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DIFERENÇA, CULTURA E TERRITÓRIOS EDUCATIVOS: UMA
PERSPECTIVA INCLUSIVA
Este artigo tem como objetivo apresentar a pesquisa “A Escola e suas transform(ações)
a partir da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva”. Essa pesquisa foi
proposta pelo Ministério da Educação (MEC) e coordenada pelo Laboratório de Estudos
e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED), da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), em parceria com o Instituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo
(IPDSC), no âmbito da cooperação internacional da Organização dos Estados Ibero-
Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura-OEI. O objetivo principal foi
identificar a percepção da comunidade escolar sobre os impactos decorrentes da Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008. Para
efetivação da pesquisa foram entrevistados gestores de educação especial, diretores de
escola, coordenadores pedagógicos, professores dos anos iniciais e finais do ensino
fundamental, professores de atendimento educacional especializado e pais de estudantes
com e sem deficiência, de 96 escolas públicas urbanas e rurais de 48 municípios
brasileiros. Esses depoimentos foram analisados e qualiquantificados por meio das
técnicas do método Discurso do Sujeito Coletivo (DSC). Os resultados permitiram que
os pesquisadores pudessem agrupar as informações em categorias em três blocos
intitulados: Percepções e Posições dos Sujeitos sobre Inclusão Escolar; Mudanças na
Escola Comum decorrentes da Implantação da Educação Especial na Perspectiva da
Educação Inclusiva e Fatores Impulsores e Restritivos Intervenientes na Implantação da
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
Palavras-chave: Inclusão. Diferença. Cultura
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10758ISSN 2177-336X
EDUCAÇÃO ESPECIAL NA PERSPECTIVA INCLUSIVA: DESAFIOS E
TRANSFORMAÇÕES NAS ESCOLAS
Lilia Maria Souza Barreto
Mestre e doutoranda pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e
Diferença/LEPED/Faculdade de Educação/Universidade Estadual de Campinas.
Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar a pesquisa “A Escola e suas transform(ações)
a partir da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva”. Essa pesquisa foi
proposta pelo Ministério da Educação (MEC) e coordenada pelo Laboratório de Estudos
e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED), da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), em parceria com o Instituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo
(IPDSC), no âmbito da cooperação internacional da Organização dos Estados Ibero-
Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura-OEI. O objetivo principal foi
identificar a percepção da comunidade escolar sobre os impactos decorrentes da Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008. Para
efetivação da pesquisa foram entrevistados gestores de educação especial, diretores de
escola, coordenadores pedagógicos, professores dos anos iniciais e finais do ensino
fundamental, professores de atendimento educacional especializado e pais de estudantes
com e sem deficiência, de 96 escolas públicas urbanas e rurais de 48 municípios
brasileiros. Esses depoimentos foram analisados e qualiquantificados por meio das
técnicas do método Discurso do Sujeito Coletivo (DSC). Os resultados permitiram que
os pesquisadores pudessem agrupar as informações em categorias em três blocos
intitulados: Percepções e Posições dos Sujeitos sobre Inclusão Escolar; Mudanças na
Escola Comum decorrentes da Implantação da Educação Especial na Perspectiva da
Educação Inclusiva e Fatores Impulsores e Restritivos Intervenientes na Implantação da
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
Palavras-chave: Educação especial. Política Educacional inclusiva. Educação Inclusiva.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10759ISSN 2177-336X
Introdução
A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
(2008) agregou vários elementos que compõem um novo direcionamento para a
educação especial no Brasil. Estes elementos nasceram de uma necessidade coletiva
com o objetivo de trazer para o centro das discussões o rompimento da
homogeneização em favor do reconhecimento das diferenças em uma educação que
atenda às necessidade de todos os alunos.
Essa política altera a concepção de uma educação substitutiva ao ensino comum,
com escolas e classes especiais ou reforço escolar e define como serviço da educação
especial, o Atendimento Educacional Especializado/AEE. Segundo as diretrizes dessa
Política (2008), o AEE, tem como objetivo: identificar, elaborar e organizar recursos
pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação
dos alunos, considerando suas necessidades específicas. Este atendimento é feito pelos
profissionais da educação especial nas Salas de Recursos Multifuncionais/SRM e
diferencia-se das atividades realizadas nas salas de aula comuns. Ele visa à autonomia
e independência dos estudantes público alvo da educação especial (estudantes com
deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e com altas
habilidades/superdotação).
A Política Nacional de educação inclusiva tem resultado numa mudança de
concepção sobre a inclusão escolar. Dadas essas transformações colocadas à escola
comum, era necessário investigar como estava se dando sua implementação, uma vez
que ela propôs uma série de alterações para a escola comum. Essa investigação foi
realizada após cinco anos da formulação da Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva (lançada pelo MEC em 2008), por meio de uma
pesquisa, intitulada “A Escola e suas transform(ações) a partir da Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva”.
Essa pesquisa foi proposta pelo Ministério da Educação (MEC), coordenada e
implementada por oito pesquisadores do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino
e Diferença (LEPED), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em
parceria com o Instituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo (IPDSC), no
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âmbito da cooperação internacional da Organização dos Estados Ibero-Americanos para
a Educação, a Ciência e a Cultura-OEI.
A pesquisa abriu a possibilidade de verificar junto aos diversos sujeitos que
compõem a comunidade escolar (gestores de redes, gestores escolares, coordenadores,
professores de sala comum, professores de AEE e familiares) sua percepção sobre os
reais impactos da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva (MEC, 2008).
A pesquisa teve como objetivos:
Identificar e caracterizar, nas escolas comuns, as condições institucionais,
humanas, pedagógicas e operacionais que atualmente são predominantes
nos processos de implantação e consolidação da Política Nacional de
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008).
Formular e apresentar proposições gerenciais, organizacionais, técnico-
pedagógicas e metodológicas aplicáveis à consolidação ou
aperfeiçoamento dos processos educacionais e de gestão utilizados pelas
escolas que ofertam o AEE em seus Projetos Políticos Pedagógicos.
Os referenciais que embasaram a elaboração e o procedimento da pesquisa
passam pelo direito à diferença. Direito esse que, de acordo com Mantoan (2015),
"desconstrói o sistema atual de significado escolar excludente, normativo, elitista,
com suas medidas de produção da identidade e da diferença". O estudante da
escola inclusiva, na perspectiva da diferença, é outro sujeito, que não se enquadra
em um identidade fixa, determinada por modelos ideais, pré-estabelecidos,
essenciais e permanentes.
Burbules (2008) afirma que a diferença não é apenas um suplemento à nossa
compreensão de quem é o outro, mas um questionamento direto que se refere ao
movimento em que a própria diferença se atualiza. Portanto, construir e realizar o
trabalho educacional e pedagógico na medida em que os alunos atualizam as suas
aprendizagens e tudo mais que os constitui (diferença humana), é um passo
decisivo para que não caiamos nas armadilhas da diversidade que classifica,
categoriza e define em representações estáticas, quem são os nossos alunos.
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De acordo com o documento orientador do Programa Implantação de Salas
de Recursos Multifuncionais (BRASIL, 2012):
A formulação da educação inclusiva, compreende o
processo educacional como um todo, pressupondo a
implementação de uma política estruturante nos sistemas
de ensino que altere a organização da escola, os modelos
de integração em escolas e classes especiais. A escola
deve cumprir sua função social, construindo uma proposta
pedagógica capaz de valorizar as diferenças com a oferta
da escolarização nas classes comuns do ensino regular e
do atendimento às necessidades específicas dos seus
estudantes.
A elaboração e desenvolvimento da pesquisa foram consolidados em
concepções princípios e valores contidos nos sistemas educacionais inclusivos.
Método
No intuito de conhecer e analisar o percurso da política e subsidiar a formulação
de proposições para o seu fortalecimento, adotou-se como desenho metodológico de
investigação o Discurso do Sujeito Coletivo -DSC (LEFEVRE; LEFEVRE, 2012). Esse
método possibilita identificar as representações sociais obtidas de pesquisas empíricas
em que as opiniões ou expressões individuais de sentidos semelhantes são agrupadas em
categorias gerais.
Com o objetivo de compor os discursos de diferentes atores sociais que
participam da construção da política, foram ouvidos 357 (trezentos e cinquenta e
sete) sujeitos, dentre eles: diretores de escolas, coordenadores pedagógicos,
professores do ensino fundamental, professores do Atendimento Educacional
Especializado e pais de estudantes com e sem deficiência, de 96 (noventa e seis)
escolas públicas urbanas e rurais, de 48 (quarenta e oito) municípios integrantes
do Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, com o total de 3.570
(três mil, quinhentos e setenta) depoimentos, abarcando as cinco regiões
brasileiras.
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Foram realizadas: coleta, organização, descrição e ponderação dos sentidos
de cada depoimento emitido pelos diferentes segmentos do público-alvo
pesquisado. Essa metodologia proporciona a realização de entrevistas em
profundidade, possibilitando a apreensão da diversidade de referenciais e de
pontos de vista provenientes de diferentes espaços sociais e das diversas
perspectivas conceituais adotadas. A metodologia DSC condiciona a coleta e o
processamento de dados e informações de forma a abranger o caráter plural, denso
e complexo do objeto a ser pesquisado: a Educação Especial na perspectiva da
educação inclusiva e sob a ótica de seus principais atores.
O Discurso do Sujeito Coletivo (LEFEVRE; LEFEVRE, 2005; 2010) é uma
forma de resgatar e apresentar as representações sociais obtidas de pesquisas
empíricas em que as opiniões ou expressões individuais, que apresentam sentidos
semelhantes, são agrupadas em categorias semânticas gerais, como normalmente
se faz quando se trata de perguntas ou questões abertas. Mas o diferencial da
metodologia do DSC é que a cada categoria estão associados os conteúdos das
opiniões de sentido semelhante de modo a formar, com tais conteúdos, um
depoimento síntese, redigido na primeira pessoa do singular, como se tratasse de
uma coletividade falando na pessoa de um indivíduo. Trata-se de um discurso
construído na primeira pessoa coletiva do singular.
Como ferramenta, a pesquisa utilizou QLQT Online2 e Qualiquantisoft3 que
são dois softwares que fazem parte do instrumental do método. O QLQT Online é
um software que permite a construção de formulários online facilitando a coleta e
a organização de dados coletados para o grupo de pesquisadores. O
Qualiquantisoft é um software que facilita e operacionaliza o processamento de
dados qualitativos com vistas à obtenção dos DSCs. Esses ambientes
informatizados agilizaram os processos mecânicos e automatizáveis da pesquisa,
fazendo com que o pesquisador pudessem se concentrar nas tarefas que exigem
habilidade intelectual.
Para a coleta de dados foram elaborados casos com situações relacionadas a
problemas comuns às escolas e que envolvem: práticas pedagógicas do professor
de sala comum; o papel do professor do AEE; o posicionamento dos pais,
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dirigentes e coordenadores em relação ao direito de todos à educação em
ambientes escolares inclusivos.
Esse casos retratam o cotidiano das escolas e dizem respeito a inclusão de
estudantes com deficiência no ensino comum.
Exemplo de um dos casos:
Caso 1 - Matricular na escola comum ou continuar na escola especial.
"Marquinhos é um aluno com deficiência e estuda em uma escola especial.
Amigos e familiares de Marquinhos têm insistido para que seus pais o matriculem
na escola comum, onde é oferecido o AEE. Os pais têm dúvidas a respeito e foram
procurar você. O que você diria a esses pais e por quê?"
Resultados e discussão
No exemplo acima citado "Caso 1", apresentaremos resumidamente as
ideias centrais das respostas obtidas pelos entrevistadores sobre esse caso, em
todas as escolas dos municípios selecionados. Essas respostas foram listadas e
definidas com o apoio do software Qualiquantisoft.
De posse da listagem das ideias centrais das respostas de todos os
entrevistados os coordenadores da pesquisa realizaram um minucioso trabalho de
classificação dessas ideias e as compuseram em categorias. No caso em destaque
foram definidos como critérios de inclusão nas categorias, conforme Mantoan
(2014):
a) Favorável - diz respeito a matrícula do aluno na escola
regular por: existir o AEE na escola; pela diminuição da
discriminação; pela troca de experiências entre alunos com
e sem deficiência; pela promoção da socialização e
desenvolvimento; pela melhoria da auto estima; pela
autonomia e independência do aluno com deficiência; pelo
ganho geral que a educação inclusiva traz ao alunos na
aprendizagem de valores de conteúdos e pelo direito de
todos à educação;
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b) Desfavorável - diz respeito a ser favorável: dependendo
do tipo de deficiência; da escolha dos pais na hora de
matricular o filho; pela possibilidade de dupla matrícula
do aluno pelo fato de a escola comum não estar preparada
para receber o aluno com deficiência; porque considero a
escola especial tão regular quanto a comum e porque é
preciso manter o aluno com deficiência na escola especial
para ele ficar entre iguais; c) Não respondeu à questão.
Em todos os casos apresentados foram coletadas repostas quantitativas e
qualitativas. No caso citado "caso 1", obtivemos as seguintes respostas no país:
Exemplo quantitativo:
Figura 1 - Demonstrativo dos resultados das respostas dos sujeitos no Brasil.
Exemplo do resultado qualitativo, relacionado ao Caso 1.
Dada a extensão dos discursos, segue uma amostra da apresentação do DSC
referente a categoria A. (Professor AEE - zona rural)
Categoria A - Favorável - diz respeito a matricula do aluno na escola
regular por: existir o AEE na escola; pela diminuição da discriminação; pela troca
de experiências entre alunos com e sem deficiência; pela promoção da
socialização e desenvolvimento; pela melhoria da auto estima; pela autonomia e
independência do alunos com deficiência; pelo ganho geral que a educação
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inclusiva traz ao alunos na aprendizagem de valores de conteúdos e pelo direito de
todos à educação.
Professor AEE - Rural
Eu diria que eles podem, sim, matricular o menino na escola regular, porque é
direito da criança.Aqui na escola agente tem o suporte para oferecer para essa
criança. A gente tem o Atendimento Educacional Especializado. Eu explicaria
qual é o trabalho do AEE porque muitos pais desconhecem o que é o AEE. Eu vou
incentivar essa mãe para trazer o Marquinhos para a sala regular, porque essa
criança precisa desse atendimento, dessa socialização com os demais colegas.
Aqui as crianças passam a se envolver. Isso é bom não só para ela, mas para toda
a escola é um processo fantástico. A experiência que eu tenho é muito boa nesse
sentido. Eles estão certos em matricular seu filho na escola comum e se sentirão
seguros ao saber que o Marquinhos terá na escola todo o suporte necessário para
as dificuldades que apresenta. Eu também gostaria de dizer: Pais vamos fazer
uma experiência? O senhor traga o seu filho, a gente se compromete em
acompanhá-lo, se o senhor quiser o senhor vem também. Nós passamos todas as
informações. Eu sugiro que venham todos. Marquinhos poderá
melhorar muito e essa melhora não é só socialização. É melhorar em
aprendizagem, em vivência de mundo, em experiência diferenciada. No AEE ele
não vai só aprender para a escola,vai aprender para fora da escola. A gente vai
trabalhar mais o concreto, vai trabalhar situações diferentes para que
Marquinhos tenha mais autonomia na sua vida. Porque ele vai aprender a
conviver com pessoas de todos os tipos para ele também ser aceito. Eu diria para
esses pais que estudar na escola regular é essencial. Por trás dessa criança vai
ter um suporte, que talvez até para o professor será importante,porque o
professor também tem as suas dificuldades. Que matriculem. Vai ser melhor para
ele,porque ficando em casa ele não vai aprender nada. A educação se faz com a
parceria da escola com a família e é necessário que os pais acreditem nesse
trabalho. Todo mundo tem esse direito a educação. A Constituição diz que nós
somos iguais e pronto, independentemente do que se possa ter de dificuldade.
Existe uma lei que apoia e vários outros decretos e lei.
Categoria B - Desfavorável - diz respeito a ser favorável dependendo do
tipo de deficiência; da escolha dos pais na hora de matricular o filho; pela
possibilidade de dupla matrícula do aluno pelo fato de a escola comum não estar
preparada para receber o aluno com deficiência; porque considero a escola
especial tão regular quanto a comum e porque é preciso manter o aluno com
deficiência na escola especial para ele ficar entre iguais.
Professor AEE - Rural
Eu recomendaria, mas acho que cabe analisar o nível da deficiência. Embora
acredite que a melhor solução é a inclusão. Ele está no meio de crianças ditas
normais, entre aspas, mas com as quais ele vai ter uma interação maior.
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A pesquisa também se propôs a identificar e caracterizar nas escolas comuns
das redes públicas de ensino as condições predominantes nos processos de
implantação e consolidação da política, relacionando-os e descrevendo-os em seus
aspectos restritivos e impulsores.
Os 3.570 (três mil quinhentos e setenta) depoimentos sobre quatro questões
abertas e cinco casos apresentados, nos mostraram as transformações em curso nas
escolas comuns, a partir da Política.
Fatores Impulsores e Restritivos Intervenientes na Implantação da Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva:
Percepções e posições dos entrevistados sobre inclusão nas escolas comuns:
81,18% dos entrevistados responderam que indicariam aos pais de crianças
com deficiência a matrícula na escola comum.
15,73 % dos entrevistados apresentam restrições ao processo de inclusão
escolar.
Mudanças na Escola Comum Decorrentes da Implantação da Educação Especial
na Perspectiva da Educação Inclusiva:
89,14% dos entrevistados apresentam a percepção de ganhos na vida dos
profissionais da educação, pais e alunos com e sem deficiência;
2,23% dos entrevistados que atuam na escola não detectaram em si
mesmos ganhos diretamente vinculados ao AEE.
Nos resultados encontrados, a maioria dos entrevistados (81,8%) indicam a
matrícula na escola comum aos pais de crianças com deficiência. Isso reflete um
entendimento dos participantes sobre o direito de todos à educação. Outro resultado
importante é que 89,14% dos participantes perceberam ganhos na vida dos profissionais
da educação, dos pais e estudantes com as práticas inclusivas. Os pais indicaram, por
exemplo, que o relacionamento interpessoal entre estudantes com e sem deficiência e no
próprio ambiente familiar melhorou muito com a implantação do AEE. Para os
professores, houve mudanças significativas no acesso dos alunos ao conhecimento,
como avanços na aquisição da leitura e da escrita. Além das percepções sobre o AEE,
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também foi possível identificar aspectos impulsores e restritivos da política de educação
inclusiva.
Como aspectos impulsores, destaca-se: o compromisso da secretaria de educação
dos municípios, do gestor da escola, dos professores de AEE e demais profissionais com
a política de educação inclusiva são alguns dos fatores citados como fundamentais para
que a inclusão aconteça. Outros aspectos são a presença de professores de AEE
habilitados nas escolas e a participação e confiança das famílias para a inclusão de seus
filhos em escolas comuns.
Como aspectos restritivos, destaca-se: falta de recursos públicos e falta de espaço
para o AEE. Resistência de alguns professores, falta de capacitação e esclarecimento
sobre o AEE, a quantidade de alunos por turma e a negligencia dos pais também foram
destacados como prejudiciais à política de educação inclusiva.
Considerações finais
Após cinco anos de implementação da Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva (época da realização desta pesquisa), a Pesquisa “A
Escola e suas transform(ações) a partir da Educação Especial na Perspectiva da
Educação Inclusiva”, concluiu que houve um avanço na compreensão da educação
como direito de todos e que esse direito deve ser assegurado na escola comum.
Essa constatação resulta da reorientação das diretrizes político pedagógicas
e do redirecionamento do financiamento público da Educação Especial para: a
institucionalização do Atendimento Educacional Especializado (AEE) nas escolas
comuns; a formação continuada dos professores do AEE; e a promoção da
acessibilidade nas redes públicas de ensino, tendo em vista o pleno acesso e a
participação dos alunos da Educação Especial em todas as etapas, modalidades e
níveis de escolaridade.
Outra investida da política vai na direção da chamada Discriminação
Positiva ou Diferenciação Positiva, que faculta às pessoas com deficiência
fazerem suas próprias escolhas, diante de possibilidades que lhe são apresentadas,
para resolver situações problema. Pela Convenção da Guatemala, promulgada
pelo Decreto 3.956/2001 (BRASIL, 2001), em seu Artigo I, as pessoas com
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deficiência não podem ser diferenciadas pela deficiência pois essa diferenciação
constitui discriminação. Esse decreto ele veio reafirmar a necessidade de revermos
o caráter discriminatório de algumas práticas escolares mais comuns e perversas
que responsabilizam o estudante pelo seu próprio fracasso na escola. A
diferenciação pela deficiência não discrimina quando o objetivo é promover a
integração social ou o desenvolvimento pessoal das pessoas com de deficiência.
Mas é importante frisar que a diferenciação ou preferência pela deficiência não
deve limitar o direito à igualdade dessas pessoas e elas não são obrigadas a aceitar
tal diferenciação ou preferência.
As políticas de educação básica precisam se basear no
acervo de contribuições oferecido pela Educação Especial
dos tempos atuais, para que possam questionar o que têm
proposto como soluções para a melhoria do ensino
brasileiro. Um ensino que não considera a diferença de
cada aluno, jamais alcançará o nível de excelência que
temos de buscar para a nossa educação. Toda
homogeneização, toda solução que desconsidera essa
especificidade dos seres humanos está fadada ao fracasso.
(MANTOAN, 2014).
Com essas considerações aqui apontadas, espera-se que norteiem um novo
tempo para as escolas comuns, tornando-as em ambientes de ensino de qualidade,
democráticos e aberto a todos, nas suas diferenças.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Especial/SEESP.
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
Brasília: MEC/SEESP, 2008.
______. Decreto nº 3.956/2001, de 08 de outubro de 2001. Disponível em:
ttp://www.planalto.gov. br/ccivil_03/decreto/2001/d3956.htm>. Acesso em: 05
jan. 2016.
______. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Especial.
Programa Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, documento
Orientador. Brasília: DF, 2012.
BURBULES, N.C. Uma gramática da diferença: algumas formas de repensar a
diferença e a diversidade como tópicos educacionais. In: LEITE GARCIA,R;
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BARBOSA DE OLIVEIRA A.F. (Org.). Currículo na contemporalidade -
incertezas e desafios. Trad. Silvana Cobucci, Beth Honorato, Dinah de Abreu
Azevedo. São Paulo: Cortez, 2008. 3ª. edição
MANTOAN, M.T.E (Org.). A Escola e suas transformações, a partir da
educação especial, na perspectiva inclusiva. Campinas, SP: Librum Editora,
2014.
_____________.Inclusão Escolar: O que é? Por quê? Como fazer? São Paulo:
Summus, 2015.
_____________. O Direito à diferença na igualdade dos direitos – questões sobre
a inclusão escolar de pessoas com e sem deficiências. In: BATISTA, Cristina
Abranches Mota. (Org). Ética da Inclusão. Belo Horizonte: Armazém de Ideias,
2004.
LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A.M.C. Pesquisa de representação social: um enfoque
qualiquantitativo: a metodologia do discurso de sujeito coletivo. Brasília: Líber
livro, 2010.
___________________. 2012b. Qualiquantisoft. Disponível em: <www.spi-
net.com.br.>. Acesso em 21 jan. 2016.
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E A PRODUÇÃO DA IDENTIDADE E
DIFERENÇA DA CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA
Profa. Msa. Elenir Santana Moreira, Centro Universitário Salesiano
de São Paulo - Unisal, Americana, SP
Profa. Dra. Norma Silvia Trindade de Lima, Laboratório de Estudo e
Pesquisa em Ensino e Diferença - Leped / Departamento de Ensino e
Práticas Culturais - Deprac / Faculdade de Educação / Unicamp
RESUMO
Este artigo refere-se a uma pesquisa de mestrado, cujo objetivo foi investigar a
produção da identidade e da diferença da criança com deficiência, no ambiente escolar
que se denomina inclusivo. A finalidade do referido estudo foi saber como as narrativas
ou as práticas tanto discursivas quanto não discursivas de professoras e crianças sem
deficiências (de três a seis anos) vão criando efeitos, sentidos e significados
compartilhados, tornando-se modos de dizer sobre o outro e colaborando, ou não, para a
produção da identidade e da diferença da criança com deficiência. Trata-se de uma
pesquisa qualitativa e participante, valendo-se de questionários, observação participante,
diário de campo, desenhos e fotografias. Foi realizada uma pesquisa de campo em dois
Centros Municipais de Educação Infantil (CEI), no interior de São Paulo, tendo como
participantes: quatro professoras e 16 crianças de três a seis anos, dentre as quais, duas
com deficiências. Como aporte teórico destacam-se, nesse estudo, Tomaz Tadeu da
Silva, Stuart Hall, Kathryn Woodward e Maria Teresa Eglér Mantoan, contribuindo com
a reflexão sobre inclusão escolar, produção da identidade e da diferença. A
interpretação dos dados aponta que o encontro com as crianças e suas criações, tecem
em nós sutilezas capazes de possibilitar outro olhar, para e sobre as identidades e
diferenças. Conclui-se que é necessário problematizar o que é ser criança com
deficiência nessa sociedade que inventou o normal e o anormal. A criança marcada por
essas representações, por vezes, ratificadas por práticas pedagógicas e discursivas,
constroem estratégias para sobreviver no Centro de Educação Infantil que se denomina
inclusivo, tendo em vista o reconhecimento e legitimidade da diferença.
Palavras-chave: Identidade, Diferença, Educação Infantil.
INTRODUÇÃO
Como professora de Educação Especial há mais de vinte anos, coloco-me a re(pensar) o
lugar ou o NÃO-lugar das crianças com deficiências no Centro de Educação Infantil –
CEI que se denomina inclusivo. Diante de tantas inquietações vividas, volto a estudar,
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agora como pesquisadora investigando a produção da identidade e da diferença da
criança com deficiência, no contexto deste CEI, a fim de se saber, como as narrativas ou
as práticas discursivas e não discursivas de professoras e crianças sem deficiência vão
criando efeitos, sentidos e significados compartilhados, tornando-se modos de dizer
sobre o outro e colaborando, ou não, para a produção da identidade e da diferença da
criança com deficiência.
Muitas são as perguntas que me movem, e assim interessa saber que vozes atravessam
as narrativas das crianças e das professoras, bem como se a criança com deficiência
“escapa” ou não do sentido produzido e compartilhado de identidade e de diferença que
lhe é atribuído. Se sim, verificar como isso ocorre e as possíveis linhas de fuga.
O objetivo dessa pesquisa visa a investigar a produção da identidade e da diferença da
criança com deficiência pelas práticas discursivas e não discursivas de professoras e das
outras crianças que não têm deficiências.
É uma pesquisa qualitativa e participante, na qual as narrativas/histórias apresentadas se
fundem com as vozes dos pesquisados e da pesquisadora, a fim de que outras histórias
possam ser contadas e recontadas.
Os autores são aqueles com os quais converso, como que querendo compreende-los
cada dia mais, como: Silva (2009), Hall (2014, 2009), Woodward (2009), Mantoan
(2011, 2004), Galvão (2005), Menegaço (2004) e Benjamin (1987).
A pesquisa de campo foi realizada em dois CEIs de uma Rede Municipal de Educação
Infantil, no interior de São Paulo e os sujeitos da pesquisa foram quatro professoras e 16
crianças de três a seis anos, dentre as quais, duas com deficiências. As estratégias de
construção de dados foram: questionário, observação participante, diário de campo,
desenhos, fotografias e narrativas.
Irei dividir as narrativas que compõem este artigo em três sessões, onde na primeira
contextualizo o problema de pesquisa, articulando-o com o objetivo do trabalho e
conceituando o que é identidade e diferença mediante os estudos culturais. A segunda
descrevo o trabalho de campo, trazendo a criança como sujeito e a necessidade da
escuta para as narrativas infantis. Na terceira, apresento a análise dos dados e é
composta de duas narrativas/histórias, que denomino como “caminhos”. E, por fim,
apresento as considerações finais.
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1. Identidade e diferença
Valho-me da necessidade de analisar as narrativas das professoras e das crianças sem
deficiências, para considerar como estas vão, ou não, criando efeitos, sentidos e
significados compartilhados, que se tornam modos de dizer sobre o outro. No caso,
crianças com deficiência, é preciso que estejamos atentos a quais são as vozes que
atravessam essas narrativas e como os efeitos destas vão produzindo a identidade e a
diferença da criança com deficiência.
É primordial considerar que “essas identidades adquirem sentido por meio da linguagem
e dos sistemas simbólicos pelos quais são representadas” (WOODWARD, 2009, p.8),
ou seja, a linguagem que utilizamos para atribuir sentidos não é inocente. Hall (2009),
de forma oportuna, explica como as identidades não são idênticas e de que maneira são
reinventadas, permitindo-nos fazer articulações com as narrativas produzidas dentro do
ambiente do CEI:
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do
discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais
históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas
discursivas especificas, por estratégias e iniciativas especificas. Além disso,
elas emergem no interior do jogo de modalidades especifica de poder e são,
assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo
de uma unidade idêntica, naturalmente tradicional – isto é, uma mesmidade
que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação
interna. (p.109).
Silva (2009) coloca que inicialmente a conceituação de identidade, numa determinada
perspectiva, parece fácil, independente e se esgota em si mesma. Pode, ainda, ser
definida como aquilo que se é; por exemplo: “sou brasileiro” e diferença como aquilo
que o outro é; exemplo: “ela é italiana”. Nessa perspectiva, “[a]“ diferença, tal como a
identidade, simplesmente existe.” (SILVA, 2009, p. 74). Tal autor assegura que a língua
possibilita que ao afirmar “sou brasileiro”, subtende-se que “não sou argentino”, e ao
dizer, “ela é chinesa”, subtende-se que ela não é argentina. Logo, ela ajuda, mas
também esconde. Tudo isso faz parte de uma cadeia de “negações”, pois “[a]s
afirmações sobre diferença também dependem de uma certa cadeia, em geral oculta, de
declarações negativas sobre (outras) identidades.” (SILVA, 2009, p. 75). Pode-se, então,
dizer que a identidade e a diferença são interdependentes e inseparáveis, pois uma não
existe sem a outra.
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De acordo com esse mesmo autor, é preciso desnaturalizar o caráter natural que, às
vezes, é atribuído à identidade e à diferença e elas são sim, uma produção cultural e
social, que pode e deve ser questionada, uma vez que remete sempre a uma questão de
poder e de força num campo disputado hierarquicamente:
A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de
poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser
separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não
são, nunca, inocentes. (SILVA, 2009, p. 81).
Andando pelos corredores do CEI, busco compreender as práticas pedagógicas e a
implicação das mesmas na produção da identidade e diferença da criança com
deficiência, então observo o quanto “... a inclusão coloca em xeque a estabilidade da
identidade” (MANTOAN, 2011, p. 103), uma vez que ela nos apresenta um aluno real,
singular, que foge da imagem do sujeito universal, pensado a partir de uma referência
identitária, normatizada, padronizada e idealizada pela escola. A diferença do aluno
pensado a partir desta identidade fixa, padronizada, é atrelada a uma diferença entendida
como “diferente”, que inferioriza.
Constato mais e mais que a diferença pensada e compreendida como processo de
diferimento comum a todas as pessoas, não as “reduzem a modelos estabelecidos”,
(MANTOAN, p. 103, 2011) padronizados, fixos, mas conferem-lhe singularidade,
especificidades.
Conhecer os campos de pesquisa e os sujeitos, e o quanto eles contribuem para
desestabilizar o caráter da identidade fixada, padronizada e tida como “normal” se torna
mais emergente. Assim, sigo caminhando.
2. A criança como sujeito
A escolha do campos de pesquisa é um desafio, e finalmente ela é definida por dois
CEIs, sendo um na região leste, perto do núcleo comercial, que descreverei como CEI 1,
no qual eu não sou professora, e outro, um pouco mais afastado da região central, mas
também na região leste, o qual denominarei de CEI 2, onde sou professora.
Os critérios iniciais para a escolha dos CEIs foram: ter agrupamento III, (que são as
classes de crianças com idade de 3 a 6 anos); ter criança com deficiência matriculada e
frequentando a sala do agrupamento III; e a diretora da escola, assim como professoras
e crianças concordarem com a realização da pesquisa.
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No CEI 1, as crianças não me conheciam, então foi uma surpresa no primeiro dia em
que estive com elas. Elas estão com olhos atentos e curiosos, examinam-me, querem
saber diversas coisas, de modo que são as próprias crianças quem mais perguntam:
- Quem é você? - O que você faz aqui? - Você não é professora! nós nunca te vimos! - O que você quer? - Você vai ao parque com a gente? - Você vai vir todo dia? - Você tem filho? - Você gosta de brincar?
Propositalmente, não defino o que são pessoas com deficiências, pois não quero
encharcá-las com os significados que defendo.
No CEI 2, como as crianças já me conhecem não estranham a minha presença de forma
que as perguntas feitas no CEI 1 não se repetem, apesar disso, elas ficam curiosas
quando começo a explicar a pesquisa, e me fazem outros questionamentos.
Feita a tramitação burocrática é dado o início e os sujeitos da pesquisa do CEI 1, são
uma professora, que está na função há 22 anos, sete crianças, dentre as quais uma tem
Transtorno do Espectro do Autismo –TEA.
Do CEI 2, são nove crianças, das quais uma tem síndrome de Down e síndrome de
West. Oito crianças têm entre três e quatro anos e são do mesmo agrupamento da que
tem deficiência. Uma criança tem cinco anos e é de outro agrupamento III. Neste CEI,
três professoras aceitaram ser participantes da pesquisa. Elas estão na função há mais de
20 anos. Todas são formadas em pedagogia.
A pesquisa de campo foi realizada no CEI 1, nos meses de novembro e dezembro de
2014, período em que as crianças tinham entre cinco e seis anos.
No CEI 2, a pesquisa foi realizada nos meses de fevereiro a junho de 2015, período em
que as crianças tinham entre três e quatro anos.
As crianças são os principais atores sociais nesta pesquisa, e Kramer (2002), faz-nos
refletir acerca da maneira como concebemos as infâncias e de que forma
oportunizamos que as crianças sejam protagonistas de seus próprios saberes. Para isso, é
fundamental que não nos descuidemos das questões éticas que envolvem as pesquisas
com elas e que, muitas vezes, não são consideradas, mas:
Quando trabalhamos com um referencial teórico que concebe a infância
como categoria social e entende as crianças como cidadãos, sujeitos da
história, pessoas que produzem cultura, a ideia central é a de que as crianças
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são autoras, mas sabemos que precisam de cuidado e atenção (KRAMER,
2002, p.42).
Porém, com esse enfoque, a seleção dos procedimentos de construção de dados,
mediante as estratégias escolhidas que são os questionários, observação participante,
desenhos, fotografias e narrativas, passam a ser cuidadosamente analisados, de forma a
mostrar caminhos que evidenciem ou que levem às reflexões sobre o problema desta
pesquisa.
De tal modo, ouvir as narrativas das crianças pequenas requer que busquemos
compreender sua história vivida:
Mas, não podemos esquecer que não temos acesso direto à experiência dos
outros, lidamos apenas com representações dessa mesma experiência por
meio do ouvir contar, dos textos, da interação que se estabelece e das
interpretações que são feitas. (GALVÃO, 2005, p. 330).
Essa reinterpretação precisa considerar também a minha subjetividade presente nas
narrativas e possibilitar uma busca por ouvir a voz das crianças, permitindo dar-lhe
sentido.
A nossa escuta para as narrativas infantis e as histórias que as constituem é percebida a
partir do lugar que ocupamos. Este, busca, incansavelmente, reconhecer e significar o
direito da criança de ser reconhecida como produtora de cultura.
Os procedimentos de análise e discussão de dados visam a identificar como o corpus
coletado é atravessado por outras vozes e como este revela, ou não, as marcas que
alunos sem deficiências e as professoras atribuem às crianças com deficiência. Marcas
que vão produzindo a identidade e a diferença desses alunos, mesmo considerando que:
...as narrativas podem incluir dados que sem nenhuma precisão são fixados e
repetidos, tais como: uma „pitada‟ de sal, „algumas‟ folhas, „certos‟
exercícios, uma história „engraçada‟, uma „solução‟ para um problema, um
„modo de fazer‟ os alunos escreverem um texto maior, uma „indicação‟ de
como ler um livro fazendo anotações e garantindo a escrita a seguir, etc.
(ALVES, p. 6).
Desta forma, o intento é mostrar, identificar no ambiente pesquisado como as práticas
vão produzindo/constituindo as crianças com deficiência, forjando identidades e
diferenças a partir das atribuições de sentidos e significados discursivos.
3. Caminho 1: O dia tão esperado
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O dia tão esperado de iniciar a pesquisa de campo finalmente havia chegado. Eu estou
visivelmente curiosa por ouvir as narrativas e os saberes das crianças relacionadas à
temática estudada. No primeiro dia em que irei realizar a observação participante, no
CEI 1, chego antes de começar a conversa inicial, momento em que a professora
organiza as atividades do dia, com as crianças sentadas em cadeiras e em círculo. Nesse
espaço, cada uma delas pode falar daquilo que tem vontade. Em conversa anterior com a
professora, solicito que ela não conte para as crianças o que eu irei fazer lá no CEI,
quero que elas me digam as suas impressões, sem serem orientadas a uma resposta, uma
vez que a pesquisa consiste em ouvir as narrativas e os saberes delas com o mínimo de
intervenção possível.
A professora então me apresenta para as crianças dizendo que eu também sou
professora e irei participar da Roda. Feito isso, prossegue como de costume, ora fazendo
perguntas, ora respondendo àquelas feitas pelas crianças, ora ouvindo.
Percebo logo que são crianças curiosas, críticas e falantes. Constato, então, a
oportunidade de fazer a primeira pergunta: -Vocês têm algum amigo diferente?
Pronto! Primeira pergunta feita. Quais serão as respostas? A minha escuta agora parece
ser outra, ouvidos atentos, coração em disparada, olhos arregalados e emoção a ser
controlada, pois preciso saber ouvir com ouvidos de pesquisadora, como quem quer
desvendar um mistério.
Em meio a um turbilhão de imaginação, Lulu, uma garotinha de seis anos, prontamente
diz:
-Sim. Essas duas aqui ó (apontando o dedo para duas colegas que estavam à
sua frente), uma é branquinha e a outra é branquinha e usa óculos e esmalte. Ela marca a diferença, primeiramente, por um fenótipo, mas em seguida sugere a
diferença ligada a um assessório que são os óculos e o esmalte. Sem ter tempo de tecer
uma outra reflexão Lulu, completa:
- E Tem o Kamau, porque ele grita e fica pulando o dia inteiro (se referindo
ao colega que tem TEA, que estava em pé perto da lousa no canto esquerdo
da sala). Imediatamente penso: será que ela percebe a diferença a partir da deficiência que
Kamau tem? Então levanto outro questionamento e digo:
-O que você acha quando o Kamau grita? -Normal. -O que é normal? -Não sei.
Explica com suas palavras:
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-Normal é tudo bem!
Lulu, não aponta a diferença a partir da deficiência de Kamau, ela apresenta algo que
ele faz e que provavelmente chamou sua atenção, destacando como: “ele grita e fica
pulando o dia inteiro”, mas para ela o gritar e pular é “normal” e normal é “tudo bem”.
A conversa prossegue e então faço outra pergunta:
-Tem alguma criança com deficiência aqui nesta sala? Insisto, pois estou com o objetivo da pesquisa impresso em minha mente, é como se
necessitasse saber a partir de qual perspectiva a criança sem deficiência via o seu colega
com deficiência. Será que a diferença era compreendida como diferente?
Gyasi é um garoto que, enquanto os colegas estão sentados conversando, distrai-se e se
movimenta brincando com o próprio corpo e com o cadarço do seu tênis. Parece estar
alheio à conversa, mas é pura impressão de adulto, ele se volta para a roda e pergunta:
-O que é deficiente? A pergunta soa displicente, como que perguntando o significado de uma palavra
desconhecida, nova, pouco comum ao seu repertório. Mesmo assim, como a minha
intenção, nesse primeiro dia, é ouvir as narrativas, os saberes das crianças e provocar
algumas inquietações, fico quieta. Ele continua:
-Tem ele (apontando para o colega ao lado), porque ele corre no parque e
cai. Penso que correr e cair é algo que acontece com a maioria das crianças, inclusive com
ele próprio.
Outra criança repete a pergunta:
-O que é deficiente? Urenna, imediatamente responde:
-É uma criança diferente da outra.
A resposta de Urenna mostra que ir ao encontro da criança com deficiência, requer que
nos dissipemos das apreciações pré-formadas e consideradas como verdadeiras, e “a
ideia de identidade móvel desconstrói o sistema de significação escolar excludente,
normativo, elitista, com suas medidas e mecanismos de produção da identidade e da
diferença” (MANTOAN, 2004, p. 16).
Com o desígnio de causar mais reflexão, pergunto:
-Nessa sala todo mundo é igual? Akil, logo responde:
-Não! Por que todo mundo tem o cabelo diferente. Outra menina também responde:
-Eu tenho uma irmãzinha que era mais ou menos igual. Agora essa amiga é
igual a mim, porque ela usa óculos.
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Akil, ao dizer “todo mundo tem o cabelo diferente” e a outra menina ao proferir “ela
usa óculos” não se referem a uma representação rígida, única, mas “à representação que
não é, nessa concepção, nunca, representação mental ou interior. A representação é,
aqui, sempre marca ou traço visível ou exterior” (SILVA, 2009, p.91), como aquela que
pode atribuir sentido à identidade.
Segundo Silva (2009), a identidade e a diferença não representam algo natural, elas são
criadas socialmente e as representações das identidades e diferenças requerem que o
poder as defina.
3.1- Caminho 2: cotidiano educacional, entre relatos e fatos
Uma professora diz:
-Essas crianças estariam melhores se estivessem na Associação de Pais e
Amigos dos Excepcionais -APAE. O aluno é que tem que se adaptar à escola. Fico extremamente irritada com essa afirmação, pois costumava ouvir isso logo no
início da minha carreira profissional, há mais de 20 anos atrás. Pensava que, após a
implementação das políticas públicas, em prol da educação inclusiva e da determinação
da secretaria municipal de educação, da qual este CEI faz parte, sendo favorável à
inclusão de TODOS os alunos com deficiência, esta fosse uma discussão já superada.
Incontáveis foram as reuniões nas quais dialogamos sobre essa temática. Pensei que não
mais fosse ouvir essa afirmativa, pelo menos não nessa escola. Mas estava ouvindo!
Outra professora respondeu:
-As crianças geralmente não excluem, ficam curiosas e querem ajudar. Certa
vez, matriculou-se no nosso CEI um Down de 4 anos que quase não
enxergava e era muito pequeno, parecia bebê, muito fofo. As crianças
queriam cuidar dele o tempo todo. Sei que também vem a insegurança a
respeito da nossa competência, pois não somos preparados para isso.
Pensei que a resposta dessa professora fosse mais encorajadora, mas ela salienta a falta
de “preparação profissional”, outro chavão fortemente repetido e usado no meio
educacional. Nessa perspectiva, é possível pressupor que o sujeito identificado por elas
é uno, centrado, marcado por uma identidade fixa, caracterizada por uma diferença
visível, palpável, que contrapõe com as identidades dos sujeitos reais que não são fixas,
mas que “é definida historicamente, e não biologicamente.” (HALL, 2014, p. 12).
A professora ao referir-se ao aluno com síndrome de Down, de quatro anos, dizendo:
“era muito pequeno, parecia bebê, muito fofo”, emite uma visão romantizada referente à
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inclusão e associa a deficiência a uma criança pequena, sendo assim, a criança com
deficiência se torna “fofa” por ser parecida com um bebê. Cabe ressaltar que ela utiliza
o advérbio “muito”, para qualificar o adjetivo, que representa, em ambas as situações,
quantidade (muito pequeno e muito fofo). Posteriormente ao dizer: -Sei que também vem
a insegurança a respeito da nossa competência, pois não somos preparados para isso.
Nesse instante, ela não usa o pronome minha, e sim nossa, ao se referir à competência e
preparo para a inclusão, a que ela se refere como: isso. Nesse caso, ela transfere a
relação de posse para o outro.
O desafio é o de continuar estabelecendo interlocuções com essas narrativas, que
permitam tecer e avançar em outras reflexões sobre qual o olhar e práticas destas
professoras, para e sobre as identidades e diferenças da criança com deficiência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aprendi que narrativas como as das crianças e professoras apresentadas nesta pesquisa
instigam-nos a rever o lugar que a criança com deficiência ocupa dentro dos CEIs que
se denominam inclusivos. Ouvir essas narrativas é algo que nos movimenta e encanta,
além de nos fazer retomar o objetivo que esse trabalho se propôs a investigar que é a
produção da identidade e da diferença da criança com deficiência. Ao refletirmos sobre
quais são as vozes que atravessam essas narrativas, podemos dizer que as professoras
ainda atribuem às crianças com deficiências, sentidos que as inferiorizam, do mesmo
modo que continuam buscando por um aluno idealizado e normatizado. A busca por
esse tipo de sujeito continua perpetuando uma tentativa eloquente de igualar a todos,
como pudemos observar no exemplo mencionado anteriormente, no qual uma
professora diz: “essas crianças estariam melhores se estivessem na APAE”.
Já, a criança sem deficiência, de três a seis anos, compreende que o lugar do seu colega
com deficiência é o mesmo que o seu, como podemos constatar nas respostas sobre o
que é deficiente, que ela responde: “é uma criança diferente da outra”.
Em meio a tudo isso, a criança com deficiência “escapa” do sentido produzido e
compartilhado de identidade e diferença como diferente, no sentido negativo que lhe são
atribuídos, ao desestabilizar a identidade fixa, possibilitando o (re)pensar sobre a
identidade e a diferença.
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Então, aventuro-me a dizer, que busco (re)significar minha prática pedagógica na
relação com a criança, que a cada olhar me alcança e pela qual me permito ser
alcançada, no sentido de dar nova forma ao lugar que esta ocupa dentro do CEI. Lugar
que possibilita, ou deveria possibilitar, diferentes formas de aprendizagem,
oportunizando à criança diferentes e possíveis maneiras de ler e escrever o mundo, para
nele se inscrever.
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CAPOEIRA: UM TERRITÓRIO EDUCATIVO E INCLUSIVO
Profa. Dra. Norma Silvia Trindade de Lima, Laboratório de Estudo e
Pesquisa em Ensino e Diferença - Leped / Departamento de Ensino e
Práticas Culturais - Deprac / Faculdade de Educação / Unicamp
Prof. Daniel de Raeffray Blanco Nascimento, mestrando pelo
Laboratório de Estudo e Pesquisa em Ensino e Diferença - Leped /
Faculdade de Educação / Unicamp
Resumo
A educação inclusiva e as políticas públicas afirmativas, ao assumirem o direito à
diferença como um princípio constitucional e educacional e a multiculturalidade dos
ambientes formativos, ampliam as noções de território e linguagens educativas,
possibilitando a criação e/ou o reconhecimento de práticas de ensino e aprendizagens
outrora subalternizados. A legitimidade da diferença e a valorização das culturas
ganham centralidade como princípios ético-educacionais, o que inspirou a proposição
desta Pesquisa Exploratória, desenvolvida em uma instituição de ensino superior
privada, no interior de São Paulo, em 2015. Buscou-se conhecer a contribuição da
capoeira à formação da comunidade acadêmica de tal instituição, apoiando-se em
referenciais que fundamentam os estudos sobre inclusão e cultura, na perspectiva da
diferença e, ainda, documentos sobre a capoeira, entendida e reconhecida como
patrimônio cultural imaterial do Brasil (IPHAN, 2008) e da Humanidade (UNESCO,
2014). Foram desenvolvidas sete oficinas vivenciais, por mestres e professores de
capoeira convidados. Somou-se 150 participantes, de faixa etária variada; em sua
maioria, pessoas que não tinham experiência com a capoeira. Eram discentes da
graduação e pós-graduação, docentes e gestores de diversos cursos, além de pessoas da
comunidade. Os dados analisados foram construídos por meio de registros narrativos,
coletados ao final de cada oficina. Conclui-se que as oficinas ministradas, ao resgatar
uma dimensão sensível, artística e poética - outra lógica de saberes e fazeres, ensino e
aprendizagem, pautados na corporeidade, musicalidade, fraternidade e pertencimento -
criaram desafios pessoais e relacionais, e acesso à memória coletiva e à história.
Ademais, promoveram uma discussão sobre culturas, pertencimentos, e implicações nas
relações pessoais, sociais, institucionais. Questionaram paradigmas e preconceitos,
especialmente sobre a capoeira, presentes no cotidiano social e visão de mundo
eurocêntrica, elitista e excludente. Também fomentaram descobertas e diferimentos
pessoais, possivelmente, alargando a visão de mundo e suas fronteiras de participação e
atribuição de sentidos e significados.
Palavras-chave: inclusão, capoeira, formação acadêmica.
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“ a ginga está na alma e a alma está na liberdade”
À guisa de uma introdução
A estética/escrita desse artigo busca uma intercessão entre os aspectos teóricos
que dão sustentação a um percurso argumentativo e as expressões da experiência dos
sujeitos dessa pesquisa, por meio de seus registros narrativos aqui apresentados, sem
adaptações, em forma de títulos e subtítulos - por isso, em itálico. Trata-se de visar um
diálogo entre as vozes dos sujeitos da experiência com a capoeira e os conceitos que dão
sustentação a essa versão possível de interpretação. Pretende-se que a experiência com a
capoeira, expressa em breves e livres registros, como um plano de imanência,
possibilitem a fruição de um pensar, um tecer sobre um acontecimento.
“que as nossas dificuldades se transformem em gingas”
As exigências educacionais – inclusivas e afirmativas reconhecem a identidade
cultural brasileira como híbrida e multiétnica. Favorecem, dessa maneira, o
desenvolvimento de estudos que valorizem culturas forjadas nas margens do
colonialismo, exclusão e violência, como a capoeira, reconhecida neste século XXI
como um bem cultural do Brasil e da humanidade. Dessa forma, há um campo de
proveniência para a proposição e realização da pesquisa exploratória ora apresentada,
cujo propósito é conhecer a contribuição da capoeira, reconhecida como um patrimônio
cultural imaterial, à comunidade acadêmica de uma instituição de ensino superior
privada, no interior de São Paulo, em 2015. Tal proposta pauta-se na legitimidade da
contribuição da ancestralidade africana, presente na capoeira, à formação educacional,
ao agregar ou mesmo resgatar uma dimensão sensível, artística e poética - outra lógica
de saberes e fazeres pautados na corporeidade, musicalidade, pertencimento,
fraternidade e transcendência. Ademais, a capoeira, como um patrimônio cultural
imaterial, revitaliza saberes e fazeres de uma cultura, constituída às margens, no "entre-
lugares" (BHABHA, 2013). E, sobretudo, como prática de resistência à captura e
subordinação aos padrões elitistas, monoculturais, preconceituosos e eurocêntricos,
favorece processos de singularização.
Supõe-se, pois, que a capoeira, na perspectiva de um bem cultural, possa
colaborar com a formação educacional. Mas, como e quais são as possíveis
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contribuições da capoeira à comunidade educacional, numa perspectiva transversal às
grades curriculares?
“superação: realmente foi uma experiência nova, não imaginava a alegria que a
capoeira transmite;
“aprender a interagir, respeitar o limite do outro, descobertas”
Esse texto trata de destacar a contribuição da capoeira à formação educacional de
uma comunidade acadêmica de ensino superior privada, no interior de São Paulo.
Valeu-se de um projeto de extensão universitária: “Projeto Capô: experimentações e
pesquisa em capoeira”, realizado no primeiro semestre letivo de 2015, no campus da
instituição pesquisada. Mestres e professores de capoeira realizaram sete oficinas,
contando com a presença de uma média de cento e cinquenta participantes. Os
participantes eram discentes de graduação e pós-graduação stricto-sensu - mestrado em
educação, docentes e gestores dos seguintes cursos de graduação: serviço social, direito,
publicidade, psicologia, engenharia civil, engenharia da computação e pedagogia, além
de pessoas da comunidade - amigos, parentes e capoeiristas. A dinâmica das oficinas
ocorreu por meio de narrativas dos mestres e professores de capoeira, e movimentação
corporal: alongamento, exploração e consciência corporal, espacial e relacional, e
expressões próprias da capoeira como: ginga, esquivas, golpes, jogo e roda de capoeira.
Relevante destacar a musicalidade como elemento essencial na prática da capoeira.
Promoveu-se, assim, experimentação e exploração dos instrumentos da capoeira:
berimbau, pandeiro, atabaque, agogô, reco-reco, palmas e cânticos. Após esses
momentos, compartilhava-se a experiência vivenciada, e produzia-se registros
narrativos em folhas - em branco - dispostas no chão. Os registros traziam reflexões
sobre o vivido: relações estabelecidas por cada um, entre as experimentações -
propostas em cada oficina de capoeira - e suas experiências de vida. Os dados
analisados são estes produzidos e coletados ao final de cada oficina como parte do
compartilhamento da vivência.
A análise e interpretação dos dados apoiam-se em referenciais pós-estruturalistas
e pós-colonialistas, que fundamentam os estudos sobre inclusão e cultura, na
perspectiva da diferença. Destacamos os seguintes autores: Mantoan, Deleuze, Guattari,
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Boaventura de Souza Santos, Hall e Bhabha. Ademais, apoiou-se também em
documentos sobre a capoeira, entendida como patrimônio cultural imaterial.
“sentir-se parte do todo para descobrir o seu singular”
A inclusão é um princípio constitucional e educacional, pautado na diferença,
assim como, a multiculturalidade dos ambientes formativos. Contudo, há uma distância
entre as conquistas legais e o usufruto das mesmas pelos sujeitos de direitos.
O Brasil contemporâneo mantém, ainda, um cenário de desigualdade e exclusão.
Isso embora, a partir dos anos de redemocratização, sobretudo no início do século XXI,
políticas públicas afirmativas e inclusivas são assumidas pelo Estado, sendo este
signatário de documentos e mecanismos internacionais baseados no reconhecimento e
legitimidade da diferença e princípios da Declaração Universal de Direitos Humanos de
1948. Em razão do recorte desse trabalho, destacamos os seguintes acontecimentos
devido às repercussões nas atuais políticas educacionais, sobretudo o alcance da
perspectiva inclusiva e a participação de "novos" atores e demandas sociais, antes
desqualificados. São eles: a III Conferência Mundial contra o racismo, a discriminação
racial, a xenofobia e intolerância correlatas, realizada em 2001, em Durban, África do
Sul; a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, por ocasião da
Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e
Cultura – UNESCO, realizada em Paris, em 2003; e a 9ª sessão do Comitê
Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da UNESCO, em Paris,
2014, que confere o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade à Roda de
Capoeira.
É fato que desde 1988 os princípios inclusivos estão presentes na Constituição
Federal - CF. Conforme o Art.205 (BRASIL, 1988), a educação é um direito
constitucional inalienável de todos os sujeitos sociais, cidadãos e cidadãs, independente
de quaisquer atributos, como: gênero, raça, etnia, deficiência, transtorno.... E, ainda, nos
artigos 215 e 216 (BRASIL, 1988), também a cultura é um direito, e reconhece-se a
pluralidade étnica na constituição da sociedade brasileira e sua relevância para o
sentimento de pertencimento, memória e identidade na promoção da igualdade e
equidade. Em 2004, o Conselho Nacional de Educação institui as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das relações étnico-raciais e para o ensino de
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história e cultura afro-brasileira e africana, a serem observadas por todas as instituições
educacionais, níveis e modalidades do ensino (CNE, 2004). E, demanda que as
instituições de ensino assumam, em seus desígnios formativos, a sociedade brasileira
como multicultural e pluriétnica.
“liberdade é sentir-se solto e deixar o corpo se expressar sem medo”
As sete oficinas de capoeira foram realizadas, promovendo três respectivos
momentos, em cada uma delas: experimentação corporal, compartilhamento da vivência
e reflexão sobre a vida e a formação acadêmica. O objetivo central fora conhecer,
investigar e salvaguardar o universo da capoeira, reconhecida em 2008 como
Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil e, em 2014, Patrimônio Cultural da
Humanidade, pela Unesco, explorando a sua contribuição à formação educacional,
numa perspectiva transversal às grades curriculares.
Buscou-se potencializar a singularidade de cada ser em suas dimensões sensível,
poética e relacional, conectadas a um pertencimento histórico, cultural e ancestral - a
capoeira, reconhecida como um bem cultural. Posterior ao momento do
compartilhamento, registros narrativos eram produzidas pelos participantes. Seguem
abaixo, os produzidos na sétima e última oficina, fim de maio, de 2015, por mais ou
menos quinze participantes, os que ficaram até o fim. Vale destacar que algumas
pessoas saiam antes do fim, por compromissos, outros.
...bom psicólogo precisa além de desenvolver a escuta para o outro, estar aberto
para “experiências... para ter condição de entrar em contato com o outro; … quebra de
paradigmas sobre o que é a capoeira, não é só atividade física…; ...relação com a
cultura, diferentes culturas…; ...conhecer pessoas diferentes, novas, de outros cursos –
amplia o repertório pessoal, visão de mundo e, portanto, colabora com a formação
profissional, acadêmica e pessoal...;... acesso à história, memória, ancestralidade ...
pensar sobre isso... não se fala disso no dia a dia, não se pensa o que temos a ver com
essas questões...;...conhecer, pensar, conversar sobre a história do negro...sobre a nossa
história …;...se não fosse essa pesquisa, não haveria esse momento de conhecimento
histórico, sobre a identidade cultural do Brasil...;...conhecer o sofrimento dos escravos
implica em nos darmos conta da cumplicidade da sociedade com a escravidão, com o
racismo…; … momento de entrega, de emoção, de coração…;... quebra de paradigmas
sobre: pessoas, sobre os cursos/formação ... humanas, exatas... se faz estereótipos...
sobre a professora, pesquisadora se apresentar como “capoeira”. (PARTICIPANTES
DA OFICINA, 2015)
“capoeira é sentimento de poder”
“é a hora que saio da zona de conforto e encontro a liberdade”
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“capoeira é preencher espaços vazios”
Há algum tempo, a temática da inclusão tornou-se recorrente e polissêmica, com
entendimentos e práticas diversificadas. Enquanto uma concepção educacional de
abertura às diferenças, a inclusão escolar fomenta possibilidades diversificadas de
construções subjetivas e identitárias, em prol de uma sociedade plural, responsável e
ética (MANTOAN, 2003). Apoiando-nos em Silva, Hall e Woodward (2013)
discutimos, em estudos já concluídos, a produção social de significados, sentidos e
posicionamentos de sujeitos sociais decorrentes de critérios de pertencimento e
processos de subjetivação, questionando-se a produção de identidade e de diferença em
contextos educativos (LIMA, 1998, 2003, 2007, 2008).
A inclusão, como a entendemos, é um princípio educativo de largo e intenso
alcance, com potências múltiplas, como: problematizar as fronteiras e/ou critérios e
condições de pertencimento social e cultural que forjam enunciados, processos de
subjetivação e produção de identidades.
Pautando-se na noção de diferença, refuta-se a naturalização e a fixação de uma
identidade prescrita, cujo padrão de desempenho intelectual e social delineia uma
performance e/ou idealiza um sujeito previsível, (re)produtivo e normatizado.
O indivíduo, entendido como devir, está numa encruzilhada, como um terminal
(GUATTARI, 2001). Ao ser atravessado por vetores discordantes, ele é subjetivado nos
espaços e tempos educacionais. Este processo ocorre continuamente e dinamicamente,
de modo tão mais singular ou alienado, conforme as suas e as dadas condições e
possibilidades de lidar ou “jogar” com os vetores/fluxos/campos de forças - discursivos
e não discursivos - de subjetivação que o transpõem, subjetivando-o, tornando-o sujeito.
Nessa perspectiva, entende-se que o ser humano se constitui a partir de
enunciados e de agenciamentos que o atravessam e com os quais ele interage
ativamente, lidando, a sua maneira, tão mais alienado ou singularizado, conforme seus
processos, espaços, tempos e modos de subjetivação. Isto é, estilo de vida ou estéticas
existenciais (DELEUZE, 2010). Considera-se que o ser humano é um ser vulnerável e
atravessado por uma complexidade de universos que o singularizam e/ou massificam,
infinitamente. Vetores, devires que encaminham o seu estado de sentir, agir, pensar.
Deleuze (2010, p.175) chama de afectos “devires que transbordam aquele que passa por
eles (tornando-se outro)”.
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A noção de sujeito aqui proposta e discutida distancia-se de uma metanarrativa,
uma teoria geral, universal, regida por leis e regularidades que esquadrinham e
justificam enunciados previsíveis e lineares sobre o fenômeno humano (SILVA, 1994).
Assim, ao invés de natureza humana, trata-se de um jogo de devires, forças-potências-
fluxos que se afetam (DELEUZE, 2010; GUATTARI E ROLNIK, 2010 ).
A perspectiva inclusiva da maneira como explicitamos questiona concepções e
valores sobre os quais as práticas sociais e pedagógicas forjam identidades: por meio
dos procedimentos institucionais que incidem sobre as relações sociais e afetivas
constituindo-as, produzindo subjetividades. Esse tem sido o recorte de discussões que
desenvolvemos acerca da inclusão, entendida como princípio e implicada num propósito
de transformação, pautado na tensão e embate entre identidade e diferença, entre o
mesmo e o outro, entre o familiar e o estrangeiro, entre o previsível e o possível, entre a
mesmidade e o diferimento.
De acordo com Guattari (2001), a relevância de se engendrar novas práticas
centradas no respeito à singularidade é fundamental, pois os efeitos do poder capitalista
ampliam-se não apenas sobre o conjunto da vida social, mas, especialmente, infiltrando-
se na interioridade dos indivíduos por meio de “componentes de subjetivação” que
massificam. Vale ressaltar que o movimento inclusivo é extensivo à vida e sujeitos
sociais, portanto, não está circunscrito a um grupo social – os sujeitos da educação
especial: pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas
habilidade/superdotação.
Reconhecer e lidar com as diferenças envolve posicionamentos frente ao que não
é idêntico, previsível e estabelecido, em nós e no outro, questionando a ordenação do
mundo em suas formas de educar, pertencer, enunciar, perceber e interagir, na tensão e
no embate em que se manifestam as singularidades em suas estéticas e formatos
diversificados.
“Contato: tenhamos coragem para despertar. Assim como o relacionamento nos
modifica, não somos estáticos. Não nascemos para ficar sozinhos. Somos seres de
contato. Só aprendemos pelo contato. Através do contato buscamos nossa felicidade.
E unidos nos tornamos mais fortes”.
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Educação é cultura. E cultura implica em saberes, fazeres, valores e estilos
estéticos que ordenam e conferem sentido aos comportamentos, modos de sentir e
interpretar acontecimentos que animam a vida e o viver compartilhado. Entendidas
como empreitada humana, historicamente circunstanciadas, e tecidas no jogo de poder
inerente às relações sociais, as culturas agenciam modos de vida ou estéticas de
existência (BHABHA, 2013). Nesta perspectiva, a noção de cultura não comporta uma
visão unívoca, hierárquica e classificatória, nem se restringe à tradição e costumes
partilhados (VEIGA-NETO, 2003).
As culturas, como um tear vivo, enunciam visões de mundo. Compõem diferentes
arranjos e tessituras que funcionam como eixos/referentes para a formação humana.
Tais enunciados são bens culturais. Estes carregam sentidos e significados simbólicos
de uma memória coletiva e histórias compartilhadas que, na materialidade dos
encontros e vida social, são reeditadas, ressignificadas. Torna-se, assim, de fundamental
relevância promover e garantir a preservação, a divulgação e o fomento de patrimônios
culturais, garantindo acesso às comunidades, favorecendo a apropriação e recriação de
práticas culturais por sujeitos sociais.
O Brasil é uma nação mestiça e híbrida, um mosaico étnico heterogêneo,
decorrente de diferentes matrizes, tradições e saberes que se interpenetram. Todavia,
atravessada por preconceitos monoculturais e colonialistas, a população nem sempre se
identifica e/ou reconhece o seu pertencimento étnico frente ao conjunto de
manifestações e expressões do que é reconhecido como patrimônio cultural imaterial.
Dificulta-se, assim, o entendimento, a valorização e a legitimidade de bens culturais
como instâncias educativas, em ambientes e experiências educacionais.
O reconhecimento do patrimônio cultural na formação dos sujeitos sociais destaca
o cunho educacional e inclusivo de bens culturais, na perspectiva de uma educação
patrimonial e inclusiva. Entende-se por educação patrimonial ações e processos
educativos que possibilitem aos atores envolvidos conhecer, compreender e dialogar
com referências culturais que constituem patrimônios, fomentando o reconhecimento de
bens culturais na formação de suas identidades e memórias, criando sentidos e
significados para a preservação de tais referências (FLORENCIO et al, 2014). Assim, a
noção de salvaguardar bens culturais ganha destaque e legitimidade enquanto noção
educacional inclusiva necessária à formação cultural e à criação humana.
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A capoeira, nessa perspectiva, reconhecida como bem cultural imaterial afro-
brasileiro preserva, resgata, fomenta, divulga e recria referências culturais, oriundas da
ancestralidade e matrizes africanas.
“é errando que se aprende, estar em roda, olhar nos olhos”
A capoeira foi reconhecida como um bem cultural, patrimônio imaterial brasileiro
em 2008, por ocasião da gestão de Gilberto Gil como ministro da cultura. De lá para cá,
manifestações de culturas, “populares, subalternizadas”, têm sido reconhecidas como
bens culturais, não apenas a capoeira - o Jongo é outro exemplo - conquistando certa
visibilidade, por meio de políticas culturais que reconhecem a relevância de saberes e
tradições na memória coletiva e em processos de construção de sentimentos de
pertencimento e/ou identidades culturais.
Em Campinas, São Paulo, foi publicado, em Diário Oficial, a Lei Nº 14.701 De 14
De Outubro De 2013 (CAMPINAS, 2013), que institui no âmbito da Secretaria
Municipal de Cultura, o Programa Municipal de Patrimônio Imaterial. E, em
12/12/2013 o Conselho de defesa do patrimônio cultural de Campinas - CONDEPACC,
em reunião ordinária, ata 427, aprova por unanimidade o Registro do Bem de Natureza
Imaterial “Capoeira”, no Livro de Formas de expressão, como um patrimônio cultural
campineiro (CONDEPACC, 2014, pp. 3, 4).
Vale destacar, por percepção e vivência com capoeiristas, que estes eventos de
reconhecimento oficial ainda não se traduziu em avanços no âmbito do cotidiano e das
práticas sociais, no que diz respeito à capoeira e seus respectivos detentores de saber, os
mestres e professores de capoeira. Muito embora, o reconhecimento oficial e formal da
capoeira como patrimônio cultural imaterial possa significar uma conquista importante,
possibilitando uma re-conceitualização. Afinal, não se trata de um fato natural, pois, no
decorrer dos tempos, desde a época da escravidão até os nossos dias, a capoeira passou
por várias fases, quanto às atribuições de enunciados e significados: foi, em 1890,
criminalizada; ao sair do código penal, foi estilizada, escolarizada e, recentemente,
reconhecida oficialmente como um bem cultural campineiro, nacional e da humanidade.
Considerando-se o até então exposto, problematiza-se a noção de cultura no
âmbito dos espaços e tempos educacionais, sobretudo o questionamento sobre seleção,
elegibilidade e legitimidade de critérios, enunciados e valores que definem o que deve
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ser considerado ou não, reconhecido ou não, valorizado ou não acerca de experiências e
sujeitos sociais, bem como suas estéticas, saberes, tradições (HALL, 2013; CANDAU,
2008; BHABHA, 2013; SANTOS, 2006, 2010).
As referências culturais legitimadas socialmente são pertinentes a
posicionamentos de poder social, político e cultural – de enunciação, posto que estas
dimensões não são independentes, mas interconectadas e interdependentes, cujos
sujeitos e experiências sociais são valorizadas enquanto outros são ocultados e
desqualificados. A este respeito, Boaventura de Souza Santos (2006, 2010) destaca a
ocultação de sujeitos e experiências sociais por uma epistemologia hegemônica imposta
por um processo de colonização elitista, eurocêntrico e racista que, para além do
domínio territorial, político e econômico, envolve, sobretudo, uma produção de
discursos e enunciados. Estes, consubstanciados em uma visão monocultural, assumida
e/ou compartilhada socialmente como legítima, verdadeira e unívoca, tão excludente
como autoritária, silencia, invisibiliza e desqualifica uma ampla gama de linguagens,
visões, expressões, crenças, códigos e tantas outras manifestações que caracterizam as
experiências sociais e seus modos e estéticas de existências em um país constituído por
tantas etnias e culturas. Nas palavras de Santos (2010), “as epistemologias do sul”. Por
outro lado, essas “epistemologias do sul”, por demandas e conquistas de “novos”
sujeitos de direitos nos espaços e tempos educacionais, que reclamam a legitimidade da
diferença, de modo que as culturas possam romper com a colonização monocultural e
excludente, tensionam a hegemonia monolítica epistemológica colonial.
“diferença; cultura afro-brasileira; renovação; possibilidades…”
Com vistas a uma conclusão…
Fragmentos, traços, signos, sentidos e significados condensados de experiências
com a capoeira, compõem narrativas compartilhadas, sem adaptações, ao longo desse
texto. Por serem passíveis das mais diversas traduções, ressaltamos a relevância de se
dar visibilidade às expressões das experiências dos sujeitos de pesquisa em educação, a
fim de que vozes múltiplas e díspares possam ter escuta, enunciando saberes tecidos em
outras ordens e registros. Registros esses, poéticos, sensíveis, ancestrais. As breves e
pontuais narrativas produzidas ao final de cada oficina de capoeira, expressam pistas
significativas de dizeres insurgentes da experiência sobre como e quais são as
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contribuições possíveis da capoeira à comunidade educacional, numa perspectiva
transversal às grades curriculares, indagação central dessa pesquisa.
Entre tantas possibilidades de análise e interpretação, esses relatos parecem
indicar o alcance que as experimentações promovidas pelas oficinas vivenciais de
capoeira proporcionaram a respeito de visão de mundo, memória, pertencimento,
história, conceitos, e suas implicações nas relações pessoais, sociais e institucionais.
Nesse sentido, aponta a singularidade e a multiplicidade de contribuições possíveis da
capoeira, a partir de outras linguagens, como a estética, a artística, a política, enfim,
outras potências e intensidades, alargando as fronteiras e deslocando as referências
na/da formação de comunidades educacionais, sobretudo, a acadêmica, escopo dessa
pesquisa. De fato, uma educação contemporânea, ao assumir a diferença como
princípio inclusivo, reconhece a multiplicidade de territórios, linguagens e saberes
educativos, demandando intercessões entre culturas, diferença e inclusão, como essa
pesquisa propôs. Vale, uma analogia entre as narrativas dessa pesquisa e um estilo
tradicional de poesia japonesa, o haicai, que busca manifestar a singeleza da
experiência humana na sua forma mais concisa e objetiva. Assim, “a experiência, não
ter medo... aqui a vergonha e limitação não podem ficar!”
Ressalta-se o limite do estudo, sendo uma versão possível, numa margem móvel,
posto que a experiência é intraduzível e incomensurável.
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