DIFERENTES PERCURSOS DE TRADUÇÃO DA ÉPICA ...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEORIA LITERRIA
E LITERATURA COMPARADA
DIFERENTES PERCURSOS DE TRADUO DA PICA
HOMRICA COMO PARADIGMAS METODOLGICOS
DE RECRIAO POTICA
Um estudo propositivo sobre linguagem, poesia e traduo
Orientadora: Aurora Fornoni Bernardini
Orientando: Marcelo Tpia
Tese apresentada Banca Examinadora para obteno
do grau de Doutor em Teoria Literria e Literatura Comparada
2012
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Resumo: A tese discute, inicialmente, a conceituao de poesia, a especificidade da
traduo potica e as possibilidades de anlise de poemas, para, com base nessas
consideraes, analisar fragmentos das tradues da pica de Homero lngua
portuguesa realizadas por Manuel Odorico Mendes, Carlos Alberto Nunes e Haroldo de
Campos, considerando-se as respectivas concepes acerca da atividade tradutria. A
partir das obras estudadas, busca-se a identificao de diferentes paradigmas
metodolgicos de recriao potica, apresentando-se, por fim, uma proposta de mtodo
tradutrio da poesia pica que envolve uma concepo rtmica baseada em
possibilidades de adaptao, em portugus, do padro hexamtrico da poesia greco-
latina.
Palavras-chaves: Poesia; traduo potica; recriao potica; pica grega; Homero.
Abstract
Firstly, the present thesis discusses the conceptualization of Poetry, the specificity of
poetry translation and possible ways of analysing poems; and bearing these aspects in
mind, the aim is to analyse some excerpts of Homers Epic translated into Portuguese
by Manuel Odorico Mendes, Carlos Alberto Nunes and Haroldo de Campos, taking into
consideration their respective views on translation work; next, by using the works
analysed, different methodological paradigms applied to poetic recreation are identified;
and finally, a proposal for a translational method deemed suitable to Epic poetry is
presented, envolving a rhythmic conception based on possibilities of adaptation to Portuguese
of the Greek and Latin hexameter patterns.
Keywords: Poetry; poetic translation; poetic recriation; Greek epic; Homer.
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Este trabalho dedicado memria de minha me,
Maria Aparecida Belli Tpia, e ao meu pai, ngelo Tpia Fernandes.
Agradeo minha mulher, Prola Wajnsztejn Tpia, e ao meu filho Daniel Tpia, pela
cooperao e pelo estmulo; minha filha Ana Luiza Tpia, de modo especial, por sua decisiva
influncia em minha iniciativa de formar-me, ainda que tardiamente, em Letras.
Agradeo, tambm, a Aurora Bernardini, por ter-me concedido o privilgio de me acolher
como seu orientando, e a Jaa Torrano, por seus to proveitosos conselhos.
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Sumrio
Introduo...5
Captulo I
1. Sobre poesia e traduo potica.................................................................................................9
A. A questo da especificidade da linguagem potica...................................................................9
B. Traduo potica: incertezas, caminhos e superao da impossibilidade...............................50 B.1. Reflexes sobre a tarefa do tradutor de poesia.....................................................................50
B.2. Consideraes sobre a impossibilidade da traduo potica .............................................. 68
B.3. Breve panorama terico e histrico da traduo...................................................................71 B.3.1. Panorama atual das teorias da traduo.............................................................................77
B.4. Breve discusso sobre a possibilidade metodolgica de comparao entre tradues.........81
B.5. Esboo de uma proposta de anlise............................................................................ ..........88
Captulo II
A. Os tradutores cujas obras sero, centralmente, objeto de estudo:
apresentao e contextualizao.............................................................................................95 A.1. Manuel Odorico Mendes (1799-1864).................................................................................95
A.2. Carlos Alberto Nunes (1897-1990)....................................................................................107
A.3. Haroldo de Campos (1929-2003).......................................................................................114 B. Poetas-tradutores, tericos da traduo potica no Brasil:
um trabalho precursor de conceitos e prticas atuais............................................................122
C. A teoria da transcriao, de Haroldo de Campos:
a traduo como prtica isomrfica / paramrfica ...............................................................124 C.1. Transcriar fazer de novo ou refazer o novo? Um exemplo de transcriao.....................131
C.2. A tarefa do tradutor de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos.........................133
C.3. A recriao pela estrutura...................................................................................................137 C.4. Sobre a transcriao da Ilada.............................................................................................140
Captulo III Vozes para Homero....................................................................................................................144
A.1. Sobre a poesia pica grega: a questo da oralidade............................................................145
A.2. Ilada: fragmentos...............................................................................................................152
A.3. Anlise comparativa das tradues: uma primeira abordagem..........................................154 A.4. Caminhando em possibilidades de anlise.........................................................................181
Captulo IV Proposio de referncia rtmico-mtrica associada a mtodo tradutrio:
o hexmetro em portugus..........................................................................................................240
1. Apresentao sucinta de um mtodo tradutrio.....................................................................261
Concluso...................................................................................................................................271
Bibliografia.................................................................................................................................275
Apndices...................................................................................................................................282
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Introduo
A traduo de poesia um terreno movedio. Cho deslizante sobre o qual se
atua, feito de elementos errantes como as rochas mencionadas no canto XII da Odissia.
Mas no s pelos obstculos: tambm pela incerteza, pela mutabilidade do sentido, pela
multiplicidade de opes potencialmente vlidas.
Admitindo-se que a poesia exista pela especificidade de sua linguagem, e que a
traduo de poesia seja possvel o que se admite e se busca discutir neste estudo
ser na diversidade que se podero obter, talvez (como aqui se quer demonstrar),
indicativos de pontos de convergncia de processos de criao e recriao.
Este trabalho elaborado com a perspectiva de entendimento da teoria literria
como um amplo campo no qual se pode recorrer a fundamentos provenientes de uma
abordagem interdisciplinar se iniciar com uma discusso sobre a natureza da poesia,
tendo-se, como referncia, diferentes esforos tericos voltados identificao e
definio do que se entende por potico. Argumentos contrrios a essa possibilidade
de identificao de caractersticas imanentes linguagem potica (e que envolvem,
portanto, a sua distino da prosa) sero tambm considerados, procurando-se algum
pensamento norteador para a tarefa empreendida, que incluir anlise de trechos da
poesia homrica e de suas recriaes em nossa lngua. Assim, far parte de nossos
propsitos a reflexo sobre procedimentos de anlise, assim como a proposio de
certos procedimentos que se consideraro adequados aos objetivos gerais do estudo.
Como no poderia deixar de ser, tambm se discutiro pticas diversas e conceitos
referentes traduo, e particularmente traduo de poesia, aplicando-se, nas anlises
e nas propostas que sero feitas relativamente tarefa tradutria, as concluses
consideradas pertinentes como fundamentao para as formulaes introduzidas.
Ns, leitores de lngua portuguesa, somos privilegiados pela oferta generosa de
tradues da pica homrica ao nosso idioma. E isso, mesmo desconsiderando-se as
diversas verses em prosa, que escaparo ao campo de interesse deste trabalho,
dedicado essencialmente a questes sobre traduo de poesia a partir de um objeto de
interesse, tomado como fonte para identificao de modos e procedimentos tradutrios.
Para cumprir sua finalidade, o estudo se valer de obras que se pretendem guardadas
as diferenas de poca, de princpios e de resultados produtos do que poderamos
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chamar de traduo potica dos poemas gregos, ou seja, de um processo tradutrio que
busca atender s expectativas de realizao de poemas picos em nossa lngua, a partir
das composies originais. Hoje, apenas no Brasil, dispomos de trs verses integrais da
Ilada a de Manuel Odorico Mendes (em versos decasslabos), publicada em 1874; a
de Carlos Alberto Nunes (em hexmetros dactlicos), publicada em 1962, e a de
Haroldo de Campos (em dodecasslabos), publicada em dois volumes, 2000-2002, alm
de tradues parciais significativas, caso da apresentada, em 2000, por Andr Malta
Campos (em versos compostos pela juno de dois heptasslabos). Dispomos, tambm,
de quatro verses da Odissia a de Manuel Odorico Mendes (tambm em
decasslabos), a de Carlos Alberto Nunes (tambm em hexmetros), a de Donaldo
Schler (em versos livres) e a de Trajano Vieira (em dodecasslabos), alm de uma
quinta, a sair, de Christian Werner (em versos livres); tambm h tradues
significativas de excertos da obra, caso das realizadas por Haroldo de Campos (em
dodecasslabos), que vieram a lume postumamente, em 2006.
Este estudo se concentrar na obra dos dois primeiros tradutores da obra integral
de Homero no pas, Odorico e Nunes, e no trabalho de Haroldo de Campos, que, alm
de particularmente importante como realizao esttica, associa-se ao mais
desenvolvido e influente constructo terico sobre traduo potica levado a termo por
um poeta brasileiro. Por essa razo, e por representar, sua verso da Ilada, a
contribuio da maturidade de um tradutor-pensador da recriao de poesia, a produo
terico-crtica de Campos constituir uma dimenso relativamente privilegiada deste
trabalho.
As demais tradues mencionadas dos poemas homricos no sero
investigadas, por necessidade de delimitao do j vasto objeto; dadas sua riqueza e sua
significao, talvez venham a constituir, futuramente, o foco de algum novo trabalho
que eu venha a empreender.
Uma abordagem referencial, a ser demonstrada
A argumentao que dever ser construda ao longo deste estudo ter, de certo
modo, como ponto de partida e de chegada, a referncia norteadora (prvia, portanto, ao
pensamento a ser elaborado, e alvo da concluso de seus objetivos) de uma
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conceituao de Haroldo de Campos sobre traduo potica, brevemente apresentada a
seguir.
Em anotaes manuscritas para uma apresentao realizada em 13 de dezembro
de 1979, Campos esquematiza pensamentos seus que se encontram, de diversas formas,
expostos no conjunto de seus textos tericos sobre traduo potica, os quais visam a
construir o conceito do que denomina transcriao. Elabora, contudo, um esquema
que encontra particularidade em sua configurao terica, pelo enfoque que traz
relativamente definio da traduo de poesia. Em vez de se ater ao conceito fundador
de sua teorizao, manifesto em diversos ensaios a traduo como prtica isomrfica
ou paramrfica , nestas anotaes ele a entende como uma operao semitica, em
dois sentidos. O primeiro desses constitui-se no sentido estrito: o de que a traduo
potica uma prtica semitica especial, na medida em que visa ao intracdigo que
opera na poesia de todas as lnguas. Para o autor,
esse intracdigo, definido de um ponto de vista lingustico, seria o espao
operatrio da funo potica de Jakobson, ou na expresso alegrica de Walter
Benjamin, die Reine Sprache, a lngua pura, a ser desocultada, resgatada, pela
operao tradutora, no cerne do original (ao invs do contedo, cuja transmisso
afeita traduo referencial).
O segundo, o sentido lato, diz respeito traduo como um processo semitico, de
semiose ilimitada. Afirma Campos:
A traduo o captulo por excelncia de toda teoria literria, na medida em que a
literatura um imenso canto paralelo, um movimento pardico, em que uma dada
tradio sempre reproposta e reformulada na traduo. [...] Processo de semiose
ilimitada, maneira de Peirce.
Assim, a traduo seria correlata da prpria literatura, e do processo essencial de
sua realizao, como campo abrangente de produo parodstica.
Pelo teor sinttico e consistente da abordagem, por seu amplo alcance e pelas
questes que desperta incluindo-se a da prpria noo de intracdigo, ou da
dimenso intratextual estas breves anotaes podem consistir num marco prvio e
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posterior a minha prpria tentativa de contribuio ao pensamento sobre traduo
potica em geral, e sobre a recriao da pica de Homero, em particular.
A ttulo de ilustrao, veja-se uma cpia da referida pgina manuscrita1 por
Haroldo de Campos, da qual resultaram as observaes aqui inseridas:
1A cpia do manuscrito de Haroldo de Campos (assim como de outras pginas reproduzidas neste
trabalho) foi-me gentilmente cedida pelos herdeiros do autor, durante processo de pesquisa de sua obra e
de seus originais, do qual participei, a fim de organizar, em colaborao com Thelma Nbrega, uma
edio contendo artigos de Campos sobre traduo potica, quase todos originalmente publicados em
peridicos e no recolhidos em livro (o volume ser publicado em 2012 pela Editora Perspectiva, com o
ttulo de Transcriao, e conter reproduo de originais do autor).
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Captulo I
1. Sobre poesia e traduo potica
A. A questo da especificidade da linguagem potica
Ao considerar as verses da pica grega ao portugus como trabalhos de
traduo potica, de modo a associ-los ao pensamento sobre traduo prprio dos
diversos tradutores abordados neste estudo, e a vislumbrar neles diferentes percursos
tradutrios que podem constituir paradigmas metodolgicos de recriao, torna-se
necessria a formulao acerca do que se entender por poesia, para, em seguida,
conceituar-se preliminarmente a traduo potica como atividade recriadora.
A poesia existe? Esta questo revela a natureza da reflexo relativizadora que
marcou as ltimas dcadas do sculo XX, por influncia da obra de pensadores como
Jacques Derrida2, Roland Barthes e Stanley Fish, entre outros, que propiciaram a
formao do que seria a conceituao ps-estruturalista acerca da linguagem. Para situar
o problema numa breve abordagem geral, que servir como referncia a
complementaes menos ligeiras, opto3 por valer-me da quase totalidade de um artigo
cujo ttulo consiste na pergunta com a qual se inicia este pargrafo por mim escrito
com a finalidade de apresentao do problema a um pblico indiferenciado4,
procurando-se adequar a linguagem a seus objetivos gerais:
[...] Ao questionarmos a existncia da poesia, teremos dois caminhos: ou
responder, de imediato, com um simples e indignado sim (eu mesmo dedico
grande parte de minha vida a ela, direta ou indiretamente, e no creio devotar-me a
algo inexistente), ou principiar uma discusso que certamente no cabe nos limites
de um texto de uma coluna como esta. Mas o assunto surgiu porque penso que
talvez seja interessante relatar duas breves experincias vividas durante os cursos
que tenho dado [...] em torno do tema Poesia: leitura, anlise e interpretao. A
2 Obras dos autores referidos, relacionadas ao tema, constam das Referncias Bibliogrficas. 3 De modo atpico, num trabalho desta natureza, uma vez que o artigo poderia integrar os anexos; tal
expediente se deve minha viso de que as reflexes e experincias nele relatadas sero teis como
introduo s discusses posteriores. 4 Trata-se de uma coluna em site literrio (Cronopios: www.cronopios.com.br) consultado em
24/11/2011.
http://www.cronopios.com.br/
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primeira aconteceu j h algum tempo, [...] e foi uma proposta inspirada no
conhecido estudo do terico e professor norte-americano Stanley Fish (autor de Is
there a text in the class? The authority of interpretive communities [1980]), que
pediu a um grupo de alunos dedicados ao estudo da poesia religiosa do sc. XVII
que analisassem o poema escrito na lousa; na verdade, o que havia no quadro era
uma relao de nomes de autores que integravam uma bibliografia sugerida. Os
estudantes habituados anlise, e dotados de repertrio para tanto realizaram a
tarefa a contento, estabelecendo correlaes entre os nomes; isso levou o autor a
considerar a literariedade um constructo motivado: para ele, a interpretao no a
arte de entender, mas a arte de construir; afirma, tambm, que o que reconhecido
como literatura resulta de uma deciso da comunidade interpretativa acerca do
que literrio ou no. fcil encontrar exemplos que ilustrem esta ltima
proposio: alguns poemas hoje considerados como tal no o seriam um sculo
atrs... Mas voltemos experincia qual me referi: tomei dois trechos de textos
que no foram escritos como poemas um fragmento de um dos Ensaios de
Montaigne e outro da coluna assinada por Contardo Calligaris no jornal Folha de
So Paulo e os apresentei (divididos em versos) como poemas aos alunos,
pedindo que discutissem suas caractersticas. Conforme esperava, os grupos
assinalaram diversos aspectos considerados interessantes nos poemas, levando-
os a srio como poesia de fato, nossa leitura decisiva na qualificao de um
texto. Mas ocorreu algo que d subsdio para outra questo: um dos alunos
observou que os poemas seriam logopeias. Referia-se classificao de Pound
sobre as modalidades de poesia, enquadrando os textos analisados naquela
categoria em que prevalece a dana do intelecto entre as palavras, ou seja, em
que o engendramento lgico prevalece sobre outros aspectos como a musicalidade
(quando esta prepondera, trata-se de melopia) ou a fora de imagens (o
prevalecimento desta caracteriza a fanopeia). Ou seja: notou que, embora
aqueles textos fossem poesia pois assim lhe foram apresentados no se podia
destacar neles, por exemplo, a melodia dos versos; eram, conforme lhe parecia,
poemas de um tipo mais semelhante prosa. Quero discutir com isto a questo de
que, se a leitura pode atribuir a um texto um teor qualquer desde que haja deciso
comunitria acerca de sua qualificao, isto no quer dizer que no existam
elementos que lhe so intrnsecos e que permitem sua observao diante da leitura
adequada. Isto pode parecer bvio, mas no bem assim, pois, com base na ideia
da leitura como uma arte de construir, pode-se dizer como o faz Rosemary
Arrojo em seu j clssico Oficina de traduo que o potico , na verdade,
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uma estratgia de leitura, uma maneira de ler e, no, [...] um conjunto de
propriedades estveis que objetivamente encontramos em certos textos. Quando
se diz propriedades estveis est-se pensando nos sentidos do poema, que,
conforme tal viso afinada com as proposies ps-estruturalistas e,
particularmente, com o desconstrucionismo de Jacques Derrida decorrem da
leitura: como leitores do poema diz Arrojo aceitamos o desafio implcito de
interpret-lo poeticamente e passamos a procurar um sentido coerente para ele;
tal sentido contribuir para a construo de uma interpretao. De acordo com
essa concepo, quando lemos um texto poeticamente, passamos a buscar
dimenses de sentido compatveis com a prpria ideia de poema, que pode ser a de
um texto capaz de dizer muitas coisas ao mesmo tempo, e que tenha na
ambiguidade, muitas vezes, um instrumento gerador de sentido inesperado,
inslito; um texto em que todos os seus elementos devam ser considerados, numa
teia de associaes, no processo interpretativo, que pode resultar em concluses
diversas e igualmente verdadeiras (considerando-se que no h, do ponto de
vista da desconstruo, verdade original ou estvel). Se pensarmos em termos de
sentido, no haver, mesmo, propriedades ou elementos fixos no texto; a leitura
cria significados mesmo porque estes no existem como nicos e estveis
dentro de uma lngua. Mas e sem querer levar muito longe esta discusso, que
pode ser infindvel e infinita no se pode negar, sob outro ponto de vista, que
uma leitura, ao envolver mltiplas possibilidades interpretativas, ter de atentar
para aqueles elementos que l esto, inclusive com suas caractersticas sonoras e
visuais (quando for o caso), que, por sinal, contribuem para a construo do
sentido. Mesmo que eu possa ler como poema um texto que no foi criado como
tal, isto no quer dizer que no possa distinguir nele caractersticas que me
permitam, por exemplo, afirmar que no apresenta musicalidade, ou imagens, ou
que a sonoridade produzida por seus constituintes pobre; e, embora eu possa
justific-lo como poema a partir de outras qualidades que nele encontre, ele no
ser visto como uma melopia, mesmo que eu me esforce para tanto. (Antes de
prosseguir, um parntese: claro que a ideia sobre o que poesia mudou e muda
com o tempo e o contexto, e que, hoje, h uma pluralidade indefinida do que se
considera poesia, inclusive a j usual poesia em prosa; mas, pensando no
experimento de Fish, quanto de sua autoridade sobre os alunos no restringiu uma
afirmao do tipo o rei est nu, ou seja, isto no um poema? No meu caso,
guardadas as devidas despropores, o caso seria semelhante, em que uma simples
autoridade de professor pode dificultar ou impedir uma questo alm do proposto;
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e, ademais, no meu caso particular, devo admitir que a escolha ter envolvido, de
certa forma, uma pr-leitura do que poderia dar margem a uma discusso
estimulante.) Claro que se pode dizer: mas o que considerado musical tambm
o por deciso da comunidade cultural, assim como o que vem a ser msica; so
muitos os exemplos que corroborariam esta afirmao, como o caso das
composies atonais (que sofreram grande resistncia no prprio meio em que
foram criadas) e outras, experimentais, que muitos no reconhecem como msica.
Nestes termos, no h qualquer possibilidade de definio do que seja msica,
pintura ou literatura, ou poesia; nada disso existe, a no ser a partir do acordo
que cria sua identificao. Mas, de novo a partir de outro ponto de vista, uma
composio feita de rudos e sons estranhos, com base num sistema no
convencional, ter em si um esquema de relaes ditado por suas prprias regras,
que podem ser, ou no, percebidas, conhecidas. Um poema, independentemente de
sua qualificao como musical, traz em si, por exemplo, fonemas que se repetem
ou no, palavras que trazem a mesma terminao ou no, vogais fechadas que
sucedem outras abertas, ou vice-versa; apresenta sons que escorrem fluidos ou que
se seguem em solavancos, obstculos; h a distribuio de slabas tnicas e pausas
que impem um ritmo ao conjunto; h, sim e de novo o bvio pode no o ser
uma dimenso fsica do signo (poderamos dizer que considero, aqui, em termos da
semitica de Charles Peirce, o objeto imediato do signo, isto , sua aparncia
grfica ou acstica), que uma espcie de matria-prima do artista, e que, mesmo
no se dissociando da produo de sentido pela leitura, permite o estabelecimento
de regras internas de composio e a sua identificao, por diferena relativamente
a outras obras. Assim, da mesma forma como no se pode atribuir musicalidade a
um determinado texto nascido crnica, por exemplo que, ao priorizar a funo
cognitiva (na classificao de Jakobson), empregando as palavras como signos-
para e no como signos-de (conforme a distino de Charles Morris), isto , ao
us-las como veculos que conduzem a algo, no apresenta relaes que
sobressaiam no plano sonoro, tambm no se pode negar musicalidade a um texto
que, nascido poema vale dizer, tambm, lido como um poema por seu autor
manifeste uma elaborao discernvel da tessitura dos sons. Claro , no entanto,
que mesmo um poema feito como tal e dotado de caractersticas consideradas
poticas inclusive no campo da sonoridade pode ser lido de maneira a no se
perceberem seus elementos: tudo pode passar batido pelo leitor desavisado, que
l um poema como se leria uma notcia de jornal ou uma narrativa qualquer, ou
seja, que no se dispe a uma leitura que possibilite no s a dita produo de
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sentido como tambm a simples percepo dos aspectos sonoro e visual das
palavras. O reconhecimento, portanto, de certas caractersticas do texto observadas
a partir dos sons que se relacionam entre si por diferenas e semelhanas
poderamos dizer que estamos focalizando, em termos da teoria lingustica de
Hjelmslev (para quem o signo a juno de um plano de expresso e um plano
de contedo, cada plano compreendendo os nveis da forma e da substncia),
a forma da expresso, dada pelas diferenas fnicas (lembrando que as oposies
se constroem sobre identidades) tambm depende de uma atitude de leitura que
envolve, inclusive, um repertrio voltado percepo de formas. Muitas vezes o
leitor no est preparado para observar os elementos no-verbais (embora
associados ao signo verbal ou integrantes deste) que se apresentam no texto,
compondo sua identidade rtmica e sonora, e buscar, num poema, apenas o que
este quer dizer; podemos dizer que neste caso o poema se perde, porque a leitura
no se faz poeticamente, ou seja, no visa percepo do mbito relativo ao que
Jakobson denominou funo potica da linguagem caracterizada, conforme
observa Dcio Pignatari, em seu O que comunicao potica, pela projeo de
cdigos no-verbais (musicais, visuais, gestuais etc.) sobre o cdigo verbal; esta
pode ser uma maneira de compreend-la. Como diz, ainda, Dcio, A maioria das
pessoas l poesia como se fosse prosa. A maioria quer contedos mas no
percebe formas. Se lermos poesia como poesia, ela existir para ns com tudo
aquilo que a identifica, em maior ou menor grau, conforme seu nvel de realizao
esttica alcana; e, assim, desempenhar a funo que lhe cabe, diferente da de um
texto no potico.
Mas, voltando a questes iniciais, o que dever fazer com que leiamos um texto
como poesia? Ser, acaso, a sua simples disposio em versos? No poder ser,
pois h poemas que no so em versos; e h textos assim dispostos que
dificilmente poderemos chamar de poesia. Ou ser sua qualificao anterior como
um poema? Isto nos levar a l-lo como tal, mas preciso considerar que os
critrios para tanto so variveis, e, mesmo, que a informao pode ser falsa. Ou,
ainda, outras caractersticas formais? No, pois podem ser considerados poemas
textos de caractersticas muito diversas. O que, ento? Resta-nos atentar para as
estruturas que nos permitam a percepo e consequente apreciao esttica de
elementos que se associam daquele modo peculiar que possibilitou a formulao de
um conceito como funo potica da linguagem; de nos abrirmos,
aprioristicamente, leitura esttica de um texto que se insinue como dotado de
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algo mais do que a simples funo de transmisso de mensagens; de o vermos e
ouvirmos com olhos e ouvidos o mais possvel libertos do sistema lgico-
discursivo, facultando-nos o pensamento analgico. Se o texto nos dado como
poesia, seja qual for o tipo de poema, claro que esta atitude ser ativa e
predeterminada, ainda que no o reconheamos de imediato como poesia,
conforme os padres que adotamos; se no nos for dado como tal, tambm
poderemos nos surpreender ao encontrarmos pela frente, por exemplo no meio de
um romance, trechos que parecem emergir do contexto como um ser que salta do
plano da prosa para o da poesia. o caso, entre tantos outros, de alguns fragmentos
de romances do autor cubano Alejo Carpentier e a partir de um deles que se deu
a segunda experincia a que me referi no incio deste artigo; mas como este j se
alongou muito alm de sua apropriada medida, deixemos este tema para outra vez.
Muitas so as referncias, feitas de passagem, nesse artigo aqui evocado; para
explicitar as concepes envolvidas no suporte dessa abordagem, precisaremos de
acrscimos significativos, alm de algumas reiteraes. No entanto, esse texto pode dar
conta de apresentar a complexidade da discusso, pela tentativa mais ou menos bem
sucedida de formulao de um ponto de vista. Consideraremos, neste trabalho, para a
prpria presena de um objeto de estudo no modo em que proposto, que a poesia
existe e possui caractersticas distinguveis que podemos buscar, independentemente da
diversidade do que se chama ou chamou de poesia (da antiguidade ocidental at nossos
dias).
Mencionou-se, no artigo, a terica brasileira Rosemary Arrojo; sua leitura e sua
sistematizao acerca das concepes desconstrucionistas e sua aplicao na
(in)definio e na leitura de poesia, assim como no entendimento da atividade de
traduo, sero frequentemente citados, por tudo o que possibilitam de discusso e
reflexo. Mas, antes, focalizemos, da maneira mais breve possvel (porm mais detida
que o artigo apresentado), algo do principal arcabouo terico da lingustica estrutural
(fundamentada nas noes de Ferdinand de Saussure5) sobre poesia.
No cabe apresentar, aqui, a histria do estruturalismo na lingustica, pela
limitao naturalmente imposta a explanaes de fundamentao ao tema central, e pelo
fato de ser esse um tema amplamente difundido e explorado no sculo XX; apenas
5 SAUSSURE, F. Curso de lingustica geral. Traduo de Antnio Chelini, Jos Paulo Paes e Izidoro
Blikstein. So Paulo: Cultrix, 1977.
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como indicao, contudo, e para se manter alguma iluso de autonomia deste trabalho,
leia-se uma abordagem sinttica de Michael Peters a respeito do assunto; conforme
afirma, o estruturalismo
[...] tem sua origem na lingustica estrutural, tal como desenvolvida por Ferdinand
de Saussure e por Roman Jakobson, na virada do sculo. Saussure ministrou um
curso sobre lingustica geral, de 1907 a 1911; morreu em 1913. Seus alunos
publicaram, em 1916, o livro Cours de linguistique, reconstitudo a partir de suas
anotaes de aula. O Cours de linguistique concebia a linguagem como um sistema
de significao, vendo seus elementos de uma forma relacional. [...]6
Conheam-se, tambm, os esclarecimentos de Margarita Petter acerca do tema:
Para o mestre genebrino, "a Lingustica tem por nico e verdadeiro objeto a lngua
considerada em si mesma, e por si mesma". Os seguidores dos princpios
saussureanos esforaram-se por explicar a lngua por ela prpria, examinando as
relaes que unem os elementos no discurso e buscando determinar o valor
funcional desses diferentes tipos de relaes. A lngua considerada uma estrutura
constituda por uma rede de elementos, em que cada elemento tem um valor
funcional determinado. A teoria de anlise lingustica que desenvolveram, herdeira
das ideias de Saussure, foi denominada estruturalismo. Os princpios terico-
metodolgicos dessa teoria ultrapassaram as fronteiras da Lingustica e a tomaram
"cincia piloto" entre as demais cincias humanas [...] (Fiorin, 2002: 14)7
importante que haja, aqui para que se tornem fundamentos a discusses
posteriores uma referncia breve a conceituaes e princpios estabelecidos pelo
linguista suo Ferdinand de Saussure (1857-1913). Sobre a linguagem e o conceito de
signo, diz sinteticamente Haroldo de Campos8:
6PETERS, M. Ps-estruturalismo e filosofia da diferena Uma introduo. Belo Horizonte: Autntica,
2000. 7 FIORIN, Jos Luiz (org.). Introduo Lingustica. I. Objetos tericos. So Paulo: Contexto, 2002. 8 Citao do artigo A comunicao na poesia de vanguarda. In: CAMPOS, H. de. A arte no horizonte
do provvel. So Paulo: Perspectiva, 1975, pp. 131-154.
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A linguagem um sistema de signos. O signo, ento, a unidade lingustica. Para
Saussure, cujas concepes pioneiras ainda esto impregnadas de psicologismo9, o
signo lingustico uma entidade psquica de duas faces, unindo no uma coisa e
um nome, mas um conceito e uma imagem acstica10
: o significante a imagem
sensorial, psquica (no a pura materialidade fsica do som) da forma fnica, e o
significado a imagem mental da coisa (que pode estar ligada a outro significante,
conforme o idioma). (1975: 134)
Por sua vez, Jos Luiz Fiorin observa que:
A definio de signo dada por Saussure substancialista, pois ele trata do signo em
si, como unio de um significante e um significado. No entanto, no Curso de
lingustica geral, ele insiste no fato de que na lngua no h seno diferenas, ou
seja, de que cada elemento lingustico deve ser diferente dos outros elementos com
os quais contrai relao. Por isso, preciso considerar o signo no mais em sua
composio, mas em seus contornos, dados por suas relaes com os outros signos.
Por isso, Saussure cria a noo de valor [...]. Com ela, d-se uma definio
negativa do signo: um signo o que os outros no so. O valor provm da situao
recproca das peas na lngua, pois importa menos o que existe de conceito e de
matria fnica num signo do que o que h ao seu redor. A significao , ento,
uma diferena entre um signo e outro signo, pois o que existe na lngua so a
produo e a interpretao de diferenas. (2002: 58)
pertinente por questes terminolgicas e conceituais incluir-se, aqui, a
ideia de signo para Hjelmslev11
:
Hjelmslev [...] Comea por dizer que o signo a unio de um plano de contedo a
um plano de expresso.[...] Para Hjelmslev, cada plano compreende dois nveis: a
9 A observao crtica de Campos reveladora de sua posio terica, como se poder verificar
posteriormente. apresentao do que seria o signo para Saussure, o autor faz suceder a conceituao de
signo segundo Jakobson: Jakobson, deixando de lado o mentalismo saussuriano, prefere distinguir entre
signans, o aspecto sensualmente perceptvel do signo, e signatum, o seu aspecto inteligvel, traduzvel,
para concluir: Toda entidade lingustica, da maior menor, uma conjuno necessria de signans e signatum. Assim se define o trao distintivo, na base do signans, como uma propriedade snica opositiva,
aliada ao seu signatum, que a funo distintiva do trao a sua capacidade de diferenciar significaes. 10 Campos usa, aqui, a mesma definio que aparece no Curso de lingustica geral, de Saussure: O signo
lingustico une no uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acstica (1977: 80). 11HJELMSLEV, H. Captulo Expresso e contedo, integrante de: Hjelmslev, H. Prolegmenos a uma
teoria da linguagem. So Paulo: Perspectiva, 1975.
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forma e a substncia. Assim, h uma forma do contedo e uma substncia do
contedo; uma forma da expresso e uma substncia da expresso.
[...] A forma corresponde ao que Saussure chama valor, ou seja, um conjunto de
diferenas. Para estabelecer uma definio formal de um som ou de um sentido,
preciso estabelecer oposies entre eles por traos, pois os sons e os sentidos no
se opem em bloco. [...] A mesma coisa ocorre no mbito do sentido. [..,]
Assim, o signo, para Hjelmslev, une uma forma da expresso a uma forma de
contedo. Essas duas formas geram duas substncias, uma da expresso e uma do
contedo. A forma da expresso so diferenas tnicas e suas regras
combinatrias; a forma do contedo so diferenas semnticas e suas regras
combinatrias; a substncia da expresso so os sons; a substncia do contedo, os
conceitos. (2002: 59)
So as seguintes as caractersticas do signo lingustico, assim apresentadas (aqui,
em citaes sucessivas) por J. L. Fiorin:
Para Saussure, o signo lingustico tem duas caractersticas principais: a
arbitrariedade do signo e a linearidade do significante. [...]
[...] o signo lingustico arbitrrio e, portanto, cultural. Arbitrrio o contrrio de
motivado,[...] ou seja, [...] no h nenhuma relao necessria entre o som e o
sentido [...] no h qualquer necessidade natural que determine a unio de um
significante e de um significado. Isso comprovado pela diversidade das lnguas.
[...] Algumas pessoas criticaram a concepo da arbitrariedade do signo,
mostrando que as onomatopias [...] so motivadas. No entanto, preciso dizer
que, em [...] as onomatopias ocupam um lugar marginal na lngua e, [...] elas so
submetidas s coeres fonolgicas de cada lngua [...]
O corolrio da arbitrariedade a conveno.[...]
Como diz Jakobson12
, o prprio Saussure atenuou seu princpio fundamental
do arbitrrio, distinguindo em cada lngua aquilo que radicalmente arbitrrio
daquilo que s o relativamente (1973: 109). Explica Fiorin:
[...] Jakobson (1969:98-117)13
mostra que, embora estivesse correta a afirmao
saussurreana de que os signos lingusticos so arbitrrios, ela deveria ser matizada,
12 JAKOBSON, Roman . Em traduo de Izidoro Blikstein e Jos Paulo Paes. Lingustica e comunicao. So Paulo: Clutrix, 1973, 6 edio.
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pois, em muitos casos, em todos os nveis da lngua aparecem motivaes. Os sons
parecem ter um simbolismo universal. A oposio de fonemas graves, como o /a/,
e agudos, como o /i/, capaz de sugerir a imagem do claro e do escuro, do pontudo
e do arredondado, do fino e do grosso, do ligeiro e do macio. Por isso, quando se
vai indicar, nas histrias em quadrinho, o riso dos homens e das mulheres, usam-
se, respectivamente, ha, ha, ha e hi, hi, hi. Ainda nas histrias em quadrinho, as
onomatopias que indicam rudo, sons brutais e repentinos, como pancadas,
comeam sempre por consoantes oclusivas, que so momentneas, como um golpe
(p/b; t/d;/ k/g): pum, p, t. Isso no ocorre, segundo Jakobson, apenas nas
onomatopias. H regies do lxico, em que conjuntos de palavras apresentam
sentidos similares associados a sons similares. Em ingls, temos bash, "golpe";
mash, "mistura"; smash, "golpe duro"; crash, "fragor, desmoronamento"; dash,
"choque"; lash, "chicotada"; hash, "confuso"; rash, "erupo"; brash, "runas";
clash, "choque violento"; trash, "repelente"; plash, "marulho"; splash, "salpico";
flash, "relmpago".[...] (2002: 62)
Ressaltem-se as observaes que se seguem, acerca da motivao na poesia:
na poesia, no entanto, que a motivao do signo aparece em toda sua fora. O
poeta busca motivar a relao entre o significante e o significado. Essa motivao
no aparece no nvel do signo mnimo, mas no do signo-texto. Por isso, no texto
potico, o plano da expresso serve no apenas para veicular contedos, mas para
recri-los em sua organizao. O material sonoro contribui para produzir
significao, o plano da expresso colocado em funo do contedo. Os
elementos da cadeia sonora lembram, de algum modo, o significado presente no
plano do contedo. As aliteraes, as assonncias, os ritmos imitam aquilo de que
fala o poema, pois ele , na frase do poeta Valry, "um hesitao prolongada entre
o som e o sentido". Os sons na poesia so escolhidos em razo de seu poder
imitativo. Nos versos abaixo, de Os Lusadas, a repetio de consoantes oclusivas,
especialmente do /t/, imita as exploses que a tempestade produzia:
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto (V, 18, 3-4). (2002: 63-64)
13 ID Lingustica e comunicao, em sua primeira edio (1969), especificamente ao captulo procura
da essncia da linguagem, que trata da motivao de signos lingusticos.
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19
A respeito da contribuio do material sonoro para a significao, evoque-se a
teoria de Maurice Grammont, citada por Antonio Candido em seu Estudo analtico do
poema14
. Candido refere-se ao que exposto na segunda parte (Les sons consideres
comme moyens d'expression, p. 193-375) do livro Le vers franais, como exemplo de
uma teoria que afirma a existncia de correspondncias entre a sonoridade e o
sentimento15
:
Ponto de partida [da teoria de Grammont:]: "Pode-se pintar uma ideia por meio de
sons; todos sabem que isto praticvel na msica, e a poesia, sem ser msica,
(...) em certa medida uma msica; as vogais so espcies de notas [...]
Todavia, Grammont bastante prudente para observar, e em seguida insistir
repetidas vezes, que o som por si s no produz efeitos se no estiver ligado ao
sentido: "Em resumo, todos os sons da linguagem, vogais ou consoantes, podem
assumir valores precisos quando isto possibilitado pelo sentido da palavra em que
ocorrem; se o sentido no for suscetvel de os realar, permanecem inexpressivos.
[...]
Distingue os seguintes casos: 1. Repetio de fonemas quaisquer. 2. Vogais. 3.
Consoantes. 4. Hiato. 5. Rima.
Destaquem-se as afirmaes referentes necessidade de associao entre o som
e o sentido para a produo de efeitos, e, tambm, a distino, em sua teoria, dos
diferentes casos de repetio. Grammont assim se refere repetio de consoantes e
vogais:
Vogais: 1. Agudas: dor, desespero, alegria, clera, ironia e desprezo cido, troa.
2. Claras: leveza, doura.3. Brilhantes: barulhos rumorosos. 4. Sombrias: barulhos
surdos, raiva, peso, gravidade, ideias sombrias. 5. Nasais: repetem os efeitos das
bsicas, modificando-as.
Consoantes: 1. Momentneas. So as explosivas, prprias a qualquer ideia de
choque: oclusivas surdas e sonoras. As primeiras, mais fortes, produzem mais
14 CANDIDO, Antonio. O estudo analtico do poema. So Paulo: Humanitas, 1996, pp. 31-37. O contedo do livro provm de cursos ministrados pelo autor, na USP, em 1963 e 1964. 15 Ser feito, na Concluso deste trabalho, breve comentrio relativo teoria de Grammont (assim como
concepo de Castilho, mencionada na prxima pgina) luz de conceitos da semitica de C. S. Peirce.
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20
efeito (T, C, P) que as segundas (D,G, B). Exprimem ou ajudam a dar ideia de um
rudo seco repetido [...] (1996: 31-37)
No sculo XIX, o escritor e terico da versificao Antnio Feliciano de
Castilho (1800-1875) j se referia potencialidade expressiva das vogais:
Se a vogal A [...] expressa a grandeza e a alegria; o I [...] parece convir com as
ideias de pequenez e de tristeza. O E parece incapaz de algum valor onomatpico,
ou representativo, a no ser para expressar languidez, tibieza, quietao, e ainda os
gozos serenos [...] O O [...] som franco, rasgado, enrgico, como que uma
exploso da alma. [...] O U [...] sumido e soturno parece convir desanimao,
tristeza profunda, aos assuntos lutuosos: sepulcro, tmulo, fnebre, funreo etc.16
Retornando discusso sobre a arbitrariedade do signo, mencione-se a
referncia que faz Haroldo de Campos objeo de Jakobson relativamente a tal
princpio da lingustica:
Como observa Mattoso Cmara17
, Jakobson nega a arbitrariedade absoluta do
signo fonolgico, sustentando que toda lngua que toda lngua, necessariamente,
procede a uma seleo entre um limitado nmero de tipos de sons vocais e suas
combinaes, inclusive por uma injuno biopsicolgica de que resulta a presena
constante de certos tipos bsicos. A tese do linguista russo encontra respaldo nas
posies de E. Benveniste18
, para quem h uma relao de necessidade e
consubstancialidade entre os dois componentes do signo lingustico (significante e
significado). Se a lngua algo diverso de um conglomerado fortuito de noes
errticas e de sons emitidos ao acaso, isto se d porque h uma necessidade
imanente sua estrutura como a toda estrutura, afirma Benveniste. Em todo caso,
o que se poder desde logo sustentar de maneira incontrastvel que, na poesia
(onde, como proclama Jakobson, reina o jogo de palavras, a paronomsia, figura
16 CASTILHO, A. F. de. Tratado de metrificao portuguesa Para em pouco tempo, e at sem mestre,
se aprenderem a fazer versos de todoas as medidas e composies. Lisboa: Imprensa Nacional, 1851, pp. 65-70. 17 Referncia ao conceituado linguista brasileiro Joaquim Mattoso Cmara Jnior (1904-1970) que foi
aluno de Jakobson, nos Estados Unidos , autor de Histria da lingustica, entre outras obras. 18 Referncia ao linguista estruturalista francs mile Benveniste (1902-1976), conhecido por seus
estudos sobre as lnguas indo-europeias e pela expanso do paradigma lingustico estabelecido por
Saussure. Em portugus, referncia a obra Problemas de Lingustica Geral, publicada em dois volumes.
http://pt.wikipedia.org/wiki/1904http://pt.wikipedia.org/wiki/1970http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferdinand_de_Saussure
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21
esta entendida num sentido amplo de correlao de som e sentido), esta
arbitrariedade no existe. (1975: 143)
Resta apresentar a outra caracterstica essencial do signo na proposio de
Saussure, a linearidade do significante:
O carter auditivo do significante lingustico faz com que ele se desenvolva no
tempo. Ele representa uma extenso e essa extenso mensurvel numa s
dimenso, uma linha. A escrita, ao representar a fala, representa essa linearidade
no espao. [...] (FIORIN, 2002: 65)
Roman Jakobson, diga-se, questionou tambm esse outro postulado bsico da
lingustica Saussuriana; diz ele, em seu estudo Dois aspectos da linguagem e dois tipos
de afasia: Pode-se dizer que a concorrncia de entidades simultneas e a concatenao
de entidades sucessivas so os dois modos segundo os quais ns, que falamos,
combinamos os constituintes lingusticos (1973: 38)19
.
Referncias que persistem em relao compreenso e anlise da linguagem
potica, contemporaneamente, apesar das relativizaes ocasionadas pelas concepes
ps-estruturalistas20
, nas anlises de poesia, so exatamente as ideias de Roman
Jakobson21
(1896-1982) (e persistem tambm, como se poder ver, relativamente
traduo potica)22
. Sobre elas, leia-se, inicialmente, um esclarecimento sinttico sobre
poesia, do prprio Jakobson, expresso no artigo Aspectos lingusticos da traduo:
Em poesia, as equaes verbais so elevadas categoria de princpio construtivo
do texto. As categorias sintticas e morfolgicas, os fonemas, e seus componentes
19 Em seu trabalho sobre os afsicos, Jakobson aponta as duas formas para ele existentes de arranjo dos
signos: combinao e seleo; esta postulao ser fundamental para a compreenso da funo potica da
linguagem (caracterizada pela projeo do eixo de seleo sobre o eixo de combinao, como ser visto
adiante). 20 Mais adiante sero mencionados, por meio de citaes, alguns aspectos bsicos do denominado ps-
estruturalismo. 21 Cabe que se incluam em nota, como meno geral, observaes de Michael Peters:
[...] Roman Jakobson uma figura central no desenvolvimento histrico da lingustica estrutural.
Ele foi instrumental no estabelecimento do Formalismo Russo, ajudando a fundar tanto o Crculo Lingustico de Moscou quanto a Sociedade para o Estudo da Linguagem Potica (OPOJAZ), em
So Petersburgo, antes de se mudar para a Checoslovquia, em 1920, para fundar o Crculo
Lingustico de Praga. [...]Op.cit., 2000. 22 Veja-se, por exemplo, no livro O que poesia (Rio de Janeiro: 2009) a referncia presente entre poetas
brasileiros que expressam definies de carter mais tcnico ou que adotam referncias diretas a
conceitos de ordem lingustica.
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22
(traos distintivos) em suma, todos os constituintes do cdigo verbal so
confrontados, justapostos, colocados em relao de contiguidade de acordo com o
princpio de similaridade e de contraste, e transmitem assim uma significao
prpria. A semelhana fonolgica sentida como um parentesco semntico. O
trocadilho, ou, para empregar um termo mais erudito e mais preciso, a
paronomsia, reina na arte potica (1973: 72).
Ressalte-se a afirmao A semelhana fonolgica sentida como um
parentesco semntico, particularmente relevante para indicar a participao das
relaes fnicas na construo do sentido de um poema, entendimento que teremos em
vista na abordagem de certas passagens das tradues que so nosso objeto de estudo.
Ser de interesse prioritrio, para este trabalho, a formulao de Jakobson sobre
as funes da linguagem, com base em sistema elaborado pelo linguista e psiclogo
austraco Karl Bhler (1869-1963)23
. Este identificou, em 1934, a existncia de trs
dessas funes: Darstellungsfunktion, a funo propriamente comunicativa, que informa
sobre o contedo objetivo, factual, da realidade extralingustica; Kundgabefunktion
(funo de exteriorizao ou de expresso); Appelfunktion (funo de apelo ou
conativa) (Campos, 1975: 136-137). Para Jakobson, seriam seis as funes da
linguagem, associadas respectivamente a cada um dos elementos que compem o
esquema relativo comunicao verbal, por ele proposto:
23 [Bhler] [...] participou, em 1930, da Conferncia Fonolgica Internacional convocada pelo Crculo de
Praga em 1930 e [...] desenvolveu atividades na Universidade de Viena, nos anos 30. (Campos, 1975:
136)
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23
Em rpida passagem, cite-se a apresentao do primeiro quadro, por Diana
Pessoa de Barros:
Para Jakobson, na esteira dos estudos sobre a informao, h na comunicao um
remetente que envia uma mensagem a um destinatrio, e essa mensagem, para ser
eficaz, requer um contexto (ou um "referente") a que se refere, apreensvel pelo
remetente e pelo destinatrio, um cdigo, total ou parcialmente comum a ambos, e
um contato, isto , um canal fsico e uma conexo psicolgica entre o remetente e o
destinatrio, que os capacitem a entrar e a permanecer em comunicao. (FIORIN,
2002: 28)
E, de modo tambm breve, diga-se, sobre as funes, que:
1. A Emotiva, centrada no remetente, funda-se no eu, ou seja, na primeira
pessoa do singular, sendo-lhe afim a classe gramatical das interjeies, uma vez que
vida a suscitar reaes de tipo emotivo (Campos, 1975: 137). Sobre esta funo, diz
Haroldo de Campos: importante no confundir esta funo com a funo potica. O
Romantismo, privilegiando a poesia do EU, o grande responsvel por este equvoco,
que se perpetua na ideia vulgar que se tem de poesia (1975: 138).
2. A Referencial ou Cognitiva aquela fulcrada no referente, correspondente
terceira pessoa do singular. A mensagem denota coisas reais ou transmite
conhecimentos de ordem lgico-discursiva sobre determinado objeto [...] a funo por
excelncia do convvio dirio (CAMPOS, 1975: 138).
3. A Conativa, centrada no destinatrio, corresponde ao tu, a segunda pessoa
do singular; a ela se ligam as categorias gramaticais do imperativo e do vocativo: A
mensagem representa uma ordem, exortao ou splica [...] No mbito desta mesma
funo se enquadra a funo mgica ou encantatria, expressa em frmulas optativas
[...] como Deus te guarde!, ou em conjuros [...] (ib.).
4. A Ftica centra-se no contato da comunicao; seu nome provm do grego
phtis (rudo, rumor). As mensagens fticas servem para estabelecer, prolongar ou
interromper a comunicao (p. 139), consistindo em expresses como ol, al,
claro, como vai?, no ? etc.
5. A Metalingustica, centrada no cdigo, aquela em cujo exerccio a
mensagem se dirige para uma outra mensagem, tomada como linguagem-objeto [...]
Os verbetes do dicionrio exprimem tambm esta funo (p. 140).
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24
6. A Potica aquela funo em que a mensagem se volta sobre si mesma (ib.:
141). Sobre ela, diz o prprio Jakobson (as citaes que se seguem na verso ao
portugus dos tradutores j mencionados , tornaro o item relativo a esta funo maior
que os demais, dada a sua importncia para a conceituao de poesia):
O pendor (Einstellung) para a MENSAGEM como tal, o enfoque da mensagem por
ela prpria, eis a funo potica da linguagem. [...]
A funo potica no a nica funo da arte verbal, mas to-somente a funo
dominante, determinante, ao passo que, em todas as outras atividades verbais, ela
funciona como um constituinte acessrio, subsidirio... (JAKOBSON, 1973: 127-
128).
[...] Qualquer tentativa de reduzir a esfera da funo potica poesia ou de
confinar a poesia funo potica seria uma simplificao excessiva e
enganadora. A funo potica no a nica funo da arte verbal, mas to
somente a funo dominante, ao passo que, em todas as outras atividades
verbais, ela funciona como um constituinte acessrio, subsidirio. (128)
[...] qual o caracterstico, indispensvel, inerente a toda obra potica? Para
responder a esta pergunta, devemos recordar os dois modos bsicos de arranjo
utilizados no comportamento verbal, seleo e combinao. [...] A seleo feita
em base de equivalncia, semelhana e dessemelhana, sinonmia e antonmia, ao
passo que a combinao, a construo da sequncia, se baseia na contiguidade.
(129)
[...] A funo potica projeta o princpio de equivalncia do eixo de seleo sobre
o eixo de combinao. (130). [...]
Os versos mnemnicos citados por Hopkins [...], os modernos jungles de
propaganda, e as leis medievais versificadas [...] ou, finalmente, os tratados
cientficos snscritos em verso [...] todos esses textos mtricos fazem uso da
funo potica sem, contudo, atribuir-lhe o papel coercitivo, determinante, que ela
tem na poesia (131).
Sobre a funo potica e a poesia, importante ressaltar-se o seguinte
comentrio do linguista, que menciona a associao de funes nos diferentes gneros
poticos:
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25
Conforme dissemos, o estudo lingustico da funo potica deve ultrapassar os
limites da poesia, e, por outro lado, o escrutnio lingustico da poesia no se pode
limitar funo potica. As particularidades dos diversos gneros poticos
implicam uma participao, em ordem hierrquica varivel, das outras funes
verbais a par da funo potica dominante. A poesia pica, centrada na terceira
pessoa, pe intensamente em destaque a funo referencial da linguagem; a lrica,
orientada para a primeira pessoa, est intimamente vinculada funo emotiva; a
poesia da segunda pessoa est imbuda de funo conativa e ou splice ou
exortativa, dependendo de a primeira pessoa estar subordinada segunda ou esta
primeira. (1973: 129)
No caso da pica, portanto, devido a seu teor narrativo, prevaleceria, alm da
funo potica comum aos gneros a funo cognitiva; mas isto no excluir as
demais funes (lembre-se, por exemplo, de momentos de fala em primeira pessoa, de
Odisseu).
Acerca das funes da linguagem nos diversos gneros poticos, diz Haroldo de
Campos:
Na poesia, o determinante o exerccio da funo potica da linguagem, aquela
que se volta sobre o lado sensvel, palpvel dos signos lingusticos. [...] Mas o
poeta usa concorrentemente outras funes, em carter acessrio. A maneira como
ele hierarquiza as funes dentro de sua mensagem decide da natureza desta.
Assim, na poesia clssica, caracterizada pela pica, a funo cognitiva ou
referencial associada preferentemente potica, produzindo-se uma poesia da 3
pessoa, impessoal, objetiva, descritiva (na epopia h a representao do objeto em
sua objetividade mesma, Hegel). Na poesia romntica, a funo emotiva, a
poesia do eu-lrico, que ganha a palma sobre as remanescentes, associando-se
funo potica (tambm a funo mgica enfatizada pelo poeta romntico). Surge
assim uma poesia biogrfico-emocional, exortativa, suplicatria, encantatria, uma
poesia do soluo em que rebenta o sentimento pessoal, na frmula de Musset
lembrada por Antnio Cndido. Mas tanto na poesia clssica como na poesia
romntica, se as funes acessrias, determinantes do motivo primeiro do poetar
em cada uma dessas escolas, no forem, por seu turno, determinadas pela funo
potica ou configuradora da mensagem, a informao esttica no se realiza; o
poema clssico ficar ento mero enunciado prosaico de ideias, de descries, de
informaes documentrias, uma retrica do pensamento cognitivo; e o poema
-
26
romntico no assumir o estado esttico do poema, mas permanecer no grito, na
lgrima, na exploso emotiva, na retrica do corao. A fraqueza de boa parte do
Romantismo potico no Brasil e fora dele est nesse dissdio entre a motivao
emocional e a capacidade de exerccio da funo propriamente potica
(diagramadora, configuradora) por parte de alguns de seus nomes mais conhecidos
[...] A grandeza de um Cames, de outro lado, est na sua capacidade de
equacionar, na materialidade dos signos, atravs de operaes de seleo e
combinao de palavras, o seu ideal classicista e no aporte de novidade que sua
poesia traz nesse sentido em relao ao repertrio da poesia portuguesa precedente.
(1975: 147-148)
Campos prossegue numa breve anlise, exemplo (entre tantos outros que
poderiam ser aqui includos) ilustrativo de possibilidades de leitura a partir da noo
de funo potica da linguagem (e conceitos correlatos) que apontam para o exerccio
a ser feito neste trabalho, ao se abordar a pica homrica:
Cames um soberbo designer da linguagem, como se poder ver pela anlise
do exemplo seguinte:
No mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se esconde;
L, donde as ondas saem furibundas,
Quando s iras do vento o mar responde,
Netuno mora; e moram as jocundas
Nereidas; e outros deuses do mar; onde
As guas campo deixam s cidades
Que habitam estas midas deidades.
(Os Lusadas, C. VI. n. VIII)
Pode-se dizer, para limitar nosso exame a este ponto fundamental, que o efeito
potico desta descrio do reino marinho est na habilidade com que o autor
estabelece um encadeamento de som e sentido, fazendo com a palavra onda (seja
diretamente, seja na sua forma latina unda por associao etimolgica) engaste-se
ou ressoe em outras palavras: fundo, profundas, jocundas; onde, esconde, donde,
responde; fonemas de unda podem ser vislumbrados ainda, redistribuidamente, em
midas e Netuno; alm disto, entre Nereidas e o epteto que lhes d Cames
midas deidades, h uma espcie de apelo cruzado, pois os fonemas finais da
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27
primeira palavra se repetem no comeo da segunda. Toda esta oitava percorrida
pela imagem semntica da agitao das ondas, atravs de uma sucesso de
projees fnicas. (Ib.: 148)
O poeta, tradutor e semioticista brasileiro Dcio Pignatari estabelece uma
relao entre a concepo jakobsoniana de funo potica da linguagem e o pensamento
do criador da semitica norte-americana, contemporneo de Saussure, o filsofo,
cientista e matemtico Charles Sanders Peirce. A aproximao no inadequada,
embora se possa considerar que haja resistncia, entre os estudiosos da lingustica e da
semitica, de relacionarem os dois sistemas de estudo da linguagem (da lingustica de
Saussure, dedicada exclusivamente ao signo verbal, emerge uma semiologia, mais
geral; de reflexo baseada no trabalho de Jakobson emergiria uma semitica potica,
desenvolvida por A. J. Greimas e seguidores24
), pois o prprio Jakobson aborda a
semitica peirciana, estabelecendo relaes com a teorizao de Saussure, em seu
estudo procura da essncia da linguagem. Citem-se as explicaes de Pignatari
(ademais, esclarecedoras acerca das proposies de Jakobson) nas quais se estabelece a
referida relao (no trecho inicial, o autor baseia-se no artigo do linguista sobre a
afasia):
Dois so os processos de associao ou organizao das coisas: por contiguidade
(proximidade) e por similaridade (semelhana). Esses dois processos formam dois
eixos: um o eixo de seleo (por similaridade), chamado paradigma ou eixo
paradigmtico; o outro o eixo de combinao (por contiguidade)25
, chamado
sintagma ou eixo sintagmtico. [...] (2005: 13)
Descobriu Jakobson que a linguagem apresenta e exerce funo potica quando o
eixo de similaridade se projeta sobre o eixo de contiguidade. Quando o paradigma
se projeta sobre o sintagma. Em termos da semitica de Peirce, podemos dizer que
a funo potica da linguagem se marca pela projeo do cone sobre o smbolo
ou seja pela projeo de cdigos no-verbais (musicais, visuais, gestuais, etc.)
sobre o cdigo verbal. Fazer poesia transformar o smbolo (palavra) em cone
24 Veja-se o livro Ensaios de semitica potica (So Paulo: Cultrix / Ed. da Univers. de S. Paulo, 1976). Uma breve referncia a proposies da semitica greimasiana ser feita adiante. 25 A respeito de tais conceitos, diz Pignatari, em Semitica e literatura (referindo-se teoria de Peirce):
As sugestes associativas so inferncias, segundo Peirce, e as inferncias podem ser de dois tipos: por
Contiguidade (Contiguity) e por Semelhana (Resemblance), expresses cunhadas por David Hume
(1711-76) e que tiveram o mais amplo curso no pensamento moderno, como o demonstram os exemplos
da psicologia da gestalt e da lingustica estrutural. (1979: 35).
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28
(figura). Figura s desenho visual? No. Os sons de uma tosse e de uma melodia
tambm so figuras: sonoras.
Em poesia, voc observa a projeo de uma analgica sobre a lgica da linguagem,
a projeo de uma gramtica analgica sobre a gramtica lgica. (p. 17-18).
Para que seja elucidadas as concepes de Charles Peirce (que serviro para
referncias posteriores de anlise), incluem-se a seguir esquemas e citaes que
permitiro, do modo mais sinttico possvel, uma compreenso ligeira do assunto.
Considere-se, inicialmente, uma das definies de signo propostas pelo pai da
semitica:
Qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um
objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto), de modo idntico, transformando-
se o interpretante, por sua vez, em signo, e assim sucessivamente ad infinitum.
(1977: 74)26
Veja-se, acerca do conceito expresso em tal definio, a representao do
modelo tridico peirciano27
por meio de esquema includo por Pignatari em Semitica &
literatura:
E, em seguida, a apresentao que faz Pignatari, iniciando-se com outra das
definies de signo propostas por Peirce:
26 PEIRCE, Charles S. Semitica. Trad. Jos Teixeira Coelho Neto. So Paulo: Perspectiva, 1997. 27 Sobre o esquema, diz Pignatari: J se tornou bem conhecido o diagrama triangular com que C. K.
Ogden e I. A. Richards procuraram traduzir a relao tridica bsica de Peirce relativa ao problema do
significado, envolvendo os termos de Signo ou Representame / Objeto ou Referente / Interpretante.
(1979: 25).
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29
Signo ou Representame um Primeiro que est em tal genuna relao com o
Segundo, chamado seu Objeto, de forma a ser capaz de determinar que um
Terceiro, chamado seu Interpretante, assuma a mesma relao tridica (com o
Objeto) que ele, signo, mantm em relao ao mesmo objeto. [...]
Superando a relao didtica, tipo signifiant / signifi que causa, diga-se, as
maiores dificuldades ao desenvolvimento de uma semiologia de extrao
saussuriana Pierce cria um terceiro vrtice, chamado Interpretante que o signo
de um signo, ou, como tentei definir em outra oportunidade, um supersigno, cujo
Objeto no o mesmo do signo primeiro, pois que engloba no somente Objeto e
Signo, como a ele prprio, num contnuo jogo de espelhos [...].
Um dos postulados bsicos melhor dizendo uma das descobertas fundamentais
de Peirce a de que o significado de um signo sempre outro signo (um dicionrio
o exemplo que ocorre imediatamente); portanto, o significado um processo
significante que se desenvolve por relaes tridicas e o Interpretante o signo-
resultado contnuo que resulta desse processo.
Acerca da classificao dos signos segundo a semitica norte-americana,
observa Lucia Santaella que Peirce estabeleceu uma rede de classificaes sempre
tridcas (isto , trs a trs) dos tipos possveis de signo28
. Antes que se prossiga, no
entanto, com excertos de texto de Santaella referentes ao tema, leia-se o sinttico e
esclarecedor escrito de Lucrcia DAlssio Ferrara:
Charles Sanders Peirce salienta trs tipos de representao que so de extrema
importncia, porque apresentam, de modo j bem organizado, a classificao do
signo em: cone, ndice e smbolo. O cone apresenta-se como uma representao
que se mantm, com o objeto ao qual se refere, uma relao de qualidade; o ndice
se apresenta como uma representao que mantm, com o objeto ao qual se refere
uma correspondncia de fato, o smbolo se apresenta como uma representao que
mantm, com o objeto ao qual se refere, uma relao imposta. (A estratgia os
signos, 1981: 67)
Seguem-se as colocaes de Santaella acerca da tipologia sgnica de Peirce:
28 SANTAELLA, L. O que semitica. So Paulo: Brasiliense, 1983, p. 83.
-
30
Tomando como base as relaes que se apresentam no signo, por exemplo, de
acordo com o modo de apreenso do signo em si mesmo, ou de acordo com o
modo de apresentao do objeto imediato, ou de acordo com o modo de ser do
objeto dinmico etc, foram estabelecidas 10 tricotomias, isto , 10 divises
tridicas do signo, de cuja combinatria resultam 64 classes de signos e a
possibilidade lgica de 59.049 tipos de signos.
[...] um exame mais minucioso dessas classificaes pode nos habilitar para a
leitura de todo e qualquer processo sgnico. [...]
Dentre todas essas tricotomias, h trs, as mais gerais, s quais Peirce dedicou
exploraes minuciosas. So as que ficaram mais conhecidas e que tm sido mais
divulgadas. Tomando-se a relao do signo consigo mesmo (1), a relao do signo
com seu objeto dinmico (2) e a relao do signo com seu interpretante (3),
tem-se:
[...] na relao do signo consigo mesmo, no seu modo de ser, aspecto ou aparncia
(isto , a maneira como aparece), o signo pode ser uma mera qualidade, um
existente (sin-signo, singular) ou uma lei.
Lembremos: se algo aparece como pura qualidade, este algo primeiro. claro
que uma qualidade no pode aparecer e, portanto, no pode funcionar como signo
sem estar encarnada em algum objeto. Contudo, o quali-signo diz respeito to-s e
apenas pura qualidade.
[...] se o signo aparece como simples qualidade, na sua relao com seu objeto, ele
s pode ser um cone. Isso porque qualidades no representam nada. Elas se
apresentam. Ora, se no representam, no podem funcionar como signo. Da que o
cone seja sempre um quase-signo: algo que se d contemplao. [...]
[...] porque no representam efetivamente nada, seno formas e sentimentos
(visuais, sonoros, tteis, viscerais...), os cones tm um alto poder de sugesto. [...]
Sem deixar aqui de lembrar o quanto as formas de criao na arte e as descobertas
na cincia tm a ver com cones, examinemos agora as modalidades de hipocones,
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31
ou melhor, dos signos que representam seus objetos por semelhana. Assim, uma
imagem um hipocone porque a qualidade de sua aparncia semelhante
qualidade da aparncia do objeto que a imagem representa. Todas as formas de
desenhos e pinturas figurativas so imagens. [...]
[...] o interpretante que o cone est apto a produzir , tambm ele, uma mera
possibilidade (qualidade ou impresso) ou, no mximo, no nvel do raciocnio, um
rema, isto , uma conjectura ou hiptese. Da que, diante de cones, costumamos
dizer: Parece uma escada... No, parece uma cachoeira [...], e assim por diante,
sempre no nvel do parecer.29
[...] Qualquer coisa que se apresente diante de voc como um existente singular,
material, aqui e agora, um sin-signo.
Isso, em termos amplos e vastos. Concretizando, porm, em termos particulares, o
ndice, como seu prprio nome diz, um signo que como tal funciona porque
indica uma outra coisa com a qual ele est atualmente ligado. H, entre ambos,
uma conexo de fato. Assim, o girassol um ndice, isto , aponta para o lugar do
sol no cu [...]
Rastros, pegadas, resduos, remanncias so todos ndices de alguma coisa que por
l passou deixando suas marcas. [...]
Quanto s trades ao nvel de terceiridade, elas comparecem quando, em si mesmo,
o signo de lei (legi-signo). Sendo uma lei, em relao ao seu objeto o signo um
smbolo. Isto porque ele no representa seu objeto em virtude do carter de sua
qualidade (hipocone), nem por manter em relao ao seu objeto uma conexo de
fato (ndice), mas extrai seu poder de representao porque portador de uma lei
que, por conveno ou pacto coletivo, determina que aquele signo represente seu
objeto. [...]
[Os smbolos so] signos tridicos genunos, pois produziro como interpretante
um outro tipo geral ou interpretante em si que, para ser interpretado, exigir um
outro signo, e assim ad infinitum. Smbolos crescem e se disseminam, mas eles
trazem, embutidos em si, caracteres icnicos e indiciais.30
(1983: 83-94)
29 H algo importante a se observar, ligado s conceituaes apresentadas: por vezes, as anlises de fragmentos da pica homrica realizadas neste trabalho enfrentaro o limite da incomensurabilidade, da
inviabilidade de avaliao objetiva, exatamente porque, lidando-se com o plano esttico no mbito,
portanto, da iconicidade , muito do que se poder dizer a respeito do objeto estudado ser apenas
impresso, percepo diante do sugerido. 30 Estas observaes finais do trecho so especialmente relevantes para este trabalho: a ptica da
semitica peirceana prev a existncia material do signo, que, ainda que verbal, convencionado, traz em
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32
Mencionem-se as dez classes de signo31
formuladas por Peirce, assim
relacionadas por Santaella em A teoria geral dos signos (2000), com base em C.
Hardwick32
:
I. Quali-signo, icnico, remtico. Por exemplo: um sentimento de
vermelhido.
II. Sin-signo, icnico, remtico. Um diagrama individual.
III. Sin-signo, indicativo, remtico. Um grito espontneo.
IV. Sin-signo, indicativo, dicente. Um catavento.
V. Legi-signo, icnico, remtico. Um diagrama, abstraindo-se sua
individualidade.
VI. Legi-signo, indicativo, remtico. Um pronome demonstrativo.
VII. Legi-signo, indicativo, dicente. Um prego de rua.
VIII. Legi-signo, simblico, remtico. Um substantivo comum.
IX. Legi-signo, simblico, dicente. Uma proposio.
X. Legi-signo, simblico, argumental. Um soligismo
possvel fazer-se, tambm, uma relao aparentemente imprevista, entre
funo potica, iconicidade verbal e o pensamento de um outro Saussure: aquele
que se dedicou intensamente a identificar, principalmente em versos latinos
saturninos, a presena de anagramas, descobertos, de certo modo, como uma
determinao interna ao signo arbitrrio, arranjo simultneo, no-linear, de fonemas; o
pesquisador e anotador incansvel dos cadernos, deixados de lado at a iniciativa de seu
discpulo Jean Starobinski, de apresent-los e public-los. O conceito que emerge dessas
anotaes permite uma viso da poeticidade ou da linguagem potica por um caminho
prprio, que pode ser considerado anlogo e complementar s duas vises j
relacionadas.
Jakobson assim se refere ao trabalho de Saussure, em entrevista concedida em
1966, quando indagado sobre a unidade da lingustica e da potica:
si a presena icnica ou indicial. Com base nesta concepo podem ser feitas anlises identificadoras da
iconicidade e da indicialidade manifestas nos textos poticos estudados. 31 A identificao das classes servir de subsdio para algum apontamento integrante deste estudo. 32 HARDWICK, C. Semiotics and significs. Bloomington: Indiana University Press, 1977, p. 161.
-
33
Uma tal unidade pode j pode ser extrada dos ensinamentos de Saussure. Veja os
seus Annagrammes. Acabo justamente de examinar os seus manuscritos em
Genebra, graas a Starobinski. Trata-se sua obra mais genial, que chegou a assustar
at mesmo seus discpulos. Da a tentativa destes ltimos de manter essa parte da
obra saussuriana em segredo, tanto tempo quanto possvel. Saussure, todavia, em
carta a Meillet, dizia considerar esse trabalho como sendo sua obra-prima.
(CAMPOS, H., 1976: 106-107)33
Sobre o propsito de Saussure, diz Haroldo de Campos:
O anagrama propriamente dito, ns o sabemos, lida com as letras, os sinais
grficos, os dgitos do alfabeto fontico. [...] Assim, EVA anagrama de AVE;
ROMA de AMOR, e reciprocamente.
Saussure, porm, interessou-se pelo anagrama no plano exclusivamente dos
fonemas, pelo anagrama enquanto figura fnica, como diria Jakobson,
constitudo pela repetio de certos sons cuja combinao imitaria uma dada
palavra. [...]
As observaes de Saussure nasceram do estudo do verso saturnino latino,
caracterizado pela aliterao. Ao cabo do exame que empreendeu, a prtica
aliterativa pareceu-lhe, neste verso, a manifestao particular e menos significativa
de determinadas leis fnicas, cujo fulcro estaria justamente no anagrama e na
afonia. Assim, no exemplo:
Taurasia Cisauna samnio cepit
Saussure reconhece o nome de Scipio (Cipio), convocando para esta reconstruo
fonolgica as slabas Ci (de Cisauna), pi (de cepit) e io (de Samnio), alm de
vislumbrar uma outra repetio, quase-perfeita, do mesmo nome-tema, em
fonemas de Samnio cepit (a sibilante inicial e as vogais finais da primeira palavra;
os quatro primeiros fonemas da segunda). [...] (A operao do texto, 1976: 107)
O ponto nodal das reflexes de Saussure sobre os fenmenos anagramticos est,
justamente, naquilo em que elas tocam a questo da lienaridade da lngua. [...]
Como sabido, um dos postulados fundamentais da lingustica saussuriana o da
linearidade do significante do signo lingustico [...] Jakobson contestou a validade
33 CAMPOS. H. de. A operao do texto. So Paulo: Perspectiva, 1976.
-
34
desta assertiva, invocando para infirm-la, o carter no-linear, mas simultneo,
dos traos distintivos que constituem o fonema. (Ib.: 110)
Repetio aliada simultaneidade: talvez seja esta (ressalte-se, como referencial
proposto) a resposta mais evidente necessidade de se identificar uma condio de
leitura, dada pela reincidncia, que permita a identificao do que caracterizaria, at
onde a generalizao pudesse propiciar, a linguagem potica. Neste sentido, um fator
mnimo e mltiplo comum (formado pelos dois fatores associados, ou seja, pela
possibilidade de se ler, ou perceber, uma unidade por meio de elementos que se
juntam pela repetio) servir de base a uma aproximao dos objetos escolhidos para
este trabalho.
Retornando ao empenho do pesquisador genebrino, citem-se comentrios
relevantes de Jakobson sobre ele, no artigo A primeira carta de Ferdinand de Saussure
a A. Meillet sobre os Anagramas (em traduo de Joo Alexandre Barbosa):
muito surpreendente que os noventa e nove cadernos manuscritos de Saussure,
consagrados potica fonizante e, em particular, ao princpio do anagrama,
tenham podido permanecer ocultados aos leitores por mais de meio sculo, at que
Jean Starobinski tivera a feliz ideia de publicar vrias amostras cuidadosamente
escolhidas e comentadas. (1990: 9)34
[...]
A anlise lingustica dos versos latinos, gregos, vdicos e germnicos, esboada
por Saussure , sem nenhuma dvida, salutar no somente para a potica, mas
tambm, segundo a expresso do autor, para a prpria lingustica. A genialidade
da intuio do pesquisador pe luz a natureza essencial e, preciso acrescentar,
universalmente polifnica e polissmica da linguagem potica e desafia, como
Meillet bem observou, a concepo corrente de uma arte racionalista, em outras
palavras, a ideia oca e importuna de uma poesia infalivelmente racional. (p. 12)
Talvez a atitude de discpulos do linguista, de ocultarem seu trabalho sobre
anagramas, no seja surpreendente: o prprio Saussure manifestava dvidas acerca da
pertinncia de sua pesquisa, e da prpria existncia real de seu objeto de estudo, como
34 JAKOBSON, Roman. Potica em ao. Seleo, prefcio e org. de Joo Alexandre Barbosa. So
Paulo: Perspectiva / Ed. da Univers. de S. Paulo, 1990.
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35
revela a carta referida no ttulo do artigo de Jakobson, a primeira das por ele enviadas ao
linguista francs Paul Jules Antoine Meillet (1866-1936):
Poderia o senhor, por amizade, fazer-me o favor de ler as notas sobre o annagrame
dans les pomes homriques que reuni entre outros estudos, no decorrer das
pesquisas sobre o verso saturnino, e a respeito dos quais eu o consulto
confidencialmente, porque quase impossvel quele que teve a ideia saber se
vtima de uma iluso, ou se alguma coisa de verdadeiro est na base de sua ideia,
ou se a verdade existe apenas parcialmente. (1990: 4)
A dvida de Saussure quanto existncia dos anagramas que distinguia , para
este tpico do presente estudo, de particular importncia: primeiro, porque reflete a
questo da existncia de caractersticas inerentes linguagem potica; segundo, porque
evidencia os limites incertos entre o que seria, de fato, integrante de um texto, e o que
seria originado pela prpria leitura; terceiro, porque a questo da veracidade das
descobertas esbarra no questionamento da intencionalidade do produtor do texto, assim
como da do leitor, intencionalidade esta que poder depender da postura terica, dos
objetivos e do repertrio de quem exerce a leitura. Estes aspectos sero aqui discutidos
com base na contraposio entre as pticas estruturalista e ps-estruturalista /
desconstrucionista35
.
(Neste ponto da exposio, cabe referir-me a um texto meu que, acredito, poder
cumprir um papel de informao (ou de expresso) adicional ao que tem sido exposto36
,
e, por isso, encontra-se anexo a este trabalho. Trata-se de um texto ficcional, sobre o
Saussure dos anagramas (e sobre os anagramas de Saussure), ilustrativo do trabalho do
linguista e de seu contexto (e auto-referido, pela insero de anagramas desvendveis,
conscientes ou inconscientes para o autor): o conto Ao som de duas insnias, que
apresenta uma imaginada situao referente derradeira tentativa do pesquisador em
35 Os focos tericos escolhidos para discusso integram possveis categorias em que se podem agrupar as
teorias sobre traduo. Na classificao de Anthony Pym (2011) que ser abordada em outro tpico ,
teorias advindas do estruturalismo, baseado em Saussure, como as de Catford e Nida (que creem na possibilidade de transporte dos significados de uma lngua a outra, e de equivalncia de sentido entre
palavras de lnguas diversas), so enquadradas na categoria de Teorias da equivalncia, enquanto que a
teorizao estruturalista de Jakobson integra a categoria Teorias descritivistas; o desconstrucionismo,
por sua vez, pertence categoria de teorias indeterministas. 36 O conto Ao som de duas insnias est publicado na revista eletrnica Zuni (www.revistazunai.com),
consultado em 24/11/2011.
http://www.revistazunai.com/
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36
obter confirmao quanto pertinncia de sua pesquisa, suscitando reflexes sobre o
existente e o imaginado, desejveis aos objetivos gerais deste estudo.)
Mas retornemos discusso sobre linguagem potica, por meio de postulaes a
serem consideradas complementarmente. Entre as inmeras reflexes baseadas nas
proposies de ordem estrutural sobre poesia cuja amplitude e diversidade
ultrapassariam em muito os limites deste estudo escolho algumas que particularmente
so de interesse por adicionarem alguns aspectos apontados sobre a especificidade da
linguagem potica, visando disponibilizao de referncias internas ao trabalho.
Apresentemos inicialmente, neste tpico complementar, a viso expressa em
hiptese do linguista Jean Cohen37
sobre a caracterizao da poesia:
[...] O fato inicial em que se basear nossa anlise que o poeta no fala como
todo mundo. Sua linguagem anormal, e tal anormalidade confere-lhe um estilo. A
potica a cincia do estilo potico. (1978: 16)
admitimos, pelo menos a ttulo de hiptese de trabalho, a existncia na linguagem
de todos os poetas de uma invariante que permanece atravs das variaes
individuais, ou seja, uma maneira idntica de desviar da norma, uma regra
imanente ao prprio desvio. (ib.)
O verso no simplesmente diferente da prosa. Ope-se a ela; no no-prosa,
mas antiprosa. [...] (p. 80)
Como a prosa, a poesia compe um discurso, isto , alinha sries de termos
foneticamente diferentes. Todavia, na linha das diferenas semnticas, o verso
adapta toda uma srie de semelhanas fnicas; como tal que ele verso. (p. 81)
[...] temos o direito de concluir que a redundncia um processo que caracteriza
como tal a linguagem potica. (p. 121)
[...] A diferena entre prosa e poesia de natureza lingustica,38
vale dizer, formal.
No se acha nem na substncia sonora, nem na substncia ideolgica, mas no tipo
particular de relaes que o poema institui entre o significante e o significado, de
um lado, e os significados entre si, de outro;
37 Os excertos de textos do autor so colhidos de Estrutura da linguagem potica (Struture du langage potique), publicado originalmente em 1966, e de A plenitude da linguagem teoria da poeticidade (Le
haut langage theorie de la poeticite), publicado originalmente em 1979. 38 Explicitamente (de modo anlogo s demais procuras e definies estruturalistas), o autor atribui
caractersticas e diferenas da poesia prpria linguagem; a contraposio desta ptica com a concepo
ps-estruturalista (que atribui leitura o papel preponderante na identificao dos gneros) ser
novamente discutida, adiante.
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37
[...] Esse tipo particular de relaes caracteriza-se pela sua negatividade, j que
cada um dos processos ou figuras que constituem a linguagem potica em sua
especificidade uma maneira, diferente segundo os nveis, de violar o cdigo da
linguagem normal.39
(1978: 161)
[...] A funo da prosa denotativa, a funo da poesia conotativa. A teoria
conotativa da linguagem potica no nova. [...] Valry j distinguia dois efeitos
de expresso pela linguagem: transmitir um fato produzir uma emoo. A poesia
um compromisso ou certa proporo destas duas funes. (p. 165)
Em A plenitude da linguagem, Cohen comea por afirmar a existncia da poesia
como objeto de estudo de uma cincia, e, como tal, dever apresentar invariantes que a
definam (conforme j anunciara em sua obra anterior):
A poesia uma segunda potncia da linguagem, um poder de magia e de
encantamento cujos segredos a potica tem por objetivo descobrir. [...]
O primeiro postulado da presente pesquisa o postulado da existncia de seu
objeto. Se a palavra poesia tem um sentido [...] necessrio que em todos os
objetos designados por esta palavra exista alguma coisa de idntico, uma ou
algumas invariantes subjacentes que transcendam a variedade infinita dos textos
individuais. [...] Pode-se dar um nome a essa varincia. Plato dizia que o belo
aquilo por que so belas todas as coisas belas [Hpias maior]. Definio que s
tautolgica na aparncia, pois, postulando uma essncia comum a todos os objetos
belos, faz escapar a beleza ao relativismo e fornece um objeto especfico esttica
como cincia. [...] (1987: 7)
O autor prossegue propondo (em continuidade ao que propusera em seu estudo
anteriormente publicado) uma anlise que, em vez de considerar a poesia como algo
mais do que a prosa, a considere um anticdigo (de passagem, critica a teoria de
Jakobson e a teoria dos anagramas de Saussure40
):
39 Embora o autor utilize uma terminologia em parte diferenciada, relativa a aspectos definidos ao longo
de seu amplo estudo Estrutura da linguagem potica, pode-se compreender esta sntese por seu sentido
geral. 40 Sobre a primeira, diz Cohen: o princpio de projeo do eixo das equivalncias no eixo das
combinaes generaliza aos trs nveis da linguagem as recorrncias formais que a versificao reserva
em exclusivo ao nvel sonoro. O que podemos chamar sentido no , em princpio, afetado pela adio
das regras de equivalncia e permanece parafrasevel em prosa. [O autor parece desconsiderar que
Jakobson prev uma associao entre som e sentido (relativo ao plano semntico), que comporia, como se
pode deduzir, um sentido mais amplo, integrado.] Sobre a segunda, afirma: A perspectiva
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38
O conjunto das teorias poticas conhecidas at aqui assenta num postulado comum.
[...] convergem para aceitar como trao pertinente da diferena poesia/no poesia
(ou prosa) um carter propriamente quantitativo. A poesia no coisa diferente da
prosa, ela mais. [...] (p. 10)
Ao invs das teorias precedentes, [a anlise proposta] constitui a linguagem potica
no como hipercdigo mas como anticdigo. [...] (p. 14)41
Para destacar uma proposio que particularmente interessar a este