Diário do Hospício - Prefácio

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O CEMITÉRI O DOSVIVOS: TESTEMUNHO E FICÇÃO Veio-me, repentinamente, um horror à sociedade e à vida; uma vontade de absoluto aniquilamento, mais do que aquele que a morte traz; um desejo de perecimento totalda minha memória na terra; um desespero por ter sonhado e terem me acenado tanta grandeza, e ver agora, de uma hora para outra, sem ter perdido de fato a minha situação, cair tão, tão baixo, que quase me pus a chorar que nem uma criança. O cemitério dos vivos Embora a literatura brasileira já conte com um alto número de memórias e escritos autobiográficos,são raras as obras que possam valer como testemunhos diretos e coerentes de um estado de opressão e humilhação. Este é o caso do D iário do H ospício de Lima Barreto. O que me impressiona é o efeito de serena lucidez que sai destas páginas escritas em um asilo de alienados.Lima Barre- to,internado no casarão da praia Vermelha no dia de N atal de ,mostra-se consciente dos motivos que o arrastaram àque- la situação de extrema abjeção social: D e mim para mim,tenho certeza que não sou louco;mas devi- do ao álcool,misturado com toda espécie de apreensões que as [ 11 ]

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O CEMITÉRIO DOS VIVOS:TESTEMUNHO E FICÇÃO

Veio-me, repentinamente, um horror à sociedade e à vida;

uma vontade de absoluto aniquilamento, mais do que aquele que a morte traz;

um desejo de perecimento total da minha memória na terra;

um desespero por ter sonhado e terem me acenado tanta grandeza,

e ver agora, de uma hora para outra, sem ter perdido de fato a minha situação,

cair tão, tão baixo, que quase me pus a chorar que nem uma criança.

O cemitério dos vivos

Embora a literatura brasileira já conte com um alto número

de memórias e escritos autobiográficos, são raras as obras que

possam valer como testemunhos diretos e coerentes de um

estado de opressão e humilhação. Este é o caso do D iário do

H ospício de Lima Barreto.

O que me impressiona é o efeito de serena lucidez que sai

destas páginas escritas em um asilo de alienados. Lima Barre-

to, internado no casarão da praia Vermelha no dia de N atal de

, mostra-se consciente dos motivos que o arrastaram àque-

la situação de extrema abjeção social:

D e mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devi-

do ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as

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dificuldades de minha vida material há seis anos me assoberbam,

de quando em quando dou sinais de loucura: deliro.

A s primeiras anotações do Diário do Hospício datam de de janei-ro de , quinze dias depois de sua entrada no manicômio. A linguagem é transparente, o andamento da prosa é moderado, aparentemente sem surpresas, o que não prejudica a densidade de observação e pensamento crítico que pulsa em cada frase.

Observação, em primeiro plano. O “alienado” olha com aten-ção analítica o espaço onde o querem encerrar a polícia e o apa-relho psiquiátrico da República Velha na capital da belle époque:

Não me incomodo muito com o H ospício, mas o que me aborrece

é essa intromissão da polícia na minha vida.

Desde o início dos seus apontamentos Lima Barreto mostra que a polícia é um instrumento que serve de veículo para encami-nhar o suposto demente a um lugar apartado, na medida em que ele é confundido com o marginal. Por algum tipo de comporta-mento considerado anormal, deve ser retirado da sociedade e encerrado em uma espécie de depósito onde os seres “normais” não o vejam nem mantenham com ele qualquer contato. O apa-relho policial aparece, mais de uma vez, como a primeira triagem, que separa o joio do trigo social. O joio será em seguida penei-rado: de um lado, o meliante, que vai para a delegacia e a cadeia; de outro, esta figura estranha, paradoxal, quase inclassificável, o réu sem culpa, mas igualmente forçado à reclusão.

Se na cela do presídio o réu era seviciado antes de qualquer sentença do juiz, o que Lima sofreu nas dependências do casa-rão da praia Vermelha foi uma série de violências que ainda se

praticavam na maioria dos hospícios da República Velha. Con-vém lembrar que esse tipo de tratamento não era uma singula-ridade brasileira, pois reproduzia práticas correntes em mani-cômios europeus do século .

A primeira violência se fez ao seu pudor: “Todos nós estáva-mos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor”.

A consciência deste homem obrigado à nudez pública é atra-vessada pela memória do leitor de romance, que lembra nada menos que outra obra de pungente testemunho de humilhação, as R ecordações da casa dos mortos:

Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos mor-

tos. Q uando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio

Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria.

A h! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela.

Faz sentido registrar essa capacidade do intelectual que con-segue relativizar o seu vexame comparando-o com afrontas suportadas por seus ídolos distantes, mas feitos próximos pela ação mediadora da memória. É por força dessa mesma disposição de pensar que o escritor Lima Barreto, jogado no meio de loucos indigentes, ora nu, ora coberto de trapos, enca-ra sem sombra de sujeição o médico do hospício, o homem a quem a sociedade atribuíra o direito de decidir da sua reclusão naquele depósito de seres... anormais.

R aul Pompeia desmistificara no Ateneu a propaganda pedagógi-ca do colégio mais afamado e moderno do Império: o seu romance fez contraideologia solitária em um campo arado pelas certezas do progresso do século investidas na educação. Cruz e Sousa, curvado sob o peso de preconceitos de cor, lançara um repto

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à pseudociência racista hegemônica no seu tempo. Lima Barreto, que pertence à geração pós-abolicionista da Primeira República, enfrenta com o mesmo desassombro e a mesma solidão a roti-na carcerária solidamente apoiada em velhos modelos europeus que resistiam às mudanças das novas teorias psiquiátricas.

Analisando com frio distanciamento as pretensões científi-cas de um alienista do hospício, Henrique Roxo, diz o nosso memorialista:

Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de

certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda outra ativi-

dade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato

por si. Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir,

em levantar um pouco o véu do mistério – que mistério! – que há

na especialidade que professa. Lê os livros da Europa, dos Esta-

dos U nidos, talvez; mas não lê a natureza.1

O texto fala por si na sua ácida clareza. Ao lado da arrogância clínica, marca registrada da autossuficiência de boa parte dos psiquiatras

1. Em crônica escrita para a Careta, em de outubro de , quatro anos antes da

internação que deu origem a este Diário do Hospício, Lima Barreto já fazia a sátira

dos alienistas rotuladores dos chamados doentes mentais. Em “As teorias do dou-

tor Caruru”, o cronista fala de um subdiretor do M anicômio Nacional, autor de

O s caracteres somáticos da degenerescência, que repetia teorias de Lavater e de G all.

Sintomaticamente, o doutor Caruru se vê às voltas com um “exemplar típico de

dipsomaníaco, de degenerado superior”: trata-se de um jovem pintor que estreara

brilhantemente, mas cuja carreira tinha sido interrompida pela “mais desordenada

boêmia”. A crônica tem um quê indisfarçável de autobiográfico, tendo sido escrita

pouco depois da primeira internação de Lima no Hospício Nacional, entre agosto e

outubro de . Ao mesmo tempo, inscreve-se na sátira aos doutores brasileiros

e às suas pretensões de onisciência. Cf. Lima Barreto, Toda crônica, org. Beatriz

Resende e Rachel Valença. Rio de Janeiro: Agir, , v. , pp. - .

do século passado, Lima aponta o desinteresse em face do drama individual, do fato em si ou, com palavra mais abrangente, da natureza. O doutor Roxo não chega perto do corpo e da alma do homem que sofre e que está diante dele; como alienista, só tem duas certezas, o manual que leu no curso médico e o manicômio no qual deposita todas as presunções da sua terapia.

M as é de maneira indireta que Lima dirá o seu pensamento, atribuindo ao irmão as convicções que entrevê no alienista:

Depois, disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que

tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do Hospício. Creio

que ele não gostou.

Nem tudo é crítica acerba. O observador social percebe certo clima de camaradagem e tolerância que aproxima os enfermei-ros, “homens rústicos, os portugueses, mal saídos da gleba do M inho, os brasileiros, da mais humilde extração urbana”, que tratam com resignação e delicadeza os doentes e suas manias. Abre-se ao leitor de hoje um quadro de sociabilidade popular, no qual talvez o profissionalismo ainda não congelara as rela-ções cotidianas mesmo dentro de uma instituição regida por uma ciência que se desejava asceticamente impessoal.

Voltando a analisar um dos alienistas, reponta a veia satírica:

Não lhe tenho nenhuma antipatia, mas julgo-o mais nevrosado

e avoado do que eu. É capaz de ler qualquer novidade de cirurgia

aplicada à psiquiatria em uma revista norueguesa e aplicar, sem

nenhuma reflexão preliminar, num doente qualquer. É muito

amante de novidades, do vient de paraître, das últimas citações

científicas ou que outro nome tenham.

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Nesse contexto de interações entre o paciente e o psiquiatra, em que prevalece o distanciamento crítico, chama a atenção um momento de excepcional simpatia. O encontro do inter-nado com o diretor do Hospício, Juliano Moreira, alienista de grande prestígio no primeiro quartel do século , dá-se em um clima de cordialidade que suscita no memorialista ressonâncias afetivas intensas. No Diário do Hospício, série de apontamentos que abre o livro, Lima Barreto anotou:

Na segunda-feira, antes que meu irmão viesse, fui à presença do

doutor Juliano Moreira. Tratou-me com grande ternura, pater-

nalmente, não me admoestou. Fez-me sentar a seu lado e pergun-

tou-me onde queria ficar. Disse-lhe que na Seção Calmeil. Deu

ordens ao Sant’Ana e, em breve, lá estava eu.

Em O cemitério dos vivos, o narrador, travestido em personagem, aprofunda o sentimento que aquele encontro lhe tinha inspirado:

Conhecia perfeitamente o diretor e travei conhecimento com ele

espontaneamente. Havia em mim uma atração para ele e eu me

espantava que ele pudesse, sem barulho, mansamente, se fazer até

onde estava. Pouco conhecia de sua vida [… ].

Todos gabavam muito o seu talento, a sua ilustração; mas – não era

bem por isso que eu o amava. Nunca lhe tinha lido um trabalho, só

mais tarde me foi dado fazer isso, não tinha nenhuma ilustração no

assunto do seu saber para julgar; mas, conquanto sentisse logo um

homem superior, eu o amava pela sua exalação de doçura.

Trata-se, literalmente, de um episódio, isto é, de um evento sem precedentes nem continuidade ao longo da obra. Creio que nele

se possam discernir ao menos dois significados. O primeiro, que é patente, e cresce de um texto para o outro, diz respeito ao envolvimento afetivo que a benevolência paternal do alienis-ta desencadeou no pobre e fragilizado Lima conduzido, à sua revelia, à casa dos loucos da praia Vermelha. Diante do médi-co famoso, mas despido de vaidade, delicado e terno, o recém-internado responde com um sentimento misto de admiração e amor. O segundo significado pode ser inferido pelo contraste, e tem uma dimensão social ou, mais precisamente, institucional, que vale a pena destacar: o talento e a doçura do diretor do hos-pício (que, em entrevista a um jornal carioca, reproduzida nesta edição, Lima chamaria de “domínios do sr. Juliano Moreira”) não conseguiam alterar algumas práticas vexatórias daquele manicômio, dando a entender que os mecanismos das institui-ções se reproduzem e resistem pela força da inércia às eventuais qualidades de inteligência e coração dos seus dirigentes. Daí o valor dos testemunhos (diretos ou ficcionais) pelos quais a lite-ratura de cunho autobiográfico alcança matizar a história das instituições e de suas ideologias, cujo risco é subestimar o dra-ma das experiências individuais.2

2. Os estudos sobre a psiquiatria brasileira e as instituições manicomiais do começo

do século confirmam a impressão favorável que Juliano Moreira despertou em

Lima Barreto. Trata-se de uma figura rara de intelectual que, mulato e de origem

modesta, batalhou para conquistar o seu lugar como alienista reconhecido por seus

pares. Não compartilhou dos preconceitos arianizantes do seu tempo, discordando

das posições de Nina Rodrigues no tocante às supostas inconveniências da mestiça-

gem na formação do povo brasileiro.

O seu papel progressista é assim sintetizado por Vera Portocarrero em Arquivos

da loucura. Juliano M oreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria (Rio de Janeiro:

Fiocruz, , pp. -): “Juliano Moreira representa o primeiro esforço de elabo-

ração de um corpo teórico científico no Brasil, ao rejeitar a simples compilação das

teorias psiquiátricas francesas. Ele introduziu, no início do século , o modelo [ > ]

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Lançado em meio a seres humanos que deliram, Lima Bar-reto é sempre o escritor de cepa realista que se propõe a “pegar agora no lápis para explicar bem estas notas que vou escreven-do no Hospício”. As marcas de tempo são precisas: “agora” e

“vou escrevendo” remetem ao presente imediato e fazem supor que não tenha corrido intervalo entre a situação objetiva e o ato de transcrevê-la. No entanto, essa imediação é relativa. A simultaneidade das vozes dos dementes com o empenho de redigir o diário não impede o lúcido analista de cavar, na hora

mesma da escrita, outro tempo, o da memória do leitor que um dia se impressionou com as páginas de um livro célebre, O crime

e a loucura, de Maudsley, nome que também ocorrera a Euclides da Cunha no fecho trágico de Os sertões.

A obra de Maudsley, manual conceituado de psiquiatria posi-tiva e moralizante do fim do século, emitia conselhos para evitar

[ > ] teórico e assistencial baseado na psiquiatria alemã, representado pelo eminen-

te psiquiatra Emil K raepelin. Juliano Moreira ocupou, de a , o cargo de

diretor geral da Assistência a Psicopatas do Distrito Federal. Conseguiu a promulga-

ção de uma lei de reforma da assistência a alienados. Remodelou o antigo Hospício

Pedro (retirada de grades, abolição dos coletes e das camisas de força), onde ins-

talou um laboratório. Criou, em , a Colônia de Engenho de Dentro. Instaurou a

admissão voluntária de insanos e assistência heterofamiliar. Em , inaugurou o

primeiro Manicômio Judiciário do Brasil”.

Juliano Moreira teria, igualmente, dado importância secundária aos componen-

tes hereditários (e, no limite, raciais) da loucura, considerando, ao contrário, como

fatores de risco mais ativos o hábito da embriaguez e os efeitos neurológicos da

sífilis e das moléstias degenerativas.

No seu diário, Lima aceita o diagnóstico que apontava o alcoolismo como causa

principal dos seus delírios, mas o relativiza ao dar peso às condições sociais e psico-

lógicas do seu cotidiano.

Quanto à ação humanizadora promovida por Juliano Moreira na vida interna do

hospício, pode-se inferir, pelo testemunho de Lima Barreto, que nem sempre a sua

teoria e as suas boas intenções logravam o efeito desejado.

a loucura: em primeiro lugar, o mandamento de não beber alcoó-licos. “Nunca o cumpri”, diz Lima, “e fiz mal.” A narrativa volta a fazer-se autobiográfica, como se o livro rememorado servisse de ponte entre as notas que falavam da loucura alheia e as palavras de autoanálise de um eu que não só vê e escreve, mas lê, recorda e se julga a si mesmo. Que trama de operações intelectuais sob a aparência do mais despretensioso dos diários!

O título do capítulo, “A minha bebedeira e a minha loucura”, não poderia ser mais transparente. O álcool aí aparece como causa próxima dos delírios que levaram o escritor ao manicômio. A anamnese vai mais longe e toca mais fundo, buscando sondar os motivos do vício, que Lima acaba reduzindo a um só estado crônico de angústia neste passo de notável densidade existencial:

Muitas causas influíram para que viesse a beber; mas, de todas elas,

foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem

explicação, de uma catástrofe doméstica sempre presente. Adivi-

nhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo; previa

moléstias com tratamento caro e eu sem recursos; amedrontava-

me com uma demissão e eu sem fortes conhecimentos que me

arranjassem colocação condigna com a minha instrução; e eu me

aborrecia e procurava distrair-me, ficar na cidade, avançar pela noi-

te adentro; e assim conheci o chopp, o w hisky, as noitadas, amanhe-

cendo na casa deste ou daquele.

Nossa memória vai às Recordações do escrivão Isaías Caminha eaos vexames do mocinho inteligente e brioso batendo de porta em porta à procura de empregos humildes, mas recusados por-que ele trazia na pele o estigma da mestiçagem ainda tão vivo naquela República recente e velha. Não por acaso, as anotações

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que se seguem à autoanálise trazem referências àquele roman-ce, publicado em tempos de entrega à bebida misturada com o desejo insofrido de luta, de polêmica, que se frustrou:

O aparecimento do meu primeiro livro não me deu grande satisfa-

ção. Esperava que o atacassem, que me descompusessem e eu, por

isso, tendo o dever de revidar, cobraria novas forças; mas tal não

se deu; calaram-se uns e os que dele trataram o elogiaram. É inútil

dizer que nada pedi.

Por sua vez, a tiragem em folhetos do Triste fim de Policarpo

Q uaresma pelo Jornal do Commercio foi recebida por um silên-cio confrangedor (“Ninguém o leu”), só compensado, anos depois, pela recepção do livro. Quanto à Vida e morte de M. J.

G onzaga de Sá, também era um pesadelo para Lima, pois “eu […] tinha a íntima certeza de que não encontraria dinheiro com que me fosse possível editar o meu trabalho, especialmen-te o G onzaga de Sá”. Sem o exame dos sentimentos e ressenti-mentos do escritor frustrado, como poderiam os psiquiatras de plantão entender os motivos que levavam o suposto aliena-do a embriagar-se até chegar às raias do delírio?

Conhecendo as simpatias de Lima Barreto pelos ideais revolucionários que irradiaram da Europa para o Brasil no começo do século , o comunismo, na sua versão maxima-lista, e o anarquismo, tem-se curiosidade de saber se teriam entrado, de algum modo, nos delírios persecutórios que moti-varam a sua internação. Há testemunhos indiretos de que Lima foi tomado de pavor ao imaginar-se perseguido por um militar ligado ao marechal Hermes da Fonseca, o tenente Ser-ra Pulquério.

Consta dos registros médicos do Hospício Nacional dos Alienados datados de de agosto de , relativos à sua pri-meira internação:

Interrogado sobre o motivo da sua internação, refere que, indo

à casa de um seu tio em Guaratiba, prepararam-lhe uma assom-

bração, com aparecimento de fantasmas, que aliás lhe causam

muito pavor, nessa ocasião, chegou o tenente Serra Pulquério,

que, embora seu amigo de “pândegas”, invectivou-o por saber

que preparava panfletos contra seus trabalhos na Vila Proletá-

ria Marechal Hermes. Tendo ele negado, foi conduzido à polícia,

tendo antes cometido desatinos em casa, quebrando vidraças,

virando cadeiras e mesas. A sua condução para a polícia só se

fez mediante o convite do comissário que lhe deu aposento na

delegacia até que transferiram-no para a nossa clínica. Protesta

contra o seu “sequestro”, pois vai de encontro à lei, uma vez que

nada fez que o justifique. Nota de certo tempo para cá animosi-

dade contra si, entre os seus companheiros de trabalho, assim

como entre os próprios oficiais do Ministério da Justiça, de

onde é funcionário. Julga que o tenente Serra Pulquério teme a

sua fama, “ferina e virulenta”, pois, apesar de não ser grande escri-

tor, nem ótimo pensador, adota as doutrinas anarquistas e quan-

do escreve deixa transparecer debaixo de linguagem enérgica e

virulenta os seus ideais.3

O Diário, porém, é parco em declarações explicitamente ideo-lógicas. A rigor, uma citação de Plutarco, cuja Vidas paralelas

fora leitura assídua do internado: “As leis são como as teias de

3. Lima Barreto, O cemitério dos vivos. São Paulo: Brasiliense, , p. .

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aranha que prendem os fracos e pequenos insetos, mas são rompidas pelos grandes e fortes”. Lima acrescenta: “observa-ção de um antepassado dos atuais bolchevistas, do cita Ana-cársis, feita a Sólon”. É da relação íntima entre os gestos e palavras dos alienados e as violências e arbítrios da sociedade abrangente que deve ser extraída a matéria da contraideologia rebelde de Lima Barreto.

* * *

Neste ir e vir entre o sujeito e o seu mundo que é o Diário do

Hospício, sempre que o narrador sai de si mesmo o tom é de per-plexidade cognitiva. A interrogação que abre o capítulo “Alguns doentes” exprime o movimento de um espírito que deseja mas não consegue compreender aqueles homens cuja convivência lhe fora imposta: “Que dizer da loucura?”.

A pergunta vem de um espírito agudo que não acredita que haja uma resposta única, científica, para a questão. Ao con-trário, recolhido ao hospício, a sua reflexão tendia a negar os postulados e os quadros classificatórios da psiquiatria deter-minista. O que resultava em um passo nada desprezível na his-tória da compreensão dos internados, descritos por ele como pessoas diferenciadas, e não simples exemplos capazes de ilustrar esquemas já previstos nos tratados de patologia men-tal. Se confrontamos as doutrinas que vigoravam em todo o Ocidente naquele começo do século com a percepção indi-vidualizante de Lima Barreto, não deixaremos de admirar o seu precoce discernimento:

Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas deze-

nas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral

dela. Há, como em todas as manifestações da natureza, indiví-

duos, casos individuais, mas não há ou não se percebe entre eles

uma relação de parentesco muito forte. Não há espécies, não há

raças de loucos; há loucos só.

Quem diz essas palavras certamente não partilharia das certe-zas da psicofisiologia de um Ribot, cujas obras prestigiosas figu-ram na biblioteca de Lima, nem das classificações do psiquiatra brasileiro Franco da Rocha, citado entre as últimas anotações do Diário íntimo (dezembro de ). De passagem, lembro que um leitor do Policarpo Quaresma, o dr. Luís Ribeiro do Vale, escreveu, em , uma tese de doutoramento cujo título era A psicologia

mórbida na obra de Machado de Assis...

O pensamento de Lima Barreto continua, linhas adiante:

Há uma nomenclatura, uma terminologia, segundo este, segundo

aquele; há descrições pacientes de tais casos, revelando pacientes

observações, mas uma explicação da loucura não há.

E, relativizando os procedimentos clínicos que acreditavam cer-car a etiologia da demência acusando fatores hereditários, faz este comentário perspicaz:

Procuram os antecedentes do indivíduo, mas nós temos milhões

deles, e, se nos fosse possível conhecê-los todos, ou melhor, ter

memória dos seus vícios e hábitos, é bem certo que, nessa popu-

lação que cada um de nós resume, havia de haver loucos, viciosos,

degenerados de toda a sorte.

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É provável que, sofrendo em carne e osso a experiência de pas-sar por insano, mas bem consciente de que não o era (“De mim para mim, tenho certeza que não sou louco”), o intelectual Lima Barreto estivesse alcançando uma percepção nítida do caráter toscamente discriminatório de certa psiquiatria determinista do século , cujas explicações, como ele mesmo aponta, se resumiam a nomenclaturas e terminologias, isto é, a classes e palavras. Daí vem o mordente da sua crítica às instituições manicomiais que, na sua lógica perversa, pareciam compensar, pela sinistra igualdade de uma espécie de morte em vida (que é o sequestro), as diferenças de classe que os jazigos e as covas rasas perpetuam nos cemitérios...

Amaciando um pouco, tirando dele a brutalidade do acorrenta-

mento, das surras, a superstição de rezas, exorcismo, bruxarias

etc., o nosso sistema de tratamento da loucura ainda é o da Idade

Média: o sequestro. Não há dinheiro que evite a Morte, quando

ela tenha de vir; e não há dinheiro nem poder que arrebate um

homem da loucura. Aqui no Hospício, com as suas divisões de

classe, de vestuário etc., eu só vejo um cemitério: uns estão de

carneiro e outros de cova rasa.

Quanto às hipóteses que se arquitetavam a respeito da ori-gem da sua loucura, atribuindo-a tão só à bebida, parecem-lhe reducionistas e, quando generalizadas, “absolutamente pueris”. A autoanálise leva-o a sondar outras matrizes para compreen-der os desequilíbrios da mente e do comportamento.

Lima atenta para os percursos surpreendentes da libido (teria lido Freud?):

[...] acode-me refletir por que razão os médicos não encontram

no amor, desde o mais baixo, mais carnal, até a sua forma mais

elevada, desdobrando-se num verdadeiro misticismo, numa divi-

nização do objeto amado; por que – pergunto eu – não é fator de

loucura também?

E adiante, revelando intuição dos condicionamentos sociais, refere-se ao dinheiro e ao desejo de status como desencadeado-res da insanidade:

Por que a riqueza, base de nossa atividade, coisa que, desde meni-

no, nos dizem ser o objeto da vida, da nossa atividade na terra,

não é também a causa da loucura?

Por que as posições, os títulos, coisas também que o ensino

quase tem por meritório obter, não é causa de loucura?

Como em tantas outras passagens, porém, o alvo da pergun-

ta sobre as razões da desrazão só é atingido de modo convincen-

te quando o narrador fala de si mesmo, da sua carreira literária malograda. Por vários motivos, alguns involuntários, entre os quais a má sorte e a estreiteza do meio onde lhe foi dado viver. Nesses momentos de introspecção, O cemitério dos vivos traz ecos das Recordações do escrivão Isaías Caminha, que a crítica elogiosa mas severa de José Veríssimo censurara por ser “per-sonalíssimo”, ou seja, excessivamente autobiográfico:

Desde a minha entrada na Escola Politécnica [em , com

dezessete anos de idade] que venho caindo de sonho em sonho

e, agora que estou com quase quarenta anos, embora a glória

me tenha dado beijos furtivos, eu sinto que a vida não tem mais

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sabor para mim. [...] Esta passagem várias vezes no Hospício e

outros hospitais deu-me não sei que dolorosa angústia de viver

que eu me parece ser sem remédio a minha dor.

Vejo a vida torva e sem saída. [...] Ainda tenho alguma verve

para a tarefa do dia a dia; mas tudo me leva para pensamentos

mais profundos, mais doridos e uma vontade de penetrar no mis-

tério da minha alma e do Universo.

Da mesma matriz do malogro brotam o delírio e a pausada medi-tação existencial.

O ELO ENTRE O TESTEMUNHO E A FICÇÃO

O leitor se surpreenderá ao constatar que, no exato momento em que o depoente entra a escavar o passado e aprofundar a sua “angústia de viver”, o texto confessional cede a um lance de ficção. O testemunho que, até então, parecia pura trans-crição dos apontamentos de um internado, converte-se na matéria romanesca de uma novela inacabada, cujo título será igualmente O cemitério dos vivos. Veja-se de perto a passagem em que se opera a mudança de registro.

Perguntando a si mesmo se, por acaso, não teria sido o amor o fator erosivo da sua existência malograda, o narrador, agora ficcional, responde pela negativa em tom drástico:

Não amei nunca, nem mesmo minha mulher que é morta e pela

qual não tenho amor, mas remorso de não tê-la compreendido,

mais devido à oclusão muda do meu orgulho intelectual; e tê-la-

ia amado certamente, se tão estúpido sentimento não tivesse fei-

to passar por mim a única alma e pessoa que me podiam inspirar

tão grave pensamento.

Li-a e não a compreendi...

Ah! meu Deus!

A biografia de Lima Barreto, que se conhece em detalhe graças a pesquisas meticulosas (de que a obra de Francisco de Assis Barbosa é exemplo notável),4 desmente de maneira cabal a exis-tência de uma esposa ou companheira desse homem solitário, talvez misógino, “limitando-se os seus contactos com as mulhe-res ao convívio com a irmã, também solteira, e aos encontros ocasionais com meretrizes”.5

No entanto, podem-se ler frases soltas em pleno Diário do

Hospício, que prenunciam aquela passagem do depoimento para o discurso ficcional.

Há um indício isolado no quinto capítulo do diário. Alguém irrompe no aposento de Lima e pergunta: “– Quem é aí Tito Fla-mínio?”. Lima, autor do diário, responde imediatamente: “– Sou eu, apressei-me”. É aparentemente inexplicável essa mudança de nome em um contexto francamente autobiográfico.

No capítulo sétimo, aparecia de repente uma figura de “mulher” (no contexto, esposa) já morta:

4. A vida de Lima Barreto (- ), obra fundamental do autor, publicada em .

Recomendo a .a edição, com notas de revisão de Beatriz Resende (Rio de Janeiro:

José Olympio, ).

5. Francisco de Assis Barbosa, “Lima Barreto, precursor do romance moderno”, in Prosa

seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, , p. .

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Falta-me amor ou ter amado. Mas... Minha mulher!

Não posso tratar dela. Não se ama uma morta; e eu não a sou-

be amar em vida.

A figura, depois evocada no romance como “minha mulher que é morta”, significa o salto para o plano do imaginário dado em um texto que respira, do começo ao fim, a idoneidade da tes-temunha ocular. Ao mesmo tempo, é essa aparição-fantasma, que a psicanálise poderia interpretar em termos de � anatos sobrepondo-se a Eros, que abre O cemitério dos vivos, posterior às anotações do hospício:

Quando minha mulher morreu, as últimas palavras que dela ouvi

foram estas, ditas em voz cava e sumida:

– Vicente, você deve desenvolver aquela história da rapariga,

num livro.

A matéria-prima do diário será trabalhada com os recursos da invenção romanesca. Uma esposa à beira da morte, a sombra de um filho de quatro anos que passa quase despercebida, e um casamento consumado sem paixão. Mas o interesse maior, se não exclusivo, do enredo está na história da formação inte-lectual rebelde e autodidata de Vicente, com toda a sua aver-são ao culto bacharelesco, ao status dos doutores “brancos” e à prática do “pistolão”, que vigorava naquela sociedade entre burguesa e tradicional do Rio de Janeiro em plena belle époque.

A novela ficou inacabada. Foi pena, pois a substância auto-biográfica (evidente nos episódios transpostos das páginas do diário) começava a resolver-se em uma prosa enxuta e pensada, só comparável às boas passagens dos romances do

autor levados a termo. De todo modo, impressiona a figura da mulher que morre na primeira frase do livro. E ainda mais intriga a sua última palavra ao marido, a quem pede que escre-va um texto de ficção, que ele apenas esboçara.

O narrador, fixando o olhar da mulher agonizante, diz que a dor nele estampada “não era bem de mulher, mas de mãe amantíssima”. Segue-se a história do casamento, que ele pró-prio chama de singular: uma união provocada pela necessidade premente de apoio de uma jovem desvalida, que toma a inicia-tiva de oferecer-se como esposa a Vicente. Ela o ama deveras, mas ele apenas lhe dedicaria sentimentos muito pouco eróti-cos de estima e compaixão. O desencontro é pungente, mas o fato de não ter sido explorado a fundo leva a suspeitar que a relação homem-mulher foi encoberta (subestimada? recal-cada?) pelo narrador, ao passo que subia ao primeiro plano a amargura do intelectual humilhado na cor e na classe, aqui agravada pelo vexame do encarceramento no Hospício.

As menções a Efigênia têm muito de piedade (“Nunca mais se foi de mim a imagem daquela pobre moça, a morrer, com pouco mais de vinte e cinco anos”) e de arrependimento por não ter reconhecido a tempo a sua agudeza intelectual e a solicitude com que ela se preocupava com a realização do marido como escritor.

Aquele último pedido (“Vicente, você deve desenvolver aquela história da rapariga, num livro”), aparentemente estranho, não fora, na verdade, uma nota isolada. A moça pontuara com maté-rias de literatura o seu casto assédio a Vicente: eram livros de empréstimo, comentários de leituras, convites à ficção e à poesia aos quais o mocinho arredio e meio abstrato dera pouca impor-tância. A figura de Efigênia, que o narrador mostra apagada quan-do viva, ressurgirá como “excepcional” na linguagem do remorso

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impotente do viúvo. A rigor, o diálogo com a mulher não chegara a tomar corpo: se viera de Efigênia o apelo à criação literária, com a nota pungente do último conselho, do lado de Vicente só se conhece a confessada “oclusão muda do meu orgulho intelectual”.

Resta ao leitor a tarefa de desfazer o nó existencial armado por essa combinação de testemunho e ficção. O entreato conjugal de Vicente e Efigênia só é vivido, ou melhor, representado, no regi-me dos fragmentos romanescos de O cemitério dos vivos. A mulher que ama, a princípio desvalida, depois maternal, percebe clara-mente que o amado só tem uma paixão constante, ser escritor e intelectual respeitado, mas a sua compleição moral frágil, vulne-rável, o impede de realizar a obra que o arrancaria do anonimato. Amado, mas não apaixonado, o marido fecha-se na impotência do seu amor-próprio, que a expressão “oclusão muda do meu orgu-lho intelectual” enuncia com precisão. A morte da mulher o punge como um remorso incontornável. Parece que Lima Barreto preci-sava transpor para a esfera do imaginário, no caso, pela invenção de um episódio conjugal frustrante, o seu drama fundamental de saber-se capaz de uma alta produção literária ao mesmo tempo que era oprimido por um conjunto de condições sociais adversas.

* * *

O livro sustenta-se às vezes sob a forma de longa ruminação sobre o significado mesmo da existência quando tudo ao redor do sujeito carece precisamente de sentido. Lembro, a propósito, o quanto rendeu em termos de reflexão um episódio curto mas crucial. Um rapazinho pergunta a Vicente se este fora parar no

hospício por ter cometido algum crime. Ouvindo a resposta pronta e veemente de que fora apenas uma bebedeira a cau-sa da internação, o pequeno delinquente conta com a maior naturalidade que lá estava precisamente por um crime. Essa naturalidade – cândida? isenta de cinismo? – do jovem interna-do, quase um menino, desencadeia no narrador um estado de angústia insuportável: mal-estar que nasce de uma intuição do absurdo de todas as doutrinas éticas ou racionais que procuram magnificar a ordem do universo e o valor da pessoa humana.

Vicente, assim como o Lima Barreto dos depoimentos, diz que frequentara as sessões do Apostolado Positivista onde ouvira as prédicas austeras mas sistematicamente otimistas do sr. Tei-xeira Mendes, como chama o sacerdote nacional da religião da Humanidade. Nos sermões de inspiração comtiana repetiam-se as palavras do mestre confiantes no porvir do Grande-Ser:

O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim; tal é

o caráter fundamental do regime definitivo que o positivismo vem

inaugurar sistematizando toda a nossa existência, moral e social,

por uma combinação inalterável entre o sentimento, a razão e a

atividade. [...] A supremacia necessária da vida afetiva aí se encon-

tra melhor constituída do que antes, conforme a preponderância

universal do sentimento social, que pode diretamente encantar

todo e qualquer pensamento e ato.6

Compare-se a linguagem coesa e assertiva de Comte com o relativo à vontade da dicção de Lima Barreto e até mesmo

6. Auguste Comte, Discours sur l’ensemble du positivisme (). Paris: Flammarion,

, p. .

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o desleixo estilístico da sua redação, traços que não devem impedir o reconhecimento da sua capacidade de passar do caso singular à meditação universalizante, e vice-versa. É prosa de escritor sofrido, carregado de memórias amargas e, ao mes-mo tempo, densamente reflexivo:

O curto encontro com esse rapazola criminoso, ali, naquele pátio,

mergulhado entre malucos a delirar, a fazer esgares, uns; outros,

semimortos, aniquilados, anulados, encheram-me [sic] de um

grande pavor pela vida e de um sentimento profundo da nossa

incapacidade para compreender a vida e o universo.

Lembrei-me, então, dos outros tempos em que supus o univer-

so guiado por leis certas e determinadas, em que nenhuma vonta-

de, humana ou não, a elas estranhas, poderia intervir, leis que a

ciência humana iria aos poucos desvendando... Não sorri inteira-

mente; mas achei tal coisa ingênua e que todo o saber humano só

seria útil para as suas necessidades elementares da vida e nunca

conseguiria explicar a sua origem e o seu destino.

Pensamentos induzidos pelo “grosso espetáculo doloroso da loucura”, e que se somam a outros momentos especulativos a que as leituras de Lima Barreto deram fecundo húmus cultural.

O PROJETO E O TEXTO

Nos últimos dias da sua estada no Hospício Nacional de Aliena-dos, Lima Barreto deu uma entrevista ao jornal carioca A Folha,publicada em de janeiro de .

Louvado então como “o romancista admirável de Isaías

Caminha”, posto que “boêmio incorrigível”, ele revela ao jor-nalista os seus “planos de trabalho”. Mostra-se, em suas pala-vras, satisfeito e pronto a voltar ao mundo. E diz ironicamente que, apesar das restrições à liberdade (“o Hospício é uma pri-são como outra qualquer”), a sua internação estava sendo útil, pois lhe permitia coligir “observações interessantíssimas para escrever um livro sobre a vida interna dos hospitais de loucos”. Não deixa de exortar o jornalista a ler O cemitério dos vivos,

quando saísse em livro. Referia-se provavelmente ao diário e não à novela que receberia o mesmo título. No final da entre-vista, recusa o pedido de adiantar ao jornal suas notas sobre os

“tipos interessantes” que começara a descrever, pois acredita que, feita a revelação, o livro “perderia todo o interesse”.

E Lima Barreto, sorrindo, arrancou do bolso um pedaço de papel:

– Estás vendo? São uns tipos que acabo de jogar.

Há casos em que o texto acabado resulta inferior ao projeto inicial.Aqui deu-se o contrário: o texto inacabado superou os pla-

nos concebidos nos dias da internação. O narrador fez mais que alinhar “tipos interessantes”. Estes comparecem, de fato, mas descritos de modo sumário, esboços de indivíduos que não lograriam subir à categoria de personagens quando trans-postos para o corpo do romance. O escritor não quis ou não pôde desenvolvê-los, justamente porque foi o enigma da loucura, em si, que o atraiu desde os primeiros contatos feitos no pavilhão dos indigentes. Nos loucos o mutismo ou os gritos, os esga-res ou as explosões de violência, o sombrio retraimento ou a familiaridade viscosa – tudo lhe parecia inexplicável, e não é à

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toa que o observador precisasse recorrer, mais de uma vez, à palavra mistério.

Perplexo, o intelectual crítico, cuja obra toda fora uma denúncia da mentira social, teme que os médicos do Hospício o tratem de maneira cega ou arbitrária. Teme principalmente que a ciência livresca que seguem, avessa à ideia mesma de enigma, não lhes permita ter dúvidas, nem lhes faça ver pessoas, mas apenas casos exemplares devidamente catalogados e passíveis das terapias reificadas nos manuais de psiquiatria.

A impotência do internado, que já sofrera o arbítrio dos poli-ciais com seus preconceitos de cor e classe, vê-se, de repente, confrontada com a onipotência do médico. A assimetria é bru-tal e, embora Lima tenha escapado ao risco de virar cobaia de alienistas enrijecidos ou precipitados, a sua crítica guarda um potencial de verdade ainda hoje ameaçador:

O terrível nessa coisa de hospital é ter-se de receber um médico

que nos é imposto e muitas vezes não é da nossa confiança. Além

disso, o médico que tem em sua frente um doente, de que a polícia

é tutor e a impersonalidade da lei, curador, por melhor que seja,

não o tem mais na conta de gente, é um náufrago, um rebotalho

da sociedade, a sua infelicidade e desgraça podem ainda ser úteis à

salvação dos outros, e a sua teima em não querer prestar esse ser-

viço aparece aos olhos do facultativo como a revolta de um deten-

to, em nome da Constituição, aos olhos de um delegado de polícia.

Em relação aos jovens recém-formados, amantes de novidades e pouco dispostos a analisar detidamente seus pacientes, con-fessa que a sua própria condição “de desgraçado” dava-lhe o temor de que o médico

quisesse experimentar em mim um novo processo de curar alcoo-

lismo em que empregasse uma operação melindrosa e perigosa.

Pela primeira vez, fundamentalmente, eu senti a desgraça e o

desgraçado. Tinha perdido toda a proteção social, todo o direito

sobre o meu próprio corpo, era assim como um cadáver de anfi-

teatro de anatomia.

O desrespeito ao que se poderia chamar hoje de direitos míni-mos do cidadão assoma de modo flagrante na fase policial que precede a entrada no hospício. Sempre subsiste alguma coisa de tristemente comum entre o guarda de rua e o guarda do manicômio; a ação violenta de ambos procura apagar o indiví-duo e substituí-lo pelo estereótipo:

A polícia, não sei como e por que, adquiriu a mania das genera-

lizações, e as mais infantis. Suspeita de todo sujeito estrangeiro

com nome arrevesado, assim os russos, polacos, romaicos são para

ela forçosamente caftens; todo cidadão de cor há de ser por força

um malandro; e todos os loucos hão de ser por força furiosos e só

transportáveis em carros blindados.

Leia-se, para conferir esta última frase, a viva descrição da gaiola de ferro gradeada onde Lima-Vicente é conduzido para o manicômio:

É indescritível o que se sofre ali, assentado naquela espécie de

solitária, pouco mais larga que a largura de um homem, cercado

de ferro por todos os lados, com uma vigia gradeada, por onde se

enxergam as caras curiosas dos transeuntes a procurarem descobrir

quem é o doido que vai ali. A carriola, pesadona, arfa que nem uma

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nau antiga, no calçamento; sobe, desce, tomba pra aqui, tomba para

ali; o pobre-diabo lá dentro, tudo liso, não tem onde se agarrar e bate

com o corpo em todos os sentidos, de encontro às paredes de ferro;

e, se o jogo da carruagem dá-lhe um impulso para frente, arrisca-se

a ir de fuças de encontro à porta de praça-forte do carro-forte, a cair

no vão que há entre o banco e ela, arriscando a partir as costelas...

Um suplício destes, a que não sujeita a polícia os mais repugnantes e

desalmados criminosos, entretanto, ela aplica a um desgraçado que

teve a infelicidade de ensandecer, às vezes, por minutos...

Lima Barreto retomaria a narração dessa viagem cruel no conto “Como o ‘homem’ chegou”, dando-lhe um final sinistro: o supos-to demente, um pobre astrônomo amador, é trazido na jaula de Manaus para o Rio de Janeiro e, no trajeto, devorado por abu-tres; é apenas o seu cadáver que chega ao hospício.

Barbárie e civilização costumam alternar-se ou variamente compor-se. O conluio não ocorre só no Brasil, em que pese aos que se comprazem em dar ao país o monopólio do atraso mis-turado com novidades postiças. A denúncia veio da Europa e está presente, apesar das diferenças de horizonte político, em Sw ift, em Schopenhauer, em Burckhardt, em Engels, em Marx, em Dostoiévski, em W alter Benjamin, em Ortega y Gasset, em Simone W eil, em Brecht; e é um dos tópicos mais ardidos da crítica da cultura que escapou aos horrores do nazismo, soube avaliar a tempo os do stalinismo, mas igualmente armou suas antenas para captar os signos de brutalidade, cinismo e eficiên-cia técnica emitidos pela civilização de massas de tipo america-no que prevaleceu no Ocidente a partir da Segunda Guerra.

A carriola de ferro onde enjaularam o pobre bêbado deli-rante levou-o aos trancos a um edifício de equilibradas linhas

neoclássicas. Lima Barreto observou com justeza que a cons-trução do hospício, terminada em , moldou-se “ao gosto do pseudoclássico da Revolução e do Império Napoleônico”. O historiador Pedro Calmon, que escreveu O palácio da Praia Ver-

melha, nos informa que a planta do edifício reproduziu a da Maison Nationale de Charenton, matriz dos hospitais psiquiá-tricos franceses. “O seu arquiteto, Domingos Monteiro” – lem-bra ainda Lima Barreto –, “foi discípulo da antiga Academia de Belas-Artes e certamente do arquiteto Grandjean de Montigny. É de aspecto frio, severo, solene, com pouco movimento nas massas arquiteturais. Custou naquela época cerca de mil e qui-nhentos contos [...]”.

A fachada é ampla, o fundo é proporcional e os remates são cuidadosos. Mas, se deslocarmos o olhar do nobre frontão e das janelas dispostas em perfeita simetria para o pátio da Seção Pinel, o quadro muda, torna-se negro:

Esse pátio é a coisa mais horrível que se pode imaginar. Devido à

pigmentação negra de uma grande parte dos doentes aí recolhidos,

a imagem que se fica dele, é que tudo é negro. O negro é a cor

mais cortante, mais impressionante; e contemplando uma porção

de corpos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem no nosso

pensamento. É uma luz negra sobre as coisas, na suposição de que,

sob essa luz, o nosso olhar pudesse ver alguma coisa.

Em outra passagem, acena para o contraste com a natureza:

Não é mais o dia azul-cobalto e o céu ofuscante, não é mais o

negror da noite picado de estrelas palpitantes; é a treva absoluta, é

toda ausência de luz […].

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A imagem que tudo recobre é de uma grande abóbada de tre-

vas, de negro absoluto. As Luzes do neoclassicismo trazido pela missão francesa no tempo do rei queriam ser racionais e modernas, mas dentro do solene edifício que construíram reinaria uma treva absoluta onde deveria ser encerrada a des-razão do negro e do pobre.

* * *

Havia uma chácara no fundo do hospício. As árvores eram mui-to antigas, pois diziam que d. João , passeando pela praia da Saudade, já as encontrara taludas.

Vicente e outro internado, Misael, que se fizera seu amigo, gostavam de caminhar pelas amendoeiras e por entre as moi-tas de bambus. O narrador imagina que aquelas velhas árvores outrora “destinavam-se a uma remansosa estação de recreio, teriam assistido as festas de junho, bulhentas de foguetes e outros fogos, e iluminadas por fogueiras de cultos esquecidos”. Mas os anos tinham passado, e agora as mesmas grandes jaquei-ras, mangueiras e laranjeiras deviam contemplar a miséria de uma humanidade, “aquela que nos faz outro, aquela que parece querer mostrar que não somos verdadeiramente nada [...]”.

O narrador lança o olhar para o seu passado. O sonho de Vicente nunca realizado fora ter um lar, uma casa sempre a mesma e capaz de transmitir aos moradores as lembranças dos pais e avós, aquelas memórias que criam em cada filho e neto

“raízes fortes no tempo e no espaço” e o sentimento de ser um “elo de uma cadeia infinita”.

Uma horta, um pomar com grandes jaqueiras, mangueiras, laran-

jeiras, abacateiros, sempre foi o meu sonho; e estavam ali aqueles

restos de uma grande chácara, com árvores de mais de meio século

de existência, maltratadas, abandonadas, talvez, de toda a contem-

plação sonhadora de olhos humanos, mas que ainda assim davam

prazer, consolavam aquele sombrio lugar de dor e de angústia.

Por baixo das árvores os doentes descansavam. O cenário tinha mudado, e a natureza, que no delírio de Brás Cubas se mostrava indiferente ao destino dos homens, aparece aos olhos de Vicente como sombra compassiva.

Voltamos pelo mesmo caminho. Olhei o céu tranquilo, doce, de um

azul muito fino. Não se via o sol, que descambava pelas nossas costas.

Lima Barreto teria amado estes versos de Rosalía de Castro, cristãmente pagãos no seu amor pelos desvalidos enlaçado ao culto da divina Natureza:

N atureza formosa,

eternamente a mesma,

dizei aos loucos, aos mortais dizei

que eles não perecerão.7

Alfredo Bosi

7. Rosalía de Castro, “Abri as frescas rosas...”, in Poesia, trad. Ecléa Bosi, .a ed. São

Paulo: Brasiliense, .