DIREITO À ÁGUA O acesso à água como Direito Humano · hidroeletricidade, proteção do meio...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito Mestrado em Direito Público DIREITO À ÁGUA O acesso à água como Direito Humano Maria Bueno Barbosa Belo Horizonte 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito

Mestrado em Direito Público

DIREITO À ÁGUA O acesso à água como Direito Humano

Maria Bueno Barbosa

Belo Horizonte 2008

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Maria Bueno Barbosa

DIREITO À ÁGUA O acesso à água como Direito Humano

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Área de Concentração: Direito Público, Linha de Pesquisa: Direitos Humanos, Processo de Integração e Constitucionalização do Direito Internacional, como requisito para obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Bruno Wanderley Junior.

Belo Horizonte

2008

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Barbosa, Maria Bueno

B238d Direito à água: o acesso à água como direito humano / Maria Bueno

Barbosa. Belo Horizonte, 2008.

143f.

Orientador: Bruno Wanderley Júnior

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Direito.

1. Direito de águas. 2. Água potável - Legislação. 3. Direitos humanos. 4.

Recursos hídricos. 5. Direito internacional público. I. Wanderley Júnior, Bruno.

II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-

Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 341.224

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Maria Bueno Barbosa DIREITO À ÁGUA: O acesso à água como Direito Humano Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Área de Concentração: Direito Público, Linha de Pesquisa: Direitos Humanos, Processo de Integração e Constitucionalização do Direito Internacional, como requisito para obtenção do título de Mestre. Belo Horizonte, 2008.

_______________________________________________________

Prof. Dr. Bruno Wanderley Junior (Orientador) – PUC Minas Programa de Pós-Graduação em Direito

_______________________________________________________ Prof. Dr. Mário Lúcio Quintão Soares – PUC Minas

Programa de Pós-Graduação em Direito

_______________________________________________________ Profa. Dra. Susana Camargo Vieira – Universidade de Itaúna

Departamento de Direito

_______________________________________________________ Prof. Dr. Arthur José Almeida Diniz – UFMG (suplente)

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DEDICATÓRIA

A Juliana e Pedro, meus pais e Marília, minha irmã. Ao grande amigo João Paulo Madruga.

À minha avó, Teresa. À querida prima e afilhada, Sabrina.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu pai, pelo incentivo sempre, pela admiração mútua e pelo patrocínio constante às minhas investidas no campo jurídico. À minha mãe, pelo amor incondicional e pelo exemplo de vida. À minha irmã, pela companhia e por todo o carinho sempre. Ao amigo João Paulo Madruga, a quem tenho muito o que agradecer pela presteza, atenção e pela recepção em Brasília, indispensáveis para a pesquisa. Aos grandes amigos, ‘padrinhos de mestrado’, Daniel Queiroga e Adélia Procópio, sem os quais eu provavelmente não teria me aventurado nesta empreitada. Também agradeço às amigas Bia Xavier e Renata Mantovani pelo incentivo na caminhada. Ao meu orientador Prof. Dr. Bruno Wanderley Junior pela compreensão, pelo incentivo constante, pela calma e paciência e por sempre me fazer acreditar que eu posso um pouco mais e, por acima de tudo, ser exemplo de perseverança e de acadêmico, cujo brilhantismo e humanidade foram imprescindíveis à realização deste trabalho. Aos colegas de mestrado que ficarão guardados para sempre como grandes amigos: Ju, Gabi, Mateus, Michele, Giltônio, Sérgio, Éder, Camila, Aluizio, Lisieux, Vincenzo e Adriano. Às professoras Dra. Matilde de Souza (orientadora da Monografia de Conclusão da Graduação em Relações Internacionais) e Dra. Lusia Ribeiro Pereira (orientadora do estágio de docência) por serem exemplos de pessoa e de acadêmicas, pelas quais tenho uma gratidão sem tamanho. Aos funcionários da Agência Nacional de Águas (ANA) – Brasília/DF, indispensáveis à realização desta pesquisa: – Ao Sr. Maurício Andrés, Secretário-Geral Substituto, por toda a dedicação e atenção; – Ao Sr. Dr. Jorge Thierry Calasans, Assessor da Área de Informação, pelo enorme auxílio prestado a esta pesquisa, sobretudo pela sugestão de novo tema, aqui acatada; – Ao Sr. Paulo Lopes Varella Neto, Superintendente de Implementação de Programas e Projetos, por toda gentileza em colaborar com a pesquisa; – Às bibliotecárias do Centro de Documentação (CEDOC), Candy e Jane. A todo staff do gabinete do Senador Garibaldi Alves Filho pelo suporte. A todo o pessoal da Secretaria do Mestrado e da Faculdade Mineira de Direito, em especial Juninho, Daniel e Rafael. Aos colegas da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, em especial aos Professores Dr. Wolney Lobato e Dr. João Francisco de Abreu. Ao professor Dr. Alberico Alves da Silva Filho, por sua paciência, interesse, solicitude e pelos notórios conhecimentos. A todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para esta pesquisa: professores, amigos e colegas de mestrado e graduação.

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O acesso a uma água segura é uma necessidade humana fundamental e, portanto, um direito humano básicoa. Mensagem especial do então Secretário Geral da ONU – Kofi Annan – na ocasião do Dia Mundial da Água, em 22 de março de 2001.

a Tradução livre de: "Access to safe water is a fundamental human need and therefore a basic human right”. Disponível em: http://www.unis.unvienna.org/unis/pressrels/2001/sgsm7738.html.

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RESUMO

A água constitui elemento essencial à vida no planeta, sendo elemento-chave para a

saúde humana, higiene, saneamento, irrigação de colheitas, provimento de

hidroeletricidade, proteção do meio ambiente e manutenção dos ecossistemas. No

entanto, o cenário de escassez em alguns países desafia as medidas para a

promoção de um acesso adequado aos recursos hídricos (aqui entendidos como a

água potável, própria para o consumo e em quantidade e qualidade satisfatórias).

Somando-se à distribuição desigual do recurso, de quantidade já altamente limitada,

ainda há a questão do crescimento populacional desenfreado e o conseqüente

aumento da demanda. Dentre os inúmeros documentos sobre o tema, o Comentário

Geral sobre Direito à Água, recepcionado pela Convenção sobre Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais em novembro de 2002 se tornou um marco histórico

para os direitos humanos, uma vez que os 145 signatários se obrigam a promover,

respeitar e proteger esse acesso agora entendido como parte dos direitos humanos,

com suas implicações, suas limitações, seus requisitos necessários e seus

desdobramentos.

PALAVRAS-CHAVE: Direito à água; Direitos Humanos; Acesso à Água; Recursos

Hídricos.

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ABSTRACT

Water is an essential element for life in general. It plays a key role on human health,

hygiene, sanitation, irrigation, on providing hydroelectricity and also on protecting the

environment and maintaining the ecosystems. Thus, the scarcity scenario we can

observe in some countries challenges measures taken to enforce the promotion of an

adequate access to water resources (herein understood as freshwater, adequate for

human consumption and with satisfactory quality and quantity). Besides the unequal

distribution, allied to the already known highly limited quantity, lies the disordered

population growth and the consequent expansion of the demand. Although some

documents have addressed this issue, the General Comment on the Right to Water

received by the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights on

November 2002, has became a relevant mark for human rights history, once the 145

signatories have abided to promote, respect and protect this access to safe water,

here taken into account as a part of the human rights, and also its applications,

limitations and necessary requirements.

KEYWORDS: Right to water; Human Rights; Access to Freshwater; Water resources.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10

1 ASPECTOS GERAIS DOS DIREITOS HUMANOS ...................................14 1.1 Direitos Naturais X Direitos Humanos ....................................................14 1.2 Abordagem histórico-conceitual .............................................................24 1.2.1 A internacionalização dos direitos humanos .........................................31 1.3 Perspectivas atuais dos direitos humanos ............................................38 1.3.1 A Era dos Direitos de Norberto Bobbio ..................................................39 1.3.2 Enfoques críticos à Teoria de Norberto Bobbio: outras vertentes.......43 2 A ÁGUA NA AGENDA INTERNACIONAL.................................................46 2.1 A concertação internacional ....................................................................51 2.1.1 Carta das Nações Unidas, 1945 ...............................................................52 2.1.2 Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948...............................53 2.1.3 As Convenções e Protocolos de Genebra, 1949 e 1977........................53 2.1.4 Os Pactos de Direitos Humanos de 1966................................................54 2.1.5 Convenção sobre os Direitos da Criança, 1986 .....................................55 2.1.6 Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, 1993 .........................56 2.1.7 A Conferência das Nações Unidas sobre o

Meio Ambiente Humano, 1972 .................................................................56 2.1.8 Conferência de Mar del Plata, 1977 .........................................................57 2.1.9 A Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1985

e o Relatório Brundtland, 1987 ................................................................58 2.1.10 As Conferências Preparatórias de Delft (1991) e Dublin (1992)............58 2.1.11 A Conferência do Rio – ECO 92 e a Agenda 21......................................59 2.1.12 Declaração do Milênio e Declaração Política de Joanesburgo, 2002...60 2.1.13 O Ano Internacional da Água Potável, 2003 ...........................................61 2.1.14 O Comentário Geral sobre Direito à Água ..............................................62 2.2 A escassez, a cooperação e o conflito....................................................64 2.3 O direito à água como realidade..............................................................80 3 O DIREITO HUMANO DE ACESSO À ÁGUA ...........................................82 3.1 As normas no direito interno e no direito internacional:

considerações...........................................................................................83 3.1.1 O predomínio de soft law e a emergência de hard law

no Direito Internacional do Meio Ambiente ............................................88 3.2 A disciplina do Direito das Águas (Direito de Águas)

e o direito à água.......................................................................................93 3.2.1 Água e Recursos Hídricos .......................................................................95 3.3 A positivação de um direito à água.........................................................97 3.3.1 Os Comentários Gerais ............................................................................98 3.3.2 O direito à água e o Comentário Geral nº 15 sobre o PIDESC ..............99 CONCLUSÃO .........................................................................................................107 REFERÊNCIAS.......................................................................................................111

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APÊNDICE A – Estudo sobre direito à água, segundo Henri Smets ................117 ANEXO A – Convenção de Genebra III Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra, 1949: artigos relacionados ao direito à água ..................................123 ANEXO B – Convenção de Genebra IV Relativa à Proteção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra, 1949: artigos relacionados ao direito à água ...............125 ANEXO C – Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra de 1949 Relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais, 1977: artigos relacionados ao direito à água.............................................................................127 ANEXO D – Protocolo II Adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949 Relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Não Internacionais, 1977: artigos relacionados ao direito à água ...........................128 ANEXO E – Artigos 11 e 12 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC, 1966......................................................................130 ANEXO F – General Comment n. 15 (2002): the right to water (arts. 11 and 12 of The International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights) ...........131

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a abordar a temática dos direitos humanos

relacionada à garantia do acesso à água, em um mundo marcado pelas

conseqüências da distribuição desigual desse recurso, hoje aliada à má utilização, à

poluição e ao crescimento da demanda, já se mostrando como problema pelo

comprometimento das águas, na medida em que a utilização da indústria e da

agricultura compete com a utilização humana (strictu sensu1).

Atualmente, o aumento da demanda é provocado pelo vertiginoso

crescimento populacional aliado à capacidade limitada de oferta de água acaba

comprometendo o desenvolvimento social e econômico de muitos países (SOUZA,

2003a).2

No entanto, ainda hoje, maior parte dos estudos sobre a escassez hídrica se

concentram em campos de conhecimento pertinentes preponderantemente às

Ciências Exatas e Biológicas, como é o caso das Engenharias (sobretudo referindo-

se à Engenharia de Saneamento e à Hidrologia), da Química (concentrando-se

mormente nas questões concernentes à composição da água), da Economia

(dirigida à cobrança pelo uso), da Biologia (que analisa a qualidade da água para o

meio ambiente), restando às Ciências de cunho Social – dentre elas a Ciência do

Direito – uma parca contribuição a estas discussões da questão ambiental e hídrica.

Para exemplificar, conforme se pode apreender de Christian Guy Caubet, um

dos grandes estudiosos do tema no Brasil, cabe ressaltar a discussão ainda

bastante incipiente e carente no meio acadêmico, o que pode ser percebido quando

ele salienta a inexistência de estudos mais apropriados a respeito desse assunto,

sobretudo no nosso país:

Os poucos estudos especializados disponíveis não acompanham a evolução dos usos da água, o aumento dos temas ligados aos recursos hídricos e a dramaticidade dos problemas nas relações domésticas e internacionais contemporâneas (CAUBET, 2006, p.XVIII).

1 Por utilização humana strictu sensu entendemos aquela realizada somente para suprir as necessidades relativas à sobrevivência do ser humano.

2 SOUZA, Matilde de. Disponível em: http://guerra.uai.com.br/analises/5652.html.

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O desinteresse acadêmico sobre o tema também é objeto de comentário de

Maria Luiza Machado Granziera que em seu Direito de Águas – Disciplina Jurídica

das Águas Doces (2001) também faz alusão ao assunto:

Uma questão intrigante, para qualquer um que se dedique à matéria, consiste no fato de terem sido as águas, no Brasil, pouco estudadas pelos juristas, que muitas vezes deixaram aos técnicos – engenheiros, hidrólogos, administradores públicos – os misteres de estabelecer as respectivas normas ao longo do tempo. Há uma bibliografia importante, datada da primeira metade do século […] quando a sociedade não enfrentava, ainda, os atuais problemas de poluição e escassez. Paradoxalmente, à medida que o assunto tornou-se crítico, as obras jurídicas sobre as águas tornaram-se mais raras (GRANZIERA, 2001, p.13).

Dessa forma, como o objetivo principal desta dissertação é discutir o acesso à

água como direito humano fundamental, na tentativa de contribuir para uma

discussão ainda incipiente, buscar-se-á, em um primeiro momento, abordar os

direitos humanos pela perspectiva histórica, traçando sua breve evolução,

analisando alguns conceitos essenciais ao tema. Posteriormente, será traçado o

panorama mundial dos recursos hídricos: a oferta limitada e desigual, a demanda

crescente, as doenças relacionadas à qualidade da água ofertada, dentre outros.

Consecutivamente, será apresentado um histórico das conferências internacionais

que abordaram o tema, o acesso a uma água potável de qualidade e em quantidade

suficiente para suprir as necessidades básicas de sobrevivência.

Será, portanto, objeto do primeiro capítulo um embate entre o conceito de

direito natural e o atribuído aos direitos humanos, estabelecendo o que servirá para

o trabalho como o parâmetro a ser aplicado. Além dessa discussão, buscaremos

também o delineamento das teorias que abordaram o tema, e também uma breve

apresentação do processo de internacionalização desses direitos humanos.

No segundo capítulo, traçaremos o panorama dos recursos hídricos no

mundo como a disponibilidade geográfica de água, as características e as limitações

do recurso e os problemas apresentados pela escassez de água ao longo do globo.

Também é objeto desse capítulo os entendimentos sobre o direito à água

produzidos pelo direito internacional, por meio da análise de relevantes instrumentos

internacionais de direitos humanos e também de meio ambiente que abordaram

direta ou indiretamente o assunto. Há também uma abordagem sobre as discussões

atinentes à área de segurança e cooperação, buscando entender como conflitos

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poderiam surgir em áreas onde os recursos hídricos são frágeis e escassos e como

essa situação poderia ser evitada, tomando como exemplo ações já praticadas e

programas já implementados por alguns organismos internacionais (no caso deste

trabalho a UNESCO e a União Européia).

Dessa forma, será então possível, ao terceiro capítulo, tratar o conceito de

direitos humanos aqui adotado aplicando-o à realidade da disponibilidade dos

recursos incidentes em questões fundamentais sobre direito à água, bem como

algumas limitações e instrumentos internacionais que fazem menção à temática,

analisando o conteúdo e as diretrizes desse direito à água para, por fim, discutirmos

sua positivação.

Um dos entendimentos doutrinários vê como desnecessária a positivação

desse, afirmando que o excesso de normatização dificulta a proteção dos direitos

humanos de um modo geral, fragilizando a proteção destes como um todo, por

entenderem que se enquadram em um núcleo uno e indivisível. Assim, infere-se que

a criação do direito à água é também desnecessária pois há inúmeros outros direitos

humanos que têm em si o conteúdo da proteção ao direito de acesso à água, como

o direito à dignidade, o direito à saúde, à proteção do meio ambiente, e, até mesmo,

o próprio direito à vida. Um outro ponto de vista apresentado entende que, mesmo

havendo uma ligação e uma certa interdependência entre esses direitos humanos,

que indiretamente garantiriam o direito humano de acesso à água, seria necessário

o reconhecimento explícito desse direito pelos governos, que tomariam para si a

responsabilidade de garantir, proteger e respeitar esse acesso ao recurso. Nesse

sentido, o Comentário Geral nº 15 sobre o Pacto Internacional de Direitos

Econômicos, Sociais e Políticos é um documento relevante para a discussão do

assunto.

Assim, o direito de acesso a uma água potável de qualidade e em quantidade

suficiente para suprir as necessidades diárias de um ser humano deve ser garantido,

pois diz respeito à sua própria essência: um ser humano tem seu corpo composto

em grande parte por água, o que comprova a necessidade desse recurso para sua

sobrevivência.

Há a necessidade visível de se positivar e garantir o acesso à água, seja

como direito humano ou seja como parte integrante de outros direitos. Devemos

entender, portanto, que o acesso à água é fundamental para a sobrevivência dos

seres humanos e mesmo para a garantia de inúmeros outros direitos.

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Deve-se deixar claro, no entanto, que a discussão aqui pretendida não deve

ser entendida como um fim em si mesma pois o assunto, como dito anteriormente,

carece de aprofundamento na academia, ainda possui muitas lacunas e seria muita

pretensão buscar seu esgotamento em um só trabalho.

Ademais, deve-se buscar a discussão constante, através da interação dos

inúmeros ramos das Ciências, bem como o entendimento dos setores usuários

sobre os diversos usos da água, evitando que o assunto caia no esquecimento e

que a situação não siga projeções alarmantes de alguns estudos.

Por fim, essas mudanças devem ocorrer antes do agravamento irreversível

desta situação uma vez que, já nos dias de hoje, presenciamos uma severa privação

do recurso para algumas populações. O presente cenário, percebe-se, é bastante

contraditório pois, mesmo em pleno século XXI, em um momento onde inúmeros

avanços tecnológicos foram alcançados, admitimos que em alguns países pessoas

morram de sede, muitas vezes por falta de vontade política.

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1 ASPECTOS GERAIS DOS DIREITOS HUMANOS

Este primeiro capítulo visa abordar a temática de Direitos Humanos, tendo

como ponto de partida uma diferenciação entre os mesmos e os Direitos Naturais,

conceitos freqüentemente confundidos. Em seguida, no intuito de abordar os Direitos

Humanos no contexto atual, uma breve introdução histórica à temática se faz

necessária para então se proceder a uma análise da abordagem metodológica de

Norberto Bobbio, que subdivide os Direitos Humanos em gerações. Assim, para que

a discussão sirva de base para nosso elemento-chave no trabalho – o acesso à

água como direito humano – no momento seguinte, tratar-se-á da crítica realizada

à anteriormente mencionada metodologia de Bobbio, tomando como referência o

autor Antônio Augusto Cançado Trindade, principalmente quando se refere a um

núcleo único e à instituição de um “Direito dos Direitos Humanos”.

Todo esse percurso se faz essencial pois, para que se discuta a inserção do

acesso à água no rol dos Direitos Humanos, é necessário antes situar toda a

polêmica envolvida nesse tema geral, as diferentes abordagens de seus conteúdos,

as impressões de alguns teóricos, as definições dadas e os conceitos relacionados –

para então analisar mais apropriadamente o tema central deste trabalho, de modo

mais específico: a inserção do acesso à água como direito humano.

1.1 Direitos Naturais X Direitos Humanos

Dentro da doutrina pode-se perceber muitas vezes uma confusão entre o

conceito de Direito Natural e o conceito de Direitos Humanos. Buscaremos

diferenciá-los, para então abordarmos de forma correta o significado de Direitos

Humanos, uma vez que ambos são conceitos muito abertos, ou seja,

demasiadamente amplos e complexos, aceitando basicamente qualquer

interpretação e conteúdo dirigido ao tema – tanto de direitos naturais quanto de

direitos humanos, o que acaba por acarretar interpretações bastante divergentes.

Apenas para reafirmar, cabe citar Douzinas a respeito do primeiro conceito: “Direito

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Natural é um conceito notavelmente aberto e seu entendimento está coberto de

incertezas morais e históricas”3 (DOUZINAS, 2000, p.24).

A análise começa pelo entendimento predominante de direito natural como

aquele que traz em si uma superioridade em relação ao homem, não se vinculando

de forma alguma às vontades dos seres humanos, sendo um direito que ignora

legisladores, se sobrepondo às regras humanas: um direito posto, dado, basilar,

imutável – ou seja, um direito que não nasce fruto de luta ou de reivindicações de

indivíduos. Na doutrina geral, o conceito de direito admite variadas nuances, mas o

conteúdo do direito é sempre uma ação universal ou uma descrição genérica de um

modo de agir. Esse conteúdo deve ser socialmente entendido, assim como suas

medidas protetoras que, quando adotadas, devem se ligar diretamente com seu

núcleo (MARTIN, 1997, p.45).

As idéias de Sócrates e Platão são bastante relevantes quando tratamos de

direito natural pois em seus estudos podemos encontrar uma idéia de Justiça voltada

para a racionalidade, mudando o foco para o justo particular ao invés de conferir

tanto destaque para a discussão entre o universal e o universalizável. Então, pode-

se dizer que Sócrates buscava uma elevação do conceito de justiça como algo

alcançável mediante manifestação da razão humana, ajuizada em um caso

específico.

Assim, Platão concebia o direito natural como expressão da idéia de justiça e

propunha aprendê-lo, através da especulação filosófica com o objetivo de reproduzí-

lo na prática, orientando as ações dos homens de tal modo a corresponder ao que

se dava na natureza. Em seu entendimento, a lei civil deveria ser um reflexo da lei

natural (ideal) e, sendo assim, a Justiça (entendida como o fim justo de uma disputa)

se situava no plano das idéias e, por tal motivo, não poderia ser alcançada, pois não

pertencia ao mundo comum (GOYARD-FABRE, 2002) entretanto, poderia ser

reproduzida no mundo sensível como um rascunho daquele molde ideal inatingível.

Em uma concepção semelhante à de Platão, Aristóteles entendia que o justo

era algo decorrente da própria estrutura cosmológica universal e empreendia na

natureza humana suas características de perfeita ordenação. Portanto, sendo o

homem um animal da polis, sua legislação deveria funcionar como aquela lei natural

3 Tradução livre de: “Natural Law is a notoriously open-ended concept and its understanding is clouded in historical and moral uncertainty” (DOUZINAS, 2000, p.24).

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decorrente da ordem do universo. Para tanto, o filósofo dá destaque às virtudes em

sua teoria tratando a justiça como a soma de todas elas. Assim Aristóteles define

como direito positivo a lei da polis a ser aplicada em um caso particular e direito

natural como sendo a lei geral decorrente do cosmos. Como em seus estudos o foco

principal era a vida comunitária de Atenas (a polis grega), o direito natural era então

aquele decorrente da natureza política do homem.

Assim, Simone Goyard-Fabre define o que seria a lei natural, conforme se

segue:

[…] por mais diferentes que sejam as leis das Cidades em sua contingência e sua relatividade, todas comportam um elemento formal comum que é o seu modo de traduzir ou transcender politicamente a lei natural. A lei natural é portanto a norma imanente à realidade objetiva diversificada das leis positivas das cidades. Assim sendo, as leis positivas revelam sua verdadeira natureza: não são fins, mas meios graças aos quais as intenções da natureza se estendem e concretizam. Sua finalidade é a harmonia da comunidade política, pois essa harmonia é a condição da realização do homem no seio da grande Natureza. Em outras palavras, “o direito natural é parte integrante do direito político” (GOYARD-FABRE, 2002, p.31-32).

Da mesma forma que Aristóteles, os estóicos e os filósofos cristãos tratam da

temática do direito natural, sobretudo como um modelo em relação ao direito positivo

e à lei civil. Um dos maiores expoentes dos romanos na filosofia estóica – Cícero –

entendia a lei como algo eterno que governava o mundo, sendo ela responsável por

prescrever ou proibir.

Nesse momento, a filosofia do direito passa a se preocupar não com a origem

histórica da ordem jurídica, mas com sua essência. Nesse contexto heurístico,

surgem três “idéias-forças” que compõem o “fio condutor da tradição jusnaturalista

clássica” (GOYARD-FABRE, 2002, p.35), dentre as quais se destaca a seguinte

visão:

Sendo a política o campo onde se pode manifestar a excelência humana – isto é, a superioridade ontológica do homem situado no topo da escala dos seres vivos devido à sua inteligência –, é preciso que o direito, que estrutura e organiza a vida da cidade, se enraíze na ordem natural do mundo. O direito positivo delineia-se portanto no horizonte filosófico do naturalismo. Esse naturalismo não é um empirismo nem um materialismo: a imutabilidade universal da Natureza é, em sua perfeição, o que fundamenta o valor das leis contingentes das cidades. O metabolismo delas em nada altera esse fato; a lei natural é o fundamento de todas as leis positivas que, no mundo dos homens, são uma tradução ou transposição dela (GOYARD-FABRE, 2002, p.35).

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Ao longo desta vertente jusnaturalista, o cristianismo passa a atuar

influenciando a mudança do cosmologismo adotado pelos antigos, pelo teologismo,

mas essa mudança de foco em nada altera a concepção de direito natural: na

tradição católica, o direito natural continua sendo a norma do justo. Assim, através

da idéia da regência do universo pela vontade de um Deus criador e mantenedor da

ordem, se Deus dita a razão das coisas, Nele se ampara o justo e é Ele que dá ao

homem sua razão.

Aprofundando um pouco nas teorias cristãs, cabe ressaltar algumas

contribuições. Nesse sentido, Santo Agostinho consegue relacionar teologismo e

platonismo em sua teoria ao entender que Deus está no domínio das Idéias, onde

são pensadas as regras éticas, jurídicas e políticas dirigidas à cidade terrena, dentro

de uma esfera dogmática e metafísica, em um âmbito onde há a transcendência

absoluta e perfeita da Divindade, conforme interpretação dada por Simone Goyard-

Fabre (2002, p.36). Por sua vez, Santo Tomás de Aquino retoma muito do

pensamento aristotélico, tomando a lei natural como sendo uma autoridade que

concorda com o dogma cristão, alinhando-se também aos preceitos ciceronianos,

pois, para ele, o bom e o direito é tudo aquilo que se aproxima de Deus.

O direito natural então passa a ser aquele decorrente do direito divino,

calcado no conceito de Bem, garantidor da coesão e da ordem da comunidade e que

busca o bem comum. Esse direito natural impõe obrigações aos homens, que,

dotados de razão, devem cumprir o que é ditado. Aproximando-se do entendimento

de São Paulo, o direito positivo é concebido por Tomás de Aquino como elemento

da ordem teológica do mundo e, assim, a essência natural do homem é criada por

Deus e as leis naturais podem ser deduzidas de Seu comando, afinal, se foi Ele

quem os criou, ninguém é mais sabedor da essência humana. Por fim, esse direito

natural é princípio regulador da ética política, proveniente do próprio Deus, mas

guiado pela ordem jurídico-civil, à luz da razão (GOYARD-FABRE, 2002, p.36-38).

Para consolidar o conceito de direito natural para a tradição clássica cabe

ressaltar o que diz Simone Goyard-Fabre a esse respeito, pois:

O direito natural da tradição clássica […] propõe ao direito dos homens um “modelo” que tem a permanência do inteligível. O importante é que a idéia do direito natural deixa o espírito ver as exigências a que deve atender o direito positivo que as cidades necessitam (GOYARD-FABRE, 2002, p.39).

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Por volta do século XIII, algumas mudanças começaram a minar as bases do

pensamento clássico acarretando mudanças no pensamento medieval, rompendo

com o teologismo e com as concepções de direito natural dos antigos, aproximando

a antropologização da ordem jurídica, mudando o foco da natureza das coisas para

a natureza do homem. Com o advento do espírito laico e a desconstrução do

cristianismo, cria-se o embate entre a preocupação jurídico-política e a vontade

ético-religiosa. Nesse momento, então, sobressai a positividade da vontade humana

no campo do direito e da política, inaugurando assim a antropologização do direito

natural pois, por mais que as leis sejam ditadas pela intervenção divina, é necessária

a interferência dos homens (do legislador ou do magistrado) para aplicá-las ou

deduzi-las por meio da razão e da vontade humanas (GOYARD-FABRE, 2002, p.41).

O Renascimento, por sua vez, foi uma época de incertezas e de cisões entre

a era antiga e a era moderna, onde conviviam perspectivas antropológicas e

humanistas. Por se tratar de um momento de transição, o conceito de direito natural

era sempre abordado com muita cautela. Assim, Maquiavel buscava explicá-lo pela

força, ligando-o à natureza humana; já Lutero colocava o homem como matriz do

direito natural, sem deixar de lado seu caráter divino. A ambigüidade entre essas

duas correntes de pensamento, na época, gera uma imprecisão de conceitos pois,

com “o desacordo entre o espírito renascentista e o espírito da Reforma, [a indecisão

conceitual] muitas vezes se faz acompanhar de uma intenção polêmica” (GOYARD-

FABRE, 2002, p.42). O resultado dessa dicotomia orienta o direito natural para o

humanismo, o individualismo e o racionalismo, quando despontam os filósofos

Hobbes, Rousseau, Kant e Hegel, dentre tantos outros.

Esse processo de racionalização e antropologização do direito é intensificado

entre os séculos XVII e XVIII, desenvolvendo a figura do homem moderno,

construído pelo individualismo, humanismo e racionalismo (GOYARD-FABRE, 2002,

p.40-70). Momento esse em que se destacam os teóricos Hobbes, Locke, Rousseau,

cujas teorias tinham como ponto comum a realização do contrato social, responsável

por regrar e reger a vida em sociedade, sendo, portanto, o fundamento do Estado.

Além da idéia do contrato social, também compartilhavam a noção da necessidade

do direito ser fruto da razão humana a união e a vivência em sociedade, colocando a

razão como regedora do mundo.

Pode-se dizer que são inúmeras as contribuições trazidas por estes teóricos a

uma elaboração de um conceito de direito natural. Assim, para Hobbes:

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O Estado-Leviatã, em sua gênese bem como em sua estrutura, é um “homem artificial” erigido por homens naturais; por uma poderosa vontade de racionalidade, que se traduz em um cálculo teleológico de interesses, eles constroem sob o Deus imortal, um “Deus mortal”. O poder soberano, que o ato do contrato lhe confere, faz dele o “único legislador”, habilitado por sua autoridade irrestrita – apenas submetida à condição de não contradizer os dictamina da “lei fundamental de natureza” – a definir o direito como um conjunto de “regras e medidas” que, aplicadas a particulares, são mandamentos de seu poder supremo (summum imperium). Essa concepção legalitária do direito da República significa em termos claros que o Estado, instituído pelo procedimento racional do contrato por iniciativa dos indivíduos, é o único competente para determinar o que é lícito, permitido ou legítimo, ou para definir o que são a propriedade, a filiação, a herança, etc. (HOBBES, apud GOYARD-FABRE, 2002, p.47-48).

Logo, pode-se dizer que Hobbes não repudiava a idéia do direito natural, mas,

na verdade, defendia a existência de um “direito de natureza” (jus naturae) que

designa a capacidade (potentia) de um indivíduo realizar determinadas tarefas para

preservar sua própria vida, substituindo a idéia de um direito natural da comunidade

para um direito de natureza do próprio indivíduo, pois embora Deus figure como o

Criador do universo, ele não é seu legislador imediato, nesse ponto inaugurando

tanto a corrente filosófica individualista quanto o direito natural moderno, muito mais

positivista conquanto os homens são os responsáveis pela configuração das leis, a

razão é a máxima do direito natural, também tendo contribuído nesse sentido

Spinoza.

A teoria de Hobbes situa-se ainda em uma época na qual o conceito de direito

natural passava por um processo de reformulação e, segundo considerações feitas

por Martin (1997, p.32), Hobbes entendia o direito natural como uma liberdade que

especificava uma maneira de agir racional a todos no estado de natureza e, em

contrapartida, podemos determinar como racional nessa situação que as pessoas

agissem para preservar sua integridade e sua vida. Martin (1997, p.32) ainda explica

que para Hobbes, dessa maneira, seguir o instinto de defesa poderia ser entendido

como um direito natural, porque as condutas das outras pessoas não se pautam por

direções normativas provenientes dos direitos de liberdade, mas que a conduta

erigida em resposta a esse exercício dos direitos de liberdade era completamente

desgovernada: não havia regras para determiná-la, nem para restringí-la.

Com a introdução de novos modos de pensar, como a humanização e a

racionalização das artes, o homem passa a ser o foco central de todas as relações,

mudando, inclusive, a concepção do direito – deixando de ser algo divino e intocável

para se tornar um denominador comum entre os seres humanos, para justificar os

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direitos naturais, tentando assim entender do que se trata a essência humana

(GOYARD-FABRE, 2002).

Contudo, mesmo tendo a era medieval contribuído bastante para a

fundamentação do conceito de direito natural, sobretudo com o trabalho de juristas

católicos e teólogos, pode-se dizer que a maior evolução da doutrina se deu com os

trabalhos desenvolvidos por teóricos políticos protestantes. Entre essas duas visões

de mundo, percebemos Grotius, em sua obra prima “De jure belli ac pacis”, e definia

que poderia haver um direito comum entre as nações. Sua obra fornece

instrumentos para a modernidade em dois pontos: sua contribuição para a formação

do direito internacional e seu suposto papel como criador de uma doutrina nova e

moderna do direito natural (TIERNEY, 1997, p.316-317).

Então, Grotius entendia o homem como um animal superior, marcado por um

instinto social que forçava o convívio com os seus iguais em uma sociedade pacífica

e organizada. Esta sociabilidade humana, por sua vez, era a fonte original do direito.

Como para Hugo Grotius os homens são capazes de julgar o que é benéfico para a

humanidade no longo prazo, ir contra esse julgamento é ir contra a própria natureza

humana pois, para ele, a natureza humana era a mãe do direito natural (TIERNEY,

1997, p.317). Logo, o teórico define o direito natural com base em razão e vontade,

em dois tipos, como se pode perceber a seguir:

Haviam dois tipos de direito natural, Grotius explicava. O primeiro definia imutáveis regras de conduta; por exemplo: honrar a Deus, amar nossos pais, não prejudicar o inocente. Essas leis não podem ser mudadas por qualquer ato humano. Mas havia também um segundo tipo de direito natural que era meramente permissivo; era concernente a algumas coisas como a comunhão da propriedade e liberdade pessoal. Esse tipo de lei natural poderia ser mudada e tem sido alterada pelas leis humanas que introduziam a propriedade privada e a servidão4 (TIERNEY, 1997, p.328).

Cabe aqui abrir parênteses para nos referirmos à importância de Grotius na

formação de um direito internacional público para entendermos como suas idéias

influenciaram o pensamento do século XIX. Diz-se que a partir de Grotius houve

uma impressionante mudança no modo de pensar o direito político, passando a

4 Tradução livre de: “There were two kinds of natural law, Grotius explained. The first defined immutable rules of conduct; for instance, to honor God, to love our parents, not to harm the innocent. These laws could not be changed by any human act. But there was a second kind of natural law that was merely permissive; it concerned such things as community of property and personal liberty. This kind of natural law could be changed and had been changed by the human laws introducing private property and servitude” (TIERNEY, 1997, p.328)

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abordar também a guerra, mesmo que para situá-la fora da lei, dentro de uma

preocupação crescente com a paz e a segurança do mundo (GOYARD-FABRE,

1999, p.450). No entanto, salienta-se que essa paz exigiria a “organização jurídica

da coexistência dos Estados” (GOYARD-FABRE, 1999, p.450), em um ambiente

onde o comportamento dos Estados é entendido como o de indivíduos no estado

natural de guerra de todos contra todos, fazendo com que a produção de normas

seja necessária para a organização das relações entre eles pois “somente normas

internacionais reconhecidas pelo maior número possível de Estados lhes permitirá

escapar de uma derrocada anárquica” (GOYARD-FABRE, 1999, p.451).

Nesse cenário, os esforços pela busca da paz entre os povos ensejou muitos

estudos, onde Grotius ocupa lugar de destaque:

Embora o Mare Liberum (1609) e o De jure belli ac pacis (1625) estejam longe de constituir toda a obra de Grotius, e essas duas obras não sejam, como se disse às vezes, os primeiros tratados de direito internacional, são portadores de uma mensagem que todos os internacionalistas modernos entenderam: a saber, a necessidade de interrogar a razão e a história para compreender que o consentimento universal e a tradição são fatores decisivos em todas as relações jurídicas entre os Estados (GOYARD-FABRE, 1999, p.448).

Deve-se ressaltar a contribuição trazida por Grotius perdura até os dias de

hoje, uma vez que ainda se persegue a tendência de inclusão da guerra no direito

internacional público, se ampliando e se firmando cada vez mais, sobretudo no que

se refere à segurança – buscando refrear os conflitos – e à cooperação (GOYARD-

FABRE, 1999, p.449).

Destarte, a elaboração de políticas em um nível pluriestatal não pode ser

posta de lado. Devemos entender que implementar estas regras requer dos Estados

tanto o empenho na promoção de conferências, seminários, simpósios, discussões,

negociações, quanto a formulação de regras claras, de orientações e o

desenvolvimento de ações concretas, mesmo implicando cessões de alguma parte,

no sentido de se buscar a concertação entre Estados e indivíduos. O direito político

em escala mundial, em decorrência disso, é o resultado de uma difícil disputa de

interesses, idéias e valores, disputa esta que busca a elaboração de um direito

orientado para o universal, que contrarie toda a desordem e afaste a violência, e que,

por fim, busque uma racionalização da sociedade mundial (aqui entendida como a

sociedade composta pelos Estados no sistema internacional, em uma concepção

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bastante próxima da vertente realista da Teoria das Relações Internacionais, onde

os Estados representam os atores principais do cenário internacional).

No entanto, como não se busca aqui discutir o federalismo, nem outras tantas

nuances da teoria de Grotius, mas apenas destacar suas contribuições para o

pensamento contemporâneo do direito natural e sua repercussão no direito

internacional público, cabe ressaltar a carta encíclica de 1963, Pacem in terris,

redigida pelo Papa João XXIII, onde as regras do direito natural e sua doutrina são

entendidas como derivações, não de alguma visão da natureza cósmica, mas de

nossa percepção da natureza humana como dotada de inteligência e livre arbítrio

(TIERNEY, 1997, p.343): deveres e direitos surgem como uma conseqüência direta

da natureza humana assim entendida.

Logo, ao longo dos tempos, a idéia dos direitos naturais se evolui dentro de

uma cultura religiosa que supre a argumentação racional sobre a natureza humana

em uma perspectiva na qual os homens eram vistos como crianças sob o cuidado de

Deus. Mas essa idéia não necessariamente dependia da revelação divina, que se

prova por sua sobrevivência em vários séculos (TIERNEY, 1997, p.343).

No século XVIII, portanto, as abordagens do conceito de direito natural sofrem

uma mudança de foco, adentrando cada vez mais o discurso político. A doutrina dos

direitos desenvolvida nos séculos anteriores ainda se mostrava eficiente para

abordar os problemas da nova era pois, mesmo com a nova visão dos direitos

naturais introduzida pelo Iluminismo, as teorias desta época somente poderiam ser

inteligíveis se entendidas como um produto final de um longo processo de evolução

histórica (TIERNEY, 1997, p.344).

A evolução histórica das teorias dos direitos naturais pode ser melhor

entendida como uma série de “respostas criativas a uma variedade de experiências

do passado”5 (TIERNEY, 1997, p.345) e deve-se enfatizar que, para se levar em

conta essas teorias, deve-se também levar em conta os contextos particulares onde

cada uma delas se insere, bem como as mudanças ocorridas e os problemas

introduzidos por cada situação adversa nova e imprevisível.

Por sua vez, Celso Lafer tece algumas considerações a respeito das

diferenças históricas e das mudanças advindas da modernidade no pensamento do

5 Tradução livre de: “[…] a series of creative responses to a variety of past experiences” (TIERNEY, 1997, p.345).

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direito natural, identificando três características essenciais dos princípios que os

regem:

a idéia de imutabilidade: os princípios regedores do Direito Natural são

atemporais, apesar das mudanças de foco do externo para o interno;

sua universalidade: esses direitos não são frutos de determinada época,

nem o são de determinado povo;

não são postos por convenção: os homens somente acessam esses

direitos através da razão, revelação ou mesmo intuição, e seu conteúdo

depende de quem os pensou e de quando foram pensados (LAFER, 1988).

Assim, poderemos nos ater melhor à definição e à evolução dos Direitos

Humanos, conceito central do trabalho. Pelo exposto, apesar de toda a divergência

existente entre as teorias, se percebe que direito natural é um conceito dotado de

uma concepção profundamente filosófica e política, muitas vezes entendido como o

direito superior ao homem, um direito ideal, superior, com uma forte característica de

imutabilidade, restando ao direito humano um conceito um tanto quanto mais

positivo, no sentido de possuir conteúdo delimitado, mesmo que amplo, pois,

conforme poderemos perceber, seu universo amplo sempre é relacionado à

condição do homem como ser humano.

Com o tempo, o direito natural moderno se afasta da esfera jurídica, tomando

uma nova roupagem, diferente da existente na perspectiva antiga. Assim, o direito

dado deixa de ser relevante, dando lugar ao direito posto e positivado, determinado

por um certo Estado que estabelece os limites do lícito e do ilícito.

Todavia, Piovesan relata que, durante a II Guerra Mundial, “a barbárie do

totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da

negação do valor da pessoa humana como valor fonte do direito” (PIOVESAN, 2006,

p.115), tornando necessária uma retomada ao jusnaturalismo e às principais

declarações de Direitos Humanos do século XVIII.

Apesar da afirmação “Todos os homens são criados iguais”, contida na

Declaração de Independência dos Estados Unidos, datada de 1776, sabe-se que,

muitas vezes, na prática isso não ocorre e essas diferenças se acentuam com o

crescimento, podendo-se assumir os Direitos Humanos como nada mais que uma

criação do homem e não um produto de sua qualidade de ser humano, mas de um

desenvolvimento racional, de uma luta para a proteção contra a soberania e tirania

estatal.

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Portanto, o próprio indivíduo – sujeito destas declarações – não é senão uma

criação da Modernidade, possuindo falhas em sua caracterização, repleta de

defeitos e limitações mesmo para a Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão, inferindo que os homens são iguais, somente considera como homem

aquele detentor de propriedades, deixando à margem um universo incontável de

seres humanos.

Assim, por todos os motivos anteriormente expostos, entende-se que os

direitos humanos não são direitos naturais, mesmo havendo confusões doutrinárias

a este respeito.

Destarte, porquanto os direitos naturais constituam vertentes teóricas de

pensamento, os direitos humanos se compõem de normas, regras e princípios

positivados tanto em Constituições (que instituem Direitos Fundamentais no direito

interno) quanto em regras internacionais e imprescindíveis ao Direito Internacional.

Assim, cabe dizer que os direitos humanos não são nem universais nem

absolutos, como bem diz Taylor (1997, p.125-126), o que ele chama de Direitos

Universais da Humanidade, somente existem porque houve sua promulgação às

custas de teorizações filosóficas, de revoluções em seu nome e de inúmeras

disputas e conquistas.

1.2 Abordagem histórico-conceitual

A idéia de congregar todos os indivíduos e grupos humanos como integrantes

de uma mesma categoria pode relativizar os direitos humanos pois, como bem

observa o antropólogo Claude Lévy-Strauss (apud COMPARATO, 2001, p.11-12),

em alguns grupos étnicos, não há sequer denominação donde se possa apreender o

significado que se dá ao conceito de ‘ser humano’, restando aos componentes do

grupo a insígnia de ‘homens’, enquanto os estrangeiros são designados por outra

nomenclatura, como se compusessem uma espécie animal distinta (COMPARATO,

2001, p.11-12).

Esse avanço na História representa que os seres humanos devem ser

tratados igualmente, sobretudo desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos,

da Organização das Nações Unidas – ONU, de 1948: “Todos os homens nascem

livres e iguais em dignidade e direitos” (ONU, 1948).

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O surgimento da lei escrita foi de crucial importância para a evolução dos

direitos humanos pois, conforme Fábio Konder Comparato:

essa convicção de que os homens têm direito a ser igualmente respeitados pelo simples fato de sua humanidade, nasce vinculada a uma outra instituição social de capital importância; a lei escrita, como regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que vivem numa sociedade organizada. […] Na democracia ateniense, a autoridade ou força moral das leis escritas suplantou, desde logo, a soberania de um indivíduo ou de um grupo ou classe social, soberania esta tida doravante como ofensiva ao sentimento de liberdade do cidadão. Para os atenienses, a lei escrita é o grande antídoto do arbítrio governamental, pois, como escreveu Eurípedes na peça As Suplicantes (versos 434-437), “uma vez escritas as leis, o fraco e o rico gozam de um direito igual; o fraco pode responder ao insulto do forte, e o pequeno, caso esteja com razão, vencer o grande” (COMPARATO, 2001, p.12).

A noção de lei não escrita também foi de grande importância aos gregos pois,

mesmo se tratando de um conceito ambíguo, pois ora se referia ao costume

relevante ao direito e ora leis universais (muitas vezes religiosas) se tratando de

regras gerais e absolutas, cuja promulgação não se restringia a apenas um país

determinado. Porém deve-se ressaltar a dissolução do caráter religioso dessas leis

ao longo das gerações seguintes, sendo chamadas por Aristóteles de leis comuns –

pois eram reconhecidas pelo consenso racional, em oposição às leis particulares,

próprias de cada povo (COMPARATO, 2001, p.12-13).

Com o abandono do caráter religioso dessas leis, foi necessário atribuir a elas

uma explicação, uma justificativa para sua validade em todo o mundo e para todos

os homens e, nesse momento, os sofistas tomam a natureza (physis) como sendo o

substituto desse fundamento (COMPARATO, 2001, p.14). Quando se busca

entender o estoicismo como uma vertente do pensamento que entendia o homem

como filho de Zeus, dotado de unidade moral e de dignidade, e também possuidor

de “direitos inatos e iguais em todas as partes do mundo, não obstante as inúmeras

diferenças individuais e grupais” (COMPARATO, 2001, p.15).

Na concepção cristã, os filhos de Deus desfrutavam de uma igualdade

universal que só era efetivamente válida no plano sobrenatural, pois ao adotar

práticas como a escravidão, havia um posicionamento radical em relação ao

enquadramento de todos os seres humanos como filhos de Deus e dignos do

desfrute dessa igualdade universal (COMPARATO, 2001, p.18-19).

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O conceito de pessoa, na concepção de alguns filósofos gregos, adquiriu

significado em função do papel desempenhado por cada homem em sua vida social.

Assim, a designação de prósopon – traduzida pelos romanos por persona –

significava o próprio rosto, ou mesmo a máscara de teatro individualizadora de cada

personagem. (COMPARATO, 2001, p.15).

Fábio Konder Comparato identifica uma segunda fase da evolução do

conceito situada no início do século VI, quando Boécio deu à noção de pessoa um

sentido que se referia muito mais à substância do homem, e não mais a uma

exterioridade: as características de invariabilidade e permanência se determinavam

por sua própria matéria. Dessa concepção inicia-se a elaboração do princípio de

igualdade entre todos os seres humanos, “não obstante as diferenças individuais e

grupais, de ordem biológica ou cultural” (COMPARATO, 2001, p.19) que hoje

compõe o núcleo do conceito universalmente válido de direitos humanos, posto que

se refere a direitos comuns a todo aquele detentor a condição humana

(COMPARATO, 2001, p.19).

Por fim, a terceira fase da elaboração do conceito decorreu da filosofia moral

kantiana, donde pode-se considerar como pessoa o sujeito de uma legislação

universal decorrente da razão, anterior e superior a toda ordenação estatal.

Conforme entendimento de Fábio Konder Comparato, para Kant, “só o ser racional

possui a faculdade de agir segundo a representação de leis ou princípios; só um ser

racional tem vontade, que é uma espécie de razão, denominada razão prática”

(COMPARATO, 2001, p.20). Em outras palavras, na visão de Kant, o homem é o

único ser dotado de liberdade, uma espécie de causalidade decorrente de sua

condição racional que dirige suas ações sempre de acordo com um fim interno ao

próprio sujeito, o que designa a dignidade humana porque não pode ser considerado

apenas como um meio para fins externos.

Parte da doutrina entende os direitos humanos como direitos morais e, dessa

forma, também entende as normas de direitos humanos como normas morais,

inferindo que os direitos humanos só podem existir se existirem também normas

morais substantivas em algum sentido – ou que possam ser objetivamente descritas

ou pelo menos discutidas. Porém, pode-se dizer que os direitos morais existam e,

por este motivo, também os direitos humanos, embora as normas morais sejam

apenas convencionais ou mesmo culturais. Mas se os direitos humanos

desempenham seu papel como parâmetros políticos válidos, logo, essa moralidade

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convencional deve incluir em si algumas normas aceitas mundialmente. Ainda, se

essas normas existem para ter peso e guardar as gerações de futuros seres

humanos em sociedades vindouras, então, essas normas não podem ser

meramente convencionais. Por fim, ao se classificar os direitos humanos como

direitos morais, deve-se buscar distinguir entre moralidades reais e críticas (MARTIN,

1997, p.74-75).

No entanto, o crucial para os direitos humanos é a crença de que há

princípios morais críticos objetivamente corretos, ou objetivamente razoáveis. Isso

significa que, uma vez entendidos, esse princípio pode ser retomado por quaisquer

pessoa em qualquer época, ou mesmo em diferentes culturas (MARTIN, 1997, p.75).

Logo, quando se diz que os direitos humanos são direitos morais, isso se

deve ao fato de os direitos humanos serem compostos por normas representativas

de princípios morais críticos perfeitos, ou mesmo derivados deles, e que estes

princípios se sustentam sem a necessidade de serem codificados em ordenamentos

nacionais ou no ordenamento internacional de um modo geral, e mesmo quando

codificados, eles não deixam de ser direitos humanos, por preservarem seu caráter

essencial. Eles são codificados como direitos morais pré-existentes, cuja existência

independe dessa inclusão em um conjunto de leis constitucionais ou de normas

jurídicas (MARTIN, 1997, p.75).

Ao longo da história, a evolução da compreensão da dignidade humana e dos

direitos a ela conexos sempre apresenta um maior impulso logo após episódios

traumatizantes e violentos, sobretudo em decorrência de guerras, uma vez que logo

após surge o sentimento de remorso pelas torturas praticadas, pelas mutilações em

massa, pelos massacres coletivos, ou seja, pela degradação da condição humana

de um modo geral. Esse resultado, causado pela dor física e pelo sofrimento moral,

acarreta nas pessoas uma necessidade de se produzir um mundo mais seguro e

justo, em que novas regras se tornam necessárias no sentido de garantir uma vida

mais justa e digna (COMPARATO, 2001, p.36-37).

Ressaltamos, todavia, que as diferentes etapas de conquista e afirmação

desses direitos são aceleradas tanto pelas experiências degradantes, quanto pelo

avanço das descobertas científicas e das invenções técnicas (COMPARATO, 2001,

p.37).

No século XVII há um importante progresso na área dos direitos humanos

quando surge na Inglaterra um sentimento de liberdade fomentado pela necessidade

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de resistência à tirania, sentimento este decorrente das vicissitudes da guerra civil

que assolou o país, onde já se observava um histórico de avanços em relação à

concentração de poderes dos governantes (COMPARATO, 2001, p.46). Devemos

nos lembrar que nessa mesma Inglaterra, em 15 de junho de 1215, foi proclamada a

Magna Carta pelo rei João Sem-Terra, documento cuja importância se respalda na

limitação da atuação dos governantes que passa a ser pautada, também, pelos

direitos subjetivos dos governados e limitada por normas superiores fundadas nos

costumes ou na religião (COMPARATO, 2001, p.76).

Adiante, com a proclamação do Habeas Corpus Act e do Bill of Rights houve

um avanço considerável também na garantia das liberdades da sociedade civil. A

partir do Bill of Rights a disseminação da idéia de participação da sociedade civil na

vida política, mesmo que restrita às classes superiores, é iniciada, tornando-se

assim uma “garantia institucional indispensável das liberdades civis” (COMPARATO,

2001, p.47).

A importância do Bill of Rights de 1689, promulgado na Inglaterra um século

antes da Revolução Francesa, desafia os limites da monarquia absolutista excluindo

do rei, por exemplo, os poderes de legislar e criar tributos, enquadrando-os no rol de

competências do Parlamento, a quem competia defender os súditos perante o rei.

Ainda, o documento respeita a tripartição dos poderes e, apesar de não se tratar de

uma declaração de direitos humanos propriamente dita, houve a criação de um

Estado institucionalizado, cujas atribuições podem ser entendidas, em último grau,

como a proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, tendo sido fruto de

uma época de conturbada intolerância religiosa (COMPARATO, 2001, p.89-91).

Cabe ressaltar que o desenvolvimento dessa nova abordagem dos direitos

dos homens culmina na elaboração da Declaração de Direitos da Virgínia, de 1787:

Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem no estado da sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar e obter a felicidade e a segurança (DECLARAÇÃO DE DIREITOS DA VIRGÍNIA apud COMPARATO, 2001, p.47).

A Declaração de Direitos da Virgínia foi o primeiro passo rumo ao

reconhecimento dos “direitos inerentes à própria condição humana” (COMPARATO,

2001, p.48), reconhecimento esse que é reforçado alguns anos mais tarde, com a

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Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, oriunda da Revolução Francesa,

em 1789, cujo primeiro artigo ressalta: “Os homens nascem e permanecem livres e

iguais em direitos” (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO

apud COMPARATO, 2001, p.48).

Ainda, quando diz: “Todo poder pertence ao povo e, por conseguinte, dele

deriva. Os magistrados (isto é, os governantes) são seus fiduciários e servidores,

responsáveis a todo tempo perante ele” (DECLARAÇÃO DE DIREITOS DA

VIRGÍNIA apud COMPARATO, 2001, p.48), pode-se constatar que, além de declarar

a igualdade entre os humanos, comprovando a preservação de sua dignidade e a

salvaguarda de seus direitos, modifica a fundamentação da legitimidade política

destes direitos (COMPARATO, 2001, p.48).

Fruto de uma luta predominantemente da burguesia, contrária aos privilégios

da nobreza e do clero – fórmula adotada na França e na América do Norte –, o pilar

do que Comparato se refere como “democracia moderna” buscava proteger os

proprietários ricos contra as ações de um governo irresponsável e ter maior acesso à

política, o que até então era um desses privilégios (COMPARATO, 2001, p.49).

A grande diferença entre o movimento ocorrido na América do Norte e no

cenário francês à mesma época, quase que simultaneamente, reside, no primeiro

caso, na necessidade pungente de se libertar da coroa inglesa, enquanto, no

segundo movimento, essa motivação se investe de um caráter universal e

universalizante, já que os franceses se sentiam na incumbência de uma libertação

geral dos povos, ao redor do mundo (COMPARATO, 2001, p.50).

Os resultados da Revolução Francesa, por sua vez, rapidamente se

espalharam pela Europa, difundindo-se até para os continentes distantes,

influenciando até mesmo as distantes regiões da Índia, da Ásia Menor e da América

Latina (COMPARATO, 2001, p.50).

No entanto, as conquistas alcançadas pela Revolução Francesa e pela

Declaração de Independência dos Estados Unidos tiveram seu território preparado

anos antes, com a emancipação do indivíduo frente aos grupos sociais aos quais

pertencia. A família, os clãs, os estamentos, as filiações e afinidades religiosas

deixam de ter importância quando o antropocentrismo e o racionalismo passam a

entender o indivíduo como um ser dotado de razão e de consciência próprias. Essa

característica, no entanto, tem também seu lado negativo: a partir do momento em

que o ser humano é desvinculado de seus grupos, ele fica mais vulnerável às

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vicissitudes da vida, o que é remediado com a segurança da legalidade, acabando

por instituir e garantir a igualdade de todos perante a lei (COMPARATO, 2001, p.50-

51).

Esse movimento acaba enfraquecendo os indivíduos das classes

trabalhadoras, vez que era generalizado o entendimento a respeito da posição

igualitária de patrões e trabalhadores, onde os primeiros estipulavam os salários e

as condições de trabalho a que se submetiam os segundos, dentro da lógica de

mercado (COMPARATO, 2001, p.51).

O movimento socialista acaba por surtir efeitos logo no início do século XIX,

com o reconhecimento de direitos sociais e econômicos como direitos humanos,

dando um enfoque maior àqueles indivíduos miseráveis situados à margem do

regime (COMPARATO, 2001, p.51-52). Esse processo inicia-se com a mudança de

posicionamento dos regimes a respeito dos trabalhadores e dos empregadores, que

passava a ser extremamente anti-capitalista, repercutindo até mesmo em

transformações estruturais dos modelos de trabalho do final do século XX

(COMPARATO, 2001, p.52).

Logo em seguida às conquistas trabalhistas dos direitos humanos sociais,

econômicos e políticos ocorre uma expansão dos ideais desses direitos ao redor do

mundo, em um movimento que julga ignorar fronteiras e se universalizar, no sentido

de se aplicar a todos os seres humanos, independentemente de suas crenças, cor,

nacionalidade, classe sócio-econômica ou de onde se encontrem

Pela compreensão do processo de internacionalização dos direitos humanos

podemos compreender o caráter universal do qual hoje se revestem os direitos

humanos, categoria em que pretendemos enquadrar o acesso à água.

A fundação simbólica e ponto de partida da modernidade podem ser marcados pela aprovação dos grandes documentos revolucionários do século XVIII: a Declaração Norte-Americana de Independência (1776), o ‘Bill of Rights’ (1791); e da francesa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) 6 (DOUZINAS, 2000, p.5).

Pode-se dizer que Hobbes, Locke e Rousseau desempenharam papéis

importantes na elaboração desses documentos, tendo influenciado o pensamento da

6 Tradução livre de: “The symbolic foundation and starting point of modernity can be timed at the passing of the great revolutionary documents of the eighteenth century: the American Declaration of Independence (1776), the Bill of Rights (1791), the French Déclaration des Droit de l’Homme et du Citoyen (1789)” (DOUZINAS, 2000, p.5).

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época. A Declaração de Independência dos Estados Unidos, adotada em 4 de julho

de 1776, é tida como o primeiro documento escrito de Direitos Humanos. Apesar de

sua concepção ainda se apoiar no conceito tradicional de direito natural, se percebe

claramente a definição de um conjunto de regras positivado e criado pelo homem.

Assim, diz o preâmbulo desse documento:

Todos os homens são criados iguais e são dotados por seu criador de certos direitos inalienáveis, estando entre estes: Vida, Liberdade e a busca da Felicidade. Para assegurar esses direitos, Governos são instituídos entre os Homens, cujo poder surge do consentimento dos seus governados” (DECLARAÇÃO DE INDEPENDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS apud DOUZINAS, 2000, p.86).

A relevância do Bill of Rights de 1791 se percebe pela enumeração de direitos

dos cidadãos americanos. Porém o documento mais relevante para os Direitos

Humanos é mesmo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, escrito na

França revolucionária nos idos de 1789. O documento, fruto do fim da Revolução

Francesa, tem como ponto principal o respeito aos direitos do homem e do cidadão e

a necessidade de se criar mecanismos para essa proteção. A Declaração também

se pauta pelo conceito de Direito Natural, pois busca-se criar um núcleo

principiológico que forneça aos homens uma justiça natural que a todos confira

direitos.

A grande inovação trazida pelas declarações é o tratamento dos indivíduos

como cidadãos, cujos deveres e direitos devem ser protegidos por lei, determinando

assim o sujeito de direito em uma norma concreta. Ademais, é a partir das

declarações que se tem toda uma evolução na garantia de direitos humanos

individuais e coletivos.

1.2.1 A internacionalização dos direitos humanos

Conforme se percebe e conforme se pode afirmar, a discussão sobre o

fundamento e a natureza dos direitos humanos sempre foi bastante conturbada.

Para Flávia Piovesan, um ponto importante para o estudo dos direitos é a sua

historicidade, uma vez que se tratam de uma construção da razão humana em

constante processo de formação, e não um dado, sendo fruto de muita luta e ação

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social na busca pela dignidade humana constituindo, assim, um “construído

axiológico emancipatório” (PIOVESAN, 2006, p.108). Flávia Piovesan (2006, p.108),

referindo-se a Bobbio, também menciona o debate contemporâneo dos direitos

humanos: tanto em razão de seus fundamentos quanto, principalmente, no que se

dirige à sua proteção. Assim, Piovesan reflete sobre o surgimento do Direito

Internacional dos Direitos Humanos como aquele erguido “no sentido de resguardar

o valor da dignidade humana, concebida como o fundamento dos direitos humanos”

(PIOVESAN, 2006, p.109).

Os direitos humanos se edificam dentro de uma sistemática de precedentes

históricos como a formação da Liga das Nações, o Direito Humanitário e a

Organização Internacional do Trabalho. Essa formatação do sistema internacional

erigida com esses pilares implicou, segundo entende Piovesan, em uma revisão do

conceito de soberania estatal, para que passasse a defender os direitos humanos

como “legítimo interesse internacional” (PIOVESAN, 2006, p.109) e também em um

reposicionamento do indivíduo como verdadeiro sujeito de direito internacional

(PIOVESAN, 2006, p.109).

O Direito Humanitário pode ser definido como “os direitos humanos da lei da

guerra” (BUERGENTHAL apud PIOVESAN, 2006, p.109-110). Assim sendo, o

Direito Humanitário restringe a ação estatal em uma situação bélica, fixando seus

limites e buscando a redução do cometimento de atrocidades, preservada a

observância aos direitos e garantias fundamentais. A proteção humanitária, que

durante os períodos de guerra se dirige aos civis e aos militares fora de combate, é o

fundamento primeiro do Direito Humanitário, também conhecido como Direito

Internacional da Guerra, e busca a regulamentação jurídica do emprego da violência

no âmbito internacional. Desta forma, pode-se dizer que o Direito Humanitário

inaugura, no plano internacional, limites à atuação do Estado, no tocante à sua

liberdade de ação e autonomia, mesmo durante a ocorrência de conflitos armados

(PIOVESAN, 2006, p.110).

A Liga das Nações surge em 1920 como uma promessa de uma organização

de caráter internacional e apontava para a necessidade da relativização da

soberania dos Estados (PIOVESAN, 2006, p.110). A Liga das Nações (1919-1939),

predecessora das Nações Unidas, surge como conseqüência da Primeira Guerra

Mundial, sendo a primeira organização do século XXI de caráter quase universal,

estabelecida em 1919 através do Tratado de Versalhes “para promover a

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cooperação internacional e alcançar paz e segurança”, também continha dentre

seus princípios o de condenar agressões externas realizadas contra a integridade

físico-territorial e política de seus membros (SEITENFUS, 2003; PIOVESAN, 2006,

p.110). Ressalta-se também que, dentre seus preceitos, estavam contidos princípios

genéricos de direitos humanos, como o sistema de minorias e o estabelecimento de

parâmetros internacionais do direito ao trabalho, cuja origem buscava condições

justas e dignas de trabalho para homens, mulheres e crianças (PIOVESAN, 2006,

p.111).

Também a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) serviu

como um dos pilares para o desenvolvimento dos direitos humanos e para sua

internacionalização, sobretudo a respeito da promoção de condições dignas de

trabalho e de bem-estar. Com esta rápida passagem pelas contribuições realizadas

pelo Direito Humanitário, pela Liga das Nações e pela OIT, esse processo de

internacionalização se deu com uma mudança de enfoque do ponto de vista do

direito internacional, pois se muda a perspectiva: antes atinente às relações

governamentais entre os Estados e agora também direcionada a obrigações

internacionalmente assumidas por esses Estados cujas garantia ou implementação

coletiva eram dirigidas a salvaguardar os direitos humanos, sobrepondo a lógica

meramente estatal de seus contratantes (PIOVESAN, 2006, p.112).

Tais institutos rompem, assim, com o conceito tradicional que situava o Direito Internacional apenas como a lei da comunidade internacional dos Estados e que sustentava ser o Estado o único sujeito de Direito Internacional. Rompem ainda com a noção de soberania nacional absoluta, na medida em que admitem intervenções no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos (PIOVESAN, 2006, p.113-114).

Em um cenário onde o indivíduo passa a ser não somente o objeto, mas

também sujeito do direito internacional; onde se desenvolve uma situação onde os

indivíduos passam a ser dotados também de capacidade processual internacional, e

onde as concepções de direitos humanos passam a se tornar também matéria de

legítimo interesse internacional, começa a se delinear os contornos do que hoje é

chamado de Direito Internacional dos Direitos Humanos (PIOVESAN, 2006, p.114-

115).

Portanto, em meados do século XX, sobretudo após a Segunda Guerra

Mundial, se desenrola a consolidação desse Direito. A Segunda Guerra acarreta um

sentimento generalizado de indignação face às atrocidades cometidas durante o

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nazismo, onde o próprio Estado figurava como o grande violador de direitos

humanos. A “Era Hitler” foi marcada pela lógica de destruição e da descartabilidade

da pessoa humana (PIOVESAN, 2006, p.116), em um cenário marcado pelo

genocídio, pelas torturas e pela violência desregrada.

Por esse motivo, no pós-guerra, a comunidade internacional perplexa começa

a buscar saídas para evitar a repetição de eventos como os ocorridos durante o

conflito, quando se passou a buscar a reconstrução dos direitos humanos como

referencial ético, parâmetro de orientação do direito internacional contemporâneo,

que passa a ser difundido de forma a não se restringir às fronteiras de cada Estado,

mas sim de forma universal. Essa vontade de se promover os direitos internacionais

além-fronteira serviu de impulso para seu processo de internacionalização, momento

em que a comunidade internacional passa a demandar a criação de uma sistemática

normativa de proteção desses direitos, responsabilizando os Estados no nível

internacional quando o próprio Estado se mostra incapaz ou omisso na tarefa de

proteger os direitos humanos (PIOVESAN, 2006, p.117).

O conceito de soberania estatal, até então entendido como absoluto e

ilimitado, passa a ser questionado quando os direitos humanos se tornam um

interesse internacional legítimo ao fim da Segunda Guerra Mundial, momento em

que se dá a construção da Organização das Nações Unidas, cuja Assembléia Geral

aprova a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, quando o tema

passa a ser inserido na agenda dessas instituições internacionais. A revolta com as

atrocidades cometidas contra os judeus no holocausto ensejou a criação do Tribunal

de Nuremberg (1945-46), cujos procedimentos buscavam a responsabilização dos

culpados pelos crimes e violações aos direitos humanos cometidos durante a

Segunda Guerra, sendo de grande valia para o processo de internacionalização

desses direitos, mesmo que seus métodos e procedimentos ainda hoje suscitem

discussões e críticas ferrenhas. (PIOVESAN, 2006, p.118-120).

Tendo por base essencialmente a aplicação do costume dos países

julgadores como parâmetro de julgamento, o Tribunal de Nuremberg responsabilizou

os nazistas envolvidos na prática de crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes

contra a humanidade, previstos no Acordo de Londres. É justamente essa aplicação

do costume como norma internacional que sujeita os procedimentos adotados pelo

Tribunal às críticas sofridas, sobretudo quando se evoca o princípio da legalidade do

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Direito Penal, pois em Nuremberg os crimes punidos não eram considerados crimes

à época em que foram praticados (PIOVESAN, 2006, p.121-122).

O significado do Tribunal de Nuremberg para o processo de internacionalização dos direitos humanos é duplo: não apenas consolida a idéia da necessária limitação da soberania nacional como reconhece que os indivíduos têm direitos protegidos pelo direito internacional. Testemunha-se, desse modo, mudança significativa nas relações interestatais, o que vem a sinalizar transformações na compreensão dos direitos humanos, que, a partir daí, não mais poderiam ficar confinados à exclusiva jurisdição doméstica. São lançados, assim, os mais decisivos passos para a internacionalização dos direitos humanos (PIOVESAN, 2006, p.123).

A criação da Organização das Nações Unidas consolidou, de certa forma, a

discussão do Direito Internacional dos Direitos Humanos, vez que seu Conselho

Econômico e Social abriga uma Comissão de Direitos Humanos, um Alto

Comissariado de Direitos Humanos e, mais recentemente, um Conselho de Direitos

Humanos, cujas decisões abarcam o assunto de maneira universal e se debruçam

sobre as mais diversas nuances e aspectos, como é o caso da discussão do

presente trabalho: a inserção do acesso à água como direito humano. As colocações

feitas nesses órgãos são admitidas como norma pelos Estados, que se obrigam

mutuamente a respeitar, proteger, garantir e salvaguardar esses direitos tanto no

âmbito internacional quanto no interno. Assim, a soberania aqui é relativizada na

medida em que os próprios Estados se obrigam e se deixam responsabilizar pelo

cumprimento dessas obrigações.

A Carta das Nações Unidas, apesar de tratar de forma imprecisa os direitos

humanos e as liberdades fundamentais, importou em um primeiro passo rumo à

internacionalização da proteção desses direitos e liberdades, na medida em que os

Estados-partes reconhecem os direitos humanos como preocupação internacional

legítima, deixando de lado a concepção exclusivamente doméstica referentes à sua

aplicação, sobretudo a respeito aos seus artigos 55 7 e 56 8 , que, ao serem

7 Artigo 55: Com o fim de criar condições de estabilidade e bem estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e c) o respeito universal e efetivo raça, sexo, língua ou religião. (CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc5.php, acesso em 12/01/2008).

8 Artigo 56: Para a realização dos propósitos enumerados no Artigo 55, todos os Membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente.

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posteriormente codificados, criaram um número considerável de normas jurídicas

(BUERGENTHAL apud PIOVESAN, 2006, p.129).

Em texto datado de 1982, Jack Donnelly tece considerações a respeito da

relação entre direitos humanos e política externa, remetendo sua análise ao

processo de internacionalização dos Direitos Humanos. É relevante nos reportarmos

a esse texto pois, mesmo com a idade já avançada, visto que se vão mais de vinte e

cinco anos, sua temática permanece atual e a análise nele produzida ainda faz

sentido nos dias de hoje.

Assim, pode-se provar a atualidade do artigo porque menciona a concepção

de direitos humanos predominante à época. Donnelly infere que esse conceito é

desenhado aos moldes da teoria de direitos naturais, tomando como direitos

humanos os enunciados inalienáveis de indivíduos em decorrência de sua natureza

como seres humanos (pessoas morais), que desembocam na proteção dos

potenciais, atitudes e direitos inerentes a uma vida digna. Em outras palavras, pode-

se então dizer que os direitos humanos são aqueles pertinentes a alguém pela

simples e única condição de ser humano e que implicam em fortes obrigações

morais prima facie, mesmo além das fronteiras do Estado 9 (DONNELLY, 1982,

p.575).

Jack Donnelly ainda aponta para o fato de haverem outras interpretações

sobre os direitos humanos, mas qualquer que seja a teoria escolhida como

referência, os direitos humanos sempre devem ser vistos na política internacional de

maneira interdisciplinar pois englobam temas econômicos, morais e políticos, mas

entendendo que as obrigações morais internas e internacionais não se esgotam

nesses direitos (DONNELLY, 1982, p.576).

A respeito da interdependência existente entre as diversas naturezas de

direitos humanos (social, moral, política, cultural, etc.), Donnelly (1982, p.581) tece

(CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc5.php, acesso em 12/01/2008).

9 Tradução livre de: “The most prevalent conception of human rights draws on a theory of natural rights: human rights are the inalienable entitlements of individuals, based on their nature as human beings (moral persons); they protect those potentials, attributes, and holdings that are essential to a life worthy of a human being. In other words, human rights are the rights one has simply by virtue of being a human being. Thus they imply strong prima facie moral obligations, even across state boundaries” (DONNELLY, 1982, p.575).

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crítica argumentando que interdependência sugere um reforço mútuo, onde os

direitos sejam mais fortes quando tomados em conjunto, como um só ‘pacote’, que

se considerados isoladamente. O autor retoma Buergenthal (1982, p.586), reforça

que o processo de internacionalização desses direitos se deu gradualmente a partir

da Segunda Guerra Mundial, quando deixam de ser assunto exclusivamente

doméstico, e faz também referências à Carta da ONU. Assim, Donnelly (1982, p.586)

inferindo a adesão de um Estado a esse documento como significado de sua mera

aceitação de um dever de promover os direitos humanos, não permitindo que os

outros Estados – ou mesmo o próprio Sistema ONU – façam-no cumprir essa

obrigação. Assim, Donnelly conclui dizendo que “não é somente uma obrigação

internacional qualquer que estabelece uma ‘internacionalização’ suficiente para

sobrepor a forte presunção sistêmica contra a intervenção”10.

A ONU, por sua vez, tem evoluído desde a sua criação na proteção e

promoção desses direitos, inclusive com o fortalecimento da Comissão de Direitos

Humanos, tanto por meio de resoluções que pedem a cessação das violações contra

esses direitos – sobretudo quando consistem em um “padrão grave de violações”11 –

quanto por meio de seus órgãos subsidiários, através de procedimentos que

investigam e apuram as denúncias dessas violações (BUERGENTHAL apud

PIOVESAN, 2006, p.129).

A realização desses direitos se dá de forma interdependente pois, por

exemplo, para que sejam satisfeitos os direitos econômicos, sociais e culturais,

deve-se também garantir a efetividade dos direitos civis e políticos, e assim por

diante.

Porém, o ponto crucial desse processo de internacionalização consiste na

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, cujo conteúdo, aprovado com

o voto favorável de 48 Estados e 8 abstenções, se pautava na defesa da dignidade

da pessoa humana, onde a condição humana é o requisito único para a titularidade

dos direitos. A partir desse momento, a dignidade da pessoa humana é o princípio

que passa a reger todas as outras convenções e tratados de direitos posteriores,

10 Tradução livre de: “Not just any international obligation establishes sufficient ‘internationalization’ to overcome the strong systemic presumption against intervention” (DONNELLY, 1982, P.586).

11 Tradução livre de: “Consistent pattern of gross violations” (BUERGENTHAL apud PIOVESAN, 2006, p.129)

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que hoje compõem o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos

(PIOVESAN, 2006, p.130).

A Declaração de 1948 busca adequar o discurso liberal e o discurso socialista,

na medida em que passa a elencar tanto os direitos civis e políticos quanto os

direitos sociais, econômicos e culturais, numa tentativa de conjugar o valor da

liberdade com o da igualdade entre os povos, demarcando a concepção

contemporânea de direitos humanos, onde esses direitos devem ser concebidos

como um núcleo uno e indivisível (PIOVESAN, 2006, p.133-134).

Seja por fixar a idéia de que os direitos humanos são universais, decorrentes da dignidade humana e não derivados das peculiaridades sociais e culturais de determinada sociedade, seja por incluir em seu elenco não só direitos civis e políticos, mas também sociais, econômicos e culturais, a Declaração de 1948 demarca a concepção contemporânea de direitos humanos (PIOVESAN, 2006, p.137).

Junto a essa concepção contemporânea de direitos humanos surge uma

metodologia de estudo a ela aplicável: alguns autores passam a conceber os direitos

humanos classificando-os em gerações (como é o caso de Norberto Bobbio). No

entanto, devemos entender que uma geração não substitui a outra, mas a integra,

complementa, de modo que os direitos humanos devem ser entendidos, nesta

perspectiva, como essencialmente complementares entre si e em constante

interação, além de indivisíveis (PIOVESAN, 2006, p.133-135).

1.3 Perspectivas atuais dos direitos humanos

Nesse momento, analisar-se-á a teoria do italiano Norberto Bobbio, no

tocante à categorização dos direitos humanos em gerações, delineada sobretudo em

seu livro A Era dos Direitos, um compêndio de textos, donde se pode apreender

algumas de suas principais idéias: os direitos humanos são direitos históricos e

surgem no princípio da era moderna, onde vigora a noção individualista de

sociedade, e, com a evolução, esses direitos se tornam um dos principais indicativos

do progresso histórico.

Em seguida, apresentar-se-á uma crítica às falhas dessa teoria feitas por

Antônio Augusto Cançado Trindade, jurista brasileiro que, assim como Flávia

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Piovesan, se afilia à corrente que pressupõe a existência de um núcleo uno e

indivisível, onde as supostas gerações seriam nuances dos elementos desse núcleo.

Esse percurso se faz essencial para, após entendermos a inserção da água potável

na pauta da agenda internacional, podermos discutir como essa discussão passa a

se dirigir à inclusão do direito à água no rol de direitos humanos. Com a breve

análise destas duas vertentes, poderemos entender mais adiante como se deu esse

processo: se o direito à água necessita ou não dessa positivação para que seja

reconhecido, ou se esse direito esteve sempre protegido, como direito humano,

porque diz respeito às condições essenciais de sobrevida do ser humano.

1.3.1 A Era dos Direitos de Norberto Bobbio

Norberto Bobbio, jurista nascido na cidade de Turim, Itália, no ano de 1909,

teve importante contribuição nos ramos de Teoria e Filosofia do Direito. Apesar de

toda contribuição de Bobbio para o Direito, sua teoria sofre severas críticas na

comunidade acadêmica. Pretende-se, nesse momento, uma defesa de seus

argumentos, pois o próprio Bobbio, ao colocar os direitos humanos dentro de

categorias – que ele convenciona chamar de “gerações” – afirma se tratar de

artimanha teórica, divergindo em certo grau das teorias que pretendem defender

esses direitos como constituintes de um núcleo único, uno e indivisível. Assim, de

início podemos colocar o que escreve Bobbio acerca da evolução na aquisição e

proteção desses direitos:

Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo (BOBBIO, 1992, p.1).

Comentando a passagem, Celso Lafer (2005, p.123) infere ser recorrente no

livro de Bobbio a presença dos três temas, pois é onde o autor procura estabelecer a

relação entre interno e o internacional, admitindo que a democracia e os direitos

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humanos criam condições para a possibilidade de paz no plano mundial (LAFER,

2005, p.124).

Apesar das críticas que hoje sofre, Bobbio foi um grande estudioso da

temática dos direitos humanos. Destarte, através das suas concepções, é relevante

a opção de Norberto Bobbio pela classificação dos direitos humanos em categorias,

como pode ser percebida no trecho a seguir de seu livro A Era dos Direitos, onde o

jurista diz ser a classificação uma opção teórica:

No plano histórico, sustento que a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos, e não do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade, segundo a qual, a sociedade como um todo vem antes dos indivíduos. […] Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas (BOBBIO, 1992, p.5).

Assim, Bobbio diz haver gerações de direitos, ou seja, cada geração se

originou em épocas diferentes, fruto de diferentes momentos históricos e

reivindicações. Para ele, os direitos de terceira geração:

constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga […]. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído. (BOBBIO, 1992, p.6).

Para o autor, os direitos humanos passam a ser reconhecidos na medida da

necessidade, pois os “direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando

podem ou devem nascer” (BOBBIO, 1992, p.6). Desse modo, entende-se que esses

direitos surgem quando há uma discrepância no poder do homem sobre o homem,

somado ao progresso técnico e ao domínio do homem sobre a natureza, ou mesmo

quando há novas ameaças às liberdades individuais, ou então novas soluções para

antigas ameaças, ou mesmo na exigência de ser a formulação dessas soluções seja

advinda do próprio poder público, de modo protetor (BOBBIO, 1992, p.6).

Ainda para Bobbio, a terceira e a quarta geração guardam em comum a

presença de dois tipos de direito: os que buscam impedir malefícios advindos do

poder e os que buscam obter seus benefícios (BOBBIO, 1992, p.6).

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Quando Norberto Bobbio argumenta sobre as gerações de direitos, apresenta

o fato de um direito ser enquadrado em uma geração mais avançada que se dá pelo

contexto no qual foi pensado, pois são postos de acordo com as necessidades

existentes em seu momento de criação. Bobbio tece críticas ao uso de determinadas

expressões que designam esses direitos, como é o caso de tratá-los como direitos

naturais fundamentais, inalienáveis e invioláveis, quando constituem documentos

políticos. Afirma, portanto, ser essa uma estratégia para reforçar o cumprimento

dessas obrigações que não oferece elementos suficientes e não faz o menor sentido

para a teoria do direito (BOBBIO, 1982, p.7). Ou seja, conforme Bobbio, o

cumprimento e a eficácia desses direitos repousam no reconhecimento deles como

essenciais, na medida em que os próprios direitos se tornariam sua própria garantia,

não devendo assim, gerar discussões frutíferas para o meio acadêmico pois, é no

conteúdo e na forma de proteção desses direitos que essas discussões devem ser

pautadas.

Conforme explica Celso Lafer, os direitos humanos para Bobbio são um

“construído jurídico historicamente voltado para o aprimoramento político da

convivência coletiva” (LAFER, 2005, p.127). Então, a aquisição de um consenso

sobre os fundamentos se deu com a formulação da Declaração Universal em 1948 e

Lafer observa que a concretização desse consenso de forma mais reforçada e

adensada foi feita na Conferência de Viena da ONU, de 1993, tendo este evento

consagrado a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e o inter-

relacionamento dos direitos humanos. Observa ainda que a abordagem dessa

questão por Bobbio não se dá pelo simples fato de seu livro ter sido anterior a esta

conferência (LAFER, 2005, p.127).

Deixando de lado a questão da fundamentação, que é um problema superável

para Bobbio, como demonstra a Declaração de 1948, o autor entende que os

maiores desafios no campo dos direitos humanos se dirigem à sua proteção

(BOBBIO, 1992, p.25). Remetendo-se aos direitos de terceira geração, o autor

entende terem se tratado, naquele momento, de mera “expressão de aspiração de

ideais, às quais o nome de ‘direitos’ serve unicamente para atribuir um título de

nobreza” (BOBBIO, 1992, p.9).

No entanto, Bobbio argumenta que o problema voltado para a proteção

desses direitos se dirige muito mais à esfera prática, jurídica e política, do que para a

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esfera axiológica e filosófica (BOBBIO, 1992, p.25). Ademais, o jurista faz

importantes considerações:

Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quantos e quais são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados (BOBBIO, 1992, p.25).

Mas Bobbio, com essas afirmações, não afirma que o problema da

fundamentação desses direitos é irrelevante. Apenas chama atenção para o que é

mais urgente ao se tratar dos direitos humanos: suas garantias, o respeito a eles e

sua implementação, devendo ser muito mais incisivas as questões práticas que as

filosóficas (BOBBIO, 1992, p.28).

As atividades de implementação geridas pelos organismos internacionais

seguem, para Norberto Bobbio, três aspectos principais: promoção, controle e

garantia (o que mais tarde pode ser percebido quando tratarmos especificamente da

implementação do direito à água). Assim, para esclarecer esses conceitos, o autor

os define:

Por promoção, entende-se o conjunto de ações que são orientadas para este duplo objetivo: a) induzir os Estados que não têm uma disciplina específica para a tutela dos direitos do homem a introduzi-la; b)induzir os que já a têm a aperfeiçoá-la, seja com relação ao direito substancial (número e qualidade dos direitos a tutelar), seja com relação aos procedimentos (número e qualidade dos controles jurisdicionais). Por atividades de controle, entende-se o conjunto de medidas que os vários organismos internacionais põem em movimento para verificar se e em que grau as recomendações foram acolhidas, se e em que grau as convenções foram respeitadas. […] Finalmente, por atividades de garantia (talvez fosse melhor dizer de “garantia em sentido estrito”), entende-se a organização de uma autêntica tutela jurisdicional de nível internacional, que substitua a nacional (BOBBIO, 1992, p.40).

Sobre esses aspectos principais da atuação dos organismos internacionais

em defesa dos direitos humanos, devemos dizer que promoção e controle são

bastante diversos de garantia, uma vez que os dois primeiros se dirigem ao interior

dos Estados, buscando reforçar ou aprimorar o sistema jurídico interno, enquanto a

terceira busca a institucionalização de uma instância superior e internacional,

sobretudo para ser acionada quando as primeiras se mostrarem ineficientes

(BOBBIO, 1992, p.40).

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Lafer cita as considerações decorrentes do diálogo de Bobbio com Gregorio

Peces Barba, onde há a distinção das etapas da construção do Estado Democrático

de Direito no tocante aos direitos humanos. Assim, ressalta que o processo se dá,

primeiro, pela positivação – conversão do valor da pessoa humana e do

reconhecimento em Direito Positivo, através das Declarações de Direitos; em

seguida, surge a generalização que abrange o princípio da igualdade e os outros

adjacentes; poderíamos chamar a terceira etapa de internacionalização, proveniente

do reconhecimento, sobretudo com a Declaração Universal, que aborda a tutela dos

direitos humanos de forma interdependente, com o apoio da comunidade

internacional e com normas de Direito Internacional Público. Segundo Bobbio, a

quarta etapa se constitui pela especificação, dirigindo-se a um público-alvo

específico, fugindo das generalizações e passando a cuidar do ser em questão –

donde surgem as políticas que se referem aos idosos, às crianças, às mulheres, e

assim por diante (LAFER, 2005, p.128-129).

A respeito dos textos adicionais à segunda edição italiana de A Era dos

Direitos, Lafer ressalta a importância do entendimento de Bobbio sobre o direito ao

meio ambiente, uma vez que há uma simultaneidade entre interno e externo,

problemática agravada com as novas diretrizes da economia contemporânea, onde o

desenvolvimento sustentável é condição para a tutela desses direitos (LAFER, 2005,

p.134-135).

As colaborações de Bobbio foram essenciais à discussão da temática dos

direitos humanos no século XX e ainda trazem contribuições para o século XXI.

Porém, como toda teoria possui suas falhas, e quanto mais se conhece essa teoria,

mais críticas ela sofre, pois não se trata de um modelo acabado, o pensamento de

Bobbio também sofreu muitas críticas nos meandros da academia. Por motivos

metodológicos, optamos por nos ater às críticas feitas por Flávia Piovesan e Antônio

Augusto Cançado Trindade, dois teóricos brasileiros cujo conhecimento na área dos

direitos humanos possui elevado reconhecimento internacional.

1.3.2 Enfoques críticos à Teoria de Norberto Bobbio: outras vertentes

Muita crítica tem sido feita aos estudos de Bobbio no que diz respeito à sua

opção teórica de enquadrar os direitos humanos em gerações, pois há quem

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entenda que esta opção teórica faz com que toda a lógica fortalecedora da proteção

desses direitos perca o sentido. Assim, optou-se por tratar as críticas feitas

diretamente a essa teoria, tomando por base o livro de Flávia Piovesan, “Direitos

Humanos e o Direito Constitucional Internacional”, com a “Apresentação” de Antônio

Augusto Cançado Trindade.

Trindade menciona o que se convencionou chamar de Direito Internacional

dos Direitos Humanos, hoje um ramo autônomo do direito, específico, e que surge

como um direito de proteção buscando, acima de tudo, a salvaguarda dos direitos

dos seres humanos, até se sobrepondo aos direitos dos Estados (TRINDADE apud

PIOVESAN, 2006, p.XXIX).

Ao delinear alguns casos com os quais se depara no exercício da sua

profissão, Cançado Trindade apresenta sua crítica à teoria das gerações de direito:

O quarto exemplo diz respeito à fantasia das chamadas “gerações de direitos”, a qual corresponde a uma visão atomizada ou fragmentada destes últimos no tempo. A noção simplista das chamadas “gerações de direitos”, histórica e juridicamente infundada, tem prestado um desserviço ao pensamento mais lúcido a inspirar a evolução do direito internacional dos direitos humanos. Distintamente do que a infeliz invocação da imagem analógica da “sucessão intergeracional” pareceria supor, os direitos humanos não se “sucedem” ou “substituem” uns aos outros, mas antes se expandem, se acumulam e se fortalecem, interagindo os direitos individuais e sociais (tendo estes últimos inclusive precedido os primeiros no plano internacional, a exemplo das primeiras convenções internacionais do trabalho). O que testemunhamos é o fenômeno não de uma sucessão, mas antes da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, a revelar a natureza complementar de todos os direitos humanos (TRINDADE apud PIOVESAN, 2006, p.XXXI).

Assim, Cançado Trindade conclui esses argumentos afirmando que uma das

tarefas essenciais do Direito dos Direitos Humanos é justamente a de conferir a

indivisibilidade, a justiciabilidade e a unidade dos direitos humanos, tidos em um

único núcleo.

Por se tratar de direito excessivamente protetivo, o cumprimento das

obrigações internacionais decorrentes dessa proteção requer uma interatividade dos

órgãos estatais entre si, e, mais além, dos órgãos estatais com os organismos

internacionais, para fins de aplicação adequada das normas internacionais,

ocasionando uma maior interação entre direito interno e internacional hodiernamente

mais equilibrada, através de uma superação do modelo anterior, onde ambos

permaneciam herméticos, estanques e, grande parte das vezes, em lados opostos

(TRINDADE apud PIOVESAN, 2006, p.XXXIV).

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Flávia Piovesan (2006, p.107), por sua vez, defende a historicidade dos

direitos humanos, na medida em que se tratam de direitos caracterizados como

artifícios da mente humana, em constante processo de construção e reconstrução.

Devemos entender que Bobbio opta por classificar os direitos humanos em

categorias muito mais por fins metodológicos e que, por esse motivo, essa opção

não deveria ser considerada como fragmentadora da proteção dos direitos humanos,

como consta da crítica feita por Cançado Trindade. Porém, ao tomarmos os direitos

humanos como um único núcleo indivisível, agregador desses direitos em todas as

suas nuances, de forma interdependente, interativa, complementar e em constante

evolução, fica mais fácil, em termos políticos, conseguir sua proteção internacional.

O conceito de direitos humanos engloba uma vasta gama de nuances, onde

há a proteção de várias características que asseguram a condição e a dignidade

humanas em todo o planeta. Por assim ser, trata-se de um conteúdo totalmente

amplo, em constante modificação e cuja interpretação muda de acordo com o

contexto em que se insere.

Devemos entender o direito à água como um direito humano ao meio

ambiente, portanto, um direito humano de terceira geração, de acordo com a teoria

de Bobbio. Contudo, isso não o torna parte de uma categoria estanque, pois se

relaciona com outros direitos humanos de outras categorias de forma

interdependente e complementar, como poderemos estudar logo adiante.

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2 A ÁGUA NA AGENDA INTERNACIONAL

Diferentemente das guerras e dos desastres naturais, a crise global por água não traz manchetes para a mídia. Nem mesmo impulsiona a ação de concertação internacional. Assim como a fome, a privação de acesso à água é uma crise silenciosa, vivenciada pelos pobres e tolerada pelos detentores dos recursos, tecnologias e poder político capazes de extingui-la12 (WATKINS et al, 2006, p.1).

Devemos ressaltar a importância da consolidação de um direito à água,

explicitando os problemas decorrentes de sua escassez 13 em alguns países e

regiões, priorizando informações que suscitam preocupação e que comprometem o

bem-estar da população desses países. Tais informações se fazem necessárias

para, posteriormente, serem contempladas as soluções propostas pelos fóruns

internacionais, no que tange às medidas de correção e mitigação dessa situação, e

em seguida, serão colocadas as implicações desse contexto para a população

mundial e como a água pode se tornar objeto de disputas e conflitos violentos em

algumas partes do planeta, para então discutir a problemática do direito humano ao

acesso à água.

A água desempenha papel importante na vida do planeta: é responsável pela

manutenção da temperatura, é indispensável para a saúde humana, para a irrigação

das colheitas, para o provimento de hidroeletricidade, para a proteção dos

ecossistemas.

Através da análise de um mapa planisférico podemos ter a impressão de que

a água constitui o elemento mais abundante no planeta. A água representa 71% da

superfície terrestre, com um volume total estimado em 1.385 milhões de km3. Porém,

se fragmentarmos esse total, perceberemos que a porcentagem representada pela

água salgada e pela água potável mostram realidades bem distintas, pois a água

salgada representa 97% desse total (CALASANS, 2006, p.3). A quantidade

equivalente à água doce no mundo não produz porcentagem maior que 2, 53% do

12 Tradução livre de: Unlike wars and natural disasters, the global crisis in water does not make media headlines. Nor does galvanize concerted international action. Like hunger, deprivation in access to water is a silent crisis experienced by the poor and tolerated by those with the resources, the technology and the political power to end it (WATKINS et al: HUMAN DEVELOPMENT REPORT 2006, p.1).

13 Escassez de água (Water stress) pode ser definido como a condição de insuficiência de qualidade ou quantidade satisfatória de água para suprir as necessidades humanas e ambientais. (Fitting the pieces together, UNESCO, 2003.)

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total de água disponível na Terra. Se descontarmos os dois terços encontrados nas

geleiras glaciais ou permanentemente em forma de neve, a realidade é bem

diferente: restam ao consumo humano algo em torno de oito mil quilômetros cúbicos,

componentes dos rios, lagos e das demais fontes de água superficial. Ainda, desse

total, não se tem uma noção muito precisa da porcentagem de água poluída por

dejetos como fertilizantes, pesticidas, resíduos industriais, humanos e químicos,

dentre outros que tornam a água imprópria para o consumo (BRANCO, 1993).

Os poluentes, maior parte das vezes, surtem efeitos locais. Mas se

entendemos a dinâmica dos cursos d’água, podemos facilmente compreender que

no oceano esses poluentes tendem a se concentrar nos litorais e mares,

aumentando o nível de contaminação desses, tornando-se um problema global.

Conforme dados estimados, já em 2006, 80 países sofriam com severos

problemas críticos de falta d’água em todo o mundo, países esses que abrigavam já

40% da população mundial. Para demonstrar a distribuição geográfica desigual do

recurso, basta a informação de que 60% do total das águas doces do mundo se

concentram em apenas dez países, conforme se pode notar dos estudos de Jean

Margat (CALASANS, 2006, p.3).

Não bastasse a distribuição desigual dos recursos, a exploração inadequada

e a poluição tornaram a água um recurso raro e cobiçado nesse início de século,

porém há uma certa discussão a respeito do surgimento de conflitos bélicos em

torno desse único motivo: a escassez (CALASANS, 2006, p.4).

A situação ainda é agravada pelo crescimento demográfico desordenado,

pela corrida pela industrialização e desenvolvimento, pelo aumento das fontes

poluidoras e do volume de poluição produzida, que suscitam dúvidas quanto ao

futuro desses recursos, de toda a população humana e, porque não dizer, do futuro

de todo o planeta (CALASANS, 2006, p.4).

Os recursos hídricos permanecem frágeis em muitos países e as medidas

para a promoção de seu uso sustentável14 situam-se aquém do desejado. Em torno

de 1, 2 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável de boa qualidade e 2, 4

bilhões não possuem um serviço de saneamento adequado. O uso de águas nas

cidades, em 2025 será cada vez mais problemático, uma vez que a população

14 “Uso sustentável da água é o uso da água que sustenta a habilidade da sociedade humana de perdurar e florescer no futuro indefinido sem minar a integridade do ciclo hidrológico ou os sistemas ecológicos que dependem dele.” Peter H. Gleick (Tradução livre). (WWAP, 2003a)

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urbana estimada para aquele ano é de 4 bilhões de habitantes. Não obstante,

estimativas recentes anunciam que o aquecimento global aumentará em cerca de

20% a escassez de água no mundo, assumindo também que, até o meio deste

século, na hipótese mais pessimista, 7 bilhões de pessoas em 60 países e, na mais

otimista, 2 bilhões em 48 países sofrerão com a escassez, se não houver uma

mudança de comportamento mundial do uso da água (WWAP, 2003b).

As tendências do século passado reafirmam o aumento da preocupação:

enquanto a população mundial triplicou, houve um aumento de seis vezes na

demanda por água ao redor do globo. Ainda hoje, em pleno século XXI,

presenciamos uma realidade que admite um volume de mais de um bilhão de

pessoas sem acesso a uma água potável adequada e quase dois bilhões e meio de

pessoas sem saneamento básico (SCANLON; CASSAR; NEMES, 2004, p.1).

Dentre os usuários, o uso doméstico é o menor usuário em termos

quantitativos, uma vez que representa uma pequena fração, em torno de 5% do total

mundial, mas há uma enorme desigualdade entre os níveis de moradia e o acesso à

água limpa e saneamento. Em algumas regiões da Ásia, América Latina e África

Sub-Saariana, de renda mais elevada, as pessoas chegam a desfrutar de centenas

de litros de água por dia, que chegam pelo encanamento em suas casas,

distribuídas pelos serviços públicos, a um preço baixo. Ao mesmo tempo, alguns

casebres das regiões rurais e mais pobres desses mesmos países não tem sequer

os 20 litros diários de água por pessoa para suprir suas necessidades humanas mais

básicas. As mulheres e as crianças são as mais afetadas com essa realidade,

porque são as pessoas responsáveis pela captação e transporte da água,

sacrificando seu tempo e sua educação para cumprir essas tarefas (WATKINS et al,

2006, p.2).

As doenças relativas à qualidade da água matam mais pessoas do que a

AIDS em algumas regiões do mundo, mesmo nos dias de hoje. Segundo dados

oficiais da UNESCO (Organização Educacional, Científica e Cultural das Nações

Unidas), em 2000, a taxa de mortalidade relacionada a diarréias e outras doenças

(esquistossomose, tracoma e infecções intestinais provocadas por helmintos)

provenientes da falta de saneamento, higiene e acesso adequado à água foi da

ordem de 2.213.000 pessoas em todo o mundo e mais de 1 milhão de mortos

infectados por malária, sendo que mundialmente mais de 2 bilhões de pessoas

foram infectadas com esquistossomose e outros helmintos terrestres, das quais 300

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milhões sofreram complicações, grande maioria são crianças com idade inferior a

cinco anos (WSSD, 2002). Ainda hoje, é estimado que cerca de 14-30 mil pessoas,

em sua maioria crianças, jovens e idosos, morram todos os dias em razão de

doenças relacionadas à água (SCANLON; CASSAR; NEMES, 2004, p.1).

Se todas essas tendências persistirem, em 2025 dois terços da população

mundial estará sofrendo com escassez severa, até mesmo com a ausência total do

recurso. Deve-se deixar claro que o acesso a um suprimento adequado de água é

necessário a todo aspecto da vida humana e que uma crise hídrica causaria

impactos indesejáveis e irreversíveis na saúde, no bem-estar, no meio ambiente e

nas economias ao redor do mundo. Assim, pode-se assumir que o link entre o bem-

estar da sociedade e a saúde do meio ambiente se torna cada vez mais importante e

que será inútil assegurar apenas o bem-estar social sem se preocupar com o meio

ambiente (SCANLON; CASSAR; NEMES, 2004, p.1).

A lógica inaugurada por Thomas Malthus no século XIX é a que prevalece no

cenário internacional quando se trata do assunto relativo à escassez de água, pois

sua teoria já contemplava o futuro como uma época em que haveria escassez de

alimentos. Com o crescimento desordenado e com a expansão da demanda por

água em todo o mundo, o argumento é reforçado com a previsão de um futuro de

seca, baseado em fundamentos matemáticos15. Devemos, portanto, rejeitar esse

ponto de partida, porque o problema da escassez não é um problema de

indisponibilidade de recursos, mas sim de concentração de poder, ausência de

vontade política, pobreza e desigualdade (WATKINS et al, 2006, p.2).

Lord Selborne (2001) faz um estudo sobre as implicações da ética no uso da

água doce e tece algumas considerações a este respeito. Tomando como ponto de

partida de sua discussão o conceito de desenvolvimento sustentável introduzido pelo

Relatório Brundtland o autor se refere à necessidade de se estabelecer um novo

modelo de desenvolvimento econômico, material e tecnológico, com vistas à atitudes

que busquem a partilha, o cuidado, a conservação e a economia (SELBORNE, 2001,

p.17).

15 Quando admitimos que na Teoria de Malthus, os alimentos crescem em progressão aritmética, enquanto a população cresce em progressão geométrica (baseado em WATKINS et al, 2006, p.2).

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Conforme Vargas (2000)16, até pouco tempo atrás as questões relativas ao

meio ambiente, ao aquecimento global, ao desenvolvimento econômico e social e

suas repercussões nas relações interestatais eram questões distantes da realidade

de qualquer cidadão comum, ficando restritas apenas a um grupo de especialistas

sendo possível afirmar que a criação de uma consciência voltada para a questão

ambiental tem como precedente histórico a preocupação com a conservação dos

recursos hídricos. Nesse contexto, os rios se posicionam como elemento-chave do

despertar dessa consciência, pois devido à poluição das águas passa-se a pensar

nos efeitos dos danos que a poluição pode causar além-fronteiras e até mesmo,

além-mar. A partir desse momento, a comunidade internacional passa a se

preocupar com medidas preventivas e de redução da contaminação promovendo

uma mudança de parâmetros, considerando os recursos hídricos não só como

essenciais à vida humana, como também importante recurso econômico, salientando

sua importância para o desenvolvimento das sociedades.

No entanto, a ação internacional ainda é insignificante tendo em vista a

dimensão do problema. Quando em 1994 o Relatório do Desenvolvimento Humano

inaugurava o conceito de “segurança humana” para o debate internacional, buscava-

se ampliar as percepções da segurança nacional – até então entendida apenas

como a capacidade de defesa militar dos Estados às ameaças e a proteção dos

interesses de política externa dos países – para uma concepção de segurança que

levasse em conta principalmente as vidas humanas de sua população (WATKINS et

al, 2006, p.3).

Assim, a segurança hídrica também inaugura um conceito mais abrangente

da segurança humana e, em termos gerais, consiste em assegurar a cada pessoa

acesso a uma quantidade suficiente de água, a um preço acessível, para uma vida

saudável, digna e produtiva, que permita a manutenção dos ecossistemas

provedores de água, mas também dependentes dela (WATKINS et al, 2006, p.3).

Nesse ponto, a lógica das percepções nacionais e internacional de segurança

humana devem repousar justamente em tentar evitar a escassez hídrica, uma vez

que esta violaria alguns dos princípios mais básicos da justiça social, dentre os quais:

16 Água e Relações Internacionais, 2000.

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a igualdade de cidadania17; o mínimo social18; a igualdade de oportunidades19; e a

distribuição justa20 (WATKINS et al, 2006, p.3-4).

Esses princípios devem nortear qualquer formulação de direito à água que se

propuser plausível e aplicável, no sentido de buscar corresponder cada vez mais à

realidade apresentada.

2.1 A concertação21 internacional

A apresentação dos resultados alcançados nas conferências internacionais

acerca dos assuntos relacionados ao gerenciamento e proteção dos recursos

hídricos se faz necessária neste trabalho, visto que através desses resultados pode-

se entender como a colocação do tema na agenda internacional foi alcançada e a

forma como é tratado pela comunidade internacional dentro da ONU, para,

posteriormente, entender as implicações do panorama global na garantia dos

direitos humanos a ela relacionados.

Ademais, não obstante a importância das conferências/instrumentos

específicos sobre o tema, resta ainda sabermos como alguns instrumentos mais

gerais de direitos humanos e de direito internacional, como a própria Carta da ONU,

contribuíram para o desenvolvimento da discussão. Assim, também nos

reportaremos a esses instrumentos no sentido de estabelecer, futuramente, o

conteúdo do direito à água e discutir sua eficácia.

17 Todas as pessoas possuem uma igualdade de direitos civis, políticos e sociais inerentes à sua condição humana, bem como os meios para exercitar esses direitos efetivamente (WATKINS et al, 2006, p.3).

18 Todos os cidadãos devem ter acesso ao mínimo de recursos suficientes para suprir suas necessidades básicas e viver em dignidade. No que se refere à água, esse mínimo representa 20 litros/dia (WATKINS et al, 2006, p.3).

19 Igualdade de oportunidade é essencial para a justiça social e é diminuída pela insegurança hídrica, uma vez que crianças e mulheres empenhadas na tarefa de buscar água perdem tempo que poderiam investir em sua educação (WATKINS et al, 2006, p.3-4).

20 Toda sociedade estabelece um nível aceitável de desigualdades. Se o acesso a uma água potável atingir elevada desigualdade, pode causar morte de crianças e aprofundar a pobreza (WATKINS et al, 2006, p.4).

21 O termo concertação, muito utilizado em Relações Internacionais, remete a concerto, harmonia, harmonização de interesses.

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Dentre os instrumentos mais importantes, encontramos a Declaração

Universal de 1948, os Pactos Internacionais de 1966, a Declaração do Direito ao

Desenvolvimento, a Convenção sobre os Direitos da Criança, dentre outros

elencados logo adiante. Porém, resta saber que entre os direitos explicitamente

garantidos por esses instrumentos estão o direito à vida, o direito a desfrutar de uma

boa qualidade de vida com saúde, bem-estar, proteção contra doenças e acesso a

uma quantidade adequada de comida, dentre tantos outros. Mesmo entendendo o

acesso à água como pré-condição para a realização de muitos desses direitos, ele é

mencionado de forma direta apenas na Convenção sobre os Direitos da Criança de

1989.

2.1.1 Carta das Nações Unidas, 1945

A Carta das Nações Unidas não faz menção expressa à água, porém, quando

entendemos que a realidade contemporânea traz consigo novos desafios para a

implementação dos compromissos firmados na Carta, podemos atribuir a seus

artigos uma interpretação mais condizente com essa realidade. Dessa forma,

sobretudo ao nos referirmos ao artigo 55 da Carta, a seguir, podemos entender que,

conforme dissemos anteriormente, uma crise na disponibilidade de água em

qualidade e quantidade suficiente para a sobrevivência humana, compromete todos

os propósitos nele elencados (SCANLON; CASSAR; NEMES, 2004, p.3):

ARTIGO 55 - Com o fim de criar condições de estabilidade e bem estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. (CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945).

Assim, com o aquecimento global e todas as suas incertezas climáticas, o

crescimento populacional desenfreado, e as secas severas que já ocorrem, um

direito à água se faz necessário para se alcançar todos esses desdobramentos.

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2.1.2 Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948

Grande parte do conteúdo da Declaração de 1948, por ter sido reiterado em

inúmeros documentos, tornou-se costume no direito internacional, mesmo não tendo

um caráter obrigatório e vinculante (SCANLON; CASSAR; NEMES, 2004, p.3).

Assim, o artigo 25 é o que mais se relaciona ao tema, ao proclamar:

Artigo XXV 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle (ASSEMBLÉIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).

Mesmo que a água não tenha sido explicitamente incluída no rol de direitos

garantidos por esse instrumento, podemos entendê-la implícita na medida em que a

expressão ‘inclusive’ abre espaço para outras categorias não elencadas de forma

direta e serve como um indicativo das espécies que podem ser incluídas como

essenciais para um padrão de vida adequado. Para que os ditames da Declaração

sejam satisfeitos, um acesso a uma quantidade de água de boa qualidade, suficiente

para suprir as necessidades humanas é mais do que essencial, sobretudo em

relação à saúde e ao bem-estar geral (SCANLON; CASSAR; NEMES, 2004, p.3-4).

2.1.3 As Convenções e Protocolos de Genebra, 1949 e 1977

As Convenções de Genebra III e IV e os Protocolos Adicionais I e II

reconhecem diretamente o direito à água, no entanto, esse reconhecimento é restrito

à água potável destinada somente a saciar a sede22 (SCANLON; CASSAR; NEMES,

2004, p.4).

Assim, como podemos depreender dos artigos elencados nos Anexos A, B, C

e D deste trabalho, quando há referência ao provimento de água, essa referência

22 Os referidos artigos se encontram em anexo ao trabalho e são: Convenção de Genebra III: artigos 20, 26, 29 e 46; Convenção de Genebra IV: artigos 85, 89 e 127; Protocolo Adicional I: artigos 54 e 55; e Protocolo Adicional II: artigos 5º e 14 (conforme SCANLON; CASSAR; NEMES, 2004, p.4).

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sempre está ligada à sobrevivência humana mais primária que é a satisfação das

necessidades básicas como a higiene pessoal, a alimentação, os cuidados médicos

e a água potável para saciar a sede.

No entanto, os Protocolos Adicionais I e II (Anexos C e D), avançam na

proibição de se utilizar de estratégias como privação de água e comida como táticas

de guerra. Assim, busca-se inibir o ataque a reservas de água potável e meios de

irrigação.

2.1.4 Os Pactos de Direitos Humanos de 1966

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – PIDCP e o Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC também se

referem a um direito à água de maneira indireta, sem mencioná-lo explicitamente.

Ao reconhecer um direito à vida, o PIDCP recebeu um tratamento mais amplo,

quando a Comissão de Direitos Humanos versou sobre o assunto, através da

produção do Comentário Geral nº 6, passando a interpretar o conteúdo desse direito

de forma mais abrangente. Assim, a partir desse momento, o direito à vida ganha

como conteúdo medidas para reduzir a mortalidade infantil e aumentar a expectativa

de vida, especialmente encorajando medidas de redução da desnutrição e das

epidemias. No mesmo documento, expande-se o conceito de direito à vida, com uma

interpretação mais ampla, buscando resguardar todas as nuances da vida humana.

De qualquer forma, mesmo que tomemos uma interpretação mais restritiva do direito

à vida, é impensável reconhecê-lo sem admitir a garantia do acesso à água, pois se

trata de um dos recursos mais essenciais e fundamentais para a sobrevivência

humana (SCANLON; CASSAR; NEMES, 2004, p.4).

Ao contrário de John Scanlon, Angela Cassar e Noémi Nemes (2004, p.5), o

tratamento dado ao direito à água pelo PIDESC de 1966 não é mais abrangente que

o do PIDCP porque ambos mencionam assuntos correlatos em abordagens

complementares. Para entendermos a presença desta menção também no segundo

Pacto, devemos, como no primeiro, interpretar de forma mais abrangente suas

prescrições. Não nos esquecendo que, entretanto, buscar a positivação de um

direito à água em um instrumento internacional de direitos humanos trata-se

exatamente de garantir um direito claro e explícito, dotado de conteúdo específico e

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de obrigações correlatas, que devem ser protegidas, respeitadas e garantidas pelos

Estados de uma forma geral, como um direito humano autônomo que mantém uma

interdependência com todo o núcleo de direitos humanos e todo o rol de direitos que

o compõem.

No entanto, Scanlon, Cassar e Nemes (2004, p.5) referem-se ao Comentário

Geral nº 15, produzido pelo Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

como aquele que efetivamente acrescentou, à interpretação dos artigos 11 e 1223 do

referido Pacto (PIDESC), a noção de um direito à água como essencial para a

garantia da dignidade humana, até mesmo reconhecendo algumas medidas para

solucionar o acesso de forma efetiva.

2.1.5 Convenção sobre os Direitos da Criança, 1986

O reconhecimento do acesso à água como direito humano, segundo Peter

Gleick (1998, p.8), o reconhecimento explícito de um direito à água tem seu respaldo

na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 pois, dentre as medidas que

prevê para os Estados garantirem e protegerem esses direitos, o seu artigo 24

alínea c é específico quanto ao fornecimento de água, como se pode ver:

Artigo 24 […] 2. Os Estados-partes garantirão a plena aplicação desse direito e, em especial, adotarão as medidas apropriadas com vistas a: […] c) combater as doenças e a desnutrição, dentro do contexto dos cuidados básicos de saúde mediante, inter alia, a aplicação de tecnologia disponível e o fornecimento de alimentos nutritivos e água potável, tendo em vista os perigos e riscos da poluição ambiental; (MAZZUOLI, 2008, p.899)

Segundo Gleick(1998), pode-se perceber nessa Convenção a primeira

menção explícita às conexões entre os recursos, a conservação do meio ambiente e

a saúde humana.

23 Ver Anexo E.

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2.1.6 Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, 1993

Dentre os vários documentos que compõem o aparato do direito ao

desenvolvimento, a Declaração e o Programa de Ação de Viena de 1993, também

não são instrumentos que buscam instituir um direito humano de acesso à água. Em

seu artigo 8º, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 (MAZZUOLI,

2008, p.776) apenas faz referência a direitos conexos ao direito ao desenvolvimento,

não mencionando expressamente o direito à água, conforme se pode perceber:

Artigo 8º 1. Os Estados devem tomar, a nível nacional, todas as medidas necessárias para a realização do direito ao desenvolvimento e devem assegurar, inter alia, igualdade de oportunidade para todos em seu acesso aos recursos básicos, educação, serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição eqüitativa de renda. Medidas efetivas devem ser tomadas para assegurar que as mulheres tenham um papel ativo no processo de desenvolvimento. Reformas econômicas e sociais apropriadas devem ser efetuadas com vistas à erradicação de todas as injustiças sociais. 2. Os Estados devem encorajar a participação popular em todas as esfera, como um fator importante no desenvolvimento e na plena realização de todos os direitos humanos (MAZZUOLI, 2008, p.780).

Assim, ao assegurar os direitos a igualdade de oportunidades no acesso aos

recursos, não necessariamente se faz menção à água, no entanto, todos os outros

direitos explicitamente elencados dependem de acesso a uma água em quantidade

e qualidade adequadas: saúde, alimentação, habitação, dentre os outros, para que o

indivíduo sujeito desses direitos possa desfrutar de uma vida digna.

2.1.7 A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, 1972

Em 1972, foi realizada em Estocolmo a “Conferência das Nações Unidas

sobre Meio Ambiente Humano”, cuja área de concentração era bem distinta das

diretrizes atuais, que propõem uma aliança entre o desenvolvimento e a preservação

ambiental, se atendo somente às questões relacionadas ao ser humano e ao meio

ambiente. Essa conferência possuiu como palavra-chave poluição e a discussão

girava em torno das condições alarmantes de alguns centros urbanos, centrando-se

em medidas de promoção da limpeza de rios, ar e mares, o que culminou na

“Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente”, da qual constavam 26 princípios

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de proteção ao meio ambiente, ressaltando a importância da ação estatal para a

eficácia desta preservação (SETTI et al, 2001, p.242).

2.1.8 Conferência de Mar del Plata, 1977

A Conferência sobre Água de Mar del Plata teve como resultado o Plano de

Ação de Mar del Plata, propondo soluções para os problemas emergentes

relacionados aos recursos hídricos. O Plano se constituía também de algumas

recomendações e resoluções que cobriam um amplo rol de assuntos. Assim, as

recomendações incluíam temas como o acesso, o uso e a eficiência dos recursos

hídricos; meio ambiente, saúde, e controle de poluentes; políticas públicas,

planejamento e gerenciamento; e cooperação regional e internacional. Já as

resoluções também versavam sobre o acesso, mas, além disso, ainda abordaram

temas como suprimento de água nas comunidades; uso agrícola da água; pesquisa

e desenvolvimento; comitês de bacias; cooperação internacional; e, por fim, políticas

hídricas nos territórios ocupados. O ponto alto da Conferência, decorrente do Plano

de Ação, foi a proclamação da “Década Internacional da Água Potável e do

Saneamento”, de 1981 a 1990, momento em que os governos assumem o

compromisso internacional de aprimorar substantivamente os setores de

saneamento básico e aqueles relacionados à água potável (SALMAN et

MCINERNEY, 2004, p.8).

Há, no documento resultante da Conferência de Mar del Plata em 1977, a

menção de um direito à água, que consistia no suprimento de água em quantidade e

qualidade suficiente para as necessidades básicas (SALMAN et MCINERNEY-

LANKFORD, 2004, p.5).

Segundo Salman e McInerney-Lankford (2004, p.8), o debate sobre o direito à

água começa a ser tratado a partir dessa conferência, principalmente no conteúdo

da Resolução II que continha o acesso à água para beber em quantidade e de

qualidade suficiente para suprir suas necessidades básicas, declarado como direito

de todos os povos, independentemente de seu grau de desenvolvimento e

condições sócio-econômicas. Esse documento também avançava no

reconhecimento universal da disponibilidade de água (e de seu desperdício) como

essenciais para a vida e para o pleno desenvolvimento do homem, tanto como

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indivíduo quanto como parte integrante da sociedade. Nesse sentido, a Resolução

clamava pela cooperação internacional através da mobilização de recursos humanos,

físicos e econômicos, para que a água seja acessível e distribuída de uma forma

justa entre as pessoas dentro de seus respectivos países.

No entanto, apesar de referir-se simplesmente a um “direito” e não a um

“direito humano”, a Conferência de Mar del Plata inovou ao discutir assuntos

claramente relacionados ao direito de acesso seguro à água potável. Dessa forma,

Mar del Plata inaugura uma série de conferências das Nações Unidas acerca do

tema dos recursos hídricos, que passaram a focar suas discussões no direito à água,

fornecendo subsídios suficientes para fomentar a discussão do direito humano à

água.

2.1.9 A Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1985 e o Relatório Brundtland, 1987

Em 1985, a Assembléia Geral da ONU delegou ao Programa das Nações

Unidas para o Meio Ambiente, PNUMA, a função de traçar metas para serem

atingidas no ano de 2000, através do estabelecimento da Comissão Mundial sobre

Meio Ambiente e Desenvolvimento, presidida pela Primeira-Ministra da Noruega.

Essa Comissão se encarregou de produzir o “Relatório Nosso Futuro Comum”,

também conhecido como Relatório Brundtland, publicado em 1987, apresentando ao

mundo a idéia de desenvolvimento sustentável, sendo esse: “o desenvolvimento que

atende às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das gerações

futuras atenderem às suas próprias necessidades” (SETTI et al, 2001, p.244).

2.1.10 As Conferências Preparatórias de Delft (1991) e Dublin (1992)

Em junho de 1991, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento,

PNUD, realizou o simpósio “Uma estratégia para a formação de capacitação no setor

de recursos hídricos”, na cidade de Delft, na Holanda, cujo resultado se ateve à

Declaração de Delft, de caráter recomendatório. Essa declaração, assim como seu

anexo, proclamava que as soluções para os problemas de cada país deveriam ser

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originadas dentro dos próprios países e previa a realização da Conferência

Internacional de Dublin e a Conferência do Rio, ambas em 1992 (SETTI et al, 2001,

p.246).

Em Dublin, na conferência promovida pela Organização Metereológica

Mundial, OMM, a preocupação maior se dirigiu à avaliação da disponibilidade e

qualidade da água doce e sua relação com a demanda presente e futura, a fim de

fornecer estimativas para as políticas nacionais. Dessa Conferência surgiu então a

afirmação da água como recurso econômico e da participação de todos seus

usuários em sua preservação (SETTI et al, 2001, p.247).

2.1.11 A Conferência do Rio – ECO 92 e a Agenda 21

No mesmo ano, conforme fora proposto pelo Brasil na XLIII Sessão da

Assembléia Geral da ONU, realizou-se a Conferência do Rio, também conhecida

como ECO 92, da qual resultaram dois importantes documentos, além de tratados e

acordos internacionais: a Carta da Terra, contendo princípios relativos à proteção do

meio ambiente; e a Agenda 21, documento que enumera metas, objetivos, temas,

projetos e planos para o longo prazo a respeito de cada tema tratado na conferência

(SETTI et al, 2001, p.247-252). O ponto principal relacionado à água, abordado pela

Agenda 21, era a concordância dos governos:

O manejo integrado dos recursos hídricos baseia-se na percepção da água como parte integrante do ecossistema, um recurso natural e bem econômico e social cujas quantidade e qualidade determinam a natureza de sua utilização. Com esse objetivo, os recursos hídricos devem ser protegidos, levando-se em conta o funcionamento dos ecossistemas aquáticos e a perenidade do recurso, a fim de satisfazer e conciliar as necessidades de água nas atividades humanas. Ao desenvolver e usar os recursos hídricos, deve-se dar prioridade à satisfação das necessidades básicas e à proteção dos ecossistemas. No entretanto, uma vez satisfeitas essas necessidades, os usuários da água devem pagar tarifas adequadas (Agenda 21, artigo 18.8)24.

24 Na Agenda 21, o Capítulo 18, “Proteção da Qualidade e do Abastecimento dos Recursos Hídricos: Aplicação de Critérios Integrados no Desenvolvimento, Manejo e Uso dos Recursos Hídricos” é dedicado exclusivamente à água doce. Disponível em: http://www.bdt.fat.org.br/publicacoes/politica/agenda21/cap18, acessado em 26/10/2004.

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A Agenda 21 hoje é uma grande referência em termos de direito ambiental

internacional, tanto por inaugurar princípios inerentes à proteção dos ecossistemas,

quanto por estabelecer metas e buscar medidas de solução dos problemas

ambientais anunciados à época e agravados com o passar do tempo.

2.1.12 Declaração do Milênio e Declaração Política de Joanesburgo, 2002

Ambos os documentos vislumbram a possibilidade de se unir as aspirações

por um meio ambiente saudável com os objetivos relativos ao desenvolvimento

humano, no intuito de impulsionar os esforços globais para eliminação da pobreza.

Todavia, os esforços dos Fóruns Mundiais da Água (Haia, Bonn e Quioto) e do

Fórum Mundial de Desenvolvimento Sustentável no reconhecimento de um direito

humano de acesso à água potável foram falhos e insuficientes (SCANLON; CASSAR;

NEMES, 2004, p.7). Porém na “Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento

Sustentável: Das nossas origens ao futuro”, houve a tentativa de consolidar esse

direito, na medida em que reconhece a indivisibilidade da dignidade humana, mas

estabelece em seu artigo 18:

18. Acolhemos o foco da Cúpula de Joanesburgo na indivisibilidade da dignidade humana e estamos resolvidos, por meio de decisões sobre metas, prazos e parcerias, a ampliar rapidamente o acesso às necessidades básicas como a água potável, o saneamento, habitação adequada, energia, assistência médica, segurança alimentar e a proteção da biodiversidade. […] (Grifo nosso de: ONU, 2002, Artigo 18).25

O III Fórum Mundial da Água ocorreu em Quioto, em março de 2003,

organizado pela ONU. A publicação da primeira edição do Relatório do Fórum

Mundial de Desenvolvimento Hídrico, no Terceiro Fórum Mundial sobre Água, em

Quioto, no Japão, em março desse ano, foi o ponto principal das atividades de

informação pública desse evento. Nesse fórum, representantes de todos os países

discutiram sobre diversos itens, dando destaque ao debate das questões relativas

25 Disponível em: http://www.mma.gov.br/estruturas/ai/_arquivos/decpol.doc, acesso em 10/01/2008.

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ao abastecimento, saneamento e sobre o acesso das populações a uma água de

qualidade26.

De um modo geral, a realização da Conferência Rio+10, em Joanesburgo,

não surtiu grandes efeitos. A discussão da Agenda 21 concluiu que não se obteve

grande parte dos objetivos propostos e que ainda há muito a ser feito. A delegação

brasileira expôs um painel sobre a cobrança de royalties pelo uso da água, sendo

este o ponto de destaque da conferência no tocante aos recursos hídricos. A reunião

produziu uma grande comoção na população mundial, a respeito da posição

adotada pela política externa norte-americana, contrária ao Protocolo de Quioto –

que trata da redução da emissão de gás carbônico. As manifestações populares

anti-Bush são o auge da conferência, não restando muito espaço na mídia para a

discussão de outras questões.

2.1.13 O Ano Internacional da Água Potável, 2003

A Resolução 55/196 da Assembléia Geral das Nações Unidas proclamava o

ano de 2003 como o Ano Internacional da Água Potável. A resolução, adotada em

20 de dezembro de 2000, colocada pelo Governo do Tadjiquistão e apoiada por

outros 148 países, encorajou os governos, o sistema da ONU e todos os outros

atores a tirarem vantagem desse ano para aumentar a importância do

gerenciamento, proteção e uso racional da água potável, conclamando governos,

organizações internacionais e não-governamentais, e o setor privado a realizarem

doações voluntárias e quaisquer outras formas de suporte ao Ano (UNESCO, 2003a).

O Ano Internacional da Água Potável criou uma oportunidade para acelerar a

implementação dos princípios de gerenciamento integrado de recursos hídricos. O

Ano estabeleceu uma plataforma para a promoção de atividades já existentes e para

o fomento de novas iniciativas direcionadas aos recursos hídricos nos níveis

nacional, regional e internacional. Era esperado que o Ano Internacional da Água

Potável fosse capaz de implementar acordos realizados no Fórum Mundial de

Desenvolvimento Sustentável, em setembro de 2002, em Joanesburgo, conforme

26 UNESCO – United Nations Scientifical, Educational and Cultural Organization. Site do Ano Internacional da Água. Disponível em: http://www.wateryear2003.org, acesso em 20/08/2003.

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mencionado, produzindo um impacto para além do ano de 2003. Apesar da

realização de inúmeras conferências e fóruns, pouco avanço foi obtido no sentido de

se estabelecer um impacto maior para a promoção da conservação dos recursos

hídricos. Porém, o assunto ainda permanece um ponto de extrema relevância na

agenda das Nações Unidas.

2.1.14 O Comentário Geral sobre Direito à Água

O Comentário Geral sobre Direito à Água, adotado pela Convenção sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em novembro de 2002, é um marco

histórico para os direitos humanos. Pela primeira vez a água é reconhecida

explicitamente como direito humano fundamental e os 145 países que ratificaram

essa convenção internacional estão agora compelidos a assegurar, gradualmente, o

acesso irrestrito e eqüitativo de todos à água potável, de boa qualidade e sem

discriminação.27

Esse documento afirma que “o direito humano de acesso à água resguarda a

todos o acesso a uma água de boa qualidade, a um preço razoável, de fácil acesso

físico, nas quantidades necessárias e em condições aceitáveis para o uso doméstico

e pessoal” (ECOSOC, 2002), além de requerer dos governos a adoção de

estratégias e planos de ação nacionais, que permitirão “o avanço rápido e eficaz

para a garantia completa desse direito humano”. Estas estratégias devem:

ser baseadas nas leis e nos princípios de direitos humanos;

cobrir todos os aspectos do direito à água e às obrigações correspondentes

aos países;

definir objetivos claros;

estabelecer metas ou objetivos a serem alcançados e o tempo necessário

para isto; e

27 Dentro do Secretariado da ONU, a Comissão de Desenvolvimento Sustentável é o maior responsável pelas questões relativas à água potável, de acordo com o acompanhamento do cumprimento da Agenda 21. Através do seu Setor de Gerenciamento da Água (Water Management Branch), o Departamento de Questões Econômicas e Sociais (DESA), provê estudos apropriados para o gerenciamento de recursos naturais e serviços de aconselhamento político, em nível nacional e regional, em questões de gerenciamento integrado da água. (Maiores informações: http://www.un.org/esa/sustdev/water.htm)

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formular políticas e indicadores adequados.

Geralmente, as obrigações governamentais a respeito do direito à água

potável de boa qualidade dentro da Legislação de Direitos Humanos recai

amplamente sobre os princípios de respeito, proteção e cumprimento.

A obrigação do respeito ao direito requer que as partes da Convenção não

sigam nenhuma conduta que interfira no desfrute do direito, tais como práticas de

negação de acesso igualitário à água potável, ou mesmo de poluição das águas

através de dejetos de empresas estatais. As partes são obrigadas a proteger os

direitos humanos impedindo que terceiros interfiram, de qualquer forma, na fruição

do direito à água potável.

A obrigação de cumprimento requer das partes a adoção de medidas

necessárias para a realização completa do direito à água potável.

Esta Convenção Geral é importante porque fornece à sociedade civil um

poderoso instrumento porque força os governos a uma tomada de posição frente à

garantia de acesso eqüitativo à água. Fornece também uma estrutura que promove

assistência aos governos no estabelecimento de políticas e estratégias eficazes que

rendem benefícios reais para a saúde e a sociedade.

Um aspecto importante do valor desta Declaração, está na atenção e nas

atividades dirigidas àqueles mais afetados, como os pobres e vulneráveis, mulheres,

crianças e idosos.

Além disso, busca-se evitar a escassez e todo o tormento trazido pelos

conflitos dela derivados, minimizando seus efeitos através dos mecanismos de

cooperação internacional. Observa-se nesses fóruns a manifestação dessa vontade,

mesmo que de forma tímida e pouco explícita. Nesse sentido, cabe ressaltar uma

abordagem sobre os estudos de Segurança Ambiental, na medida de suscitar a

possibilidade da ocorrência desses conflitos acerca da escassez de recursos

naturais, sobretudo da água, em um momento que a mídia internacional noticia a

proximidade da ocorrência de conflitos pelo ‘ouro azul’.

Essa discussão impacta a positivação do acesso à água como direito humano

pois é essa comoção internacional e esse alarmismo acerca da escassez dos

recursos hídricos que promovem uma maior reação da sociedade civil internacional,

e uma conseqüente pressão dessa sociedade civil nos governos para que essa

positivação surja como compromisso universal e inconteste.

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2.2 A escassez, a cooperação e o conflito

Logo nota-se, conforme as exposições anteriores, que a questão da

disponibilidade e da escassez dos recursos hídricos pode ser de tal forma grave a

ocasionar conflitos. No entanto, o ramo de “segurança ambiental”28, há uma acirrada

discussão sobre a ocorrência e a real motivação desses conflitos, conforme

poderemos perceber a seguir. Enquanto uma das abordagens se refere à escassez

dos recursos naturais como questão meramente estrutural e até fantasiosa, outra

corrente se preocupa com a escalada e o agravamento dos conflitos decorrentes

dessa escassez.

Muitas vezes, a saída para essas situações é a cooperação, relembrando o

que diz Rezek ao se referir ao tratamento de questões ambientais pelo Estado,

afirmando que este, normalmente, “subordina-se a normas convencionais de

elaboração recente e quase sempre multilateral, a propósito do meio ambiente”,

justificando, sobretudo, a interdependência do sistema de proteção dos recursos

naturais, visto que muitos dos efeitos são gerados para além das fronteiras

geográficas de cada país. Rezek também ressalta a importância dessas normas

convencionais para a proteção dos chamados direitos de terceira geração, como o

“direito a um meio ambiente saudável” (REZEK, 2000, p.235-237). Porém, deve-se

ressalvar que nem sempre as decisões referentes ao meio ambiente são tomadas de

forma multilateral, porque (também sem tanta freqüência) essas decisões, mesmo

multilaterais, nem sempre se baseiam na cooperação pois, muitas vezes, os Estados

agem dentro do sistema internacional de acordo com seus próprios interesses, e não

necessariamente visando o “bem comum”.

O papel desempenhado hoje pelos recursos hídricos em seus usuários é

determinado pela sua limitação e disponibilidade: tendo em vista que não são

recursos igualmente distribuídos e que os usuários competem de forma desigual,

dados os padrões de uso divergentes entre indústria, municípios, indivíduos e

agricultura (principais usuários), formou-se um entendimento tanto nacional quanto

28 Segurança ambiental é termo usado por estudiosos da área de segurança internacional ao tratarem de conflitos acerca da escassez de recursos naturais. Assim, Marc Levy e Thomas Homer-Dixon são uns dos primeiros expoentes nessa área.

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internacional de atribuir ao governo o policiamento desse uso e a garantia do acesso

àqueles em desvantagem, bem como evitar a sobrecarga do sistema hídrico.

No cenário internacional, conforme se tem observado, quando o conflito

abrange mais de um país, muitas vezes se recorre à guerra como meio de solução.

Quando isso ocorre, além de não se resolver o problema, há um condicionamento da

utilização da água, contrariando o princípio 24 da Conferência da ONU de 1992, que

entende a guerra como contrária ao desenvolvimento sustentável, um dos assuntos

mais preocupantes para o cenário internacional no século XXI.

Princípio 24 – A guerra é, por definição, contrária ao desenvolvimento sustentável. Os Estados devem, por conseguinte, respeitar o direito internacional aplicável à proteção do meio-ambiente em tempos de conflito armado, e cooperar para seu desenvolvimento progressivo, quando necessário (ONU, 1992).

Os problemas atuais referentes à água dizem respeito tanto à quantidade

quanto à qualidade da água oferecida. Mas a degradação que acarreta esses

problemas não é resultado da falta de leis vigentes e sim da correspondência dessas

legislações com as necessidades e interesses do público ao qual se dirigem. Sendo

problema tanto de âmbito nacional quanto de âmbito internacional, a ausência de

estrutura administrativa necessária para responder aos comandos normativos, as

normas relativas à utilização da água deixam de produzir efeitos. Sendo assim, estas

normas são desrespeitadas e não alcançam os resultados pretendidos, fato que

chega a gerar insegurança jurídica. Gradualmente, os direitos difusos passam a ser

respeitados, verificando-se a tendência, ou ao menos a necessidade, de um poder

de polícia mais ativo, para que correspondam às expectativas geradas, evitando

danos.

Mas a relação entre homem e água antecede o direito. É elemento intrínseco

de sua sobrevivência e, no pensamento humano, há a noção da água como

presente de Deus, mesmo naquelas regiões onde é escassa e não há políticas

sociais eficazes que ensinem o uso moderado desse recurso. O mais grave é a piora

dessa situação pelas normas inexistentes ou ineficazes produzidas por essas

políticas, acarretando poluição, escassez e doenças que contribuem para a

continuidade do desrespeito às regras, gerando sentimento de impunidade e real

empobrecimento do país e das regiões. A água que falta ao homem para beber o

atinge em sua necessidade mais básica – o direito à vida!

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A cooperação continua sendo chave-mestra para a solução dos conflitos tanto

em nível nacional quanto no nível internacional, prevalecendo o entendimento de

que a cooperação entre usuários solucionaria o problema de modo menos

traumático e mais eficaz – sendo definidos como usuários: no nível interno, a

agricultura, os indivíduos, as municipalidades e as indústrias; e no nível internacional

os atores envolvidos (essencialmente países que compartilham da mesma fonte de

água ou da mesma bacia hidrográfica).

A questão da escassez de água29 vem preocupando populações e governos

de inúmeros países. O uso exaustivo da água pode levar várias partes do mundo a

uma grave crise de abastecimento. Algumas nações já vêm sofrendo com a

escassez de água ao longo de sua história, como é o caso de inúmeras nações da

África e do Oriente Médio.

Segundo o relatório “O Estado da População Mundial”, do Fundo das Nações

Unidas para a População, se as devidas precauções não forem tomadas, em 2025,

3 bilhões de pessoas e mais de 48 países passarão sede no mundo.

A questão da água passa a ser entendida como estratégica quando são

constatadas as seguintes características (UNESCO, 2003):

o grau da escassez;

a quantia de água que é compartilhada por mais de um país ou região;

o poder relativo dos Estados componentes da bacia; e

a facilidade de acesso a fontes alternativas de recursos hídricos.

Assim, para procedermos uma análise mais aprofundada sobre os estudos

produzidos na área de segurança ambiental e segurança internacional, devemos

assumir que alguns estudiosos entendem que uma ameaça ao meio ambiente

somente pode ser considerada uma ameaça à segurança de um país quando há

uma conexão muito forte entre aquela ameaça e algum interesse nacional vital. No

caso da questão dos recursos hídricos, essa conexão pode ser entendida como o

bem-estar geral da população, a economia nacional, a produção de grãos, questões

sanitárias e de saúde, produção de energia e criação de rebanhos, entre muitas

outras. Sobre a ocorrência desses conflitos, alguns estudiosos afirmam que os

29 Escassez de água (Water stress) pode ser definido como a condição de insuficiência de qualidade ou quantidade satisfatória de água para suprir as necessidades humanas e ambientais. (Fitting the pieces together, UNESCO, 2003.)

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conflitos pela disputa da água datam da época das antigas civilizações e, ainda, que

apresentam um ressurgimento nos dias atuais.

Há também alguns especialistas atribuem às mudanças ambientais a

ocorrência de alterações na balança de poder entre Estados, seja global ou

regionalmente, produzindo instabilidades que podem até levar à guerra.

Procedermos uma análise da área de segurança ambiental, significa ressaltar

os estudos produzidos por Marc A. Levy sobre os problemas ambientais e a

segurança dos Estados Unidos da América, em seu artigo “Is the environment a

national security issue?” (1995), onde apresenta a preocupação da população global

com as questões ambientais e as suas conseqüências para a segurança desde o fim

da década de 1980.

Em sua discussão, Levy assume existirem três formas distintas de conexão

entre os dois elementos: a vertente existencial, a vertente física e a vertente política.

Porém, o comum entre elas é que, de alguma forma, suas interpretações abordam

ligações entre processos de degradação do meio ambiente e deterioração de

posições de segurança dos países (LEVY, 1995, p.35-36). Assim, Levy apresenta a

visão existencial – entendendo que certos aspectos do meio ambiente global estão

tão intimamente conectados a aspectos da segurança nacional que constituem parte

dos interesses estatais securitários. Desta forma: “quando esses valores ambientais

são ameaçados, essa segurança também é, ipso facto, ameaçada”30 (LEVY, 1995,

p.36). Ademais, para Levy essa corrente é excessivamente retórica e tal afirmação é

feita a fim de chamar atenção para a causa ambiental – dado o contexto da época

em que foi produzida. Levy ainda aproveita para contrariar essa corrente, admitindo

que as questões ambientais são, muitas vezes, um assunto de low politics e não de

high politics31.

Ao proceder à apresentação da vertente física, Levy analisa as proposições

desta teoria que trazem fortes argumentos a serem considerados, mas, ao mesmo

tempo, essas ponderações são de soluções altamente complicadas e imprecisas

pela complexidade dos assuntos abordados. Logo, uma combinação entre

30 Tradução livre de: “When these environmental values are threatened, our security is threatened, ipso facto” (LEVY, 1994, p.36).

31 High politics é termo usado para se referir a assuntos de segurança nacional de um Estado, como sua soberania. Low politics, por sua vez, é utilizado para designar assuntos menos impactantes na sobrevivência e autonomia de um Estado, onde soluções simples poderiam ser aplicadas para resolvê-las.

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prevenção, adaptação e lei da natureza desemboca em uma conclusão de que a

abordagem correta das mudanças no meio ambiente global e a busca pela reversão

do processo é algo que só pode ocorrer mediante políticas de custo altamente

proibitivo que combinem contingência com co-existência.

Finalmente, o autor se refere à vertente política que analisa a ligação indireta

entre os dois elementos: segurança e meio ambiente. Desta forma, enquanto Levy

procura abordar questões como refugiados ambientais e guerras por recursos

(resource wars) constrói o argumento que é tanto a ameaça menos perigosa à

segurança de um país quanto o desafio intelectual mais pungente às discussões no

campo de estudos de segurança, pois, na academia, tem-se buscado entender a

emergência de conflitos regionais e a ligação destes conflitos com a degradação

ambiental, elemento potencializador, como veremos.

Assim, após apresentar essas vertentes, o teórico americano Marc Levy

busca definir o que acredita ser a ligação existente entre os dois elementos: os

termos ‘segurança’ e ‘meio ambiente’, demasiadamente amplos e que podem

adquirir uma variedade de conteúdos. Portanto, o primeiro passo de Marc Levy é

justamente buscar uma definição explícita para os termos, no intuito de restringir seu

significado. Após algumas ponderações a respeito dos conceitos existentes, o autor

apresenta a dificuldade de se obter conceitos relativos aos termos, mas em seguida

propõe uma definição enfática de segurança como a “proteção dos valores nacionais

contra ameaças estrangeiras”, enquanto define meio ambiente como a “conexão

entre sistemas físicos e biológicos”32 (LEVY, 1995, p.37).

A definição de meio ambiente, tida por Marc Levy como a mais adequada, é

atribuída a Stephan Libiszewski (LEVY, 1995, p.38-39) que produz sua

argumentação no sentido de restringir o uso do termo para os fenômenos

relacionados aos ciclos naturais e ao equilíbrio ambiental. 33 Do mesmo modo,

entende Libiszewski que não se deve considerar como ambientais aqueles recursos

naturais caracterizados por um estoque fixo, regularmente explorados ao longo do 32 Tradução livre extraída do trecho: “[…] I propose a definition of “environment” that emphasizes the connection to physical and biological systems, and a definition of “security” that emphasizes protection of national values against foreign threats.” (LEVY, 1995, p.37)

33 Tradução livre extraída do trecho: “I find Stephan Libiszewski’s definition most useful. He argues that we ought restrict our use of the term “environment” to phenomena in which there are ecological feedbacks and equilibria. Natural resources characterized by a fixed stock steadily depleted over time, or systems in which the feedbacks are strictly economic and not ecological, ought not to be considered environmental” (LEVY, 1995, p.38-39).

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tempo, ou ainda sistemas cujos ciclos são estritamente econômicos, e não

ecológicos.

Então, Marc Levy usa o conceito “meio ambiente” para “questões que

envolvam sistemas biológicos ou físicos caracterizados tanto por ciclos ecológicos

significantes, quanto por sua importância na manutenção da vida humana”34. Ao

levar em conta as disposições feitas por outros autores a respeito da definição do

termo “segurança”, e após ter optado por analisar a segurança apenas em nível

nacional, Levy afirma produzir seu artigo de modo a adotar um meio termo, onde

entende que “a ameaça à segurança nacional é uma situação na qual alguns de

seus valores de grande importância são drasticamente degradados por uma ação

externa” (LEVY, 1995, p.40)35. E essa ação externa, por sua vez, não significa o não

envolvimento da nação, mas sim “ações nas quais a participação de estrangeiros é

central, mas a ação doméstica pode ou não estar ameaçando os valores nacionais”

(LEVY, 1995, p.41)36.

Levy, no entanto, finda por concluir que a afirmação do link existente entre

problemas ambientais e segurança é correta, mas de pouca importância. Nesse

sentido, já em 1995, Marc Levy chega a prever uma tendência ao desaparecimento

desse tipo de afirmação no cenário internacional. No entanto, presenciamos

atualmente o acirramento destas disputas e a crescente preocupação da

humanidade com assuntos pertinentes à esfera ambiental.

Por sua vez, o teórico canadense Thomas F. Homer-Dixon define segurança

mais amplamente que Levy, incluindo temas como o bem-estar físico, econômico e

social dos seres humanos. Mesmo sendo criticado por Levy, Homer-Dixon é um dos

autores que mais tem contribuído para as discussões na área de segurança

ambiental.

Prontamente, Dixon afirma em seus estudos que disputas pelo meio ambiente

podem ser a causa de conflitos os mais diversos, como guerra, terrorismo ou mesmo

34 Tradução livre extraída de: “In this essay I use the term “environment” for issues involving biological or physical systems characterized either by significant ecological feedbacks or by their importance to the sustenance of human life” (LEVY, 1995, p.39).

35 Tradução livre de: “A threat to national security is a situation in which some of the nation’s most important values are drastically degraded by external action” (LEVY, 1995, p.40).

36 Tradução livre de: “‘External Action’ does not mean action in which the nation has no role whatsoever. It refers to action in which the participation of foreigners is central, whether or not domestic action is also harming national values” (LEVY, 1995, p.41).

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disputas diplomáticas e comerciais, mas produz sua análise direcionada aos

conflitos nacionais ou internacionais agudos, envolvendo probabilidades

substanciais de violência.

Homer-Dixon afirma também que “Estados podem disputar quando há

diminutos suprimentos de água e/ou efeitos da poluição a montante37” (HOMER-

DIXON, 1991, p.77). Pois, em países em desenvolvimento, qualquer queda da

produção de alimentos pode, muitas vezes, levar a conflitos internos. Dessa forma,

entende-se a vulnerabilidade dos países em relação à produtividade da terra e

também a relevância da água para a paz interna de um país.

Ademais, no entender de Levy, os países mais pobres estão mais sujeitos a

mudanças ambientais do que os ricos, sendo, portanto, os países pobres mais

propensos à insurgência de conflitos. Nesses países, mudanças em sistemas

aquáticos, terrestres ou mesmo aéreos podem produzir, sozinhos ou combinados,

quatro efeitos sociais principais e inter-relacionados: produção agrícola reduzida;

declínio econômico; deslocamento populacional e quebra de relações sociais

legitimadas e regulares. Segundo Dixon, esses “efeitos sociais” podem causar

variados tipos específicos de conflitos agudos, incluindo disputas sobre recursos

escassos entre países, rixas entre grupos étnicos, guerra civil, ou mesmo provocar

insurgências, cada um com repercussões que podem comprometer interesses de

segurança dos países desenvolvidos (HOMER-DIXON, 1991, p.77-79).

Dixon apresenta em seus estudos a razão pela qual a degradação ambiental

pode ser responsável por conflitos violentos, delineando uma estratégia de pesquisa

para entender essa ligação entre conflito e ameaça à integridade do ambiente. O

autor também propõe em seu livro Environment, Scarcity, and Violence (Dixon, 1999,

p.4-5), cinco tipos de conflitos violentos que podem surgir em decorrência de

escassez de recursos ambientais, a saber:

Disputas originadas por degradações ambientais locais causadas, por

exemplo, pela emissão de poluentes pelas indústrias, pela construção de

represas, etc.;

Rixas étnicas derivadas de migração populacional ou diferenças sociais

aprofundadas por causa da escassez ambiental;

37 Tradução livre de: “Countries may fight over dwindling supplies of water and the effects of upstream pollution” (HOMER-DIXON, 1991, p.77).

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Guerra civil (incluindo insurgências, corrupção e golpes de Estado)

causada por escassez ambiental que afetam a produtividade econômica e

também a qualidade de vida das pessoas, o comportamento dos grupos de

elite e a habilidade dos Estados em atender essas demandas oscilantes;

Guerras entre Estados, induzidas pela escassez de recursos como, por

exemplo, a água;

Conflitos norte-sul (i.e. conflitos envolvendo países desenvolvidos e países

em desenvolvimento).

Ao traçar estes “perfis”, o autor deixa claro que os conflitos norte-sul seriam

uma última instância dos conflitos ambientais, não sendo facilmente identificados.

Com o crescimento populacional e o progresso da degradação ambiental, os

formuladores de políticas públicas terão uma capacidade cada vez mais reduzida de

intervir e impedir que esses danos ambientais produzam impactos nas relações

sociais, contribuindo então para o conflito.

Ao contrário de Levy, Dixon, em seu texto de 1991, já previa a permanência

de assuntos relacionados ao meio ambiente na agenda internacional, até afirmando

a possibilidade de uma preocupação cada vez mais crescente com os problemas

ecológicos na agenda científica, pública e política.

Thomas Homer-Dixon inaugura um método investigativo para o entendimento

dos conflitos relacionados aos problemas ambientais, afirmando, para isso, ser

necessário responder a duas questões: COMO e ONDE, isto é, deve-se entender

primeiro COMO as mudanças ambientais levam ao conflito e, posteriormente, ONDE

é provável a ocorrência de tal conflito.

Então, o autor propõe a relação causal – Efeitos ambientais Efeitos

Sociais Conflito, conforme exposta pela Figura 1, a seguir.

Essa figura sugere que o efeito total da atividade humana no meio ambiente

de uma região em particular, é função de duas variáveis principais:

o produto da população total na região e a atividade física per capita; e

a vulnerabilidade do ecossistema na região em relação àquelas atividades

específicas.

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Figura 1: Mudanças ambientais e conflito agudo Fonte: Homer-Dixon, 1991, p.86.

A atividade per capita é, por sua vez, uma função de recursos físicos

disponíveis (incluindo recursos não-renováveis como os minerais e recursos

renováveis como água, florestas e terra fértil). A figura também mostra que os efeitos

ambientais podem causar efeitos sociais que, por sua vez, podem levar ao conflito.

No caso da água, isso pode ser entendido, por exemplo, da seguinte forma: o

crescimento populacional aumenta a demanda por água em uma determinada região.

Se essa demanda for de tal forma aumentada a ponto de os recursos hídricos

disponíveis na região não serem suficientes para suprí-la, isso acarretará uma

migração dessa população para uma outra região em que o recurso seja mais

abundante. No entanto, essa outra região sofre os impactos ambientais desta

migração e, ainda, no caso de essa segunda região já ser habitada e dependendo

da vulnerabilidade do ecossistema desta outra região, ocorrem efeitos sociais, que

podem gerar conflito.

A variável “instituições, relações sociais, preferências e crenças”, influi no

modo como os recursos são usados pela população, gerando a atividade per capita,

restringida pela disponibilidade dos recursos. Esta atividade, por sua vez, produz os

efeitos ambientais que, dependendo da vulnerabilidade do ecossistema, acarretam

os efeitos sociais que geram adaptações na variável “instituições, relações sociais,

preferências e crenças” e quando os efeitos sociais são acirrados, pode ocorrer o

conflito.

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O modelo proposto por Dixon, no entanto, falha ao acrescentar a variável

“instituições, relações sociais, preferências e crenças” como um só conjunto, pois

quando desdobradas, influem de maneira diversa no conflito, tanto no sentido de

prevení-lo como de acirrá-lo.

Parece-nos, dessa forma, que a água desempenha um papel importante na

segurança internacional pois a questão contribui imensamente para o acirramento

das disputas nos locais onde a água é escassa. Por exemplo, na região do Oriente

Médio, a questão dos recursos hídricos se insere de forma decisiva nas negociações

de paz, sendo tida pelos Estados como uma questão de segurança nacional, um

ponto crítico no conflito. No entanto, o conflito existiria mesmo sem a presença da

questão hídrica, o que denota o peso de outras questões intervenientes como

cultura, religião e território, inseridas de forma incisiva, pois, muitas vezes, trata-se

de um conflito complexo, onde as questões étnicas e territoriais são de grande peso

– ressaltando-se, entretanto, que a água, assim como contribui para o acirramento

do conflito, pode também contribuir para a aproximação de sua solução, pois os

Estados podem se dispor a negociar esta questão, através de uma gestão

compartilhada, por exemplo, tornando mais fácil o entendimento entre eles. No

entanto, esse é um ponto um tanto quanto delicado, pois as outras dimensões

envolvidas no conflito (étnico-culturais, econômicas, de segurança propriamente dita,

etc.) têm peso nas questões ambientais, estando, assim, intimamente ligadas.

A questão da gestão dos recursos hídricos é muito complexa e diz respeito à

redistribuição de um recurso natural e deve levar em conta suas características

geográficas, físicas, econômicas, ambientais e sociais. Desse modo, a elaboração

de tal gerenciamento pede a análise e estabelecimento de prioridades de diferentes

usos e usuários. Ainda, como grande parte das águas são transfronteiriças, essa

competição de prioridades gera quase sempre um conflito de interesses que, se

levado às últimas conseqüências, pode se tornar uma guerra militar. Assim, a

resolução dessa questão diz respeito não só à geopolítica local, mas também à

negociação da paz, porque a escassez de água afeta desde indivíduos até o

desenvolvimento econômico-financeiro de uma região.

A conscientização de que somente através do esforço conjunto das nações

envolvidas será possível resolver as questões políticas, sociais, financeiras,

econômicas, ambientais e técnicas (tecnológicas) do problema da escassez da água

é um grande desafio às nações no intuito de preservar suas populações.

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Para haverem acordos proveitosos nesse âmbito, os países envolvidos

devem entender que a cooperação leva a uma vantagem mútua e que só assim

poderão atingir um acordo equilibrado e alcançar a paz regional.

Uma questão enfrentada por vários países é como manter o equilíbrio

econômico sem prejudicar a qualidade e a integridade física do meio ambiente.

Outra questão séria é o dinheiro: deve haver um elevado aporte de investimento

estrangeiro para levar a cabo projetos de energia, irrigação, meio ambiente e

represas. Para isso, é imperioso que os países em desenvolvimento, principalmente

aqueles com escassez do recurso, se disponham a negociar com as grandes

potências mundiais, a fim de promover uma pressão conjunta para o financiamento

dos projetos por elas.

No intuito de se prevenir uma guerra num futuro próximo, uma quotização

justa desse recurso deve ser determinada, levando-se em conta as variáveis

necessárias como população, potencial de desenvolvimento agrícola, assim como

deve-se encorajar os Estados na prática de métodos mais eficientes de irrigação e

de geração de energia, para conter o desperdício de água.

O grande desafio das nações que enfrentam esse constrangimento

atualmente é a promoção de atividades de gestão compartilhada desses recursos, a

fim de resguardar a segurança hídrica e alimentar de suas populações, assim como

o próprio desenvolvimento de cada nação, garantindo, desta forma, o acesso de

todos a uma água de qualidade e quantidade adequadas e uma maior

sustentabilidade do meio ambiente.

Após analisarmos as implicações da escassez de água na segurança

nacional dos países, cabe também analisar o que até hoje tem sido uma alternativa

ao conflito: a cooperação em cenários de compartilhamento do recurso.

Assim, órgãos como a UNESCO e a União Européia, têm tido sucesso em

algumas iniciativas de cooperação entre países que compartilham da mesma fonte

hídrica.

Os líderes mundiais reunidos em Joanesburgo no ano de 2002 resolveram

tomar medidas para reverter o panorama mundial de acesso à água e ao

saneamento até o ano de 2015. Isto significa que estes serviços essenciais deverão

ser providenciados para cerca de 200 a 400 mil pessoas por dia de 2002 até o ano

de 2015. A União Européia, apoiando veementemente esse projeto, aproveitou a

oportunidade para a criação da "EU Water Initiative". Tendo em vista que os

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objetivos almejados são ambiciosos e buscam resultados em escala global, é mister

o desenvolvimento de conhecimento científico inovador para aproximar as políticas

dos governos em direção a estas metas, através da mobilização dos parceiros e

governos envolvidos, de agências de água, de pessoas da sociedade civil que

também fazem uso da água, além das empresas privadas (EUROPEAN

COMMISSION, 2003).

A União Européia tem trabalhado nestas questões-chaves relacionadas às

políticas de desenvolvimento sustentável em se tratando da água, não somente a

partir de suas regiões fronteiriças, mas também em parceria com grupos de

pesquisa, ONGs, governos, ou seja, todos os atores envolvidos, em todos os países-

membros. Um grande número de projetos de cooperação irá propiciar a criação

desses canais de comunicação, que poderiam gerar recursos financeiros

necessários para solucionar o problema dos recursos hídricos. Através de iniciativas

como esta, pode-se perceber claramente que o diálogo e as ações conjuntas entre

as mais diversas regiões do globo têm sido a única forma de se alcançar tais metas.

Com o aumento do bem-estar mundial, o consumo global de água também

aumentou, dobrando a cada 20 anos – mais do que duas vezes o crescimento da

população global. Atualmente, o consumo de água diário de uma pessoa em um

país em desenvolvimento é de aproximadamente 20 litros, enquanto o consumo de

água de uma outra pessoa com acesso à água encanada chega a 200 litros por dia

(EUROPEAN COMMISSION, 2003).

Esta tendência persiste e, até o ano de 2025, a demanda por água potável irá

aumentar em cerca de 56%, mais do que a quantidade disponível atualmente. Além

disso, mais de 70% da atual demanda de água advêm da agricultura, o restante é

demandado pela área urbana, uso industrial, e consumo em geral (EUROPEAN

COMMISSION, 2003).

Em resposta ao aumento desta demanda, há um aumento na quantidade de

represas, através da exploração de um maior número de rios, especialmente para

resolver as necessidades dos agricultores, cujas atividades têm sido incrementadas

nos últimos 50 anos, juntamente com o aumento da urbanização e do crescimento

demográfico. As mudanças globais ocorrem em função do desflorestamento das

regiões montanhosas (onde as nascentes dos rios estão localizadas), o derretimento

do gelo glacial, as modificações no regime de chuvas, dentre outros fatores, podem

provocar uma mudança no fornecimento de água potável para os homens, fazendo

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com que seja fundamental a adoção de políticas para a conservação desses

recursos hídricos, na atualidade, para evitar conseqüências drásticas em um futuro

próximo.

O Parlamento Europeu criou inúmeras diretrizes para a proteção da água

tanto costeira quanto continental, buscando contribuir para a provisão de recursos

hídricos levando em consideração a importância de se fazer um uso consciente

desta água, para impedir o esgotamento deste recurso tão importante para a vida

(EUROPEAN COMMISSION, 2003).

O Conselho de Ministros da União Européia, anunciou na quarta reunião

preparatória para o Fórum Internacional de Desenvolvimento Sustentável (WSSD),

em Bali, suas intenções de trabalhar para a ajudar na redução da proporção dos

povos sem acesso à água e saneamento até 2015. A iniciativa se deu pelas

informações providas pela Comissão Européia, através de um exame minucioso,

desenvolvendo o que foi chamado de European Water Directive (Diretriz Européia da

Água) focando os princípios de gerenciamento de bacias hidrográficas. A iniciativa

se direciona inicialmente à África e aos Estados recentemente independentes da

antiga União Soviética.

A EU Water Initiative teve grande relevância no WSSD, tendo sido lançada no

Water Dome pelo presidente Prodi e o Premier dinamarquês tendo sido reconhecida

como um dos compromissos políticos mais importantes para a implementação dos

acordos alcançados em nível mundial para o suprimento e gerenciamento de água e

a melhoria do acesso ao saneamento. Os Estados-membros da UE consideram ser

esse um compromisso de nível elevado, uma vez que envolve uma parceria com a

África e a Comunidade dos Estados Independentes.

Todos os parceiros da EU Water Initiative devem se comprometer aos

seguintes princípios (EUROPEAN COMMISSION, 2003):

Transparência no desenvolvimento e implementação dos projetos da

Iniciativa;

Os países em desenvolvimentos devem ser os autores das demandas da

Iniciativa e de seus componentes;

A propriedade dos componentes deve ficar com os países em

desenvolvimento, parceiros da Iniciativa;

Os componentes devem complementar e reforçar outros mecanismos de

redução de pobreza e de desenvolvimento sustentável; e

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Os componentes devem procurar maximizar o uso de conhecimento,

métodos e práticas já existentes.

A cooperação da Comunidade Européia mostra-se eficaz e necessária nas

regiões e pôs-se a reagrupar diferentes tipos de atividades, nas quais a água é

central ou mesmo nas quais investimentos relacionados à água passam a ser vitais,

em “Áreas Temáticas”. Essas endereçam mais funções do que aspectos técnicos

isoladamente: uma área comum, denominada “Acesso e planejamento de Recursos

Hídricos” e três funções sociais específicas, a saber: “Abastecimento Básico de

Água e Serviços de Saneamento”, “Serviços Municipais de Água e Esgoto” e “Uso

agrícola e gerenciamento”.

O entendimento da Comunidade Européia a respeito da cooperação para o

uso igualitário, sustentável e eficiente e para o gerenciamento da água coloca que

as políticas e as práticas de sua implementação devem seguir alguns princípios

básicos. A cooperação voluntária deve basear-se no respeito mútuo e deve ser

permeada por um diálogo contínuo e interativo. Dentre esses princípios guiadores,

alguns como eqüidade, sustentabilidade e transparência são os mais críticos. Ainda,

a mistura entre o novo e o antigo, e a participação de cidadãos têm provado ser os

meios mais efetivos de se obter uma maior difusão da aceitação de uma inovação

atual e necessária (EUROPEAN COMMISSION, 2003).

Uma mudança de pensamento se faz necessária: o reconhecimento de que

todo usuário de água tem responsabilidades; a aplicação de uma abordagem

realmente integrada na qual todos os atores cooperam (como no gerenciamento

integrado da terra e da água, na prevenção da poluição da água); a mudança para

um comportamento sustentável da água, da abordagem de suprimento para a

dominação do gerenciamento da demanda; a introdução da necessidade de se

valorizar a água incrementando a percepção de sua preciosidade em todos os seus

usos. A precificação dos serviços de água é necessária para garantir a

sustentabilidade financeira, porém, de forma a ir ao encontro das necessidades dos

grupos pobres e vulneráveis que requerem o desenho apropriado de estruturas de

tarifas e sistemas de coleta.

No mesmo sentido, a UNESCO tem buscado promover a cooperação no

compartilhamento de recursos hídricos, através da iniciativa do PC CP.

Já há algum tempo, organismos internacionais como a ONU e, mais

especificamente a UNESCO, entendem a água como uma possível causa do

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acirramento de conflitos em algumas regiões. No entanto, esses organismos têm

enfatizado a importância do gerenciamento compartilhado das águas

transfronteiriças, não como uma razão para a disputa, mas sim como um motivo

para cooperação.

Contemporaneamente, em decorrência de uma maior compreensão dos

Estados sobre a complexidade da temática da água que abrange questões “de

saúde a direitos humanos, de meio ambiente à economia, de pobreza à política, de

cultura a conflitos” (UNESCO, 2003), a UNESCO entende que, apesar de ser uma

questão particular de cada país ou setor, esse não é um assunto cuja solução

aplicável deva ser isolada e unilateral, porque os cursos d’água não respeitam

fronteiras ou limites geográficos. A Organização ainda assume que, onde há

competição por água, há um risco muito grande desta competição se acirrar e se

tornar conflito, reafirmando o potencial gerador de cooperação contido no

compartilhamento dessas águas, para a criação de um modus vivendi comum entre

as partes, evitando um conflito cada vez mais difícil de solucionar.

Levada por inúmeras experiências históricas que demonstram a capacidade

de questões hídricas na promoção de cooperação e não de disputas de poder, mas

assumindo que algumas dessas disputas ainda permanecem e que outras tantas

ameaçam surgir, a UNESCO, juntamente com outros 23 organismos do sistema

ONU, desenvolve um programa intitulado “From Potential Conflict to Co-operation

Potential: Water for Peace”, encarregado de desenvolver uma legislação e uma

concertação capaz de resolver a questão da distribuição da água entre países que

compartilham a mesma bacia hidrográfica, no intuito de dirimir os conflitos, tentando

aplicar a eles uma solução pacífica e integrada para o gerenciamento das águas de

263 bacias em todo o mundo, onde praticamente metade do território e da

população mundial estão.

O mais complicado na implantação desses programas, no entanto, é o

primeiro passo: o estabelecimento de uma relação entre os técnicos e os governos

locais dos Estados e das regiões que compartilham a bacia, assim como outros

elementos como a informação do público e dos formadores de opinião locais.

O Mekong, o Mar de Aral, o Jordão, o Nilo, o Incomati, o Danúbio, o Reno, o

Colúmbia e o Triffinio são exemplos de rios cujas bacias já foram endereçadas pelo

Programa que se encarregou de produzir estudos e revisar os indicadores aplicáveis

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para prover meios de identificar as bacias internacionais em risco e para monitorar o

nível de cooperação em todas as bacias internacionais do mundo.

Mesmo tendo em mente inúmeras diferenças entre as bacias, cabe ressaltar

três principais pontos de semelhança entre elas (UNESCO, 2003):

são a principal fonte de vida de suas regiões (ambiental, econômica e

culturalmente);

suas populações sofrem com a falta de cooperação efetiva entre os

Estados e os povos que se servem da bacia, e contém áreas de conflitos

potenciais e reais como resultado; e

seu gerenciamento integrado é uma fonte potencial de grande benefício

para toda a população na região.

Através da máxima pregada pela ecopolítica de se “pensar globalmente e agir

localmente”, a Cruz Verde Internacional juntamente com a UNESCO desenvolvem

parcerias entre a sociedade civil e os governos, promovendo maior aquisição de

informação, por meio de estudos produzidos para os cidadãos, a fim de se assegurar

os ganhos da cooperação.

Cada um desses projetos é gerenciado por parceiros regionais e é formatado

para suprir as demandas da região. As experiências acumuladas por esse programa

têm mostrado que a formulação de uma legislação deve ser compreendida e

respeitada pelas partes envolvidas, para dirimir as disputas e solucionar os conflitos

antes de sua escalada.

No entanto, problemas relativos à falta de informações suficientes para

produzir uma divisão eqüitativa ou mesmo proporcional das águas. Assim, sem

dados técnicos oficiais a respeito do fluxo anual dos rios e da capacidade de vazão

da bacia hidrográfica como um todo, há uma complicação no desenvolvimento do

trabalho proposto por esse programa, podendo compor um grande impasse às suas

realizações.

Assim como a União Européia e a UNESCO, outros organismos também têm

atuado no sentido de buscar a promoção de cooperação no gerenciamento

compartilhado dos recursos hídricos. Essas iniciativas têm facilitado sobremaneira a

salvaguarda do direito humano de acesso à água. Ademais, com atividades como

essas, desempenhadas pelos organismos internacionais, vem à tona a iniciativa de

discutir o acesso à água, bem como a busca pela garantia, promoção e proteção de

seu enquadramento como direito humano. Buscar-se-á, portanto, discutir o conteúdo

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desse direito em termos internacionais, sobretudo no Comentário Geral nº 15 sobre

os artigos 11 e 12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

(PIDESC).

Por fim, a atuação desses órgãos se faz assaz relevante porque promove

também a discussão sobre o acesso à água, trazendo à agenda internacional a

implementação da água como direito humano. Assim, a discussão que se segue

parte de iniciativas como essas, tendo em vista a busca pela cooperação e pela

promoção da dignidade humana em nível global.

2.3 O direito à água como realidade

Poderíamos dizer, então, que o direito à água deve existir em razão de ser a

água o bem mais elementar à própria existência humana. Todavia, conforme

pudemos perceber pelas abordagens constituintes dos instrumentos internacionais,

esse direito nunca foi claramente definido no direito internacional e, apesar do

Comentário Geral nº 15, ainda não é reconhecido como um direito humano

fundamental (SCANLON, CASSAR et NEMES, 2004, p.12). Ao contrário, entende-se

o direito à água como um componente implícito dos diretos humanos já existentes.

Ao passo que o reconhecimento desse direito está expressamente incluído entre os

instrumentos de direito internacional de caráter não obrigatório, esses são

desenvolvidos para atingir fins muito específicos e não necessariamente explicitar o

conteúdo do direito à água.

Portanto, de acordo com o cenário atual, num futuro próximo poderemos

presenciar uma melhor implementação dos princípios do desenvolvimento

sustentável de modo mais eficaz e integrado com os direitos humanos e o

desenvolvimento social, assegurando ao mesmo tempo o bem-estar econômico da

população mundial através dos benefícios que o acesso a uma água de boa

qualidade pode gerar, resguardando o acesso a uma água de boa qualidade e em

quantidade suficiente para suprir as necessidades de todas as sociedades,

presentes e futuras (SCANLON, CASSAR et NEMES, 2004, p.12).

Assim, se considerarmos a formulação de um direito à água que seja

autônomo, devemos também buscar a consolidação e a definição clara de seu

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escopo, particularmente no tocante à sua relação com os princípios e convenções

internacionais já existentes.

Logo conclui-se que definir um direito humano de acesso à água significa

estabelecer parâmetros de uso e de distribuição e, em maior medida, um

comprometimento dos Estados na garantia, salvaguarda, respeito e promoção

desses direitos. Nesse sentido, deve-se: a) buscar a sobrevivência humana,

colocando de lado a apreciação da água como bem econômico; b) ampliar o acesso

de forma mais acelerada; c) reduzir eficazmente as desigualdades, por meio de

políticas mais preocupadas com os menos guarnecidos; d) trazer as comunidades e

as populações afetadas aos debates; e, por fim, e) utilizar dos meios e mecanismos

do sistema internacional de proteção dos direitos humanos para monitorar o

progresso atingido pelos países (Estados-membros) para haver um maior

envolvimento destes na melhoria do quadro global (WORLD HEALTH

ORGANIZATION, 2003, p.9).

Cabe, por fim, relembrar as palavras de Klaus Toepfer, Diretor-Executivo do

Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, proferidas no

discurso direcionado à 57ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos em 2001,

fazendo referência aos direitos humanos e à sua garantia:

Os direitos humanos não podem ser assegurados em um meio ambiente degradado ou poluído. O direito fundamental à vida é ameaçado pela degradação do solo, pela exposição a químicos tóxicos, resíduos perigosos e água potável contaminada. As condições ambientais claramente ajudam a determinar o quanto as pessoas podem gozar seus direitos à vida, saúde, alimentação e habitação adequadas, aos meios de subsistência tradicionais e à cultura. É chegada a hora de reconhecermos que aqueles que poluem e destroem o meio ambiente natural não estão somente cometendo um crime contra a natureza, mas também estão violando os direitos humanos (KLAUS TOEPFER apud WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2003, p.21).

Devemos buscar um meio de conexão entre a concepção de direitos

humanos e o panorama mundial da disponibilidade do recurso e da abordagem da

água na legislação internacional de um modo geral, buscando discutir a criação de

um direito humano de acesso à água independente dos demais já existentes.

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3 O DIREITO HUMANO DE ACESSO À ÁGUA

Para entender a positivação de um direito humano de acesso à água, buscar-

se-á uma análise do Comentário Geral nº 15 do PIDESC sobre o direito à água,

seguindo o raciocínio proposto por Henri Smets em seu Le droit à l’eau (2002) e por

John Scanlon, Angela Cassar e Noémi Nemes em Water as a Human Right? (2004)

e também desenvolvido em outros títulos onde a temática é abordada,

especialmente The Human Right to Water, publicação do Banco Mundial de autoria

de Salman e McInerney-Lankford (2004).

A fundamentação dessa discussão é feita de forma a caracterizar a proteção

desse direito em confronto à proteção de direitos humanos já positivados (como os

direitos à vida, à dignidade, à saúde e ao meio ambiente) e, por este motivo, a

investigação será no sentido de estabelecer um direito humano autônomo de acesso

à água, que guarde relação de interdependência com os demais.

O tema do direito à água é de tal maneira amplo que permite uma abordagem

ao mesmo tempo particular e geral, doméstica e internacional, política, econômica e

social, ou seja, tendo em mente a amplitude e a abrangência desse direito para a

população humana, o intuito do desenvolvimento do tema é amarrar os estudos

existentes e iniciar a discussão do direito à água no meio acadêmico brasileiro,

muitas vezes relegado pela academia nos tempos atuais.

Como esta abordagem se dá no âmbito do direito internacional, faz-se

necessário colocar as tensões existentes entre direito internacional e direito interno e

dependência e interdependência e isto será feito, mas de forma muito rápida e

superficial, apenas para exemplificar a discussão, pois não se trata de tema

primordial. No intuito de delimitar bem o tema, e em decorrência dessa

complexidade é que, antes, analisar-se-á a divergência existente entre o direito à

água e o direito dos recursos hídricos, enfatizando o aspecto da água mais como

elemento essencial à sobrevivência humana e menos como recurso econômico.

Também será objeto de análise a predominância de soft law no Direito Internacional

do Meio Ambiente, enfocada por José Juste Ruiz (1999), em detrimento de hard law,

o que de certa forma explicaria a dificuldade de se formular normas mais diretas e

específicas sobre o acesso à água. Por se tratar de tema multidisciplinar, é

importante entendermos tanto dos procedimentos para adoção de uma norma no

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direito internacional dos direitos humanos, quanto dos trâmites da normatização de

regras no direito internacional do meio ambiente, para compreendermos a

possibilidade de positivação desse direito humano de acesso à água.

No sentido de abordar a interação entre direitos humanos e direito ambiental

internacional, cabe também relembrar o teórico Norberto Bobbio, em seu “A Era dos

Direitos” (1992), e sua teoria geracional dos direitos humanos, essencialmente

quando se refere aos direitos de terceira geração, ressaltando o direito de viver num

meio ambiente não poluído como o mais importante, comprovando a interligação

entre os dois pólos: direito internacional ambiental e direito internacional dos direitos

humanos. Nesse momento, portanto, devemos questionar se o direito à água, para

se enquadrar em uma das categorias elencadas por Bobbio (1992), deve ser tido

como direito intergeracional, porque resguarda os mais diversos aspectos das outras

gerações dos direitos humanos, ou se seria o direito à água nada mais do que um

conglomerado dos outros direitos já existentes, sem razão alguma de ser.

3.1 As normas no direito interno e no direito internacional: considerações

O processo de formulação de normas aplicáveis aos recursos hídricos no

plano interno é altamente influenciado pelos princípios do direito internacional do

meio ambiente, “seja em tratados específicos, sobre aproveitamentos de rios

compartilhados […] seja em Conferências Internacionais, mais abrangentes”

(GRANZIERA, 2001, p.17).

No direito internacional, os atores vêm produzindo uma teia de

relacionamentos que vem se criando dentro da comunidade internacional de forma

muito complexa, onde pode-se compreender, cada dia mais, a tensão existente entre

as aspirações da comunidade internacional e a vontade dos Estados individualmente,

pois, nem sempre, o que pretende cada Estado individualmente é o mais adequado

para toda a comunidade internacional. Assim, nesse cenário de pontos de vista

quase que antagônicos, surge o Direito Internacional, no intuito de harmonizar esses

interesses e dirimir conflitos, tentando evitar que os ânimos se acirrem cada vez

mais e se transformem em guerras.

Nesse momento, cabe ressaltar as referências de Koskenniemi ao Direito

Internacional:

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Por um lado, parece inquestionável que o Direito Internacional “possui uma função geral a cumprir, respectivamente a função de salvaguardar a paz e a segurança internacionais e a justiça nas relações entre os Estados” (TOMUSCHAT, 199, p.23). Ou, como diz o Artigo I da Carta das Nações Unidas, a organização tem o propósito de “ser um centro para harmonizar as ações das nações na persecução de... fins comuns” tais como a paz e a segurança internacionais, as relações amistosas entre as nações, e a cooperação internacional. Tais objetivos parecem auto-evidentes, e não foram nunca seriamente desafiados. Por outro lado, é difícil ver como ou porque esses objetivos seriam desafiados […] porque existem em tal alto nível de abstração que deixam de indicar preferências concretas para ação. O que ‘paz’, ‘segurança’ ou ‘justiça’ realmente significam? […] Dizer que o Direito Internacional busca a paz e entre os Estados é, talvez, ter restringido seu escopo de maneira inaceitável38 (KOSKENNIEMI, 1992: p.89-90).

Posteriormente, Koskenniemi (1992) infere que se há uma comunidade

internacional, ela existe não por associação teleológica, mas prática, pois não é um

sistema desenhado para perceber fins últimos, mas sim para coordenar a ação

prática no sentido de otimizar os objetivos das comunidades existentes.

Aprofundando um pouco nos dizeres de Koskenniemi podemos entender

como fim último da comunidade internacional a coordenação dos interesses na

busca do bem comum, porém, esse entendimento depende do significado atribuído

aos termos ‘paz’, ‘segurança’ e ‘justiça’ para definirmos seus fins, bem como o

porquê desta dicotomia entre interesse estatal e interesse da comunidade

internacional.

No entendimento de Alain Pellet, o Direito Internacional hoje, ainda pode ser

percebido da mesma forma que Grotius pois continua um direito pactuado “entre

Estados soberanos, feito por estes, e impermeável a qualquer idéia, não apenas de

‘sanção’ de fatos internacionalmente ilícitos […] mas de repressão centralizada.”

(Pellet, 2003, p.4).

Por sua vez, conforme Campos, Rodriguez e Santamaría (1998, p.63),

entende-se, por Direito Internacional o ordenamento jurídico da comunidade

internacional (tradução livre), sendo um sistema normativo e autônomo, pois

funciona dentro de seus próprios modos de criação normativa. Porém, tratar o Direito

38 Tradução livre de: “On the one hand, it seems indisputable that international law “has a general function to fulfil, namely to safeguard international peace, security and justice in relations between States” (TOMUSCHAT, 199, p.23). Or as Article I of the UN Charter puts it, the organization has the purpose to “be a centre for harmonizing the actions of nations in the attainment of common ends” such as international peace and security, friendly relations among nations, and international cooperation. Such objectives seem self-evident and have never been seriously challenged […] because they exist at such high level of abstraction as to fail to indicate concrete preferences for action. What do ‘peace’, ‘security’ or ‘justice’ means? To say that international law aims at peace between States is perhaps already to have narrowed down its scope unacceptably “(KOSKENNIEMI, 1992, p.89-90).

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Internacional meramente como um ordenamento jurídico que cria suas próprias

regras seria uma redução injustificada.

Assim, o cenário no qual o Direito Internacional desempenha suas funções se

trata de um local que abriga vários soberanos cujos direitos são delimitados entre si,

e se obrigam conforme se sintam confortáveis para tanto.

Os autores portugueses Antônio Celso Alves Pereira e Fausto de Quadros, ao

discorrerem sobre soberania e pós modernidade, produzem uma reflexão a respeito

do Direito Internacional contemporâneo, bem como sobre toda a evolução pela qual

a sociedade passou desde a Primeira Grande Guerra até os dias de hoje. Assim,

dizem Pereira e Quadros:

[...] diante de tão profundas transformações sociais, políticas e econômicas e, sobretudo, da velocidade com que os acontecimentos históricos se sucedem, vivemos, na pós-modernidade, uma integração cultural sem precedentes na história da humanidade. [...] o Direito Internacional Público, visto como um conjunto de normas e de instituições que tem como objetivo reger a vida internacional, construir a paz, promover o desenvolvimento, em suma, buscar a realização e a dignidade do gênero humano, deve prosseguir em seu processo evolutivo, funcionar efetivamente como instrumento das mudanças que se operam de forma acelerada na sociedade internacional pós-moderna. As transformações e os desafios que o Estado-Nação vem enfrentando a partir da segunda metade do século XX – a rigor desde o fim da Primeira Guerra Mundial – atingiram de forma definitiva o seu poder e as suas condições de ação política nos campos interno e externo. A concorrência de novos atores políticos não estatais e de novos sujeitos de direito na ordem internacional subtraiu ao Estado a exclusividade da ação internacional, situação de que desfrutara ao tempo da vigência do Direito Internacional Clássico, melhor dizendo, desde os primórdios do sistema eurocêntrico (QUADROS et PEREIRA, 2004, p.621).

É realmente do contraponto existente entre Direito Interno X Direito

Internacional, da tensão Interdependência X Dependência, do questionamento

interesses estatais X bem comum da sociedade internacional que nasce o Direito

Internacional. Primeiramente como modo de manifestação da vontade dos Estados e

concretização de seus interesses e, posteriormente, para concatenar esses

interesses estatais diversos com o bem comum da sociedade internacional –

sociedade essa que agora não se compõe tão somente de entes Estatais como

atores, mas que também se compõe de atores coadjuvantes – organizações

internacionais e até mesmo indivíduos –, mesmo que os Estados continuem sendo

foco principal do Direito Internacional.

Portanto, o Direito Internacional é instrumento tanto para garantia da

soberania e meio para a persecução dos interesses dos Estados individualmente

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quanto para a busca do interesse comum e, nesse sentido, atua de forma diversa

em esferas diversas.

Francisco Rezek, a respeito do conflito existente entre direito internacional e

direito interno, diz:

Para os autores dualistas [...] o direito internacional e o direito interno de cada Estado são sistemas rigorosamente independentes e distintos, de tal modo que a validade jurídica de uma norma interna não se condiciona à sua sintonia com a ordem internacional. Os autores monistas dividiram-se em duas correntes. Uma sustenta a unicidade da ordem jurídica sob o primado do direito internacional, a que se ajustariam todas as ordens internas. Outra apregoa o primado do direito nacional de cada Estado soberano, sob cuja ótica a adoção dos preceitos do direito internacional reponta como uma faculdade discricionária (REZEK, 2000, p.4-5).

Rezek, referindo-se ao tratamento de questões ambientais pelo Estado,

afirma que este, normalmente, “subordina-se a normas convencionais de elaboração

recente e quase sempre multilateral, a propósito do meio ambiente” o que se

embasa, sobretudo, na interdependência, pois os efeitos são gerados, muitas vezes,

para além das fronteiras geográficas de cada país (REZEK, 2000, p.235-237).

Isto posto, devemos entender que o Direito Internacional atua das duas

formas, a princípio contraditórias, em matérias diversas. Logo, no caso de questões

relativas ao meio ambiente, é mais clara a atuação do Direito Internacional como

meio de congregação das idéias dos Estados em torno de um bem comum da

sociedade internacional, se atendo à convergência dos entendimentos dos países

acerca dos temas envolvidos, o que, posteriormente, é levado para o interior de cada

Estado e interpretado à sua maneira.

Em questões de Direitos Humanos, por exemplo, é muito tênue a linha

divisória entre as duas atuações do Direito Internacional. Através da coordenação

dos interesses dos Estados, há a produção de documentos relativos aos Direitos

Humanos, aos quais os Estados se obrigam dentro de seus entendimentos e

aspirações. No entanto, aqueles que descumprem a ordem colocada, mesmo

quando não são parte signatária e não compartilham dos mesmos entendimentos,

se vêem em posição complicada no cenário internacional, visto que os países se

apóiam na responsabilização mútua, sendo assim:

a única sanção eficaz da violação do direito é constituída pelo mecanismo de responsabilidade, apoiada sobre o que se convencionou chamar de “contramedidas”, isto é, a utilização de medidas tomadas pelos Estados

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para a defesa de seus próprios direitos, e que nada mais são que as tradicionais represálias (PELLET, 2004).

Logo, quando há a quebra de algum interesse comum por parte de um Estado

específico, outro Estado pode agir em defesa de seu próprio interesse e

legitimamente pelo Direito Internacional através das represálias, para que seu

interesse seja defendido de forma eficaz. Assim, mesmo que um Estado não seja

signatário de algum tratado, ele pode ser afetado por ele. Desta forma se presencia

no cenário internacional algo da mesma espécie que o contraponto interno sobre

direito e moral. Assim, muito do que é acordado no âmbito moral do cenário

internacional, em defesa do bem comum, é grandemente aplicado em favor da

defesa dos interesses gerais e comuns, ou mesmo específicos de cada Estado.

Porém essa pressão exercida entre os membros da comunidade internacional

depende do fator “poder relativo das partes”, ou seja, aqueles países que possuem

maiores capabilities39 são aqueles mais capazes de realizar represálias contra os

outros e os menos passíveis de sofrerem represálias; isto é, quanto maior o poder

de um Estado em relação ao outro, maior a eficácia de suas contramedidas.

Assim, é por meio da compreensão do funcionamento de uma balança de

poder no plano internacional40, que podemos entender como o Direito Internacional

atua no sentido de dirimir os conflitos de interesses no interior da sua rede de

relacionamentos.

Kenneth N. Waltz, um dos principais teóricos da Teoria Realista das Relações

Internacionais, entende que as políticas internacionais têm sido chamadas de

“políticas de ausência de governo” e também que a autoridade, no plano

internacional se reduz às diminutas questões sobre capabilities. Assim, na ausência

de agentes que se responsabilizem e tenham autoridade por todo o sistema, as

relações de superioridade e subordinação tendem a não se desenvolver. Assim, no

plano internacional, para Waltz (1979), cada Estado constitui uma entidade política

soberana. Apesar de possuidores de diferentes áreas geográficas, riquezas, poder e

39 Capabilities, para as teorias de Relações Internacionais, significa atributos de poder. O termo pode ser entendido como posição geográfica favorável, condições econômicas, poder militar organizado, ou seja, tudo aquilo que contribui para que um Estado seja mais “forte” que o outro no cenário internacional (WALTZ, 1979).

40 A balança de poder, de forma simplista, consistiria na manutenção de um equilíbrio entre as capabilities dos Estados no plano internacional (WALTZ, 1979).

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formas, os Estados são iguais nas tarefas que têm de enfrentar, não interessando

suas habilidades ao desempenhá-las.

As distribuições de capabilities definem as interações entre as partes em um

sistema hierárquico, onde suas interações são determinadas pela sua diferenciação

funcional e pela abrangência de suas capacidades. Waltz resolve esse problema

estabelecendo que poder deve ser definido de acordo com a comparação entre as

capacidades de um certo número de unidades.

Ao se referir a essa diferenciação entre os Estados, Waltz recorre à teoria

macroeconômica de Adam Smith, para explicar que os sistemas internacionais

obedecem lógica diversa, praticamente contrária aos sistemas competitivos

econômicos: fora as interações das suas partes, eles desenvolvem estruturas que

resguardam ou punem comportamentos, de modo a regular o sistema de acordo

com as regras pré-estabelecidas por aqueles que procuram o sucesso do sistema.

Destarte, estes Estados que procurarem agir mais próximo da conformidade

das regras serão aqueles melhor posicionados dentro do sistema e com maior

chance de sobreviver nele, devendo alterar seus comportamentos de acordo com a

estrutura que formam através da interação com os outros Estados (WALTZ, 1979).

Assim atua o Direito Internacional tentando estabelecer um maior equilíbrio

em um cenário onde todos os membros são igualmente soberanos, mas também

onde a soberania por si só não pesa sozinha.

Desta forma, ao entender a produção de normas no direito internacional,

podemos então entender o funcionamento e o predomínio de soft law no Direito

Internacional do Meio Ambiente e tecer algumas considerações a esse respeito.

3.1.1 O predomínio de soft law e a emergência de hard law no Direito Internacional do Meio Ambiente

A ausência de normas escritas no Direito Internacional do Meio Ambiente é

assunto levantado por diversos teóricos. Destarte, ao entender que o Meio Ambiente

é um bem comum da humanidade, as normas referentes a este objeto devem ser

tomadas de forma multilateral, no sentido de se beneficiar o todo. Assim, opina

Guido Fernando Silva Soares, referindo-se respectivamente às normas

internacionais aplicáveis aos recursos hídricos:

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Dada a inexistência de regras universais de jus scriptum41, as normas dos tratados e convenções ora dizem respeito a enfatizar os aspectos da poluição em alguns rios ou de bacias hidrográficas especialmente nomeadas, em todas as suas formas, ora a estabelecer um regime complexo de utilização múltipla e, colateralmente, além dos aspectos tradicionais da regulamentação de sua navegabilidade, a evitar a poluição dos recursos aqüíferos (SOARES, 2003, p.108).

O predomínio de soft law no Direito Internacional do meio ambiente é

adequadamente abordado por José Juste Ruiz, deve ser também levado em conta

quando nos reportamos à positivação de um direito humano de acesso à água pois,

conforme entendemos o funcionamento do sistema internacional de proteção do

meio ambiente, podemos entender a maneira de se processar essa positivação.

Portanto, diz José Juste Ruiz:

O caráter eminentemente funcional do Direito Internacional do Meio Ambiente contribui na medida em que atribui às suas normas uma contextura flexível, configurando um universo jurídico particularmente fluido que apresenta os perfis característicos do que se pode denominar soft law42 (RUIZ, 1999, p.44).

Partindo desse pressuposto, Ruiz (1999, p.44) afirma que o processo

normativo do Direito Internacional do Meio Ambiente se dá de maneira a respeitar

características próprias deste setor do ordenamento internacional: a inovação e a

flexibilidade; tanto no referente à forma dos instrumentos utilizados quanto ao

conteúdo das disposições adotadas.

Também conforme Ruiz, o caráter soft desse Direito manifesta-se a partir do

momento em que suas normas estão em constante gestação, acarretando a não

materialização de seu processo formal de consolidação, que nunca chega a cabo.

Também pode se perceber essa predominância de soft law ao analisarmos inúmeros

casos em que as normas chegam a integrar esse Direito. Porém, elas aparecem

formuladas em documentos que não possuem força vinculante per se, como é o

caso de Resoluções, Declarações, Relatórios, Programas, Estratégias, Códigos de

41 Entende-se por jus scriptum, conforme o autor, “os atos internacionais unilaterais expedidos por Estados ou organizações intergovernamentais (OIGs) e os bilaterais ou multilaterais subscritos pelos Estados (com outros Estados ou OIGs), seja aqueles que tratam de temas globais, seja aqueles que tratam de assuntos específicos… (SOARES, 2003, p.173).

42 Tradução livre de: “El carácter eminentemente funcional del derecho internacional del medio ambiente contribuye a dar a sus normas una contextura flexible, configurando un universo jurídico particularmente fluido que presenta los perfiles característicos de lo que ha dado en denominarse soft law” (RUIZ, 1999, p.44)

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Conduta, Atas Finais de Conferências Internacionais etc., ou seja, aparecem muitas

vezes na forma de procedimentos informais, em instrumentos jurídicos de caráter

recomendatório, como que se compusesse um “direito programático” onde as regras

já consolidadas não se distinguem com clareza dos princípios em formação, influindo

uns nos outros, como se fossem “vasos comunicantes” (RUIZ, 1999, p.44-45).

Independentemente de considerarmos essa natureza formal do instrumento

onde essas disposições encontram-se formuladas, não é raro que seu conteúdo

normativo seja também brando e apresente uma intensidade atenuada, passível de

modulações pelos Estados. Isso se dá, segundo José Juste Ruiz, pelo simples fato

de as normas de Direito Internacional do Meio Ambiente se acomodarem melhor à

pressão leve das obrigações comportamentais do que ao estrito rigor das obrigações

de resultado e, por esse motivo, há uma proliferação de deveres de informar, de

consultar, de vigiar etc., em lugar das obrigações taxativas de fazer ou não fazer.

Assim, os Estados atribuem a elaboração dessas normas a inúmeros organismos

internacionais com estrutura jurídica e administrativa muito simples, organismos

estes considerados pelo autor como instâncias convencionais de cooperação –

comitês, comissões, grupos de trabalho, reuniões técnicas –, ou mesmo com prazo

determinado ou função específica e restrita, como é o caso dos comitês e grupos ad

hoc (RUIZ, 1999, p.45).

Mas mesmo com toda essa funcionalidade soft, têm surgido no Direito

Internacional do Meio Ambiente normas que expressam formas atenuadas de

responsabilidade (denominada soft responsibility), bem como mecanismos de

solução de controvérsias que adotam um procedimento mais informais e menos

rigorosos.

Por esse motivo, apesar de o Direito Internacional do Meio Ambiente ser

operado há mais de trinta anos por uma multiplicidade de regras de soft law desde

sua criação, essas normas são convertidas, com o tempo, em normas de direito,

através de uma espécie de efeito-contágio, criando deveres e obrigações a serem

respeitadas no plano deste Direito pois, como considera Dupuy: “em todo caso, em

uma visão impressionista, é evidente que uma parte substancial do direito soft de

hoje descreva parte do direito hard de amanhã” (DUPUY, apud RUIZ, 1999, p.47).

Ainda que o Direito Ambiental Internacional seja tido como um direito flexível

e maleável, há um núcleo fundamental de todo o corpo normativo internacional do

meio ambiente, que apresenta todos os caracteres jurídicos do máximo rigor:

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hard law. A emergência de hard law no Direito Internacional do Meio Ambiente se

orienta pela satisfação de verdadeiros interesses gerais da comunidade

internacional como um todo, percebidos como interesses essenciais por todos os

Estados. No momento em que esses interesses peremptórios de natureza

‘comunitária’ estão em jogo, o Direito Internacional do Meio Ambiente ganha um

caráter mais impositivo, revestindo-se da mais estrita imperatividade e seu núcleo

duro passa a representar interesses fundamentais de grande parte (ou mesmo da

totalidade) da humanidade, se configurando, por fim, como um verdadeiro ius

cogens.

Estes direitos constituem, desse modo, uma dimensão oponível erga omnes e

geram direitos de proteção correspondentes que podem gerar sanções aplicadas

internacionalmente (inclusive no âmbito penal), por serem entendidos como direitos

verdadeiramente universais (RUIZ, 1999, p.48).

Nesse sentido, Campos, Rodríguez e Santamaría (1998, p.799) salientam que

desde a sua criação, a proteção internacional do meio ambiente passou do ponto de

vista da responsabilidade do dano ambiental restrito ao das normas de caráter geral

(incluindo-se as exceções das normas de ius cogens); e do ponto de vista da

responsabilidade por dano de Estado a Estado ao da responsabilidade pelo riscos.

O progresso adquirido pelo Direito Internacional ao longo da História no

tocante à instauração de mecanismos de aplicação e de procedimentos de controle

e sanções no âmbito das organizações internacionais, deixa aberta a possibilidade

de contemplar outras alternativas para considerar ações diretas a serem

empreendidas pelos Estados, que passam a agir buscando o cumprimento de

normas imperativas relativas à proteção do meio ambiente em defesa de um

interesse ecológico comum. Contudo, essa alternativa ainda não se encontra

efetivamente consolidada (RUIZ, 1998, p.52).

Devemos trazer à discussão a abordagem de Direito Ambiental feita por Paulo

Affonso Leme Machado, mormente quando traz à baila a relação existente entre o

Direito Ambiental e as águas, diz, em seu Direito Ambiental Brasileiro:

O direito ambiental é um Direito sistematizador, que faz a articulação da legislação, da doutrina e da jurisprudência concernentes aos elementos que integram o meio ambiente. Procura evitar o isolamento dos temas ambientais e sua abordagem antagônica. Não se trata mais de construir um direito de águas, um direito da atmosfera, um direito do solo, um direito florestal, um direito da fauna ou um direito da biodiversidade. O direito ambiental não ignora o que cada matéria tem de específico, mas busca

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interligar esses temas com a argamassa da identidade dos instrumentos jurídicos de prevenção, de reparação, de informação, de monitoramento e de participação (MACHADO, 2002, p.192).

Ao compreender que o direito ambiental deve ser tratado de forma integral e

interdependente, Paulo Affonso Leme Machado coloca um posicionamento que, de

certa forma, contraria todo o entendimento do direito ambiental anteriormente

exposto e até mesmo o próprio funcionamento do direito ambiental internacional,

porque é composto de normas específicas para assuntos específicos, aplicadas ou

aplicáveis em âmbitos também específicos, especialmente quando são criados

comitês ad hoc para estudar determinados aspectos do meio ambiente. Pode-se

dizer que é totalmente adequada essa visão integralista do Direito Internacional do

Meio Ambiente, pois o que deve ser objeto de suas normas é exatamente a

integralidade do meio ambiente, ou seja, o ambiente como um todo e não somente

determinados aspectos.

No entanto, o presente trabalho busca discutir um aspecto dos direitos

humanos repercutido no Direito Internacional do Meio Ambiente e que, mesmo assim,

deve ser garantido através dos instrumentos de proteção dos direitos humanos,

ainda que de forma interdependente.

Mesmo que a doutrina entenda, de forma majoritária, que o mecanismo de

funcionamento da proteção do meio ambiente no Direito Internacional seja

decorrente de um processo de fora pra dentro, em decisões normalmente de cunho

multilateral, há uma divergência sobre a pertinência de alguns princípios a esse

Direito.

Mesmo que o enfoque a ser produzido neste trabalho não se dirija a uma

análise do ponto de vista do Direito Ambiental, mas inserida no Direito Internacional

dos Direitos Humanos, devemos nos direcionar pelo “Princípio do Direito Humano

Fundamental”, apresentado por Paulo de Bessa Antunes como um dos princípios

aplicáveis ao direito do meio ambiente, assaz importante para a nossa discussão.

Cabe salientar, segundo Antunes, que esse princípio consiste em ser o primeiro e

mais importante, pois o “direito ao ambiente é um direito fundamental” (ANTUNES,

2002, p.31). Segundo o jurista, é desse princípio que decorrem todos os outros

princípios do Direito Ambiental. Nesse sentido, o autor retoma o Princípio 1 da

Declaração do Rio, proferida em 1992:

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Princípio 1: Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com o meio ambiente (ONU, 1992).

Ao partirmos desse princípio podemos então entender o enfoque a ser

realizado durante a condução deste trabalho: a busca pela integração dos princípios

de meio ambiente com os preceitos dos direitos humanos. Devemos concordar

totalmente com Paulo de Bessa Antunes quando se refere ao Princípio do Direito

Humano Fundamental como princípio basilar do direito ambiental, entendendo que o

direito à água não pode e não deve ser visto dentro de outra óptica.

3.2 A disciplina do Direito das Águas (Direito de Águas) e o direito à água

A jurista Maria Luiza Granziera entende como Direito das Águas aquele

direito relacionado às “questões legais concernentes aos recursos hídricos, seu

domínio, sua utilização e seus efeitos adversos” (GRANZIERA, 2003, p.25), mas

antes aproveita o conceito desenvolvido pelo jurista argentino Alberto G. Spota na

primeira metade do século XX, conforme se transcreve:

O direito de águas é constituído por normas que, pertencentes ao direito público e ao privado, têm por objeto regular tudo o que concerne ao domínio das águas, seu uso e aproveitamento, assim como as defesas contra suas conseqüências danosas (SPOTA, apud GRANZIERA, 2003, p.26).

Para Cid Tomanik Pompeu, o conteúdo da expressão ‘Direito de Águas’

consiste em:

[…] ramo da ciência do Direito definido como “conjunto de princípios e normas jurídicas que disciplinam o domínio, o uso, o aproveitamento, a conservação e a preservação das águas assim como a defesa contra suas danosas conseqüências. De início, denominava-se Direito Hidráulico” (REBOUÇAS, BRAGA et POMPEU, 2006, p.677).

Em ocasião do curso Direito de Águas no Brasil, Cid Tomanik Pompeu ainda

aprofunda o conceito, tecendo algumas considerações:

O Direito de Águas pode ser conceituado como conjunto de princípios e normas jurídicas que disciplinam o domínio, uso, aproveitamento e a preservação das águas, assim como a defesa contra suas danosas conseqüências. De início, denominava-se direito hidráulico. A estreita vinculação das normas jurídicas com o ciclo hidrológico, que praticamente

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desconhece limites no seu percurso, faz com que o Direito de Águas contenha tanto normas tradicionalmente colocadas no campo do direito privado, como no de direito público. Suas fontes são a legislação, a doutrina, a jurisprudência e o costume (POMPEU, 2002, p.3).

Mesmo tratando o Direito de Águas e não o direito à água, Granziera atesta a

existência de uma estreita relação do ser humano com a água, nos planos físico,

cultural e religioso. Assim, seria o acesso à água condição essencial de

sobrevivência humana. As mudanças na organização social do ser humano

trouxeram consigo a necessidade de se estabelecer regras para o uso desse recurso,

incorporadas ao longo do tempo às legislações dos povos, cabendo à gestão dos

recursos hídricos o planejamento e controle do uso das águas pelos governos.

Assim, quando há mais de uma pessoa com interesse num bem, surge o conflito de

interesses, cabendo ao Direito estabelecer as regras de solução. O conflito,

conforme a autora, pressupõe em seu primeiro estágio a essencialidade daquele

recurso para mais de uma pessoa e a existência de usos incompatíveis entre si

(GRANZIERA, 2003, p.28).

Na contramão desses conceitos, segue o jurista Paulo Affonso Leme

Machado e suas considerações gerais a respeito do direito à água. Em seu livro

Recursos Hídricos: Direito Brasileiro e Internacional, afirma o autor:

Cada ser humano tem direito a consumir ou usar a água para as suas necessidades individuais fundamentais. […] A existência do ser humano – por si só – garante-lhe o direito a consumir água e ar. “Água é direito à vida”. Portanto, correto afirmar que negar água ao ser humano é negar-lhe o direito à vida; ou, em outras palavras, é condená-lo à morte. O direito à vida é anterior aos outros direitos (MACHADO, 2002, p.13).

Jorge Thierry Calasans (2006) trata o Direito de Águas como aquele

mecanismo de solução de conflitos cujo foco são os recursos hídricos. Assim,

também entende como objeto do Direito de Águas o arcabouço legal, as políticas

nacionais, a normatização, os princípios e as regras que buscam a gestão adequada

dos recursos hídricos.

Podemos dizer, então, que o Direito da Água é a disciplina jurídica que estuda

a regulamentação do uso, do domínio e do aproveitamento dos recursos hídricos,

bem como as regras e princípios aplicáveis à matéria. Assim, o denominado Direito

das Águas, Direito de Águas ou Direito da Água nos remete a uma questão

puramente jurídica, onde se busca tão somente o estudo dessa regulamentação.

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No entanto, quando nos referimos ao direito à água, a questão nos remete ao

direito humano de acesso à água. Essa diferença entre direito à água e Direito da

Água também diz respeito à diferenciação entre água e recurso hídrico (ou recursos

hídricos).

3.2.1 Água e Recursos Hídricos

Para a discussão deste trabalho, se faz essencial diferenciarmos os conceitos

água e recursos hídricos no intuito de desfazer alguns enganos: os dois termos

são entendidos muitas vezes como sinônimos, tanto pela doutrina quanto pela

legislação, o que não procede em termos práticos.

Cid Tomanik Pompeu assim diferencia água de recursos hídricos:

Água é o elemento natural, descomprometido com qualquer uso ou utilização. É o gênero. Recurso hídrico é a água como bem econômico, passível de utilização com tal fim. […] Quando afirmamos que água é gênero e recurso hídrico espécie, [o fazemos] para explicar que [o Código de Águas Brasileiro] tratou o elemento líquido em seu gênero (POMPEU, 2002, p.15).

Das afirmações de Cid Tomanik Pompeu apreendemos algumas

considerações, a primeira é que Água é a substância, Recursos hídricos é um

conceito que nos remete à Água como bem econômico, passível de utilização com

tal fim. A segunda, apreendida do julgamento feito por Tomanik ponderando sobre o

Direito de Águas Brasileiro é que, no Direito Internacional, assim como no Direito

Brasileiro, há uma grande confusão e um mau uso dos termos. A terceira: deve-se

concordar totalmente com o teórico que “Água é gênero e recursos hídricos é

espécie”. Por fim, não podemos concordar que a água seja apenas o elemento, a

substância “descomprometida com qualquer uso ou utilização”, pois, assim,

estaríamos esvaziando o conteúdo de um direito humano de acesso à água porque

este deve ser comprometido com os usos garantidores da sobrevivência humana

(POMPEU, 2002, p.15).

Sobre recursos hídricos, Andrew P. Morriss (2006, p.37) disserta a respeito da

valoração econômica da água, inclusive sobre a possibilidade dessa apreciação

econômica que toma a água um bem de mercado. Em suas considerações, o autor

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coloca três categorias para responder a essa questão. A primeira se dirige à noção

do valor intrínseco de um bem, sugerindo que um determinado bem possui um valor

categórico que pode ser determinado de alguma forma. Uma segunda abordagem

parte do pressuposto que certos bens não são sequer passíveis de valoração

econômica. Nessa categoria, incluem-se, por exemplo, as vidas humanas.

Finalmente, a terceira categoria depende de observações acerca do comportamento

humano, particularmente sobre as escolhas feitas por pessoas reais com seus

recursos escassos. Segundo Morriss (2006, p.37), nessa categoria se incluem os

mercados que são conectados com as escolhas verdadeiras das pessoas e suas

conseqüências no mundo real, ou seja, esses atributos possibilitam que os

mercados avaliem os recursos atribuindo a eles valores mais altos que quaisquer

outras alternativas. Assim, o mercado seria, no entendimento do autor, a única

maneira para valorar os recursos, inclusive a água, de modo a evitar conflitos entre

os usuários que competem entre si (MORRISS, 2006, p.37)43.

Posteriormente, Morriss delineia quatro razões importantes para justificar a

apreciação econômica da água nos mercados: a) eles são meios de baixo custo

para fornecer às pessoas uma noção adequada sobre o valor de vários usos da

água, permitindo, com isso, que haja um melhor aproveitamento do recurso dentre

os vários usuários; b) os mercados permitem que os usos da água variem de acordo

com a demanda e o desenvolvimento do conhecimento e da técnica, uma vez que

provêm uma valoração dinâmica, adaptando-se constantemente às mudanças; c)

encorajam os investimentos para o atendimento às necessidades humanas; e, por

fim, d) os mercados não requerem um consenso entre seus usuários para todos os

fins, permitindo, assim, que uma diversidade de indivíduos coexistam pacificamente

(MORRISS, 2006, p.37-38).

Por fim, o autor conclui inferindo que “a água pode ser valiosa ou sem valor,

dependendo do tempo em que se encontra ou do lugar de onde verte”44 (MORRISS,

2006, p.63). Em lugares onde o recurso é escasso, atribui-se a ele um valor maior do

que nas áreas onde há abundância. O valor econômico da água, portanto, depende

de uma infinidade de fatores, o que dificulta o trabalho das instituições humanas

43 Tradução livre de: “[…] markets provide the only way to value resources, including water, in a manner which does not provoke conflicts among competing users (MORRISS, 2006, p.37).

44 Tradução livre de: “Water can be precious or worthless – it depends on the time and place where it sits and flows” (MORRISS, 2006, p.63).

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avaliarem-no de forma competente, desconsiderando o contexto das escolhas das

pessoas no mundo real com recursos reais e, freqüentemente, a alocação

administrativa acarreta o engessamento da definição de água, negligenciando o

dinamismo de nosso entendimento sobre seu valor (MORRISS, 2006, p.64).

Nesse intuito, para os fins pretendidos neste trabalho, entenderemos que a

diferença entre os termos se dá explicitamente no tocante à apreciação econômica

aplicável somente ao termo recursos hídricos, à ‘água como bem de apreciação

econômica, cujo uso remete ao fim econômico e tão somente utilizada como

mercadoria, seja envolvida na produção de bens, seja como objeto de

mercantilização’. Assim, buscaremos conceituar Água como ‘o elemento natural, em

qualidade e quantidade necessária à manutenção dos ecossistemas e ao

atendimento das necessidades humanas’45.

A partir da diferenciação desses termos poderemos tratar a relação do direito

à água com o rol de direitos humanos, justamente buscando respostas para a

discussão sobre a necessidade ou desnecessidade de positivação do acesso à água

como direito humano.

3.3 A positivação de um direito à água

O questionamento acerca da positivação do direito à água impulsiona a

comunidade internacional e os Estados-membros da ONU para a discussão deste

direito como um direito humano, onde o documento mais importante até hoje

produzido é o Comentário Geral nº 15 sobre os artigos 11 e 12 do PIDESC,

desenvolvido pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sob a égide

do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas que discute a

necessidade ou desnecessidade dessa positivação.

A existência de inúmeros documentos internacionais, como Convenções e

Tratados, parece sanar o problema porque o assunto está presente em vários deles.

No entanto, essas Convenções e Tratados muitas vezes pecam pelo generalismo e

pela abordagem vaga (SALMAN et MCINERNEY-LANKFORD, 2004, p.45),

45 Conceito produzido pela autora deste trabalho, com inferências de SOUZA, 2003b, p.18.

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acarretando uma aparente proteção dos direitos. Por fim, ao invés de sinalizar

avanços, isso acaba demonstrando a falência da comunidade internacional em

desenvolver um arcabouço legal eficiente sobre muitos dos principais direitos

econômicos desde a adoção da Convenção em 1966 (ALSTON apud SALMAN et

MCINERNEY-LANKFORD, 2004, p.45), o que justifica a produção de tantos

Comentários Gerais.

3.3.1 Os Comentários Gerais

Desde a adoção do PIDESC, levaram aproximadamente dez anos para que o

Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais começasse a funcionar. A

evolução do Grupo de Trabalho para o Comitê foi decidida na Resolução 1985/17 do

Conselho Econômico e Social – ECOSOC da ONU e, somente em 1987, o ECOSOC

convidou o Comitê para preparar comentários gerais de maneira análoga à prática

seguida pelo Comitê de Direitos Humanos(SALMAN et MCINERNEY-LANKFORD,

2004, p.45).

Logo, é no ano de 1988 que o Comitê sobre o PIDESC entra formalmente em

funcionamento, voltando seu trabalho à preparação dos “Comentários Gerais” sobre

os vários artigos do PIDESC.

Os Comentários Gerais seguem um trâmite específico dentro do Comitê.

Portanto, qualquer membro pode formular um Comentário Geral Provisório (ou,

Proposta de Comentário Geral, como queira) que será levado à consideração no

plenário do próprio Comitê. Se adotado, é incluído no Relatório anual do Comitê

para o ECOSOC que é levado para apreciação na Assembléia Geral da ONU,

responsável por encaminhar o documento para análise pelos Estados-membros. As

críticas e opiniões feitas pelos Estados são levadas à próxima reunião do Comitê

para serem debatidas.

Os Comentários trouxeram ao Comitê uma dinâmica muito mais ativa e o

desempenho de um papel quase-judicial, como se percebe a seguir:

O comitê pretende, com seus Comentários Gerais: fazer com que a experiência adquirida até então através do exame destes relatórios disponíveis para o benefício de todos os Estados-partes a fim de assistir e promover neles uma melhor implementação da Convenção; chamar a atenção dos Estados-partes para as insuficiências divulgadas por um

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grande número de relatórios; sugerir novas atividades e melhorias nos procedimentos já relatados pelos Estados-partes, pelas das organizações internacionais e pelas agências especializadas no que se refere à realização progressiva e eficaz dos direitos da Convenção. Sempre que necessário, o comitê pode, à luz das experiências dos Estados-partes e de suas conclusões, também revisar e atualizar esses Comentários Gerais46 (Documento E/1989/22 - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS apud SALMAN et MCINERNEY-LANKFORD, 2004, p.46).

Deve-se ressaltar nesse trecho do Relatório Comitê para o ECOSOC, em

1989 (Documento E/1989/22 da ONU) o modus operandi adotado pelo órgão que é

calcado tanto nos reports fornecidos pelos Estados-partes como nas obrigações do

Comitê com esses Estados-partes para auxiliar na implementação desses direitos e

apontar as insuficiências relatadas. Também devemos ressaltar a atribuição do

Comitê de encorajar ações de sugestão de melhorias nos programas e atividades já

implementados, seja pelos Estados-partes, seja pelos organismos internacionais. A

possibilidade de revisão e melhorias dos Comentários Gerais é uma importante

inovação que permite sua freqüente atualização (SALMAN et MCINERNEY-

LANKFORD, 2004, p.46-48).

Por fim, os Comentários Gerais não são vinculantes por si só porque o Comitê

não tem autoridade para criar novas obrigações para os Estados-partes do PIDESC.

De qualquer forma, esses Comentários Gerais carregam em si um relevante

conteúdo legal cuja discussão pode vir a se tornar hard law (SALMAN et

MCINERNEY-LANKFORD, 2004, p.49).

3.3.2 O direito à água e o Comentário Geral nº 15 sobre o PIDESC

O Comentário Geral nº 15 sobre o PIDESC, elaborado pelo Comitê sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em 2002, tem como objeto os artigos 11 e

12 do referido Pacto, no tocante ao direito à água. Na academia, o Comentário foi 46 Tradução livre de: “The Committee endeavours, through its general comments, to make the experience gained so far through the examination of these reports available for the benefit of all States Parties in order to assist and promote their further implementation of the Covenant; to draw the attention of the States Parties to insufficiencies disclosed by a large number of reports; to suggest improvements in the reporting procedures and to stimulate the activities of the States Parties, the international organizations and the specialized agencies concerned in achieving progressively and effectively the full realization of the rights recognized in the Covenant. Whenever necessary, the Committee may, in the light of the experience of States Parties and of the conclusions which it has drawn therefrom, revise and update its general comments” (Documento E/1989/22 - ORGANIZAÇAO DAS NAÇÕES UNIDAS apud SALMAN et MCINERNEY-LANKFORD, 2004, p.46).

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objeto de algumas considerações sobre esse direito, pois é o instrumento oriundo do

direito internacional público contemporâneo que endereça o tema de forma mais

direta e explícita.

Henri Smets entende como direito à água “O direito de toda pessoa, seja qual

for seu nível econômico, de dispor de uma quantidade mínima de água mas

suficiente para a vida e a saúde”47 (SMETS, 2002, p.7).

Conforme o entendimento do autor, essa quantidade limitada deve permitir ao

homem satisfazer suas necessidades essenciais (água pra beber, preparar

alimentos, higiene e limpeza), assegurar a sobrevivência dos animais de companhia

e permitir a manutenção de uma pequena produção familiar de alimentos (uma horta

e alguns animais domésticos). Essa quantidade, segundo estudos realizados por

Henri Smets, ultrapassa os 40 litros diários por pessoa nas cidades dos países

industrializados, ainda bem inferior à quantidade média consumida por uma pessoa

em seu domicílio (em torno de 100 a 200 litros/dia, na Europa), mas apenas uma

parte dessa água deve ser imperativamente de boa qualidade (SMETS, 2004, p.7-8).

Os autores John Scanlon, Angela Cassar e Noémi Nemes (2004, p.2) definem

o direito à água como o direito ao acesso a água suficiente – com o termo ‘acesso’

abordando também a acessibilidade econômica, isto é, disponibilidade, e o termo

‘suficiente’ referindo-se à qualidade e quantidade de água necessárias para suprir as

necessidades básicas do ser humano48.

Smets (2004, p.9) entende que o direito à água também deve considerar

algumas ‘pessoas morais’ como hospitais, clínicas, escolas, pensionatos, conventos,

mesquitas, igrejas etc., mas afirma que sua análise, assim como se pretende no

presente trabalho, limita-se somente às pessoas individuais em suas casas.

Assim, em meio urbano, o direito à água concerne tanto ao abastecimento de

água potável quanto ao saneamento das águas residuais, ou seja, se dirige aos

serviços prestados sobre um bem captado gratuitamente. Deve-se entender que o

47 Tradução livre de: “le droit pour toute personne, quel que soit son niveau économique, de disposer d’une quantité minimale d’eau de bonne qualité qui soit suffisante pour la vie et la santé” (SMETS, 2002, p.7).

48 Tradução livre de: “The authors define a 'right to water' as the right to access suficient water, with the term 'access' also including economic accessibility, i.e. affordability, and with the term 'sufficient' referring to both the quality and quantity of water necessary to meet basic human needs” (SCANLON, CASSAR et NEMES, 2004, p.2).

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direito à água nas cidades urbanas concentra-se no acesso das pessoas às redes

de distribuição e saneamento (SMETS, 2002, p.9).

Longe das cidades urbanas, direito à água significa garantir o mínimo de água

necessário para cada pessoa em locais próximos à sua habitação.

Seja lá qual for o caso abordado, podemos perceber aqui uma intenção do

autor em demonstrar a necessidade da proximidade do acesso à água para

promoção e gozo do direito à água.

O direito à água, portanto, deve preocupar-se muito mais com quem não tem

acesso à água: nos países desenvolvidos, aquelas mais miseráveis e nos países em

desenvolvimento, aquelas que não possuem serviço de saneamento ou de água

potável (SMETS, 2004, p.10).

Não se deve, entretanto, confundir o direito à água a uma idéia simplista que

assume a gratuidade do acesso para todos. Smets esclarece que existem inúmeras

outras medidas que podem ser aplicadas para garantir o direito à água.

Além disso, o direito à água não deve garantir o consumo superior à

quantidade suficiente para suprir as necessidades essenciais, não deve

regulamentar a propriedade, nem mesmo regular o uso para desempenho de

atividades agrícolas, industriais ou comerciais, o que restringe seu objeto. Por esse

motivo, a água a que se refere o direito à água é apenas uma fração do recurso

‘água’ e pode, sem dificuldade, receber um tratamento derrogatório ou específico

(SMETS, 2004, p.10).

Em contrapartida, o direito da água permite precisar os direitos de cada um sobre a água e modalidades de uma utilização eqüitativa e racional. Estas variam em função do regime hidrológico, a tradição jurídica e as pressões fortes ou fracas exercidas sobre o recurso que pode ser abundante ou raro49 (SMETS, 2003, p.10).

Ao discutir o direito à água em nível internacional, Henri Smets enfoca a

colocação do direito à água como parte integrante dos direitos humanos já

reconhecidos. Pondera que, após dezenas de anos, ainda nos interrogamos acerca

da natureza do direito à água e se ele deve ser entendido como um direito humano.

Ora, uma resposta efetiva a esse questionamento deve esclarecer que o

49 Tradução livre de: “En revanche, le droit de l’eau permet de préciser les droits de chacun sur l’eau et les modalités d’une utilisation équitable et rationnelle. Celles-ci varient en fonction du régime hydrologique, de la tradition juridique et des pressions fortes ou faibles exercées sur la ressource qui peut être abondante ou rare” (SMETS, 2004, p.10).

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reconhecimento do direito a um nível de vida adequado já se encontra no art. 11 do

PIDESC e sua compreensão deve abarcar também a disponibilização de água

necessária para a realização do direito à vida para qualquer indivíduo: “Os estados-

partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida

adequado” (PIDESC, 1966, art.11).

Figura 2: Sobreposição do direito à água com o direito ao meio ambiente, o direito à saúde, e o direito à alimentação e à habitação. Fonte: SMETS, 2004, p.23.

Henri Smets busca representar a interação entre o direito à água e os outros

direitos humanos já existentes e reconhecidos (Figura 2, acima), onde: A representa

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o direito à Habitação sadia e a, caixas d’água e limpeza; B representa a alimentação

sadia e b, a água para a cocção de alimentos; C representa ar sadio, rios limpos,

solos não contaminados, ausência de poluição sonora etc., e c, a água para higiene

corporal e saneamento.

Por conseguinte, entende-se a relação D+E como símbolo de: natureza,

diversidade biológica e paisagística preservada, bem como os recursos naturais

protegidos, dentre os quais d é a água para produção alimentar e animais de

companhia. F é direito à vida; f, água de beber; a relação A+B+C se refere a

condições sadias de vida, enquanto A+B+C+D representa um ambiente limpo

próprio para assegurar a saúde e o bem-estar. Por fim, A+B+C+D+E simbolizam a

proteção do meio ambiente e a+b+c+d+f, o direito à água (SMETS, 2004, p.23-24).

Deve-se ressaltar que a água destinada aos usos agropecuários, agrícolas,

industriais ou recreativos está em D-d, a água para manutenção dos ecossistemas

em E (Ecologia) e D (manutenção da vida)50.

Através da figura, podemos perceber claramente a inter-relação e a

interdependência existente entre os direitos humanos. Assim, o direito à água se

relaciona intimamente com o direito à vida, o direito à saúde, o direito ao meio

ambiente, o direito à dignidade, o direito à habitação e à alimentação. Em maior ou

menor grau, o direito à água é expresso em alguns instrumentos internacionais.

Henri Smets sustenta que, quando há um direito a uma qualidade de vida

razoável, com alimentação adequada, saúde e habitação, pode-se até desconsiderar

a necessidade de criação de um novo direito à água pois, como todos esses direitos

já se encontram reconhecidos, há um reconhecimento automático do direito à água.

Entende assim que o direito à água é parte integrante desses direitos e que a

aplicação efetiva desses direitos já reconhecidos seria suficiente para a garantia do

direito à água (SMETS, 2002, p.24).

Todavia, observamos no cenário atual uma aplicação muito desigual desses

direitos humanos ao redor do mundo. Assim, caberia aos Estados a aplicação

desses direitos de forma eficaz, realidade ainda muito distante da situação corrente.

Pode-se inferir, em uma óptica divergente do entendimento de Henri Smets

que, ao afirmarmos o direito à água como parte integrante dos direitos humanos

internacionalmente conhecidos, na verdade o que temos como parte integrante é o

50 Ver estudo relativo à figura no Apêndice, p.117-122.

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alcance desse direito ligado à proteção dos demais direitos e vice-versa. E, mesmo

que o direito à água esteja direta ou indiretamente reconhecido em diversos

instrumentos, essa normatização ainda é muito esparsa e não se consolidou de

forma a impor obrigações aos Estados.

O Comentário Geral nº 1551 reconhece que a água é um recurso limitado e um

bem público fundamental para a vida e a saúde, enfatizando que ela é pré-requisito

para a realização de outros direitos humanos. Conforme disposto no Comentário:

O direito humano à água intitula todas as pessoas a uma água segura, aceitável, fisicamente acessível e disponível, em quantidade suficiente para os usos doméstico e pessoal. Uma quantidade de água segura e adequada é necessária para reduzir as mortes por desidratação, para reduzir os riscos de doenças relacionadas aos recursos hídricos e para atingir as necessidades para consumo e para higiene doméstica e pessoal 52 (ECOSOC, 2002).

O Comentário endereça a adequação da água requerida para implementar o

direito à água pode variar de acordo com condições diferentes. Assim, esse conceito

é centrado em três fatores: o primeiro, a disponibilidade (o suprimento de água

para qualquer pessoa deve ser suficiente e contínuo para o uso individual e

doméstico); o segundo fator é a qualidade (a água deve ser segura e livre de

quaisquer microorganismos, substâncias químicas ou radioatividade); o último fator é

a acessibilidade (que para o comitê se divide em acessibilidade física, econômica,

não-discriminatória e a acessibilidade de informação).

Assim, roga aos Estados-parte para adotar medidas efetivas para atingir o

direito à água de forma não-discriminatória.

De um modo geral, a abordagem do direito à água feita pelo Comentário

Geral nº 15 reconhece o direito à água através de derivações e inferências sobre os

artigos 11 e 12 do PIDESC, mediante a análise da centralidade e necessidade da

água para a efetivação de todos os outros direitos constantes do Pacto e de outros

instrumentos de Direitos Humanos (SALMAN et MCINERNEY-LANKFORD, 2004,

p.64).

51 Ver Anexo F.

52 Tradução livre de: “The human right to water entitles everyone to sufficient, safe, acceptable, physically accessible and affordable water for personal and domestic uses. An adequate amount of safe water is necessary to prevent death from dehydration, to reduce the risk of water-related diseases and to provide for consumption, cooking, personal and domestic hygienic requirements” (SALMAN et MCINERNEY-LANKFORD, 2004, p.54).

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O direito humano à água implica consideráveis ações e responsabilidades

governamentais. Conforme o texto do próprio Comentário 15, tal direito requer ações

além da provisão de água para beber: sua extensão abrange a água para

manutenção do meio ambiente e dos ecossistemas, para a higiene, saúde e para o

cultivo de alimentos. Há também a especificação de obrigações relativas à

promoção, proteção e salvaguarda do acesso à água, como a realização progressiva

dos direitos relacionados no Pacto, bem como o provimento de água em qualidade,

quantidade e acessibilidade adequadas, no sentido de buscar o cumprimento dos

artigos 11 e 12 do Pacto.

O Comentário Geral atribui direitos e liberdades. Dentre as liberdades estão o

direito de manter o acesso às fontes de água já existentes, necessárias para o

direito à água, e o direito de estar livre de interferência; por outro lado, os direitos

incluem o direito a um sistema de distribuição e gerenciamento de recursos hídricos

que forneça oportunidades iguais para as pessoas gozarem do direito à água.

A primeira dessas obrigações é a obrigação de respeitar, uma obrigação que

requer dos Estados a não-interferência direta ou indireta no gozo desse direito. A

segunda é a obrigação de proteger, pela qual os Estados devem impedir que

terceiros interfiram na fruição desse direito.

O terceiro tipo de obrigação elencada no Comentário é a de implementar,

desdobrada nas obrigações de facilitar, promover e prover. A obrigação de facilitar

diz respeito a medidas positivas para garantir esse direito às comunidades e às

pessoas. A obrigação de promover obriga aos Estados-partes que empreendam

ações para educar os indivíduos sobre o uso higiênico, a proteção das fontes e os

métodos para reduzir o desperdício da água. Por fim, a obrigação de prover refere-

se à realização plena do direito à água e à garantia do reconhecimento do direito à

água nos sistemas nacionais, políticos e legais bem como a adoção de estratégias

nacionais hídricas e a segurança de um acesso disponível para todos.

As violações do direito à água que constam no Comentário nº 15 do PIDESC

podem ser entendidas de melhor forma quando confrontadas com a aplicação do

conteúdo normativo do direito à água e as obrigações dos Estados-partes e se dão

tanto por atos comissivos quanto por atos omissivos. Assim, são estabelecidas as

violações à obrigação de respeitar, à disponibilidade dos recursos, à não

interferência etc.. (SALMAN et MCINERNEY-LANKFORD, 2004, p.68-70).

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Os autores Salman e McInerney-Lankford concluem que o direito à água

ainda é incipiente no Direito Internacional Público contemporâneo e que o

Comentário Geral nº 15 sobre o PIDESC vem corroborar com essa tese. Mesmo

considerando o arcabouço legal existente bastante volumoso, ele é constituído por

inúmeros instrumentos de soft law como declarações e resoluções. Porém devemos

notar que o simples fato da elaboração de um documento nessas proporções pode

significar a emergência de um princípio do direito internacional sobre o direito

humano à água.

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CONCLUSÃO

Os direitos humanos devem ser tratados na prática como um núcleo uno e

indivisível, entendendo-se que sua interpretação se dá de acordo com o contexto

histórico no qual se inserem. Assim, devemos ressaltar que, apesar da existência de

inúmeros outros direitos relacionados ao direito à água, como bem ressalta Henri

Smets, é necessária a positivação de um direito humano que garanta, proteja e

controle esse acesso.

Nesse sentido, ao se positivar o direito à água, independentemente do

reconhecimento dos direitos à vida, à habitação, à saúde, à dignidade humana, esse

passa a integrar o núcleo dos direitos humanos, porém adquirindo conceito e

identidade própria.

Para que conflitos que envolvam recursos hídricos não sejam recorrentes no

cenário internacional, deve-se delimitar esse direito também no plano interno,

respeitando a soberania de cada Estado, mas resguardando o atendimento às

necessidade dos indivíduos aqui entendidos como cidadãos do mundo – ou seja, os

seres humanos, para os fins desse direito, devem ser considerados sem quaisquer

distinções, tarefa cada vez mais complicada se levarmos em conta as diferenças já

existentes.

O arcabouço legal existente é esparso e trata a matéria de forma mais

implícita que explícita. Apesar das argumentações a favor desta positivação do

acesso à água como direito humano, devemos entender que o reconhecimento

formal do direito humano de acesso à água, deve conferir a ele conteúdo e efeito,

implicando em que os governos e a comunidade internacional sejam encorajados a

unir suas forças no sentido de satisfazer os direitos humanos mais básicos e

também para alcançar os objetivos expressos na Declaração do Milênio.

A proposta de positivação do direito humano à água pode também servir para

aumentar a pressão nos governos para a implementação de políticas no nível

nacional, que devem buscar a consecução de objetivos relacionados a esse direito,

ao passo em que atribui aos agentes obrigações e responsabilidades. Outro ponto a

ser abordado pelo conteúdo do direito à água é a solução de controvérsias que têm

a água como objeto.

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O grande problema do direito à água, no entanto, ainda é a falta de

informações suficientes e de bases de dados confiáveis sobre qualidade e

quantidade de água, o que impossibilita a divisão eqüitativa entre os usuários intra-

muros. Assim, sem dados técnicos oficiais a respeito do fluxo anual dos rios e da

capacidade de vazão da bacia hidrográfica como um todo, há uma complicação no

desenvolvimento de ações de cooperação para a consolidação e efetivação desse

direito, colocando entraves à sua eficácia.

A ONU assume já vivermos uma séria crise hídrica, mas entende que essa

crise diz respeito à má governança dos cursos d’água, essencialmente causada

pelos modos como usamos a água hoje em dia. A grande preocupação das Nações

Unidas no presente é com a situação dos pobres que, sem muita opção, têm acesso

a uma água de baixa qualidade, aumentando o número de pessoas que morrem

devido a doenças relacionadas à má qualidade da água disponível.

Entretanto, o direito à água não pode desconsiderar os diferentes usos e

usuários, por mais que se constitua como um direito humano, posto que os recursos

hídricos são compartilhados por vários usuários além dos indivíduos tão somente.

Medidas para a alocação de água entre os demais usos incluem uma estratégia ou

legislação nacional para a alocação da água entre os setores, a criação de

restrições tarifárias e subsídios direcionados, o gerenciamento da extração, a

aplicação e o reforço dos objetivos que visam a melhoria da qualidade das águas,

bem como a criação de regras para a operação de reservatórios, o gerenciamento

do multiuso destes reservatórios e de seus sistemas. Para que uma governança

mais efetiva da água seja alcançada, é necessário proceder à reforma e à

implementação das políticas hídricas e instituições ligadas ao seu gerenciamento.

Nesse ponto, questões como os direitos de propriedade, a fragmentação das

instituições, a facilitação de iniciativas dos setores público e privado e a participação

da sociedade civil devem ser estudadas cautelosamente.

O desafio é cada vez maior: para que os objetivos do abastecimento de água

e do saneamento básico atinjam as expectativas das Nações Unidas, é necessário

suprir um número de 342.000 pessoas por dia até 2015, conforme projeções da

UNESCO para atingir as Metas do Milênio.

A questão da gestão dos recursos hídricos é muito complexa e diz respeito à

redistribuição de um recurso natural e, por isso, deve levar em conta suas

características geográficas, físicas, econômicas, ambientais e sociais. Desse modo,

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a elaboração de tal gerenciamento pede a análise e o estabelecimento de

prioridades de diferentes usos e usuários. Ainda, como grande parte das águas são

transfronteiriças, essa competição de prioridades gera quase sempre um conflito de

interesses que, se levado às últimas conseqüências, pode se tornar um conflito

armado. Assim, a resolução dessa questão diz respeito não só à geopolítica local,

mas também à negociação da paz, uma vez que a escassez de água afeta desde

indivíduos até o desenvolvimento econômico-financeiro de uma região.

A conscientização de que somente através do esforço conjunto das nações

envolvidas será possível resolver as questões políticas, sociais, financeiras,

econômicas, ambientais e técnicas (tecnológicas) do problema da escassez da água

é um grande desafio às nações no sentido de preservar suas populações.

O maior desafio hoje é a diminuta oferta de recursos financeiros nos países

em desenvolvimento, dificultando a promoção de atividades de gestão compartilhada

para resguardar a segurança hídrica e alimentar de suas populações, assim como o

próprio desenvolvimento de cada nação, impossibilitando, desta forma, o acesso de

todos a uma água de qualidade e quantidade adequadas e uma maior

sustentabilidade do meio ambiente.

O problema atual referente ao direito humano de acesso à água afeta grande

parte dos direitos humanos, no plano interno ou no plano externo: o direito criado no

papel raramente é aplicado com eficácia, por mais que existam instrumentos legais e

normativos, quer seja de forma dispersa ou condensada, quer seja hard law ou

soft law.

Podemos ponderar que a emergência de instrumentos de soft law pode

ensejar a elaboração de instrumentos mais potentes de proteção ao direito à água,

esperando que o surgimento da recente discussão sobre o direito à água,

inaugurada em 2002 pelo Comentário Geral nº 15 possa gerar frutos e consolidar as

obrigações e o conteúdo desse direito tanto no plano internacional quanto interno.

Conclui-se também que, por mais que o direito à água seja entendido como

um direito humano fundamental e essencial a ser protegido pelos Estados, deve-se

respeitar a soberania de cada um. Desta forma, a implementação e a aplicação

desse direito – tanto pela recepção das normas internacionais quanto pela

efetivação de políticas públicas internas – é atribuição única e exclusiva de cada

Estado, não justificando, portanto, interferências externas na garantia desse direito,

a não ser quando requeridas.

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Por fim, algumas considerações devem ser feitas a respeito do direito à água.

A primeira é que o direito à água é um direito humano, por ser a água elemento

essencial para a sobrevivência humana. O direito à água é também um direito

humano intergeracional, porque abrange os aspectos mais diversos da manutenção

da vida no planeta e tem relações de interdependência com os outros direitos

humanos já amplamente reconhecidos como o direito à vida, à saúde, ao meio

ambiente, à dignidade e à habitação e alimentação sadias.

Sendo assim, cabe-nos concluir que a necessidade de uma ampla divulgação

desse direito conferirá a todos os seres humanos o direito de reivindicar condições

de vida melhores e mais justas perante seu Estado e perante a comunidade

internacional.

A positivação do direito humano de acesso à água é apenas um passo, pois

sua aplicação ainda possui um longo caminho a ser trilhado para que, em 2015, as

metas traçadas pela Declaração do Milênio sejam atingidas de forma adequada.

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APÊNDICE A – Estudo sobre direito à água, segundo Henri Smets

Figura 1: A – Direito à habitação sadia e a – caixas d’água e limpeza.

Figura 2: B – Direito à alimentação sadia e b – água para cocção e preparação de alimentos

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Figura 3: C – Ar sadio, rios limpos, solos não contaminados, ausência de poluição sonora etc. c – água para higiene corporal e saneamento.

Figura 4: D+E – Direito à natureza, diversidade biológica e paisagística preservada, bem como os recursos naturais protegidos, dentre os quais

D – água para produção de alimentos e criação de animais de companhia.

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Figura 5: F – Direito à vida f – água de beber

Figura 6: A+B+C – Condições sadias de vida

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Figura 7: A+B+C+D – Ambiente limpo, próprio para assegurar a saúde e o bem estar.

Figura 8: A+B+C+D+E – Proteção do meio ambiente.

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Figura 9: a+b+c+d+f – Direito à água.

Figura 10: D-d – Onde se encontra água destinada aos usos agropecuários, agrícolas, industriais ou recreativos

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Figura 11: Água para manutenção dos ecossistemas em E (ecologia) e D (manutenção da vida).

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ANEXO A – Convenção de Genebra III Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de GuerraI, 1949: Artigos relacionados ao direito à água – Grifo nosso

Artigo 20

A evacuação dos prisioneiros de guerra efetuar-se-á sempre com humanidade e em condições semelhantes àquelas em que são efetuados os deslocamentos das forças da Potência detentora.

A Potência detentora fornecerá aos prisioneiros de guerra evacuados água potável e alimentação suficiente, assim como fatos e os cuidados médicos necessários; ela tomará todas as precauções úteis para garantir a sua segurança durante a evacuação e organizará, o mais cedo possível, relações dos prisioneiros evacuados.

Se os prisioneiros de guerra devem passar, durante a evacuação, por campos de trânsito, a sua permanência nestes campos será o mais curta possível.

Artigo 26

A ração alimentar diária básica será suficiente, em quantidade, qualidade e variedade, para manter os prisioneiros de boa saúde e impedir uma perda de peso ou o desenvolvimento de doenças por carência de alimentação. Ter-se-á igualmente em conta o regime a que estão habituados os prisioneiros.

A Potência detentora fornecerá aos prisioneiros de guerra que trabalham os suplementos de alimentação necessários para o desempenho dos trabalhos em que estão empregados.

Será fornecida aos prisioneiros de guerra água potável suficiente e será autorizado o uso do tabaco.

Os prisioneiros de guerra serão associados na medida do possível à preparação das suas refeições. Eles podem ser empregados nas cozinhas para este efeito. Ser-lhes-ão também dados os meios necessários para eles próprios prepararem a alimentação suplementar em seu poder.

Ser-lhes-ão fornecidos locais apropriados para servirem de messe e de refeitório.

São proibidas todas as medidas disciplinares coletivas afetando a alimentação.

Artigo 29

A Potência detentora será obrigada a tomar todas as medidas de higiene necessárias para assegurar a limpeza e a salubridade dos campos e para impedir as epidemias.

Os prisioneiros de guerra disporão, dia e noite, de instalações em conformidade com as regras de higiene e mantidas em permanente estado de limpeza. Nos campos em que haja prisioneiros de guerra deverá haver instalações separadas.

Também, sem prejuízo dos banhos e dos duches que pertencem aos campos, será fornecido aos prisioneiros de guerra água e sabão em quantidade suficiente para os seus

I In: Biblioteca Virtual de Direitos Humanos – Universidade de São Paulo – USP. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Sist_glob_trat/texto/guerra/genebra/genebra3.htm>, acesso em 10/02/2008.

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cuidados diários de limpeza corporal e para lavagem da sua roupa; para este efeito ser-lhes-ão dadas instalações, facilidades e o tempo que for considerado necessário.

Artigo 46

A Potência detentora, quando decidir a transferência de prisioneiros de guerra, deverá considerar os interesses dos próprios prisioneiros, tendo em vista, principalmente, não aumentar as dificuldades do seu repatriamento.

A transferência dos prisioneiros de guerra excetuar-se-á sempre com umidade e em condições que não deverão ser menos favoráveis que aquelas de que beneficiem as tropas da Potência detentora nos seus deslocamentos. Ter-se-á sempre em conta as condições climáticas a que os prisioneiros de guerra estão acostumados e que a transferência não seja em nenhum caso prejudicial à sua saúde.

A Potência detentora fornecerá aos prisioneiros de guerra, durante a transferência, água potável e alimentação em quantidade suficiente para os manter em boa saúde, assim como vestuário, alojamento e a assistência médica necessária. Tomará todas as precauções adequadas, principalmente em caso de transporte por mar ou pelo ar, para garantir a sua segurança durante a transferência e organizará, antes da partida, a relação completa dos prisioneiros transferidos.

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ANEXO B – Convenção de Genebra IV Relativa à Proteção das Pessoas Civis em Tempo de GuerraI, 1949: Artigos relacionados ao direito à água – Grifo nosso

Artigo 85

A Potência detentora tem o dever de tomar todas as medidas necessárias e possíveis para que as pessoas protegidas sejam, desde o início do seu internamento, alojadas em prédios ou acantonamentos que ofereçam todas as garantias de higiene e de salubridade e que assegurem uma proteção eficaz contra o rigor do clima e os efeitos da guerra. Em caso algum os lugares de internamento permanente serão situados em regiões doentias ou de clima pernicioso para os internados. Sempre que estiverem temporariamente internados numa região doentia, ou com clima prejudicial para a saúde, as pessoas protegidas deverão ser transferidas, tão rapidamente quanto as circunstâncias o permitam, para um lugar de internamento onde estes riscos não sejam de temer.

As instalações deverão estar completamente protegidas da umidade, suficientemente aquecidas e iluminadas, especialmente desde o escurecer ao alvorecer. Os dormitórios deverão ser suficientemente espaçosos e bem ventilados, os internados disporão de leitos apropriados e cobertores em número suficiente, tendo-se em consideração o clima e a idade, o sexo e o estado de saúde dos internados.

Os internados disporão durante o dia e noite de instalações sanitárias compatíveis com as exigências da higiene e mantidas em permanente estado de limpeza. Ser-lhes-á fornecida água e sabão em quantidade suficiente para a limpeza pessoal diária e para a lavagem da sua roupa; as instalações e as facilidades necessárias serão postas à sua disposição para este efeito. Também disporão de instalações de banhos de chuva ou de imersão. Será concedido o tempo necessário para os cuidados de higiene e trabalhos de limpeza. Sempre que seja necessário, a título de medida excepcional e temporária, alojar mulheres internadas que não pertençam a um grupo familiar no mesmo lugar de internamento que os homens, serão obrigatoriamente fornecidos dormitórios e instalações sanitárias separadas.

Artigo 89

A ração alimentar diária dos internados será suficiente, em quantidade, qualidade variedade, para lhes garantir um equilíbrio normal de saúde e evitar as perturbações por deficiência de nutrição; também serão consideradas as dietas usuais dos internados.

Os internados receberão também os meios próprios para prepararem qualquer alimentação suplementar de que disponham.

Ser-lhes-á fornecida suficiente água potável. Será autorizado o uso do tabaco.

Os trabalhadores receberão um suplementos de alimentação proporcional à natureza do trabalho que efetuem.

As mulheres grávidas e parturientes e as crianças com menos de 15 anos receberão suplementos de alimentação de harmonia com as suas necessidades fisiológicas.

I In: Biblioteca Virtual de Direitos Humanos – Universidade de São Paulo – USP. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Sist_glob_trat/texto/guerra/genebra/genebra4.htm>, acesso em 10/02/2008.

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Artigo 127

A transferência dos internados excetuar-se-á sempre com humanidade. Será realizada, em regra, por caminho de ferro ou por outro meio de transporte e em condições pelo menos iguais àquelas de que beneficiam as tropas da Potência detentora nos seus deslocamentos. Se, excepcionalmente, as transferências tiverem de ser feitas pela via ordinária, só poderão ter lugar se o estado de saúde dos internados o permitir e não deverão em caso algum sujeitá-los a fadigas excessivas.

A Potência detentora fornecerá aos internados, durante a transferência, água potável e alimentação em quantidade, qualidade e variedade suficientes para mantê-los com boa saúde, e também os vestuários, abrigos adequados e os cuidados médicos necessários. A Potência detentora tomará todas as precauções úteis para garantir a sua segurança durante a transferência e organizará, antes da sua partida, uma relação completa dos internados transferidos.

Os internados doentes, feridos ou enfermos, assim como as parturientes, não serão transferidos se a viagem puder agravar o seu estado, a não ser que a sua segurança o exija imperiosamente.

Se a zona de combate se aproximar de um lugar de internamento, os internados que se encontrem no referido lugar, não serão transferidos, a não ser que a sua transferência possa ser realizada em condições de segurança suficientes ou se eles correrem maior risco ficando no lugar do que sendo transferidos.

A Potência detentora, ao decidir a transferência dos internados, deverá considerar os seus interesses, tendo principalmente em vista, não lhes aumentar as dificuldades do repatriamento ou do regresso aos seus domicílios.

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ANEXO C – Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra de 1949 Relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados InternacionaisI, 1977: Artigos relacionados ao direito à água – Grifo nosso

Artigo 54: Proteção dos bens indispensáveis à sobrevivência da população civil

1 - É proibido utilizar, contra os civis, a fome como método de guerra.

2 - É proibido atacar, destruir, retirar ou pôr fora de uso bens indispensáveis à sobrevivência da população civil, tais como os gêneros alimentícios e as zonas agrícolas que os produzem, as colheitas, gado, instalações e reservas de água potável e obras de irrigação, com vista a privar, pelo seu valor de subsistência, a população civil ou a Parte adversa, qualquer que seja o motivo que inspire aqueles atos, seja para provocar a fome das pessoas civis, a sua deslocação ou qualquer outro.

3 - As proibições previstas no n.º 2 não se aplicam se os bens enumerados forem utilizados por uma Parte adversa:

a) Para a subsistência exclusiva dos membros das suas forças armadas;

b) Para outros fins além do aprovisionamento, mas como apoio direto de uma ação militar, com a condição, no entanto, de não efetuar, em caso algum, contra esses bens, ações que se presuma deixem tão pouca alimentação ou água à população civil que esta fique reduzida à fome ou seja forçada a deslocar-se.

4 - Esses bens não deverão ser objeto de represálias.

5 - Tendo em conta as exigências vitais de qualquer Parte no conflito para a defesa do seu território nacional contra a invasão, são permitidas a uma Parte no conflito, em território sob seu controlo, derrogações às proibições previstas no n.º 2, se necessidades militares imperiosas o exigirem.

Artigo 55: Proteção do meio ambiente natural

1 - A guerra será conduzida de forma a proteger o meio ambiente natural contra danos extensivos, duráveis e graves. Esta proteção inclui a proibição de utilizar métodos ou meios de guerra concebidos para causar ou que se presume venham a causar tais danos ao meio ambiente natural, comprometendo, por esse fato, a saúde ou a sobrevivência da população.

2 - São proibidos os ataques contra o meio ambiente natural a título de represália.

I In: Biblioteca Virtual de Direitos Humanos – Universidade de São Paulo – USP. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Sist_glob_trat/texto/guerra/genebra/protocolo1.htm>, acesso em 10/02/2008.

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ANEXO D – Protocolo II Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 Relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Não InternacionaisI, 1977: Artigos relacionados ao direito à água – Grifo nosso

Artigo 5º: Pessoas privadas de liberdade

1 - Além das disposições do artigo 4º, as disposições seguintes serão no mínimo respeitadas, em relação às pessoas privadas de liberdade por motivos relacionados com o conflito armado, quer estejam internadas ou detidas:

a) Os feridos e doentes serão tratados nos termos do artigo 7;

b) As pessoas mencionadas no presente número receberão, na mesma medida que a população civil local, víveres e água potável, e beneficiarão de garantias de salubridade e higiene e de proteção contra os rigores do clima e os perigos do conflito armado;

c) Serão autorizadas a receber socorros individuais ou coletivos;

d) Poderão praticar a sua religião e receber a seu pedido, se tal for adequado, uma assistência espiritual de pessoas que exerçam funções religiosas, tais como os capelães;

e) Deverão beneficiar, se tiverem de trabalhar, de condições de trabalho e de garantias semelhantes às que usufrui a população civil local.

2 - Os responsáveis pelo internamento ou detenção das pessoas mencionadas no n.º 1 respeitarão, na medida dos seus meios, as disposições seguintes em relação a essas pessoas:

a) Salvo no caso de os homens e as mulheres de uma mesma família partilharem o mesmo alojamento, as mulheres serão mantidas em locais separados dos homens e serão colocadas sob a vigilância imediata de mulheres;

b) As pessoas mencionadas no n.º 1 serão autorizadas a expedir e a receber cartas e postais cujo número poderá ser limitado pela autoridade competente, se esta o julgar necessário;

c) Os locais de internamento e de detenção não serão situados na proximidade da zona de combate. As pessoas mencionadas no n.º 1 serão evacuadas quando os locais onde se encontrem internadas ou detidas se tornarem particularmente expostos aos perigos resultantes do conflito armado, se a sua evacuação se puder efetuar em condições satisfatórias de segurança;

d) Deverão beneficiar de exames médicos;

e) A sua saúde e integridade física ou mental não serão comprometidas por nenhum ato nem omissão injustificados. Em conseqüência, e proibido submeter as pessoas mencionadas no presente artigo a ato médico que não seja motivado pelo estado de saúde e conforme às normas médicas geralmente reconhecidas e aplicadas em circunstâncias médicas análogas às pessoas em liberdade.

3 - As pessoas que não estiverem abrangidas pelo n.º 1, mas cuja liberdade se encontre limitada por qualquer forma por motivos relacionados com o conflito armado, serão tratadas com humanidade de harmonia com o artigo 4. e números 1, alíneas a), c) e d), e 2, alínea b), do presente artigo.

4 - Se for decidido libertar pessoas privadas da liberdade, as medidas necessárias para garantir a segurança dessas pessoas serão tomadas por quem decidir libertá-las.

I In: Biblioteca Virtual de Direitos Humanos – Universidade de São Paulo – USP. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Sist_glob_trat/texto/guerra/genebra/protocolo2.htm>, acesso em 10/02/2008.

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Artigo 14: Proteção dos bens indispensáveis à sobrevivência da população civil

É proibido utilizar contra as pessoas civis a fome como método de combate. É, portanto, proibido atacar, destruir, tirar ou pôr fora de uso com essa finalidade os bens indispensáveis à sobrevivência da população civil, tais como os gêneros alimentícios e as zonas agrícolas que os produzem, as colheitas, o gado, as instalações e as reservas de água potável e os trabalhos de irrigação.

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ANEXO E – Artigos 11 e 12 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC I, 1966

Artigo 11

§1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medida apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.

§2. Os Estados-partes no presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessários para:

1. Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais.

2. Assegurar uma repartição eqüitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios.

Artigo 12

§1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental.

§2. As medidas que os Estados-partes no presente Pacto deverão adotar, com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito, incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar:

1. A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento são das crianças.

2. A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente.

3. A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças.

4. A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.

I In: Biblioteca Virtual de Direitos Humanos – Universidade de São Paulo – USP. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Sist_glob_trat/texto/guerra/genebra/protocolo2.htm>, acesso em 10/02/2008.

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ANEXO F – General Comment N. 15 (2002): The right to water (arts. 11 and 12 of the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights)I

COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS Twenty-ninth session Geneva, 11-29 November 2002 Agenda item 3

SUBSTANTIVE ISSUES ARISING IN THE IMPLEMENTATION OF THE INTERNATIONAL COVENANT ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS

General Comment No. 15 (2002) The right to water (arts. 11 and 12 of the International Covenant

on Economic, Social and Cultural Rights)

I. INTRODUCTION

1. Water is a limited natural resource and a public good fundamental for life and health. The human right to water is indispensable for leading a life in human dignity. It is a prerequisite for the realization of other human rights. The Committee has been confronted continually with the widespread denial of the right to water in developing as well as developed countries. Over one billion persons lack access to a basic water supply, while several billion do not have access to adequate sanitation, which is the primary cause of water contamination and diseases linked to water. II The continuing contamination, depletion and unequal distribution of water is exacerbating existing poverty. States parties have to adopt effective measures to realize, without discrimination, the right to water, as set out in this general comment.

I Documento disponível no site do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, no site: http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/0/a5458d1d1bbd713fc1256cc400389e94/$FILE/G0340229.pdf

II In 2000, the World Health Organization estimated that 1.1 billion persons did not have access to an improved water supply (80 per cent of them rural dwellers) able to provide at least 20 litres of safe water per person a day; 2.4 billion persons were estimated to be without sanitation. (See WHO, The Global Water Supply and Sanitation Assessment 2000, Geneva, 2000, p.1.) Further, 2.3 billion persons each year suffer from diseases linked to water: see United Nations, Commission on Sustainable Development, Comprehensive Assessment of the Freshwater Resources of the World, New York, 1997, p.39.

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The legal bases of the right to water

2. The human right to water entitles everyone to sufficient, safe, acceptable, physically accessible and affordable water for personal and domestic uses. An adequate amount of safe water is necessary to prevent death from dehydration, to reduce the risk of water-related disease and to provide for consumption, cooking, personal and domestic hygienic requirements.

3. Article 11, paragraph 1, of the Covenant specifies a number of rights emanating from, and indispensable for, the realization of the right to an adequate standard of living “including adequate food, clothing and housing”. The use of the word “including” indicates that this catalogue of rights was not intended to be exhaustive. The right to water clearly falls within the category of guarantees essential for securing an adequate standard of living, particularly since it is one of the most fundamental conditions for survival. Moreover, the Committee has previously recognized that water is a human right contained in article 11, paragraph 1, (see General Comment No. 6 (1995)).III The right to water is also inextricably related to the right to the highest attainable standard of health (art. 12, para. 1)IV and the rights to adequate housing and adequate food (art. 11, para. 1).V The right should also be seen in conjunction with other rights enshrined in the International Bill of Human Rights, foremost amongst them the right to life and human dignity.

4. The right to water has been recognized in a wide range of international documents, including treaties, declarations and other standards.VI5 For instance, Article 14, paragraph 2, of the Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women stipulates that States parties shall ensure to women the right to “enjoy adequate living conditions, particularly in relation to […] water supply”. Article 24, paragraph 2, of the Convention on the Rights of the Child requires States parties to combat disease and malnutrition “through the provision of adequate nutritious foods and clean drinking-water”.

III See paras. 5 and 32 of the Committee’s General Comment No. 6 (1995) on the economic, social and cultural rights of older persons.

IV See General Comment No. 14 (2000) on the right to the highest attainable standard of health, paragraphs 11, 12 (a), (b) and (d), 15, 34, 36, 40, 43 and 51.

V See para. 8 (b) of General Comment No. 4 (1991). See also the report by Commission on Human Rights’ Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an adequate standard of living, Mr. Miloon Kothari (E.CN.4/2002/59), submitted in accordance with Commission resolution 2001/28 of 20 April 2001. In relation to the right to adequate food, see the report by the Special Rapporteur of the Commission on the right to food, Mr. Jean Ziegler (E/CN.4/2002/58), submitted in accordance with Commission resolution 2001/25 of 20 April 2001.

VI See art. 14, para. 2 (h), Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women; art. 24, para. 2 (c), Convention on the Rights of the Child; arts. 20, 26, 29 and 46 of the Geneva Convention relative to the Treatment of Prisoners of War, of 1949; arts. 85, 89 and 127 of the Geneva Convention relative to the Treatment of Civilian Persons in Time of War, of 1949; arts. 54 and 55 of Additional Protocol I thereto of 1977; arts. 5 and 14 Additional Protocol II of 1977; preamble, Mar Del Plata Action Plan of the United Nations Water Conference; see para. 18.47 of Agenda 21, Report of the United Nations Conference on Environment and Development, Rio de Janeiro, 3-14 June 1992 (A/CONF.151/26/Rev.1 (Vol. I and Vol. I/Corr.1, Vol. II, Vol. III and Vol. III/Corr.1) (United Nations publication, Sales No. E.93.I.8), vol I: Resolutions adopted by the Conference, resolution 1, annex II; Principle No. 3, The Dublin Statement on Water and Sustainable Development, International Conference on Water and the Environment (A/CONF.151/PC/112); Principle No. 2, Programme of Action, Report of the United Nations International Conference on Population and Development, Cairo, 5-13 September 1994 (United Nations publication, Sales No. E.95.XIII.18), chap. I, resolution 1, annex; paras. 5 and 19, Recommendation (2001) 14 of the Committee of Ministers to Member States on the European Charter on Water Resources; resolution 2002/6 of the United Nations Sub-Commission on the Promotion and Protection of Human Rights on the promotion of the realization of the right to drinking water. See also the report on the relationship between the enjoyment of economic, social and cultural rights and the promotion of the realization of the right to drinking water supply and sanitation (E/CN.4/Sub.2/2002/10) submitted by the Special Rapporteur of the Sub-Commission on the right to drinking water supply and sanitation, Mr. El Hadji Guissé.

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5. The right to water has been consistently addressed by the Committee during its consideration of States parties’ reports, in accordance with its revised general guidelines regarding the form and content of reports to be submitted by States parties under articles 16 and 17 of the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights, and its general comments.

6. Water is required for a range of different purposes, besides personal and domestic uses, to realize many of the Covenant rights. For instance, water is necessary to produce food (right to adequate food) and ensure environmental hygiene (right to health). Water is essential for securing livelihoods (right to gain a living by work) and enjoying certain cultural practices (right to take part in cultural life). Nevertheless, priority in the allocation of water must be given to the right to water for personal and domestic uses. Priority should also be given to the water resources required to prevent starvation and disease, as well as water required to meet the core obligations of each of the Covenant rights.VII

Water and Covenant rights

7. The Committee notes the importance of ensuring sustainable access to water resources for agriculture to realize the right to adequate food (see General Comment No.12 (1999)).VIII Attention should be given to ensuring that disadvantaged and marginalized farmers, including women farmers, have equitable access to water and water management systems, including sustainable rain harvesting and irrigation technology. Taking note of the duty in article 1, paragraph 2, of the Covenant, which provides that a people may not “be deprived of its means of subsistence”, States parties should ensure that there is adequate access to water for subsistence farming and for securing the livelihoods of indigenous peoples.IX

8. Environmental hygiene, as an aspect of the right to health under article 12, paragraph 2 (b), of the Covenant, encompasses taking steps on a non-discriminatory basis to prevent threats to health from unsafe and toxic water conditions.X For example, States parties should ensure that natural water resources are protected from contamination by harmful substances and pathogenic microbes. Likewise, States parties should monitor and combat situations where aquatic eco-systems serve as a habitat for vectors of diseases wherever they pose a risk to human living environments.XI

9. With a view to assisting States parties' implementation of the Covenant and the fulfilment of their reporting obligations, this General Comment focuses in Part II on the normative content of the right to water in articles 11, paragraph 1, and 12, on States parties' obligations (Part III), on violations (Part IV) and on implementation at the national level (Part V), while the obligations of actors other than States parties are addressed in Part VI.

II. NORMATIVE CONTENT OF THE RIGHT TO WATER

10. The right to water contains both freedoms and entitlements. The freedoms include the right to maintain access to existing water supplies necessary for the right to water, and the right to be free from interference, such as the right to be free from arbitrary disconnections or contamination of water

VII See also World Summit on Sustainable Development, Plan of Implementation 2002, paragraph 25 (c).

VIII This relates to both availability and to accessibility of the right to adequate food (see General Comment No. 12 (1999), paras. 12 and 13).

IX See also the Statement of Understanding accompanying the United Nations Convention on the Law of Non-Navigational Uses of Watercourses (A/51/869 of 11 April 1997), which declared that, in determining vital human needs in the event of conflicts over the use of watercourses “special attention is to be paid to providing sufficient water to sustain human life, including both drinking water and water required for production of food in order to prevent starvation”.

X See also para. 15, General Comment No. 14.

XI According to the WHO definition, vector-borne diseases include diseases transmitted by insects (malaria, filariasis, dengue, Japanese encephalitis and yellow fever), diseases for which aquatic snails serve as intermediate hosts (schistosomiasis) and zoonoses with vertebrates as reservoir hosts.

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supplies. By contrast, the entitlements include the right to a system of water supply and management that provides equality of opportunity for people to enjoy the right to water.

11. The elements of the right to water must be adequate for human dignity, life and health, in accordance with articles 11, paragraph 1, and 12. The adequacy of water should not be interpreted narrowly, by mere reference to volumetric quantities and technologies. Water should be treated as a social and cultural good, and not primarily as an economic good. The manner of the realization of the right to water must also be sustainable, ensuring that the right can be realized for present and future generations.XII

12. While the adequacy of water required for the right to water may vary according to different conditions, the following factors apply in all circumstances:

(a) Availability. The water supply for each person must be sufficient and continuous for personal and domestic uses.XIII These uses ordinarily include drinking, personal sanitation, washing of clothes, food preparation, personal and household hygiene.XIV The quantity of water available for each person should correspond to World Health Organization (WHO) guidelines.XV Some individuals and groups may also require additional water due to health, climate, and work conditions;

(b) Quality. The water required for each personal or domestic use must be safe, therefore free from micro-organisms, chemical substances and radiological hazards that constitute a threat to a person’s health.XVI Furthermore, water should be of an acceptable colour, odour and taste for each personal or domestic use.

(c) Accessibility. Water and water facilities and services have to be accessible to everyone without discrimination, within the jurisdiction of the State party. Accessibility has four overlapping dimensions:

(i) Physical accessibility: water, and adequate water facilities and services, must be within safe physical reach for all sections of the population. Sufficient, safe and acceptable water must be accessible within, or in the immediate vicinity, of each household, educational institution and workplace. XVII All water facilities and services must be of sufficient quality, culturally appropriate and sensitive to gender, lifecycle and

XII For a definition of sustainability, see the Report of the United Nations Conference on Environment and Development, Rio de Janeiro, 3-14 1992, Declaration on Environment and Development, principles 1, 8, 9, 10, 12 and 15; and Agenda 21, in particular principles 5.3, 7.27, 7.28, 7.35, 7.39, 7.41, 18.3, 18.8, 18.35, 18.40, 18.48, 18.50, 18.59 and 18.68.

XIII “Continuous” means that the regularity of the water supply is sufficient for personal and domestic uses.

XIV In this context, “drinking” means water for consumption through beverages and foodstuffs. “Personal sanitation” means disposal of human excreta. Water is necessary for personal sanitation where water-based means are adopted. “Food preparation” includes food hygiene and preparation of food stuffs, whether water is incorporated into, or comes into contact with, food. “Personal and household hygiene” means personal cleanliness and hygiene of the household environment.

XV See J. Bartram and G. Howard, “Domestic water quantity, service level and health: what should be the goal for water and health sectors”, WHO, 2002. See also P.H. Gleick, (1996) “Basic water requirements for human activities: meeting basic needs”, Water International, 21, pp. 83-92.

XVI The Committee refers States parties to WHO, Guidelines for drinking-water quality, 2nd edition, vols. 1-3 (Geneva, 1993) that are “intended to be used as a basis for the development of national standards that, if properly implemented, will ensure the safety of drinking water supplies through the elimination of, or reduction to a minimum concentration, of constituents of water that are known to be hazardous to health.”

XVII See also General Comment No. 4 (1991), para. 8 (b), General Comment No. 13 (1999) para. 6 (a) and General Comment No. 14 (2000) paras. 8 (a) and (b). Household includes a permanent or semi-permanent dwelling, or a temporary halting site.

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privacy requirements. Physical security should not be threatened during access to water facilities and services;

(ii) Economic accessibility: Water, and water facilities and services, must be affordable for all. The direct and indirect costs and charges associated with securing water must be affordable, and must not compromise or threaten the realization of other Covenant rights;

(iii) Non-discrimination: Water and water facilities and services must be accessible to all, including the most vulnerable or marginalized sections of the population, in law and in fact, without discrimination on any of the prohibited grounds; and

(iv) Information accessibility: accessibility includes the right to seek, receive and impart information concerning water issues.XVIII

Special topics of broad application

Non-discrimination and equality

13. The obligation of States parties to guarantee that the right to water is enjoyed without discrimination (art. 2, para. 2), and equally between men and women (art. 3), pervades all of the Covenant obligations. The Covenant thus proscribes any discrimination on the grounds of race, colour, sex, age, language, religion, political or other opinion, national or social origin, property, birth, physical or mental disability, health status (including HIV/AIDS), sexual orientation and civil, political, social or other status, which has the intention or effect of nullifying or impairing the equal enjoyment or exercise of the right to water. The Committee recalls paragraph 12 of General Comment No. 3 (1990), which states that even in times of severe resource constraints, the vulnerable members of society must be protected by the adoption of relatively low-cost targeted programmes.

14. States parties should take steps to remove de facto discrimination on prohibited grounds, where individuals and groups are deprived of the means or entitlements necessary for achieving the right to water. States parties should ensure that the allocation of water resources, and investments in water, facilitate access to water for all members of society. Inappropriate resource allocation can lead to iscrimination that may not be overt. For example, investments should not disproportionately favour expensive water supply services and facilities that are often accessible only to a small, privileged fraction of the population, rather than investing in services and facilities that benefit a far larger part of the population.

15. With respect to the right to water, States parties have a special obligation to provide those who do not have sufficient means with the necessary water and water facilities and to prevent any discrimination on internationally prohibited grounds in the provision of water and water services.

16. Whereas the right to water applies to everyone, States parties should give special attention to those individuals and groups who have traditionally faced difficulties in exercising this right, including women, children, minority groups, indigenous peoples, refugees, asylum seekers, internally displaced persons, migrant workers, prisoners and detainees. In particular, States parties should take steps to ensure that:

(a) Women are not excluded from decision-making processes concerning water resources and entitlements. The disproportionate burden women bear in the collection of water should be alleviated;

(b) Children are not prevented from enjoying their human rights due to the lack of adequate water in educational institutions and households or through the burden of collecting water. Provision of adequate water to educational institutions currently without adequate drinking water should be addressed as a matter of urgency;

(c) Rural and deprived urban areas have access to properly maintained water facilities. Access to traditional water sources in rural areas should be protected from unlawful encroachment and pollution. Deprived urban areas, including informal human settlements, and homeless persons,

XVIII See para. 48 of this General Comment.

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should have access to properly maintained water facilities. No household should be denied the right to water on the grounds of their housing or land status;

(d) Indigenous peoples’ access to water resources on their ancestral lands is protected from encroachment and unlawful pollution. States should provide resources for indigenous peoples to design, deliver and control their access to water;

(e) Nomadic and traveller communities have access to adequate water at traditional and designated halting sites;

(f) Refugees, asylum-seekers, internally displaced persons and returnees have access to adequate water whether they stay in camps or in urban and rural areas. Refugees and asylum-seekers should be granted the right to water on the same conditions as granted to nationals;

(g) Prisoners and detainees are provided with sufficient and safe water for their daily individual requirements, taking note of the requirements of international humanitarian law and the United Nations Standard Minimum Rules for the Treatment of Prisoners;XIX

(h) Groups facing difficulties with physical access to water, such as older persons, persons with disabilities, victims of natural disasters, persons living in disaster-prone areas, and those living in arid and semi-arid areas, or on small islands are provided with safe and sufficient water.

III. STATES PARTIES’ OBLIGATIONS

General legal obligations

17. While the Covenant provides for progressive realization and acknowledges the constraints due to the limits of available resources, it also imposes on States parties various obligations which are of immediate effect. States parties have immediate obligations in relation to the right to water, such as the guarantee that the right will be exercised without discrimination of any kind (art. 2, para. 2) and the obligation to take steps (art. 2, para.1) towards the full realization of articles 11, paragraph 1, and 12. Such steps must be deliberate, concrete and targeted towards the full realization of the right to water.

18. States parties have a constant and continuing duty under the Covenant to move as expeditiously and effectively as possible towards the full realization of the right to water. Realization of the right should be feasible and practicable, since all States parties exercise control over a broad range of resources, including water, technology, financial resources and international assistance, as with all other rights in the Covenant.

19. There is a strong presumption that retrogressive measures taken in relation to the right to water are prohibited under the Covenant.XX If any deliberately retrogressive measures are taken, the State party has the burden of proving that they have been introduced after the most careful consideration of all alternatives and that they are duly justified by reference to the totality of the rights provided for in the Covenant in the context of the full use of the State party's maximum available resources.

Specific legal obligations

20. The right to water, like any human right, imposes three types of obligations on States parties: obligations to respect, obligations to protect and obligations to fulfil.

(a) Obligations to respect

XIX See arts. 20, 26, 29 and 46 of the third Geneva Convention of 12 August 1949; arts. 85, 89 and 127 of the fourth Geneva Convention of 12 August 1949; arts. 15 and 20, para. 2, United Nations Standard Minimum Rules for the Treatment of Prisoners, in Human Rights: A Compilation of International Instruments (United Nations publication, Sales No. E.88.XIV.1).

XX See General Comment No. 3 (1990), para. 9.

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21. The obligation to respect requires that States parties refrain from interfering directly or indirectly with the enjoyment of the right to water. The obligation includes, inter alia, refraining from engaging in any practice or activity that denies or limits equal access to adequate water; arbitrarily interfering with customary or traditional arrangements for water allocation; unlawfully diminishing or polluting water, for example through waste from State-owned facilities or through use and testing of weapons; and limiting access to, or destroying, water services and infrastructure as a punitive measure, for example, during armed conflicts in violation of international humanitarian law.

22. The Committee notes that during armed conflicts, emergency situations and natural disasters, the right to water embraces those obligations by which States parties are bound under international humanitarian law.XXI This includes protection of objects indispensable for survival of the civilian population, including drinking water installations and supplies and irrigation works, protection of the natural environment against widespread, long-term and severe damage and ensuring that civilians, internees and prisoners have access to adequate water.XXII

(b) Obligations to protect

23. The obligation to protect requires State parties to prevent third parties from interfering in any way with the enjoyment of the right to water. Third parties include individuals, groups, corporations and other entities as well as agents acting under their authority. The obligation includes, inter alia, adopting the necessary and effective legislative and other measures to restrain, for example, third parties from denying equal access to adequate water; and polluting and inequitably extracting from water resources, including natural sources, wells and other water distribution systems.

24. Where water services (such as piped water networks, water tankers, access to rivers and wells) are operated or controlled by third parties, States parties must prevent them from compromising equal, affordable, and physical access to sufficient, safe and acceptable water. To prevent such abuses an effective regulatory system must be established, in conformity with the Covenant and this General Comment, which includes independent monitoring, genuine public participation and imposition of penalties for non-compliance.

(c) Obligations to fulfil

25. The obligation to fulfil can be disaggregated into the obligations to facilitate, promote and provide. The obligation to facilitate requires the State to take positive measures to assist individuals and communities to enjoy the right. The obligation to promote obliges the State party to take steps to ensure that there is appropriate education concerning the hygienic use of water, protection of water sources and methods to minimize water wastage. States parties are also obliged to fulfil (provide) the right when individuals or a group are unable, for reasons beyond their control, to realize that right themselves by the means at their disposal.

26. The obligation to fulfil requires States parties to adopt the necessary measures directed towards the full realization of the right to water. The obligation includes, inter alia, according sufficient recognition of this right within the national political and legal systems, preferably by way of legislative implementation; adopting a national water strategy and plan of action to realize this right; ensuring that water is affordable for everyone; and facilitating improved and sustainable access to water, particularly in rural and deprived urban areas.

27. To ensure that water is affordable, States parties must adopt the necessary measures that may include, inter alia: (a) use of a range of appropriate low-cost techniques and technologies; (b) appropriate pricing policies such as free or low-cost water; and (c) income supplements. Any payment for water services has to be based on the principle of equity, ensuring that these services, whether privately or publicly provided, are affordable for all, including socially disadvantaged groups. Equity

XXI For the interrelationship of human rights law and humanitarian law, the Committee notes the conclusions of the International Court of Justice in Legality of the Threat or Use of Nuclear Weapons (Request by the General Assembly), ICJ Reports (1996) p. 226, para. 25.

XXII See arts. 54 and 56, Additional Protocol I to the Geneva Conventions (1977), art. 54, Additional Protocol II (1977), arts. 20 and 46 of the third Geneva Convention of 12 August 1949, and common article 3 of the Geneva Conventions of 12 August 1949.

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demands that poorer households should not be disproportionately burdened with water expenses as compared to richer households.

28. States parties should adopt comprehensive and integrated strategies and programmes to ensure that there is sufficient and safe water for present and future generations.XXIII Such strategies and programmes may include: (a) reducing depletion of water resources through unsustainable extraction, diversion and damming; (b) reducing and eliminating contamination of watersheds and water-related eco-systems by substances such as radiation, harmful chemicals and human excreta; (c) monitoring water reserves; (d) ensuring that proposed developments do not interfere with access to adequate water; (e) assessing the impacts of actions that may impinge upon water availability and natural-ecosystems watersheds, such as climate changes, desertification and increased soil salinity, deforestation and loss of biodiversity;XXIV (f) increasing the efficient use of water by end-users; (g) reducing water wastage in its distribution; (h) response mechanisms for emergency situations; (i) and establishing competent institutions and appropriate institutional arrangements to carry out the strategies and programmes.

29. Ensuring that everyone has access to adequate sanitation is not only fundamental for human dignity and privacy, but is one of the principal mechanisms for protecting the quality of drinking water supplies and resources.XXV In accordance with the rights to health and adequate housing (see General Comments No. 4 (1991) and 14 (2000)) States parties have an obligation to progressively extend safe sanitation services, particularly to rural and deprived urban areas, taking into account the needs of women and children.

International obligations

30. Article 2, paragraph 1, and articles 11, paragraph 1, and 23 of the Covenant require that States parties recognize the essential role of international cooperation and assistance and take joint and separate action to achieve the full realization of the right to water.

31. To comply with their international obligations in relation to the right to water, States parties have to respect the enjoyment of the right in other countries. International cooperation requires States parties to refrain from actions that interfere, directly or indirectly, with the enjoyment of the right to water in other countries. Any activities undertaken within the State party’s jurisdiction should not deprive another country of the ability to realize the right to water for persons in its jurisdiction.XXVI

32. States parties should refrain at all times from imposing embargoes or similar measures, that prevent the supply of water, as well as goods and services essential for securing the right to water.XXVII Water should never be used as an instrument of political and economic pressure. In this

XXIII See footnote 5 above, Agenda 21, chaps. 5 , 7 and 18; and the World Summit on Sustainable Development, Plan of Implementation (2002), paras. 6 (a), (l) and (m), 7, 36 and 38.

XXIV See the Convention on Biological Diversity, the Convention to Combat Desertification, the United Nations Framework Convention on Climate Change, and subsequent protocols.

XXV Article 14, para. 2, of the Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women stipulates States parties shall ensure to women the right to “adequate living conditions, particularly in relation to […] sanitation”. Article 24, para. 2, of the Convention on the Rights of the Child requires States parties to “To ensure that all segments of society […] have access to education and are supported in the use of basic knowledge of […] the advantages of […] hygiene and environmental sanitation.”

XXVI The Committee notes that the United Nations Convention on the Law of Non-Navigational Uses of Watercourses requires that social and human needs be taken into account in determining the equitable utilization of watercourses, that States parties take measures to prevent significant harm being caused, and, in the event of conflict, special regard must be given to the requirements of vital human needs: see arts. 5, 7 and 10 of the Convention.

XXVII In General Comment No. 8 (1997), the Committee noted the disruptive effect of sanctions upon sanitation supplies and clean drinking water, and that sanctions regimes should provide for repairs to infrastructure essential to provide clean water.

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regard, the Committee recalls its position, stated in its General Comment No. 8 (1997), on the relationship between economic sanctions and respect for economic, social and cultural rights.

33. Steps should be taken by States parties to prevent their own citizens and companies from violating the right to water of individuals and communities in other countries. Where States parties can take steps to influence other third parties to respect the right, through legal or political means, such steps should be taken in accordance with the Charter of the United Nations and applicable international law.

34. Depending on the availability of resources, States should facilitate realization of the right to water in other countries, for example through provision of water resources, financial and technical assistance, and provide the necessary aid when required. In disaster relief and emergency assistance, including assistance to refugees and displaced persons, priority should be given to Covenant rights, including the provision of adequate water. International assistance should be provided in a manner that is consistent with the Covenant and other human rights standards, and sustainable and culturally appropriate. The economically developed States parties have a special responsibility and interest to assist the poorer developing States in this regard.

35. States parties should ensure that the right to water is given due attention in international agreements and, to that end, should consider the development of further legal instruments. With regard to the conclusion and implementation of other international and regional agreements, States parties should take steps to ensure that these instruments do not adversely impact upon the right to water. Agreements concerning trade liberalization should not curtail or inhibit a country’s capacity to ensure the full realization of the right to water.

36. States parties should ensure that their actions as members of international organizations take due account of the right to water. Accordingly, States parties that are members of international financial institutions, notably the International Monetary Fund, the World Bank, and regional development banks, should take steps to ensure that the right to water is taken into account in their lending policies, credit agreements and other international measures.

Core obligations

37. In General Comment No. 3 (1990), the Committee confirms that States parties have a core obligation to ensure the satisfaction of, at the very least, minimum essential levels of each of the rights enunciated in the Covenant. In the Committee’s view, at least a number of core obligations in relation to the right to water can be identified, which are of immediate effect:

(a) To ensure access to the minimum essential amount of water, that is sufficient and safe for personal and domestic uses to prevent disease;

(b) To ensure the right of access to water and water facilities and services on a non-discriminatory basis, especially for disadvantaged or marginalized groups;

(c) To ensure physical access to water facilities or services that provide sufficient, safe and regular water; that have a sufficient number of water outlets to avoid prohibitive waiting times; and that are at a reasonable distance from the household;

(d) To ensure personal security is not threatened when having to physically access to water;

(e) To ensure equitable distribution of all available water facilities and services;

(f) To adopt and implement a national water strategy and plan of action addressing the whole population; the strategy and plan of action should be devised, and periodically reviewed, on the basis of a participatory and transparent process; it should include methods, such as right to water indicators and benchmarks, by which progress can be closely monitored; the process by which the strategy and plan of action are devised, as well as their content, shall give particular attention to all disadvantaged or marginalized groups;

(g) To monitor the extent of the realization, or the non-realization, of the right to water;

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(h) To adopt relatively low-cost targeted water programmes to protect vulnerable and marginalized groups;

(i) To take measures to prevent, treat and control diseases linked to water, in particular ensuring access to adequate sanitation;

38. For the avoidance of any doubt, the Committee wishes to emphasize that it is particularly incumbent on States parties, and other actors in a position to assist, to provide international assistance and cooperation, especially economic and technical which enables developing countries to fulfil their core obligations indicated in paragraph 37 above.

IV. VIOLATIONS

39. When the normative content of the right to water (see Part II) is applied to the obligations of States parties (Part III), a process is set in motion, which facilitates identification of violations of the right to water. The following paragraphs provide illustrations of violations of the right to water.

40. To demonstrate compliance with their general and specific obligations, States parties must establish that they have taken the necessary and feasible steps towards the realization of the right to water. In accordance with international law, a failure to act in good faith to take such steps amounts to a violation of the right. It should be stressed that a State party cannot justify its non-compliance with the core obligations set out in paragraph 37 above, which are non-derogable.

41. In determining which actions or omissions amount to a violation of the right to water, it is important to distinguish the inability from the unwillingness of a State party to comply with its obligations in relation to the right to water. This follows from articles 11, paragraph 1, and 12, which speak of the right to an adequate standard of living and the right to health, as well as from article 2, paragraph 1, of the Covenant, which obliges each State party to take the necessary steps to the maximum of its available resources. A State which is unwilling to use the maximum of its available resources for the realization of the right to water is in violation of its obligations under the Covenant. If resource constraints render it impossible for a State party to comply fully with its Covenant obligations, it has the burden of justifying that every effort has nevertheless been made to use all available resources at its disposal in order to satisfy, as a matter of priority, the obligations outlined above.

42. Violations of the right to water can occur through acts of commission, the direct actions of States parties or other entities insufficiently regulated by States. Violations include, for example, the adoption of retrogressive measures incompatible with the core obligations (outlined in para. 37 above), the formal repeal or suspension of legislation necessary for the continued enjoyment of the right to water, or the adoption of legislation or policies which are manifestly incompatible with pre-existing domestic or international legal obligations in relation to the right to water.

43. Violations through acts of omission include the failure to take appropriate steps towards the full realization of everyone's right to water, the failure to have a national policy on water, and the failure to enforce relevant laws.

44. While it is not possible to specify a complete list of violations in advance, a number of typical examples relating to the levels of obligations, emanating from the Committee’s work, may be identified:

(a) Violations of the obligation to respect follow from the State party’s interference with the right to water. This includes, inter alia: (i) arbitrary or unjustified disconnection or exclusion from water services or facilities; (ii) discriminatory or unaffordable increases in the price of water; and (iii) pollution and diminution of water resources affecting human health;

(b) Violations of the obligation to protect follow from the failure of a State to take all necessary measures to safeguard persons within their jurisdiction from infringements of the right to water by third parties.XXVIII This includes, inter alia: (i) failure to enact or enforce laws to prevent the contamination and inequitable extraction of water; (ii) failure to effectively regulate and control water services

XXVIII See para. 23 for a definition of “third parties”.

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providers; (iv) failure to protect water distribution systems (e.g., piped networks and wells) from interference, damage and destruction; and

(c) Violations of the obligation to fulfil occur through the failure of States parties to take all necessary steps to ensure the realization of the right to water. Examples includes, inter alia: (i) failure to adopt or implement a national water policy designed to ensure the right to water for everyone; (ii) insufficient expenditure or misallocation of public resources which results in the non-enjoyment of the right to water by individuals or groups, particularly the vulnerable or marginalized; (iii) failure to monitor the realization of the right to water at the national level, for example by identifying right-to-water indicators and benchmarks; (iv) failure to take measures to reduce the inequitable distribution of water facilities and services; (v) failure to adopt mechanisms for emergency relief; (vi) failure to ensure that the minimum essential level of the right is enjoyed by everyone (vii) failure of a State to take into account its international legal obligations regarding the right to water when entering into agreements with other States or with international organizations.

V. IMPLEMENTATION AT THE NATIONAL LEVEL

45. In accordance with article 2, paragraph 1, of the Covenant, States parties are required to utilize “all appropriate means, including particularly the adoption of legislative measures” in the implementation of their Covenant obligations. Every State party has a margin of discretion in assessing which measures are most suitable to meet its specific circumstances. The Covenant, however, clearly imposes a duty on each State party to take whatever steps are necessary to ensure that everyone enjoys the right to water, as soon as possible. Any national measures designed to realize the right to water should not interfere with the enjoyment of other human rights.

Legislation, strategies and policies

46. Existing legislation, strategies and policies should be reviewed to ensure that they are compatible with obligations arising from the right to water, and should be repealed, amended or changed if inconsistent with Covenant requirements.

47. The duty to take steps clearly imposes on States parties an obligation to adopt a national strategy or plan of action to realize the right to water. The strategy must: (a) be based upon human rights law and principles; (b) cover all aspects of the right to water and the corresponding obligations of States parties; (c) define clear objectives; (d) set targets or goals to be achieved and the time-frame for their achievement; (e) formulate adequate policies and corresponding benchmarks and indicators. The strategy should also establish institutional responsibility for the process; identify resources available to attain the objectives, targets and goals; allocate resources appropriately according to institutional responsibility; and establish accountability mechanisms to ensure the implementation of the strategy. When formulating and implementing their right to water national strategies, States parties should avail themselves of technical assistance and cooperation of the United Nations specialized agencies (see Part VI below).

48. The formulation and implementation of national water strategies and plans of action should respect, inter alia, the principles of non-discrimination and people's participation. The right of individuals and groups to participate in decision-making processes that may affect their exercise of the right to water must be an integral part of any policy, programme or strategy concerning water. Individuals and groups should be given full and equal access to information concerning water, water services and the environment, held by public authorities or third parties.

49. The national water strategy and plan of action should also be based on the principles of accountability, transparency and independence of the judiciary, since good governance is essential to the effective implementation of all human rights, including the realization of the right to water. In order to create a favourable climate for the realization of the right, States parties should take appropriate steps to ensure that the private business sector and civil society are aware of, and consider the importance of, the right to water in pursuing their activities.

50. States parties may find it advantageous to adopt framework legislation to operationalize their right to water strategy. Such legislation should include: (a) targets or goals to be attained and the time-frame for their achievement; (b) the means by which the purpose could be achieved; (c) the intended collaboration with civil society, private sector and international organizations; (d) institutional

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responsibility for the process; (e) national mechanisms for its monitoring; and (f) remedies and recourse procedures.

51. Steps should be taken to ensure there is sufficient coordination between the national ministries, regional and local authorities in order to reconcile water-related policies. Where implementation of the right to water has been delegated to regional or local authorities, the State party still retains the responsibility to comply with its Covenant obligations, and therefore should ensure that these authorities have at their disposal sufficient resources to maintain and extend the necessary water services and facilities. The States parties must further ensure that such authorities do not deny access to services on a discriminatory basis.

52. States parties are obliged to monitor effectively the realization of the right to water. In monitoring progress towards the realization of the right to water, States parties should identify the factors and difficulties affecting implementation of their obligations.

Indicators and benchmarks

53. To assist the monitoring process, right to water indicators should be identified in the national water strategies or plans of action. The indicators should be designed to monitor, at the national and international levels, the State party's obligations under articles 11, paragraph 1, and 12. Indicators should address the different components of adequate water (such as sufficiency, safety and acceptability, affordability and physical accessibility), be disaggregated by the prohibited grounds of discrimination, and cover all persons residing in the State party’s territorial jurisdiction or under their control. States parties may obtain guidance on appropriate indicators from the ongoing work of WHO, the Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), the United Nations Centre for Human Settlements (Habitat), the International Labour Organization (ILO), the United Nations Children’s Fund (UNICEF), the United Nations Environment Programme (UNEP), the United Nations Development Programme (UNDP) and the United Nations Commission on Human Rights.

54. Having identified appropriate right to water indicators, States parties are invited to set appropriate national benchmarks in relation to each indicator. XXIX During the periodic reporting procedure, the Committee will engage in a process of “scoping” with the State party. Scoping involves the joint consideration by the State party and the Committee of the indicators and national benchmarks which will then provide the targets to be achieved during the next reporting period. In the following five years, the State party will use these national benchmarks to help monitor its implementation of the right to water. Thereafter, in the subsequent reporting process, the State party and the Committee will consider whether or not the benchmarks have been achieved, and the reasons for any difficulties that may have been encountered (see General Comment No.14 (2000), para. 58). Further, when setting benchmarks and preparing their reports, States parties should utilize the extensive information and advisory services of specialized agencies with regard to data collection and disaggregation.

Remedies and accountability

55. Any persons or groups who have been denied their right to water should have access to effective judicial or other appropriate remedies at both national and international levels (see General Comment No. 9 (1998), para. 4, and Principle 10 of the Rio Declaration on Environment and Development). XXX The Committee notes that the right has been constitutionally entrenched by a number of States and has been subject to litigation before national courts. All victims of violations of the right to water should be entitled to adequate reparation, including restitution, compensation, XXIX See E. Riedel, “New bearings to the State reporting procedure: practical ways to operationalize economic, social and cultural rights – The example of the right to health”, in S. von Schorlemer (ed.), Praxishandbuch UNO, 2002, pp. 345-358. The Committee notes, for example, the commitment in the 2002 World Summit on Sustainable Development Plan of Implementation to halve, by the year 2015, the proportion of people who are unable to reach or to afford safe drinking water (as outlined in the Millennium Declaration) and the proportion of people who do not have access to basic sanitation.

XXX Principle 10 of the Rio Declaration on Environment and Development (Report of the United Nations Conference on Environment and Development, see footnote 5 above), states with respect to environmental issues that “effective access to judicial and administrative proceedings, including remedy and redress, shall be provided”.

Page 145: DIREITO À ÁGUA O acesso à água como Direito Humano · hidroeletricidade, proteção do meio ambiente e manutenção dos ecossistemas. No entanto, o cenário de escassez em alguns

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satisfaction or guarantees of non-repetition. National ombudsmen, human rights Commissions, and similar institutions should be permitted to address violations of the right.

56. Before any action that interferes with an individual’s right to water is carried out by the State party, or by any other third party, the relevant authorities must ensure that such actions are performed in a manner warranted by law, compatible with the Covenant, and that comprises: (a) opportunity for genuine consultation with those affected; (b) timely and full disclosure of information on the proposed measures; (c) reasonable notice of proposed actions; (d) legal recourse and remedies for those affected; and (e) legal assistance for obtaining legal remedies (see also General Comments No. 4 (1991) and No. 7 (1997)). Where such action is based on a person’s failure to pay for water their capacity to pay must be taken into account. Under no circumstances shall an individual be deprived of the minimum essential level of water.

57. The incorporation in the domestic legal order of international instruments recognizing the right to water can significantly enhance the scope and effectiveness of remedial measures and should be encouraged in all cases. Incorporation enables courts to adjudicate violations of the right to water, or at least the core obligations, by direct reference to the Covenant.

58. Judges, adjudicators and members of the legal profession should be encouraged by States parties to pay greater attention to violations of the right to water in the exercise of their functions.

59. States parties should respect, protect, facilitate and promote the work of human rights advocates and other members of civil society with a view to assisting vulnerable or marginalized groups in the realization of their right to water.

VI. OBLIGATIONS OF ACTORS OTHER THAN STATES

60. United Nations agencies and other international organizations concerned with water, such as WHO, FAO, UNICEF, UNEP, UN-Habitat, ILO, UNDP, the International Fund for Agricultural Development (IFAD), as well as international organizations concerned with trade such as the World Trade Organization (WTO), should cooperate effectively with States parties, building on their respective expertise, in relation to the implementation of the right to water at the national level. The international financial institutions, notably the International Monetary Fund and the World Bank, should take into account the right to water in their lending policies, credit agreements, structural adjustment programmes and other development projects (see General Comment No. 2 (1990)), so that the enjoyment of the right to water is promoted. When examining the reports of States parties and their ability to meet the obligations to realize the right to water, the Committee will consider the effects of the assistance provided by all other actors. The incorporation of human rights law and principles in the programmes and policies by international organizations will greatly facilitate implementation of the right to water. The role of the International Federation of the Red Cross and Red Crescent Societies, International Committee of the Red Cross, the Office of the United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR), WHO and UNICEF, as well as non-governmental organizations and other associations, is of particular importance in relation to disaster relief and humanitarian assistance in times of emergencies. Priority in the provision of aid, distribution and management of water and water facilities should be given to the most vulnerable or marginalized groups of the population.