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DIÁLOGOS EM LOGÍSTICA PÚBLICA #1 DO FETICHISMO LEGAL À BUSCA PELA “BOA” BUROCRACIA NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS

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DIÁLOGOS EM LOGÍSTICA PÚBLICA #1

DO FETICHISMO LEGAL À BUSCA PELA “BOA” BUROCRACIA NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS

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Conteúdo

Apresentação

Visão geral

Artigo: Do fetichismo legal à busca pela "boa burocracia" nas contratações públicas

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A boa administração pública jamais pode semanter ao largo da geração e da gestão doconhecimento, eis uma premissa sólida osuficiente para bem estear o lançamento dasérie Diálogos em Logística Pública.Difícil, contudo, delinear com precisão a visãode futuro sobre essa série. Seguramente, seráalgo lapidado com o tempo, em processo denatural percepção e feedback.No entanto, não se olvidam alguns intuitosseminais. De mais patente, o primeiro deles éque o diálogo sobre as atividades próprias àlogística pública (armazenagem de materiais,distribuição, contratações, gestão patrimonial,transferências de recursos etc.) sejam aquidiscutidas em paradigma menos autocentrado,mas sim com espeque na efetividadedemandada pela relação de agência firmadacom o cidadão.A aproximação da logística governamental dosmandamentos da gestão públicaempreendedora coexiste, per si, como intuitoconcorrente. Nesses lindes, desenham-seincursões menos etéreas, mas quecontextualizem os esforços de inovação àrealidade cultural e sociológica do País. Secretaria de Gestão. Brasília, março de 2020.

Apresentação

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Visão Geral

Corolário direto do Princípio da Legalidade, aatividade normativa na seara governamental é, emsi, a base de sua dinâmica de gestão. Diplomas legais e infralegais, jurisprudência,pareceres vinculantes, orientações normativas,entre outros, pavimentam o caminho pelo qual épermitido ao agente público avançar, por vezescom discricionariedade. A imprevisão normativaavulta-se, em geral, como obstáculo ao gestor, masjamais como um cardápio de opções em face deum (inexistente) grau de liberdade a ele conferido.  O problema insurge quando a atividadenormativa é disfuncionalmente maximizada,suscitando problemas que se estendem desde afalta de flexibilidade para a inovação, à dificuldadede compreensão do arcabouço legal pelo legislado.  Como superar esse paradigma disfuncional? Eis a discussão capitaneada por Victor Amorim,no artigo que consubstancia esse númeroinaugural da série Diálogos em LogísticaPública. Aliando argumentação jurídica comacurada abordagem da organização burocráticaweberiana, o resultado é um texto ao mesmo tempofluido e provocante. Boa leitura!!

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Doutorando em Direito, Estado e Constituição pelaUniversidade de Brasília (UnB) e em DireitoAdministrativo pelo Centro Universitário de Brasília(UniCEUB). Mestre em Direito Constitucional peloInstituto Brasiliense de Direito Público (IDP).Professor dos cursos de pós-graduação do IDP,Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e do InstitutoGoiano de Direito (IGD). Pregoeiro do Senado Federal.Site: www.victoramorim.com

VICTOR AGUIAR JARDIM DE AMORIM

1. Minimalismo e maximalismo normativo:modelos de marcos legais das compraspúblicas e o fetichismo legal Já não é recente o “diagnóstico” a que chega osenso comum acerca dos motivos que conduzemà ineficiência das contratações públicas no Brasil:burocracia! Partindo de uma compreensão um tanto fluidae conceitualmente equivocada – como se veráadiante –, imputa-se ao suposto excesso de regrasprescritivas de condutas, aliada a um etéreo“pensamento formalista” dos agentes públicos, aculpa pelas dificuldades, morosidade e insucessoobservado em diversos procedimentos decontratação no País. Vale, de início, apontar que a crítica fácil advémnão apenas de forma difusa da opinião pública,mas também encontra abrigo em análises“doutrinárias” e artigos generalistas. Para adelimitação do lócus de tal crítica, convém fazeruma breve incursão histórica dos marcos jurídicosdas contratações públicas no Brasil, a partir daqual observar-se-á, desde o procedimento dematuração do Decreto-lei nº 2.300/1986, que,apesar da crítica comum ser caldada no “excessode burocracia”, aposta-se, com afinco, em umanormatização maximalista, buscando abarcar, eminúmeros enunciados prescritivos, todas assituações possíveis a serem enfrentadas pelaAdministração.Para tanto, merece destaque o trabalhodesenvolvido por André Rosilho, em sua obra“Licitação no Brasil”, de 2013[1]. O autor divide ahistória da contratação pública brasileira em quatroetapas: 1ª fase) marcada pelo Decreto nº4.536/1922 (Regulamento Geral de Contabilidadeda União), que buscou sistematizar a contratação .

[1] ROSILHO, André. Licitação no Brasil. São Paulo: Malheiros,2013.

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contratações públicas[5]. Com efeito, mantendo uma perspectivaregulatória minimalista quanto aos procedimentoslicitatórios (na linha do Regulamento Geral deContabilidade da União de 1922), o Decreto-lei nº200/1967 teve o claro propósito de unificaçãonacional da gestão pública brasileira, o que nãodeve ser confundido com a absoluta centralizaçãona União do papel de criação de normasespecíficas e operacionais[6]. Em seu Título XII, ao tratar das "normasrelativas à licitações pra compras, obras, serviçose alienações", o Decreto-lei nº 200/1967 limita-se aestabelecer normas e diretrizes gerais, semadentrar em aspectos operacionais, para os quaisatribui competência à regulamentação de"segundo nível" (decretos[7] e editais). Como materialização da premissa de conferira regulamentação operacional aos atos normativossecundários, mais atrelados à gestão pública, oDecreto-lei nº 200/1967, em seu art. 30, estrutura"as atividades de pessoal, orçamento, estatística,administração financeira, contabilidade e auditoria,e serviços gerais", conferindo ao "órgão central dosistema"[8], atributos de orientação normativa, su- [5] ROSILHO, ob. cit., p. 59-60.[6] Ressalte-se que o Decreto-lei nº 200/1967, originalmente, tinhaaplicação restrita ao âmbito da União. Somente com a edição da Leinº 5.456/1968 as normas sobre licitações e contratos passaram a serexpressamente aplicáveis a Estados e Municípios.[7] Nesse sentido, vide o Decreto Federal nº 73.140, de 9 denovembro de 1973, que regulamenta as licitações e os contratos,relativos a obras e serviços de engenharia.[8] A ideia de instituição de um "órgão central" da Administraçãofederal remonta ao Estado Novo (1930-1945). Por meio do Decreto-leinº 579/1938 foi criado o Departamento Administrativo do ServiçoPúblico (DASP), incorporando os esforços anteriores da reformaadministrativa varguista com a instituição da Comissão Permanentede Padronização (1930), da Comissão Central de Compras (1931) edo Conselho Federal do Serviço Público Civil (1936). Sobre acentralização nos movimentos de reforma administrativa, vide: BALBI,Irineu Belo. Reforma administrativa no Brasil em perspectiva histórica:centralização, modelo burocrático e desenvolvimento. Rio de Janeiro,2015, 134p. Dissertação de Mestrado - Departamento de CiênciasSociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Disponívelem: <http://www.cis.puc-rio.br/assets/pdf/PDF_CIS_1463750899_Irineu_Balbi_2015_Completo.pdf>.

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pública na União, mas conferindo bastantediscricionariedade aos gestores; 2ª fase) tem comomarco o Decreto-lei nº 200/1967, que implantou umsistema de contratação pública aplicável a todos osentes da Federação brasileira, sem esgotar, em seuconteúdo, as especificidades operacionais dosprocedimentos de contratação; 3ª fase) marcada peloDecreto-lei nº 2.300/1986 e pela Lei nº 8.666/1993,ambos caracterizados pela forte carga deprocedimentalização do processo de compragovernamental e pelo estreitamento dadiscricionariedade do gestor público; 4ª fase)caracterizada pelo surgimento de normas voltadaspara a reforma do sistema implantado pela Lei nº8.666/1993 ou para a criação de alternativas, decunho geral ou específico, de fugir da submissão, notodo ou em parte, à Lei de Licitações. De acordo com Rosilho, tanto a primeira quantoa segunda fase foram caracterizadas pela edição demarcos legais mais gerais, constituídos por diretrizese orientações básicas[2]. O Decreto-lei nº 200/1967, não obstante ocontexto autoritário de sua edição[3], valeu-se do“direito” apenas como um dos instrumentos parapromover a reforma da gestão pública[4],assegurando considerável margem dediscricionariedade ao gestor público, delegando àAdministração, através dos editais, a atribuição deesmiuçar as condutas e os ritos procedimentais das

[2] ROSILHO, ob. cit., p. 46 e 59-60.[3] Foi utilizado o adjetivo “autoritário” em vista da configuração político-administrativa do período compreendido entre os anos de 1964 a 1985,caracterizado pela centralização de competências e atribuições no PoderExecutivo e pelo esvaziamento do papel normativo e fiscalizador do PoderLegislativo.[4] A reforma administrativa promovida na década de 1960 foi desenhadae tutelada pela Comissão Especial de Estudos de Reforma Administrativa(COMESTRA), criada pelo Decreto nº 54.401, de 9 de outubro de 1964.Para um panorama histórico dos movimentos de reforma administrativa noséculo XX, vide: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Reforma do Estadopara a Cidadania: A Reforma Gerencial Brasileira na PerspectivaInternacional. São Paulo: Editora 34; Brasília: ENAP, 1998.

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Nesse desiderato, o Decreto-lei nº 2.300/1986 foigerado internamente no âmbito da Consultoria-Geral da República, tendo por objetivo “evitardesvios e práticas ímprobas”[12], criando um“diploma normativo minucioso, rígido, detalhista ealtamente procedimentalizado, uniformementeaplicável a toda a Administração Pública,reduzindo a margem de discricionariedade doadministrador público e do legislador do Estados eMunicípios”[13]. Consoante a Exposição deMotivos do ato normativo[14], assinada pelo entãoConsultor-Geral da República, Saulo Ramos:

[12] ROSILHO, ob. cit., p. 66.[13] ROSILHO, ob. cit., p. 68.[14] Disponível em:<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45345/43832>.

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supervisão técnica e fiscalização. Tal diretriz será deextrema importância para o desenvolvimento dealguns apontamentos no tópico 3 do presente artigo. Portanto, até meados do século XX no Brasil, adisciplina normativa dos procedimentos decontratação pública teve um viés “minimalista”. Apartir da década de 1980, “teve início uma espécie defechamento do sistema de contratações públicas e dedensificação da regulação jurídica das licitações”[9].Introduzia-se, assim, a fase maximalista danormatização sobre o tema. A década de 1980 no Brasil, marcada pelo fim doperíodo militar (1964-1985), pela “redemocratização”e pelo influxo das reformas administrativas (comimagem associada à centralização autoritária),consagra um fenômeno de hegemonia do Direito naAdministração Pública, ocasionando a valorização daregulação, pela lei, dos procedimentos de contrataçãoe a proeminência da ótica estritamente jurídica nainterpretação das regras postas[10]. Nas palavras deAndré Rosilho, estar-se-ia diante um “fetichismolegal”:

[9] ROSILHO, ob. cit., p. 31.[10] Ainda que não seja objeto específico do presente estudo, é precisopontuar, nesta altura, que o protagonismo dos “juristas” abafou umnecessário viés multidisciplinar da gestão pública, relegando a umsegundo plano os constructos das demais ciências afetas à lógica doplanejamento sistêmico e da logística na atividade administrativa. Enfim,em tal contexto, foi fomentada a ideia de que os “assessores jurídicos” e“advogados” deteriam não apenas a palavra final em termos deinterpretação de regras de gestão pública, mas o próprio monopólio dainterpretação.[11] ROSILHO, ob. cit., p. 64.

No plano jurídico este momento das licitaçõespúblicas esteve impregnado pela crença no papeltransformador do Direito, na sua capacidade deconformar e de modificar a realidade que o cerca –caracterizando o que convencionei chamar de“fetichismo legal”. O Direito, portanto, decoadjuvante passou a protagonista, ocupando olugar de destaque quase absoluto nas reformasdesse período.[11]

O texto ora submetido à elevada consideração de V.Ex.' inspirou-se, basicamente, no ordenamentojurídico do estado de São Paulo (Leis nº 10.395, de17 de dezembro de 1970, hoje revogada, e 89, de 27de dezembro de 1972) e na experiência jurídicaproporcionada' pela ' aplicação das ,ermas doDecreto-Iei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967,enriquecida pela interpretação dos egrégiosSupremo Tribunal Federal, Tribunal Federal deRecursos e Tribunal de Contas da União [...] Oprojeto restringe, em função do interessepúblico, o discricionarismo do administrador eveda-Ihe, atento à exigência de moralidadeadministrativa, que adote medidas cujaimplementação desvie-se dos objetivos para osquais a administração pública foi instituída.[grifou-se]

O resultado foi um texto contendo 90 artigos eque implicou a revogação do Código daContabilidade Pública da União referentes alicitação e contratos e dos artigos 125 a 144 doDecreto-lei nº 200/1967, de viés, essencialmente,minimalista.

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[19] ROSILHO, ob. cit., p. 108-109.[20] ROSILHO, ob. cit., p. 91.[21] Tais “coincidências” serão melhor exploradas em artigoespecífico de minha autoria a ser publicado no portal Observatório daNova Lei de Licitações [http://www.novaleilicitacao.com.br/].

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Com o advento da Constituição Federal de 1988,que dedicou conteúdo específico às licitações econtratos administrativos, e no contexto de denúnciasde corrupção envolvendo o governo de FernandoCollor de Mello, em 10/06/1991, foi apresentado peloentão Deputado Federal Luís Roberto Ponte(PMDB/RS) o Projeto de Lei nº 1.491[15] queobjetivava a regulamentação do inciso XXI do art. 37da CF/1988. Sob tal contexto, a tramitação do PL nº 1.491/1991perdurou na Câmara dos Deputados por quase umano, tendo a aprovação de seu texto inicial peloPlenário concluída em regime de urgência, o queacarretou pouco prazo para as Comissões Temáticasda Casa se debruçarem sobre o conteúdo do projeto.Enviado o texto ao Senado Federal[16], houve aapresentação de um novo substitutivo proposto peloSenador Pedro Simon (PMDB/RS). Tendo causado“intenso mal-estar” na Câmara dos Deputados[17],após intensa articulação interna de Luís RobertoPonte, foi mantido o texto inicial oriundo da Câmara,com algumas modificações sugeridas pelosubstitutivo do Senado Federal. Enviada para sançãodo Presidente da República, com considerávelnúmero de vetos[18], em 21/06/1993 foi promulgadaa Lei nº 8.666/1993. Com informações extraídas dos debatesparlamentares, artigos e notícias publicados nocontexto de discussão do PL nº 1.491/1991, AndréRosilho conjectura sobre os motivos que conduziramao maximalismo da Lei nº 8.666/1993:

[15] Tramitação disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=192797>.[16] O substitutivo foi autuado no Senado Federal como Projeto de Lei daCâmara nº 59/1992 [tramitação disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/20800>].[17] Cf. ROSILHO, ob. cit., p. 103.[18] Foram, no total, vetados 18 (dezoito) dispositivos do autógrafo finalenviado pela Câmara dos Deputados. As razões dos vetos (Mensagem nº335) encontram-se disponíveis em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/Mensagem_Veto/anterior_98/Vep335-L8666-93.pdf>.

[...] o maximalismo prevalece não porque há maisparlamentares que, no plano das ideias, defendem aexistência de um modelo legal de licitações públicasdo tipo maximalista, mas porque eles tiveram queassumir uma postura pragmática. Tendo em vistaque o modelo legal que estava sendo votado peloCongresso Nacional já era do tipo maximalista, aoscongressistas restou a possibilidade de trabalharemcom o produto que tinham em mãos, ajustando-o damaneira que achassem mais conveniente. Não haviamais espaço para manifestações relativas à melhorforma de regular as contratações públicas no Brasil.[19]

O fato é que a Lei nº 8.666/1993 “nãoinaugurou uma nova fase das licitações no Brasil”,uma vez que “constituída sobre o mesmo modelojurídico de contratações públicas que permeou oDecreto-lei 2.300/1986”[20]. Ainda neste ponto, não se pode deixar deregistrar as “coincidências” na tramitação do PL nº1.491/1991 com o atual projeto da “nova Lei deLicitações”, materializado pelo PLS nº 559/2013 epelo PL nº 1.292/1995[21]. A despeito do fluxoinvertido (vez que a proposição inicial surge noSenado Federal), é inegável que o substitutivoentão aprovado pela Câmara dos Deputados emsetembro de 2019 mantém o paradigmamaximalista, reproduzindo, em parte, dispositivosda própria Lei nº 8.666/1993.

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2. Burocracia e disfunção burocrática: resgatandoconceitos Feita a necessária digressão histórica para secontextualizar o “atual” diagnostico de “excesso deburocracia” nas contratações públicas, é precisomelhor expor os conceitos. “Burocracia”, na concepção de Max Weber (1864-1920), trata-se de um "tipo ideal" de organização,calcada na aceitação da validade de ideias fundadana autoridade racional-legal, constituindo um modelode análise sociológica e política em pesquisas e nodesenvolvimento da teoria das organizações[22]. Na definição weberiana, uma organizaçãoburocrática apresenta os seguintes caracteres: i)estrutura de cargos delineada hierarquicamente ecom conteúdo e limites previamente estabelecidos emnormas, com necessária atividade de supervisão econtrole de um cargo superior; ii) especificação deáreas de competência decorrentes da divisãosistemática do trabalho e da diferenciação defunções; iii) existência de um quadro administrativocomposto por funcionários tecnicamente qualificados,cuja comportamento é norteado por normas técnicase as demais que regulam o exercício dos cargos; iv)distinção entre a propriedade da "organização" e apropriedade pessoal do funcionário; v) diferenciaçãode propósitos pessoais dos propósitos do funcionário,partindo do pressuposto de que a condutadesempenhada enquanto investido no cargo éimpessoal e orientada pelas normas pertinentes[23].

[1] WEBER, Max. Os fundamentos da organização burocrática: umaconstrução do tipo ideal. In: CAMPOS, Edmundo (org.). Sociologia daburocracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 15-28.[1]Cf. OLIVEIRA, Gercina Alves de. A Burocracia Weberiana e aAdministração Federal Brasileira. Revista Administração Pública, Rio deJaneiro, nº 4, jul./dez. 1970, p. 47-74. Disponível em:<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/viewFile/4847/3585>

Tais pressupostos, inegavelmente, constituemo referencial de planejamento de estruturação daburocracia da Administração Pública brasileira nosséculos XX e XXI, cuja tentativa seminal deimplementação se observou no período do EstadoNovo (1930-1945). Hodiernamente, ainda que sediga que o modelo de organização estatal"gerencial" – observado a partir da década de1990 – pareça representar uma superação domodelo burocrático tradicional, o fato é que ospressupostos de organização então contempladospor Max Weber permanecem, em especial no quetange à estrutura de cargos, competências,segregação de funções e controles hierárquicos.De tal forma, é razoável concluir que o "modelogerencial" e o "modelo burocrático" nãoapresentam uma relação de contrariedade ouoposição, mas sim de complementariedadeevolutiva. Como um tipo ideal calcado em uma lógica delegitimidade racional, não há, de per si, umaconotação negativa em relação ao termo“burocracia”, de modo que, os efeitos deletériosdecorrentes da aplicação prática dos pressupostosda organização burocrática, cientificamente seamoldam como “disfunções burocráticas”.Fundamentalmente, o tipo ideal de burocraciaweberiano pressupõe uma organização comprevisibilidade de funcionamento com vistas a seobter a maior eficiência possível. Contudo, éinegável que além das consequências previstas,há as consequências imprevistas que conduzemàs imperfeições e ineficiências. Logo, asdisfunções burocráticas representam as anomaliasde funcionamento da burocracia e não o tipo-idealpropriamente dito.

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Dentre as disfunções recorrentes observadas nasorganizações - e que nos interessa para o presenteartigo - encontra-se a equivocada tentativa deregulamentação totalitária e desarrazoada de todosos procedimentos e condutas e, ainda, o excesso deformalização, caracterizado pela exagerada previsãode formalidades e padronização normativa deprocedimentos e pelo excesso de rotinas, despachose encaminhamentos administrativos[24]. Aplicando tais incursões conceituais às compraspúblicas no Brasil, observa-se que o excesso denormatização é praticado em sede de produçãonormativa primária, isto é, por meio de atosnormativos primários (referidos no art. 59 daConstituição Federal), em especial as leis strictusensu e medidas provisórias[25]. Ou seja, retoma-sea ideia de “fetichismo legal” anteriormentedesenvolvida neste artigo. 3. Maximalismo da normatização primária comodisfunção burocrática Dada a experiência político-institucional brasileiraem cíclicos movimentos de reforma administrativa, éinegável que optamos por circunscrever a gestãopolítica à totalidade da lei em sentido estrito (atonormativo primário). Logo, confere-se ao legisladoruma presunção de onisciência acerca do agiradministrativo, de forma a contemplar, em caráter ab-

[24] PATZLAFF; SANTOS; PATZLAFF. Análise acerca da essênciaburocrática weberiana e os pressupostosmecanicistas: a relação entre o perfil dos líderes e a incidência dedisfunções burocráticas em uma instituição pública. Revista Eletrônica deHumanidades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP, Macapá, v. 8, n.2, p. 09-36, jul./dez. 2015. Disponível em:<https://periodicos.unifap.br/index.php/pracs/article/viewFile/1796/airtonv8n2.pdf>.[25] Nos sistemas constitucionais anteriores, mutatis mutandi, a medidaprovisória da CF/1988 corresponderia ao “Decreto-Lei” nas Constituiçõesanteriores: CF/1937 (art. 13); CF/1967 (art. 58) e CF/1969 (art. 55).

soluto, todas as condutas admissíveis. Aindaaferrados ao surrado conceito do “princípio dalegalidade”[26], se o administrador “só pode fazeraquilo que a lei permite”, seria preciso muita leipara dar conta de todas as situações possíveis. Note-se, em verdade, que a compreensãoclássica do princípio da legalidade naAdministração Pública calca-se, antes de tudo, emuma desconfiança face aos próprios gestorespúblicos, sendo preciso limitar ao máximo suadiscricionariedade através da lei.

No mundo jurídico brasileiro é grande a convicçãode que a discricionariedade administrativa seria acausa de todo o mal das contratações públicas. Daío prestígio da maximalista Lei 8.666/1993, quebuscou limitar fortemente a discricionariedade.Daí também a preferência dos órgãos de controlepelas interpretações que reduzam sempre mais osespaços de opção administrativa.[27][grifou-se]

Como bem observou Steven Kelman, o foco dalegislação primária deveria ser o estabelecimentode metas e diretrizes ao agir administrativo,devendo ser cobrado dos agentes a motivaçãopara as decisões tomadas e a transparência nosresultados, “ao invés de olharmos por cima dosombros toda vez que eles agirem”[28].

[26] A compreensão de que "administrar é aplicar a lei de ofício", foioriginalmente exposta no Brasil por Miguel Seabra Fagundes, em1941, em sua obra "O Controle dos Atos Administrativos pelo PoderJudiciário" (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941). Posteriormente,Hely Lopes Meirelles, em seu “Direito Administrativo Brasileiro” (cujaprimeira edição é de 1964), formulou a conhecida sentença: “Naadministração não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto naadministração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, naAdministração Pública só é lícito fazer o que a lei autoriza" (in DireitoAdministrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 82).[27] SUNDFELD, Carlos Ari. Prefácio. In: ROSILHO, André. Licitaçãono Brasil. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 8.[28] KELMAN, Steven. Procurement and Public Management: theFear of Discretion and the Quality of Government Perfomance.Washington: The AEI Press, 1990, p. 14.

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No caso brasileiro, a opção por um modelonormativo totalitário acarreta, ainda, outros efeitosnocivos à racionalidade administrativa, tendo em vistaa forma federativa do Estado, a competêncialegislativa concorrente dos demais entesfederativos[29], a não-unificação nacional dossistemas de controle externo e a heterogeneidadeestrutural das Administrações direta e indireta[30]. Portanto, observa-se que o modelo maximalista,caracterizado por uma normatização primáriaextremamente detalhada desenvolvida com o intentode esgotar todas as situações a serem enfrentadaspelo gestor público, ao retirar as possibilidades dedensificação técnica diante das características dasituação concreta, representaria uma anomalia (ou“disfunção burocrática”) do Estado Gerencialbrasileiro.

[29] Vide, para tanto: AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. O que "sobra"para estados e municípios na competência de licitações e contratos?Consultor Jurídico, 22/01/2017. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2017-jan-22/sobra-estados-municipios-licitacoes-contratos>.[30] Vide, para tanto: AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Por um "girohermenêutico" no Direito Administrativo de estados e municípios.Consultor Jurídico, 16/09/2019. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2019-set-16/victor-amorim-visao-nacional-compras-publicas>.[31] ROSILHO, ob. cit., p. 230.

Outrossim, nesta altura do artigo, já se tornapossível uma conclusão parcial: a ineficiência,morosidade e insucesso das compras públicas estáatrelada a um modelo maximalista de prescrição decondutas do gestor público por meio de atosnormativos primários adotado com rigor no Brasildesde a década de 1980, constatamos que aí residea “disfunção burocrática” e que o problema não é“burocracia” propriamente dita. Logo, há que buscarreparar as disfunções e almejar a “boa” burocraciano sistema de contratação públicas no Brasil. E qualseria um caminho plausível? 4. Um caminho possível: a “boa burocracia”reside na atividade normativa secundária daAdministração Pública Identificada a “disfunção burocrática” do atualmarco jurídico das contratações públicas no Brasil,há que se pugnar, como premissa básica corretiva, apreferencialidade por leis minimalistas, contendo asdiretrizes, a modelagem básica dos procedimentosde contratação, conferindo aos regulamentos (atosnormativos secundários) a tarefa de densificação epormenorização operacional. De certa forma, tal é a tendência observada porAndré Rosilho na legislação compreendida na“quarta fase”[32] das licitações no Brasil, na qual háuma fuga da maximalista Lei nº 8.666/1993. Em talmarco, podemos considerar a Lei nº10.520/2002[33], a Lei nº 12.462/2011[34] e a Lei nº13.303/2016[5].

[32] ROSILHO, ob. cit., p. 144-228.[33] Pode-se considerar a Lei do Pregão como norma geral em suaessência. Ao se limitar apenas a estabelecer a estruturaprocedimental elementar do pregão, confere ao regulamento certamargem criativa e protagonismo na especificação do procedimento,em especial quanto à forma eletrônica de pregão.[34] Em seu art. 17, a despeito de fixar as balizas do procedimentode realização do RDC (Regime Diferenciado de Contratação), a leiprevê que "o regulamento disporá sobre as regras e procedimentosde apresentação de propostas ou lances".[35] Destaque para o art. 40 que confere considerável “liberdade” dedensificação regulamentar às estatais na edição de seusregulamentos internos de licitações e contratos.

Apostou-se na ideia de que a lei deveria ser ogrande instrumento de regulação das licitações,antecipando comportamentos, condutas eescolhas. Ao administrador público – apontado àépoca como o grande responsável pela corrupçãonas licitações – caberia apenas o papel de cumpri-la[...] Ao apostar em soluções normativasexaustivas, o maximalismo deixa pouca margemde manobra para correções de percurso eadaptações. Assim, eventuais equívocos legaistendem a se perpetuar no tempo, já que para seremcorrigidos dependem de mobilização do legislador.Além disso, a transferência de praticamente todaa competência decisória para o Legislativotambém acarreta o bloqueio à inovação e àcriatividade na gestão pública, pois incentiva queos agentes se limitem a reproduzir oscomportamentos e atividades expressamentedescritos em lei.[31][grifou-se]

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Assim, no tocante às contratações públicas, à leistrictu sensu seria conferido o papel de fixação dosstandards de atuação e conformação normativa porparte do gestor, de modo que a legislação primáriaconstituiria uma espécie de vinculação negativa,assegurando ao administrador público os adequadosespaços de escolha técnica e política[36]. Diante do inerente grau de abstração das leis“minimalistas”, desponta a necessidade deregulamentação, mediante edição de atos normativossecundários, para consecução dos seguintesobjetivos: a) uniformizar os procedimentos a seremobservados pela Administração para a execução dalei; b) precisar o conteúdo de conceitos genéricos eindeterminados existentes na lei; c) delimitar oscontornos da competência discricionária legal[37]. Nesse sentido, a Constituição Federal, no inciso IVdo art. 84, institui o chamado “poder regulamentar”,conferindo ao Presidente da República a competênciapara expedir decretos e regulamentos para a fielexecução das leis. A despeito de se apontar comofundamento para o poder regulamentar o mencionadodispositivo constitucional (que trata da competênciado Presidente da República), em uma lógica deobservância da independência (que tem como umadas facetas a autonomia administrativa), há que seobservar a competência regulamentar dos demaispoderes (Legislativo e Judiciário) e dos órgãos quegozam de tal autonomia de acordo com o textoconstitucional (Ministério Público, Defensoria Públicae Tribunais de Contas)[38]. O mesmo raciocínio seaplica, por simetria, ao âmbito dos Estados, DistritoFederal e Municípios.

[36] BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. Rio deJaneiro: Renovar, 2008, p. 137.[37] Cf. MOTTA, Fabrício. Função Normativa da Administração Pública.Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 161.[38] Cf. MOTTA, ob. cit., p. 170-171.

Os chamados regulamentos tratam-se, portanto,de atos normativos secundários, que retiram seufundamento de validade das leis e não diretamenteda Constituição. Conforme observado por Motta,

[39] MOTTA, ob. cit., p. 139.[40] BINEBOJM, ob. cit., p. 157-158.

[...] tais atos encontram-se, necessariamente, empatamar hierárquico inferior à lei e,consequentemente, a ela subordinados. Submetem-se com totalidade, por isso, aos dois subprincípioscomponentes do princípio da legalidade: reservalegal e preferência da lei. É dizer: ainda que retiremseu fundamento de validade implicitamente daConstituição, não poderão imiscuir-se no camporeservado para regulação pelas leis. Da mesmaforma, estarão sujeitos a controle de legalidade aposteriori no caso de superveniência de leireguladora.[39] É preciso, contudo, quebrar o paradigma segundo

o qual é vedado, de forma absoluta, que oregulamento de execução venha a inovar na ordemjurídica. Nesse sentido, é precisa a crítica deGustavo Binebojm, com suporte em Sérgio Ferraz:

O que se está aqui propugnando é que a noção deregulamento de execução não pode ser circunscritaa uma atividade basicamente repetidora da lei, ou“um mero elemento de sua execução, como umprocedimento de sua aplicação”, conforme defendiaOswaldo Aranha Bandeira de Mello. Sempre, emmaior ou menor medida – ressalvadas, é claro, ashipóteses de reserva de lei, notadamente a absoluta– haverá espaço para a atividade criativa do poderregulamentar de execução. Neste exato diapasão,Sérgio Ferraz preleciona que, “realmente, denenhuma valia é o regulamento que se limita arepetir a lei”. Além disso, continua o publicista, oregulamento executivo não pode ser contra legem,entretanto, “a sua finalidade é a execução doconteúdo da lei, e não de seu limite formal”. Dessemodo, o regulamento de execução pode “conternorma nova, desde que não contrarie a ordem legalvigente e seja necessária à plena execução dodiploma regulamentado”.[40]

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Por conseguinte, desde que não venha acontrariar a lei a ser executada (contra legem) eatento aos parâmetros de juridicidade, há que seresguardar a liberdade de densificação (ainda quecriativa) do poder regulamentar, partindo-se dopressuposto de que a opção do legislador em conferirtal margem à determinadas autoridadesadministrativas sustenta-se em sua expertise técnicae/ou política para o estabelecimento de instrumentosnormativos eficazes e eficientes para a consecuçãoda lei regulamentada. Isto é, reconhecer, naformulação de Cass Sunstein e Adrian Vermeule[41],a "capacidade institucional" de cada autoridadedetentora da competência regulamentar, definidaconcretamente dentro de um arranjo institucionalespecífico. Há, em uma compreensão weberiana, umalegitimação do poder regulamentar pela racionalidadedecorrente da especialização técnico-funcional daautoridade administrativa, o que, de forma alguma, semostra contrário às demandas democráticas nãoapenas procedimentais[42], mas, também,substanciais[43]. Destaca-se, nesse contexto, o Decreto Federal nº5.450/2005, que, orientado por uma lógicaconcorrencial mais adequada à realidade virtual,conformou a fase de lances do pregão eletrônicoexplorando a competitividade de forma mais efetivaquando comparado à modelagem da Lei nº10.520/2002 (calcada na lógica das licitaçõespresenciais). Da mesma forma, o Decreto Federal nº10.024/2019, à luz da teoria dos leilões, apresentoudesenhos de mecanismos com vistas a promover in-

[41] Cf. SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation andInstitutions. Michigan Law Review, vol. 101, nº 4, 2003.[42] Nesse ponto, há que se destacar as iniciativas da SEGES de conferirconsiderável participação social no processo de tomada de edição acercade regulamentos de execução, como se deu em relação ao DecretoFederal nº 10.024/2019, antecedido por duas audiências públicas edezenas de reuniões com especialistas (inclusive do setor privado) emembros da sociedade civil organizada.[43] Acerca das supostas tensões entre a regulamentação técnica e oEstado Democrático de Direito, vide: BINEBOJM, ob. cit., p. 273-.301.

centivos aos licitantes para revelarem, de formaconfiável, a sua valoração do objeto[44]. Logo, vê-se com bons olhos uma posturaminimalista de parte da legislação brasileira sobrecontratações públicas que venha a conferirconsiderável espaço de regulamentação para disporacerca de questões operacionais, dada a expertise eo conhecimento técnico daqueles que detém opoder regulamentar, conhecimento esse de carátermultidisciplinar[45], não necessariamente jurídico. Em matéria de licitações e contratos, éfundamental a compreensão da complexidade realno poder regulamentar das autoridades brasileiras,em especial a estrutura hierarquizada do sistema. Épossível depreender regulamentações de segundograu, em geral materializadas em portarias,instruções ou orientações normativas. Diversos sãoos exemplos de decretos expedidos pelo Presidenteda Repúblicas nos quais se contem disposiçãoprevendo a disciplina subsidiária por parte deautoridades subordinadas ao Chefe do PoderExecutivo Federal[46]. Trata-se, de acordo comFabrício Motta, dos chamados atos normativosderivados de segundo grau (ou, simplesmente,“regulamentos de regulamentos”)[47]. [44] Para uma melhor compreensão acerca do caráter inovador da“modelagem” da disputa instituída pelo Decreto nº 10.024/2019 sob aótica da “teoria dos leilões” e de “alocações de incentivo”, videNÓBREGA, Marcos. Direito e economia da infraestrutura. BeloHorizonte: Fórum, 2020, p. 21-47.[45] Em matéria de contratações públicas, cada vez mais se fazrelevante a perspectiva da Análise Econômica do Direito comometodologia, de modo a conferir verdadeira cientificidade aospressupostos sobre os quais o raciocínio jurídico é desenvolvido, emespecial no que tange ao impacto empírico de um modelo projetadopor uma norma, as questões comportamentais, a teria dos leilões e aarquitetura dos mercados. Para tanto, sugere-se a leitura doscapítulos 1, 2, 10 e 11 da obra: COOTER, Robert; ULEN, Thomas.Law & Economics. 6 ed. New Jersey: Prentice Hall, 2011. [46] Vide, nesse sentido: art. 11 do Decreto nº 7.174/2010; art. 17, I,do Decreto nº 9.373/2018; art. 59 do Decreto nº 10.024/2019, entreoutros.[47] Para tanto, vide o disposto no art. 87, III, da CRFB.

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Especialmente nessa seara merece destaque opapel de normatização do “órgão central” do Sistemade Serviços Gerais (SISG), cuja atribuição encontrafundamento no art. 30, §1º, do Decreto-Lei nº200/1967[48]. Atualmente desempenhado pelaSecretaria de Gestão do Ministério da Economia[49],é frequente a edição de instruções normativas degrande repercussão para o desempenho dasatividades dos gestores públicos no âmbito dascontratações, destacando-se a IN SLTI nº 5/2014(pesquisa de preços), a IN SLTI nº 5/2017(contratação de serviços sob o regime de execuçãoindireta), a IN SEGES nº 01/2019 (dispõe sobre oSistema de Planejamento e Gerenciamento deContratações) e a IN SGD nº 1/2019 (contratação desoluções de tecnologia da informação). Na seara do que se defende no presente artigo,tais instruções normativas, por incorporarem,fundamentalmente, as boas práticas em gestão econtratação pública, constituem importantesinstrumentos indutores de comportamentos internosno âmbito das instituições quanto à concretadefinição burocrática de matriz de competências eresponsabilidades e dos procedimentos operacionaisespecíficos e adequados à realidade de cada órgãoou entidade da Administração Pública. Com efeito, sem o engessamento e a utopiatotalitária da legislação primária maximalista, tem-sena adequada atividade regulamentadora importanteinstrumento da "boa burocracia", desde que orientada

[1] Art. 30. Serão organizadas sob a forma de sistema as atividades depessoal, orçamento, estatística, administração financeira, contabilidade eauditoria, e serviços gerais, além de outras atividades auxiliares comuns atodos os órgãos da Administração que, a critério do Poder Executivo,necessitem de coordenação central.§ 1º Os serviços incumbidos do exercício das atividades de que trata êsteartigo consideram-se integrados no sistema respectivo e ficam,conseqüentemente, sujeitos à orientação normativa, à supervisão técnicae à fiscalização específica do órgão central do sistema, sem prejuízo dasubordinação ao órgão em cuja estrutura administrativa estiveremintegrados.[1] Conforme Decreto Federal nº 9.745/2019.

por critérios técnicos, por uma abordagem científica(que possibilidade a testabilidade empírica e/oulógico-argumentativa) e devidamente tributária doslimites políticos decorrentes do desenho institucionalestabelecido pela Constituição brasileira,observando-se, especialmente, a margem deautonomia regulamentar dos entes e entidadesdotados de autonomia administrativa e de gestão,em todos os âmbitos da Federação. REFERÊNCIAS AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. O que "sobra"para estados e municípios na competência delicitações e contratos? Consultor Jurídico,22/01/2017. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2017-jan-22/sobra-estados-municipios-licitacoes-contratos>. AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Por um "girohermenêutico" no Direito Administrativo de estadose municípios. Consultor Jurídico, 16/09/2019.Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-set-16/victor-amorim-visao-nacional-compras-publicas>. BALBI, Irineu Belo. Reforma administrativa no Brasilem perspectiva histórica: centralização, modeloburocrático e desenvolvimento. Rio de Janeiro,2015, 134p. Dissertação de Mestrado -Departamento de Ciências Sociais, PontifíciaUniversidade Católica do Rio de Janeiro. Disponívelem: <http://www.cis.puc-rio.br/assets/pdf/PDF_CIS_1463750899_Irineu_Balbi_2015_Completo.pdf>. BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do DireitoAdministrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Reforma doEstado para a Cidadania: A Reforma GerencialBrasileira na Perspectiva Internacional. São Paulo:Editora 34; Brasília: ENAP, 1998.

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Para citar este artigo: BRASIL. Secretaria de Gestão do Ministérioda Economia. Do Fetichismo Legal à Buscapela "Boa Burocracia" nas ContrataçõesPúblicas. Diálogos em Logística Pública, ano1, v. 1, p. 3 - 13, 2020.