura. Esta atribuição de raça dada pelo opressor é aprisionante,

objetificante, essencialista e reducionista, enclausurando as pessoas de pele preta, parda e traços

negroides à funções socioeconômicas, psicológicas e culturais pré-estabelecidas e inferiorizantes, não

se estranha, por exemplo, o alvoroço nas redes sociais ao ser divulgada na internet uma foto da

Michelle Obama6, ex primeira-dama dos Estados Unidos, com seus cabelos crespos naturais pela

primeira vez após oito anos em que sua função numa casa chamada “Branca” provavelmente não a

permitisse. Na reflexão de Césaire (2010, p. 108) a negritude não se circunscreveria no campo das

subjetividades particulares, nem na metafísica e nem na filosofia, não é uma pretensiosa concepção

do universo, a negritude é, concretamente, uma maneira de viver a história dentro da história.

O racismo e o embraquecimento

Não é um tópico simples a questão de como uma mulher negra deveria ou não usar seus

cabelos. A questão principal da reflexão não é afirmar como se faz para ser mais ou menos negra,

mas sim, refletir sobre as imposições raciais e de gênero feitas, seja afetivamente, institucionalmente,

simbolicamente ou socio-economicamente aos corpos e cabelos crespos ou cacheados de mulheres

negras, sem que possam ter escolha, seja ela simbólica ou não, como acontece nas constantes recusas

de ofertas de emprego às mulheres sob justificativa de não terem a aparência capilar adequada. No

Brasil, o embranquecimento da população foi institucionalizado, nos séculos XIX e XX, por

legislações e políticas públicas, no sentido de trazer imigrantes europeus para embranquecer a

população para que os traços negroides fossem eliminados ao longo dos anos pela miscigenação,

tornando-a assim, progressivamente com o clareamento da pele, “mais civilizada”. Nesse contexto, a

identidade negra assume caráter não apenas subjetivo e simbólico, mas político, por compreender

uma tomada de consciência da exclusão de um grupo racial da participação na sociedade que ajudou

a construir através do trabalho escravo, além de toda a contribuição cultural, política, econômica e

social dada pela população negra (GOMES, 2012).

Segundo Munanga (1994), é difícil conciliar a projeção ideológica do país por estar presa nas

malhas do mito da democracia racial.

Ao falarmos sobre a questão racial no Brasil, em específico, tocamos em um campo mais amplo.

Falamos sobre a construção social, histórica, política e cultural das diferenças. É o que chamamos de

6 Ver matéria divulgada em 03/04/2017 em https://oglobo.globo.com/mundo/michelle-obama-aparece-em-foto-com-

os-cabelos-ao-natural-21153409

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diversidade cultural. A diversidade cultural está presente em todas as sociedades e a questão racial

brasileira localiza-se dentro do amplo e complexo campo da diversidade cultural. Por isso, refletir sobre

a questão racial brasileira não é algo particular que deve interessar somente às pessoas que pertencem

ao grupo étnico/racial negro. Ela é uma questão social, política e cultural de todos(as) os(as)

brasileiros(as) (GOMES, 2012, p.51)

A hierarquização das diferenças raciais nos contextos de dominação política, econômica e

cultural transforma-se em manutenção de privilégios, portanto, é importante enfatizar que a reflexão

sobre a questão racial não deve ser exclusiva aos negros. Não é a discussão sobre o racismo que acirra

o conflito entre as raças, e sim, o silenciamento que reforça o racismo e a discriminação. Gomes

(2012) reforça ainda que mais do que falar sobre racismo, é preciso se aprofundar em como se fala,

compreender o que se fala, e partir para a ação.

Em meio à enorme paleta brasileira de tons de pardos e pretos, destaca-se a situação dos

cabelos crespos e cacheados alterados quimicamente, independentemente da cor da pele do sujeito,

embora com força avassaladora entre as mulheres negras pretas e pardas, cujo grau de negritude

precisaria ser “atenuado”. É preciso perceber o quanto as características capilares de uma pessoa

trazem em sua carga simbólica tanto a afirmação da subjetividade, quanto a construção identitária

coletiva e ritual, dadas as formas como a materialidade estética dos cabelos revela a aceitação ou

recusa de normas e padrões, os cabelos sinalizam as identidades dos indivíduos nas suas mais diversas

esferas.

É importante relacionar o fenômeno do racismo às formas concretas de modos de viver que

este impõe. O racismo hierarquiza os grupos étnicos baseado em valores inventados por uma elite

dominante do capital, das empresas, da mídia, do governo e da educação que detinha num primeiro

momento, os acessos tecnológicos, realidade que vem sendo alterada com a web interativa chamada

por alguns teóricos de 2.0 como veremos a seguir.

Resistência e Reexistência

O termo resistência sugere uma força que se estabelece contra outra força, com intuito de

neutralizá-la, por isso é muito utilizada ao descrever o movimento dos grupos oprimidos política e

economicamente, como é o caso dos negros. Reexistência, no entanto, é um termo que tem sido muito

utilizado por pensadores latino-americanos com o intuito de descrever o esforço que ultrapassa a

resistência, a sobrevivência por si só: é preciso ir além! Reexistência como a vida que ultrapassa as

barreiras que se lhe impõe, como as águas de um rio que transbordam sobre suas contenções, sendo

a reexistência, neste caso, a possibilidade da população negra de reescrever seus caminhos e libertar-

se dos aprisionamentos impostos.

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A Negritude se consolida como movimento político e estético na década de 1930 pela ação

conjunta dos intelectuais negros Aimé Césaire, da Martinica, Léopold Sédar Senghor, do Senegal, e

Léon-Gontran Damas, da Guiana. Muito embora Césaire fosse um de seus grandes articuladores

teóricos, ele nunca reivindicou a paternidade do conceito, ao invés disso, Césaire afirma que a

Negritude se “pôs de pé” e teve suas bases fincadas pela primeira vez no Haiti, no episódio da sua

revolução ocorrida entre 1791 e 1804.

A Revolução Haitiana foi pioneira na constituição de um contraponto político-teórico inteligível do

Mundo Negro à metavisão racializadora. Lá, elaborou-se pela primeira vez, e de maneira global, uma

resposta do mundo africano escravizado ao mundo ocidental, hegemônico e escravagista. Aquilo que,

hoje, reconhecemos como Negritude foi colocado de maneira radical e inequívoca diante do mundo,

então dominado totalmente pelo Capitalismo predador, expansionista e militarista do século XIX.

O Haiti produz a primeira Revolução radical de essência antirracista, anticolonialista e anti-imperialista.

Um desafio global à proposta monstruosa da desigualdade congênita entre as raças humanas e a

superioridade natural de uma sobre a outra. Ela é o grande divisor de águas da modernidade, relativo à

reivindicação fundamental dos direitos inerentes à condição humana (MOORE, 2010, p.9.)

A Negritude não deveria ser compreendida, portanto, como uma elaboração de alguns

intelectuais, mas como uma ampla, potente e transformadora proposta de ação e de pensamento social

amadurecida tanto no continente africano quanto dos seus descendentes na diáspora. (MOORE, 2010)

Césaire (2010) define a Negritude em três palavras: identidade, fidelidade, solidariedade.

Dizer-se negro é esvaziar uma palavra de seus aprisionamentos pejorativos e ressignificá-la como

fonte de orgulho. A importância das declarações de raça negra a partir dos cabelos naturais nos grupos

estudados se dá porque asssumir a negritude é assumir também o desprezo, neutralizar as agressões

e desenvenenar a cultura para transformá-la em fonte de orgulho ao recarregá-la com um novo

sentido. Negritude como operação de “desintoxicação semântica” e de “constituição de um novo lugar

de inteligibilidade da relação consigo, com os outros e com o mundo.” (CÉSAIRE, 2010 p.53)

Grupos sobre Transição Capilar no Facebook

As produções discursivas de mulheres em processo de Transição Capilar7 e suas identidades

negras são construídas também discursivamente neste processo demarcado por longas trocas de

angústias não apenas em relação às duas texturas diferentes dos seus cabelos durante a espera, mas

às implicações sociais, familiares, de relacionamento, trabalho e desafio aos padrões de beleza

7 Processo pelo qual as mulheres passam ao deixar seus cabelos naturais crescerem para assumi-los como são, e

portanto precisam esperar que as químicas alisantes e relaxantes usados por muitos anos sejam cortadas aos poucos ou de uma vez por todas, ao realizarem o BC (big chop/grande corte)

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eurocêntricos, dúvidas, dicas de cuidados, incentivos, suporte e auto-estima. Estes discursos que

pretendemos analisar são gerados em grupos fechados na rede social Facebook, e para compreender

o contexto do córpus selecionado no âmbito dos gêneros dos discursos (BAKHTIN, 1997/2014), é

fundamental resgatar rapidamente algumas reflexões a respeito das mídias sociais, e das plataformas

online, nas quais os enunciados que serão analisados foram recolhidos e perceber de que maneira as

escolhas de forma e conteúdo presentes nos enunciados, constroem significados e dão pistas a respeito

de seus sentidos.

Os suportes online8 de produção de discursos nos ajudam a compreender as intrínsecas

relações entre a materialidade dos enunciados e suas implicações dialógicas na sociadade, visto que

a linguagem provoca mudanças na comunicação e na construção de sentidos, ao mesmo tempo em

que é afetada por elas. David Barton e Carmen Lee resgatam a ideia de Berker (2005) de

“domesticação da tecnologia” que se refere a como os processos pelos quais as redes sociais como o

Facebook fazem parte das experiências vividas pelas pessoas em suas casas, trabalho, estudos e

família, compartilhando e tendo acesso à fotografias e relatos pessoais uns dos outros; esta

possibilidade de conteúdo autogerado e interatividade é possível devido às construções dos sites na

chamada WEB 2.0. A tecnologia das mídias como a televisão transmitiam notícias e discursos que

mesmo partindo de um enunciador específico, não deixa de ser dialógica, pois se direciona a um

telespectador ativo, entretanto, esta ferramenta da WEB 2.0 permite, através das estruturas de

comunicação online, a troca constante e as construções interativas. Kress (2003) aponta quatro

mudanças silmutâneas decorrentes da tecnologia na vida contemporânea, assim como nas

instituições, nas mídias, na economia e nos processos gerais de globalização. A primeira se refere às

mudanças nas relações de poder social, que desconstroem e reconstroem hierarquias, como veremos

nas postagens selecionadas nos grupos a recorrente prática das mulheres de desafiar os padrões de

beleza eurocêntricos outrora não questionados pela mídia em suas vivências; mudanças na estrutura

econômica, tendo em vista o papel fundamental da informação e da linguagem, como é possível

verificar nos produtos capilares que lidam diretamente com este nicho de mercado, que mudam as

frases de suas embalagens de acordo com o movimento de aceitação dos fios crespos e cacheados

naturais não mais se referindo a estes como fadados a serem “controlados”, “domados” ou

“disciplinados”; mudanças comunicacionais com um deslocamento constante da escrita para as

8 Entendendo como online todas as formas de comunicação utilizadas em dispositivos de rede

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imagens, e por fim a questão das virtualidades tecnológicas, e a adesão das telas em detrimento dos

papéis.

Em suma, a linguagem tem função fundamental nas novas relações contemporâneas, e

partindo da visão discursiva que compreende os enunciados como materialidade e sua impossível

dissociação das relações sociais simbólicas e concretas, pretendemos analisar quais são os sentidos

presentes nos textos destas mulheres que nos permitam perceber como se constroem as alteridades e

identidades de gênero e de raça negra a partir do processo de assumir os cabelos crespos e cacheados

naturais.

Análise

Ressalto as primeiras partes do trabalho quando refletimos sobre os contextos de construção

discursiva das identidades negras brasileiras, do racismo e dos corpos e cabelos enquanto traços

marcantes da racialização, assim como as plataformas online de construção destes enunciados

enquanto gênero do discurso, que são os grupos fechados sobre Transição Capilar no Facebook.

Dentre as postagens coletadas ao longo dos últimos 3 anos (de 2013 a 2016) podemos observar

a recorrência de alguns temas sob os quais classificamos as postagens, são eles: Declaração de Raça

- quando a pessoa faz a associação direta dos seus cabelos naturais à sua negritude, seja com uma

indicação de sempre ter sido, ou de ter “se tornado” negra a partir do corte e ainda em alguns casos,

com a dúvida do seu pertencimento ou não à raça negra, geralmente quando há pouca pigmentação

na pele apesar da crespura dos fios; Liberdade - é importante ressaltar a característica comum ao uso

da palavra “livre” nos enunciados das mulheres, pois em quase sua absoluta maioria de todo o material

coletado, esta palavra é usada após o ápice da razão de ser do grupo, o grande corte, também

conhecido com BC (big chop) e se refere ao corte que elimina de vez as partes com química dos

cabelos. As mulheres usam a palavra “livre” para expressar algumas relações que se criam a partir do

momento que se decide terminar a transição e se desfazer das pontas dos cabelos que ainda possuem

os resquícios da química; Relacionamentos - agrupando as postagens referentes à aceitação e não

aceitação de seus parceiros à sua decisão de mudança tanto da textura, quanto ao comprimento dos

cabelos, que é quase inevitável visto que não são muitas as mulheres que conseguem esperar o cabelo

crescer tanto e o cortam ainda bem curto, as denúncias de machismo e a auto-afirmação das mulheres

que preferem ser quem são a estar com alguém que não as aceita; Trabalho - agrupando as postagens

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relacionadas a perder vagas em entrevistas de emprego, ou de assédio de superiores quanto às suas

aparências não “padronizadas”; Denúncias de Racismo - aparecem em postagens dos temas mais

diversos e geralmente vêm acompanhadas de prints de conversas pessoais ou de postagens de outros

amigos e conhecidos nas suas timelines pessoais e; Motivações para entrar em Transição - onde as

mulheres narram suas histórias, seus incentivos, encorajamentos, fotografias de “antes e depois” e

afins.

Cada tema acima relacionado (declaração de raça, liberdade, relacionamentos, trabalho,

denúncias de racismo e motivações para entrar em transição) renderia uma dissertação inteira, dadas

as profundas implicações e diversidade dos assuntos, portanto, para este trabalho específico,

focaremos no tema Declaração de Raça, para o qual daremos 3 exemplos de postagens e analisaremos

uma delas em seus detalhes.

A abordagem de cada tema se deu a partir do plano discursivo do vocabulário, de forma que

na caixa de busca de assuntos dentro dos grupos, digitei as palavras “raça”, “ser negra”, “negra” e

“negritude” e colhi as postagens dos últimos 3 anos, com a autorização das administradoras do grupo

e das autoras das postagens, para observar quais são as possíveis relações e implicações sociais

presentes nos enunciados e na construção dos sentidos.

As Figuras 1, 2 e 3, abaixo, são reproduções do Facebook e exemplificam o tema sobre a

Declaração de raça:

Vamos analisar o primeiro texto:

“hoje feliz com os elogios e certa de que cabelo cresce”

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O dêitico temporal sinaliza que a partir de um dado momento – hoje - a enunciadora passa a

ser feliz, pois provavelmente antes não era.

Há a possibilidade de o cabelo pequeno/curto ser a razão da não felicidade visto que a

felicidade pode vir tanto da certeza que cabelo cresce, quanto do surgimento de elogios a partir do

“hoje”, logo, do reconhecimento positivo por parte de terceiros dos seus cabelos naturais.

“Minha melhor decisão, foi retornar aos meus cachos...” Compreender a relevância no fator escolha

elucidado pela palavra “decisão” neste rompimento estético com o padrão eurocêntrico colonizador,

sem perder de vista a perspectiva de que um rompimento opcional com a “ditadura dos alisados” não

se transforme numa outra ditadura (de cabelos naturais crespos e cacheados)

“meu natural é vida...”

No início do texto a enunciadora indica os 9 meses que esperou em transição “sem (passar)

química” até os 4 últimos meses desde que fez o “bc” (big chop – grande corte). O enunciado fala

dos desdobramentos desta decisão- os elogios e a constatação de que o cabelo cresce-, portanto, a

“vida” a que se refere quando fala do cabelo natural, pode se opor à falta de vida/vitalidade nos seus

cabelos com química antes de entrar neste processo.

“minha negritude minha melhor escolha...”

Retomando os conceitos de construção discursiva da raça (HALL, 2003 e 2015 e MBEMBE,

2014), e de discurso enquanto ação e materialidade (BAKHTIN, 1997/2014), este enunciado atribui

sentido à negritude a associando aos próprios cabelos naturais crespos/cacheados que são um traço

estético fenotípico, e esta associação permite presumir que é possível ser ou deixar de ser negra a

partir da alteração deste único traço físico. O uso reincidente do termo “minha” demarca uma potura

de identificação, pertencimento. Escolher a negritude é acolher e co-construir um discurso e a própria

identidade.

Considerações finais

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Uma busca por se reconhecer nas diferenças, e na não-identificação com a padronização

ocidentalista mercantilizada cuja globalização facilitou, sendo esta referência discursiva imaginada,

Hall (2003 e 2015) provoca que os grupos não retornam às suas raízes, e sim (re)negociam seus

percursos. Stuart Hall associa a globalização e a modernidade apontando as necessidades dos

diferentes grupos deslocados em espaço e tempo, citando a ideia de tradições inventadas (GILROY,

1994), de invocar uma narrativa original em um passado comum, para desta forma, utilizar a história,

a linguagem e a cultura na produção de uma compreensão do que eles se tornam, e não do que

essencialmente são.

A partir da reflexão presente neste trabalho, partindo da compreensão da formação identitária

de caráter discursivo de grupos pelo viés do que as une e o que as diferencia de outros numa sociedade

globalizada e com fronteiras diluídas, de forma fluida e híbrida, que são as texturas crespas e

cacheadas dos seus fios, queremos ressaltar que os enunciados que envolvem as atitudes estéticas

concretas destas mulheres provocam as estruturas, questionam padrões estéticos eurocêntricos e

monolíticos, disputam significados, resistem às opressões e denunciam os discursos racistas

aprisionantes e mantenedores de opressões estruturantes da sociedade brasileira.

Aceitando-se, a mulher negra em seus mais diversos tons de pele, afirma-se cultural, moral,

física e psiquicamente. Ela se reivindica com a convicção que outrora a fazia admirar e assimilar o

branco. Ela assumirá a cor e a textura capilar negadas e verá nela traços de beleza e de feiura como

qualquer ser humano. A Negritude é fruto também de um desejo urgente de contestar a marginalidade

e descobrir uma identidade, daí a volta enfática às “origens”. A luta não significa necessariamente

um retorno às tradições, mas a construção de uma solidariedade que negue a supremacia colonizadora

em relação ao povo dominado, e a necessidade de identificação tem por finalidade a resolução deste

conflito. A luta por esta identificação deve ultrapassar o indivíduo e se engajar no movimento das

massas, de forma que se questione a própria estrutura de dominação em sua globalidade.

Referências

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BARTON, David; LEE, Carmen. Linguagem online: textos e práticas digitais; tradução Milton

Camargo Mota. Ed. 1. São Paulo, Parábola Editorial, 2015

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre a negritude. Carlos Moor (org.). Belo Horizonte: Nandyala, 2010.

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GOMES, Nilma Lino. MOVIMENTO NEGRO E EDUCAÇÃO: RESSIGNIFICANDO E

POLITIZANDO A RAÇA. In Revista Educação e Sociedade, v. 33. Nº 120, jul-set, 2012.

HALL, Stuart. A identidade em questão e Nascimento e morte do sujeito moderno. In: A

identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da silva e Guacira Lopes

Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.

HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Organização Liv Sovik. Tradução

Adelaine La Guardia Resende [et all]. Belo Horizonte. Editora da UFMG, 2003

MBEMBE, Achile. Crítica da Razão Negra. Lisboa, 2014. Antígona.

MUNANGA, Kabengele. Negritude. Usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

Dialogues between race, gender and language: The declaration of women's blackness in

Brazilian online groups about Hair Transitioning Astract: This research intends to understand the relevance of the declaration of blackness in the

struggle against racist structures that silence racial tensions based on the myth of racial democracy in

Brazil. Thus, my objectives are to investigate how black racial identities/identifications of women are

built, dialogically and through language, in three private Brazilian groups about hair transitioning on

Facebook, and analyze the effects of the black women protagonisms in their statements published in

these groups. In this sense, I will be based on theoreticians such as Césaire (2010), Gomes (2012),

Fanon (1989), (Hall, 2003 and 2015), Mbembe (2014) and Munanga (2012). As for the research

methodology, the data generation tools are posts published by black women in three private virtual

groups in the social network, mentioned above, about Hair Transitioning. The data analysis is based

on an enunciative and discursive perspective of language as proposed by Bakhtin (1997/2014). Partial

results suggest that powerment provided by online interaction platforms and the mobilization of these

women around their natural hair - discursively perceived as one of the symbols of their blackness-,

compete for racial meanings, provoke the racist structures that cause invisibility or pejorativization

of aesthetic diversity and encourages other women to enter this process.

Keywords: Blackness. Hair Transitioning. Speech.