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1 DIFICULDADES NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE MATEMÁTICA: A SEMIÓTICA PODE AJUDAR? Maria Cristina Bonomi, IME-USP, [email protected] Resumo A presença da semiótica é inegável na sala de aula de Matemática e a consciência desse fato pode ser de grande auxílio para resolver ou, pelo menos, diminuir dificuldades inerentes ao processo de ensino-aprendizagem. A teoria dos registros de representação semiótica, de autoria do filósofo e psicólogo francês Raymond Duval, tem-se revelado importante para a compreensão da presença da semiótica nas aulas de Matemática. Neste trabalho são discutidos alguns exemplos dessa importância na construção do conhecimento matemático, bem como algumas armadilhas que podem surgir, às quais é fundamental estar alerta. Palavras-chave: Ensino-aprendizagem de Matemática. Representações semióticas em Matemática. Formação de professores de Matemática. Introdução Muitas vezes, quando professores de Matemática se encontram, o assunto emerge, de maneira recorrente: Os alunos não sabem... Diante de tal constatação, a postura que pode se tornar natural, se ainda não o for, é uma atitude indagadora: como fazer para que eles apreendam? Sem esse posicionamento, a tomada de consciência inicial serve apenas para fazer certo tipo de diagnóstico: a responsabilidade é dos alunos ou de seus pais, ou da escola anterior, ou do professor anterior... Busca-se algum culpado, que, uma vez identificado, quem sabe, resolverá o problema. A questão é que, provavelmente, se os alunos não sabem determinado assunto, em geral já se estabeleceu um bloqueio e eles não conseguirão ir adiante. Mais ainda, encontrar o ‘culpado’ pela situação não ajuda, pois a dificuldade está presente aqui e agora: não é possível voltar no tempo ou mudar de lugar. Muitas vezes então, será preciso revisitar alguns pontos que ficaram obscuros, buscando construir significado para aquilo que ainda não tem e, por isso mesmo, não foi apreendido. O fato de que os alunos precisam aprender Matemática parece ser claro para todos. Estudiosos nacionais ou internacionais refletem, argumentam a respeito e muitas publicações são disponibilizadas para os professores de todos os níveis

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DIFICULDADES NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE

MATEMÁTICA: A SEMIÓTICA PODE AJUDAR?

Maria Cristina Bonomi, IME-USP, [email protected]

Resumo

A presença da semiótica é inegável na sala de aula de Matemática e a consciência desse fato pode ser de grande auxílio para resolver ou, pelo menos, diminuir dificuldades inerentes ao processo de ensino-aprendizagem. A teoria dos registros de representação semiótica, de autoria do filósofo e psicólogo francês Raymond Duval, tem-se revelado importante para a compreensão da presença da semiótica nas aulas de Matemática. Neste trabalho são discutidos alguns exemplos dessa importância na construção do conhecimento matemático, bem como algumas armadilhas que podem surgir, às quais é fundamental estar alerta.

Palavras-chave: Ensino-aprendizagem de Matemática. Representações semióticas em Matemática. Formação de professores de Matemática.

Introdução

Muitas vezes, quando professores de Matemática se encontram, o assunto

emerge, de maneira recorrente:

— Os alunos não sabem...

Diante de tal constatação, a postura que pode se tornar natural, se ainda não o

for, é uma atitude indagadora: como fazer para que eles apreendam? Sem esse

posicionamento, a tomada de consciência inicial serve apenas para fazer certo tipo de

diagnóstico: a responsabilidade é dos alunos ou de seus pais, ou da escola anterior, ou

do professor anterior... Busca-se algum culpado, que, uma vez identificado, quem

sabe, resolverá o problema.

A questão é que, provavelmente, se os alunos não sabem determinado assunto,

em geral já se estabeleceu um bloqueio e eles não conseguirão ir adiante. Mais ainda,

encontrar o ‘culpado’ pela situação não ajuda, pois a dificuldade está presente aqui e

agora: não é possível voltar no tempo ou mudar de lugar. Muitas vezes então, será

preciso revisitar alguns pontos que ficaram obscuros, buscando construir significado

para aquilo que ainda não tem e, por isso mesmo, não foi apreendido.

O fato de que os alunos precisam aprender Matemática parece ser claro para

todos. Estudiosos nacionais ou internacionais refletem, argumentam a respeito e

muitas publicações são disponibilizadas para os professores de todos os níveis

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escolares. Entretanto, resultados de exames, também nacionais ou internacionais,

continuam mostrando que... os alunos não sabem...

Uma vez mais, vamos refletir um pouco.

A construção de algum conhecimento matemático ocorre quando o novo

objeto (conceito) é incorporado à rede de conhecimentos e significados1 dos alunos

passando a constituir um novo nó, ao serem estabelecidas novas conexões com os nós

já existentes. Assim, por meio de feixes de relações com conhecimentos já

construídos, isto é, que já estão presentes na rede, constitui-se cada novo nó.

A rede pode ser ampliada ou refinada, cada vez que um novo nó é construído.

É preciso observar que não se trata de uma construção linear: uma rede pode crescer

em todas as direções e sentidos, não há preponderância de qualquer nó, não há centro;

a todo momento ela pode ser modificada, bastando construir novas ligações entre nós,

sejam eles novos ou não. (MACHADO, 2011)

Nesse sentido, a construção do conhecimento matemático não pode ser apenas

técnica, com o estabelecimento de leis e regras que, aos olhos dos estudantes, muitas

vezes parecem arbitrárias, sem significado, e que, portanto, para eles, precisam ser

memorizadas.

Uma constatação evidente é a de que os objetos matemáticos – retas, números,

equações, funções, dentre muitos outros – não possuem existência real e assim não

são acessíveis aos sentidos humanos: não é possível vê-los, cheirá-los, saboreá-los,

ouvi-los, tocá-los... Percebe-se claramente que a situação é muito diferente daquela

dos objetos de outras áreas do conhecimento. Em Matemática só é possível trabalhar

com representações dos objetos e, por meio delas, busca-se a construção do

conhecimento dos referidos objetos, com suas características e propriedades.

O psicólogo e filosofo francês Raymond Duval lançou o alerta para existência

de um paradoxo cognitivo do pensamento matemático: (...) de um lado, a apreensão dos objetos matemáticos só pode ser uma apreensão conceitual e, por outro lado, somente por meio de representações semióticas é possível uma atividade sobre objetos matemáticos. Esse paradoxo pode constituir um verdadeiro círculo vicioso para a aprendizagem. Como sujeitos, em fase de aprendizagem, poderiam deixar de confundir os objetos matemáticos com suas representações semióticas se eles apenas podem estabelecer relações com as representações semióticas? A impossibilidade de um acesso direto aos objetos matemáticos, a não ser por meio de representação semiótica, torna a confusão praticamente inevitável. E, ao contrario, como podem esses

1 A imagem metafórica da rede do pescador: um novo nó da rede se constitui por meio de ligações com outros nós já existentes.

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indivíduos adquirir o domínio dos tratamentos matemáticos, necessariamente ligados às representações semióticas, se ainda não possuem uma apreensão conceitual dos objetos representados? (DUVAL, 1993, p.38 apud D’AMORE, 2005, p.51)

A questão, portanto, não parece ser tão simples e, enquanto tal, precisa ser

considerada com cuidado. De modo algum pode ser ignorada.

No próximo parágrafo, serão apresentados, de maneira sucinta, alguns

aspectos da Teoria dos Registros de Representações Semióticas de Duval, uma vez

que esse referencial parece ser um dos mais substanciais para fornecer um

embasamento teórico para as pesquisas sobre as relações entre aprendizagem

matemática e representações semióticas, no mundo inteiro. Para um maior

detalhamento, o leitor interessado pode consultar os textos indicados na bibliografia.

A Teoria dos Registros de Representações Semióticas

A semiótica – teoria geral dos signos – nasceu há muito tempo. Nas paredes

das cavernas, os estudiosos encontraram muitos registros deixados pelo homem em

seus primórdios: são figuras, sinais, representações, marcas culturais de uma

sociedade incipiente. A utilização de signos para fazer representações pode ser,

portanto, considerada tão antiga quanto a própria humanidade.

Na história ocidental antiga, com os gregos, posteriormente na Idade Média,

no Renascimento, até chegar ao mundo contemporâneo, a semiótica foi sendo

desenvolvida, aprimorada, primeiramente mais ligada às línguas uma vez que uma

língua é um paradigma de um sistema de signos.

Na premissa do livro Primi elementi di semiotica, D’Amore, Fandiño Pinilla

e Iori, afirmam que: A semiótica começou a fazer parte explicitamente da didática da matemática na metade da década de 1990. Foi então que (...) Raymond Duval evidenciou a necessidade de usá-la e as armadilhas que ela coloca para a construção cognitiva dos objetos matemáticos por parte de nossos estudantes. (D’AMORE et al., 2013, p. XI)

De fato, graças à percepção aguda do filósofo francês Raymond Duval é que,

no final do século XX, a semiótica e a Didática da Matemática foram relacionadas e a

primeira passou a fazer parte explícita da segunda. Sua perspicácia levou-o a perceber

a distinção existente entre a Matemática e as outras ciências, no que diz respeito aos

objetos e suas representações.

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No contexto da Psicologia Cognitiva, Duval desenvolveu um modelo para o

funcionamento cognitivo do pensamento, no qual considera as mudanças de registros

de representação. Ele considera que existem tipos muito diferentes de registros nos

quais é possível fazer as representações:

• o registro da língua natural – utilização de línguas maternas;

• o registro geométrico ou figural – utilização de figuras geométricas planas ou

espaciais; construção com instrumentos;

• o registro dos sistemas de escrita e cálculo – numéricos, algébricos, simbólicos;

• o registro gráfico – utilização de sistemas de coordenadas (DUVAL, 1995).

Cada representação oferece uma ou mais características ou – utilizando a

terminologia do autor – diferentes componentes conceituais do objeto. Uma única

representação não consegue fornecer todas elas. Para exemplificar tal fato, vamos

considerar o objeto matemático função polinomial do segundo grau (a mais simples):

• no registro da língua natural: a função que a cada número real associa o seu

quadrado;

• no registro algébrico: 𝑓(𝑥) = 𝑥!;

• no registro gráfico, com o auxílio de um software computacional

Figura 1: O gráfico de 𝑓(𝑥) = 𝑥!.

Pode-se perceber que a informação dada pelo registro língua natural – a

ordenada de cada ponto é igual ao quadrado de sua abscissa não é logo visível no

registro gráfico; por outro lado, também não é imediatamente evidente que qualquer

ponto da curva denominada parábola2 satisfaz a condição de ter a ordenada igual ao

quadrado da abscissa. Entretanto, ao examinar as representações nos dois registros, 2 Ao falar da curva denominada parábola entende-se o lugar geométrico dos pontos do plano que equidistam de um ponto F (foco) dado e de uma reta d (diretriz) também dada, à qual F não pertence.

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juntamente àquela no registro algébrico, obtemos diversas propriedades do mesmo

objeto matemático, as quais o caracterizam. O conhecimento matemático desse objeto,

com seus múltiplos significados, constitui um novo nó na rede, ao serem estabelecidas

relações com nós preexistentes, como, por exemplo, funções, funções polinomiais do

primeiro grau, quadrado de um número, seção de uma superfície cônica, dentre outras.

Duval identifica dois tipos de operações que podem ser realizadas com as

representações: no interior de um mesmo registro – tratamento – ou transitando entre

registros diferentes – conversão.

Do ponto de vista do ensino, observa-se que, em geral, dá-se ênfase aos

tratamentos, seja no registro numérico ou no registro algébrico, como por exemplo, ao

solicitar que o aluno calcule, simplifique, resolva..., permanecendo sempre no mesmo

registro. Tratamentos no registro gráfico são menos frequentes, muitas vezes

inexistentes. Convém ter claro que tratamentos exaustivos no registro algébrico, por

exemplo, frequentemente carecem de significação para os estudantes, e conduzem ao

uso da técnica pela técnica, o que estimula somente a memorização.

E o que dizer das conversões? Habitualmente solicita-se ao aluno que faça a

conversão do registro algébrico para o registro gráfico, sempre nesse sentido;

dificilmente no sentido contrário, quando a relação entre o gráfico e a expressão

algébrica poderia adquirir um significado mais incisivo.

Quando os significados estão claros é possível construir o conhecimento, ou

seja, chegar à noesis, que é a apreensão conceitual do objeto. Em sua teoria, Duval

esclarece que o trabalho com as representações semióticas é fundamental, mais ainda

que não existe noesis sem semiosis. A união das ações – representar, fazer tratamentos,

fazer conversões – sobre os conceitos é a construção do conhecimento matemático, ou

seja, a noesis em Matemática. (DUVAL, 1995)

Alguns Exemplos (JAHN, BONOMI, no prelo)

i) Após o estudo das funções elementares e seus gráficos, utilizando translações –

horizontais e verticais – e mudança de inclinação da curva, pode ser solicitada aos

estudantes a execução da seguinte tarefa:

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• Criar uma figura e reproduzi-la no computador com o auxílio de algum software

gráfico3. Se necessário, além dos gráficos de funções, poderão ser utilizados

circunferências ou segmentos verticais.

A ideia é a de efetuar a conversão do registro gráfico para o registro algébrico,

o que em geral não é feito na escola, quando, normalmente, apenas a conversão no

sentido contrário é proposta. O trabalho consiste em, tendo a figura, decidir quais

funções e em que domínios ela pode ser produzida.

Figura 2: Produção de um dos grupos de estudantes.  (Fonte: Acervo pessoal da autora)

ii) No estudo de inequações, pode-se solicitar uma tarefa que, normalmente não está

presente nos livros destinados à Educação Básica:

• Estabelecer uma inequação cuja solução gráfica possa ser obtida a partir da figura

abaixo, na qual estão desenhados os gráficos das duas funções que devem ser

utilizadas. Vale observar que os arcos presentes na figura são arcos parabólicos.

Em seguida, resolver a inequação no registro algébrico, mostrando o conjunto

solução também no registro gráfico.

3 Na época, foi sugerido explicitamente o uso do Winplot, disponível em http://math.exeter.edu/rparris/winplot.html - acesso em 24/09/2015.

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Figura 3: O gráfico dado com as funções envolvidas.

Também nesse caso, a ideia é trabalhar no registro gráfico possibilitando a

atribuição de significado à resolução da inequação no registro algébrico. É

interessante observar que criar – pelo menos parcialmente – seu próprio exercício

gera, no aluno, um envolvimento muito salutar por fazê-lo sentir-se autor, mais

responsável pelo conhecimento que está em jogo.

iii) Os chamados produtos notáveis, muitas vezes, constituem para os alunos um

conjunto de fórmulas que, dada a ausência de significação, precisam tão somente ser

memorizadas. Elas são deduzidas por meio de tratamento algébrico, por aplicação da

propriedade distributiva da multiplicação em relação à adição. Estamos nos referindo

ao quadrado ou cubo da soma, ao quadrado ou cubo da diferença e também ao

produto da soma pela diferença de dois números. A utilização do registro figural, com

a conversão entre os registros algébrico e esse registro, pode vir a ser fundamental

para a construção do significado, permitindo a apreensão do objeto matemático em

questão.

Vamos observar o caso: 𝑎 + 𝑏 𝑎 − 𝑏 = 𝑎! − 𝑏! no registro figural:

Figura 4: 𝑎 + 𝑏 𝑎 − 𝑏 = 𝑎! − 𝑏!

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Nesse registro, observamos que

𝑎 + 𝑏 𝑎 − 𝑏 = 𝑎. 𝑎 − 𝑏 + 𝑏. 𝑎 − 𝑏 = 𝑎! − 𝑎. 𝑏 + 𝑏.𝑎 − 𝑏! = 𝑎! − 𝑏!

bastando considerar as áreas dos diferentes quadriláteros envolvidos.

Há inúmeros exemplos que podem ser criados, seja envolvendo a

representação de um objeto em diferentes registros, ou o tratamento em algum

registro não tão usual como o registro algébrico, ou a conversão em ambos os sentidos,

entre registros diferentes. A emergência de maior significação ficará evidente!

Cuidados essenciais

Ao fazer uso da representação de um objeto em um determinado registro é

preciso estar alerta para dificuldades que podem vir a ser involuntariamente

introduzidas. (D’AMORE et al., 2013)

Vamos analisar alguns exemplos, retirados dessa obra.

i) Muitas vezes, provavelmente vezes demais, nos livros didáticos aparece a figura de

um polígono convexo para representar o objeto matemático polígono. Isso significa

que, dificilmente é desenhado um polígono côncavo ou um polígono com ‘algum

buraco’. Assim, considere-se a seguinte afirmação:

• Seja dado um polígono F com perímetro p e área A; modificamos F: se A aumenta,

necessariamente p aumenta (e vice-versa). (D’AMORE et al., 2013, p.77) Ela é

verdadeira?

Para responder a essa pergunta, o senso comum, aliado à figura normalmente

vista na escola, produz uma resposta afirmativa que é equivocada, gerada pela

representação semiótica padrão. De fato, dificilmente alguém recorre à imagem de um

polígono côncavo como sendo aquele dado inicialmente, conforme figura abaixo.

Figura 5: O polígono A foi modificado produzindo o polígono B, cuja área é maior do que a de A. Entretanto, o perímetro de B é menor do que o perímetro de A.

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Há 9 casos possíveis de relações entre perímetros e áreas de figuras: pode ser

uma boa reflexão encontrá-las todas.

ii) Um segundo exemplo a considerar é aquele do objeto matemático reta e de suas

representações semióticas, quando são geradas grandes confusões manifestadas por

misconcepções dos alunos do tipo:

Reta horizontal

Reta vertical

Reta oblíqua

Figura 6: Retas em determinadas posições... mas, em relação a quê?

Novamente, a confusão decorre do fato da representação da reta ter sido feita

com relação ao plano de uma folha de papel, ou seja, os termos horizontal, vertical,

oblíqua claramente mostravam, nessa situação, serem termos relativos e não absolutos.

Se isso não estiver claro, a misconcepção para o estudante é inevitável: uma reta pode

ser horizontal, vertical ou oblíqua por si só, o que não tem sentido algum.

Enquanto objeto matemático que não tem existência real, na Geometria

Euclideana, uma reta não tem esse caráter posicional relativamente a um plano e é

preciso tomar muito cuidado para não criar essas confusões ao fazer representações

semióticas.

iii) Um objeto matemático sem dúvida muito importante é o ponto com suas múltiplas

representações, nos diferentes registros: em língua natural: ‘um ponto’; no registro

simbólico: uma letra maiúscula do alfabeto latino (A, B, P e assim por diante), um par

ordenado de números reais no registro numérico ou no algébrico; no registro gráfico:

representação do par ordenado de números reais; no registro figural: um ponto

marcado numa reta com um sinal gráfico tal qual uma ‘bolinha’ preta, dentre várias

outras representações possíveis.

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Essa última representação semiótica considerada exige certo cuidado, e mais,

sempre que possível, é preciso conscientizar os alunos afim de evitar problemas

futuros.

Figura 7: Representação no registro geométrico de um ponto numa reta.

Na obra Primi elementi di Semiotica, os autores fazem um alerta: A confusão semiótica sobre esse ... ponto conduz a problemáticas radicais sucessivas; (...) se o ponto é o signo redondo e negro que o representa, quando, posteriormente, se trabalha na reta numérica dos números racionais, torna-se impossível aceitar a ideia de densidade: “entre dois números racionais, por mais próximos que estejam, sempre há infinitos números racionais”, que, na interpretação dos estudantes se transforma em: “entre dois pontos redondos e negros, por menores e próximos que sejam, encontram-se sempre...” e aqui tudo se bloqueia: impossível admitir infinitos pequenos círculos negros; quando muito, haverá uma certa quantidade. (D’AMORE et al., 2013, p. XI)

Uma reflexão necessária diz respeito à diferença entre o objeto matemático

‘ponto’ e sua representação e precisa ser feita com todos os estudantes, assim que a

idade o permitir. Sem ela, o desastre é previsível.

Considerações finais

Este trabalho não pretende esgotar um assunto que é muito amplo, importante

e que constitui um campo fértil para o professor que pretende ser pesquisador de sua

própria prática. Como foi mencionado inicialmente, a semiótica não pode ser ignorada

no trabalho com a Matemática. Ela é de grande auxílio quando são consideradas

várias representações de um mesmo objeto matemático, trazendo componentes

conceituais diferentes e possibilitando sua apreensão por parte do estudante. É dessa

maneira que a conclusão de Duval adquire significação total: não há noesis sem

semiosis.

Entretanto, é importante ter claro que é preciso ser muito cuidadoso ao fazer

uso das representações semióticas e estar alerta para as misconcepções que podem ser

geradas e que precisam ser também discutidas com os estudantes.

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Finalmente, o cuidado com as representações dos objetos matemáticos nos

diferentes registros também deve servir para considerar os erros cometidos pelos

alunos, entendendo que: um erro exige respeito, reflexão e resolução. Os três ‘Rs’ e as

perguntas que deles surgem podem ser assunto para outro artigo...

Referências bibliográficas D’AMORE, B. Epistemologia e Didática da Matemática. São Paulo: Escrituras, 2005.

D’AMORE, B.; Fandiño Pinilla, M.I. e Iori, M. Primi elementi di semiótica: La sua presenza e la sua importanza nel processo di insegnamento-apprendimento dela matemática. Bologna: Pitagora Editrice, 2013.

DUVAL, R. Sémiosis et penseé humaine. Registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. Berne: Peter Lang, 1995.

JAHN, A. P.; BONOMI, M. C. A Teoria dos Registros de Representação Semiótica embasando situações didáticas de um curso de Formação Inicial de Professores de Matemática no Brasil. In: CIEMeLP 2015: Conferência Internacional do Espaço Matemático em Língua Portuguesa, 2015, Coimbra. CIEMeLP 2015: Conferência Internacional do Espaço Matemático em Língua Portuguesa. Coimbra: Universidade de Coimbra (no prelo).

MACHADO, N. J. Epistemologia e Didática: as concepções de conhecimento e inteligência e a prática docente. São Paulo: Cortez, 2011.