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GRADUAÇÃO 2021.1 AUTORES: SÉRGIO GUERRA E PATRÍCIA SAMPAIO ATUALIZAÇÃO: NATASHA SALINAS E RAFAEL VÉRAS DIREITO DA REGULAÇÃO

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GRADUAÇÃO2021.1

AUTORES: SÉRGIO GUERRA E PATRÍCIA SAMPAIO ATUALIZAÇÃO: NATASHA SALINAS E RAFAEL VÉRAS

DIREITO DA REGULAÇÃO

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SumárioDireito da Regulação

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................................3

PLANO DE ENSINO .................................................................................................................................................8

UNIDADE I: REFORMA DO ESTADO E REGULAÇÃO ............................................................................................................8

AULA 2, 3 E 4 – O PAPEL DO ESTADO NA ORDEM ECONÔMICA ...........................................................................................13

AULAS 5 E 6 – REGIME JURÍDICO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS .............................................................................................29

UNIDADE II: CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS E PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPPS). CONSÓRCIOS PÚBLICOS. .....................38

AULAS 7 E 8 – DELEGAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS: CONCESSÃO E PERMISSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS. LICITAÇÃO E CONTRATO DE

CONCESSÃO. ......................................................................................................................................................38

AULAS 9 E 10 – DIREITOS DOS USUÁRIOS E EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DAS CONCESSÕES DE SERVIÇOS PÚBLICOS. ...........54

AULA 11 – EXTINÇÃO DO CONTRATO DE CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. ..........................................................................78

AULAS 12 E 13 – PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS. ........................................................................................................91

AULA 14 – CONSÓRCIOS PÚBLICOS. ........................................................................................................................102

UNIDADE IV. AGÊNCIAS REGULADORAS ...................................................................................................................109

AULAS 15 E 16 – AGÊNCIAS REGULADORAS I. AGÊNCIAS REGULADORAS E SUA CONSTITUCIONALIDADE. CARACTERÍSTICAS. ............109

AULA 17 – AGÊNCIAS REGULADORAS. FUNÇÕES. ........................................................................................................119

UNIDADE V: CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS .................................................................................................138

AULA 17 – CONTROLE DO ATO ADMINISTRATIVO I: CONTROLE NO ÂMBITO DO EXECUTIVO. ANULAÇÃO E REVOGAÇÃO DO ATO

ADMINISTRATIVO. RECURSO HIERÁRQUICO E RECURSO HIERÁRQUICO IMPRÓPRIO. ............................................................138

AULA 18 – CONTROLE DO ATO ADMINISTRATIVO II: CONTROLE PELO PODER LEGISLATIVO, PELO TRIBUNAL DE CONTAS E PELO MINISTÉRIO

PÚBLICO. .......................................................................................................................................................144

AULA 19 – CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS ...................................................................................................151

UNIDADE VI: PROCESSO ADMINISTRATIVO ...............................................................................................................159

AULA 20 – PROCESSO ADMINISTRATIVO: PRINCÍPIOS E FUNDAMENTOS ...........................................................................159

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SumárioDireito da Regulação

UNIDADE VII – RESPONSABILIDADE CIVIL................................................................................................................169

AULAS 21 – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ....................................................................................................169

UNIDADE VIII: AGENTES ESTATAIS .........................................................................................................................179

AULAS 22 – REGIME JURÍDICO DOS AGENTES ESTATAIS ................................................................................................179

AULA 23 – AGENTES ESTATAIS ..............................................................................................................................189

AULA 24 – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ............................................................................................................196

AULA 25 – LEI ANTICORRUPÇÃO E ABUSO DE AUTORIDADE ...........................................................................................205

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INTRODUÇÃO

O direito administrativo brasileiro foi muito influenciado pelo direito administrativo francês. No contexto inicial de surgimento do ramo, o direito administrativo era considerado como sendo um mero conjunto de condições necessárias à conformação da estrutura burocrática do governo às regras criadas pelo Poder Legislativo; isto é, pensava-se o direito administrativo como sendo a disciplina voltada à organização da máquina administrativa do Estado, com características de unidade, centralização e uniformidade, em posição privilegiada em relação ao cidadão e direcionada à manutenção do funcionamento dos serviços públicos.1

A inquestionável superioridade do interesse público sobre o privado2 foi conjugada pela supremacia da Administração, o princípio da legalidade e a função discricionária;3 advindo daí o regime administrativo diferenciado, compreendendo as prerrogativas da Administração Pública: poder de polícia e radical desigualdade, unilateral e singular, tais como espécies diferentes de propriedade, contratos e responsabilidades (diversas, portanto, do direito privado), submetidas as causas desta matéria, inclusive, a um tribunal próprio no caso francês.

Um passo importante para a evolução do direito administrativo ocorreu no início do século passado, com León Duguit, ao doutrinar acerca das transformações do direito público.4 Nessa obra, destacando a passagem, no direito administrativo, da puissance public para o service public, Duguit advertia que, com o desaparecimento do sistema imperialista, a noção de serviço público substituiu a de soberania e mudou a concepção de lei, do ato administrativo, da justiça administrativa e de responsabilidade estatal.

A concepção de direito administrativo no Brasil, seguindo os influxos do direito administrativo francês, pressupunha uma atuação executiva estatal hierarquizada e suportada por decisões de “cima para baixo”,5 à luz da teoria clássica da separação de poderes. Esse fato era justificado pelo modelo de estado social, com forte intervenção executiva estatal direta nas atividades econômicas.

O direito administrativo de que a sociedade atual necessita não se pode caracterizar como a mesma disciplina do século XIX e da primeira metade do século XX. Deve acompanhar as características e os riscos por que passa a sociedade contemporânea globalizada, que, por isso, clama por uma releitura de categorias, fórmulas e institutos desse ramo do direito público, cunhados há mais de um século.

1 GUERRA, Sérgio. Discricionariedade e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. 3ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015.2 Sobre a releitura da supremacia do interesse público sobre o privado, destacamos, para aqueles que desejam uma introdução sobre o assunto, a obra de MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução, p. 185 et seq., e, em maior profundidade, os diversos artigos que compõem a coletiva intitulada: Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Daniel Sarmento (Org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; o artigo de ÁVILA, Humberto. Repensando o “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”. In: SARLET (Org.). O direito público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 99-127; o artigo de OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito administrativo brasileiro? Revista de Direito Administrativo, v. 220, 2000, p. 69-107.3 CASSESE, . La globalización jurídica. Trad. Luis Ortega, Isaac Martín Delgado e Isabel Gallego Córceles. Madrid: Marcial Pons, 2006, p. 181.4 Nesse sentido, consulte-se a obra DUGUIT. Les transformations du droit public, (que reproduz a obra publicada em 1913 por Max Leclerc e H. Bourrelier pela Ed. Colin).5 Expressão utilizada por Sérgio Buarque de Holanda para se referir aos movimentos “aparentemente reformadores” ocorridos no Brasil, conduzidos pelos grupos dominantes. Na obra clássica HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil, p. 160.

1 GUERRA, Sérgio. Discricionariedade e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. 3ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015.

2 Sobre a releitura da supremacia do interesse público sobre o privado, destacamos, para aqueles que desejam uma introdução sobre o assunto, a obra de MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução, p. 185 et seq., e, em maior profundidade, os diversos artigos que compõem a coletiva intitulada: Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Daniel Sarmento (Org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; o artigo de ÁVILA, Humberto. Repensando o “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”. In: SARLET (Org.). O direito público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 99-127; o artigo de OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito administrativo brasileiro? Revista de Direito Administrativo, v. 220, 2000, p. 69-107.

3 CASSESE, . La globalización jurídica. Trad. Luis Ortega, Isaac Martín Delgado e Isabel Gallego Córceles. Madrid: Marcial Pons, 2006, p. 181.

4 Nesse sentido, consulte-se a obra DUGUIT. Les transformations du droit public, (que reproduz a obra publicada em 1913 por Max Leclerc e H. Bourrelier pela Ed. Colin).

5 Expressão utilizada por Sérgio Buarque de Holanda para se referir aos movimentos “aparentemente reformadores” ocorridos no Brasil, conduzidos pelos grupos dominantes. Na obra clássica HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil, p. 160.

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Assim é que a atividade administrativa vai, aos poucos, tornando-se um mecanismo de composição de interesses públicos e privados, que se manifestam no procedimento, e que os órgãos de decisão devem regular de maneira a tomar a decisão mais adequada e que melhor salvaguarde os direitos subjetivos e os interesses em presença.

Nesse diapasão, desponta uma questão de capital importância estudada nas aulas de direito administrativo concernente à configuração da regulação estatal nas relações contemporâneas entre a Administração Pública descentralizada e o agente regulado que recebe a delegação dos serviços públicos. Essa forma de intervenção estatal (regulação) deve atender ao interesse público, sem, contudo, deixar de sopesar os efeitos e os impactos dessas decisões no subsistema regulado com os interesses de segmentos específicos da sociedade e, até mesmo, com o interesse individual no caso concreto. De certa forma, esse aspecto ainda é uma novidade no estudo do Direito Administrativo.

Nesse campo de questões, as atribuições estatais, no contemporâneo Estado Regulador - confirmado, entre nós, com a promulgação da Carta de 19886 - deve atentar para a justiça material no caso real, impossível de ser previsível e positivada, na maioria das vezes, pelo Poder Legislativo. O Direito Administrativo se estruturou, no passado, no princípio da legalidade, o qual hoje parece não ser mais suficiente para desvendar todos os desafios postos aos estudiosos do Direito Administrativo.7 Assim, faz parte do objetivo desta disciplina chamar ao debate jurídico para esta fase por que passa o estudo do direito administrativo, como, por exemplo, a forma de compatibilização dos instrumentos de regulação de serviços públicos dentro das premissas decorrentes do Estado Democrático de Direito.

REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS:

a. Objeto geral da disciplina e temas relacionados, sua organização e abordagem teórica;

Discutir as funções desempenhadas pelo Estado, no âmbito da Ordem Econômica, com ênfase na regulação estatal e na disciplina dos serviços públicos. Os alunos também serão capacitados em temas como processo administrativo e responsabilidade civil do Estado.

6 BRASIL (Constituição de 1988). Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.7 Por exemplo: é sabido que nas principais questões submetidas à regulação estatal as normas têm linhas mestras da política econômica e social, fazendo com que seja necessária uma liberdade ao administrador público na hora de executar os comandos gerais da norma, dependendo: (i) dos dados empíricos decorrentes das técnicas disponíveis e testadas; (ii) da circunstância fática em que a norma está sendo aplicada, e; (iii) dos impactos prospectivos multilaterais decorrentes do ato. Estaremos diante, portanto, de questões que transcendem a vinculação do administrador público ao princípio da legalidade.

6 BRASIL (Constituição de 1988). Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

7 Por exemplo: é sabido que nas principais questões submetidas à regulação estatal as normas têm linhas mestras da política econômica e social, fazendo com que seja necessária uma liberdade ao administrador público na hora de executar os comandos gerais da norma, dependendo: (i) dos dados empíricos decorrentes das técnicas disponíveis e testadas; (ii) da circunstância fática em que a norma está sendo aplicada, e; (iii) dos impactos prospectivos multilaterais decorrentes do ato. Estaremos diante, portanto, de questões que transcendem a vinculação do administrador público ao princípio da legalidade.

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b. Finalidades do processo ensino-aprendizado

No curso Regulação e Serviços Públicos, a cada encontro serão discutidos um ou mais casos geradores construídos, na maioria das vezes, a partir de situações concretas ou de precedentes que foram objeto de decisão do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, a fim de familiarizar o aluno com questões discutidas no dia a dia forense e despertar o seu senso crítico com relação às posições adotadas pelos Tribunais.

A finalidade do processo de ensino-aprendizado deste curso é problematizar a complexidade dos temas enfrentados pelos administradores públicos e pelos administrados, com ênfase na pluralidade de correntes sobre os assuntos abordados e sobre a análise da jurisprudência.

c. Método participativo

A metodologia do curso é eminentemente participativa, requerendo intensa interação dos alunos nos debates em sala e preparo prévio para as aulas, mediante a leitura das indicações bibliográficas obrigatórias e, sempre que possível, das leituras complementares.

d. Desafios e dificuldades do curso

O Curso exigirá do aluno uma visão reflexiva do direito administrativo e capacidade de relacionar a teoria exposta na bibliografia e na sala de aula, com outras disciplinas, especialmente o direito econômico. O principal desafio consiste em construir uma visão contemporânea e pós-moderna do direito administrativo, centrado nos direitos dos cidadãos, buscando sempre cotejar o conteúdo da disciplina com a realidade do País.

e. Critérios de Avaliação: clareza e objetividade acerca da postura do professor quanto ao exame das aprendizagens dos alunos;

A avaliação será composta por duas provas de igual peso. A nota final será composta pela média aritmética entre as duas notas obtidas pelo aluno, notas por conceito e eventuais atividades complementares que venham a ser oportunamente solicitadas aos alunos.

f. Atividades previstas: tipo da atividade, se em conjunto com outros professores, palestras, projetos, participação em pesquisas, blog etc.

O curso possui um blog que pode ser acessado em http://direitoadministrativofgvrio.wordpress.com/blog/. Os alunos são estimulados a contribuir para as discussões do blog ao longo do semestre.

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g. Conteúdo da disciplina

A disciplina Regulação e Serviços Públicos discutirá as funções desempenhadas pelo Estado, no âmbito da Ordem Econômica, com ênfase na regulação estatal e na disciplina dos serviços públicos. Como decorrência necessária à compreensão dos limites da atuação da Administração Pública na Ordem Econômica, será apresentado o rol de controles a que se sujeitam os atos da Administração Pública. O programa abrange ainda a responsabilidade civil do Estado por atos e omissões da Administração Pública, bem como o regime jurídico do processo administrativo.

Em síntese, o curso será composto pelas seguintes unidades:

• Unidade I: Reforma do Estado e regulação.

• Unidade II: Concessão de serviços públicos e Parcerias Público-Privadas. Consórcios públicos.

• Unidade III: Regime jurídico das atividades monopolizadas pelo Estado.

• Unidade IV: Agências reguladoras.

• Unidade V: Controle dos atos administrativos.

• Unidade VI: Processo administrativo.

• Unidade VII: Responsabilidade civil do Estado.

• Unidade VIII: Agentes estatais.

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PLANO DE ENSINO

Apresentamos abaixo quadro que sintetiza o Plano de Ensino da disciplina, contendo a ementa do curso, sua divisão por unidades e os objetivos de aprendizado almejados com a matéria.

UNIDADE I: REFORMA DO ESTADO E REGULAÇÃO

I. TEMA

Compreendendo a regulação estatal das atividades econômicas

II. ASSUNTO

Regulação estatal.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

O objetivo desta aula consiste em discutir alguns dos principais temas que comporão o curso Serviços Públicos e Controle da Administração Pública.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

O presente curso insere-se no contexto da crescente complexidade da sociedade contemporânea e fortalecimento da democracia. Segundo Jacques Chevallier, as transformações que os Estados conhecem atualmente não podem ser consideradas um fenômeno isolado: elas remetem a uma crise mais genérica das instituições e dos valores da modernidade nas sociedades ocidentais; e essa crise parece dever conduzir a uma construção de um novo modelo de organização social.8

O termo “pós-modernidade”, popularizado por Jean-François Lyotard,9 indica novas concepções surgidas a partir da segunda grande guerra mundial, incrementadas nas décadas de oitenta e noventa do século XX.

8 CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009. p. 16.9 Post-modern condition. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1985.

8 CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009. p. 16.

9 Post-modern condition. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1985.

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Nesta fase, adote-se ou não essa terminologia, vive-se sob um modelo de Estado em que o jusnaturalismo liberal e a intervenção social cedem lugar à interferência estatal nas atividades econômicas privadas (em sentido amplo e restrito)10 e setores sensíveis à sociedade sob configuração de escolha regulatória. Busca-se uma atuação eficiente e com foco no bem-estar social mediante ponderação nos conflitos distributivos, à luz de princípios — não apenas regras — que trabalham com categorias econômicas. Um dos principais traços dessa fase por que passa a sociedade está no fato de que a atuação estatal em um determinado aspecto do conjunto social tende a produzir reflexos em outro segmento e afetar o direito individual. Nesse período, o problema básico de qualquer Constituição política contemporânea não pode mais ser captado em toda sua extensão por aquela fórmula clássica em que se tinha um problema de delimitação do poder estatal em face do cidadão individualmente considerado. Hoje, se demanda um disciplinamento da atividade política e econômica, permitindo a satisfação do interesse coletivo que as anima, compatibilizando-o com interesses de natureza individual e pública com base em um princípio de proporcionalidade.

Com as premissas da pós-modernidade e que acabaram por impor fortes mudanças na condução da Ordem Econômica em diversos países, notadamente na Europa durante a década de 80, o modelo de Estado Regulador foi confirmado no Brasil com a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Nesse novo sistema, o modelo liberal e o intervencionismo social cedem lugar à intervenção estatal que deve ser diferenciada tanto na ordem econômica social, impondo-se que “novas necessidades sejam identificadas e expostas, especialmente para que o Estado neutralize os excessos e se valha de seu poder como instrumento de controle da atuação privada”.11

O modelo regulatório decorre do fenômeno de “mutação constitucional”12, desencadeado pelas alterações estruturais por que passou a sociedade e que esse acontecimento teve como consequência, no plano das instituições políticas, o surgimento do imperativo de mudança nas formas de exercício das funções estatais clássicas. O fenômeno da regulação, tal como concebido nos dias atuais, nada mais representa do que uma espécie de corretivo indispensável a dois processos que se entrelaçam. De um lado, trata-se de um corretivo às mazelas e às deformações do regime capitalista e, de outro, um corretivo ao modo de funcionamento do aparelho do Estado engendrado por esse mesmo capitalismo.

10 Eros Roberto Grau entende que estão inseridos nas atividades econômicas em sentido amplo (gênero) tanto os serviços públicos (espécie) quanto às atividades econômicas em sentido estrito (espécie). GRAU. A ordem econômica..., p. 138 et seq. Em sentido contrário, ao qual aderimos, se manifesta Odete Medauar: “A nosso ver, não parece adequado ao ordenamento brasileiro considerar o serviço público como atividade econômica. De um lado, tem-se o art. 175, que, de modo claro atribui o serviço público ao poder público, podendo ser realizado pelo setor privado mediante concessão ou permissão. Vê-se que a Constitui-ção Federal fixou um vínculo de presença do poder público na atividade qualificada como serviço público, presença esta que pode ser forte ou fraca, mas que não pode ser abolida. Esta presença seexpressa na escolha do modo de realização da atividade, na sua destinação ou atendimento de necessidades da coletividade.” MEDAUAR. Segurança jurídica e confiança legítima. In: ÁVILA (Coord.). Fundamentos do estado de direito: estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva, p. 125.11 JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 18.12 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Agências reguladoras: a “metamorfose” do Estado e da democracia (uma reflexão de direito constitucional e com-parado). In: Direito da regulação. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. v. IX. Alexandre Santos de Aragão (org.) Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 90.

10 Eros Roberto Grau entende que estão inseridos nas atividades econômicas em sentido amplo (gênero) tanto os serviços públicos (espécie) quanto às atividades econômicas em sentido estrito (espécie). GRAU. A ordem econômica..., p. 138 et seq. Em sentido contrário, ao qual aderimos, se manifesta Odete Medauar: “A nosso ver, não parece adequado ao ordenamento brasileiro considerar o serviço público como atividade econômica. De um lado, tem-se o art. 175, que, de modo claro atribui o serviço público ao poder público, podendo ser realizado pelo setor privado mediante concessão ou permissão. Vê-se que a Constituição Federal fixou um vínculo de presença do poder público na atividade qualificada como serviço público, presença esta que pode ser forte ou fraca, mas que não pode ser abolida. Esta presença se expressa na escolha do modo de realização da atividade, na sua destinação ou atendimento de necessidades da coletividade.” MEDAUAR. Segurança jurídica e confiança legítima. In: ÁVILA (Coord.). Fundamentos do estado de direito: estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva, p. 125.

11 JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 18.

12 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Agências reguladoras: a “metamorfose” do Estado e da democracia (uma reflexão de direito constitucional e comparado). In: Direito da regulação. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. v. IX. Alexandre Santos de Aragão (org.) Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 90.

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Diante desses fatos, quais devem ser os objetivos dessa função regulatória descentralizada, adotada em diversos países, inclusive no Brasil? Vital Moreira e Fernanda Maças13 advertem serem várias as razões para a adoção do modelo de regulação estatal por entidades independentes, ao invés da regulação direta pelo Poder Executivo. Uma dessas razões está atrelada ao novo sentido de regulação administrativa.

De fato, no modelo intervencionista, havia uma confusão entre intervenção direta estatal na atividade econômica e as tarefas regulatórias e, em várias situações, a função regulatória competia ao próprio operador público, muitas vezes sob a figura do monopólio. Com o aparecimento de novos operadores privados na execução de atividades econômicas e serviços públicos, entendeu-se que deveria haver uma separação das funções de regulação e as funções de participação pública na própria atividade regulada.14

Para Jacques Chevallier, a regulação se distingue dos modos clássicos de intervenção do Estado na economia, pois consiste em supervisionar o jogo econômico, estabelecendo certas regras e intervindo de maneira permanente para amortecer as tensões, compor os conflitos e assegurar a manutenção de um equilíbrio do conjunto. Ou seja, por meio da regulação o Estado não se põe mais como ator, mas como árbitro do processo econômico, limitando-se a enquadrar a atuação dos operadores e se esforçando para harmonizar suas ações.15

Marcos Juruena Villela Souto16 leciona que um processo de regulação implica, tipicamente, em várias fases, em que se destacam a formulação das orientações da regulação, a definição e operacionalização das regras, a implementação e aplicação das regras, o controle da aplicação das regras, a sanção dos transgressores e a decisão nos recursos. Paralela e simultaneamente aos desafios colocados pela globalização, o Estado atual sofre a crise do financiamento das suas múltiplas funções. Diante dessa crise há inevitabilidade da retração do Estado frente às necessidades sociais, ou, alternativamente, adotam-se novas estratégias de atuação compatíveis com a escassez de recursos.17 Nesse contexto, Floriano Azevedo Marques Neto18 anota que “A atividade regulatória é espécie do gênero atividade administrativa. Mas trata-se de uma espécie bastante peculiar. Como já pude afirmar em outra oportunidade, é na moderna atividade regulatória estatal que melhor se manifesta o novo paradigma de direito administrativo, de caráter menos autoritário e mais consensual, aberto à interlocução com a sociedade e permeado pela participação do administrado”.

13 Autoridades reguladoras independentes. Coimbra: Coimbra Editores, 2003, p. 10.14 Conrado Hübner Mendes aduz que: “as empresas que saem do domínio estatal e passam a fazer parte do domínio privado não podem estar sub-metidas, exclusivamente, às livres decisões de seus administradores, motivadas unicamente pelas contingências econômicas. Devem, sim, estar em consonância com interesses que transcendem os meramente capitalistas. Por esse motivo, ao retirar da máquina estatal tais empresas, nasce a necessidade de regulá-las intensamente.” MENDES, Conrado Hübner. Reforma do Estado e agências reguladoras. In: Direito administrativo econômico. Carlos Ari Sundfeld (coord.). São Paulo: Malheiros, 2000, p. 108.15 CHEVALLIER. O Estado pós-moderno, p. 73.16 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Desestatização: privatização, concessões, terceirizações e regulação. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 441.17 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2002, p. 68.18 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Pensando o controle da atividade regulação estatal. In: SÉRGIO GUERRA (Coord.). Temas de direito regula-tório. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2005, p. 202.

13 Autoridades reguladoras independentes. Coimbra: Coimbra Editores, 2003, p. 10.

14 Conrado Hübner Mendes aduz que: “as empresas que saem do domínio estatal e passam a fazer parte do domínio privado não podem estar submetidas, exclusivamente, às livres decisões de seus administradores, motivadas unicamente pelas contingências econômicas. Devem, sim, estar em consonância com interesses que transcendem os meramente capitalistas. Por esse motivo, ao retirar da máquina estatal tais empresas, nasce a necessidade de regulá-las intensamente.” MENDES, Conrado Hübner. Reforma do Estado e agências reguladoras. In: Direito administrativo econômico. Carlos Ari Sundfeld (coord.). São Paulo: Malheiros, 2000, p. 108.

15 CHEVALLIER. O Estado pós-moderno, p. 73.

16 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Desestatização: privatização, concessões, terceirizações e regulação. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 441.

17 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2002, p. 68.

18 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Pensando o controle da atividade regulação estatal. In: SÉRGIO GUERRA (Coord.). Temas de direito regulatório. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2005, p. 202.

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DIREITO DA REGULAÇÃO

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Entretanto, o principal objetivo perseguido com a instituição de um modelo estatal regulatório foi a cessão de capacidade decisória sobre aspectos técnicos para entidades descentralizadas em troca de credibilidade e estabilidade, demonstrando-se, com isso, que a regulação estatal deixava de ser assunto de Governo para ser assunto de Estado. Adveio, com a globalização, a obrigação de se gerar salvaguardas institucionais que signifiquem um compromisso com a manutenção de regras (segurança jurídica) e contratos de longo prazo.19

Por esse novo papel do Estado Regulador se abandona o perfil autoritário em prol de uma maior interlocução do Poder Público com a sociedade. Enquanto na perspectiva do liberalismo compete ao poder público assegurar as regras do jogo para livre afirmação das relações de mercado, no modelo social inverte-se este papel, de modo que a atividade estatal seja a provedora das necessidades coletivas, ao Estado neoliberal são exigidas funções de equalização, mediação e arbitragem das relações econômicas e sociais, ponderados os interesses em presença. 20

Nessa ordem de convicções, Marçal Justen Filho21 conclui que a concepção regulatória retrata uma redução nas diversas dimensões da intervenção estatal no âmbito econômico, incorporando uma concepção de subsidiariedade. Isso importa reconhecer os princípios gerais da livre iniciativa e da livre empresa, reservando-se ao Estado o instrumento da regulação como meio de orientar a atuação dos particulares à realização de valores fundamentais.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

GUERRA, Sérgio. Discricionariedade e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. 3ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015, Capitulo I.

Leitura complementar

BINEMBOJN, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, capítulo II.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Juridicidade, pluralidade normativa, democracia e controle social. In: Mutações do direito público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 27 e ss.

19 Sabino Cassese chega a afirmar que as entidades reguladoras independentes “não devem ponderar o interesse público a elas confiado com outros interesses públicos secundários, como sucede em outros órgãos públicos que formam parte do Estado, começando, sobretudo, pelo governo.”. La globalización..., p. 151.20 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A nova regulação dos serviços públicos. Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, v. 228, p. 13-29, abr./jun.2002. Denominando esse modelo como Estado subsidiário, José Alfredo de Oliveira Baracho denota que perseguindo os seus fins, harmoniza a liberdade autonômica com a ordem social justa, com a finalidade de manter o desenvolvimento de uma sociedade formada de autoridades plurais e diversificadas, recusan-do o individualismo filosófico. Por isso, a idéia de subsidiariedade aparece como a solução intermediária entre o Estado-providência e o Estado Liberal. BARACHO, José Alfredo. O princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 88. 21 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 21.

19 Sabino Cassese chega a afirmar que as entidades reguladoras independentes “não devem ponderar o interesse público a elas confiado com outros interesses públicos secundários, como sucede em outros órgãos públicos que formam parte do Estado, começando, sobretudo, pelo governo.”. La globalización..., p. 151.

20 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A nova regulação dos serviços públicos. Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, v. 228, p. 13-29, abr./jun.2002. Denominando esse modelo como Estado subsidiário, José Alfredo de Oliveira Baracho denota que perseguindo os seus fins, harmoniza a liberdade autonômica com a ordem social justa, com a finalidade de manter o desenvolvimento de uma sociedade formada de autoridades plurais e diversificadas, recusando o individualismo filosófico. Por isso, a idéia de subsidiariedade aparece como a solução intermediária entre o Estado-providência e o Estado Liberal. BARACHO, José Alfredo. O princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 88.

21 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 21.

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VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Não há; trata-se da primeira aula do curso.

VII. CONCLUSÃO DA AULA

O papel do Estado nas relações econômico-sociais se modificou com o passar do tempo. De um Estado interventor, tem-se hoje um papel regulador do Estado, exercido, precipuamente, por entidades descentralizadas, dotadas de tecnicidade e autonomia face ao Poder Executivo central.

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AULA 2, 3 E 4.

I. TEMA

O papel do Estado na Ordem Econômica

II. ASSUNTO

Fundamentos jurídicos e econômicos da Intervenção do Estado no Domínio Econômico.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Esclarecer a conformação atual da participação do Estado na Ordem Econômica e como as modificações introduzidas pela Constituição de 1988 influenciaram mudanças nas funções desempenhadas pela Administração Pública no tocante ao desempenho da atividade econômica.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Introdução:

A Constituição de 1988 e a participação do Estado na economia

No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição de 1988 constitui o ponto de partida para se compreender as mudanças observadas na forma de participação do Estado na economia nos últimos anos.

Neste aspecto, deve-se esclarecer que as formas e o grau de participação do Estado na dinâmica econômica de um País dependem fundamentalmente do tipo de organização expresso na Constituição Econômica, na qual se encontra a determinação do regime básico de ordenação dos fatores de produção, bem como seus princípios regedores e objetivos almejados.

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Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, quatro são os requisitos que caracterizam uma ordem econômica com sendo “descentralizada” ou “de mercado”: trata-se de uma economia multipolar, constituída por redes de troca entre centros de produção, de oferta de fatores e de consumo, ligados por uma solidariedade funcional; trata-se de uma economia de empresa, que constitui uma “unidade econômica de produção que assegura a ligação entre os mercados de bens e serviços (demanda de consumo final) e os mercados de fatores de produção (trabalho e capital); trata-se de uma economia de cálculos em moeda, sendo que os preços exprimem as tensões de escassez da vida econômica, traduzem as necessidades e as pretensões entre as quais se instaura um equilíbrio econômico; e trata-se de uma economia em que o Estado exerce somente uma interferência indireta e global, podendo orientar, influenciar a economia através de políticas, mas sem cunho determinante.22

A Constituição de 1988 adota o modelo de organização econômica capitalista, sendo a livre iniciativa princípio fundamental da República (art 1º, IV) e da Ordem Econômica (art. 170, caput); garantindo-se o direito de propriedade, inclusive dos bens de produção (arts. 5º, XII e 170, II) e; respeitando-se a liberdade de atividade econômica independentemente de prévia autorização, salvo nos casos previstos em lei (arts. 5º, XIII e 170, parágrafo único).23 O art. 173, caput, da Constituição consagra o princípio da subsidiariedade da participação do Estado na atividade econômica:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

Portanto, a Constituição determina que, como regra geral, o Estado se abstenha de exercer diretamente atividade econômica. Para que possa desempenhá-la, faz-se necessário que exista previsão constitucional, ou lei que determine haver relevante interesse coletivo ou necessidade relacionada à segurança nacional. Sobre o princípio da subsidiariedade e sua aplicação na Ordem Econômica, expõe Alexandre Santos de Aragão que “impõe ao Estado que se abstenha de intervir e de regular as atividades que possam ser satisfatoriamente exercidas ou autorreguladas pelos particulares em regime de liberdade.24

22 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direito constitucional econômico. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 9. Ver também GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 6a ed. São Paulo: Malheiros, 2001.23 Direito constitucional econômico, ob. cit., p. 9.24 Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 132.

22 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direito constitucional econômico. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 9. Ver também GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 6a ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

23 Direito constitucional econômico, ob. cit., p. 9.

24 Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 132.

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A participação direta do Estado na atividade econômica, quando admitida, concretiza-se geralmente pela constituição de empresas públicas e sociedades de economia mista, para as quais a Constituição previu um regime jurídico próprio e aproximado daquele aplicável aos agentes privados, cujos princípios encontram-se estatuídos no art. 173, §1º, nos seguintes termos:

Art. 173. (...) §1º. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;IV – a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;V – os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.25

Para uma melhor compreensão do papel do Estado face à atividade econômica, não se pode desconsiderar que a Constituição de 1988 possui uma plêiade de objetivos da República de conteúdo marcadamente redistributivo (art. 3º da Constituição de 1988)26, os quais vão reclamar uma atuação positiva do Estado na seara econômica para a sua efetivação. Além disso, os artigos 5o, XXIII e 170, III, da Constituição Federal determinam que a propriedade cumprirá função social27. Ademais, a livre concorrência como princípio fundador da Ordem Econômica (art. 170, IV) exige uma intervenção do Estado na prevenção e repressão do abuso do poder econômico (art. 174, §3º, CF/88).

Em adição aos princípios supracitados, uma das chaves para guiar o esforço de hermenêutica da Ordem Econômica é o artigo 174 da Constituição, o qual se mostra bastante elucidativo no que tange ao papel conferido ao Estado na atividade econômica após a inauguração do novo regime constitucional:

25 Faz-se relevante mencionar que a jurisprudência mitiga a equiparação das empresas públicas e sociedades de economia mista às pessoas jurí-dicas de direito privado quando aquelas desempenham atividades consideradas serviços públicos. Nesse sentido, veja-se decisão do Supremo Tribunal Federal relativa à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, a qual, muito embora apresente natureza jurídica de empresa pública, goza de algumas prerrogativas ine-rentes à Fazenda Pública, em consideração à relevância do serviço público por ela prestado. Ver, a respeito, Recurso Extraordinário nº 229.696, j. em 16.11.2000, Rel. do acórdão Min. Maurício Corrêa, maioria.26 Dispõe o art. 3º da Constituição Federal: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.27 Mesmo antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, o professor Fábio Konder Comparato já ensinava que: “Quando se fala em função social da propriedade não se indicam as restrições ao uso e gozo dos bens próprios. Essas últimas são limites negativos aos direitos do proprietário. Mas a noção de função, no sentido em que é empregado o termo nesta matéria, significa um poder, mais especificamente, o poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo. O adjetivo social mostra que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo e não ao interesse próprio do dominus; o que não significa que não possa haver harmonização entre um e outro. Mas, de qualquer modo, se se está diante de um interesse coletivo, essa função social da propriedade corresponde a um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica.” COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. In Revista de Direito Mercantil. São Paulo: Malheiros, n. 63, p. 73.

25 Faz-se relevante mencionar que a jurisprudência mitiga a equiparação das empresas públicas e sociedades de economia mista às pessoas jurídicas de direito privado quando aquelas desempenham atividades consideradas serviços públicos. Nesse sentido, veja-se decisão do Supremo Tribunal Federal relativa à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, a qual, muito embora apresente natureza jurídica de empresa pública, goza de algumas prerrogativas inerentes à Fazenda Pública, em consideração à relevância do serviço público por ela prestado. Ver, a respeito, Recurso Extraordinário nº 229.696, j. em 16.11.2000, Rel. do acórdão Min. Maurício Corrêa, maioria.

26 Dispõe o art. 3º da Constituição Federal: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

27 Mesmo antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, o professor Fábio Konder Comparato já ensinava que: “Quando se fala em função social da propriedade não se indicam as restrições ao uso e gozo dos bens próprios. Essas últimas são limites negativos aos direitos do proprietário. Mas a noção de função, no sentido em que é empregado o termo nesta matéria, significa um poder, mais especificamente, o poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo. O adjetivo social mostra que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo e não ao interesse próprio do dominus; o que não significa que não possa haver harmonização entre um e outro. Mas, de qualquer modo, se se está diante de um interesse coletivo, essa função social da propriedade corresponde a um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica.” COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. In Revista de Direito Mercantil. São Paulo: Malheiros, n. 63, p. 73.

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Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

Interpretando-se esse artigo, observa-se que ao Estado é consagrado o papel precípuo de agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo as funções de incentivo, fiscalização e planejamento, na forma em que dispuser a lei. Ou seja, por um lado, o Poder Constituinte não previu a prestação direta da atividade econômica como função primordial do Estado (art. 173, caput, CRFB/88); por outro lado, conferiu-lhe amplos instrumentos de intervenção indireta, mediante, por exemplo, das funções de planejamento e regulação. Nesse sentido, cumpre esclarecer que, ao transferir algumas atividades de utilidade pública à execução por particulares, por meio do processo de desestatização, o Estado brasileiro não deixou de possuir profunda influência sobre a atividade econômica, mas sua tradicional participação direta (como Estado-empresário) foi substituída por uma intervenção primordialmente de direção ou indução28.

Portanto, encontra-se no artigo 174 da Constituição Federal uma previsão genérica de ordenação da economia pelo Estado, baseada no exercício do poder-dever fiscalizatório, normativo e sancionador, no qual pode ser antevisto o embrião do futuro desmembramento dessas competências nos ordenamentos setoriais regulatórios, hoje personificados na figura das agências reguladoras, que serão estudadas adiante neste Curso.

O Programa Nacional de Desestatização

O último Governo brasileiro comandado por um militar foi o do General João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1984). Foi nesse momento que se iniciou o “desmantelamento” do Estado Empresário com o Programa Nacional de Desburocratização, iniciando o processo de privatizações.

Por meio desse Programa, foram preconizadas as seguintes ações, visando “dinamizar e simplificar o funcionamento da Administração Pública Federal”: a) construir para a melhoria do atendimento dos usuários do serviço público;

28 A terminologia é de Eros Roberto Grau. A ordem econômica na Constituição de 1988, ob. cit., p. 169.

28 A terminologia é de Eros Roberto Grau. A ordem econômica na Constituição de 1988, ob. cit., p. 169.

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b) reduzir a interferência do Governo na atividade do cidadão e do empresário e abreviar a solução dos casos em que essa interferência é necessária, mediante a descentralização das decisões, a simplificação do trabalho administrativo e a eliminação de formalidades e exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco; c) agilizar a execução dos programas federais para assegurar o cumprimento dos objetivos prioritários do Governo; d) substituir, sempre que praticável, o controle prévio pelo eficiente acompanhamento da execução e pelo reforço da fiscalização dirigida, para a identificação e correção dos eventuais desvios, fraudes e abusos; e) intensificar a execução dos trabalhos da Reforma Administrativa de que trata o Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, especialmente os referidos no Título XIII; f ) fortalecer o sistema de livre empresa, favorecendo a empresa pequena e média, que constituem a matriz do sistema, e consolidando a grande empresa privada nacional, para que ela se capacite, quando for o caso, a receber encargos e atribuições que se encontram hoje sob a responsabilidade de empresas do Estado; g) impedir o crescimento desnecessário da máquina administrativa federal, mediante o estímulo à execução indireta, utilizando-se, sempre que praticável, o contrato com empresas privadas capacitadas e o convênio com órgãos estaduais e municipais; h) velar pelo cumprimento da política de contenção da criação indiscriminada de empresas públicas, promovendo o equacionamento dos casos em que for possível e recomendável a transferência do controle para o setor privado, respeitada a orientação do Governo na matéria.

Mas foi com a instituição de uma filosofia regulatória na matriz constitucional brasileira, implementou-se no país um amplo processo de desestatização, considerando-o como sendo a retirada da presença do Estado de atividades reservadas constitucionalmente à iniciativa privada (princípio da livre iniciativa) ou de setores onde ela possa atuar com maior eficiência (princípio da economicidade).

Assim, a partir do arcabouço constitucional supracitado, em 1990 foi criado o Programa Nacional de Desestatização (“PND”), por intermédio da Medida Provisória nº 155/1990, posteriormente convertida na Lei nº 8.031, de 12.04.1990. Nos termos desta Lei, a desestatização compreende a alienação pela União, de direitos que lhe assegurem, diretamente ou por meio de outras controladas, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores da sociedade; e a transferência, para a iniciativa privada, da execução de serviços públicos explorados pela União, diretamente ou por meio de entidades controladas, bem como daqueles de sua responsabilidade.

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Até os anos 90, as atividades relacionadas aos setores de infraestrutura eram executadas basicamente por empresas públicas e sociedades de economia mista, sendo a regulação e gerência dos setores de infraestrutura atribuída a departamentos ministeriais diretamente subordinados aos ministros de Estado.29 Armando Castelar Pinheiro30 comenta que tais departamentos apresentavam as seguintes características, as quais contribuíram significativamente para o cenário de ineficiência acima descrito: (i) não eram independentes do governo; (ii) mostravam-se capturados pelos agentes do setor (as chamadas “estatais”) e (iii) não possuíam competência no que concerne à determinação das tarifas, as quais eram fixadas pelo ministro da Fazenda como parte da política macroeconômica pretendida. Eram também comuns as práticas de subsídios cruzados entre diferentes segmentos de uma mesma atividade, assim como o recurso a empréstimos externos garantidos pelo governo, os quais permitiam manter as tarifas artificialmente baixas, dentre outros mecanismos que impediam a autossuficiência dos agentes setoriais e, consequentemente, o seu funcionamento em bases de mercado.

Na verdade, como leciona Vital Moreira, o processo de privatização pode conduzir ao estabelecimento de esquemas reguladores que a anterior propriedade pública permitia dispensar. Muitos dos serviços públicos geridos pelo Estado começaram por ser serviços públicos concedidos altamente regulados, de modo que o binômio privatização/regulação significa, de certa maneira, retorno às origens.31 Com o diagnóstico acima descrito, não é surpreendente que, em 1988, o Constituinte brasileiro e, posteriormente, o Poder Constituinte Derivado (por emendas constitucionais) tenham pretendido inaugurar uma nova forma de participação estatal na vida econômica, conforme a seguir detalhado.

As Emendas Constitucionais de 1995

O Executivo Federal iniciou o processo de desestatização brasileiro com a edição da Lei nº 8.031/1990. Em 1995, notadamente com a promulgação de Emendas Constitucionais, o Estado pode avançar com a desestatização. Nesse quadrante, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado,32 prescreve que “Um dos aspectos centrais desse esforço é o fortalecimento do Estado para que sejam eficazes sua ação reguladora, no quadro de uma economia de mercado, bem como os serviços básicos que presta e as políticas de cunho social que precisa implementar”.

29 No caso do setor elétrico, tinha-se o Departamento Nacional de Energia Elétrica — DNAEE, órgão do Ministério das Minas e Energia.30 PINHEIRO, Armando Castelar. “Regulatory Reform in Brazilian Infrastructure: Where do We Stand?” Rio de Janeiro, IPEA, Texto para discussão nº 964, maio de 2003, p. 7. Disponível em http://www.ipea.gov.br, consultada em 13.02.2005.31 Auto-regulação profissional e administração pública. Lisboa: Almedina, 1997, p. 38.32 BRASIL. Plano Diretor da Reforma do Estado. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/ PLANDI.HTM>. Acesso em: 03 abr. 2010.

29 No caso do setor elétrico, tinha-se o Departamento Nacional de Energia Elétrica — DNAEE, órgão do Ministério das Minas e Energia.

30 PINHEIRO, Armando Castelar. “Regulatory Reform in Brazilian Infrastructure: Where do We Stand?” Rio de Janeiro, IPEA, Texto para discussão nº 964, maio de 2003, p. 7. Disponível em http://www.ipea.gov.br, consultada em 13.02.2005.

31 Auto-regulação profissional e administração pública. Lisboa: Almedina, 1997, p. 38.

32 BRASIL. Plano Diretor da Reforma do Estado. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/ PLANDI.HTM>. Acesso em: 03 abr. 2010.

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Sobre a necessidade de reforma constitucional para o atingimento dessa política absenteísta, de fato ocorrida em 1995, é digno de menção o posicionamento de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para quem ““Além de não existirem mais recursos para recapitalizar as empresas do Estado, escasseiam também os recursos para o desempenho de suas atividades públicas: o Estado privatizado acaba se despublicizando”.33

As Emendas Constitucionais cujas matérias estão voltadas à nova política de retirada do Estado da execução direta das atividades econômicas são as de nº 5, de 15 de agosto de 1995, que transferiu aos Estados a competência para a exploração diretamente, ou mediante concessão, dos serviços públicos de distribuição de gás canalizado; nº 6, de 15 de agosto de 1995, que pôs fim à distinção entre o capital nacional e o estrangeiro; nº 7, de 15 de agosto de 1995, que tratou da abertura para navegação de cabotagem; nº 8, de 15 de agosto de 1995, que flexibilizou o monopólio dos serviços de telecomunicações e de radiodifusão sonora e de sons e imagens; e nº 9, de 9 de novembro de 1995, que flexibilizou o monopólio da exploração do petróleo e do gás natural.

Após a promulgação das Emendas Constitucionais de nºs 5 a 8, foi aprovado, em 21 de setembro de 1995, o já mencionado Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, sob a motivação de reconstruir o Estado de forma a resgatar sua autonomia financeira e sua capacidade de implementar políticas públicas.

A desestatização implementada no país foi executada mediante várias modalidades34: alienação de participação societária detida pelo Estado, inclusive de controle acionário; abertura de capital; aumento de capital, com renúncia ou cessão, total ou parcial, de direitos de subscrição; alienação, arrendamento, locação, comodato ou cessão de bens e instalações; dissolução de sociedades ou desativação parcial de seus empreendimentos, com a consequente alienação de seus ativos; e concessão, permissão ou autorização de serviços públicos.35 Conforme visto, o programa de desestatização fez-se acompanhar da instituição de toda uma estrutura reguladora por parte do Estado, sendo relevante, por conseguinte, estudar o significado da regulação do Estado sobre a atividade econômica, a partir das considerações a seguir tecidas, e o consequente impacto sobre o estudo do direito administrativo.

33 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Reforma da ordem econômica e financeira. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo, v. 3, n. 9, p. 22-25, out/dez. 1994.34 Segundo dados obtidos no BNDES (www.bndes.gov.br/privatizacao - acesso em 31 de julho de 2003), entre 1990 e 1992 foram incluídas sessenta e oito empresas no PND, das quais dezoito foram desestatizadas, com a arrecadação de cerca de quatro bilhões de dólares norte-americanos, em grande parte através de títulos representativos da dívida pública federal. Nos três primeiros anos do PND a estratégia governamental constituiu-se em concentrar esforços na venda de estatais produtivas, pertencentes a setores anteriormente estratégicos para o desenvolvimento do País, tais como companhias siderúrgicas, petroquí-micas e de fertilizantes. Em 1993 e 1994 intensificou-se o processo de transferência de empresas produtivas ao setor privado, concluindo-se a privatização das empresas siderúrgicas. Nesse período foram desestatizadas quinze empresas, com a arrecadação de cerca de quatro e meio bilhões de dólares norte-americanos, em sua maior parte em moeda corrente. Em março de 1994, pelo Decreto nº 1.068 o Executivo Federal incluiu no PND as participações societárias minoritárias detidas por fundações, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e quaisquer outras sociedades controladas, direta ou indiretamente, pela União Federal. Com a eleição do Presidente Fernando Henrique Cardoso em 1995 houve uma intensificação nas privatizações. O PND foi apontado como sendo um dos principais instrumentos do Programa Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Entre 1995 e 1996, após significativas alterações da matriz constitucional mediante a flexibilização dos serviços de telecomunicações e do monopólio da exploração do petróleo e do gás natural, dentre outras, e com a edição de lei específica acerca da concessão e permissão dos serviços públicos (Lei nº 8.987/95), iniciou-se uma nova fase do PND, em que os serviços públicos foram sendo concedidos à iniciativa privada, com destaque para o setor elétrico, de transportes e telecomunicações. É relevante registrar que em 1997 ocorreu um dos grandes marcos do PND, com a venda das ações da Companhia Vale do Rio Doce - CVRD, num processo de desestatização pautado por intensa batalha de liminares judi-ciais. Com a privatização da Companhia Vale do Rio Doce encerrou-se praticamente a transferência à iniciativa privada das empresas industriais e o início de uma nova fase, cujo foco principal foi a privatização de empresas ligadas à área de infraestrutura e as concessões de serviços públicos. Além da privatização da CVRD, merece destaque, ainda, o término da desestatização da Rede Ferroviária Federal – RFFSA, com a venda da malha Nordeste e o leilão de sobras de 14,65% das ações ordinárias da Companhia Espírito Santo Centrais Elétricas - Escelsa. Nesse ano também foi realizada a primeira privatização no setor financeiro, envolvendo as ações do Banco Meridional do Brasil S/A. Em 16 de julho de 1997 foi editada a Lei nº 9.472, a Lei Geral de Telecomunicações, tornando-se possível o processo de privatização do setor de telecomunicações, no qual foram licitadas concessões de telefonia móvel celular para três áreas do território nacional. Em julho de 1998 o governo federal alienou as ações das doze holdings, criadas a partir da cisão do Sistema Telebrás, representando a transferência à iniciativa privada das Empresas de Telefonia Fixa e de Longa Distância, bem como das empresas de Telefonia Celular-Banda A. O resultado financeiro com a venda das ações dessas doze empresas somou 22.057 milhões de reais, sendo que o ágio médio foi de 53,74% sobre o preço mínimo. Foi transferida para a iniciativa privada a exploração do Terminal de Contêineres do Porto de Sepetiba (Tecon 1), da Cia. Docas do Rio de Janeiro, do Cais de Paul e do Cais de Capuaba (Cia. Docas do Espírito Santo-CODESA), Terminal roll-on roll-off (CDRJ) e Porto de Angra dos Reis (CDRJ). No setor elétrico foi realizada a venda das ações de emissão da Companhia Centrais Elétricas Geradoras do Sul S/A - GERASUL,  após  a cisão efetivada em  29  de abril  de  1998. A arrecadação foi de 800,4 milhões de dólares norte-americanos, pagos totalmente em moeda corrente. Em 1999 o governo arrecadou 128 milhões de dólares norte-americanos com a outorga das concessões para exploração de quatro áreas de telefonia fixa das empresas espelho que fazem concorrência às atuais companhias de Telecomunicações. Em 23 de junho daquele ano foi realizada a venda da Datamec S.A - Sistemas e Processamento de Dados, empresa do setor de Informática, que foi adquirida pela Unisys Brasil S.A pelo preço mínimo de 47,29 milhões de dólares norte-americanos. O Porto de Salvador (CODEBA) foi adquirido em 21 de dezembro pela Wilport Operadores Portuários pelo preço mínimo de 21 milhões de dólares norte-americanos. O resultado obtido com o Programa Nacional de Desestatização no ano 2000 atingiu cerca de 7,7 bilhões de dólares norte-americanos, representando, assim, a maior receita anual já auferida pelo Programa desde o seu início. O destaque no ano consistiu na venda das ações que excediam o controle acionário detido pela União na Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás, e a desestatização do Banco do Estado de São Paulo S.A – Banespa. A conclusão da mega operação de venda, no Brasil e no exterior, das ações da Petrobrás ocorreu em 09 de agosto daquele ano e o valor total auferido foi de 4 bilhões de dólares norte-americanos. Observe-se que se tratou de operação pioneira em que, pela primeira vez foram aceitos recursos do FGTS na aquisição das ações. Do mesmo modo, merece destaque a alienação das ações do Banco do Estado de São Paulo – Banespa, realizada em 20 de novembro. Nessa operação o banco espanhol Santander Central Hispano adquiriu 60% do capital votante do Banespa por 7 bilhões de reais, correspondendo a um ágio de 281% em relação ao preço mínimo de 1,8 bilhões de reais. Foram realizadas no ano de 2000 vendas de participações minoritárias da União incluídas no PND no âmbito do Decreto 1068/94, bem como licitadas, pela Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, concessões para exploração de novos aproveitamentos hidrelétricos e de novas linhas de transmissão. No ano 2001 foram realizados dois leilões de concessão dos serviços de telefonia celular para as Bandas D e E. As Áreas 2 e 3 da Banda D e Área 1 da Banda E, foram vendidas para a Telecom Itália, representando, respectivamente, 543 milhões de reais, com ágio de 0,56%, 997 milhões de reais, com ágio de 40,42% e 990 milhões de reais, com ágio de 5,3%. A Área 2 da Banda D foi arrematada pela Telemar, pelo valor de 1.102 milhões de reais, com ágio de 17,3%, e as Áreas 2 e 3 da Banda E não tiveram lances ofertados no dia do leilão. Em 30 de abril de 2001 foi realizado leilão de ações, no âmbito do Decreto 1.068/94, totalizando 26 milhões de reais, e, em 18 de julho encerrou-se a oferta pública, no Brasil e no exterior, de 41.381.826 ações preferenciais da Petrobrás, representativas de 3,5% do seu capital total, perfazendo com a venda um total de 808,3 milhões de dólares norte-americanos. Em janeiro de 2002 foi privatizado o Banco do Estado do Amazonas – BEA, por 76,8 milhões de dólares norte-americanos.35 Bem a propósito, o Programa Nacional de Desestatização foi objeto de amplo questionamento perante os Tribunais Superiores, onde destacamos o acórdão do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, na ADIN 1078/RJ, julgada em 11 de maio de 1994, que confirmou a constitucionalidade das privati-zações, em textual: Ação Direta De Inconstitucionalidade. Medida Cautelar. Medida Provisória n. 506, de 25/5/1994, art. 1º, e Decretos n.s 427, de 16/01/1992; 473, de 10/3/1992, e 572, de 22/6/1992, todos concernentes ao Programa Nacional de Desestatização, regulado pela Lei nº 8.031, de 12/4/1990. 2. Alegação de ofensa ao art. 21, XII, 171, II e 176, par. 1.. da Constituição. 3. Não conhecimento da ação, relativamente aos decretos n.s 427, 473 e 572, todos de 1992, por não serem atos normativos, mas, tão-só, atos administrativos individuais e concretos. 4. Diante da viabilidade de privatização de entidades da administração indireta, no sistema da Constituição, a Lei nº 8.031, de 1990, instituiu o Programa Nacional de Desestatização, cujas modificações poderão ser feitas por lei, de acordo com a política da administração a ser seguida, respeitadas as normas da Constituição. 5. Os fundamentos da inicial não justificam a concessão da cautelar, não se caracterizando, também, o “periculum in mora”. 6. Se porventura houver processo de privatização de empresa, que se tenha como contrário à lei especial referida ou aos princípios da Constituição, há vias judiciais adequadas, para eventualmente atacar o ato administrativo especifico, tal como já sucedeu. 7. Ação conhecida, em parte, e, nessa parte, indeferida a medida cautelar.

33 MOREIRA NETO, Dio-go de Figueiredo. Reforma da ordem econômica e financeira. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo, v. 3, n. 9, p. 22-25, out/dez. 1994.

34 Segundo dados obtidos no BNDES (www.bndes.gov.br/privatizacao - aces-so em 31 de julho de 2003), entre 1990 e 1992 foram incluídas sessenta e oito em-presas no PND, das quais dezoito foram desestatizadas, com a arrecadação de cerca de quatro bilhões de dólares norte--americanos, em grande parte através de títulos representativos da dívida pú-blica federal. Nos três primeiros anos do PND a estratégia governamental consti-tuiu-se em concentrar esforços na venda de estatais produtivas, pertencentes a setores anteriormente estratégicos para o desenvolvimento do País, tais como companhias siderúrgicas, petroquímicas e de fertilizantes. Em 1993 e 1994 inten-sificou-se o processo de transferência de empresas produtivas ao setor privado, concluindo-se a privatização das em-presas siderúrgicas. Nesse período foram desestatizadas quinze empresas, com a arrecadação de cerca de quatro e meio bilhões de dólares norte-americanos, em sua maior parte em moeda corren-te. Em março de 1994, pelo Decreto nº 1.068 o Executivo Federal incluiu no PND as participações societárias minoritárias detidas por fundações, autarquias, em-presas públicas, sociedades de economia mista e quaisquer outras sociedades controladas, direta ou indiretamente, pela União Federal. Com a eleição do Presidente Fernando Henrique Cardoso em 1995 houve uma intensificação nas privatizações. O PND foi apontado como sendo um dos principais instrumentos do Programa Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Entre 1995 e 1996, após significativas alterações da matriz constitucional mediante a flexibilização dos serviços de telecomunicações e do monopólio da exploração do petróleo e do gás natural, dentre outras, e com a edição de lei específica acerca da con-cessão e permissão dos serviços públicos (Lei nº 8.987/95), iniciou-se uma nova fase do PND, em que os serviços públi-cos foram sendo concedidos à iniciativa privada, com destaque para o setor elétrico, de transportes e telecomunica-ções. É relevante registrar que em 1997 ocorreu um dos grandes marcos do PND, com a venda das ações da Companhia Vale do Rio Doce - CVRD, num processo de desestatização pautado por intensa batalha de liminares judiciais. Com a privatização da Companhia Vale do Rio Doce encerrou-se praticamente a trans-ferência à iniciativa privada das empre-sas industriais e o início de uma nova fase, cujo foco principal foi a privatização de empresas ligadas à área de infraestru-tura e as concessões de serviços públicos. Além da privatização da CVRD, merece

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destaque, ainda, o término da deses-tatização da Rede Ferroviária Federal – RFFSA, com a venda da malha Nordeste e o leilão de sobras de 14,65% das ações ordinárias da Companhia Espírito Santo Centrais Elétricas - Escelsa. Nesse ano também foi realizada a primeira privati-zação no setor financeiro, envolvendo as ações do Banco Meridional do Brasil S/A. Em 16 de julho de 1997 foi editada a Lei nº 9.472, a Lei Geral de Telecomunica-ções, tornando-se possível o processo de privatização do setor de telecomunica-ções, no qual foram licitadas concessões de telefonia móvel celular para três áreas do território nacional. Em julho de 1998 o governo federal alienou as ações das doze holdings, criadas a partir da cisão do Sistema Telebrás, representando  a transferência à iniciativa privada das Empresas de Telefonia Fixa e de Longa Distância, bem como das empresas de Telefonia Celular-Banda A. O resultado financeiro com a venda das ações dessas doze empresas somou 22.057 milhões de reais, sendo que o ágio médio foi de 53,74% sobre o preço mínimo. Foi transferida para a iniciativa privada a exploração do Terminal de Contêineres do Porto de Sepetiba (Tecon 1), da Cia. Docas do Rio de Janeiro, do Cais de Paul e do Cais de Capuaba (Cia. Docas do Es-pírito Santo-CODESA), Terminal roll-on roll-off (CDRJ) e Porto de Angra dos Reis (CDRJ). No setor elétrico foi realizada a venda das ações de emissão da Compa-nhia Centrais Elétricas Geradoras do Sul S/A - GERASUL,  após  a cisão efetivada em  29  de abril  de  1998. A arrecada-ção foi de 800,4 milhões de dólares norte-americanos, pagos totalmente em moeda corrente. Em 1999 o gover-no arrecadou 128 milhões de dólares norte-americanos com a outorga das concessões para exploração de quatro áreas de telefonia fixa das empresas es-pelho que fazem concorrência às atuais companhias de Telecomunicações.  Em 23 de junho daquele ano foi realizada a venda da Datamec S.A - Sistemas e Processamento de Dados, empresa do setor de Informática, que  foi adquirida pela Unisys Brasil S.A pelo preço mínimo de 47,29 milhões de dólares norte-ame-ricanos. O Porto de Salvador (CODEBA) foi adquirido em 21 de dezembro pela Wilport Operadores Portuários pelo preço mínimo de 21 milhões de dólares norte-americanos. O resultado obtido com o Programa Nacional de Desestati-zação no ano 2000 atingiu cerca de 7,7 bilhões de dólares norte-americanos, representando, assim, a maior receita anual já auferida pelo Programa desde o seu início. O destaque no ano consis-tiu na venda das ações que excediam o controle acionário detido pela União na Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás, e a desestatização do Banco do Estado de São Paulo S.A – Banespa. A conclusão da mega operação de venda, no Brasil

Regulação da atividade econômica

A terminologia “regulação da atividade econômica” apresenta mais de um sentido, dependendo do contexto em que for utilizada. Com efeito, o termo pode ser interpretado tanto como significando um conjunto de atividades estatais voltadas à regulamentação de um determinado setor específico da economia (como, por exemplo, os setores de telecomunicações, energia, seguros de saúde, petróleo, dentre outros), mas também como o conjunto das atividades estatais voltadas à fiscalização e regulamentação sobre a generalidade dos agentes da economia, como é o caso das atividades exercidas pelos órgãos ambientais e de defesa da concorrência.36 De outra perspectiva, mas igualmente espelhando a pluralidade de significados que o termo pode abarcar, observa Vital Moreira:

Quanto à amplitude do conceito, aparecem-nos três concepções de regulação: (a) em sentido amplo, é toda forma de intervenção do Estado na economia, independentemente de seus instrumentos e fins; (b) num sentido menos abrangente, é a intervenção estatal na economia por outras formas que não a participação direta na atividade econômica, equivalendo, portanto, ao condicionamento, coordenação e disciplina da atividade econômica privada; (c) num sentido restrito, é somente o condicionamento normativo da atividade econômica privada (por via de lei ou outro instrumento normativo).37

Dessa forma, a atividade estatal de regulação, em seu sentido mais técnico e restrito, constitui uma espécie do gênero intervenção estatal na economia, diferindo, todavia, da participação direta do Estado, tanto no que tange aos seus pressupostos, quanto aos seus objetivos e instrumentos. A regulação estatal da atividade econômica, longe de diminuir a importância da participação do Estado na economia, apenas lhe confere uma nova dimensão. O Estado deixa de ter uma função eminentemente empresarial, para passar a atuar principalmente de forma indireta, como ente fomentador, regulador, mediador, fiscalizador e planejador da vida econômica.

Conforme visto, a partir dessa mudança de perspectiva iniciada com a Constituição de 1988 e reforçada após as Emendas Constitucionais que propiciaram o processo de desestatização38, ganha ênfase, no Brasil, a figura do Estado regulador, cuja atuação, em sentido bastante amplo, é assim definida por Alexandre Santos de Aragão:

36 SUNDFELD, Carlos Ari. “Introdução às Agências Reguladoras”. In SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 18. Explica ainda o autor: “A regulação, enquanto espécie de intervenção estatal, manifesta-se tanto por poderes e ações com objetivos cla-ramente econômicos (o controle de concentrações empresariais, a repressão de infrações à ordem econômica, o controle de preços e tarifas, a admissão de novos agentes no mercado) como por outros de justificativas diversas, mas de efeitos econômicos inevitáveis (medidas ambientais, urbanísticas, de normalização, de disciplina das profissões etc.).” Ob. Cit., loc. cit.37 MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e administração pública. Coimbra: Almedina, 1997, p. 35. Comumente, a doutrina administrativista utiliza a terminologia em seu segundo significado.38 Marcos Juruena Villela Souto define o processo de desestatização nos seguintes termos: “É a retirada do Estado de atividades reservadas constitu-cionalmente à iniciativa privada (princípio da livre iniciativa) ou de setores em que ela possa atuar com maior eficiência (princípio da economicidade); é o gênero do qual são espécies a privatização, a concessão, a permissão, a terceirização e a gestão associada de funções públicas”. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo da economia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2003, p. 147.

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e no exterior, das ações da Petrobrás ocorreu em 09 de agosto daquele ano e o valor total auferido foi de 4 bilhões de dólares norte-americanos. Observe--se que se tratou de operação pioneira em que, pela primeira vez foram aceitos recursos do FGTS na aquisição das ações. Do mesmo modo, merece destaque a alienação das ações do Banco do Esta-do de São Paulo – Banespa, realizada em 20 de novembro. Nessa operação o banco espanhol Santander Central His-pano adquiriu 60% do capital votante do Banespa por 7 bilhões de reais, cor-respondendo a um ágio de 281% em re-lação ao preço mínimo de 1,8 bilhões de reais. Foram realizadas no ano de 2000 vendas de participações minoritárias da União incluídas no PND no âmbito do Decreto 1068/94, bem como licitadas, pela Agência Nacional de Energia Elétri-ca - ANEEL, concessões para exploração de novos aproveitamentos hidrelétricos e de novas linhas de transmissão. No ano 2001 foram realizados dois leilões de concessão dos serviços de telefonia celular para as Bandas D e E. As Áreas 2 e 3 da Banda D e Área 1 da Banda E, foram vendidas para a Telecom Itália, re-presentando, respectivamente, 543 mi-lhões de reais, com ágio de 0,56%, 997 milhões de reais, com ágio de 40,42% e 990 milhões de reais, com ágio de 5,3%. A Área 2 da Banda D foi arrematada pela Telemar, pelo valor de 1.102 milhões de reais, com ágio de 17,3%, e as Áreas 2 e 3 da Banda E não tiveram lances ofertados no dia do leilão. Em 30 de abril de 2001 foi realizado leilão de ações, no âmbito do Decreto 1.068/94, totalizando 26 milhões de reais, e, em 18 de julho encerrou-se a oferta  pública, no Brasil e no exterior, de 41.381.826 ações pre-ferenciais da Petrobrás, representativas de 3,5% do seu capital total, perfazendo com a venda um total de 808,3 milhões de dólares norte-americanos. Em janeiro de 2002 foi privatizado o Banco do Esta-do do Amazonas – BEA, por 76,8 milhões de dólares norte-americanos.

35 Bem a propósito, o Programa Nacional de Desestatização foi objeto de amplo questionamento perante os Tribunais Superiores, onde destacamos o acórdão do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, na ADIN 1078/RJ, julgada em 11 de maio de 1994, que confirmou a constitucionalidade das privatizações, em textual: Ação Direta De Inconstitu-cionalidade. Medida Cautelar. Medida Provisória n. 506, de 25/5/1994, art. 1º, e Decretos n.s 427, de 16/01/1992; 473, de 10/3/1992, e 572, de 22/6/1992, to-dos concernentes ao Programa Nacional de Desestatização, regulado pela Lei nº 8.031, de 12/4/1990. 2. Alegação de ofensa ao art. 21, XII, 171, II e 176, par. 1.. da Constituição. 3. Não conhecimento da ação, relativamente aos decretos n.s 427, 473 e 572, todos de 1992, por não serem atos normativos, mas, tão-só,

A regulação estatal da economia é o conjunto de medidas legislativas, administrativas e convencionais, abstratas ou concretas, pelas quais o Estado, de maneira restritiva da liberdade privada ou meramente indutiva, determina, controla, ou influencia o comportamento dos agentes econômicos, evitando que lesem os interesses sociais definidos no marco da Constituição e orientando-os em direções socialmente desejáveis.

É nesta perspectiva que o jurista, as entidades e os órgãos reguladores devem estar atentos para paradigmas regulatórios como a administrativização, fluidez, consensualidade, reflexibilidade, consensualismo, valorização dos resultados em relação aos meios, permeabilidade aos demais subsistemas sociais, etc. A função reguladora da economia pelo Estado possui muitas e complexas faces, donde a importância de a interpretação dos atos estatais nessa seara ser realizada em consonância com os valores mencionados pelo autor.

Qual é o impacto para essa função reguladora para o Direito Administrativo?

A regulação de atividades econômicas pelo Estado desponta como uma “nova” categoria de escolha pela Administração Pública, sendo a estrutura estatal necessária para equilibrar os subsistemas regulados, suprir as falhas do mercado, mediar e ponderar os diversos interesses ambivalentes (sem pender para qualquer um dos lados). A escolha regulatória descentralizada tem mais condições de enfrentar os desafios da reflexividade da vida social, que consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim seu caráter.

A compatibilização desse modelo de atuação estatal com a pós-modernidade está no fato de que o Estado deve, ainda, conter os excessos perpetrados pelos agentes que detêm o poder econômico privado por meio de valores e princípios garantidos pela força normativa da Constituição Federal.

A associação do direito administrativo à fase pós-moderna indica, portanto, sua necessária adaptação às mudanças econômicas e sociais, permitindo seu perfeito acoplamento ao contexto da realidade para ser instrumento de efetividade dos direitos fundamentais. A supremacia do interesse público e, indiretamente, da Administração Pública, nessa fase, deve deixar de ser um atributo permanente e prevalente.

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atos administrativos individuais e con-cretos. 4. Diante da viabilidade de pri-vatização de entidades da administração indireta, no sistema da Constituição, a Lei nº 8.031, de 1990, instituiu o Pro-grama Nacional de Desestatização, cujas modificações poderão ser feitas por lei, de acordo com a política da administra-ção a ser seguida, respeitadas as normas da Constituição. 5. Os fundamentos da inicial não justificam a concessão da cau-telar, não se caracterizando, também, o “periculum in mora”. 6. Se porventura houver processo de privatização de empresa, que se tenha como contrário à lei especial referida ou aos princípios da Constituição, há vias judiciais ade-quadas, para eventualmente atacar o ato administrativo especifico, tal como já sucedeu. 7. Ação conhecida, em parte, e, nessa parte, indeferida a medida cau-telar.

36 SUNDFELD, Carlos Ari. “Introdução às Agências Reguladoras”. In SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 18. Explica ainda o autor: “A regula-ção, enquanto espécie de intervenção estatal, manifesta-se tanto por poderes e ações com objetivos claramente eco-nômicos (o controle de concentrações empresariais, a repressão de infrações à ordem econômica, o controle de preços e tarifas, a admissão de novos agentes no mercado) como por outros de justificati-vas diversas, mas de efeitos econômicos inevitáveis (medidas ambientais, urba-nísticas, de normalização, de disciplina das profissões etc.).” Ob. Cit., loc. cit.

37 MOREIRA, Vital. Auto-regulação pro-fissional e administração pública. Coim-bra: Almedina, 1997, p. 35. Comumente, a doutrina administrativista utiliza a ter-minologia em seu segundo significado.

38 Marcos Juruena Villela Souto define o processo de desestatização nos se-guintes termos: “É a retirada do Estado de atividades reservadas constitucional-mente à iniciativa privada (princípio da livre iniciativa) ou de setores em que ela possa atuar com maior eficiência (prin-cípio da economicidade); é o gênero do qual são espécies a privatização, a con-cessão, a permissão, a terceirização e a gestão associada de funções públicas”. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo da economia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2003, p. 147.

39 Conforme GUERRA, Sérgio. Discricio-nariedade..., op. cit.

40 Exceções a essa regra geral são as atividades de ensino e prestação de serviços de saúde que, embora caracte-rizadas como serviços públicos quando prestadas pelo Estado, encontram-se abertas ao seu exercício pela iniciativa privada.

Com efeito, as políticas nacionais típicas do Estado contemporâneo se põem em prática mediante a edição de muitas regras gerais, em grande parte com indeterminações técnicas, que acabam por exigir mais do que uma simples integração dessas mesmas normas, como ocorre com a escolha determinativa de conceito (conceito jurídico indeterminado) e a escolha discricionária (discricionariedade).

Com as premissas da pós-modernidade e o ingresso do Brasil no modelo regulador, infere-se que novas necessidades devem ser identificadas e expostas, especialmente para que o Estado neutralize os excessos e utilize seu “poder” como instrumento de controle da atuação privada.

A importância da escolha administrativa regulatória é detectada na conformação da garantia de equilíbrio de um subsistema, por meio de mecanismos para sua efetividade com vistas ao ajuste das oscilações econômicas e sociais, ainda que possam parecer surpreendentes por suas características inovadoras em relação ao direito administrativo passado.

Por meio do atual modelo de Estado, propício à escolha regulatória, deve-se buscar um planejamento preventivo, pois não se concebe mais a ideia de que há domínio, pelas casas legislativas, de todas as informações indispensáveis para apontar as variáveis mercadológicas a serem objeto de regras. Deve-se, ainda, perseguir a efetivação do fomento para seu correto desenvolvimento em bases sólidas, firmes; além de estar atento à proteção dos subsistemas, diante das pressões advindas dos interesses antinômicos — inseridos no próprio subsistema — ou do sistema social. Sob esses pilares, pensa-se que a regulação estará em condições próximas de se apresentar como apta a garantir direitos fundamentais, ponderando-os com outros interesses e direitos de idêntica dignidade jurídica e constitucional, observando-se princípios e valores sem uma predeterminada hierarquia entre os mesmos.39

Diferentes espécies de atividades reguladas: serviços públicos, monopólios estatais e atividades privadas regulamentadas.

Ao longo deste curso teremos a oportunidade de observar que as atividades econômicas, em sentido amplo, podem ser classificadas em atividades econômicas propriamente ditas, que são abertas à iniciativa privada; serviços públicos, que geralmente são de titularidade de um dos entes da federação;40 ou, ainda, monopólios públicos, que pertencem à União Federal e estão taxativamente previstos na Constituição Federal.

39 Conforme GUERRA, Sérgio. Discricionariedade..., op. cit. 40 Exceções a essa regra geral são as atividades de ensino e prestação de serviços de saúde que, embora caracterizadas como serviços públicos quando prestadas pelo Estado, encontram-se abertas ao seu exercício pela iniciativa privada.

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Todas essas espécies de atividades podem ser reguladas pelo Estado, variando, no entanto, a intensidade da regulação a depender da espécie em questão. As próximas aulas serão dedicadas à disciplina jurídica dos serviços públicos.

Fomento estatal

É concebido ao Estado democrático de direito, como dever precípuo, a garantia e realização dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição de 1988. Para que estes objetivos sejam plenamente alcançados, o desempenho estatal não se limita apenas às quatro funções tradicionais já estudadas - o poder de polícia, a prestação de serviços públicos, a intervenção do domínio econômico e a regulação. É incumbida ao Estado também a função de estímulo ao desenvolvimento integrado da sociedade, sendo este estímulo o fundamento básico constitutivo da 5ª função administrativa: o fomento público.

Uma compreensão adequada desta função estatal se torna fundamental na medida em que pode ocorrer o que a doutrina chama de sub-teorização do instituto, ou seja, a ação administrativa de fomento é sempre examinada de passagem pelos doutrinadores, “sem reparar em sua singularidade nem deter-se na caracterização e no estudo dos atos em que se concretiza”.41

O verbo “fomentar” está diretamente relacionado aos atos de estimular; incitar; favorecer; “proporcionar meios para o desenvolvimento de algo”.42 Neste sentido, aplicando-se esta definição à função administrativa de fomento, este poderia ser conceituado como um auxílio, concedido através de meios públicos, ao desenvolvimento e ao exercício de uma atividade privada que se supõe de interesse social. Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o fomento estatal consiste na “função administrativa através da qual o Estado ou seus delegados incentivam, direta, imediata e concretamente, a iniciativa dos administrados ou de entidades públicas e privadas, para desempenharem atividades que a lei haja destacado com especial interesse público para o desenvolvimento integral e harmonioso da sociedade”.43

Distinções e Características Específicas do Fomento Público

Para se compreender o instituto do fomento público, incluindo suas características peculiares, torna-se fundamental a sua diferenciação das outras funções estatais.

41 POZAS, Juiz Jordana de. “Ensayo de una teoria general del fomento em el derecho administrativo”. Madri - Instituto de Estudios de Administra-cion local, 1961, p. 41-54. 42 HOUAISS, Antonio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro. Objetiva, 2001, p. 1367.43 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial” – Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009. p. 585.

41 POZAS, Juiz Jordana de. “Ensayo de una teoria general del fomento em el derecho administrativo”. Madri - Instituto de Estudios de Administracion local, 1961, p. 41-54.

42 HOUAISS, Antonio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro. Objetiva, 2001, p. 1367.

43 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial” – Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009. p. 585.

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Em relação ao poder de polícia, o caráter voluntário e não coercitivo do fomento público constitui o principal elemento diferenciador entre essas duas faculdades. De acordo com Célia Cunha de Mello: “se o poder de polícia caracteriza-se pela restrição coercitiva da liberdade e da propriedade individuais, o fomento público, ao contrário, deixa os indivíduos livres para aderir ou não aos propósitos do Estado, independente de qualquer ação coercitiva”.44

Dessa forma, uma das principais características do fomento público consiste no seu caráter voluntário para a iniciativa privada, ou seja, na inexistência de qualquer obrigação dos administrados em aderir aos instrumentos de fomento disponibilizados pelo Estado.

Desta forma, enquanto o particular não aderir consensualmente a esses instrumentos, o Estado não possui legitimidade para obrigá-lo à consecução de determinadas atividades relacionadas ao fomento - o caráter não-coercitivo se perpetua enquanto não há adesão do particular ao “convite” formulado pela política pública. Porém, a partir do momento em que o particular aceita exercer uma atividade fomentada pelo Estado, o poder público passa a ter a obrigação de fiscalizar o desempenho do fomentado no cumprimento das condições que lhe foram fixadas, tendo permissão para a imposição de multas e até mesmo para o requerimento da devolução de valores investidos. 45

Já a diferenciação entre esta atividade e a prestação de serviço público pode ser resumida da seguinte forma: no fomento público a Administração Pública não possui uma obrigação de fazer, limitando-se apenas a incentivar/estimular o particular na consecução de determinada atividade, agindo, assim, de modo indireto. Exatamente o oposto ocorre na prestação de serviços públicos. O Estado, quando envolve serviços de interesse social, tem o dever de prestá-los diretamente - pois a titularidade dos mesmos é de exclusividade estatal (art. 175, CF/88). Deve ser ressaltado que esta dicotomia entre realização indireta e direta da função pública constitui também a principal diferença entre o fomento e a intervenção direta do Estado no domínio econômico.

Por fim, vale mencionar que, caso se utilize uma conceituação ampla de regulação, essa pode abranger, além da edição de normas, atos fiscalizatórios e composição de controvérsias, também a indução de comportamentos por intermédio do fomento.

44 MELLO, Célia Cunha. “O fomento da administração pública”. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.42 e 43.45 SANTOS DE MENDONÇA, José Vicente. “Uma teoria do fomento público: Critérios em prol de um fomento público democrático, eficiente e não paternalista” – Revista de direito Processual Geral, Rio de Janeiro, (65), 2010. p.123

44 MELLO, Célia Cunha. “O fomento da administração pública”. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.42 e 43.

45 SANTOS DE MENDONÇA, José Vicente. “Uma teoria do fomento público: Critérios em prol de um fomento público democrático, eficiente e não paternalista” – Revista de direito Processual Geral, Rio de Janeiro, (65), 2010. p.123

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Após o exposto acima, podemos enumerar as características definidoras do fomento público de acordo com José Vicente Santos de Mendonça, sendo elas: (i) seu exercício se dá, em um primeiro momento, sem coerção do Estado; (ii) não há obrigação do particular em aderir a ele; (iii) não se trata de mera liberalidade do poder público, ou seja, não é uma doação; (iv) é seletivo – a Administração Pública tem a faculdade de selecionar quais atividades e/ou regiões serão fomentadas;46 (v) é unilateral – a execução específica de determinada atividade fomentada não pode ser exigida, além do fato de que o fomento poder ser revogado pelo Estado – protegidos sempre a boa-fé e o direito de indenização ao particular, se for o caso;47 e (vi) é transitório – elemento essencial à sua configuração. 48

Requisitos e exemplos de fomento público

Em relação aos requisitos para a concessão de incentivo público, o requisito fundamental é a exigência de que o fomento se faça com base no princípio da legalidade. Exige-se uma autorização legal genérica para a atuação do fomento público, em que, de um lado, seus termos não sejam tão gerais que impossibilitem o estabelecimento de critérios objetivos; e, de outro, nem tão específicos que impossibilitem a atuação administrativa – pois tudo poderia ser considerado “ilegal”.

Além da legalidade, dentre outros requisitos podemos citar: (i) necessidade de transparência e procedimentalização; (ii) não-lucratividade – o aporte dos investimentos para o fomento não pode ser superior ao valor da atividade fomentada; e (iii) eficiência do gasto público.49 Nas palavras de José Vicente Santos de Mendonça, “não se pode gastar dinheiro com quem não possui a menor condição de dar algum retorno, social ou econômico, ao Estado e a sociedade”.

Já em relação às formas existentes de fomento e a sua aplicação, Diogo de Figueiredo Moreira Neto divide essa função estatal em: planejamento estatal, fomento social, fomento econômico e fomento institucional.50 Em relação ao planejamento estatal, compreende-se, por exemplo, as atividades de desenvolvimento regional, realizadas através de organismos regionais como a SUDENE (Superintendência de desenvolvimento do Nordeste) e a SUDAM (Superintendência de desenvolvimento da Amazônia). Ambas as superintendências são definidas por lei como autarquias e possuem como função precípua proporcionar fomento econômico para suas respectivas regiões, através da criação de programas especiais e do desenvolvimento de polos econômicos, como a Zona Franca de Manaus.

46 Como exemplo de sua seletividade, o poder público pode conceder isenções fiscais ao Norte e Nordeste, para estimular o desenvolvimento da atividade industrial, não sendo obrigado a conceder as mesmas isenções às outras regiões, que já possuem um pólo industrial estabelecido. 47 Caso o particular fomentado, agindo dentro da lei, assume compromissos financeiros baseado no entendimento de que a ação fomentadora continuaria, e logo depois a administração revoga tal incentivo, caberá indenização justificada pela proteção da confiança legítima do administrado, em relação à administração.48 “Se a ideia é auxiliar o desempenho de uma atividade privada, mas sem que essa mesma atividade se confunda com aquelas que são exercidas pelo Estado, então não se pode admitir, nem lógica nem conceitualmente, um fomento público que se eternize”. SANTOS DE MENDONÇA, José Vicente. Uma teoria do fomento público: critérios em prol de um fomento público democrático, eficiente e não paternalista. Revista de Direito Processual Geral. Rio de Janeiro, (65), 2010. p. 140.49 Exemplos de formas de se fazer valer esse critério: análise objetiva da situação econômica da empresa fomentada e indicação mínima de exper-tise. 50 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial” – Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009. p 585.

46 Como exemplo de sua seletividade, o poder público pode conceder isenções fiscais ao Norte e Nordeste, para estimular o desenvolvimento da atividade industrial, não sendo obrigado a conceder as mesmas isenções às outras regiões, que já possuem um pólo industrial estabelecido.

47 Caso o particular fomentado, agindo dentro da lei, assume compromissos financeiros baseado no entendimento de que a ação fomentadora continuaria, e logo depois a administração revoga tal incentivo, caberá indenização justificada pela proteção da confiança legítima do administrado, em relação à administração.

48 “Se a ideia é auxiliar o desempenho de uma atividade privada, mas sem que essa mesma atividade se confunda com aquelas que são exercidas pelo Estado, então não se pode admitir, nem lógica nem conceitualmente, um fomento público que se eternize”. SANTOS DE MENDONÇA, José Vicente. Uma teoria do fomento público: critérios em prol de um fomento público democrático, eficiente e não paternalista. Revista de Direito Processual Geral. Rio de Janeiro, (65), 2010. p. 140.

49 Exemplos de formas de se fazer valer esse critério: análise objetiva da situação econômica da empresa fomentada e indicação mínima de expertise.

50 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial” – Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009. p 585.

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Por sua vez, o fomento social tem como seu destinatário o homem em si. Guiado por vários preceitos constitucionais, como a dignidade da pessoa humana – art. 1º, III - e seus direitos imanentes, como educação (ex: Art. 5º, 150, VI; Art. 208, VII; Art. 211, 1º, art. 213) e cultura – (ex: art. 5º, art. 215 e art. 216), o fomento social busca auxiliar o homem em busca de uma vida condigna e produtiva. Como exemplo de órgãos da União Federal que buscam o fomento social à educação podemos citar a Comissão de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior – CAPES e o Conselho Nacional de Pesquisas – CNPq. Já em relação ao fomento público social à cultura, tal competência é prevista constitucionalmente – art. 23, III, IV e V- sendo comum a todos os entes políticos.

Em terceiro lugar, como exemplo de fomento público econômico podemos citar o fomento às empresas de pequeno porte. Como disposto na Constituição Federal em seu art. 170, IX, deve-se fornecer “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país”. Como difusor deste princípio está o SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, cujas atividades são custeadas por contribuições próprias e instituídas pelo decreto-lei nº 2.318/86.51

Por fim, em relação ao fomento institucional, de acordo com Diogo de Figueiredo Moreira Neto, este é pautado pela: (i) despolitização de interesses públicos – que possui como consequência a delegação a instituições que poderão tomar decisões de caráter exclusivamente técnico; (ii) por uma pluralização de interesses – decorrentes da emergência de interesses difusos e coletivos; e (iii) por entes intermédios – conceito que abrange “tanto entes intermediários que são criados pela sociedade para cuidar de problemas derivados da existência dos novos interesses coletivos e difusos, quanto aqueles que possam ser criados pelo próprio Estado, para atuar por delegação, de modo mais próximo das comunidades diretamente interessadas”.52

Como exemplo deste fomento institucional, podemos citar as “organizações sociais” – instituídas pela lei nº 9637/98 – que atuam em setores de interesse público, como ensino, pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico; e as “organizações da sociedade civil de interesse público” – instituídas pela lei nº 9790/99 – que promovem, dentre outras atividades, a assistência social e a promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico. Ambas podem firmar acordos com objetivo de receber recursos públicos.

51 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial” – Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009. p. 603.52 Idem. p. 614.

51 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial” – Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009. p. 603.

52 Idem. p. 614.

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Considerações adicionais

Por último, é válido ressaltar que, de acordo com José Vicente Santos de Mendonça, existiriam dois grandes problemas que circundam o fomento público: o primeiro está relacionado à forma como ocorre sua concessão; e o segundo à sua intensidade e duração. O fomento pode ser instrumento adequado e necessário para a consecução de apoio ao desenvolvimento de atividades particulares que tenham como objetivo precípuo o atendimento a um interesse público, ou podem simplesmente ser objeto de corrupção, constituindo uma ajuda “do rei aos seus amigos”, devido à forma como são concedidos e à sua duração. 53

Assim, é de comum entendimento que as atividades beneficiadas pelo instrumento de fomento estatal devam receber benefícios na exata medida em que precisem desse aporte público e apenas durante o período em que este seja necessário a sua viabilidade econômica. 54 Assim, “o bom fomento é aquele calculado, que não falte nem exceda, e que dure o tempo suficiente para atingir seus objetivos.” 55

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

ROBERTO, Barroso Luís. Estado e livre-iniciativa na experiência constitucional brasileira. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 12, n. 45, p. 9-19, abr./jun. 2014.

Leitura complementar

MELLO, Célia Cunha. O fomento da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

MENDONÇA, José Vicente Santos de. Uma teoria do fomento público: critérios em prol  de um fomento público, democrático, eficiente e não-paternalista. Revista da Procuradoria-Geral do Estado 65, pp. 115-176, 2010.

POZAS, Juiz Jordana de. “Ensayo de una teoria general del fomento em el derecho administrativo”. Madri - Instituto de Estudios de Administracion local, 1961, p. 41-54.

53 SANTOS DE MENDONÇA, José Vicente. “Uma teoria do fomento público: Critérios em prol de um fomento público democrático, eficiente e não paternalista” – Revista de direito Processual Geral, Rio de Janeiro, (65), 2010. p.116.54 Idem. “É possível que certas atividades nunca venham a ser viáveis, se desempenhadas de modo não fomentado, mas o objetivo da auto-susten-tabilidade deve estar sempre presente e ser, de tempos em tempos averiguados”... “Por outro lado, se a atividade é ontologicamente deficitária, mas existem razões de interesse público para que subsista, melhor seria transformá-la, desde logo, em serviço público.”(p. 117. )55 SANTOS DE MENDONÇA, José Vicente. “Uma teoria do fomento público: Critérios em prol de um fomento público democrático, eficiente e não paternalista” – Revista de direito Processual Geral, Rio de Janeiro, (65), 2010. p. 175

53 SANTOS DE MENDONÇA, José Vicente. “Uma teoria do fomento público: Critérios em prol de um fomento público democrático, eficiente e não paternalista” – Revista de direito Processual Geral, Rio de Janeiro, (65), 2010. p.116.

54 Idem. “É possível que certas atividades nunca venham a ser viáveis, se desempenhadas de modo não fomentado, mas o objetivo da auto-sustentabilidade deve estar sempre presente e ser, de tempos em tempos averiguados”... “Por outro lado, se a atividade é ontologicamente deficitária, mas existem razões de interesse público para que subsista, melhor seria transformá-la, desde logo, em serviço público.”(p. 117. )

55 SANTOS DE MENDONÇA, José Vicente. “Uma teoria do fomento público: Critérios em prol de um fomento público democrático, eficiente e não paternalista” – Revista de direito Processual Geral, Rio de Janeiro, (65), 2010. p. 175

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VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador

Tendo em vista seus conhecimentos acerca dos papéis desempenhados pelo Estado na Ordem Econômica, quais são as principais diferenças entre as funções desempenhadas pelo Banco Central do Brasil, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES e pelo Banco do Brasil?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Com a Constituição da República Federativa de 1988, a intervenção estatal na economia passou por uma significativa transformação: de uma proeminente participação direta nos setores da economia passou a se dar ênfase a um papel principal de agente regulador e fomentador das atividades econômicas.

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AULAS 5 E 6:

I. TEMA

Regime jurídico dos serviços públicos

II. ASSUNTO

Princípios, características e divisão constitucional de competências em matéria de serviços públicos.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir o regime jurídico aplicável aos serviços públicos.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Conceito de Serviço Público no Direito Brasileiro

A prestação de serviços públicos à população constitui uma das principais finalidades da Administração Pública.

Conforme relata Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a expressão “serviços públicos” pode ser tomada tanto em concepção ampla como estrita; na primeira, insere-se toda atividade que o Estado exerce para cumprir suas finalidades, abrangendo, assim, não apenas a atividade administrativa, mas também a legislativa e a judiciária. Já a disciplina jurídica dos serviços públicos administrativos, em sentido estrito, requer que se os diferencie não apenas das atividades legislativa e jurisdicional, mas também da própria atividade de polícia da Administração Pública. Nosso objeto de análise nas aulas que se seguem se restringirá à concepção de serviço público em sentido estrito.56

De acordo com Renato Alessi, os serviços públicos, em sentido estrito, compreendem as atividades da Administração voltadas a buscar uma utilidade para os particulares, tanto de natureza jurídica, como de ordem econômico-social.

56 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2000, p. 95.

56 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2000, p. 95.

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Dividem-se em serviços prestados uti universi, como o caso da iluminação pública, e uti singuli, como no caso dos transportes públicos.57 Os serviços públicos caracterizam-se por serem estatais e indelegáveis, ou seja, a sua titularidade não pode ser transferida à iniciativa privada, embora a sua execução, em determinadas hipóteses, possa sê-lo.

O conceito de serviços públicos se apresenta um dos temas mais controvertidos em direito administrativo. De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, existem três correntes distintas para a conceituação dos serviços públicos, que privilegiam três critérios distintos de análise:58 critério orgânico (ou subjetivo): serviço público é aquele prestado por órgãos públicos; critério formal: serviço público é aquele disciplinado por regime de direito público, por disposição legal; e critério material: serviço público é aquele que atende direta e essencialmente a interesses da coletividade.

Para grande parte da doutrina, qualquer desses critérios, se considerado isoladamente, será insuficiente para abranger todas as características dos serviços públicos, de modo que o seu conceito emerge, o mais das vezes, da conjugação dos três. Nesse sentido, Alexandre Aragão leciona que “Serviços públicos são as atividades de prestação de utilidades econômicas a indivíduos determinados, colocadas pela Constituição ou pela Lei a cargo do Estado, com ou sem reserva de titularidade, e por ele desempenhadas diretamente ou por seus delegatários, gratuita ou remuneradamente, com vistas ao bem-estar da coletividade.59

A dificuldade na definição exata das características essenciais à classificação de uma determinada atividade estatal como serviço público teve por consequência a chamada “crise do serviço público”, quando se percebeu que pelo menos dois elementos que durante longo tempo fizeram parte essencial do núcleo desse conceito, esvaíram-se com o passar dos anos. Conforme ressalta Agustín Gordillo, “dois elementos desta noção – a da pessoa que presta o serviço e o regime que o regula – entraram em crise há muito tempo”.60 Questionando a necessidade de uma conceituação doutrinária de serviço público, o autor observa “Se o jurista encontra determinada atividade regida pelo direito privado, não pode chamá-la de serviço público sem induzir a equívocos. Tampouco efetua com isso alguma classificação juridicamente relevante ou útil. (...) Somente o regime jurídico positivo pode justificar a denominação (...).61

Em que pese uma tendência hoje observada de se privilegiar a dimensão formal da definição de serviços públicos, o regime de direito público que informa a prestação dos serviços públicos apresenta um conjunto de princípios que, quando presentes, permitem ao intérprete caracterizar a atividade estatal como serviço público.

57 Instituciones de derecho administrativo, tomo II, p. 364. Como utilidade de natureza jurídica, o autor exemplifica a inscrição de uma hipoteca sobre um imóvel pela autoridade competente; dentre os serviços de natureza econômico-social, incluem-se os transportes públicos e a iluminação pública. 58 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 265 e 266.59 Direito dos serviços públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 157. 60 GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 5ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, tomo 2, cap. VI, p. 37.61 GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 5ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, tomo 2, cap. VI, pp. 40-41.

57 Instituciones de derecho administrativo, tomo II, p. 364. Como utilidade de natureza jurídica, o autor exemplifica a inscrição de uma hipoteca sobre um imóvel pela autoridade competente; dentre os serviços de natureza econômico-social, incluem-se os transportes públicos e a iluminação pública.

58 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 265 e 266.

59 Direito dos serviços públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 157.

60 GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 5ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, tomo 2, cap. VI, p. 37.

61 GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 5ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, tomo 2, cap. VI, pp. 40-41.

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Nesse sentido, ainda que a lei não o defina expressamente como “serviço público”, caso exija que o mesmo seja prestado à generalidade da população, de forma contínua, regularmente, eficiente e atual, com segurança, cortesia e preocupação com universalização e modicidade da tarifa cobrada como contraprestação, estar-se-á diante de um serviço público. Esses princípios encontram fundamento no art. 175, IV, da Constituição Federal, que exige que os serviços públicos sejam prestados de forma “adequada”, a qual é então detalhada na Lei nº 8.987, de 13.02.1995, a Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos, cujo art. 6º, §1º, dispõe “Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”. O requisito de atualidade é detalhado no §2º desse mesmo artigo, de acordo com o qual “A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e a expansão do serviço”.

Atenta à realidade das atividades, a lei preocupou-se também em determinar hipóteses nas quais, embora seja interrompido o serviço, não resta caracterizada ofensa ao princípio da continuidade:

§3º. Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando: I – motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; eII – por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade.

O serviço público divisível pode ser remunerado por taxa ou tarifa. Nos termos do art. 145, II, da Constituição Federal, a taxa remunera serviços públicos obrigatórios, impostos ao administrado, específicos e divisíveis, sendo um exemplo clássico a taxa de prevenção de incêndio. Os serviços públicos facultativos são remunerados por tarifa, que constitui um preço público, podendo o usuário optar por usufruir ou não do serviço que a Administração, de forma direta ou indireta, põe à sua disposição.

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A partilha de competências constitucionais entre os entes federados para prestar ou conceder o serviço público

A estrutura que define a repartição de competências constitucionais entre os entes federativos opera-se com fundamento no princípio da predominância do interesse. Nesse sentido, a Constituição federal enumera os serviços públicos a serem prestados pelo ente federado, por si ou por terceiros, nos termos do art. 175 da Constituição Federal.

Os Estados-membros constituem instituições típicas do federalismo clássico, pois são os mesmos que dão a estrutura conceitual dessa forma de Estado. Nos termos do art. 21, §1o da Constituição Federal, aos Estados são reservadas todas as competências remanescentes, ou seja, aquelas que a Constituição não tenha vedado expressamente.

Marcos Juruena Vilella Souto destaca, acerca da competência estadual, com arrimo em Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que “a doutrina, muitas vezes, tem demonstrado certa vacilação em precisar quais seriam os limites rigorosos desta competência remanescente dos Estados-membros, reconhecendo mesmo que, em termos reais, seria das mais reduzidas, seja em extensão, seja em importância. Dessa maneira, numa primeira aproximação do preceito constitucional em comento, passou-se a considerar que estariam excluídas do âmbito da competência dos Estados todas aquelas matérias atribuídas de modo restritivo à competência da União e dos Municípios”.62

Porém, é extensa a lista de serviços públicos que os Estados podem, e devem, prestar diretamente ou transferir para terceiros, mediante concessão ou permissão. Com efeito, as competências da União estão elencadas no art. 21, enquanto que aos Municípios competem as concessões e permissões dos serviços públicos de interesse local.

Assim, compete à União explorar, ou conceder, os serviços de telecomunicações, serviço postal e aéreo; radiodifusão sonora e de sons e imagens; energia elétrica; aproveitamento energético dos cursos d´água; navegação aérea e infraestrutura aeroportuária; transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros, fronteiras nacionais e os que transponham limites de Estados e Territórios; transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros; serviços portuários. Além disso, é de competência da União instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso; instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos; e estabelecer princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação.

62 Desestatização, Privatizações, Concessões e Terceirizações.4a. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2.001.p. 144.

62 Desestatização, Privatizações, Concessões e Terceirizações.4a. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2.001.p. 144.

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Aos Estados, cabe, expressamente, a prestação dos serviços públicos de distribuição de gás canalizado, e toda e qualquer competência que não tenha sido atribuída à União, nem seja estritamente de interesse local (poderes remanescentes). São eles: transporte ferroviário, exceto quando competente a União, transporte metroviário; Transporte rodoviário intermunicipal; Transporte aquaviário, exceto quando for de competência da União, nos termos do art. 21, XII, d, da CF.

Cumpre destacar que aos Estados-membros compete, ainda, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.

Aos Municípios compete a prestação dos serviços de interesse local (art. 30, V, CF), que “deve ser entendido como predominante e não exclusivo, para efeito da caracterização da competência em cada caso, máxime se considerarmos as alterações tecnológicas, sempre incidentes na evolução dos serviços públicos que são capazes de transformar, em pouco tempo, um serviço tipicamente local num serviço que poderá vir a ser prestado eficientemente em escala regional ou, mesmo, nacional.”63 Sob a competência municipal, tem-se, ainda, como inovação na Constituição de 1988, as atividades administrativas de interesse comum (art. 23), a exemplo do saneamento básico.

As formas de execução dos serviços públicos

Os serviços públicos podem ser prestados tanto diretamente pelo próprio ente titular da competência, como ter sua execução delegada a terceiros. O Estado, quando decide prestá-los diretamente, pode instituir empresas públicas e sociedades de economia mista, como forma de gerir de forma mais eficiente a execução desses serviços.

Conforme se detalhará nas próximas aulas, caso decida delegar a prestação do serviço à iniciativa privada, aplicar-se-ão os institutos da concessão e da permissão de serviços públicos (por força da previsão do art. 175, CF), havendo ainda discussão doutrinária quanto à possibilidade de delegação de serviços públicos por meio do instituto da autorização, tendo em vista o disposto no art. 21, XI e XII, da Constituição.64

63 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, p. 328.64 Existem, ainda, regimes de parceria entre o poder público e pessoas de direito privado sem finalidades lucrativas (o chamado “terceiro setor”), dentre as quais se incluem as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público. Ver, a respeito, CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 287 a 295.

63 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, p. 328.

64 Existem, ainda, regimes de parceria entre o poder público e pessoas de direito privado sem finalidades lucrativas (o chamado “terceiro setor”), dentre as quais se incluem as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público. Ver, a respeito, CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 287 a 295.

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V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

GUERRA, Sérgio; MARTINS, Fernanda. A influência do sistema norte-americano das public utilities nas concessões do serviço público brasileiro. Interesse Público [Recurso Eletrônico]. Belo Horizonte, v.21, n.113, jan./fev. 2019.

Leitura complementar:

DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, capítulo 4 (“serviços públicos”).

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador 1:

Em agosto de 2009 o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 46, em que se discutia se o “monopólio” do serviço postal pela União, previsto em lei federal da década de 70, havia sido recepcionado pela Constituição de 1988. Tal questão possuía alta relevância prática, pois da decisão do STF dependia a conclusão sobre se empresas privadas poderiam atuar livremente no mercado de serviço de entrega de correspondências.

A controvérsia tem origem no fato de que a Constituição Federal determina, em seu art. 21, X, ser dever da União a prestação do serviço postal.

Art. 21. Compete à União:(...)X – manter o serviço postal e o correio aéreo nacional

Além disso, a lei nº 6.538/78, que dispõe sobre os serviços postais, conferiu-lhe monopólio para o desempenho dos serviços postais, nos seguintes termos:

Art. 9º - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais:

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I - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada:III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal.§1º - Dependem de prévia e expressa autorização da empresa exploradora do serviço postal;a) venda de selos e outras fórmulas de franqueamento postal;b) fabricação, importação e utilização de máquinas de franquear correspondência, bem como de matrizes para estampagem de selo ou carimbo postal.§ 2º - Não se incluem no regime de monopólio: a) transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa jurídica, em negócios de sua economia, por meios próprios, sem intermediação comercial;b) transporte e entrega de carta e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins lucrativos, na forma definida em regulamento.

Para Floriano de Azevedo Marques Neto, “não se nega que a atividade postal seja de enorme relevância para a integração do país e para a preservação da identidade nacional. Mas isto remete muito mais à necessidade de existir um serviço postal universal (dever de manutenção do mesmo) do que à contingência de ser ele monopolizado pelo Estado”.65 Adiante, o autor complementa:

Igualmente no que toca ao ‘monopólio’ público – que, como vimos, exclui a possibilidade do exercício de uma atividade por outrem que não o Poder Público – no próprio art. 21 vamos encontrar competências determinadas pelo verbo ‘manter’ e que nem de longe podem ser tidas como excludentes do exercício do exercício da atividade por entidades privadas. É o caso da obrigação de manter serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia no âmbito nacional (inciso XV).

65 MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. “Reestruturação do setor postal brasileiro”. Revista Trimestral de DireitoPpúblico, nº 19, p. 149.

65 MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. “Reestruturação do setor postal brasileiro”. Revista Trimestral de DireitoPpúblico, nº 19, p. 149.

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Ora, é irrefutável que à União corresponde o encargo de sustentar e prover a coletividade nacional de tais serviços. Porém, a ninguém socorreria defender que tal atividade seria ‘monopólio’ da União, vedando às universidades, às organizações não-governamentais ou mesmo às entidades o exercício das atividades de levantamento estatístico, geográfico ou, o que é mais comum, a realização de serviços de pesquisa geológica ou cartográfica de âmbito nacional.66

Nesse sentido, pergunta-se:

1) A atividade de entrega de correspondências constitui serviço público? Em sua análise, comente o dispositivo constitucional acima transcrito bem como a lei nº 6.538/78.

2) Caso seja serviço público, deve necessariamente ser prestado através de “monopólio”? Por quê?

3) A Lei nº 6.538/78 foi recepcionada pela Constituição Federal?

Caso gerador 2:

O Ministério Público de Minas Gerais ajuizou ação civil pública exigindo que a Administração Pública de determinado município passasse a efetuar coleta de lixo domiciliar diária. Como se sabe, é dever das autoridades públicas, em suas três esferas (federal, estadual e municipal), promover a saúde pública da população e prestar os serviços públicos de forma contínua. Em primeira instância, o juiz monocrático julgou procedente o pleito do Ministério Público. Inconformado, o Município interpôs recurso de apelação.

O Tribunal deu provimento ao recurso, o que ensejou a interposição de recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, que interpôs recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça.

Analisando o caso acima, analisar as características da atividade de coleta de lixo domiciliar. Ela constitui um serviço público?

Na qualidade de promotor de justiça, quais seriam os argumentos para embasar a petição inicial?

66 MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Reestruturação do setor postal brasileiro. Revista Trimestral de Direito Público, nº 19, p. 161.

66 MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Reestruturação do setor postal brasileiro. Revista Trimestral de Direito Público, nº 19, p. 161.

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Como procurador do município, quais seriam os argumentos para embasar a sua contestação?

Na qualidade de magistrado, a seu ver, como deveria ser resolvida a controvérsia?

Caso gerador 3:

Lei aprovada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul isentou os trabalhadores desempregados domiciliados no Estado do pagamento das tarifas de energia elétrica fornecida pela Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). Esta lei é constitucional?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Serviço público é uma expressão polissêmica que, todavia, tem inegável efeito prático sobre o regime jurídico aplicável às atividades econômicas. O regime jurídico de cada serviço público deve ser buscado no ordenamento jurídico do ente estatal que, por definição constitucional, tenha competência para sua disciplina.

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UNIDADE II: CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS E PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPPS). CONSÓRCIOS PÚBLICOS.

AULAS 7 E 8.

I. TEMA

Delegação dos serviços públicos: concessão e permissão de serviços públicos. Licitação e contrato de concessão

II. ASSUNTO

Formas de delegação dos serviços públicos.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar os institutos da concessão e da permissão de serviços públicos, expondo suas principais características.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

A concessão de serviços públicos na Constituição de 1988

Os serviços públicos não se confundem com as atividades econômicas privadas. Como visto, em termos de atividades econômicas, a Constituição dispõe sobre a ideia de subsidiariedade. A Constituição também indica que alguns serviços públicos podem ser considerados não privativos; isto é, alguns serviços públicos podem, ao mesmo tempo, ser considerados atividades econômicas livres à iniciativa privada. É, por exemplo, o caso da saúde e da educação, previstos nos art.s 196 e 199 da CRFB.

Os serviços públicos propriamente ditos são de exclusiva titularidade estatal. É impreciso, portanto, dizer que a delegação de serviço público constitui uma privatização. Para que os serviços públicos sejam exercidos pelo setor privado, só por meio de delegação do Estado. Como visto, as atividades econômicas são regidas pelo art. 170 da Constituição Federal ao passo que a concessão de serviços públicos tem a base de seu regime jurídico estatuída no art. 175 da Constituição Federal, o qual dispõe:

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Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I  - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II -  os direitos dos usuários; III -  política tarifária; IV -  a obrigação de manter serviço adequado.

A norma acima determina que as concessões devem ser precedidas de licitação, bem como exige a promulgação de lei que viesse a dispor sobre o regime jurídico das concessionárias, o contrato de concessão, direitos dos usuários dos serviços públicos, política tarifária e adequação do serviço.

Conforme se pode observar, o dispositivo constitucional deixa assente, já no caput, que toda concessão ou permissão de serviço público pressupõe a realização de processo licitatório, exceto nos casos de dispensa e inexigibilidade, os quais deverão, em todo caso, observar as formalidades e requisitos previstos na lei, especialmente na Lei nº 8.666/1993.

Em obediência ao supracitado mandamento constitucional, no sentido de que lei viria a dispor sobre o regime jurídico das concessionárias e permissionárias de serviços públicos, foi promulgada a Lei nº 8.987, de 13.02.1995.

A Lei nº 8.987/95 apresenta um conjunto de normas relativas à licitação para concessão de serviços públicos, cujo art. 2º traz as seguintes definições:

Art. 2o Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se:I - poder concedente: a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município, em cuja competência se encontre o serviço público, precedido ou não da execução de obra pública, objeto de concessão ou permissão;

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II - concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado;III - concessão de serviço público precedida da execução de obra pública: a construção, total ou parcial, conservação, reforma, ampliação ou melhoramento de quaisquer obras de interesse público, delegada pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para a sua realização, por sua conta e risco, de forma que o investimento da concessionária seja remunerado e amortizado mediante a exploração do serviço ou da obra por prazo determinado;(...)

A Lei disciplina também as licitações para concessão de serviços públicos, as quais devem observância aos princípios estatuídos no art. 14 da Lei nº 8.987/1995:

Art. 14. Toda concessão de serviço público, precedida ou não da execução de obra pública, será objeto de prévia licitação, nos termos da legislação própria e com observância dos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório.

O conjunto de normas gerais relativas à licitação para concessão de serviços públicos encontra-se nos artigos 15 a 22 da Lei nº 8.987/1995, cuja leitura faz-se necessária à completa compreensão do tema.

Interessante observar que, tendo em vista o intuito de introdução da concorrência nos setores que foram objeto do processo de desestatização, o art. 16 da Lei nº 8.987/1995 determina que, sempre quando possível, as concessões devem ser concedidas sem caráter de exclusividade:

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Art. 16. A outorga de concessão ou permissão não terá caráter de exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou econômica justificada no ato a que se refere o art. 5o desta Lei.

Contrato de concessão de serviços públicos

As cláusulas essenciais a todo e qualquer contrato de concessão encontram-se previstas no art. 23 da Lei nº 8.987/1995, o qual dispõe:

Art. 23. São cláusulas essenciais do contrato de concessão as relativas:I - ao objeto, à área e ao prazo da concessão;II - ao modo, forma e condições de prestação do serviço;III - aos critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros definidores da qualidade do serviço;IV - ao preço do serviço e aos critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas;V - aos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária, inclusive os relacionados às previsíveis necessidades de futura alteração e expansão do serviço e conseqüente modernização, aperfeiçoamento e ampliação dos equipamentos e das instalações;VI - aos direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização do serviço;VII - à forma de fiscalização das instalações, dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem como a indicação dos órgãos competentes para exercê-la;VIII - às penalidades contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária e sua forma de aplicação;IX - aos casos de extinção da concessão;X - aos bens reversíveis;XI - aos critérios para o cálculo e a forma de pagamento das indenizações devidas à concessionária, quando for o caso;XII - às condições para prorrogação do contrato;

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XIII - à obrigatoriedade, forma e periodicidade da prestação de contas da concessionária ao poder concedente;XIV - à exigência da publicação de demonstrações financeiras periódicas da concessionária; eXV - ao foro e ao modo amigável de solução das divergências contratuais.Parágrafo único. Os contratos relativos à concessão de serviço público precedido da execução de obra pública deverão, adicionalmente:I - estipular os cronogramas físico-financeiros de execução das obras vinculadas à concessão; eII - exigir garantia do fiel cumprimento, pela concessionária, das obrigações relativas às obras vinculadas à concessão.

Faz-se interessante constatar que, apesar de a lei, desde a sua promulgação, ter previsto no inciso XV que deveria constar dos contratos de concessão normas relacionadas a formas amigáveis de solução de controvérsias, a fim de se evitarem dúvidas sobre se referida redação constituía autorização legal para a introdução da arbitragem nesses contratos, a Lei nº 11.196/2005 introduziu o art. 23-A à Lei nº 8.987/1995, cuja redação deixa extreme de dúvidas que:

Art. 23-A. O contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996.

Encargos do Concessionário e do Poder Concedente

O concessionário de serviços públicos submete-se a uma série de encargos que decorrem diretamente da lei. Nesse sentido, veja-se o quanto dispõe o art. 31da Lei nº 8.987/95:

Art. 31. Incumbe à concessionária:I - prestar serviço adequado, na forma prevista nesta Lei, nas normas técnicas aplicáveis e no contrato;

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II - manter em dia o inventário e o registro dos bens vinculados à concessão;III - prestar contas da gestão do serviço ao poder concedente e aos usuários, nos termos definidos no contrato;IV - cumprir e fazer cumprir as normas do serviço e as cláusulas contratuais da concessão;V - permitir aos encarregados da fiscalização livre acesso, em qualquer época, às obras, aos equipamentos e às instalações integrantes do serviço, bem como a seus registros contábeis;VI - promover as desapropriações e constituir servidões autorizadas pelo poder concedente, conforme previsto no edital e no contrato;VII - zelar pela integridade dos bens vinculados à prestação do serviço, bem como segurá-los adequadamente; eVIII - captar, aplicar e gerir os recursos financeiros necessários à prestação do serviço.Parágrafo único. As contratações, inclusive de mão-de-obra, feitas pela concessionária serão regidas pelas disposições de direito privado e pela legislação trabalhista, não se estabelecendo qualquer relação entre os terceiros contratados pela concessionária e o poder concedente.

Igualmente, o poder público também possui uma série de encargos que decorrem da delegação do serviço público, conforme expressa previsão do art. 29

Art. 29. Incumbe ao poder concedente:I - regulamentar o serviço concedido e fiscalizar permanentemente a sua prestação;II - aplicar as penalidades regulamentares e contratuais;III - intervir na prestação do serviço, nos casos e condições previstos em lei;IV - extinguir a concessão, nos casos previstos nesta Lei e na forma prevista no contrato;V - homologar reajustes e proceder à revisão das tarifas na forma desta Lei, das normas pertinentes e do contrato;

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VI - cumprir e fazer cumprir as disposições regulamentares do serviço e as cláusulas contratuais da concessão;VII - zelar pela boa qualidade do serviço, receber, apurar e solucionar queixas e reclamações dos usuários, que serão cientificados, em até trinta dias, das providências tomadas;VIII - declarar de utilidade pública os bens necessários à execução do serviço ou obra pública, promovendo as desapropriações, diretamente ou mediante outorga de poderes à concessionária, caso em que será desta a responsabilidade pelas indenizações cabíveis;IX - declarar de necessidade ou utilidade pública, para fins de instituição de servidão administrativa, os bens necessários à execução de serviço ou obra pública, promovendo-a diretamente ou mediante outorga de poderes à concessionária, caso em que será desta a responsabilidade pelas indenizações cabíveis;X - estimular o aumento da qualidade, produtividade, preservação do meio-ambiente e conservação;XI - incentivar a competitividade; eXII - estimular a formação de associações de usuários para defesa de interesses relativos ao serviço.

Possibilidade de subconcessão e transferência do contrato de concessão

Em regra, a execução do objeto contratado deve ser realizada diretamente pela parte que o celebrou. Entretanto, a Lei nº 8.987/1995 permite a chamada subconcessão, desde que obedecidas às seguintes formalidades:

Art. 26. É admitida a subconcessão, nos termos previstos no contrato de concessão, desde que expressamente autorizada pelo poder concedente.§1o. A outorga de subconcessão será sempre precedida de concorrência.§2o. O subconcessionário se sub-rogará todos os direitos e obrigações da subconcedente dentro dos limites da subconcessão.

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A subconcessão é definida por Marçal Justen Filho como a situação em que “o concessionário abdica dos poderes recebidos, atinentes ao desempenho do serviço concedido”. Portanto, “atribui a outrem aqueles encargos que havia recebido do Estado”, de forma que “um terceiro assume a prestação do serviço sem sujeitar-se ao estrito controle do concessionário”67.

Essa caracterização faz-se relevante, pois nem toda contratação de terceiro para desenvolver parte do objeto da concessão traduz-se em subconcessão. Conforme explana Marçal Justen Filho “Contratar um terceiro, ainda que para desempenho de atividades inerentes à concessão, não caracteriza cessão ou subconcessão”. E conclui “Dá-se uma dessas duas figuras quando o vínculo entre concessionário e terceiro produzir transferência de faculdades indissociáveis à gestão de serviços públicos. Ademais, também se configurará cessão ou subconcessão quando o terceiro assumir (ainda que parcialmente) a gestão do serviço por conta e risco próprios.68

A transferência da concessão e a mudança no controle societário da concessionária devem ser precedidas de aprovação do poder concedente, sob pena de caducidade. Nesse sentido, dispõe o art. 27 da Lei nº 8.987/1995:

Art. 27. A transferência de concessão ou do controle societário da concessionária sem prévia anuência do poder concedente implicará a caducidade da concessão.§1o. Para fins de obtenção da anuência de que trata o caput deste artigo, o pretendente deverá: I - atender às exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade jurídica e fiscal necessárias à assunção do serviço; eII - comprometer-se a cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor.§2o. Nas condições estabelecidas no contrato de concessão, o poder concedente autorizará a assunção do controle da concessionária por seus financiadores para promover sua reestruturação financeira e assegurar a continuidade da prestação dos serviços.

67 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997, p. 279.68 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997, p. 279.

67 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997, p. 279.

68 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997, p. 279.

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§3o. Na hipótese prevista no § 2o deste artigo, o poder concedente exigirá dos financiadores que atendam às exigências de regularidade jurídica e fiscal, podendo alterar ou dispensar os demais requisitos previstos no §1o, inciso I deste artigo.§4o. A assunção do controle autorizada na forma do § 2o deste artigo não alterará as obrigações da concessionária e de seus controladores ante ao poder concedente.

A norma tem por finalidade evitar que a condução do serviço público seja atribuída a outras pessoas que não as licitantes vencedoras da licitação sem prévia aprovação do poder público, já que, em tese, a referida transferência ou alteração de controle pode vir a prejudicar a execução do serviço.

Note-se, por outro lado, que a lei não veda a transferência da concessão nem a alteração do controle acionário. Ao contrário, admite-as expressamente, desde que previamente aprovadas pelo poder concedente. Essa possibilidade tem razão de ser, por exemplo, à vista dos longos prazos dos contratos de concessão, que muitas vezes alcançam três décadas (ou mais, em caso de prorrogação), não podendo se esperar que, durante todo esse largo período temporal, não possa a situação da concessionária e de seu grupo econômico vir a ser alterado. Entretanto, em prol da preservação da continuidade e da qualidade do serviço, a lei exige que haja prévia aprovação do poder público a toda e qualquer mudança que implique transferência da concessão ou alteração do seu controle societário.

Permissão de serviços públicos

A permissão de serviços públicos encontra-se definida no art. 2º, IV, da Lei nº 8.987/95:

Art. 2o Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se:(...)IV - permissão de serviço público: a delegação, a título precário, mediante licitação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco.

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De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, a permissão de serviços públicos constitui “o contrato administrativo através do qual o Poder Público (permitente) transfere a um particular (permissionário) a execução de certo serviço público nas condições estabelecidas em normas de direito público, inclusive quanto à fixação do valor das tarifas”.69 Classicamente, a permissão era considerada um ato unilateral da administração pública, e não uma forma de contratação.

Entretanto, com a Constituição de 1988, a doutrina passou a reconhecer o caráter contratual da permissão de serviços públicos, haja vista que o art. 175, parágrafo único, I, da Constituição faz referência ao “caráter especial de seu contrato”, ao dispor sobre a lei que viria a disciplinar o regime das empresas concessionárias e permissionárias:

Art. 175. (...)Parágrafo único. A lei disporá sobre:I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;(...)

Sobre a controvérsia, expõe Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

A Constituição de 1988 tratou, porém, do instituto da permissão de serviço público no seu art. 175, submetendo-o, do mesmo modo que a concessão de serviços públicos, à indispensável licitação e a um regime contratual.Havia, entretanto, uma perplexidade, no inciso I, do parágrafo único, do referido artigo 175 da Constituição, criada pela menção ao contrato, que, à época, diante do que parecia ser uma deficiência técnica da redação, incluiria a permissão.Ora, se tanto a concessão como a permissão fossem ambas modalidades contratuais, não haveria distinção a ser feita, e o legislador constitucional teria sido superfetatório. A única exegese constitucional razoável seria, portanto, aquela que resgatasse a autonomia do instituto, enquanto ato unilateral da Administração.

69 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 338.

69 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 338.

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Porém, toda essa construção, destinada a salvar o instituto da permissão, com suas características doutrinárias tradicionais, perdeu sua razão de ser com o advento da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que, em lacônico e impreciso dispositivo (art. 40), caracterizou-a como um contrato de adesão, confirmando, assim, sua submissão à mesma disciplina das concessões.70

O art. 40 da Lei nº 8.987/1995, a que se refere o autor, possui a seguinte redação:

Art. 40. A permissão de serviço público será formalizada mediante contrato de adesão, que observará os termos desta Lei, das demais normas pertinentes e do edital de licitação, inclusive quanto à precariedade e à revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente.Parágrafo único. Aplica-se às permissões o disposto nesta Lei.

Portanto, em que pesem as críticas doutrinárias, a permissão de serviço público, por força do disposto no art. 175, parágrafo único, I, da Constituição e do art. 40 da Lei nº 8.987/1995, em nosso ordenamento jurídico, apresenta atualmente natureza jurídica contratual.

Cumpre destacar que a concessão regida pela Lei 8.987/95 (concessão comum), não se confunde com a concessão especial, disposta na Lei 11.079/2004, a denominada parceria público-privada, objeto de aula específica.

Do Programa de Parceria de Parceria de Investimentos – PPI

Em 13 de setembro de 2016, a Lei nº 13.334, que cria o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). O novel diploma institui um novo regime jurídico para os contratos de longo prazo. Tem por desiderato aprimorar aspectos regulatórios exógenos (atinentes ao ambiente institucional) e endógenos (atrelados às modelagens de pactos concessórios) dos projetos de infraestrutura. Tudo com vistas a atrair investimentos privados para tais projetos público-privados.

70 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 438.

70 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 438.

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A sua disciplina incidirá sobre empreendimentos que são objetos de títulos habilitantes delegatórios (nos setores considerados de titularidade pública) e autorizatórios (nos campos em que não há a incidência do vetusto regime jurídico-administrativo da publicatio. Tanto assim é que o artigo 21 do referido normativo expressamente prescreve que as suas disposições se aplicam “ Aos empreendimentos empresariais privados que, em regime de autorização administrativa, concorram ou convivam, em setor de titularidade estatal ou de serviço público, com empreendimentos públicos a cargo de entidades estatais ou de terceiros contratados por meio das parcerias de que trata esta Lei.

O artigo 1º, §1º, inciso I, da Lei nº 13.334/2016 dispõe que o seu regime disciplinará os empreendimentos públicos de infraestrutura em execução ou a serem executados.

Assim é que poderão sofrer a incidência do seu regime jurídico, por exemplo, os contratos de concessão de rodovias celebrados nas três fases do Programa de Concessão de Rodovias Federais (Procrofe), um terminal privativo de uso misto, celebrado ainda sob a vigência da revogada Lei nº 8.630/1993, ou uma concessão de ferrovia que foi delegada, por ocasião da privatização da Rede Ferroviária Federal (RFFSA). O que importa, para qualificação de um contrato de parceria, não é a data de sua celebração, nem o fato de ele ter sido celebrado com base em um marco regulatório revogado. De rigor, ele tem o propósito de albergar empreendimentos com determinada arquitetura econômica ‒ composta por um fluxo de receitas e despesas que se protrai no tempo ‒, e não tal ou qual modelo jurídico.

Tal Programa de Governo tem por objetivos: (i) ampliar as oportunidades de investimento e emprego e estimular o desenvolvimento tecnológico e industrial, em harmonia com as metas de desenvolvimento social e econômico do País; (ii) garantir a expansão com qualidade da infraestrutura pública, com tarifas adequadas; e (iii) promover ampla e justa competição na celebração das parcerias e na prestação dos serviços.

Mas um uma das principais diretrizes desse programa é orientar a elaboração de modelagens que observem a “estabilidade e a segurança jurídica nos contratos de parceria, garantindo-se a mínima intervenção dos negócios e dos investimentos privados”.

Nesse quadrante, tal diretriz do PPI servirá de importante fundamento jurídico para interditar alterações nos contratos de longo prazo que rompam as suas bases objetivas, especialmente as que alterem a sua

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equação econômico-financeira. Isso porque esse conceito envolve um plexo de variáveis, tais como o fluxo de caixa projetado, as variações de receitas e o custo de investimento do capital, as quais devem observância à base objetiva dessa avença em atendimento ao disposto no artigo 10 da Lei nº 8.987/1995.

Alguns exemplos ilustram o exposto. Não raro, contratos de longo prazo são utilizados para atender interesses políticos de ocasião. De fato, na medida em que tais contratos realizam o trespasse de serviços essenciais à população, veiculando políticas públicas contratualizadas, seus aspectos econômicos ficam mais sujeitos a câmbios vinculados a fins eleitoreiros.

Outra situação que não seria lícita à luz dessa diretriz do PPI seria a alteração, sem a concordância do concessionário, da taxa interna de retorno do pacto concessionário ‒ o que não se trata de prática sem precedentes em nossos contratos, sobretudo por intermédio de interpretação dos órgãos de controle. Há julgados diversos, notadamente do Tribunal de Contas da União (TCU)71, autorizando a alteração da rentabilidade de contratos de concessão, ao argumento de que a mudança no contexto econômico e mercadológico, durante a vigência dos contratos de concessão, importaria na percepção de lucros exorbitantes pelo concessionário.

De outro bordo, o dever de intervenção mínima, que também foi previsto no inciso que se comenta, tem a ver, justamente, com a própria razão de ser dos contratos de concessão. Isso porque a própria transferência da execução de um cometimento para o concessionário privado pressupõe que aquele será prestado sob a ótica empresarial, de acordo com a expertise de um agente previamente selecionado para esse fim, por intermédio de um devido processo licitatório. Tanto assim é que o artigo 18, inciso XV, da Lei nº 8.987/1995 prevê a possibilidade de que os editais de licitação prévios a esses ajustes contenham apenas “elementos do projeto básico”, atribuindo ampla liberdade para que o concessionário explore o serviço delegado, de acordo com os seus meios de produção. Não foi por outra razão que a Lei nº 8.987/1995, em seu artigo 2º, inciso II, atribui ao concessionário a exploração da concessão por sua “conta e risco”.

Essa lógica de intervenção mínima da atividade de prestadores de atividades de relevância publica não é novidadeira no ordenamento jurídico brasileiro; já teve lugar, por exemplo, no artigo 128 da Lei nº 9.472/1997 (Lei Geral Telecomunicações), que incide sobre os serviços de telecomunicações submetidos à exploração em regime privado. Confira-se:

71 Veja-se o Acórdão nº 346/2012 – Plenário (TCU), em que se determinou ao poder concedente (DER/PR) que: “Promova, no prazo de 360 (trezen-tos e sessenta) dias, o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, ajustando os investimentos, de acordo com as necessidades públicas e as taxas de rentabilidades praticadas, a percentuais compatíveis com o contexto econômico vigente e o custo de oportunidade atual do negócio, considerando, entre outros parâmetros, possíveis sobrepreços em obras e serviços oriundos dos termos aditivos ao contrato inicial e submetendo os resultados à avaliação deste Tribunal de Contas, com supedâneo no princípio da economicidade”. No mesmo sentido, ver GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, v. 15, n. 58, p. 37-60, abr./jun. 2017.

71 Veja-se o Acórdão nº 346/2012 – Plenário (TCU), em que se determinou ao poder concedente (DER/PR) que: “Promova, no prazo de 360 (trezentos e sessenta) dias, o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, ajustando os investimentos, de acordo com as necessidades públicas e as taxas de rentabilidades praticadas, a percentuais compatíveis com o contexto econômico vigente e o custo de oportunidade atual do negócio, considerando, entre outros parâmetros, possíveis sobrepreços em obras e serviços oriundos dos termos aditivos ao contrato inicial e submetendo os resultados à avaliação deste Tribunal de Contas, com supedâneo no princípio da economicidade”. No mesmo sentido, ver GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, v. 15, n. 58, p. 37-60, abr./jun. 2017.

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Art. 128. Ao impor condicionamentos administrativos ao direito de exploração das diversas modalidades de serviço no regime privado, sejam eles limites, encargos ou sujeições, a Agência observará a exigência de mínima intervenção na vida privada, assegurando que: I - a liberdade será a regra, constituindo exceção as proibições, restrições e interferências do Poder Público; II - nenhuma autorização será negada, salvo por motivo relevante; III - os condicionamentos deverão ter vínculos, tanto de necessidade como de adequação, com finalidades públicas específicas e relevantes; IV - o proveito coletivo gerado pelo condicionamento deverá ser proporcional à privação que ele impuser; V - haverá relação de equilíbrio entre os deveres impostos às prestadoras e os direitos a elas reconhecidos.

Assim é que essa consagração da mínima intervenção importará no reforço da lógica dos ajustes, de acordo com o qual o negócio público-privado é predicador de uma autonomia gerencial do concessionário/autorizatário, sem a qual melhor seria que tal serviço fosse prestado ao interno do Estado. Daí que atos intrusivos, que se imiscuam na gestão do negócio do concessionário, deverão ser interditados. São exemplos de tais atos condutas do poder público praticadas com o objetivo de disciplinar, como: explorar receitas extraordinárias; realizar a política de tarifas promocionais pelos concessionários, ainda que sob um regime de price cap; e deixar a cargo da concessionária a organização dos seus meio de produção

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

JUSTEN  FILHO,  Marçal.  As  diversas  configurações  da  conces-são  de  serviço  público.  Revista  deDireito  Público  da  Econo-mia – RDPE, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 95135, jan./mar. 2003.

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Leitura complementar

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. 4a ed. São Paulo: Atlas, 20025, pp. 96 a 121.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Ma-lheiros, 2005, pp. 500 a 544.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 430 a 450.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador 1:

O Governador do Estado do Rio de Janeiro, no momento da posse, anun-ciou que o desenvolvimento do Estado passará por uma ênfase em projetos de infraestrutura em parceria com a iniciativa privada.

Quais são as etapas que o governador deve percorrer para poder delegar serviços públicos à iniciativa privada?

Para a delegação do transporte intermunicipal de passageiros, deve-se optar pela permissão ou pela concessão? Poderia ser adotado o instituto da autorização? O que o governador deve levar em consideração ao tomar essa decisão? A sua resposta é necessariamente a mesma em relação aos serviços de transporte rodoviário (ônibus), ferroviário e metroviário?

Caso gerador 2:

O contrato de concessão do transporte metroviário de passageiros do Es-tado do Rio de Janeiro prevê deveres a serem prestados por ambas as partes contratantes. Dessa forma, por um lado, compete à concessionária promo-ver a manutenção adequada do serviço, garantindo a sua continuidade. Por outro lado, o poder público estadual obrigou-se a entregar novas estações e trens para exploração pela concessionária.

Nesse sentido, pergunta-se: caso, por qualquer razão, o poder público atrase o cronograma de entrega de trens, pode a concessionária deixar de prestar o serviço de transporte coletivo metroviário de passageiros?

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VII. CONCLUSÃO DA AULA

Os serviços públicos podem ser executados por terceiros não integrantes da Administração Público. Nesse caso, esta execução se dá por meio dos con-tratos de concessão e/ou permissão, nos termos do art. 175 da Constituição da República.

A contratação de um terceiro para a execução de serviço público deve ser precedida de procedimento licitatório em que seja assegurada a isonomia entre os licitantes. A Lei nº 8.987/1995 deve ser estudada pelo aluno, pois é o diploma normativo que trata das disposições aplicáveis aos contratos de concessão e permissão de serviço público.

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AULAS 9 E 10

I. TEMA

Direitos dos usuários e equilíbrio econômico-financeiro das concessões de serviços públicos.

II. ASSUNTO

Direitos dos usuários de serviços públicos e política tarifária

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar os direitos dos usuários de serviços públicos concedidos e discutir o significado dos princípios que regem as concessões de serviços públicos, com especial ênfase ao princípio do equilíbrio econômico-financeiro da concessão.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

INTRODUÇÃO:

Direitos dos usuários de serviços públicos

Na Lei nº 8.987/1995 encontra-se o rol de direitos do usuário do serviço público concedido. Nesse sentido, dispõem os arts. 7º e 7-A da Lei nº 8.987/1995:

Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários:I - receber serviço adequado;II - receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos;III - obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vários prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do poder concedente. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998)

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IV - levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado;V - comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do serviço;VI - contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços.

Art. 7º-A. As concessionárias de serviços públicos, de direito público e privado, nos Estados e no Distrito Federal, são obrigadas a oferecer ao consumidor e ao usuário, dentro do mês de vencimento, o mínimo de seis datas opcionais para escolherem os dias de vencimento de seus débitos.  

Um tema bastante discutido em sede regulatória reside na aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação entre a concessionária de serviços públicos e os usuários dos referidos serviços. Por um lado, a Constituição Federal prevê ser a defesa do consumidor princípio constitucional fundador da Ordem Econômica (art. 170, IV), ao passo que o art. 175, ao tratar dos serviços públicos, previu que lei viria a dispor sobre os direitos dos usuários. Tendo em vista que o constituinte não costuma utilizar termos distintos para aludir a um mesmo instituto jurídico, a doutrina discute a existência de peculiaridades relativas aos direitos dos usuários dos serviços públicos comparativamente às disposições gerais do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), que regem a generalidade das relações entre fornecedores de produtos ou serviços e seus usuários finais.

Por outro lado, tanto o CDC quanto a Lei de Concessões de Serviços Públicos (Lei nº 8.987/1995) contêm normas prevendo a aplicação do CDC às concessões de serviços públicos:

CDC (Lei nº 8.078/1990):

Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:(...)X – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral

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Lei de Concessões (Lei nº 8.987/1995):

Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários:(...)

Dessa forma, não se questiona a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às relações entre concessionária e usuário de serviços públicos, mas sim a extensão e o limite dessa aplicação, tendo em vista as peculiaridades que informam a prestação de serviço público, tais como deveres de continuidade e universalidade, bem como a remuneração por meio de tarifa.

Nesse sentido, é preciso considerar que a prestação de serviço público traz subjacente a ideia de interesse coletivo e justiça distributiva, elemento geralmente ausente das relações típicas de direito do consumidor, nas quais se enfoca a relação individual fornecedor-consumidor (e, portanto, questões de justiça comutativa). Além disso, a relação entre concessionária e usuário de serviço público não pode ser analisada desconsiderando-se o contrato de concessão celebrado entre o poder concedente e a prestadora do serviço público. Nesse sentido, Alexandre Santos de Aragão, para quem “todavia, o CDC não pode ser aplicado indiscriminadamente aos serviços públicos, já que eles não são atividades econômicas comuns, sujeitas à liberdade de empresa e desconectadas da preocupação de manutenção de um sistema prestacional coletivo”.

A jurisprudência também tem se mostrado sensível à diferenciação entre as figuras do consumidor e a do usuário de serviço público. Nesse sentido, veja-se trecho de decisão proferida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

Serviço público de fornecimento de energia elétrica. A relação entre fornecedor e consumidor não se confunde com a firmada por concessionária e usuário, dado que o concedente é o poder público, caso em que se observa a supremacia do interesse público. Vácuo legislativo em reger os direitos do usuário em relação à concessionária. Inadimplemento do Congresso Nacional com o disposto no art. 37, da Emenda Constitucional nº 19/98, que determina a edição da lei de defesa do

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usuário de serviços públicos. Aplicação somente analógica da legislação consumerista, que deve ser interpretada em harmonia com outros diplomas.Se há regulamento administrativo estabelecendo a forma como será regulada a relação, descabe a invocação do Código de Defesa do Consumidor para obter algo que com aquele contrasta. Usuário inadimplente no pagamento de suas contas. Suspensão do fornecimento por falta de pagamento. Autotutela admitida por lei após prévio aviso comprovado nos autos.72

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, reconheceu-se a juridicidade da atuação dos órgãos de defesa do consumidor na regulação de serviços públicos e atividades econômicas (RESP 1.138.591-RJ - Relator: Ministro Castro Meira), ocasião em que restou consignado que a atuação do Procon “não exclui nem se confunde com o exercício da atividade regulatória setorial realizada pelas agências criadas por lei, cuja preocupação não se restringe à tutela particular do consumidor, mas abrange a execução do serviço público em seus vários aspectos”. Dessa forma, doutrina e jurisprudência inclinam-se no sentido do reconhecimento de peculiaridades da situação jurídica do usuário do serviço público, que o afastam, em determinados tópicos, da disciplina prevista no CDC.

Também em sede normativa mostra-se relevante mencionar que a Emenda Constitucional nº 19/1998 exigia que, dentro de 120 dias a contar de sua promulgação, viesse a ser expedido o Código de Defesa do Usuário dos Serviços Públicos:

Art. 27. O Congresso Nacional, dentro de 120 dias da promulgação da Emenda, elaborará lei de defesa do usuário de serviços públicos.”

Em 2017, finalmente foi editada a Lei nº 13.460/2017, que “estabelece normas básicas para participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente pela administração pública”.  O §2o do art. 1º esclarece que a “aplicação desta Lei não afasta a necessidade de cumprimento do disposto (i) em normas regulamentadoras específicas, quando se tratar de serviço ou atividade sujeitos a regulação ou supervisão; e  (ii) na Lei no  8.078, de 11 de setembro de 1990, quando caracterizada relação de consumo”.

72 Apelação cível 2006.001.19958.

72 Apelação cível 2006.001.19958.

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A Lei 13.460/2017 obriga órgãos e entidades da Administração a avaliarem a qualidade do serviço prestado. Nesse sentido, dispõe o art. 23:

Art. 23.  Os órgãos e entidades públicos abrangidos por esta Lei deverão avaliar os serviços prestados, nos seguintes aspectos: I - satisfação do usuário com o serviço prestado; II - qualidade do atendimento prestado ao usuário; III - cumprimento dos compromissos e prazos definidos para a prestação dos serviços; IV - quantidade de manifestações de usuários; e V - medidas adotadas pela administração pública para melhoria e aperfeiçoamento da prestação do serviço. § 1o    A avaliação será realizada por pesquisa de satisfação feita, no mínimo, a cada um ano, ou por qualquer outro meio que garanta significância estatística aos resultados. § 2o    O resultado da avaliação deverá ser integralmente publicado no sítio do órgão ou entidade, incluindo o ranking das entidades com maior incidência de reclamação dos usuários na periodicidade a que se refere o § 1o, e servirá de subsídio para reorientar e ajustar os serviços prestados, em especial quanto ao cumprimento dos compromissos e dos padrões de qualidade de atendimento divulgados na Carta de Serviços ao Usuário. 

 A lei, publicada em 27/06/2017, possui diferentes vacatio legis a

depender do tamanho da população de cada ente federativo:

Art. 25.  Esta Lei entra em vigor, a contar da sua publicação, em: I - trezentos e sessenta dias para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios com mais de quinhentos mil habitantes; II - quinhentos e quarenta dias para os Municípios entre cem mil e quinhentos mil habitantes; e III - setecentos e vinte dias para os Municípios com menos de cem mil habitantes. 

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O princípio do equilíbrio econômico-financeiro da concessão

Dentre os princípios que regem as concessões de serviços públicos destaca-se, por sua relevância, o princípio da modicidade tarifária, o qual somente pode ser compreendido à luz do princípio do equilíbrio econômico-financeiro, os quais devem, por conseguinte, ser analisados em conjunto.

O equilíbrio econômico-financeiro da concessão constitui princípio constitucionalmente assegurado, podendo ser inferido do art. 37, XXI, da Constituição Federal, quando se refere à exigência de “manutenção das condições efetivas da proposta” nos pagamentos relativos aos serviços contratados mediante licitação:

Art. 37. (...)XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

Igualmente, encontra-se positivado no art. 9º, §4º, da Lei nº 8.987/95, o qual dispõe:

§4º. Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração.

Consoante Maria Sylvia Zanella di Pietro, o princípio do equilíbrio econômico-financeiro da concessão fundamenta-se em quatro princípios, quais sejam, (i) equidade, (ii) razoabilidade, (iii) continuidade e (iv) indisponibilidade do interesse público.73 Como já esclareceu o Superior Tribunal de Justiça, “a finalidade da cobrança da tarifa é manter o equilíbrio financeiro do contrato, possibilitando a prestação contínua do serviço público”.74

73 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Parcerias na administração pública. 4a ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 97.74 RESP 431121 / SP, j. em 20.08.2002.

73 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Parcerias na administração pública. 4a ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 97.

74 RESP 431121 / SP, j. em 20.08.2002.

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Maria Sylvia Zanella di Pietro75 menciona que um dos aparentes paradoxos da teoria do equilíbrio econômico-financeiro da concessão reside na necessidade de se conciliar o direito do concessionário ao equilíbrio com a ideia de que os riscos associados à execução do serviço devem correr por sua conta.

Em resposta a essa aparente contradição, a autora observa que os riscos ordinários da atividade devem ser atribuídos ao concessionário e, por conseguinte, não lhe conferem direito à recomposição de eventuais perdas, pois que, nesses casos, não se pode falar propriamente de desequilíbrio.

Por outro lado, quanto às circunstâncias extraordinárias, sendo inimputáveis ao concessionário, devem ser arcadas pelo poder concedente, autorizando a revisão tarifária (com fulcro nas teorias do fato do príncipe, do fato da administração e da imprevisão). A esse respeito, mostra-se relevante destacar lição de Marçal Justen Filho76, segundo a qual o equilíbrio econômico-financeiro da concessão não constitui propriamente um direito, mas antes um princípio regulador, uma garantia a ambos, concessionário e poder concedente, de que a equação original do contrato será mantida ao longo do exercício da concessão. Especialmente, o princípio atua no sentido de conferir aos licitantes a certeza de que podem apresentar as melhores propostas possíveis no momento da licitação – pois não precisam incluir em seus cálculos projeções de custos associados a perdas relacionadas a eventos imprevisíveis (o que seria mesmo impossível) – garantindo-se, dessa forma, a efetividade do objetivo do procedimento licitatório, que é a busca da proposta mais vantajosa para a Administração. Nas palavras do autor:

Mas o fundamental se encontra no princípio da indisponibilidade do interesse público. Em primeiro lugar, impõe a necessidade de evitar que a Administração arque com desembolsos superiores aos necessários à satisfação dos seus fins. A Administração necessita selecionar a proposta mais vantajosa (...) A consagração desse princípio representa a garantia à Administração de que receberá as propostas mais vantajosas e de menor preço, porquanto o direito assegura ao particular que a relação entre encargos e remuneração não será alterada.(...) O particular não necessita incluir em suas previsões os eventos futuros prejudiciais,

75 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Parcerias na administração pública. 4a ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 97.76 “Rigorosamente, a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro é um princípio regulador do contrato administrativo. Não é nem direito nem dever de cada parte, mas uma característica do contrato. Pode-se aludir ao direito da parte de obter elevação da remuneração em virtude da ampliação de seus encargos. Isso será conseqüência da natureza jurídica do contrato administrativo, que é integrada pelo princípio da manutenção do equilíbrio econômico--financeiro da contratação”. (Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997, p. 146).

75 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Parcerias na administração pública. 4a ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 97.

76 “Rigorosamente, a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro é um princípio regulador do contrato administrativo. Não é nem direito nem dever de cada parte, mas uma característica do contrato. Pode-se aludir ao direito da parte de obter elevação da remuneração em virtude da ampliação de seus encargos. Isso será conseqüência da natureza jurídica do contrato administrativo, que é integrada pelo princípio da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro da contratação”. (Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997, p. 146).

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pois o direito lhe assegura a manutenção do arcabouço contratual delineado no momento inicial da contratação. Significa que o princípio da indisponibilidade do interesse público exclui a viabilidade de uma contratação sujeitável a riscos de imprevisão ou de modificações da relação econômica subjacente.77

Alteração dos Contratos de Concessão

A Lei nº 8.987/1995 não dispõe, expressamente, a propósito de um regime jurídico das alterações desses ajustes. Da referida omissão, duas possíveis intepretações podem ser extraídas: (i) a de que se trataria de silêncio eloquente, o qual possibilitaria que tais contratos fossem livremente alterados; ou (ii) a de que lhe seria incidente o regime de alterações contratuais previsto na Lei nº 8.666/1993. Para o que aqui importa, a questão que se põe é a seguinte: tais limites se aplicam aos contratos de concessão de serviços público, que é gênero do qual a concessão de rodovias é espécie?

Temos que não por três ordens de razão: primeiro, porque tais ajustes, como já exposto, por se tratar de contratos de longo prazo, possuem uma cambialidade mais acentuada que não se coaduna com os limites às alterações em contratos de empreitada, os quais podem viger por, no máximo, cinco anos; segundo, porque se trata de contrato de receita, remunerado, tradicionalmente, pelos usuários, e não de despesa; assim, por não envolver aportes do Tesouro, o que sugere a necessidade/adequação da incidência de tais limites78.

Porém, isso não significa dizer que tais contratos possam ser alterados ilimitadamente, sob pena de subversão do próprio procedimento licitatório. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso79 aponta os seguintes limites à alteração dos contratos de concessão: (i) deve se tratar de alteração nas suas cláusulas de execução; (ii) tal expediente deve ser devidamente motivado, de modo que sejam explicitados o interesse público a atingir e os princípios constitucionais que se pretendem tutelar por intermédio da alteração; (iii) deve se tratar de uma alteração que não comportaria (pelo prazo ou por seus custos) a realização de uma licitação autônoma; e (iv) ainda que as limitações trazidas pela Lei nº 8.666/19933 não lhe sejam aplicáveis, tais percentuais podem ser utilizados como possíveis diretrizes para tais alterações.

77 Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997, p. 149.78 No mesmo sentido, veja-se MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Alteração em contrato de concessão rodoviária. Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 44, p. 212-214, 2002. 79 BARROSO, Luís Roberto. Alteração dos contratos de concessão rodoviária. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, v. 4, n. 15, p. 99-129, jul./set. 2006.

77 Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997, p. 149.

78 No mesmo sentido, veja-se MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Alteração em contrato de concessão rodoviária. Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 44, p. 212-214, 2002.

79 BARROSO, Luís Roberto. Alteração dos contratos de concessão rodoviária. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, v. 4, n. 15, p. 99-129, jul./set. 2006.

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Prorrogação dos Contratos de Concessão

Como é sabido, à luz do artigo 175, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB), em regra, a outorga de concessão de serviço público deverá ser precedida de procedimento licitatório razão por que o referido dispositivo se utiliza do advérbio “sempre”. Todavia, não se pode interpretar esse normativo como óbice à prorrogação de contratos de concessão. Na verdade, é o próprio dispositivo constitucional que, em seu parágrafo único, determina que a lei disponha sobre “o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão” (grifo nosso).

Assim é que, se, por um lado, o texto constitucional exige a realização de procedimento licitatório para a outorga de concessões, por outro, admite a sua prorrogação sem a realização desse processo de seleção. Daí porque o argumento de acordo com o qual a extensão do prazo contratual seria uma burla ao procedimento licitatório não tem fundamento, seja porque o próprio art. 175 prevê a possibilidade de prorrogação, seja porque a incompletude desses ajustes impõe a constante adaptação desses contratos. Além disso, não se pode olvidar que a licitação – tal como a concorrência – não é um fim em si, mas um instrumento. para que a Administração selecione a melhor proposta no mercado. Nesse sentido, se a melhor proposta, consubstanciada no melhor padrão do serviço, é a que vem sendo executada pelo concessionário, seria antípoda ao interesse público interditar a extensão de seu prazo. Em termos coloquiais: não seria minimante razoável “licitar por licitar”.

O ordenamento jurídico prevê três formas prorrogação. A prorrogação premial é aquela por meio da qual o pacto concessório estabelece, ex ante, os critérios que orientarão a Administração Pública na decisão de ampliar o vínculo contratual. Mais especificamente, trata-se da modalidade em que se divide o módulo contratual em duas ou mais partes, possibilitando que o poder concedente, ao final de cada uma delas, avalie se o concessionário preencheu os requisitos previamente estabelecidos contratualmente.

A prorrogação antecipada mediante a realização de novos investimentos, por sua vez, terá lugar nas hipóteses em que, por razões econômicas, o poder concedente, em vez de esperar o termo do contrato de concessão, incentiva que o concessionário realize investimentos não previstos nas suas obrigações originárias, tendo como contrapartida a ampliação

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da vigência do prazo da concessão (art. 4º, II). A referida modalidade encontra ao menos dois exemplos recentes: no artigo 1º, §1º, inciso III, da Lei nº 12.783/2013 (que trata de renovação das concessões de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica) e no artigo 57 da Lei nº 12.815/2013 (novo marco regulatório do setor portuário).

Por fim, é de se destacar a extensão de prazo contratual, para fins de reequilíbrio. Trata-se de expediente que visa restabelecer o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, especialmente adequado para as hipóteses em que outras formas de recomposição não sejam possíveis, a exemplo do incremento do valor da tarifa (sob pena de violação do princípio da modicidade tarifária) e da redução de encargos do concessionário (quanto se tratar de setor que não pode sofrer a redução de investimento e/ou dos níveis qualitativos do serviço prestado).

Tal modalidade: (i) prescinde de autorização legal específica, ou de previsão editalícia, em razão da garantia constitucional da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, prevista no artigo 37, inciso XXI, in fine, da CRFB; e (ii) está totalmente desvinculada do prazo previsto para eventual prorrogação contratual, pois que será estipulada pelo período de tempo necessário para que tal contrato seja reequilibrado, sob pena de não recompor todos os prejuízos econômicos que tal evento provocou no fluxo de caixa do concessionário.

A ausência de tal previsão militará, justamente, em desfavor da “segurança jurídica”, pois haverá casos em que tal procedimento terá de ser adotado sem que tenham sido fixadas balizas orientadoras para tal expediente. A referida omissão pode estar relacionada às decisões do Tribunal de Contas da União (TCU) a propósito dessa temática. Cite-se, por exemplo, o AC-774-11/16-P, no qual aquela corte de contas se manifestou no sentido de que: Tal recomposição econômico-financeira dos contratos de arrendamento portuário poderá ser implementada, justificadamente, por meio de alargamento do prazo contratual, observados os limites estatutários definidos pelo legislador, quais sejam, a prorrogação por uma única vez, desde que prevista no termo do contrato; não devendo o período adicional ser superior ao originalmente avençado. Outro exemplo, mais recente, é o Acórdão nº 738/2017, por intermédio do qual ficou assentado que “a prorrogação de concessão de serviço público, ainda que em razão de reequilíbrio econômico-financeiro, requer expressa autorização no instrumento convocatório e no contrato de concessão original”. De fato, tais decisões impõem limitações que fazem com que a extensão de prazo não atinja o seu propósito de recompor

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os impactos econômicos suportados pelo concessionário. Isso porque podem ocorrer eventos desequilibrantes que exijam a extensão do prazo contratual para além do previsto no contrato, o que, a nosso ver, vem sendo equivocadamente interditado pelo TCU. A opção normativa pode ter sido a de não disciplinar algo que foi inviabilizado pela jurisprudência administrativa do TCU

O princípio da modicidade tarifária

Marcos Juruena Villela Souto se refere ao princípio da modicidade das tarifas como “a própria consequência do princípio da generalidade, por força do qual as tarifas devem ser o mínimo possível onerosas para os usuários”80.

O princípio da modicidade tarifária, em um regime de concessão de serviço público, exige, por outro lado, o adimplemento por parte dos usuários no que tange ao pagamento da tarifa. Sem mecanismos efetivos de cobrança, o equilíbrio econômico-financeiro da concessão poderá vir a romper-se, pondo em risco o funcionamento da concessionária e, por conseguinte, a continuidade dos serviços públicos para os demais usuários. A lei e os contratos de concessão preveem alguns mecanismos capazes de garantir ao concessionário e ao poder concedente a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro da concessão, como o reajuste e a revisão tarifária. Sobre a diferença entre os institutos, Marçal Justen Filho observa que “o reajuste corresponde à modificação do valor da tarifa para enfrentar elevações normais de custos, relacionadas ao fenômeno inflacionário”. Já a revisão “envolve a possibilidade de modificações imprevisíveis na formação dos custos necessários à prestação dos serviços”.81

O tema das tarifas praticadas por concessionárias de serviços públicos envolve sempre questões complexas, sendo geralmente distintas as percepções dos agentes afetados: para o poder concedente, a alta da tarifa pode produzir impacto negativo sobre o desenvolvimento econômico e um custo político; para a concessionária, liga-se à sua receita e consequente retorno sobre os investimentos realizados; já os usuários têm em regra uma sensação de que a tarifa se apresenta elevada, produzindo impacto significativo sobre o custo de vida.

Quanto aos conflitos envolvendo a questão tarifária, observam Solange Ribeiro e Maria Isabel Falcão, analisando o tema sob o prisma das tarifas do serviço público de distribuição de energia elétrica:

80 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lúmen Juris: 2002, p. 208.81 Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997 p. 263

80 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lúmen Juris: 2002, p. 208.

81 Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 1997 p. 263

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A definição tarifária é um mecanismo regulatório muito importante para a garantia do funcionamento eficiente do mercado em regime de monopólios naturais. A tarifa de fornecimento de energia elétrica pode ser vista sob diferentes óticas: (i) na percepção do consumidor, os dispêndios incorridos com energia elétrica são altos e as tarifas aumentam mais do que a inflação e os salários, restringindo sua capacidade de pagamento ao longo dos anos; (ii) na percepção do Governo, o custo de energia elétrica possui grande influência sobre a economia brasileira e, consequentemente, sobre o controle inflacionário; (iii) e finalmente, a percepção dos investidores que atuam em ambientes regulados é de que as tarifas não são suficientes para promover a rentabilidade esperada e que, portanto, o retorno sobre o capital investido não é adequado.82

A breve passagem acima permite perceber que a tarifa constitui sempre um tema delicado no âmbito das discussões regulatórias.

Instrumentos para preservação do equilíbrio econômico-financeiro da concessão

Conforme já estudado, a legislação prevê mecanismos de garantia do equilíbrio econômico-financeiro da concessão. Nesse sentido, a Lei nº 8.987/1995 estabelece instrumentos para preservação desse princípio, tais como o reajuste e a revisão tarifárias.

(a) O reajuste anual da tarifa

Os contratos de concessão, em conformidade com as previsões editalícias, costumam prever o direito das concessionárias ao reajuste anual da tarifa, para reposição das perdas decorrentes da inflação.

(b) A revisão extraordinária

A lei de concessões confere ao concessionário o direito à revisão da tarifa quando houver alterações nos tributos incidentes sobre a atividade (à exceção daqueles relativos à renda), nos termos do art. 9º, §3º, da Lei nº 8.987/1995:

82 RIBEIRO, Solange e FALCÃO, Maria Isabel. O modelo tarifário brasileiro. In: LANDAU, Elena (org.) Regulação jurídica do setor elétrico. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 265.

82 RIBEIRO, Solange e FALCÃO, Maria Isabel. O modelo tarifário brasileiro. In: LANDAU, Elena (org.) Regulação jurídica do setor elétrico. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 265.

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§3º. Ressalvados os impostos sobre a renda a criação, a alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso.

Em alguns casos, também os editais e os contratos de concessão preveem o direito à revisão automática na hipótese de majoração do custo de insumos essenciais à execução da atividade concedida. Em todo caso, a revisão extraordinária pode ter lugar quando fatores imprevisíveis afetarem o equilíbrio econômico-financeiro da concessão. Nas palavras de Alexandre Aragão, “os fatos imprevisíveis trazem consigo, ao revés, a figura da revisão contratual, que poderá se consubstanciar ou não em uma revisão tarifária, já que o reequilíbrio da equação inicial pode ser feito através da manipulação de outros elementos que não a tarifa”83

(c) A revisão periódica da tarifa

Adicionalmente, os editais e os contratos de concessão aludem ao direito à revisão periódica da tarifa, relativamente a fatores que tenham ocasionado perdas ou ganhos imprevisíveis para qualquer das partes e que tenham, nesse sentido, alterado o equilíbrio econômico-financeiro. A revisão periódica se destina a estabelecer novos níveis tarifários para a concessionária, de acordo com as alterações nos custos de serviço.

Acerca da distinção entre as revisões extraordinária e periódica, esclarece Alexandre Aragão:

“Nas concessões regidas pela Lei n. 8987/95, a modificação mais comum nos critérios clássicos de repartição de riscos entre concessionário e Poder concedente se deu através da instituição de revisões quinquenais (revisões periódicas ordinárias).As revisões tradicionais são, como visto acima, devidas apenas em razão de fatos imprevisíveis e de consequências vultosas, sem qualquer periodicidade predeterminada. Já pelas revisões quinquenais há uma análise periódica de toda a planilha de custos, incluindo ganhos ou perdas de eficiência, da concessionária, análise que deverá readequar a tarifa para manutenção da equação econômico-financeira inicial, inclusive em relação a fatos

83 Curso de direito administrativo, Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 418.

83 Curso de direito administrativo, Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 418.

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previsíveis como variação de demanda e aumento do custo dos insumos, e compartilhamento com os usuários de eventuais ganhos de eficiência, com aplicação do chamado ‘fator x’.É comum os contratos preverem momentos em que, não apenas se reajustarão os preços mediante índices previamente estabelecidos, mas também nos quais se fará a revisão ordinária, com a correção de todos os desequilíbrios que não possam ser compostos por simples reajustamento de preços de insumos contratuais”.84

Possibilidade de interrupção do serviço em caso de falta de pagamento

A possibilidade de interrupção do serviço por falta de pagamento rendeu profundas discussões na doutrina e na jurisprudência a partir do processo de desestatização, tendo em vista os princípios da continuidade e regularidade dos serviços públicos concedidos, previstos na Lei nº 8.987/1995, bem como a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos entre concessionárias e particulares.

Contra essa possibilidade são geralmente levantados argumentos como essencialidade do serviço, dignidade da pessoa humana, existência de meio processual próprio para cobrança em casos de inadimplemento (como a ação de cobrança), direito do consumidor à essencialidade do serviço. Veja-se que os arts. 22, caput, e 42, caput, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) dispõem:

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Conforme anteriormente mencionado, o CDC aplica-se, embora com ressalvas, às relações entre concessionária e usuário do serviço, por força do disposto no art. 7º, caput, da Lei nº 8.987/1995:

84 Ob. cit., pp. 418 e 419.

84 Ob. cit., pp. 418 e 419.

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Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários:I - receber serviço adequado;II - receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou     coletivos;III - obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vários prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do poder concedente (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998);IV - levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado;V - comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do serviço;VI - contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços.

De outro lado, as concessionárias alegam que a impossibilidade de interrupção da prestação do serviço sinaliza ao mercado que “o inadimplemento compensa”, já que não levaria à imediata supressão do serviço, e a reparação do dano, somente se daria de forma imperfeita, tendo em vista o lapso temporal e os custos inerentes às demandas judiciais. Dessa forma, inadimplementos reiterados terminariam por colocar em risco o equilíbrio econômico-financeiro da concessão e, com isso, a possibilidade de a concessionária seguir prestando serviço adequado, contínuo e regular. Além disso, o próprio art. 6º, §3º, II da Lei nº 8.987/1995 determina que não caracteriza descontinuidade do serviço a interrupção do serviço, após prévio aviso, em caso de inadimplemento do usuário.

Após profundos embates, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, veio a reconhecer, por exemplo, a legitimidade do corte de energia elétrica a consumidores inadimplentes, desde que observadas as exigências previstas na legislação, em decisão que restou assim ementada:

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ADMINISTRATIVO - ENERGIA ELÉTRICA - CORTE – FALTA DE PAGAMENTO - É lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (L. 8.987/95, Art. 6º, § 3º, II).85

Em sustentação da possibilidade de corte, foi considerada a necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro da concessão. Em suas razões de decidir, o ministro-relator Humberto Gomes de Barros observou:

...a proibição [do corte] acarretaria aquilo a que se denomina “efeito dominó”. Com efeito, ao saber que o vizinho está recebendo energia de graça, o cidadão tenderá a trazer para si o tentador benefício. Em pouco tempo, ninguém mais honrará a conta de luz.Ora, se ninguém paga pelo fornecimento, a empresa distribuidora de energia não terá renda. Em não tendo renda, a distribuidora não poderá adquirir os insumos necessários à execução dos serviços concedidos e, finalmente, entrará em insolvência.Falida, a concessionária interromperia o fornecimento a todo o município, deixando às escuras, até a iluminação pública.86

Cumpre mencionar que o STJ tem entendido que a possibilidade de corte atinge inclusive as pessoas jurídicas de direito público (como Estados e municípios), conforme se observa da decisão monocrática abaixo, da lavra no ministro Humberto Martins, a qual se pede licença para transcrever tendo em vista que explica, de forma bastante didática, a evolução da jurisprudência pátria no que se refere ao tema das tarifas de energia elétrica, possibilidade de corte e o princípio da modicidade tarifária:

85 REsp 363943/MG, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Seção, julgado em 10.12.2003, DJ 01.03.2004 , p. 119.86 Voto vencedor do Min. Humberto Gomes de Barros no RE 363.943, j. em 10.12.2003.

85 REsp 363943/MG, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Seção, julgado em 10.12.2003, DJ 01.03.2004 , p. 119.

86 Voto vencedor do Min. Humberto Gomes de Barros no RE 363.943, j. em 10.12.2003.

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RECURSO ESPECIAL – ALÍNEAS “A” E “C” – ADMINISTRATIVO – ENERGIA ELÉTRICA – CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO – INADIMPLÊNCIA DO MUNICÍPIO CONSUMIDOR – SUSPENSÃO DO SERVIÇO – POSSIBILIDADE - RECURSO PROVIDO.DECISÃOVistos.Cuida-se de recurso especial interposto por AES Sul – Distribuidora Gaúcha de Energia S/A, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do inciso III do artigo 105 da Constituição da República, contra v. acórdão proferido pelo egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, cuja ementa guarda o seguinte teor:

“INTERRUPÇÃO NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. MUNICÍPIO INADIMPLENTE.É incontestável o direito do concessionário à remuneração prevista no contrato administrativo firmado com o Poder Concedente. Todavia, esse direito não pode se sobrepujar ao interesse difuso da coletividade municipal à manutenção do fornecimento do serviço público, de natureza essencial, sob pena de violação à própria dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88). Em nome do princípio da proporcionalidade, não está a concessionária autorizada a utilizar dos meios mais gravosos para a obtenção dos seus créditos, quando poderá fazê-lo pela via judicial própria» (fl. 567).Aponta a recorrente violação do artigo 6º, §3º, II, da Lei n. 8.987/95 e negativa de vigência ao artigo 17 da Lei 9.427/96, além de divergência jurisprudencial com julgados deste Sodalício. É, no essencial, o relatório.(...).Em verdade, a suposta necessidade da continuidade do serviço público, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, não se traduz em uma regra de conteúdo absoluto, em vista das limitações previstas na Lei n. 8.987/97. Aliás, nessa linha de

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entender, a colenda Primeira Turma, por meio de voto condutor da lavra do ilustre Ministro Teori Albino Zavascki, assentou que “tem-se, assim, que a continuidade do serviço público assegurada pelo art. 22 do CDC não constitui princípio absoluto, mas garantia limitada pelas disposições da Lei n. 8.987/95, que, em nome justamente da preservação da continuidade e da qualidade da prestação dos serviços ao conjunto dos usuários, permite, em hipóteses entre as quais o inadimplemento, a suspensão no seu fornecimento” (REsp 591.692-RJ, DJ 14/3/2005).Seja como for, não se desconhece haver intenso debate doutrinário e jurisprudencial acerca do tema versado nos presentes autos, inclusive no âmbito das Turmas que compõem a egrégia Primeira Seção deste Sodalício. Há arestos da egrégia Primeira Turma nos quais restou consignado o entendimento de que “é defeso à concessionária de energia elétrica interromper o suprimento de força, no escopo e compelir o consumidor ao pagamento de tarifa em atraso. O exercício arbitrário das próprias razões não pode substituir a ação de cobrança” (REsp 223.778/RJ, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 13.3.2000).Dispõe a Lei n. 8.987/95 que os serviços públicos, prestados em regime de concessão, deverão ser adequados ao pleno atendimento dos usuários, exigindo-se a regularidade, continuidade, eficiência, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas (art. 6º, § 3º).Assegura o referido diploma, entretanto, que:

“Art. 6º. (...)§ 3º. Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a suainterrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:(...)II – por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.”

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Posteriormente, a Lei n. 9.427/96, que instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL e disciplinou o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica, admitiu o corte do fornecimento do serviço por falta de pagamento, condicionada à comunicação prévia da autoridade competente. Confira-se:

“Art. 17. A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essencial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de 15 (quinze) dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual.Parágrafo único. O Poder Público que receber a comunicação adotará as providências administrativas para preservar a população dos efeitos da suspensão do fornecimento de energia, sem prejuízo das ações de responsabilização pela falta de pagamento que motivou a medida.”

Sob outro enfoque, todavia, não se admite receba o usuário, se admitida a impossibilidade de suspensão do serviço, um estímulo à inadimplência. Não se pode olvidar que se trata de serviço oneroso, cujo fornecimento deve ser prestigiado pelo respectivo pagamento, na forma da lei.Ademais, ao editar a Resolução 456, de 29 de novembro de 200087, a própria ANEEL, responsável pela regulamentação do setor de energético no país, contemplou a possibilidade de suspensão do fornecimento do serviço em inúmeras hipóteses, dentre as quais o atraso no pagamento de encargos e serviços vinculados ao fornecimento de energia elétrica prestados mediante autorização do consumidor, ou pela prestação do serviço público de energia elétrica (art. 91, incisos I e II).Oportuno mencionar, por fim, que não será o Judiciário, entretanto, insensível relativamente às situações peculiares em que o usuário deixar de honrar seus compromissos em razão de sua hipossuficiência, circunstância que não se amolda ao caso em exame.

87 Esta resolução já se encontra revogada, tendo sido substituída pela Res. ANEEL 414/2010, conforme alterada.

87 Esta resolução já se encontra revogada, tendo sido substituída pela Res. ANEEL 414/2010, conforme alterada.

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Confira-se o seguinte julgado desta Corte:“ADMINISTRATIVO - FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA - FALTA DE PAGAMENTO - CORTE - MUNICÍPIO COMO CONSUMIDOR.1. A Primeira Seção já formulou entendimento uniforme, no sentido de que o não pagamento das contas de consumo de energia elétrica pode levar ao corte no fornecimento.2. Quando o consumidor é pessoa jurídica de direito público, a mesma regra deve lhe ser estendida, com a preservação apenas das unidades públicas cuja paralisação é inadmissível.3. Legalidade do corte para as praças, ruas, ginásios de esporte, etc.4. Recurso especial provido” (REsp 460.271/SP, Rel. Min. ElianaCalmon, DJ 6.5.2005).(...)Pelo que precede, com fundamento no §1º-A do artigo 557 do CPC, dou provimento ao recurso especial.88

Portanto, também no que tange a entes públicos, existem algumas decisões reconhecendo a possibilidade de corte do fornecimento de energia elétrica, em vista da necessidade de se preservar o equilíbrio econômico-financeiro da concessão.

Da relicitação de concessões

Em 5 de junho de 2017, foi editada a Lei nº 13.448, que estabelece diretrizes gerais para prorrogação e para relicitação dos denominados “contratos de parceria” nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário da Administração Pública federal. O referido diploma tem por objetivo efetivar as diretrizes traçadas pelo Programa de Parceira de Investimentos (PPI), especialmente no que toca ao dever de “assegurar a estabilidade e a segurança jurídica” (art. 2º, IV, da Lei nº 13.334/2016).

O instituto da relicitação, por sua vez, configura-se como hipótese de extinção consensual do contrato de concessão, em substituição ao procedimento administrativo de caducidade (previsto no art. 38 da Lei nº 8.987/1995).

88 STJ, RESP 757016, Min. Humberto Martins, DOU 09.08.2006

88 STJ, RESP 757016, Min. Humberto Martins, DOU 09.08.2006

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Por meio desse instituto, o concessionário inadimplente para com as suas obrigações, em vez de se submeter a um procedimento administrativo de extinção anômala do contrato de concessão culposa, entabula a sua extinção consensual com o poder concedente por intermédio da celebração de termo aditivo.

O referido instituto poderá ter lugar em duas hipóteses: a primeira delas, quando o concessionário não mantiver as condições subjetivas que autorizaram a sua contratação (seja pela perda de capacidade financeira, seja pela perda de capacidade de técnica), ou seja, quando viola o disposto no artigo 55, inciso III, da Lei nº 8.666/1993, de acordo com o qual o contratado tem a obrigação de “manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação”. A segunda hipótese tem lugar quando o concessionário incorre no descumprimento de suas obrigações contratuais, sejam as de investimentos, sejam as de desempenho. É possível cogitar, no que respeita à segunda hipótese, por exemplo, eventuais (i) descumprimentos das obrigações de regularidade e de continuidade do serviço público; (ii) descumprimentos das diretrizes regulamentares e fiscalizatórias do poder concedente; (iii) violações ao direito dos usuários; e (iv) não reversões de parcela das receitas extraordinárias para o atendimento do princípio da modicidade tarifária. Para tal desiderato, o concessionário terá de: (i) renunciar ao prazo para corrigir eventuais falhas e transgressões e para garantir o enquadramento previsto no §3º do artigo 38 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, caso seja posteriormente instaurado ou retomado o processo de caducidade.

A despeito da expectativa setorial, o Decreto n°9.957/2019 não contribuiu, de forma relevante, para o delineamento do regime jurídico do tema, se limitando a estabelecer os seus lindes procedimentais (razão pela qual o seu teor não será objeto de robustos aprofundamentos jurídicos neste curso). Destaca-se, por relevante, que o referido instrumento regulamentar previu que o processo de relicitação será instruído com as manifestações da agência reguladora competente e do Ministério da Infraestrutura, após o que será submetido à deliberação do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, ao qual caberá opinar, previamente à deliberação do Presidente da República, quanto à conveniência e à oportunidade da relicitação e sobre a qualificação do empreendimento no Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República.

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E previu que, das indenizações a serem pagas aos concessionários, serão abatidas as multas e outras somas de natureza não tributária devidas pelo contratado originário ao órgão ou à entidade competente e não adimplidas até o momento do pagamento da indenização; as outorgas devidas até a extinção do contrato de parceria e não pagas até o momento do pagamento da indenização; e o valor excedente da receita tarifária auferida pelo contratado originário em razão da não contabilização do impacto econômico-financeiro no valor da tarifa decorrente da suspensão das obrigações de investimentos não essenciais no momento da celebração do termo aditivo

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

FREITAS, Rafael Véras de. As prorrogações e a relicitação previstas na Lei nº 13.448/2017: um novo regime jurídico de negociação para os contratos de longo prazo. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 15, n. 59, p. 175-199, jul./set. 2017

Leitura complementar

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella de. Parcerias na administração pública. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, pp. 77 a 89.

GROTTI, Dinorah. O serviço público e a Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros.

MEDAUAR, Odete. Serviços públicos e serviços de interesse econômico geral. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

VI. AVALIAÇÃO

Caso Gerador 1:

Trata-se de lei estadual que estabeleceu gratuidade aos deficientes físicos pobres no transporte ferroviário de passageiros.

Inconformada, a concessionária pleiteia, com base no princípio do equilíbrio econômico-financeiro da concessão, direito a reajuste da tarifa.

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De outro lado, entidades de defesa dos usuários dos serviços públicos alegam que o princípio da modicidade tarifária e o dever constitucional de proteção aos que portadores de deficiência (art. 23, II; 24, XIV; 226; 227; 244) os objetivos de construção de uma sociedade solidária e de promoção do bem estar de todos (art. 3º, CF/88) conferem juridicidade à norma.

A seu ver, como deveria ser resolvida a controvérsia?

Caso Gerador 2:

Considere as seguintes situações:

1. João, morador de área pobre da cidade, não paga a conta de luz de sua humilde casa há três meses, desde que perdeu seu emprego.

2. Maria também não paga sua conta de luz há seis meses, pois, considerando o seu apertado orçamento, está priorizando a economia de recursos para reformar sua casa. Acredita que seu consumo, sendo relativamente baixo, não trará qualquer prejuízo à “portentosa” concessionária, que possui como acionistas controladores de fundos de investimento e pujantes grupos internacionais.

3. Adicionalmente, o município onde moram João e Maria tampouco paga a conta de energia elétrica de suas repartições há mais de um ano, pois o prefeito vem priorizando investimentos nas escolas do município, alegando não sobrar recursos para essa despesa. A prefeitura depende da energia elétrica não apenas para iluminar suas repartições, mas também para o funcionamento de escolas e hospitais.

4. A concessionária que presta o serviço público de transporte urbano na cidade, por força de contrato de concessão, tampouco paga a conta de luz há mais de seis meses, alegando que a receita arrecadada com a venda de passagens tem sido insufi ciente para cobrir todos os seus gastos, sendo que está priorizando o pagamento dos funcionários.

Como advogado da concessionária de energia elétrica que distribui energia elétrica para João, Maria, a prefeitura e a concessionária de transporte ferroviário da cidade, que medida você proporia à sua cliente em cada uma das situações acima relatadas? É possível cortar o fornecimento de energia elétrica em todas as hipóteses? A sua resposta permaneceria a mesma se, ao invés de energia elétrica, o serviço cujo pagamento se encontra em aberto fosse o de fornecimento de água e esgoto?

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VII. CONCLUSÃO DA AULA

Os direitos dos usuários de serviço público são previstos no art. 7º e 7-A da Lei nº 8.987/1995. Tais direitos são exigíveis diretamente da concessionária de serviço público responsável pela prestação daquele determinado serviço. Por sua vez, esta concessionária possui uma relação administrativa com o Poder Concedente que lhe concedeu a execução do serviço público por meio de um procedimento licitatório. Durante esta aula foi explorado conflitos que podem surgir diante da concomitância destas duas relações jurídicas distintas.

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AULA 11

I. TEMA

Extinção do contrato de concessão de serviço público.

II. ASSUNTO

Análise das hipóteses de extinção das concessões e suas consequências.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir as diferentes razões pelas quais pode ser encerrado o contrato de concessão. Apresentar o instituto da reversão dos bens do concessionário.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

INTRODUÇÃO:

Da extinção do contrato de concessão

O art. 35 da Lei nº 8.987/1995 determina as hipóteses de extinção do contrato de concessão:

Art. 35. Extingue-se a concessão por:I - advento do termo contratual;II - encampação;III - caducidade;IV - rescisão;V - anulação; eVI - falência ou extinção da empresa concessionária e falecimento ou incapacidade do titular, no caso de empresa individual.§ 1o. Extinta a concessão, retornam ao poder concedente todos os bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido no contrato.

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§ 2o. Extinta a concessão, haverá a imediata assunção do serviço pelo poder concedente, procedendo-se aos levantamentos, avaliações e liquidações necessários.§ 3o. A assunção do serviço autoriza a ocupação das instalações e a utilização, pelo poder concedente, de todos os bens reversíveis.§ 4o. Nos casos previstos nos incisos I e II deste artigo, o poder concedente, antecipando-se à extinção da concessão, procederá aos levantamentos e avaliações necessários à determinação dos montantes da indenização que será devida à concessionária, na forma dos arts. 36 e 37 desta Lei.

A extinção ordinária é aquela que ocorre no advento do termo final, quando ocorre a reversão ao poder público dos bens vinculados ao serviço. Adicionalmente, existem hipóteses em que o Estado poderá retomar antecipadamente a concessão, de forma transitória ou permanente. A primeira ocorrerá em casos de força maior, como greves, calamidades públicas, decretação do estado de defesa ou estado de sítio. A segunda terá lugar nos casos de anulação, encampação, caducidade, rescisão, distrato, renúncia e força maior.89

Sobre as hipóteses de anulação do contrato de concessão, observa Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

Esta é forma de desfazimento contratual genérica, que se dá quando os elementos do contrato administrativo não se conformam aos ditames legais. Tanto cabe à Administração quanto ao Judiciário declarar a nulidade que, como é sabido, atua ex tunc, devolvendo as partes à situação anterior ao contrato desfeito.Por outro lado, em razão da existência de cláusulas privadas insertas no contrato administrativo, no campo de aplicação da autonomia da vontade, será possível caracterizar-se também hipóteses de anulabilidade, nos casos previstos na lei civil, por incapacidade da parte privada ou emanação viciada da sua vontade.90

89 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 444.90 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 444.

89 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 444.

90 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 444.

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A encampação, por sua vez, diz respeito às hipóteses de encerramento do contrato de concessão por interesse público, sem que tenha havido inadimplemento da concessionária, estando prevista no art. 37 da Lei nº 9.897/1995:

Art. 37. Considera-se encampação a retomada do serviço pelo poder concedente durante o prazo da concessão, por motivo de interesse público, mediante lei autorizativa específica e após prévio pagamento da indenização, na forma do artigo anterior.

Veja-se que o dispositivo legal exige que haja lei específica autorizando a encampação, a qual somente pode ser efetivada após o pagamento da indenização ao particular.

A caducidade, ao revés, poderá ocorrer nos casos de inexecução total ou parcial, pela concessionária, dos deveres assumidos no contrato de concessão:

Art. 38. A inexecução total ou parcial do contrato acarretará, a critério do poder concedente, a declaração de caducidade da concessão ou a aplicação das sanções contratuais, respeitadas as disposições deste artigo, do art. 27, e as normas convencionadas entre as partes.§1o. A caducidade da concessão poderá ser declarada pelo poder concedente quando:I - o serviço estiver sendo prestado de forma inadequada ou deficiente, tendo por base as normas, critérios, indicadores e parâmetros definidores da qualidade do serviço;II - a concessionária descumprir cláusulas contratuais ou disposições legais ou regulamentares concernentes à concessão;III - a concessionária paralisar o serviço ou concorrer para tanto, ressalvadas as hipóteses decorrentes de caso fortuito ou força maior;IV - a concessionária perder as condições econômicas, técnicas ou operacionais para manter a adequada prestação do serviço concedido;

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V - a concessionária não cumprir as penalidades impostas por infrações, nos devidos prazos;VI - a concessionária não atender a intimação do poder concedente no sentido de regularizar a prestação do serviço; eVII - a concessionária não atender a intimação do poder concedente para, em 180 (cento e oitenta) dias, apresentar a documentação relativa a regularidade fiscal, no curso da concessão, na forma do art. 29 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.  (Redação dada pela Lei nº 12.767, de 2012)§2o. A declaração da caducidade da concessão deverá ser precedida da verificação da inadimplência da concessionária em processo administrativo, assegurado o direito de ampla defesa.§3o. Não será instaurado processo administrativo de inadimplência antes de comunicados à concessionária, detalhadamente, os descumprimentos contratuais referidos no § 1º deste artigo, dando-lhe um prazo para corrigir as falhas e transgressões apontadas e para o enquadramento, nos termos contratuais.§4o. Instaurado o processo administrativo e comprovada a inadimplência, a caducidade será declarada por decreto do poder concedente, independentemente de indenização prévia, calculada no decurso do processo.§5o. A indenização de que trata o parágrafo anterior, será devida na forma do art. 36 desta Lei e do contrato, descontado o valor das multas contratuais e dos danos causados pela concessionária.§6o. Declarada a caducidade, não resultará para o poder concedente qualquer espécie de responsabilidade em relação aos encargos, ônus, obrigações ou compromissos com terceiros ou com empregados da concessionária.

Em razão da relevância da atividade desenvolvida – serviço público – a concessionária somente pode rescindir o contrato por meio de ação judicial, devendo manter a prestação do serviço até o trânsito em julgado da decisão que lhe defira o pedido formulado, conforme se observa do art. 39, parágrafo único, da Lei nº 8.987/1995:

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  Art. 39. O contrato de concessão poderá ser rescindido por iniciativa da concessionária, no caso de descumprimento das normas contratuais pelo poder concedente, mediante ação judicial especialmente intentada para esse fim.Parágrafo único. Na hipótese prevista no caput deste artigo, os serviços prestados pela concessionária não poderão ser interrompidos ou paralisados, até a decisão judicial transitada em julgado.

Da intervenção

Nem sempre, todavia, o término imediato da concessão é a medida mais adequada à promoção do interesse público. Assim, quando as condições do caso concreto o recomendarem, o poder concedente poderá intervir na concessão, para que seja assegurada a adequação na prestação do serviço, bem como o fiel cumprimento das normas contratuais, regulamentares e legais pertinentes. Deverá ser aberto processo administrativo para apuração de eventuais irregularidades. A intervenção poderá, ao final, redundar na extinção da concessão.

Da reversibilidade dos bens objeto da concessão

Como já visto, a concessão corresponde a uma forma descentralizada de prestação de serviço público que se consubstancia por meio de um contrato administrativo, pelo qual o Poder Público concedente transfere a um concessionário a execução de determinado serviço público, sob sua efetiva regulação, mediante o pagamento de tarifas pagas pelos usuários.

Sobre a natureza jurídica da concessão, salienta Celso Antonio Bandeira de Mello, que a mesma constitui “uma relação jurídica complexa, composta de um ato regulamentar do estado que fixa unilateralmente condições de funcionamento, organização e modo de prestação do serviço, isto é, as condições por meio do qual o concessionário voluntariamente se insere debaixo da situação jurídica objetiva estabelecida pelo Poder Público, e de contrato, por cuja via se garante a equação econômico-financeira, resguardando os legítimos objetivos de lucro do concessionário”.91

91 Curso de Direito Administrativo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 632.

91 Curso de Direito Administrativo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 632.

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Destarte, em se tratando a concessão de um contrato administrativo, esta se formaliza por intermédio de um instrumento escrito, onde são fixadas as cláusulas indispensáveis à validade do negócio jurídico. Com efeito, deve o contrato de concessão obrigatoriamente enunciar o objeto, a área e o prazo da concessão; o preço do serviço; os critérios e procedimentos para reajuste e revisão das tarifas; os direitos e deveres dos usuários para desfrute das prestações; os direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária, inclusive os relacionados às previsíveis necessidades futuras de alteração e expansão do serviço; as penalidades contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária; os casos de extinção da concessão; os bens reversíveis; os critérios para o cálculo e a forma de pagamento das indenizações devidas à concessionária; as condições de prorrogação do contrato; a forma de prestação de contas da concessionária ao poder concedente; e, finalmente, o foro e o modo de solução das divergências contratuais.92

Deve-se observar que a legislação de regência, ao exigir a adoção de tais cláusulas no contrato de concessão, considerados essenciais para a sua formação, dispôs sobre a natureza do referido negócio jurídico, onde se constata a necessidade do Poder Público, mediante o exercício da sua função regulatória, ditar para o concessionário as condições pelas quais o serviço deva ser prestado ao usuário. Para tanto, necessário se faz que a organização e o funcionamento do serviço delegado, mesmo passando a ser executado por um particular, não percam as suas características de generalidade, essencialidade, continuidade, modicidade tarifária, relevância, de ser prestado de forma igual para todos os usuários e de ter, por fim, a satisfação de uma necessidade coletiva. Dentre as cláusulas essenciais do contrato encontram-se aquelas relativas aos bens reversíveis e aos critérios para o cálculo e a forma de pagamento das indenizações devidas à concessionária.

No que concerne às Concessionárias impõe-se, segundo o art. 31 da mencionada Lei nº 8.987/1995, manter em dia o inventário e o registro dos bens vinculados à concessão, e zelar pela integridade dos mesmos. Esse regramento tem a finalidade de zelar pelo real cumprimento dos objetivos da concessão, traçando, de forma rígida, comportamentos a serem adotados por ambos os contratantes, notadamente para que o serviço público concedido seja prestado de modo a alcançar os interesses da coletividade.

92 Lei 8.987/95, art. 23.

92 Lei 8.987/95, art. 23.

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Cumpre salientar que a reversão de bens constitui um preceito tradicional nas leis brasileiras referentes às concessões de serviços públicos. Nesse sentido, a normativa vigente estabelece que, extinta a concessão, retornam ao poder concedente todos os bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido no contrato.

A reversão pode ser definida como a entrega, pelo concessionário ao poder concedente, dos bens vinculados à concessão, por ocasião do fim do contrato, em virtude de sua destinação ao serviço público, de modo a permitir sua continuidade. Essa devolução constitui um corolário do contrato em que o concessionário se coloca transitoriamente em lugar do Poder Público concedente para a prestação de um serviço que incumbe a este. Assim é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “a reversão é a passagem ao poder concedente dos bens do concessionário aplicados ao serviço, uma vez extinta a concessão. Portanto, através da chamada reversão, os bens do concessionário, necessários ao exercício do serviço público, integram-se no patrimônio do concedente ao se findar a concessão”.93

O ponto nodal nesse campo de questões está em saber se a reversão atinge todos os bens que entraram no acervo da concessão. Com efeito, a divergência em torno da qualificação dos bens reversíveis é frequente, e isso se deve, na maioria das vezes, a pouca precisão dos editais de licitação e das cláusulas contratuais.

Pode-se assegurar que não há uma regra clara na legislação em vigor sobre os chamados bens reversíveis. Nada obstante, costuma-se conceituá-los como aqueles diretamente vinculados e necessários ao serviço público, que integrarão o patrimônio do concedente ao se findar a concessão.

Ressalte-se que os bens envolvidos na prestação do serviço objeto da concessão podem ser públicos ou privados, dependendo de sua origem. A esse propósito, ao discorrer sobre o regime dos bens de propriedade da empresa estatal que desempenha serviço público, mediante concessão ou permissão, doutrina Maria Sylvia Zanella di Pietro que ela possui um patrimônio próprio, embora tenha que se utilizar, muitas vezes, de bens pertencentes à pessoa pública política.

Assim, dentre os bens nele integrados, distinguem-se duas espécies: os que estão diretamente afetados à execução do serviço público e os que não estão afetados. Nesse sentido, esclarece a administrativista que, se os bens das concessionárias e permissionárias são afetados a um serviço público, eles têm que se submeter ao mesmo regime jurídico a que se submetem os bens pertencentes à União, Estados e Municípios, também afetados à realização de serviços públicos.

93 Celso Antônio Bandeira de Mello. Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta. RT, 1973, p.53.

93 Celso Antônio Bandeira de Mello. Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta. RT, 1973, p.53.

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Se fosse possível a essas empresas alienar livremente esses bens, se esses bens pudessem ser penhorados, hipotecados, adquiridos por usucapião, haveria uma interrupção no serviço público. E o serviço é considerado público precisamente porque atende a necessidades essenciais da coletividade. Daí a impossibilidade de sua paralisação, e daí a sua submissão a regime jurídico publicístico.

No caso do serviço público, é a pessoa pública política (União, Estado ou município) que detém a sua titularidade; a concessionária apenas o executa e não tem qualquer disponibilidade sobre ele, como também não tem a livre disponibilidade sobre os bens afetados ao serviço público.94

Releva assinalar que diversas são as opiniões acerca da reversibilidade dos bens privados na concessão de serviços públicos. Colhe-se, nesse sentido, o magistério de Luiz Alberto Blanchet:

A opinião predominante é no sentido de que somente os bens necessários à prestação do serviço concedido, e para esse fim efetivamente utilizados, deveriam ser revertidos ao poder concedente, conforme, aliás, entende também o Supremo Tribunal Federal. Este é o posicionamento mais condizente com o princípio da permanência, ou continuidade, do serviço, pois se os bens efetivamente utilizados na prestação adequada do serviço já são suficientes para preservar a continuidade de sua prestação, a reversão dos demais bens é supérflua, e de qualquer modo terá sido paga com recursos públicos antes da concessão (se já existentes ou adquiridos pelo poder concedente para utilização na prestação do serviço), durante (dissolvido o seu custo no valor da tarifa), ou ao final da concessão mediante indenização ao concessionário (se assim estiver previsto no contrato).95

De fato, no entender de Hely Lopes Meirelles, somente devem ser revertidos os bens vinculados à prestação do serviço, podendo a empresa dispor livremente sobre os demais bens não utilizados no serviço. Assim sustenta o jurista, com singular clareza que:

94 Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Natureza jurídica dos bens das empresas estatais, Revista PGE de São Paulo, dez. 1988: 173-185, p. 182 e ss.95 Luiz Alberto Blanchet. Concessão de Serviços Públicos. 2ª ed. Editora Juruá: 2000, p.102.

94 Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Natureza jurídica dos bens das empresas estatais, Revista PGE de São Paulo, dez. 1988: 173-185, p. 182 e ss.

95 Luiz Alberto Blanchet. Concessão de Serviços Públicos. 2ª ed. Editora Juruá: 2000, p.102.

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Segundo a doutrina dominante, acolhida pelos nossos Tribunais, a reversão só abrange os bens, asseguram sua adequada prestação. Se o concessionário, durante a vigência do contrato, formou um acervo à parte, embora provindo da empresa, mas desvinculado do serviço e sem emprego na sua execução, tais bens não lhe são acessórios e, por isso, não o seguem necessariamente, na reversão.96

A noção de vinculação dos bens à prestação dos serviços também está relacionada ao regime tarifário, pois que a rigor somente os bens empregados na sua execução são alcançados pela tarifa. Essa relação fica muito bem realçada na doutrina de José dos Santos Carvalho Filho: “... o objeto da reversão consiste apenas nos bens empregados pelo concessionário para a execução do serviço, e isso porque apenas esses foram alcançados pela projeção das tarifas. Os bens adquiridos com sua própria parcela de lucros, todavia, permanecem em seu poder, até mesmo porque situação contrária vulneraria o direito de propriedade, assegurado no art. 5º, XXII, da CF.”97

No direito pátrio, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal há muito consagra o entendimento de que só são reversíveis os bens efetivamente imprescindíveis ao contrato, conforme se constata do seguinte acórdão:

Serviço de bondes do Distrito Federal; Reversão à Prefeitura dos bens da companhia sua cessionária; Somente são reversíveis aqueles vinculados, próprios ou afetos à execução do serviço concedido, na conformidade do respectivo contrato, esclarecido por “termos de acordo” posteriores; Os adquiridos, portanto, pela concessionária, por aplicação de seus recursos, sem aquela destinação, são de sua livre propriedade e, conseqüentemente, não reversíveis. Recurso extraordinário por violação dos arts. 2º da lei de introdução ao código civil, 644 e 647 do código civil, 141, par. 2º, da constituição federal, e da lei nº. 1.533, de 1951; Improcedência das argüições. Revogabilidade de ato administrativo. Divergência inexistente, face à jurisprudência a respeito assentada. Argüição, sobre serôdia, descabida e violação da lei orgânica do distrito federal. Descabimento, conseqüente, do recurso; seu não conhecimento.98

96 Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 379. 97 José dos Santos Carvalho Filho. Manual de Direito Administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2003, p. 330. 98 RE 32865. Relator Min. EDGARD COSTA. Julgamento em 28/08/1956. Órgão Julgador 2ª Turma.

96 Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 379.

97 José dos Santos Carvalho Filho. Manual de Direito Administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2003, p. 330.

98 RE 32865. Relator  Min. EDGARD COSTA. Julgamento  em 28/08/1956. Órgão Julgador 2ª Turma.

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Outro aresto pode ser destacado no mesmo sentido: “Concessão de Serviço Público – Reversão – Contrato – Não cabe a reversão de bens não vinculados ao serviço concedido, que podem ser livremente alienados pelo concessionário, nos termos do contrato de concessão”.99

Portanto, somente os bens efetivamente atrelados ao contrato de concessão são passíveis de reversão. Não se pode olvidar que a reversão está sujeita a postulados fundamentais dos quais o poder concedente não pode afastar-se, podendo-se citar como exemplo o de que ninguém deve enriquecer-se às expensas de outro. Com base neste princípio, aliás, é que a Lei de Concessões (Lei nº 8.987/1995), no seu art. 36, se preocupou em prever o instrumento da indenização para o caso de investimentos feitos pelo concessionário referentes a bens reversíveis que não tenham sido amortizados.100

Cabe enfatizar que, em princípio, por ocasião do término do prazo contratual, todos os investimentos já devem ter sido amortizados ou depreciados. A esse respeito, recorre-se do magistério de Maria Sylvia Zanella di Pietro: “Nesse caso, extinta a concessão ou a permissão, pelo decurso do prazo inicialmente estipulado, estará, em princípio, coberto o valor da indenização. Se a amortização não tiver sido total, por qualquer razão, ou se a extinção se der antes do prazo estipulado, caberá ao poder concedente indenizar o concessionário pelo valor restante, ainda não amortizado. É o que estabelece o art. 36 da lei 8.987.”101

Com essas duas reservas, ao termo final do contrato de concessão o poder concedente pode recolher o acervo vinculado ao contrato em condições regulares, capazes de assegurar a continuidade do serviço, e o concessionário recobrar inteiramente o que fora investido durante o contrato na manutenção dos bens reversíveis.

Via de regra, o prazo contratual é dimensionado em função de uma previsão inicial dos investimentos necessários. Porém, num contrato de longa duração, há sempre a necessidade de se fazer novos e até mesmo imprevistos investimentos, inclusive em período próximo ao final da concessão, tudo com o objetivo, como diz a lei102, de “garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido”.

Destarte, os investimentos adicionais feitos pela concessionária podem ser insuscetíveis de amortização no prazo estabelecido inicialmente. Desse modo, somente se for garantido à concessionária o retorno da totalidade dos investimentos efetuados, ela os fará, atendendo com isso os interesses dos usuários.

99 RE 71727-RJ. Relator  Min. DJACI FALCÃO. Julgamento em 11/12/1979. Órgão Julgador  2ª TURMA.100 Art. 36. A reversão no advento do termo contratual far-se-á com a indenização das parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortiza-dos ou depreciados, que tenham sido realizados com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido. 101 Maria Sylvia Zanella di Pietro, in Parcerias na Administração Pública, 3ª ed., Atlas, 1999, p. 86. 102 Art. 36, Lei 8.987/1995.

99 RE 71727-RJ. Relator   Min. DJACI FALCÃO. Julgamento em  11/12/1979. Órgão Julgador  2ª TURMA.

100 Art. 36. A reversão no advento do termo contratual far-se-á com a indenização das parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados, que tenham sido realizados com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido.

101 Maria Sylvia Zanella di Pietro, in Parcerias na Administração Pública, 3ª ed., Atlas, 1999, p. 86.

102 Art. 36, Lei 8.987/1995.

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Vale notar, todavia, que apesar da lei dispor sobre o pagamento de indenização, no seu art. 36, “dos investimentos vinculados a bens reversíveis”, não esclareceu como e quando esse pagamento deverá ser efetuado. A Lei deixa implícito que, no caso de advento do termo contratual, o pagamento deverá ser feito após a extinção (§ 2º do art. 35), mas silencia totalmente quanto à forma.

Quanto à necessidade do instrumento contratual indicar os bens que reverterão ao Poder Público ao término da concessão, como determina o inciso X, do art. 23 da Lei de Concessões, importa assinalar que a regra também deve ser prevista no edital da licitação.103 É de notar-se, entretanto, que essa relação de bens constante do instrumento contratual não é taxativa, sendo certo que outros bens que venham a ser adquiridos pela concessionária - e que efetivamente venham a ser utilizados no serviço - também serão considerados reversíveis.

Nessa ordem de considerações, pode-se asseverar que novos bens adquiridos pela concessionária, efetivamente utilizados na prestação dos serviços, serão passíveis de reversão ao poder concedente. Vale lembrar que os investimentos feitos pela concessionária em bens vinculados ao serviço objeto do contrato devem ser depreciados durante o decorrer da concessão, na forma do contrato, sendo correto afirmar que, caso ao final desta não tenha sido possível amortizá-los em sua totalidade, deverá incidir a indenização dos mesmos pelo poder concedente. É importante mencionar também que, no caso de haver renovação dos bens arrolados no edital ou no contrato de concessão, e, por conseqüência, ser retirada do serviço qualquer dos referidos bens, esse procedimento importará na sua desafetação. Com efeito, se determinado bem não é mais utilizado na operação dos serviços, perde o seu caráter, para constituir bem privado da empresa.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

FREITAS, Rafael Véras de. A reversão nos contratos de concessão e seu regime jurídico-econômico. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 18, n. 70, p. 149-176, abr./jun. 2020.

103 É o que dispõe o art. 18, da Lei 8.987/1995: O edital de licitação será elaborado pelo poder concedente, observados, no que couber, os critérios e as normas gerais da legislação própria sobre licitações e contratos e conterá, especialmente: (...) X - a indicação dos bens reversíveis; XI - as características dos bens reversíveis e as condições em que estes serão postos à disposição, nos casos em que houver sido extinta a concessão anterior;

103 É o que dispõe o art. 18, da Lei 8.987/1995: O edital de licitação será elaborado pelo poder concedente, observados, no que couber, os critérios e as normas gerais da legislação própria sobre licitações e contratos e conterá, especialmente: (...) X - a indicação dos bens reversíveis; XI - as características dos bens reversíveis e as condições em que estes serão postos à disposição, nos casos em que houver sido extinta a concessão anterior;

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Leitura complementar

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. 4a ed. São Paulo: Atlas, 20025, pp. 89 a 96.

SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho de Arruda. O serviço telefônico fi xo e a reversão de bens. In: GUERRA, Sergio. Temas de direito regulatório. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004.

VI. AVALIAÇÃO

Caso Gerador:

A concessionária de serviços públicos ABC, quando assumiu a concessão de transporte ferroviário de passageiros, não fez um inventário dos bens recebidos do Estado — Poder Concedente. Desse modo, a ABC ainda não cumpriu o previsto na cláusula 9ª do contrato de concessão, de acordo com a qual constitui seu dever organizar e manter permanentemente atualizado o cadastro de bens e instalações vinculados aos respectivos serviços. Considerando que: (i) a cláusula 12 do contrato prevê expressamente que, extinta a concessão, operar-se-á a reversão de pleno direito dos bens vinculados à concessão; (ii) de acordo com o contrato de concessão, para efeito de reversão, consideram-se bens vinculados aqueles realizados pela Concessionária e efetivamente utilizados na prestação dos serviços; (iii) de acordo com o contrato de concessão e o edital, mais especificamente na parte que trata sobre a sistemática tarifária, a tarifa é composta de diversos fatores, dentre eles o tempo de vida útil dos trens, devendo, inclusive, ser substituídos; (iv) a Agência Reguladora já solicitou um posicionamento da Concessionária ABC acerca dos bens que entende reversíveis; e (v) os investimentos que a Concessionária vem fazendo para a implantação das novas estações e trens; indaga-se: quais os procedimentos administrativos que a ABC deve adotar, de forma que no futuro, quando do advento do termo final do contrato, já estejam consolidados todos os seus direitos relacionados aos bens vinculados à concessão?

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VII. CONCLUSÃO DA AULA

O contrato de concessão de serviço público pode ser extinto de forma natural, pelo mero decurso do tempo, ou de forma antecipada, por culpa da concessionária e/ou do Poder Concedente. A depender da causa da extinção do contrato, a instauração de procedimento administrativo prévio com direito de ampla defesa e contraditório e o pagamento de indenização podem ser requisitos para a regular extinção do contrato.

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AULAS 12 E 13

I. TEMA

Parcerias público-privadas.

II. ASSUNTO

Parcerias público-privadas: concessões patrocinadas e concessões administrativas.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar o instituto das parcerias público-privadas, distinguindo-as das concessões comuns.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

As parcerias público-privadas foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro, em âmbito federal, por intermédio da Lei nº 11.079, de 30.12.2004.104

O instituto das PPPs foi definido por Marçal Justen Filho nos seguintes termos:

contrato organizacional, de longo prazo de duração, por meio do qual se atribui a um sujeito privado o dever de executar obra pública e (ou) prestar serviço público, com ou sem direito à remuneração, por meio da exploração da infra-estrutura, mas mediante uma garantia especial e reforçada prestada pelo Poder Público, utilizável para a obtenção de recursos no mercado financeiro.105

Uma das finalidades das PPPs consiste em “antecipar investimentos que exigiriam muito tempo para serem feitos apenas com recursos públicos, dando ao parceiro privado a obrigação de adiantar recursos a serem recebidos no futuro, de uma vez ou em parcelas”.106

104 A terminologia “parceria público-privada” é utilizada, aqui, em seu sentido preciso. Não se pode desconsiderar, entretanto, a existência de outros institutos, anteriormente às PPPs, que, em distintos graus, permitem a participação da iniciativa privada na consecução de finalidades públicas ou socialmente relevantes. Nesse sentido, citem-se as sociedades de economia mista, as organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPS, as concessões tradicio-nais, os convênios, dentre outras. Ver, a respeito, ARAGÃO, Alexandre Santos de. As parcerias público-privadas – PPPs no direito brasileiro. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XVII – Parcerias público-privadas (coord. Flávio Amaral Garcia). Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 54.105 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 549.106 PASIS, Jorge Antonio Bozoti e BORGES, Luiz Ferreira Xavier. “A nova definição de parceria público-privada e sua aplicabilidade na gestão de infra--estrutura pública”. Revista do BNDES. Rio de Janeiro,dez 2003, v.10, n. 20, p. 184.

104 A terminologia “parceria público-privada” é utilizada, aqui, em seu sentido preciso. Não se pode desconsiderar, entretanto, a existência de outros institutos, anteriormente às PPPs, que, em distintos graus, permitem a participação da iniciativa privada na consecução de finalidades públicas ou socialmente relevantes. Nesse sentido, citem-se as sociedades de economia mista, as organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPS, as concessões tradicionais, os convênios, dentre outras. Ver, a respeito, ARAGÃO, Alexandre Santos de. As parcerias público-privadas – PPPs no direito brasileiro. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XVII – Parcerias público-privadas (coord. Flávio Amaral Garcia). Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 54.

105 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 549.

106 PASIS, Jorge Antonio Bozoti e BORGES, Luiz Ferreira Xavier. “A nova definição de parceria público-privada e sua aplicabilidade na gestão de infra-estrutura pública”. Revista do BNDES. Rio de Janeiro,dez 2003, v.10, n. 20, p. 184.

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Ou seja, cabe à iniciativa privada realizar primeiramente os investimentos e a obra necessários à colocação do serviço à disposição da população. Em princípio, apenas após estar o serviço em operação o poder público ingressa com recursos financeiros, seja complementando a tarifa ou remunerando integralmente o serviço prestado. Nesse sentido, dispõe o art. 7º da Lei nº 11.079/2004:

Art. 7o A contraprestação da Administração Pública será obrigatoriamente precedida da disponibilização do serviço objeto do contrato de parceria público-privada.Parágrafo único. É facultado à Administração Pública, nos termos do contrato, efetuar o pagamento da contraprestação relativa à parcela fruível de serviço objeto do contrato de parceria público-privada.

Desde 2012 a lei passou a admitir que o poder concedente aporte recursos ao parceiro privado antes da disponibilização do serviço, desde que para a realização de obras e aquisição de bens reversíveis:

Art. 6º. (...)§ 2o   O contrato poderá prever o aporte de recursos em favor do parceiro privado para a realização de obras e aquisição de bens reversíveis, nos termos dos incisos X e XI do caput do art. 18 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, desde que autorizado no edital de licitação, se contratos novos, ou em lei específica, se contratos celebrados até 8 de agosto de 2012.

As PPPs constituem espécies do gênero “concessão” e se dividem em PPPs patrocinadas e PPPs administrativas, conforme definidas no art. 2º, §§1º e 2º, da Lei nº 11.079/2004:

Art. 2o Parceria público-privada é o contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa.§1o. Concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.

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§2o. Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens.

A norma deixa claro que a característica que distingue as PPPs das demais concessões, disciplinadas pela Lei nº 8.987/1995 (denominadas pela lei “concessões comuns”), consiste na contraprestação pecuniária por parte da Administração Pública. Nesse sentido, dispõe o art. 2º, §3º, da Lei nº 11.079/2004:

§3o. Não constitui parceria público-privada a concessão comum, assim entendida a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando não envolver contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.

A doutrina critica a expressão “concessão administrativa”. Segundo José dos Santos Carvalho Filho107: “a expressão é vaga e de difícil inteligência. Ao que parece a lei pretendeu dar em concessão uma série de atividades tipicamente administrativas, para as quais precisará de investimentos do setor privado”.

As concessões comuns permanecem regidas pela Lei nº 8.987/1995, conforme expressa previsão do art. 3º, §2º, d Lei nº 11.079/2004:

§2o. As concessões comuns continuam regidas pela Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e pelas leis que lhe são correlatas, não se lhes aplicando o disposto nesta Lei.

O art. 2º, §4º, da Lei nº 11.079/2004, prevê algumas limitações à celebração das parcerias:

§ 4o É vedada a celebração de contrato de parceria público-privada:I – cujo valor do contrato seja inferior a R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais);II – cujo período de prestação do serviço seja inferior a 5 (cinco) anos; ou

107 Manual de Direito Administrativo. 23ª. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 465

107 Manual de Direito Administrativo. 23ª. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 465

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III – que tenha como objeto único o fornecimento de mão-de-obra, o fornecimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública.

O inciso I é alvo de ressalvas doutrinárias, uma vez que o valor de R$ 20 milhões mostra-se muito elevado para determinados Estados e Municípios da Federação. Assim, a doutrina critica o fato de que, a prevalecer o entendimento de que esse valor se aplica a toda e qualquer PPP, e não apenas às PPPs federais, os municípios muito dificilmente poderão utilizar esse instrumento inovador.108

Já o inciso III tem por objetivo impedir o desvirtuamento da finalidade das PPPs, uma vez que o seu intuito, como visto, é permitir à iniciativa privada adiantar investimentos que, em princípio, seriam realizados pelo poder público. Dessa forma, as PPPs voltam-se a objetivos que exigem a consecução de obras de grande vulto, não se aplicando para simples compras e prestações de serviços, as quais devem seguir sendo regidas pela lei geral de licitações (Lei nº 8.666/1993) e, quando relativos a serviços públicos, aplicando-se a Lei nº 8.987/1995, conforme acima visto.

As cláusulas dos contratos de PPPs encontram-se previstas no art. 5º da Lei nº 11.079/2004:

Art. 5o As cláusulas dos contratos de parceria público-privada atenderão ao disposto no art. 23 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, no que couber, devendo também prever:I – o prazo de vigência do contrato, compatível com a amortização dos investimentos realizados, não inferior a 5 (cinco), nem superior a 35 (trinta e cinco) anos, incluindo eventual prorrogação;II – as penalidades aplicáveis à Administração Pública e ao parceiro privado em caso de inadimplemento contratual, fixadas sempre de forma proporcional à gravidade da falta cometida, e às obrigações assumidas;III – a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária;IV – as formas de remuneração e de atualização dos valores contratuais;

108 Conforme observou Marcos Juruena Villela Souto, sobre o limite mínimo de R$ 20 milhões: “Não há dúvidas de que diversos municípios ficarão impossibilitados de adoção do mecanismo para aprimoramento da sua gestão” SOUTO, Marcos Juruena Villela. Parcerias público-privadas. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XVII – Parcerias público-privadas (coord. Flávio Amaral Garcia). Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 34.

108 Conforme observou Marcos Juruena Villela Souto, sobre o limite mínimo de R$ 20 milhões: “Não há dúvidas de que diversos municípios ficarão impossibilitados de adoção do mecanismo para aprimoramento da sua gestão” SOUTO, Marcos Juruena Villela. Parcerias público-privadas. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XVII – Parcerias público-privadas (coord. Flávio Amaral Garcia). Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 34.

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V – os mecanismos para a preservação da atualidade da prestação dos serviços;VI – os fatos que caracterizem a inadimplência pecuniária do parceiro público, os modos e o prazo de regularização e, quando houver, a forma de acionamento da garantia;VII – os critérios objetivos de avaliação do desempenho do parceiro privado;VIII – a prestação, pelo parceiro privado, de garantias de execução suficientes e compatíveis com os ônus e riscos envolvidos, observados os limites dos §§ 3o e 5o do art. 56 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e, no que se refere às concessões patrocinadas, o disposto no inciso XV do art. 18 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995;IX – o compartilhamento com a Administração Pública de ganhos econômicos efetivos do parceiro privado decorrentes da redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado; X – a realização de vistoria dos bens reversíveis, podendo o parceiro público reter os pagamentos ao parceiro privado, no valor necessário para reparar as irregularidades eventualmente detectadas.  §1o. As cláusulas contratuais de atualização automática de valores baseadas em índices e fórmulas matemáticas, quando houver, serão aplicadas sem necessidade de homologação pela Administração Pública, exceto se esta publicar, na imprensa oficial, onde houver, até o prazo de 15 (quinze) dias após apresentação da fatura, razões fundamentadas nesta Lei ou no contrato para a rejeição da atualização.§ 2o Os contratos poderão prever adicionalmente:I – os requisitos e condições em que o parceiro público autorizará a transferência do controle da sociedade de propósito específico para os seus financiadores, com o objetivo de promover a sua reestruturação financeira e assegurar a continuidade da prestação dos serviços, não se aplicando para este efeito o previsto no inciso I do parágrafo único do art. 27 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995;

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II – a possibilidade de emissão de empenho em nome dos financiadores do projeto em relação às obrigações pecuniárias da Administração Pública;III – a legitimidade dos financiadores do projeto para receber indenizações por extinção antecipada do contrato, bem como pagamentos efetuados pelos fundos e empresas estatais garantidores de parcerias público-privadas.

A legislação exige, ainda, que o vencedor da licitação para contratação por intermédio de PPP constitua sociedade de propósito específico (SPE) para o projeto, cujo controle não poderá ser alterado sem a prévia aprovação do poder público (art. 9º, Lei nº 11.079/2004). A licitação para contratação das PPPs deverá ser por meio da modalidade concorrência, e ser precedida de estudo técnico que comprove a conveniência e a oportunidade de contratação pela modalidade PPP, bem como que os recursos empenhados pelo poder público na parceria não levarão ao descumprimento das metas estatuídas pela legislação de responsabilidade fiscal (art. 10).

Conforme visto, a principal característica das PPPs consiste no fato de que o particular receberá parte ou toda sua remuneração do poder público.

Dessa forma, a lei buscou proteger o investidor contra o risco de inadimplemento da Administração. Nesse sentido, previu que os contratos de PPPs poderão ser protegidos por garantias outorgadas pelo poder público ao parceiro privado:

Art. 8o As obrigações pecuniárias contraídas pela Administração Pública em contrato de parceria público-privada poderão ser garantidas mediante:I – vinculação de receitas, observado o disposto no inciso IV do art. 167 da Constituição Federal;II – instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei;III – contratação de seguro-garantia com as companhias seguradoras que não sejam controladas pelo Poder Público;IV – garantia prestada por organismos internacionais ou instituições financeiras que não sejam controladas pelo Poder Público;

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V – garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa estatal criada para essa finalidade;VI – outros mecanismos admitidos em lei.

Assim, caso o poder público deixe de pagar a contraprestação pactuada, o parceiro privado poderá excutir a garantia. Especificamente no que se refere às PPPs da União, o art. 16 autorizou a União, suas autarquias e fundações públicas a participar, no limite global de R$ 6.000.000.000,00 em Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas – FGP, com a finalidade de prestar garantia de pagamento de obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais.

Conforme é sabido, em regra, as dívidas do Estado são pagas por meio de precatório, de forma que parte da doutrina vislumbra inconstitucionalidade na existência do fundo garantidor das PPPs, por ofensa ao princípio do precatório. Sustentando a constitucionalidade do Fundo, manifesta-se Fabiana Andrada Rudge:

A Lei nº 11.079/04, ao instituir o FGP na forma de um fundo de natureza privada e patrimônio próprio, separado do patrimônio dos cotistas, sujeito a direitos e obrigações próprios, criou, na verdade, uma nova espécie de entidade sem personalidade jurídica ou, conforme usualmente designado, uma universalidade de direito que, embora destituída de personalidade jurídica, goza de algumas faculdades que somente a esta são comuns, sendo que a gestão, a representação judicial e extrajudicial, no caso do FGP, ficam a cargo da instituição financeira controladora.A execução contra a Fazenda não se faz devida em razão da dívida que se visa quitar, mas, como regra, da natureza dos bens da pessoa executada. Assim, a partir do momento em que o patrimônio deixa de ser público e passa a ser privado, independentemente de visar garantir um interesse público, ele deixa de estar submetido à sistemática dos precatórios, passando a ser regido por normas comuns da execução civil.

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Mas isso, é claro, somente até o limite do montante integralizado pelos cotistas. As obrigações que não puderem ser garantidas pelo Fundo, por falta de liquidez deste, terão que ser executadas, ainda que consubstanciadas em título extrajudicial, diretamente em face do patrimônio do parceiro público, sujeitando-se, já então, como visto, às disposições da Constituição Federal (art. 100) e do Código de Processo Civil (arts. 730 e 731).109

Em 2012, foi promulgada a Lei n. 12.766/12, a qual alterou substancialmente o modo de aporte da contraprestação pecuniária pelo Poder Público. No texto antigo da Lei nº 11.079/2004, este repasse de capital só poderia ocorrer após a efetiva entrada em operação da atividade financiada pela PPP. Entretanto, com a medida provisória 575, convertida na Lei 12.766/12, passou-se a permitir que o repasse do Poder Público possa ocorrer ainda durante a fase de construção do empreendimento financiado, isto é, o repasse da contraprestação ocorrerá concomitantemente e de maneira proporcional a parcelas de execução da obra/serviço. Tal alteração propicia que os particulares contratados tenham mecanismos adequados para se financiarem imediatamente por meio de recursos advindos do Poder Público, de forma mais célere e sem os encargos cobrados pelas financiadoras no mercado.

Nesse sentido, o § 2º do art. 7º da lei passou a vigorar com a seguinte redação:

“§ 2º O aporte de recursos de que trata o § 2o  do art. 6o, quando realizado durante a fase dos investimentos a cargo do parceiro privado, deverá guardar proporcionalidade com as etapas efetivamente executadas.”

Além desta mudança, a mencionada medida provisória trouxe ainda alteração no tratamento tributário da contraprestação do Poder Público nas PPPs.

Outra mudança introduzida pela medida provisória foi o prazo para o particular contratado recorrer ao Fundo Garantidor de Parceria (FGP) na hipótese de inadimplemento do Poder Público. Com a nova redação dada ao §5º do art. 18 da lei 11.079/04, o prazo em referência passou a ser de 15 dias para crédito reconhecido pelo poder público, e de 45 dias após o vencimento para fatura emitida pelo particular, não aceita pelo Poder Público para reembolso, desde que não tenha havido motivação devida para a recusa:

109 BRAGA, Fabiana Andrada do Amaral Rudge. PPP: O Fundo Garantidor, a execução das garantias e a compatibilidade com o sistema constitucional dos precatórios. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XVII – Parcerias público-privadas (coord. Flávio Amaral Garcia). Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 238 e 239.

109 BRAGA, Fabiana Andrada do Amaral Rudge. PPP: O Fundo Garantidor, a execução das garantias e a compatibilidade com o sistema constitucional dos precatórios. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XVII – Parcerias público-privadas (coord. Flávio Amaral Garcia). Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 238 e 239.

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“§5º O parceiro privado poderá acionar o FGP nos casos de:I - crédito líquido e certo, constante de título exigível aceito e não pago pelo parceiro público após quinze dias contados da data de vencimento; eII - débitos constantes de faturas emitidas e não aceitas pelo parceiro público após quarenta e cinco dias contados da data de vencimento, desde que não tenha havido rejeição expressa por ato motivado.”

Por fim, a Lei 12.766/12 alterou o limite do comprometimento da receita corrente líquida dos Estados, Distrito Federal e dos municípios com as PPPs. O novo texto estipula uma ampliação neste limite de comprometimento orçamentário, estimulando, assim, que os entes federativos invistam na celebração de contratos de PPP. O limite de 3% previsto anteriormente passou a ser de 5% da receita corrente líquida, nos termos da nova redação do art. 28 da lei 11.079/04:

“Art. 28.  A União não poderá conceder garantia ou realizar transferência voluntária aos Estados, Distrito Federal e Municípios se a soma das despesas de caráter continuado derivadas do conjunto das parcerias já contratadas por esses entes tiver excedido, no ano anterior, a cinco por cento da receita corrente líquida do exercício ou se as despesas anuais dos contratos vigentes nos dez anos subsequentes excederem a cinco por cento da receita corrente líquida projetada para os respectivos exercícios.”

A Lei nº 13.334/2016 (conversão da Medida Provisória 727/2016), ao instituir o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), deixou em aberto a possibilidade de se adotarem diferentes instrumentos jurídicos nas parcerias entre poder público e iniciativa privada, nos termos do seu art. 1º, §2º, que definiu como contratos de parceria “a concessão comum, a concessão patrocinada, a concessão administrativa, a concessão regida por legislação setorial, a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público, a concessão de direito real e os outros negócios público-privados que, em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos, adotem estrutura jurídica semelhante” (grifou-se).

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VI. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

GUIMARÃES, Fernando Vernalha. A repartição de riscos na parceria público-privada.   Revista de Direito Público da Economia - RDPE, ano 18, n. 24, p. página inicial-página final, out./ dez. 2008

Leitura complementar

GARCIA, Flavio Amaral (coord.) Parcerias público-privadas. Revista de direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, v. XVII.

SOUTO, Marcos Juruena Vilela. Direito administrativo das parcerias. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005.

VII. AVALIAÇÃO

Caso Gerador 1:

A delegação do sistema carcerário à iniciativa privada poderia, em tese, ser uma solução economicamente eficiente para que o Poder Público equacionasse o problema que vem se agravando em alguns Estados da federação, no que concerne à segurança pública. Há um déficit de vagas para presos e que não pára de aumentar. Construir e operar as penitenciárias por meio de contratos de Parceria Público-Privada (PPP) poderia ser a solução.

Considerando que, no Brasil, a legislação sobre as PPPs não trata especificamente da contratação de presídios, indaga-se:

(i) é possível, à luz da normativa que rege a matéria, a adoção da PPP em termos de penitenciárias?

(ii) Se possível, e numa leitura atenta da legislação, que atividades poderiam ser executadas por parte do parceiro privado?

(iii) Como seria a contraprestação paga pela Administração Pública ao parceiro privado?

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Caso gerador 2:

Para se construir, operar e manter uma linha de metrô, quando se deve preferir o modelo de PPP ao de concessão comum? Quais devem ser as principais preocupações na estruturação de um projeto de PPP?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

As parcerias público-privadas constituem um interessante meio de partilha de custos e riscos entre o poder público e a iniciativa privada na gestão de serviços públicos. Por meio delas, o parceiro privado pode prestar serviços públicos aos usuários finais, recebendo parcela de sua remuneração do poder público (PPP-patrocinada), ou, ainda, pode prestar serviços à Administração Pública, sendo integralmente remunerado por esta (PPP-administrativa).

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AULA 14 – CONSÓRCIOS PÚBLICOS

I. TEMA

Consórcios públicos.

II. ASSUNTO

Conceito e análise do regime jurídico dos consórcios públicos.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir o regime jurídico aplicável aos consórcios públicos.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Conforme visto nas aulas anteriores, a prestação de serviços públicos à população constitui uma das principais finalidades da Administração Pública. Essa prestação pode ser feita diretamente pelos entes da Federação ou por entidades integrantes da Administração Pública Indireta. É neste contexto que surgem os consórcios públicos.

A Emenda Constitucional nº 19/98 acrescentou o art. 241 à Constituição Federal, estabelecendo que:

“Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.”

Conforme se infere do dispositivo acima, o consórcio público é constituído para que determinados entes que o integrem possam gerir cooperativamente e de forma associada a exploração de serviços públicos.

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Maria Sylvia Zanella Di Pietro observa a importância dos consórcios públicos ao afirmar que:

“Muitas vezes, o serviço que uma pessoa jurídica pública não pode ou tem dificuldades para executar sozinha torna-se possível ou mais eficiente mediante a conjugação de esforços.”110

Assim, o consórcio público é uma alternativa à exploração de serviços públicos pelos entes da Federação, que, de modo integrado e cooperado, podem prestá-los de maneira mais eficiente, maximizando os valores oriundos da alocação de recursos para essa prestação.

Natureza jurídica

A Lei nº 11.107/05 regulamenta, em caráter nacional, o art. 241 da Constituição Federal, e dispõe que os consórcios públicos podem ter natureza de direito público ou de direito privado, a depender da forma que se revestirem.

No caso de constituir associação pública, o consórcio adquirirá personalidade jurídica de direito público (art. 41, IV, do Código Civil), sendo considerado, neste caso, uma espécie de autarquia. Ao revés, se atender os requisitos da legislação civil (em especial aqueles destinados às associações privadas – art. 53 e seguintes do Código Civil), adquirirá personalidade jurídica de direito privado.

A definição da personalidade jurídica dos consórcios públicos influencia o regime a eles aplicável, mas não atinge a essência de seu objetivo, qual seja: a gestão associada de um serviço público por entes diversos da Federação.

Constituição e competência dos consórcios públicos

Nos termos da Lei nº 11.107/05, o consórcio público será constituído por contrato cuja celebração dependerá da prévia subscrição de protocolo de intenções pelo chefe do executivo de cada um dos entes da Federação.

São cláusulas necessárias do protocolo de intenções as que estabeleçam (art. 4º da Lei nº 11.107/05):

110 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 475.

110 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 475.

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I – a denominação, a finalidade, o prazo de duração e a sede do consórcio;II – a identificação dos entes da Federação consorciados;III – a indicação da área de atuação do consórcio;IV – a previsão de que o consórcio público é associação pública ou pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos;V – os critérios para, em assuntos de interesse comum, autorizar o consórcio público a representar os entes da Federação consorciados perante outras esferas de governo;VI – as normas de convocação e funcionamento da assembléia geral, inclusive para a elaboração, aprovação e modificação dos estatutos do consórcio público;VII – a previsão de que a assembléia geral é a instância máxima do consórcio público e o número de votos para as suas deliberações;VIII – a forma de eleição e a duração do mandato do representante legal do consórcio público que, obrigatoriamente, deverá ser Chefe do Poder Executivo de ente da Federação consorciado;IX – o número, as formas de provimento e a remuneração dos empregados públicos, bem como os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;X – as condições para que o consórcio público celebre contrato de gestão ou termo de parceria;XI – a autorização para a gestão associada de serviços públicos, explicitando:a) as competências cujo exercício se transferiu ao consórcio público;b) os serviços públicos objeto da gestão associada e a área em que serão prestados;c) a autorização para licitar ou outorgar concessão, permissão ou autorização da prestação dos serviços;d) as condições a que deve obedecer o contrato de programa, no caso de a gestão associada envolver também a prestação de serviços por órgão ou entidade de um dos entes da Federação consorciados;

110 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 475.

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e) os critérios técnicos para cálculo do valor das tarifas e de outros preços públicos, bem como para seu reajuste ou revisão; eXII – o direito de qualquer dos contratantes, quando adimplente com suas obrigações, de exigir o pleno cumprimento das cláusulas do contrato de consórcio público.

Ainda nos termos da Lei nº 11.101/05, o contrato de consórcio público é considerado celebrado com a ratificação, mediante lei, do protocolo de intenções. A propósito, é importante salientar que o contrato de consórcio exterioriza, como dito anteriormente, um acordo de vontades que se direciona para o mesmo sentido, razão pela qual o contrato de consórcio público é considerado um negócio jurídico multilateral, por meio do qual todos os entes participantes estão hierarquicamente na mesma posição e com os mesmos objetivos.

Desse modo, primeiramente, os chefes do Poder Executivo dos entes da federação devem subscrever o protocolo de intenções que regerá o consórcio e, em seguida, após a subscrição de seu teor, o Legislativo de cada um dos entes deverá ratificá-lo.

Para atingir seus objetivos, o consórcio público poderá realizar as determinações previstas no §1º do art. 2º da Lei 11.107/05:

Art. 2o Os objetivos dos consórcios públicos serão determinados pelos entes da Federação que se consorciarem, observados os limites constitucionais.§ 1o Para o cumprimento de seus objetivos, o consórcio público poderá:I – firmar convênios, contratos, acordos de qualquer natureza, receber auxílios, contribuições e subvenções sociais ou econômicas de outras entidades e órgãos do governo;II – nos termos do contrato de consórcio de direito público, promover desapropriações e instituir servidões nos termos de declaração de utilidade ou necessidade pública, ou interesse social, realizada pelo Poder Público; eIII – ser contratado pela administração direta ou indireta dos entes da Federação consorciados, dispensada a licitação.

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§ 2o Os consórcios públicos poderão emitir documentos de cobrança e exercer atividades de arrecadação de tarifas e outros preços públicos pela prestação de serviços ou pelo uso ou outorga de uso de bens públicos por eles administrados ou, mediante autorização específica, pelo ente da Federação consorciado.§ 3o Os consórcios públicos poderão outorgar concessão, permissão ou autorização de obras ou serviços públicos mediante autorização prevista no contrato de consórcio público, que deverá indicar de forma específica o objeto da concessão, permissão ou autorização e as condições a que deverá atender, observada a legislação de normas gerais em vigor.

Estes poderes concedidos aos consórcios públicos são instrumentos postos à disposição pela lei para que os objetivos para os quais eles foram criados sejam alcançados.

Contrato de rateio

O contrato de rateio constitui o instrumento contratual que regula a obrigação financeira dos entes consorciados no consórcio público. A Lei nº 11.107/05 determina que os entes consorciados, isolados ou em conjunto, bem como o consórcio público, são partes legítimas para exigir o cumprimento das obrigações previstas no contrato de rateio. Essa exigibilidade das obrigações assumidas é corolário natural da própria existência do consórcio público, eis que, sem o aporte de recursos, os objetivos assumidos pelo consórcio não poderão ser cumpridos.

A gravidade do não cumprimento das obrigações financeiras assumidas no contrato de rateio fez com que a Lei nº 11.107/05 previsse a possibilidade de exclusão do ente consorciado que não consignar, em sua lei orçamentária ou em créditos adicionais, as dotações suficientes para suportar as despesas assumidas por meio de contrato de rateio do consórcio público, após prévia suspensão.

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Contrato de programa

Nos termos do art. 13 da Lei nº 11.107/2005, “deverão ser constituídas e reguladas por contrato de programa, como condição de sua validade, as obrigações que um ente da Federação constituir para com outro ente da Federação ou para com consórcio público no âmbito de gestão associada em que haja a prestação de serviços públicos ou a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal ou de bens necessários à continuidade dos serviços transferidos”.

Nesse sentido, Marçal Justen Filho observa que o contrato de programa “disciplina o relacionamento entre os entes federativos titulares dos serviços públicos, inclusive para disciplinar eventual transferência de encargos, bens, recursos ou pessoal”. Dada a sua natureza eminente de convênio, a lei dispensou a licitação, nos termos do art. 24, XXVI, da Lei nº 8.666/93. No entanto, para Marçal Justen Filho, a situação seria enquadrável como sendo de inexigibilidade de licitação.111

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

BALTHAZAR, Ubaldo Cesar; PROBST, Marcos Fey. Dez anos da Lei nº 11.107/2005: avanços e incertezas em torno dos consórcios públicos 

Leitura complementar

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 131/134.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Reuniram-se o Presidente da República, o Governador do Estado do Rio de Janeiro e o Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro para discutir qual a melhor forma de coordenar a participação desses entes da federação na organização e realização dos Jogos Olímpicos de 2016. Foi-lhes sugerida, nesse sentido, a criação de um consórcio público.

111 Curso de direito administrativo. São Paulo: RT, 2016, pp. 310/211.

111 Curso de direito administrativo. São Paulo: RT, 2016, pp. 310/211.

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Informe se é possível a criação de um consórcio público para esse fim e, em caso positivo, informe as principais etapas para a sua criação válida. Quais seriam as vantagens da criação dessa espécie de entidade, no caso concreto?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Os consórcios públicos consistem em uma reunião de esforços entre distintos entes federativos com o objetivo de gerirem de forma associada determinados serviços públicos.

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UNIDADE IV. AGÊNCIAS REGULADORAS

AULAS 15 E 16

I. TEMA

Agências reguladoras I. Agências reguladoras e sua constitucionalidade. Características.

II. ASSUNTO

Regime jurídico das agências reguladoras.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar as características das agências reguladoras e as principais controvérsias atinentes à sua constitucionalidade.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Além de órgãos independentes (Ministério Público e Tribunal de Contas), criados pela Constituição Federal de 1988, — e que não se inserem na clássica teoria tripartite de separação de poderes — para melhor realizar o feixe de atribuições regulatórias da atividade econômica e social que lhe foi conferido pela Constituição de 1988 o Estado instituiu, por lei, entidades reguladoras conferindo-lhes competências para fiscalizar e ditar normas sobre determinados setores.

A função neutral regulatória — e seu modo de execução, por meio de órgãos com ou sem autonomia — não foi explicitada na Carta de 1988, sendo, portanto, decorrente de norma legal. Apenas no art. 20, XI, e no art. 177 da Constituição Federal está prevista a criação de órgãos reguladores para os serviços públicos de telecomunicações e para as atividades monopolizadas da indústria do petróleo. Ambas as previsões não constavam do texto original, decorrendo de emendas constitucionais.112

112 BRASIL. Emenda Constitucional nº 8 (15 de agosto de 1995): Art. 21, XI — explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou per-missão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais. Emenda Constitucional nº 9, de 9 de novembro de 1995: Art. 177, §2º: A lei a que se refere o §1º disporá sobre: I — a garantia do fornecimento dos derivados de petróleo em todo o território nacional; II — as condições de contratação; III — a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União.

112 BRASIL. Emenda Constitucional nº 8 (15 de agosto de 1995): Art. 21, XI — explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais. Emenda Constitucional nº 9, de 9 de novembro de 1995: Art. 177, §2º: A lei a que se refere o §1º disporá sobre: I — a garantia do fornecimento dos derivados de petróleo em todo o território nacional; II — as condições de contratação; III — a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União.

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Essas entidades, criadas por lei — e, repita-se, não estruturadas na Constituição Federal — surgiram no âmbito de um movimento de descentralização administrativa (e, não, mera desconcentração), revestidas de natureza jurídica autárquica especial.

A descentralização autárquica, depois de certo declínio, ressurgiu restaurada como a melhor solução encontrada para conciliar a atuação típica de Estado, no exercício de manifestações imperativas, de regulação e de controle.113

Estas atividades demandam personalidade jurídica de Direito Público, com a flexibilidade negocial, que é proporcionada por uma ampliação da autonomia administrativa e financeira, pelo afastamento das burocracias típicas da administração direta e, sobretudo, pelo relativo isolamento de suas atividades administrativas em relação à arena político-partidária.114

Como dito, a característica estrutural de rede ou policêntrica115 (não piramidal), não encontra detalhamento na Carta Constitucional de 1988, que apenas utilizou o termo “órgão regulador” para se referir à criação de autoridades regulatórias.

Em que pesem críticas formuladas116 à legislação infraconstitucional, parte da doutrina117 e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal118 não identificaram haver inconstitucionalidade na criação dessas entidades, vis-à-vis o disposto no art. 84 da Constituição Federal de 1988,119 que atribui ao Chefe do Poder Executivo a direção superior da Administração Pública.

A principal característica dessas entidades, sem prejuízo da diversidade das áreas que regulam, foi o afastamento da clássica estrutura hierárquica dos ministérios e da direta influência política do Governo, com certo grau de autonomia.120 Na lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “As funções atribuídas a esta categoria de agentes que exercem funções estatais neutrais, duplamente legitimados, tanto pelo mérito em seu acesso — que é uma legitimação originária — como pelo exercício político-partidariamente isento de suas funções — que vem a ser uma legitimação corrente — por atuarem no interesse direto da sociedade, o que lhes atribui essa legitimidade, e dotados de investidura estatal, o que lhes confere autoridade, vêm suprir as deficiências crônicas na percepção e no atendimento dos legítimos interesses gerais da sociedade pós-moderna. Assim, os agentes neutrais, robustecidos por várias atuações paralelas — mas, frise-se, sempre independentes daquelas a cargo dos tradicionais estamentos e órgãos estatais político-partidários — para obter esse resultado, se vão difundindo e se capilarizando por toda a sociedade, encontrando a sua mais autêntica e poderosa validação no exercício das funções constitucionalizadas de zeladoria, de controle e de promoção de justiça”

113 “Havia uma nova compreensão dos limites da expansão liderada pelo Estado. O setor público, limitado por uma crise fiscal e pela necessdade de estabilizar as finanças públicas, precisou reduzir as transferências de capital para empresas estatais. O governo encarava limites claros sobre seu poder de inves-timento. O que levou à busca de investidores privados que pudessem fornecer novos investimentos à infra-estrutura. Isso, por sua vez, exigia uma nova estrutura regulatória, com mudanças de uma grandeza que provavelmente não havia sido imaginada no princípio. Os objetivos iniciais da reforma regulatóriae da privatização eram facilitar as condições e atrair novos investimentos, inclusive do exterior, para aumentar a eficiência e reduzir a dívida pública. Porém, havia tensão entre o objetivo orçamentário de curto prazo e a necessidade de facilitar futuros investimentos e oferecer um cenário orientado ao crescimento” (ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO — OCDE. Relatório sobre a reforma regulatória no Brasil: fortalecendo a governança para o crescimento.Paris e Brasília, 2008).114 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 147.115 Sobre o uso desse termo, ver: BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionaliza-ção. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 22.116 Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, afi rma que a denominação “agências reguladoras” deve ter sido copiada dos Estados Unidos da América, presumivelmente pelo fato de se imaginar que uma terminologia corrente na organização administrativa estadunidense conferiria prestígio e certa grandiosidade às nossas autarquias. “Aliás, é sabido que países subdesenvolvidos muitas vezes têm umareverência servil para com os desenvolvidos. Será, talvez, o atavismo cultural dos colonizados” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administra-tivo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 150).117 Cf. nosso GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 99.118 Ver ADIN nº 1.494-RS.119 BRASIL. Constituição Federal (1988). Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: II — exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal.120 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Poder, direito e Estado: o direito administrativo em tempos de globalização. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 89.

113 “Havia uma nova compreensão dos limites da expansão liderada pelo Estado. O setor público, limitado por uma crise fiscal e pela necessdade de estabilizar as finanças públicas, preci-sou reduzir as transferências de capital para empresas estatais. O governo en-carava limites claros sobre seu poder de investimento. O que levou à busca de investidores privados que pudessem fornecer novos investimentos à infra--estrutura. Isso, por sua vez, exigia uma nova estrutura regulatória, com mu-danças de uma grandeza que prova-velmente não havia sido imaginada no princípio. Os objetivos iniciais da refor-ma regulatória e da privatização eram facilitar as condições e atrair novos in-vestimentos, inclusive do exterior, para aumentar a eficiência e reduzir a dívida pública. Porém, havia tensão entre o objetivo orçamentário de curto prazo e a necessidade de facilitar futuros investimentos e oferecer um cenário orientado ao crescimento” (ORGANI-ZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESEN-VOLVIMENTO ECONÔMICO — OCDE. Relatório sobre a reforma regulatória no Brasil: fortalecendo a governança para o crescimento. Paris e Brasília, 2008).

114 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 147.

115 Sobre o uso desse termo, ver: BINEN-BOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 22.

116 Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, afi rma que a denominação “agências reguladoras” deve ter sido copiada dos Estados Unidos da América, presumivelmente pelo fato de se imagi-nar que uma terminologia corrente na organização administrativa estaduni-dense conferiria prestígio e certa gran-diosidade às nossas autarquias. “Aliás, é sabido que países subdesenvolvidos muitas vezes têm uma reverência servil para com os desenvolvidos. Será, talvez, o atavismo cultural dos colonizados” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 150).

117 Cf. nosso GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 99.

118 Ver ADIN nº 1.494-RS.

119 BRASIL. Constituição Federal (1988). Art. 84. Compete privativamente ao Pre-sidente da República: II — exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a dire-ção superior da administração federal.

120 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Poder, direito e Estado: o direito admi-nistrativo em tempos de globalização. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 89.

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E essa autonomia está diretamente ligada a sua caracterização como última instância decisória na esfera administrativa.121

Surgimento das Agências Reguladoras brasileiras

O surgimento das Agências Reguladoras brasileiras, como já se teve a oportunidade de afirmar,122 começa, basicamente, paralelamente ao lançamento, pelo Governo Federal, do denominado Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, sob a motivação de reconstruir o Estado, de forma a resgatar sua autonomia financeira e sua capacidade de implementar políticas públicas.

Referindo-se às agências, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado previu que dois fatores inspiraram a formulação do projeto: a responsabilização por resultados e a autonomia de gestão. Assim, o objetivo inicial — não implementado na prática — focava na modernização da máquina pública, visando transformar autarquias e fundações, que exerciam atividades exclusivas do Estado (com o necessário poder de polícia), em agências autônomas.

O Plano previa que o projeto das agências autônomas desenvolver-se-ia em duas dimensões. Em primeiro lugar, seriam elaborados os instrumentos legais necessários à viabilização das transformações pretendidas, e um levantamento visando superar os obstáculos na legislação, normas e regulações existentes.

Em paralelo, seriam aplicadas as novas abordagens em algumas autarquias selecionadas, que se transformariam em laboratórios de experimentação.

Influxos estrangeiros absorvidos na criação das agências reguladoras no Brasil

É comum indagar quais foram os influxos que inspiraram os autores do modelo brasileiro de Agências Reguladoras.

Certamente, a ideia de descentralização advém do movimento estruturado no Reino Unido, denominado de New Public Management (NPM), adotado a partir da década de 80 visando modernizar a organização administrativa, isto é, esse termo foi utilizado para descrever a onda de reformas do setor público nesse período.

121 TÁCITO, Caio. Agências reguladoras da administração. Revista de Direito Administrativo, n. 221, p. 3, 4, jul./set. 2000.122 GUERRA, Sérgio. Introdução ao direito das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004.

121 TÁCITO, Caio. Agências reguladoras da administração. Revista de Direito Administrativo, n. 221, p. 3, 4, jul./set. 2000.

122 GUERRA, Sérgio. Introdução ao direito das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004.

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112FGV DIREITO RIO

Enrique Saravia123 leciona que nas décadas de 80 e 90, vários países — entre eles o Brasil — tentaram reformas que permitissem maior agilidade e flexibilidade à atividade estatal. Os diversos planos de melhora receberam a denominação comum de Nova Gerência Pública (New Public Management) e seus principais enunciados foram sintetizados num memorável relatório da OCDE (1996). Tratava-se de medidas destinadas a dotar a Administração Pública de um comportamento gerencial que aliviasse a máquina ou o aparelho do Estado. Muitos países avançaram por esse caminho e se registraram melhoras efetivas em muitos deles. No entanto, o modelo funcionou melhor nos países de democracias e economias evoluídas e estáveis. Não aconteceu idêntico fenômeno nos países com fortes desigualdades sociais e regionais, com pesados endividamentos e déficits fiscais, ou com sistemas políticos em transição.

O programa do NPM124 pode ser resumido, de forma objetiva, nas seguintes medidas: (i) diminuir o tamanho do Estado, inclusive do efetivo do pessoal; (ii) privatização de empresas e atividades; (iii) descentralização de atividades para os governos subnacionais; (iv) terceirização de serviços públicos (outsorcing); (v) regulação de atividades conduzidas pelo setor privado; (vi) transferência de atividades sociais para o terceiro setor; (vii) desconcentração de atividades do governo central; (viii) separação de atividades de formulação e implementação de políticas públicas; (ix) estabelecimento de mecanismos de aferição de custos e avaliação de resultados; (x) autonomização de serviços e responsabilização de dirigentes; (xi) flexibilização da gestão orçamentária e financeira das agências públicas; (xii) adoção de formas de contratualização de resultados; (xiii) abolição da estabilidade dos funcionários e flexibilização da relação de trabalho no serviço público.125

No bojo das reformas administrativas, trazidas nos governos Margareth Thatcher e John Major, foram criadas diversas entidades regulatórias.

Destaque-se a Office of Telecomunication (OFTEL), na área de telecomunicações, criada no ano de 1984; a Office of Gas (OFGAS), para regular o setor de gás, e a Office of Eletricity Regulation (OFFER), regulando o setor de eletricidade.

Estas entidades, após fusão no ano de 1999, transformaram-se na Office of Gas and Eletricity Markets (OFGEM), abrangendo os setores de gás e eletricidade.126

123 SARAVIA. Governança social..., op. cit., p. 22.124 “Nas décadas de 1980 e 1990, vários movimentos, abrigados sob o guarda-chuva da New Public Management (NPM), especialmente nos países anglo-saxões, propunham soluções para a administração pública. Pontos centrais se referiam à adaptação e à transferência dos conhecimentos gerenciais de-senvolvidos no setor privado para o público, pressupondo a redução do tamanho da máquina administrativa, uma ênfase crescente na competição e no aumento de sua efi ciência” (PECI, Alketa; PIERANTI, Octavio Penna; RODRIGUES, Silvia. Governança e New Public Management: convergências e contradições no contexto brasileiro. O&S, v. 15, n. 46, jul./set. 2008).125 COSTA. Frederico Lustosa da. Reforma do estado e contexto brasileiro: crítica do paradigma gerencialista. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 154.126 Disponível em: <www.ofgem.gov.uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.

123 SARAVIA. Governança social..., op. cit., p. 22.

124 “Nas décadas de 1980 e 1990, vários movimentos, abrigados sob o guarda-chuva da New Public Management (NPM), especialmente nos países anglo-saxões, propunham soluções para a administração pública. Pontos centrais se referiam à adaptação e à transferência dos conhecimentos gerenciais desenvolvidos no setor privado para o público, pressupondo a redução do tamanho da máquina administrativa, uma ênfase crescente na competição e no aumento de sua efi ciência” (PECI, Alketa; PIERANTI, Octavio Penna; RODRIGUES, Silvia. Governança e New Public Management: convergências e contradições no contexto brasileiro. O&S, v. 15, n. 46, jul./set. 2008).

125 COSTA. Frederico Lustosa da. Reforma do estado e contexto brasileiro: crítica do paradigma gerencialista. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 154.

126 Disponível em: <www.ofgem.gov.uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.

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113FGV DIREITO RIO

Foram criadas a Water Services Regulation Authority (OFWAT)127 para o setor voltado aos recursos hídricos; a Office of Rail Regulation (ORR),128 do sistema ferroviário, a Civil Aviation Authority (CAA),129 para o setor aéreo, a Office of Fair Trading (OFT),130 atuando na defesa da concorrência, e uma agência responsável por loterias, a Office of the National Lottery (OFLOT), sucedida pela National Lottery Commission.131

Registre-se, ainda, a influência estadunidense quanto à estruturação dos entes regulatórios, propriamente ditos. Com efeito, os Estados Unidos da América experimentaram um amplo e contínuo desenvolvimento da regulação setorial desde 1887, quando surgiu a Interstate Commerce Commission, com competência regulatória do transporte ferroviário interestadual.

A Independent Regulatory Commission é um ente estatal autônomo, dirigido por um colegiado composto por Commissioners eleitos pelo Chefe do Poder Executivo, e investidos para exercer o múnus público por meio de mandato fixo. Desse modo, esses dirigentes só podem ser exonerados em caso de falta grave.

Os mandatos dos Commissioners variam, sendo certo que sempre são determinados por prazos escalonados, de forma que os mandatos não sejam coincidentes. A nomeação do Chairman, que preside o órgão colegiado, compete ao Chefe do Poder Executivo, com prévia aprovação do Senado Federal.

Por essas e outras características, verifica-se que, do ponto de vista estrutural (e não quanto à ideia de adotar, na Administração Pública, mecanismos gerenciais), o paradigma das Agências Reguladoras brasileiras é a Independent Regulatory Commission norte-americana, que não se confunde com a denominada administrative agency,132 similar às nossas agências executivas, adiante examinadas.

A administrative agency é um ente criado por lei e dotado de personalidade jurídica de Direito Público, com a atribuição de dirigir, de forma descentralizada, um programa ou uma missão governamental. Essas entidades gozam de autonomia funcional, estando subordinadas hierarquicamente ao Presidente e ao Ministro de Estado responsável pela pasta a qual a agência está vinculada.

127 Disponível em: <www.ofwat.gov.uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.128 Disponível em: <www.rail-reg.gov.uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.129 Disponível em: <www.caa.co.uk>.Acesso em: 13 dez. 2010.130 Disponível em: <www.oft.gov.uk>.Acesso em: 13 dez. 2010.131 Disponível em: <www.natlotcomm.gov.uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.132 Jean-Jacques Daigre leciona que as Agências Reguladoras francesas também tiveram como paradigma as agências norte-americanas. Por suas palavras: “Les autorités de régulation sont nés de la transposition des agences américaines et en particulier, dans le secter fi nancier, de la SEC, la Securities and Exchange Comission, mise em place à la suite de 1929, pour marquer la politique nouvelle engagée par Roosevelt”(DAIGRE, Jean-Jacques. Ombres et lumières: examen critique du fonctionnement des autorités administratives indépendantes. In: CHARETTE, Hervé de. Le con-trôle démocratique des autorités administratives independántes à caractère économique. Paris: Economica, 2002. p. 5).

127 Disponível em: <www.ofwat.gov.uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.

128 Disponível em: <www.rail-reg.gov.uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.

129 Disponível em: <www.caa.co.uk>.Acesso em: 13 dez. 2010.

130 Disponível em: <www.oft.gov.uk>.Acesso em: 13 dez. 2010.

131 Disponível em: <www.natlotcomm.gov.uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.

132 Jean-Jacques Daigre leciona que as Agências Reguladoras francesas também tiveram como paradigma as agências norte-americanas. Por suas palavras: “Les autorités de régulation sont nés de la transposition des agences américaines et en particulier, dans le secter fi nancier, de la SEC, la Securities and Exchange Comission, mise em place à la suite de 1929, pour marquer la politique nouvelle engagée par Roosevelt” (DAIGRE, Jean-Jacques. Ombres et lumières: examen critique du fonctionnement des autorités administratives indépendantes. In: CHARETTE, Hervé de. Le contrôle démocratique des autorités administratives independántes à caractère économique. Paris: Economica, 2002. p. 5).

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Natureza jurídica das Agências Reguladoras

As Agências Reguladoras brasileiras são autarquias de regime especial, possuindo autonomia em relação ao Poder Público.

Já foram criadas no Brasil, sob essa forma e nomenclatura, onze agências reguladoras federais: ANEEL, ANP, ANATEL, ANVISA, ANA, ANS, ANCINE, ANTT, ANTAQ, ANAC e ANM, cada uma com as suas especificidades, adiante examinadas.

O regime especial — i.e. diferenciado — significa que à entidade autárquica são conferidos privilégios específicos, visando aumentar sua autonomia comparativamente com as autarquias comuns, sem infringir os preceitos constitucionais pertinentes a essas entidades de personalidade pública.133

Além das atribuições de competência regulatória, com a ampliação das funções normativas e judicantes da Administração Pública indireta, pode-se congregar os seguintes elementos confirmadores da autonomia das Agências Reguladoras: organização colegiada; impossibilidade de exoneração ad nutum dos seus dirigentes; autonomia financeira e orçamentária, e, por último, a independência decisória.134

Autonomia regulatória

As Agências Reguladoras são entidades autônomas em relação ao poder central, sendo, em termos,135 detentora de independência decisória.

Em prol da autonomia regulatória das Agências, Vital Moreira136 aponta diversas razões. A primeira seria a separação entre a política e a economia, de modo que a economia não permaneça nas mãos do Governo; a segunda seria a garantia de estabilidade e segurança no quadro regulatório (inamovibilidade do mandato dos reguladores), de modo a não depender do ciclo eleitoral, mantendo a confiança dos agentes regulados quanto à estabilidade do ambiente regulatório. Segue sustentando, como razão para a autonomia, o favorecimento do profissionalismo e a neutralidade política, mediante o recrutamento de especialistas profissionais, em vez de correligionários políticos dos governantes. Tem-se, ainda, a separação do Estado-empresário do Estado regulador, com o indispensável tratamento isonômico entre os operadores públicos e privados.

133 Nesse sentido, ver: MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 315.134 Luís Roberto Barroso bem resume a questão ao denotar que “é desnecessário com efeito, enfatizar que as agências reguladoras somente terão condições de desempenhar adequadamente seu papel se ficarem preservadas de ingerências externas inadequadas, especialmente por parte do Poder Público, tanto no que diz respeito a suas decisões político-administrativas quanto a sua capacidade financeira. Constatadaa evidência, o ordenamento jurídico cuidou de estruturá-las como autarquias especiais, dotadas de autonomia político-administrativa e autonomia econômica--financeira” (BARROSO, Luis Roberto. Apontamentos sobre as agências reguladoras. In: MORAES, Alexandre de (Org.). Agências reguladoras.São Paulo: Atlas, 2002. p. 121).135 Cf. Alexandre Santos de Aragão quando adverte que a qualificação de independente conferida a muitas das agências reguladoras deve ser enten-dida em termos. Em nenhum país em que foram instituídas possuem independência em sentido próprio, mas apenas uma maior ou menor autonomia, dentrodos parâmetros fi xados pelo ordenamento jurídico (ARAGÃO, Alexandre Santos de. As agências reguladoras independentes e a separação dos poderes: uma contribuição da teoria dos ordenamentos setoriais. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 786, p. 11-56, abr. 2001).136 MOREIRA, Vital. Por uma regulação ao serviço da economia de mercado e do interesse público: a “declaração de condeixa”. Revista de Direito Público da Economia — RDPE, Belo Horizonte, n. 01, p. 252, 253, jan./mar. 2003.

133 Nesse sentido, ver: MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 315.

134 Luís Roberto Barroso bem resume a questão ao denotar que “é desnecessário com efeito, enfatizar que as agências reguladoras somente terão condições de desempenhar adequadamente seu papel se ficarem preservadas de ingerências externas inadequadas, especialmente por parte do Poder Público, tanto no que diz respeito a suas decisões político-administrativas quanto a sua capacidade financeira. Constatada a evidência, o ordenamento jurídico cuidou de estruturá-las como autarquias especiais, dotadas de autonomia político-administrativa e autonomia econômica-financeira” (BARROSO, Luis Roberto. Apontamentos sobre as agências reguladoras. In: MORAES, Alexandre de (Org.). Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002. p. 121).

135 Cf. Alexandre Santos de Aragão quando adverte que a qualificação de independente conferida a muitas das agências reguladoras deve ser entendida em termos. Em nenhum país em que foram instituídas possuem independência em sentido próprio, mas apenas uma maior ou menor autonomia, dentro dos parâmetros fi xados pelo ordenamento jurídico (ARAGÃO, Alexandre Santos de. As agências reguladoras independentes e a separação dos poderes: uma contribuição da teoria dos ordenamentos setoriais. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 786, p. 11-56, abr. 2001).

136 MOREIRA, Vital. Por uma regulação ao serviço da economia de mercado e do interesse público: a “declaração de condeixa”. Revista de Direito Público da Economia — RDPE, Belo Horizonte, n. 01, p. 252, 253, jan./mar. 2003.

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Destaca a “blindagem” contra a captura regulatória, mediante a criação de reguladores afastados das constrições próprias da luta partidária e do ciclo eleitoral, proporcionando melhores condições de resistência às pressões dos regulados e, por fim, a garantia do autofinanciamento, de modo que a entidade reguladora potencialize a sua autonomia em relação ao Governo e aos regulados.

Nesse sentido, o art. 3° da Lei n°13.848/2019 dispõe que “A natureza especial conferida à agência reguladora é caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos, bem como pelas demais disposições constantes desta Lei ou de leis específicas voltadas à sua implementação”.

Não é por outra razão que o art. 9° da Lei n°9.986/2000, alterado pela Lei n°13.848/2019 (Lei das Agências Reguladoras Federais), dispõe que o membro do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada das entidades reguladoras somente perderá o mandato: (i) em caso de renúncia; (ii) em caso de condenação judicial transitada em julgado ou de condenação em processo administrativo disciplinar. Por intermédio da detença de tais competências, pretende-se blindar as agências reguladoras de influências políticas episódicas.

Analisando, em apertada síntese, esses traços que garantem a autonomia e independência decisória das Agências Reguladoras, pode-se trazer as seguintes observações.

A organização dessas entidades autárquicas estruturou-se de forma que as suas decisões definitivas observem, em regra, a forma colegiada. O Conselho Diretor é composto pelo Diretor-Presidente e demais Diretores, com quorum deliberativo por maioria absoluta (art. 7, §1°, da Lei n°13.848/2019). As nomeações desses dirigentes são feitas por mandatos por prazos certos e não coincidentes,137 havendo impossibilidade de exoneração ad nutum.138

A autonomia financeira e orçamentária está assegurada nas leis instituidoras de cada Agência Reguladora, em que pese o contingenciamento de recursos (retardamento ou inexecução de parte da programação de despesa prevista na Lei Orçamentária) que essas autarquias vêm experimentando nos últimos anos.

137 Celso Antônio Bandeira de Mello é radicalmente contra a garantia dos mandatos dos dirigentes das Agências Reguladoras por prazo posterior ao fim do mandato do Chefe do Poder Executivo que o nomeou. “Isso seria o mesmo que engessar a liberdade administrativa do futuro Governo. Ora, é da essência da República a temporariedade dos mandatos, para que o povo, se o desejar, possa eleger novosgovernantes com orientações políticas e administrativas diversas do Governo precedente” (BANDEIRA DE MELLO. Curso..., cit., p. 153).138 Ver ADIn nº 1.949-RS, em que essa matéria foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul. Vale registrar sobre o tema que a Lei nº 9.986/00, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras, padronizou a forma de escolhados seus dirigentes.

137 Celso Antônio Bandeira de Mello é radicalmente contra a garantia dos mandatos dos dirigentes das Agências Reguladoras por prazo posterior ao fim do mandato do Chefe do Poder Executivo que o nomeou. “Isso seria o mesmo que engessar a liberdade administrativa do futuro Governo. Ora, é da essência da República a temporariedade dos mandatos, para que o povo, se o desejar, possa eleger novos governantes com orientações políticas e administrativas diversas do Governo precedente” (BANDEIRA DE MELLO. Curso..., cit., p. 153).

138 Ver ADIn nº 1.949-RS, em que essa matéria foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul. Vale registrar sobre o tema que a Lei nº 9.986/00, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras, padronizou a forma de escolha dos seus dirigentes.

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Os recursos das Agências Reguladoras advêm, dentre outras fontes, principalmente das denominadas taxas de fiscalização ou regulação pagas por aqueles que exercem as respectivas atividades econômicas reguladas, de modo a que inexista dependência de recursos do orçamento do Tesouro.139Todavia, ao menos em âmbito federal, essas têm sido recolhidas à Conta Única do Tesouro Nacional, não havendo garantia de que os recursos sejam efetivamente repassados às agências reguladoras.140

Finalmente, a independência decisória representa o estabelecimento do Conselho Diretor da Agência Reguladora como última instância decisória, haja vista a sua vinculação administrativa (e não subordinação hierárquica) ao respectivo Ministério.141

Vale ressaltar que ato normativo de 2009, expedido pela Advocacia-Geral da União (AGU), provocou certa polêmica envolvendo a autonomia das Agências Reguladoras.

A AGU é instituição prevista na Constituição Federal de 1988 (art. 131), cuja missão envolve a representação judicial e extrajudicial da União, seja por via direta ou por órgãos vinculados, além das atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

Por meio da edição da Lei Complementar nº 73/93, foram disciplinadas as funções desse órgão, envolvendo: (i) o controle interno da legalidade dos atos administrativos; (ii) a fixação da interpretação da Constituição, das leis, tratados e demais atos normativos; (iii) a unificação da jurisprudência administrativa, com a solução de controvérsias entre órgãos jurídicos da Administração Federal, bem como que a edição de enunciados de súmula administrativa resultante da jurisprudência iterativa dos tribunais.

Em 2002, por meio da Lei nº 10.480/02, foi criada a Procuradoria-Geral Federal, órgão vinculado à AGU, a quem compete a representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais. A partir de então, foram integrados à estrutura da AGU esses serviços de representação judicial e consultoria jurídica.

Nesse contexto, a AGU editou a Portaria nº 164, de 20 de fevereiro de 2009, por meio da qual se atribuiu à Adjuntoria de Contencioso da Procuradoria Federal142 a representação judicial de autarquias e fundações públicas federais junto aos tribunais superiores (STF e STJ) e na Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais.

139 Acerca das questões orçamentárias em cotejo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, em que se discutiu os limites de atuação do Poder Executivo em relação aos órgãos constitucionalmente independentes, ver o debate travado na ADIN nº 2.238-MC/DF.140 Sobre o tema, ver GUERRA, Sergio; SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro (org.). Autonomia financeira das agências reguladoras. Curitiba: Juruá, 2016.141 Nas Agências Reguladoras Estaduais e Municipais, a vinculação administrativa, logicamente, será às respectivas Secretarias.142 A Adjuntoria de Contencioso é o órgão de direção da Procuradoria-Geral Federal, dirigida pelo Adjunto de Contencioso, com as atribuições de coordenação e orientação das atividades de contencioso das Procuradorias Regionais Federais, Procuradorias Federais nos Estados, Procuradorias Seccionais Federais e Escritórios de Representação da PGF. Exerce a representação judicial das 157 autarquias e fundações públicas federais e da União (esta por delegação de competência, na defesa de contribuições previdenciárias nas ações trabalhistas) junto ao Supremo Tribunal Federal, Tribunais Superiores e Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais e, extraordinariamente, junto a qualquer outro juízo ou Tribunal. Exerce também, competências delegadas para autorizar acordos e aprovar análises de precatórios entre outras (Disponível em: <http://www.agu.gov.br>. Acesso em: 15 dez. 2010).

139 Acerca das questões orçamentárias em cotejo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, em que se discutiu os limites de atuação do Poder Executivo em relação aos órgãos constitucionalmente independentes, ver o debate travado na ADIN nº 2.238-MC/DF.

140 Sobre o tema, ver GUERRA, Sergio; SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro (org.). Autonomia financeira das agências reguladoras. Curitiba: Juruá, 2016.

141 Nas Agências Reguladoras Estaduais e Municipais, a vinculação administrativa, logicamente, será às respectivas Secretarias.

142 A Adjuntoria de Contencioso é o órgão de direção da Procuradoria-Geral Federal, dirigida pelo Adjunto de Contencioso, com as atribuições de coordenação e orientação das atividades de contencioso das Procuradorias Regionais Federais, Procuradorias Federais nos Estados, Procuradorias Seccionais Federais e Escritórios de Representação da PGF. Exerce a representação judicial das 157 autarquias e fundações públicas federais e da União (esta por delegação de competência, na defesa de contribuições previdenciárias nas ações trabalhistas) junto ao Supremo Tribunal Federal, Tribunais Superiores e Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais e, extraordinariamente, junto a qualquer outro juízo ou Tribunal. Exerce também, competências delegadas para autorizar acordos e aprovar análises de precatórios entre outras (Disponível em: <http://www.agu.gov.br>. Acesso em: 15 dez. 2010).

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Assim, a representação judicial dos interesses das Agências Reguladoras, pela AGU, passou a ser considerada medida que, em tese, pode macular a autonomia desses entes autárquicos, haja vista que, originalmente, as Agências Reguladoras eram representadas em juízo por procuradores dos seus próprios quadros.

Por fim, é de se destacar que, de acordo com o disposto no art. 3, §2°, da Lei nº13.848/2019 (Lei das Agências Reguladoras Federais), essa autonomia das agências reguladoras é caracterizada, sob o aspecto administrativo, pelo exercício das seguintes competências: (i) autorização para a realização de concursos públicos; (i) provimento dos cargos autorizados em lei para seu quadro de pessoal, observada a disponibilidade orçamentária; (iii) alterações no respectivo quadro de pessoal, fundamentadas em estudos de dimensionamento, bem como alterações nos planos de carreira de seus servidores; (iv) conceder diárias e passagens em deslocamentos nacionais e internacionais e autorizar afastamentos do País a servidores da agência; e (iv) celebrar contratos administrativos e prorrogar contratos em vigor relativos a atividades de custeio, independentemente do valor.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Considerações iniciais sobre a Lei Geral das Agências Reguladoras. Revista de Direito Público da Economia - RDPE, ano 18, n. 71, p. página inicial-página final, jul./ set. 2020. 

Leitura complementar

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

GUERRA, Sergio. Introdução ao direito das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004.

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VI. AVALIAÇÃO

Caso Gerador:

A ANVISA baixou uma Resolução da Diretoria Colegiada impedindo a comercialização de artigos de conveniência por farmácias e drogarias. Lei estadual de São Paulo, no entanto, veio a disciplinar a atividade de drogarias e permite, dentre outros, a comercialização de leite em pó, pilhas, colas e cartões telefônicos por parte das drogarias e farmácias. Como deve ser solucionado o conflito normativo narrado?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

As agências reguladoras exercem função de ordenação dos mercados por elas regulados, tendo competências normativas, fiscalizatórias e sancionadoras. Para exercerem de modo eficiente a função que lhes é conferida, tais entidades gozam de personalidade jurídica de direito público e possuem autonomia reforçada.

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AULA 17

I. TEMA

Agências reguladoras. Funções.

II. ASSUNTO

Agências Reguladoras

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar as diferentes funções exercidas pelas agências reguladoras, especialmente as funções normativa, fiscalizatória e sancionadora, o que exige uma releitura do princípio da separação dos poderes. Em seguida, será iniciado o estudo da função normativa.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

As agências reguladoras exercem funções de Estado

As funções de Estado são aquelas dispostas na Constituição e nas leis, as quais devem necessariamente ser observadas e executadas pela Administração Pública, independentemente de quem seja o partido ou governante na chefia do Poder Executivo. As funções de governo, por sua vez, consistem nas prioridades concretas do governante democraticamente eleito para a implementação durante o seu governo e dizem respeito à orientação política e governamental que se pretende imprimir a um setor, sempre e em qualquer caso submetidas às políticas de Estado.143

As agências reguladoras desenvolvem funções de Estado, pois são criadas em decorrência da previsão genérica de regulação estatal da economia exposta no art. 174 da Constituição (além das previsões constitucionais específicas de criação da ANATEL e da ANP), exercendo função eminentemente pública.

143 Conforme observa Floriano de Azevedo Marques Neto, as políticas de governo “são os objetivos concretos que um determinado governante eleito pretende ver impostos a um dado setor da vida econômica ou social. Dizem respeito à orientação política e governamental que se pretende imprimir a um setor”. Agências reguladoras: instrumentos do fortalecimento do Estado. Texto disponível em http://www.abar.org.br, acesso em 15.02.2005.

143 Conforme observa Floriano de Azevedo Marques Neto, as políticas de governo “são os objetivos concretos que um determinado governante eleito pretende ver impostos a um dado setor da vida econômica ou social. Dizem respeito à orientação política e governamental que se pretende imprimir a um setor”. Agências reguladoras: instrumentos do fortalecimento do Estado. Texto disponível em http://www.abar.org.br, acesso em 15.02.2005.

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Tal constatação já foi, inclusive, reconhecida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao julgar medida cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade, na qual se discutia a constitucionalidade da previsão, constante da Lei nº 9.986/2000, de contratação de pessoal técnico para as agências, no regime de emprego público, portanto, mediante contratos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho. Naquela ocasião, assim se manifestou o ministro Marco Aurélio Mello, ao reconhecer a inconstitucionalidade de tal norma:

Inegavelmente, as agências reguladoras atuam como poder de polícia, fiscalizando, cada qual em sua área, atividades reveladoras de serviço público, a serem desenvolvidas pela iniciativa privada (...) Está-se diante de atividade na qual o poder de fiscalização, o poder de polícia, fazem-se com envergadura ímpar, exigindo, por isso mesmo, que aquele que a desempenhe sinta-se seguro, atue sem receios outros, e isso pressupõe a ocupação de cargo público (...) [próprio] àqueles que desenvolvam atividades exclusivas de Estado (...).144

Assim, restou reconhecida, em sede liminar, que a natureza dos serviços desenvolvidos pelo pessoal técnico das agências mostrava-se incompatível com o regime contratual da CLT, devendo, portanto, esses servidores serem regidos pelo regime jurídico estatutário. Nesse sentido, em 2004, veio a ser editada nova lei, pondo fim à controvérsia, dispondo o art. 6º da Lei nº 10.871, de 24.05.2004:

Art. 6º. O regime jurídico dos cargos e carreiras referidos no art. 1o desta Lei é o instituído na Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, observadas as disposições desta Lei.145

Além disso, nos termos das diversas leis que autorizaram a sua criação, as agências reguladoras brasileiras possuem natureza de autarquias em regime especial, sendo-lhes, portanto, aplicáveis todas as prerrogativas inerentes às autarquias em geral, tais como personalidade jurídica e patrimônio próprios, ausência de subordinação ao Ministério ao qual se vinculam, autonomia financeira e orçamentária, além de terem por finalidade “executar atividades típicas da Administração que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada”, conforme a redação do art. 5º, I, do Decreto-Lei º 200/1967.

144 Ação direta de inconstitucionalidade nº 2.310-1-DF, in Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio ed Janeiro”, v. IX, pp. 433 a 435.145 O art. 1º, caput, da Lei nº 10.871, determina ser a lei aplicável às autarquias especiais intituladas agências reguladoras: “Art. 1o Ficam criados, para exercício exclusivo nas autarquias especiais denominadas Agências Reguladoras, referidas no Anexo I desta Lei, e observados os respectivos quantitativos, os cargos que compõem as carreiras de: (...)”

144 Ação direta de inconstitucionalidade nº 2.310-1-DF, in Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio ed Janeiro”, v. IX, pp. 433 a 435.

145 O art. 1º, caput, da Lei nº 10.871, determina ser a lei aplicável às autarquias especiais intituladas agências reguladoras: “Art. 1o Ficam criados, para exercício exclusivo nas autarquias especiais denominadas Agências Reguladoras, referidas no Anexo I desta Lei, e observados os respectivos quantitativos, os cargos que compõem as carreiras de: (...)”

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Principais funções

Em breve síntese, pode esquematizar as atribuições das agências reguladoras da seguinte forma: função executiva, função normativa e função judicante (ou de solução de controvérsias).

Alguns autores sistematizam o tema de forma diversa, como, por exemplo:146

Poder normativo: poder de editar comandos gerais para o setor regulado, obedecido o princípio da legalidade. Existe grande controvérsia quanto à extensão dos poderes normativos das agências reguladoras, a qual será apresentada adiante.

Poder de fiscalização: atribuição para monitorar o setor, prevenindo e reprimindo o desrespeito ao ordenamento jurídico setorial.

Poder de sanção: competência para impor sanções em caso de descumprimento das normas aplicáveis ao setor.

Poder de conciliação: capacidade de conciliar ou mediar interesses de operadores regulados, consumidores isolados ou grupos de interesses homogêneos, ou ainda interesses de agentes econômicos que se relacionam com o setor regulado no âmbito da cadeia produtiva.

Poder de resolução de controvérsias: atribuição para dirimir conflitos. A maioria das leis que dispõem sobre as agências setoriais lhes conferiu competência para dirimir conflitos no âmbito administrativo entre os agentes do setor. Por exemplo, no caso da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, a previsão encontra-se no art. 3º, V, da Lei nº 9.427/1996, o qual dispõe:

Art. 3º Além (...), compete à ANEEL: V – dirimir, no âmbito administrativo, as divergências entre concessionárias, autorizadas, produtores independentes e autoprodutores, bem como entre esses agentes e seus consumidores.

Poder de recomendação: prerrogativa de orientar, subsidiar ou informar o poder político sobre as características do setor, recomendando medidas ou decisões a serem editadas no âmbito da política pública.

146 Vide, a respeito, MARQUES NETO, Floriano. “Agências reguladoras: instrumentos do fortalecimento do Estado”. Texto disponível em http://www.abar.org.br, acesso em 15.02.2005.

146 Vide, a respeito, MARQUES NETO, Floriano. “Agências reguladoras: instrumentos do fortalecimento do Estado”. Texto disponível em http://www.abar.org.br, acesso em 15.02.2005.

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Função normativa das agências reguladoras

A possibilidade de as agências reguladoras emanarem atos normativos abstratos causa certa perplexidade na doutrina, especialmente à luz do princípio constitucional da legalidade147, positivado no art. 37, caput, da Constituição, e das competências privativas do chefe do Poder Executivo previstas no art. 84, II e IV, da Constituição Federal:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:(...)II – exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal;(...)IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;(...)”

Dessa forma, os limites do poder das agências reguladoras de gerar normas abstratas e gerais são alvo de profunda controvérsia. Para Maria Sylvia Zanella di Pietro:

A função normativa que exercem não pode, sob pena de inconstitucionalidade, ser maior do que a exercida por qualquer outro órgão administrativo ou entidade da administração indireta. Elas nem podem regular matéria não disciplinada em lei, porque os regulamentos autônomos não têm fundamento constitucional no direito brasileiro, nem podem regulamentar leis, porque essa competência é privativa do Poder Executivo e, se pudesse ser delegada, essa delegação teria que ser feita pela autoridade que detém o poder regulamentar e não pelo legislador. As únicas normas que podem estabelecer têm de produzir efeitos internos, apenas, dirigidos à própria agência, ou podem dizer respeito às normas que se contêm no edital de licitações, sempre baseadas em leis e regulamentos prévios.148

147 Sobre o princípio da legalidade e atuação da Administração Pública, expõe DIÓGENES GASPARINI: “o princípio da legalidade, resumido na propo-sição suporta a lei que fizeste, significa estar a Administração Pública, em toda a sua atividade, presa aos mandamentos da lei, deles não se podendo afastar, sob pena de invalidade do ato e responsabilidade de seu autor. Qualquer ação estatal sem o correspondente calço legal, ou que exceda ao âmbito demarcado pela lei, é injurídica e expõe-se à anulação”. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 6148 Direito administrativo, 12a ed. São Paulo: Atlas, pp. 391/392.

147 Sobre o princípio da legalidade e atuação da Administração Pública, expõe DIÓGENES GASPARINI: “o princípio da legalidade, resumido na proposição suporta a lei que fizeste, significa estar a Administração Pública, em toda a sua atividade, presa aos mandamentos da lei, deles não se podendo afastar, sob pena de invalidade do ato e responsabilidade de seu autor. Qualquer ação estatal sem o correspondente calço legal, ou que exceda ao âmbito demarcado pela lei, é injurídica e expõe-se à anulação”. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 6

148 Direito administrativo, 12a ed. São Paulo: Atlas, pp. 391/392.

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Por outro lado, alguns autores defendem que “a atribuição de funções normativas a órgãos de formação não eletiva, ou de composição mista, não constitui violação do princípio democrático. Deve, no entanto, ser reconhecida dentro daquele princípio fundamental, que encerra em si mesmo os demais, exprimindo o balanceamento das manifestações da vontade política com a garantia dos direitos, com respeito às razões de eficiência administrativa”149.

A partir dos debates doutrinários, observam Alexandre Santos de Aragão e Patrícia Sampaio que a possibilidade e os limites da função normativa das agências reguladoras “deve ser compreendida à luz da finalidade do exercício da atividade administrativa, a qual reside no cumprimento das competências constitucional e legalmente consagradas às autoridades. Nessa perspectiva, entende-se a feição normativa do poder de polícia como instrumento legítimo de concretização desses objetivos. Não se trata, em qualquer hipótese, de autoridades administrativas exercendo competência legislativa ou quase-legislativa (no Brasil, a figura do regulamento autônomo mostra-se excepcional - art. 84, VI, da Constituição Federal), mas sim de atividade normativa inserida no bojo das competências administrativas do Estado e, por conseguinte, subordinada, sempre, à legalidade”150.

De todo modo, há de se atentar para os riscos de desvios ou exercício abusivo dessa competência. Conforme salienta Sérgio Guerra: “na regulação normativa (portarias, resoluções, etc.), o dano pode decorrer de uma intervenção desnecessária ou inadequada no subsistema regulado. Como dito, diante da imperatividade dos freios e contrapesos, são legítimas as restrições regulatórias à livre iniciativa privada, desde que razoáveis e proporcionais. Por isso, a regulação normativa deve ser praticada por meio de uma interpretação voltada para frente, orientada na ponderação de interesses, custos, ônus e benefícios da ação regulatória.”151

É possível concluir que as agências reguladoras têm o poder-dever de exercer uma função normativa secundária, desde que observadas as normas hierarquicamente superiores. Essa função normativa das agências reguladoras não é primária, e sim secundária, haja vista que, entre nós, a função normativa primária é precípua do Poder Legislativo, sendo exercida de forma extravagante pelo Poder Executivo, seja por meio de medidas provisórias ou delegação legislativa152.

149 NICODEMO, Silvia.Gli atti normativi delle autoritá independenti. Milão: CEDAM, 2002, p. 305.150 ARAGÃO, Alexandre Santos de e SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. Omissão no exercício do poder normativo das agências e a concorrência desleal. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de (coord.) O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 547.151 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 350 e 351.152 Veja-se como devem ser os procedimentos para as delegações legislativas (Art. 68 da Constituição de 1988): As leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional. § 1º - Não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, nem a legislação sobre: I - organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; II - nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; III - planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos. § 2º - A delegação ao Presidente da República terá a forma de resolução do Congresso Nacional, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício. § 3º - Se a resolução determinar a apreciação do projeto pelo Congresso Nacional, este a fará em votação única, vedada qualquer emenda.

149 NICODEMO, Silvia.Gli atti normativi delle autoritá independenti. Milão: CEDAM, 2002, p. 305.

150 ARAGÃO, Alexandre Santos de e SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. Omissão no exercício do poder normativo das agências e a concorrência desleal. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de (coord.) O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 547.

151 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 350 e 351.

152 Veja-se como devem ser os procedimentos para as delegações legislativas (Art. 68 da Constituição de 1988): As leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional. § 1º - Não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, nem a legislação sobre: I - organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; II - nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; III - planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos. § 2º - A delegação ao Presidente da República terá a forma de resolução do Congresso Nacional, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício. § 3º - Se a resolução determinar a apreciação do projeto pelo Congresso Nacional, este a fará em votação única, vedada qualquer emenda.

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Diogo de Figueiredo Moreira Neto denota que além da modalidade tradicional da regulamentação secundária, que produz efeitos introversos, como característica dos órgãos administrativos, existem aquelas tipicamente regulatórias, que se caracterizam por seus efeitos extroversos sobre as matérias deslegalizadas e na estrita medida em que o tenham sido.153 Esse mesmo jurista, ao examinar os limites da competência normativa outorgada às entidades reguladoras autônomas de serviços públicos, adverte que ultrapassar tais limites, ao acrescentar às normas reguladoras critérios político-administrativos onde não deveriam existir, caracteriza invasão de poderes que são próprios à esfera das decisões do Poder Legislativo e propositadamente retirados dos agentes da burocracia administrativa direta.154

A bem da verdade, a polêmica acerca da função normativa das agências reguladoras se insere numa discussão com maior profundidade, que envolve a adaptação das agências reguladoras ao sistema tripartite oitocentista, subsumido no princípio da separação e equilíbrio entre os poderes estatais.155

Pelas normas regulatórias se permite o exercício da capacidade técnica dessas entidades descentralizadas (tecnicismo) para dispor, com maior densidade, sobre as matérias que lhe competem para equilibrar o subsistema regulado, diversamente das leis que, editadas pelo Poder Legislativo, assumem caráter genérico e sem concretude. Nas palavras de Marcos Juruena Villela Souto:

o legislador não tem, necessariamente, o conhecimento técnico nem a proximidade dos fatos a editar a norma, que, por isso, deve se manter num plano de generalidade, para abrigar todas as situações; não é, assim, viável que adentre em detalhes; ademais, as normas sobre o funcionamento do mercado tendem a ser normas técnicas, econômicas e financeiras, que mudam com a evolução tecnológica ou comercial; se a lei cuidasse de cada detalhe, estaria constantemente desatualizada e provocaria a freqüente necessidade de movimentação do Poder Legislativo.156

153 MOREIRA NETO, Diogo. Direito regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, pp.108-109.154 Agência nacional de vigilância sanitária: natureza jurídica, competência normativa, limites dos poderes regulatórios. Revista de Direito Adminis-trativo, Rio de Janeiro, v. 215, pp. 71-83, jan./mar. 1999.155 Sobre a separação de poderes, diz Alexandre Aragão: “Qualquer que seja a nomenclatura adotada, em todos os países em que as comissões, agências ou autoridades administrativas independentes de regulação foram instituídas, as maiores discussões jurídicas geradas disseram e dizem respeito à sua compatibilidade com o princípio da separação de poderes. É curioso notar como a disparidade dos sistemas jurídicos não impediu que esta questão possuísse uma impressionante perenidade e homogeneidade, e, mais, que a solução a ela dada nos E.U.A., na Europa ou no Brasil foi pela constitucionalidade destas entidades reguladoras, o que implica em uma nova leitura do princípio da separação de poderes”. Notas de atualização da obra de Bilac Pinto. Regulamentação efetiva os serviços de utilidade pública. 2.ed. atualizada por Alexandre Santos de Aragão. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 119. Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, em suas observações acerca do tema em comento, aduz que “quase diretamente relacionada com a dificuldade que a figura da autoridade reguladora independente tem com a tripartição dos Poderes, emerge a questão da suposta colidência com o princípio da legalidade. (...) O fato é que a atuação destes órgãos reguladores reflete a crise vivida pelo princípio da legalidade; crise, esta, que não decorre meramente do fenômeno do surgimento das agências, mas da própria profusão de fontes normativas. Aqui parece se colocar a chave para superar a crítica, sempre presente, relativa à suposta contraposição entre a nova regulação estatal e o princípio da legalidade. A oposição não está entre as competências das agências e a figura da lei como fonte necessária das competências do agente público. O que parece estar em questão é a motriz da legalidade”. MARQUES NETO, Floriano Marques. A nova regulação estatal e as agências independentes. Direito administrativo econômico. Carlos Ari Sundfeld (org.). São Paulo: Malheiros, 2000, p. 94. Acerca das discussões ocorridas sobre a Separação de Poderes no período da Revolução Francesa, inclusive com profunda análise dos Cadernos de 1789, ver a obra de Léon Duguit, originalmente publicada em 1893. La separación de poderes y la asamblea nacional de 1789. Madri, Centro de Estudios Constitucionales, 1996, p. 9, ss.156 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, p. 46.

153 MOREIRA NETO, Diogo. Direito re-gulatório. Rio de Janeiro: Renovar, pp.108-109.

154 Agência nacional de vigilância sani-tária: natureza jurídica, competência normativa, limites dos poderes regula-tórios. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 215, pp. 71-83, jan./mar. 1999.

155 Sobre a separação de poderes, diz Alexandre Aragão: “Qualquer que seja a nomenclatura adotada, em todos os países em que as comissões, agências ou autori-dades administrativas independentes de regulação foram instituídas, as maiores discussões jurídicas geradas disseram e di-zem respeito à sua compatibilidade com o princípio da separação de poderes. É curio-so notar como a disparidade dos sistemas jurídicos não impediu que esta questão possuísse uma impressionante perenidade e homogeneidade, e, mais, que a solução a ela dada nos E.U.A., na Europa ou no Brasil foi pela constitucionalidade destas entidades reguladoras, o que implica em uma nova leitura do princípio da sepa-ração de poderes”. Notas de atualização da obra de Bilac Pinto. Regulamentação efetiva os serviços de utilidade pública. 2.ed. atualizada por Alexandre Santos de Aragão. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 119. Floriano Peixoto de Azevedo Mar-ques Neto, em suas observações acerca do tema em comento, aduz que “quase diretamente relacionada com a dificulda-de que a figura da autoridade reguladora independente tem com a tripartição dos Poderes, emerge a questão da suposta colidência com o princípio da legalidade. (...) O fato é que a atuação destes órgãos reguladores reflete a crise vivida pelo princípio da legalidade; crise, esta, que não decorre meramente do fenômeno do surgimento das agências, mas da própria profusão de fontes normativas. Aqui pare-ce se colocar a chave para superar a crítica, sempre presente, relativa à suposta con-traposição entre a nova regulação estatal e o princípio da legalidade. A oposição não está entre as competências das agências e a figura da lei como fonte necessária das competências do agente público. O que parece estar em questão é a motriz da legalidade”. MARQUES NETO, Floriano Marques. A nova regulação estatal e as agências independentes. Direito admi-nistrativo econômico. Carlos Ari Sundfeld (org.). São Paulo: Malheiros, 2000, p. 94. Acerca das discussões ocorridas sobre a Separação de Poderes no período da Re-volução Francesa, inclusive com profunda análise dos Cadernos de 1789, ver a obra de Léon Duguit, originalmente publicada em 1893. La separación de poderes y la asamblea nacional de 1789. Madri, Centro de Estudios Constitucionales, 1996, p. 9, ss.

156 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Di-reito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, p. 46.

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Contudo, parte da doutrina sustenta que não se trata de “delegação”, haja vista que a função reguladora – incluindo parcela normativa – não compete originariamente ao Poder Legislativo.157 Se por um lado se admite como constitucional a função normativa prevista expressamente nas leis de criação das agências reguladoras,158 entende-se, por outro, que a função regulamentar de competência do presidente da República não se confunde com a função reguladora das agências reguladoras, que, em parte, se consubstancia na edição de normas regulamentares.159

Nesse sentido, é valiosa a manifestação do mestre J.J. Gomes Canotilho que leciona: “A função de regulação (e de controle) de um determinado sector (mercado de valores mobiliários, comunicação social, energia, água e resíduos) atribuídas por lei a certas entidades independentes fará delas essencialmente autoridades reguladoras que estabelecem as regras e controlam a aplicação das normas. Fixar ‘regras reguladoras’ corresponde, tendencialmente, a regulamentar matérias no figurino clássico da administração pública”.160 Resta dizer, “regular” abrange outros institutos muito mais profundos do que a “regulamentação” de uma lei.

Nas palavras de Caio Tácito, a função regulamentar detida pelo chefe do Poder Executivo não é somente a de reproduzir analiticamente a lei, mas a de ampliá-la e completá-la, segundo o seu espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos que a própria lei, expressa ou implicitamente, outorga à esfera regulamentar.161

Por outro lado, como assevera Marçal Justen Filho, a função regulatória (ou reguladora) visa realizar o gerenciamento dos múltiplos e antinômicos interesses da sociedade, se traduzindo “em restrições à autonomia privada para evitar que o exercício abusivo de certas prerrogativas ponha em risco a realização de outros valores”.162

Por isso que a competência normativa exercida pelas agências reguladoras, inserida no sistema de separação de poderes e considerando-se a proeminência da instituição legislativa para a positivação das regras jurídicas, é inconfundível com o “poder regulamentar” primário, de competência do chefe do Poder Executivo.163

Com isso, chega-se à seguinte distinção entre regulamentação e regulação apresentada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto164: a regulamentação, é cometida a chefes de Estado ou Governo, é uma função política, que visa impor regras de caráter secundário em complementação às normas legais, com o objetivo de explicitá-las e dar-lhes execução.

157 Parte da doutrina compreende a função normativa como uma “delegação de poderes”. Ao examinar a função legiferante à luz da teoria da separação dos poderes, o constitucionalista Alexandre de Moraes acentua que as Agências Reguladoras poderão receber do Poder Legislativo, por meio de lei de iniciativa do Poder Executivo, uma “delegação” para exercer seu poder normativo de regulação. Adverte, contudo, que compete ao Congresso Nacional a fixação das finalidades, dos objetivos básicos e da estrutura das Agências, bem como a fiscalização de suas atividades. No artigo intitulado “Agências reguladoras”, na obra coletiva de igual título sob a organização do Autor. (São Paulo: Atlas, 2002, p. 20). Também se referindo à função normativa das Agências Reguladoras como “delegação”, Tércio Sampaio Ferraz Júnior sustenta que com a criação das Agências Reguladoras, ocorre “uma ostensiva delegação de poderes, quase--lesgislativos, outros quase-judiciais e outros quase-regulamentares”. Agências reguladoras: legalidade e constitucionalidade. Revista Tributária de Finanças Públicas, Rio de Janeiro, v. 35, p. 143-158, nov./dez. 2000. Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto utiliza a expressão “delegação de poderes” para as Agências Reguladoras pela lei de criação da entidade, conforme nota de rodapé nº 48, do artigo A nova regulação estatal e as agências independentes. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 93. Marçal Justen Filho inicialmente afirma que o instituto da delegação legislativa não se aplica ao tema em estudo. Contudo, logo a diante, afirma que “pode se dar uma delegação normativa de cunho secundário”. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, pp. 512-513. Em sentido contrário - ao qual aderimos - denota Alexandre Santos de Aragão: “nestes casos, o que temos na realidade, é a execução pela Administração Pública da Lei, que, contudo, deixou de estabelecer maiores detalhes sobre a matéria legislada, fixando apenas standards e finalidades gerais”. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico., p. 411. Leila Cuéllar também não compartilha do entendimento de que se trata de delegação de “poder normativo” às Agências Reguladoras. (As agências reguladoras e seu poder normativo. São Paulo: Dialética, 2001, p. 116). No mesmo sentido, Romeu Felipe Bacellar Filho (O poder normativo dos entes reguladores e a participação dos cidadãos nesta atividade. Serviços públicos e direitos fundamentais: os desafios da regulação na experiência brasileira. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 230, p. 153-162, out./dez. 2002, p. 160. Sobre a deslegalização (que tanto pode ocorrer pela exclusão legal de um comportamento a qualquer tipo de regra ou pela substituição do referencial normativo), e seu conceito oriundo da doutrina francesa, ver essa mesma obra na página 122, ss. Recomenda-se, ainda, sobre o tema da deslegalização no campo da sanção, a obra de Fábio Medina Osório. Direito administrativo sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 215, ss.158 A exemplo da lei criadora da ANVISA (Lei nº 9782/1999): Art. 8º.  Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.159 Ao comentar a função reguladora das Agências, José Carlos Francisco afirma que: “a função reguladora abrangeria a função regulamentar (de fiel execução das leis)”. Agência reguladora: atividade normativa. In: Direito da Regulação. Alexandre Santos de Aragão (coord.). Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. v. XI. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 129. Marcos Juruena Villela Souto prefere a expressão “diretrizes de cunho normativo”, para se referir a essa parcela da função reguladora. Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, p. 46. Em sentido restritivo, Paulo César Melo da Cunha sustenta que “a natureza jurídica das Agências Reguladoras não lhes autoriza a prática de atos regulamentares, como observado da leitura de alguns pronunciamentos daqueles que se aplicaram ao estudo e se manifestaram sobre o assunto, eis que o papel da entidade regulatória se limita a editar atos normativos, implementá-los e a fiscalizar sua correta aplicação”. A regulação jurídica da saúde suplementar no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 141-142. A propósito, há possibilidade de sustação dos atos normativos das Agências Reguladoras pelo Congresso Nacional, nos termos do art. 49, V, da CF.160 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 818.161 As delegações legislativas e o poder regulamentar. In: Temas de direito público, v. 1, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 510.162 O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 556.163 Nesse sentido, CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaio sobre o constitucionalismo pós-moder-no e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 213.164 Direito regulatório..., cit., pp. 132-133. Nesse mesmo sentido, Marcos Juruena Villela Souto afirma que enquanto a regulação é técnica, a regu-lamentação é política, havendo legitimidade eleitoral para tanto. O mesmo não ocorre na regulação, que se limita a implementar a decisão política. A regulação atende a interesses coletivos (setoriais), enquanto que a regulamentação a interesses públicos, gerais. Direito administrativo regulatório..., cit., p. 233.

157 Parte da doutrina compreende a função normativa como uma “delegação de poderes”. Ao examinar a função legiferante à luz da teoria da separação dos poderes, o constitucionalista Alexandre de Moraes acentua que as Agências Reguladoras poderão receber do Poder Legislativo, por meio de lei de iniciativa do Poder Executivo, uma “delegação” para exercer seu poder normativo de regulação. Adverte, contudo, que compete ao Congresso Nacional a fixação das finalidades, dos objetivos básicos e da estrutura das Agências, bem como a fiscalização de suas atividades. No artigo intitulado “Agências reguladoras”, na obra coletiva de igual título sob a organização do Autor. (São Paulo: Atlas, 2002, p. 20). Também se referindo à função normativa das Agências Reguladoras como “delegação”, Tércio Sampaio Ferraz Júnior sustenta que com a criação das Agências Reguladoras, ocorre “uma ostensiva delegação de poderes, quase-lesgislativos, outros quase-judiciais e outros quase-regulamentares”. Agências reguladoras: legalidade e constitucionalidade. Revista Tributária de Finanças Públicas, Rio de Janeiro, v. 35, p. 143-158, nov./dez. 2000. Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto utiliza a expressão “delegação de poderes” para as Agências Reguladoras pela lei de criação da entidade, conforme nota de rodapé nº 48, do artigo A nova regulação estatal e as agências independentes. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 93. Marçal Justen Filho inicialmente afirma que o instituto da delegação legislativa não se aplica ao tema em estudo. Contudo, logo a diante, afirma que “pode se dar uma delegação normativa de cunho secundário”. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, pp. 512-513. Em sentido contrário - ao qual aderimos - denota Alexandre Santos de Aragão: “nestes casos, o que temos na realidade, é a execução pela Administração Pública da Lei, que, contudo, deixou de estabelecer maiores detalhes sobre a matéria legislada, fixando apenas standards e finalidades gerais”. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico., p. 411. Leila Cuéllar também não compartilha do entendimento de que se trata de delegação de “poder normativo” às Agências Reguladoras. (As agências reguladoras e seu poder normativo. São Paulo: Dialética, 2001, p. 116). No mesmo sentido, Romeu Felipe Bacellar Filho (O poder normativo dos entes reguladores e a participação dos cidadãos nesta atividade.

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Serviços públicos e direitos fundamentais: os desafios da regulação na experiência brasileira. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 230, p. 153-162, out./dez. 2002, p. 160. Sobre a deslegalização (que tanto pode ocorrer pela exclusão legal de um comportamento a qualquer tipo de regra ou pela substituição do referencial normativo), e seu conceito oriundo da doutrina francesa, ver essa mesma obra na página 122, ss. Recomenda-se, ainda, sobre o tema da deslegalização no campo da sanção, a obra de Fábio Medina Osório. Direito administrativo sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 215, ss.

158 A exemplo da lei criadora da ANVISA (Lei nº 9782/1999): Art.  8º.    Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.

159 Ao comentar a função reguladora das Agências, José Carlos Francisco afirma que: “a função reguladora abrangeria a função regulamentar (de fiel execução das leis)”. Agência reguladora: atividade normativa. In: Direito da Regulação. Alexandre Santos de Aragão (coord.). Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. v. XI. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 129. Marcos Juruena Villela Souto prefere a expressão “diretrizes de cunho normativo”, para se referir a essa parcela da função reguladora. Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, p. 46. Em sentido restritivo, Paulo César Melo da Cunha sustenta que “a natureza jurídica das Agências Reguladoras não lhes autoriza a prática de atos regulamentares, como observado da leitura de alguns pronunciamentos daqueles que se aplicaram ao estudo e se manifestaram sobre o assunto, eis que o papel da entidade regulatória se limita a editar atos normativos, implementá-los e a fiscalizar sua correta aplicação”. A regulação jurídica da saúde suplementar no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 141-142. A propósito, há possibilidade de sustação dos atos normativos das Agências Reguladoras pelo Congresso Nacional, nos termos do art. 49, V, da CF.

160 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 818.

161 As delegações legislativas e o poder regulamentar. In: Temas de direito público, v. 1, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 510.

162 O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 556.

Não é por outra razão que é assente o entendimento segundo o qual tal função normativa decorre da processualização participativa dos agentes afetados pela regulação.

No âmbito do exercício da regulação nos EUA, esse direito à participação dos agentes regulados afetado pelos efeitos nas normas regulatórias é decorrente, sobretudo, da aplicação do APA - Administrative Procedure Act, de 1946. Naquele diploma, são previstas três espécies normativas, a saber: legislative rules (leis que vinculam obrigações), interpretive rules (leis que veiculam interpretações) e general statements of policy e procedural rules (leis procedimentais), cada qual com um rito normativo aplicável. E qual seria a razão da obrigatoriedade de um procedimento participativo prévio à edição dessas regras? O impacto substancial - “substantial impact” – desses atos normativos no setor regulado165.

No direito brasileiro, tal participação veio a ser incorporada – e nem poderia ser diferente – nas leis de criação das agências reguladoras. Na lei de criação da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, previu-se a obrigatoriedade de realização de audiência pública prévia para os processos decisórios que afetarem os direitos dos agentes econômicos do setor elétrico ou dos consumidores (o art. 4º, § 3º da Lei nº 9.427/96); na lei de criação da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, o direito dos usuários de serviços de telecomunicações de receberem respostas às suas reclamações pela prestadora do serviço e de peticionarem contra a prestadora do serviço perante o órgão regulador e os organismos de defesa do consumidor, bem como a consulta pública prévia para análise da minuta do instrumento convocatório nas licitações dos serviços de telecomunicações seria outro exemplo (arts. 3º, X e XI; 89, II da Lei nº 9.472/97); na Lei de criação da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis –ANP, exigiu-se a realização de audiências públicas para iniciativas de projetos de lei ou de alteração de normas administrativas que impliquem afetação de direito dos agentes econômicos ou de consumidores e usuários de bens e serviços da indústria do petróleo (art. 19 da Lei nº 9.478/97). No mesmo modo, o Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014, instituiu a Política Nacional de Participação Social - PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS. O referido regulamento, além de conceituar os institutos da audiência pública e da Consulta Pública, apresenta como uma de suas principais diretrizes a ampliação dos mecanismos de controle social. Todo esse racional veio a ser incorporado pelo art. 9° da Lei n°13.848/2019.

165 GELLHORN, Ernest e LEVIN, Ronald M.  Administrative Law and Pro-cess in a nutshell. 3. ed. St. Paul/Minnesota: West Publishing, 1990. Capítulo IX, “Rules and Rulema- king”. pp. 309-52.

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Em resumo, a regulação é uma função administrativa, que não decorre da prerrogativa do poder político, e sim, da abertura da lei para que o agente regulador pondere, de forma neutra, os interesses concorrentes em conflitos setoriais, sejam eles potenciais ou efetivos.

O Superior Tribunal de Justiça já examinou e julgou a questão, tendo prevalecido a tese abaixo (MINISTRO LUIZ FUX — MARÇO/2006. STJ AGRG na MC 10443-PB):

LIMINAR E TELEFONIA. SERVIÇO PRÉ-PAGO. DEFESA AO CONSUMIDOR. LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. RECURSO ESPECIAL ADMITIDO. CAUTELAR E EFEITO SUSPENSIVO. FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA PRESENTES. ATUAÇÃO CONFORME ATO DA AGÊNCIA REGULADORA. Vigente ato normativo da Agência Reguladora cujo escopo é regular o segmento, não podem os estabelecimentos regulados absorverem danos e punições pelo fato do cumprimento das regras maiores, posto engendrarem exercício regular do direito. Modificação ex abrupto dessas regras da Agência Reguladora por tutela provisória em liminar concedida em ação, acarreta periculum in mora, mercê de o fumus boni iuris repousar no cumprimento do ato da Agência. Deveras, somente a ausência de nulificação específica do ato da Agência autoriza o Judiciário e intervir no segmento, sob pena de invadir seara administrativa estranha ao Poder Judiciário. (Sergio Guerra in Controle Judicial dos Atos Regulatorios, Editora Lumem Juris, Jan⁄2005, pags. 355⁄369). Impossibilidade de atendimento técnico da decisão liminar, que configurou para o Relator periculum in mora inverso, máxime porque a adoção da providência contrária ao ato da ANATEL (art. 55 da Resolução 316⁄2002, e itens 4.6 e 4.6.1, da Norma 03⁄98).

Em 2016 o STF avaliou a competência normativa das Agências Reguladoras diante de questões técnicas complexas no caso que envolveu a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 13.269/2016.

163 Nesse sentido, CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaio sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 213.

164 Direito regulatório..., cit., pp. 132-133. Nesse mesmo sentido, Marcos Juruena Villela Souto afirma que enquanto a regulação é técnica, a regulamentação é política, havendo legitimidade eleitoral para tanto. O mesmo não ocorre na regulação, que se limita a implementar a decisão política. A regulação atende a interesses coletivos (setoriais), enquanto que a regulamentação a interesses públicos, gerais. Direito administrativo regulatório..., cit., p. 233.

165 GELLHORN, Ernest e LEVIN, Ronald M.  Administrative Law and Process in a nutshell. 3. ed. St. Paul/Minnesota: West Publishing, 1990. Capítulo IX, “Rules and Rulema- king”. pp. 309-52.

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A lei autorizava o uso do medicamento fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, a despeito da inexistência de estudos conclusivos no tocante aos efeitos colaterais em serem humanos.

O voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, na ADI 5.501/DF, destaca a importância do papel do regulador diante de questões técnicas complexas e sobre a impropriedade da substituição do crivo técnico de agência vinculada ao Poder Executivo pelo Legislativo:

“No caso, a lei suprime, casuisticamente, a exigência do registro da fosfoetanolamina sintética como requisito para comercialização, evidenciando que o legislador deixou em segundo plano o dever constitucional de implementar políticas públicas voltadas à garantia da saúde da população. O fornecimento de medicamentos, embora essencial à concretização do Estado Social de Direito, não pode ser conduzido com o atropelo dos requisitos mínimos de segurança para o consumo da população, sob pena de esvaziar-se, por via transversa, o próprio conteúdo do direito fundamental à saúde. Vislumbro, na publicação do diploma combatido, ofensa ao postulado da separação de Poderes. A Constituição incumbiu o Estado, aí incluídos todos os respectivos Poderes, do dever de zelar pela saúde da população. No entanto, considerada a descentralização técnica necessária para a fiscalização de atividades sensíveis, foi criada, nos termos do artigo 37, inciso XIX, do Diploma Maior, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, à qual compete, enquanto autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, autorizar a distribuição de substâncias químicas, segundo protocolos cientificamente validados. O controle dos medicamentos fornecidos à população é efetuado, tendo em conta a imprescindibilidade de aparato técnico especializado, por agência reguladora supervisionada pelo Poder Executivo. A atividade fiscalizatória – artigo 174 da Constituição Federal – dá-se mediante atos administrativos concretos de liberação das substâncias, devidamente precedidos dos estudos técnicos – científicos e experimentais.

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Ao Congresso Nacional não cabe viabilizar, por ato abstrato e genérico, a distribuição de qualquer medicamento. Essa visão não resulta no apequenamento do Poder Legislativo. A Carta Federal reservou aos parlamentares instrumentos adequados para a averiguação do correto funcionamento das instituições pátrias, como a convocação de autoridades para prestar esclarecimentos e a instauração de comissão parlamentar de inquérito, previstas no artigo 58, § 2º, inciso III, e § 3º, da Lei Fundamental. Surge imprópria, porém, a substituição do crivo técnico de agência vinculada ao Poder Executivo.”

O Ministro Luis Roberto Barroso evidenciou a importância da “reserva

da administração” sobre matérias técnicas complexas, cuja competência deve ser exercida inclusive sem a ingerência do Parlamento.

24. Pois bem. A separação de Poderes, princípio fundamental do Estado e cláusula pétrea no sistema constitucional brasileiro, atribui ao Executivo um domínio de funções tipicamente administrativas, que devem ser desempenhadas com exclusividade, sem margem para interferências legislativas ou judiciais. Tais funções correspondem à chamada reserva de administração. Na definição de José Joaquim Gomes Canotilho, esta reserva corresponde a “um núcleo funcional de administração ‘resistente’ à lei, ou seja, um domínio reservado à administração contra as ingerências do parlamento”. Na mesma linha, segundo Arícia Fernandes Correia, a reserva de administração constitui “um espaço autônomo – e, por isso, insubordinado e auto-responsável – de exercício da função administrativa, normativa e concretizadora da tutela dos direitos, infenso à sub-rogação legislativa e jurisdicional, à vista do princípio da separação de poderes.” 25. A ideia de preservação da reserva de administração como corolário do princípio da separação de poderes vem sendo empregada em diversas ocasiões pelo Supremo Tribunal Federal para declarar a inconstitucionalidade de normas editadas pelo Poder Legislativo em matérias reservadas à competência administrativa do Poder Executivo.

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Nesse sentido, confira-se: ADI 969 (Rel. Min. Joaquim Barbosa), ADI 3343 (Rel. p/ acórdão Min. Luiz Fux), ADI 3075 (Rel. Min. Gilmar Mendes), ADI 2364 MC (Rel. Min. Celso de Mello), e RE 427.574 ED (Rel. Min. Celso de Mello). A título exemplificativo, veja-se a ementa da decisão desta Corte no RE 427.574 ED: [...] A Anvisa tem, assim, o poder-dever de avaliar e decidir, em cada caso, se a substância em questão cumpre todas as exigências legais de segurança, eficácia e qualidade. 27. Esse domínio legítimo de atuação administrativa da Anvisa, balizado pela lei, deve ser respeitado pelas diferentes instâncias de controle, inclusive pelo Poder Legislativo. Trata-se de uma exigência que decorre logicamente da separação de poderes. Daí porque a Lei nº 13.269/2016, ao substituir uma escolha técnica e procedimental da Agência por uma decisão política do Legislador, interferiu de forma ilegítima no funcionamento da Administração Pública, em afronta à reserva de administração e à separação de poderes. [...] Ou seja, se uma lei (a Lei nº 9.782/1999) conferiu a um órgão administrativo (a Anvisa) competência para conceder registros sanitários a medicamentos, a partir de um análise caso a caso e de acordo com o procedimento nela estabelecido, não pode o legislador, por meio de outra lei (a Lei nº 13.269/2016) usurpar a atividade executória, subvertendo casuisticamente o sistema regulatório vigente. 28. As razões que impõem essa deferência são simples. A Anvisa recebeu da ordem jurídica a atribuição de realizar o controle sanitário dos medicamentos, porque detém as melhores condições institucionais para tomar tais decisões. Tais capacidades referem-se aos maiores níveis de informação, de expertise, de conhecimento técnico e aptidão operacional em relação ao procedimento de registro sanitário, marcado por grande complexidade.”

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Da Análise de Impacto Regulatório (AIR)

A Análise de Impacto Regulatório (AIR), segundo Lucia Helena Salgado e Michelle Moretzsonh Holperin166, se constitui “como um procedimento de racionalização dos processos decisórios, por meio do qual se informa os tomadores de decisão quanto à melhor maneira de se regular – e até mesmo se regular é a opção adequada –, de modo a atender aos objetivos estabelecidos nas políticas públicas”. Trata-se de procedimento de avaliação da qualidade de propostas regulatórias, no qual são apresentados, ex ante e mediante a utilização de dados empíricos os problemas a serem enfrentados pela futura regulação; as opções disponíveis à adoção de determinada medida regulatória; e as consequências da regulação. Não se trata de instrumento que visa a substituir a decisão do regulador, mas de um procedimento que tem por objetivo informar o seu processo167.

Nessa qualidade, tal instrumento produz os seguintes efeitos positivos: (i) reduz o número de exigências regulatórias repetidas; (ii) gera previsibilidade das futuras regulações; e (iii) contribui para a avaliação da necessidade da própria intervenção regulatória; daí poder-se afirmar que a AIR confere racionalidade ao processo de tomada de decisão do regulador. Com esse propósito, são analisados os custos e benefícios do exercício da regulação, por meio do preenchimento de um relatório analítico – na forma de uma lista de verificação (checklist) –, que visa a orientar o exercício da regulação.

Três são os principais métodos por meio dos quais se realiza a Análise de Impacto Regulatório: a Análise de Custo-Benefício (ACB), a Análise Custo-Efetividade (ACE) e a Análise de Multicritérios (MCA). A Análise de Custo-Benefício (ACB) é o método por meio do qual “o regulador deve levar em consideração todos os custos e os benefícios envolvidos na regulação por ele proposta, inclusive aqueles que não podem ser aferidos economicamente”.168 Por meio deste método, são avaliados os custos, diretos e indiretos, das propostas de regulação, tais como os custos de execução e de monitoramento de determinada regulação, além da aferição do fluxo de efeitos futuros trazidos para o valor presente de determinada proposta regulatória. Destarte, caso esses custos e benefícios sejam monetizáveis, o nível adequado de regulação será aquele em que o benefício gerado será superior ao custo de determinada regulação, gerando um benefício líquido.

166 SALGADO, Lucia Helena; HOLPERIN, Michelle Moretzsonh. Análise de Impacto: Ferramenta e Processo de Aperfeiçoamento da Regulação. p. 3. Disponível em: <http://www.agersa.es.gov.br/arquivos/relatorios/Analise%20do%20Impacto%20Regulatorio%20Ferramenta%20e%20Processo%20de%20Aperfeicoamento%20da%20Regulacao.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2014.167 ALBUQUERQUE, Kélvia Frota de. A Retomada da Reforma/Melhora Regulatória no Brasil: Um Passo Fundamental para o Crescimento Econô-mico Sustentado, 2006. Disponível em: <http://www.seae.fazenda.gov.br/central-de-documentos/documentos-de-trabalho/documentos-de-trabalho-2006/DT_35.pdf>. Acesso em: 10/08/2015. p. 26.168 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Governança e Análise de Impacto Regulatório. Revista de Direito Público de Economia – RDPE, Belo Horizon-te, ano 9, n. 36, pp. 173-203, out./dez. 2011.

166 SALGADO, Lucia Helena; HOLPERIN, Michelle Moretzsonh. Análise de Impacto: Ferramenta e Processo de Aperfeiçoamento da Regulação. p. 3. Disponível em: <http://www.agersa.es .gov.br/arquivos/re lator ios/Anal ise%20do%20Impacto%20Regulatorio%20Ferramenta%20e%20Processo%20de%20Aperfeicoamento%20da%20Regulacao.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2014.

167 ALBUQUERQUE, Kélvia Frota de. A Retomada da Reforma/Melhora Regulatória no Brasil: Um Passo Fundamental para o Crescimento Econômico Sustentado, 2006. Disponível em: <http://www.s e a e . f a z e n d a . g o v . b r / c e n t r a l -d e - d o c u m e n t o s / d o c u m e n t o s -d e - t r a b a l h o / d o c u m e n t o s - d e -trabalho-2006/DT_35.pdf>. Acesso em: 10/08/2015. p. 26.

168 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Governança e Análise de Impacto Regulatório. Revista de Direito Público de Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 9, n. 36, pp. 173-203, out./dez. 2011.

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O método da Análise Custo-Efetividade (ACE), por sua vez, “consiste em uma ferramenta que compara políticas, programas e projetos, a fim de identificar o mais adequado para alcançar um resultado pré-definido pelo menor custo”.169 Isto é, tal método “não se aplica para determinar quais metas devem ser atingidas, mas, uma vez determinadas, compara quais meios são menos custosos para atingi-las170”. Ao contrário da ACB, na qual se discute, inclusive, quais os objetivos a serem atingidos, na ACE, já existe uma decisão prévia, legislativa ou administrativa, fixando um objetivo, restando à análise do melhor meio para atingi-lo. Em termos objetivos: enquanto a ACB ajuda a decidir “o que fazer”, a ACE ajuda a resolver “como fazer171”.

A Análise de Multicritérios (MCA) se configura como o método utilizado para orientar a decisão regulatória nos casos em que não se é possível mensurar os impactos da regulação. De acordo com o Floriano de Azevedo Marques Neto172, a análise de multicritérios desenvolve-se pela: (i) definição dos objetivos almejados com a regulação, ou seja, determinação das finalidades públicas específicas; (ii) determinação de todos os fatores indicativos de satisfação das finalidades.

Quanto à amplitude, a AIR pode ser global ou parcial. A primeira modalidade (global) está relacionada à mensuração de todos os impactos macroeconômicos e multisetoriais da regulação; a segunda (parcial) analisa os impactos da regulação para determinado setor da economia ou da sociedade.173 A justificativa da realização de análises parciais está no fato de que a regulação pode acarretar impactos desproporcionais em alguns grupos específicos da economia, o que pode justificar um procedimento de AIR segmentado174. Em alguns casos, a AIR parcial tem sido adotada como uma ferramenta adicional a uma AIR mais ampla, principalmente nos casos em que os impactos sobre algum setor ou grupo necessitem de uma análise mais aprofundada175.

Seguindo a tendência estadunidense e incorporando todo esse racional, o art. 5º da Lei n°13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica) dispõe que “ As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico”.

169 CELLINI, Stephanie Riegg; KEE, James Edwin. Cost-Effectiveness and Cost-Benefit Analysis. Disponível em: <http://home.gwu.edu/~scellini/CelliniKee21.pdf>. Acesso em: 16/06/2015.170 SALGADO, Lucia Helena; BORGES, Eduardo de Pinho Bizzo. Análise de Impacto Regulatório: Uma Abordagem Exploratória, 2010. Disponível em: <http://www.agersa.es.gov.br/arquivos/relatorios/Analise%20de%20Impacto%20Regulatorio%20uma%20Abordagem%20Exploratoria.pdf>. Acesso em: 14/07/2015, p. 15.171 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Governança e Análise de Impacto Regulatório. Revista de Direito Público de Economia – RDPE, Belo Horizon-te, ano 9, n. 36, p. 173-203, out./dez. 2011.172 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Tratado de direito administrativo. V. 4: funções administrativas do Estado/KLEIN, Aline; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 629.173 É o que ocorre, por exemplo, na Finlândia, onde a divisão de competências estabelecida entre os Ministérios atribuí a cada um a função de realizar uma AIR parcial referente à sua área de atuação. OCDE. Determinants of Quality in Regulatory Impact Analysis. Disponível em: <www.oecd.org/gov/regulatory--policy/42047618.pdf>. Acesso em: 17/08/2015.174 BORGES, Eduardo Bizzo de Pinho. Determinantes de Qualidade Regulatória: Principais Instrumentos e o caso brasileiro. IV Prêmio SEAE, 2009. p. 32. 175 OCDE. Determinants of Quality in Regulatory Impact Analysis. Diponível em: <www.oecd.org/gov/regulatory-policy/42047618.pdf>. Acesso em: 17/08/2015.

169 CELLINI, Stephanie Riegg; KEE, James Edwin. Cost-Effectiveness and Cost-Benefit Analysis. Disponível em: <http://home.gwu.edu/~scellini/CelliniKee21.pdf>. Acesso em: 16/06/2015.

170 SALGADO, Lucia Helena; BORGES, Eduardo de Pinho Bizzo. Análise de Impacto Regulatório: Uma Abordagem Exploratória, 2010. Disponível em: <http://www.agersa.es .gov.br/arquivos/relatorios/Analise%20de%20Impacto%20Regulatorio%20uma%20Abordagem%20Exploratoria.pdf>. Acesso em: 14/07/2015, p. 15.

171 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Governança e Análise de Impacto Regulatório. Revista de Direito Público de Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 9, n. 36, p. 173-203, out./dez. 2011.

172 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Tratado de direito administrativo. V. 4: funções administrativas do Estado/KLEIN, Aline; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 629.

173 É o que ocorre, por exemplo, na Finlândia, onde a divisão de competências estabelecida entre os Ministérios atribuí a cada um a função de realizar uma AIR parcial referente à sua área de atuação. OCDE. Determinants of Quality in Regulatory Impact Analysis. Disponível em: <www.oecd.org/gov/regulatory-policy/42047618.pdf>. Acesso em: 17/08/2015.

174 BORGES, Eduardo Bizzo de Pinho. Determinantes de Qualidade Regulatória: Principais Instrumentos e o caso brasileiro. IV Prêmio SEAE, 2009. p. 32.

175 OCDE. Determinants of Quality in Regulatory Impact Analysis. Diponível em: <www.oecd.org/gov/regulatory-policy/42047618.pdf>. Acesso em: 17/08/2015.

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Na mesma direção, a Lei n°13.848/2019, em seu art. 9° dispõe que “A adoção e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados serão, nos termos de regulamento, precedidas da realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR), que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo”. Os §1° e 2° remeteram o tema à regulamentação, a qual veio a ser endereçada pelo Decreto n°10.411, de 30 de junho de 2020. Acontece que tal ato regulamentar, em seu art. 21, tornou desnecessária a realização de instrumento, ao dispor que “inobservância ao disposto neste Decreto não constitui escusa válida para o descumprimento da norma editada e nem acarreta a invalidade da norma editada”.

Função executiva

As funções executivas, que incluem a fiscalização e a sanção, detidas pelas agências reguladoras, se assemelham às atribuições dos órgãos da administração pública direta, no exercício do poder de polícia estatal.176 Por meio dessas funções, as agências reguladoras concedem, permitem e autorizam serviços e uso de bens públicos, expedem licenças, autorizam reajuste e revisão ordinária e extraordinária de tarifas de serviços públicos para manter o equilíbrio econômico e financeiro das concessões.

Ademais disso, por meio das funções executivas, as agências reguladoras fiscalizam o exercício das atividades econômicas, de modo à sua conformação aos parâmetros dos atos que consentiram o ingresso dos agentes regulados no mercado.177

No exercício da regulação dos serviços públicos, a agência reguladora terá acesso aos dados relativos à administração, contabilidade, recursos técnicos, econômicos e financeiros da concessionária.178 Nos casos de concessão de serviço público, malgrado a execução por conta e risco da concessionária, resta indisputável a necessidade de ser assegurada à Administração Pública (no caso, as agências reguladoras) a fiscalização das atividades desenvolvidas pela concessionária.

Como a Administração, pela concessão, não transfere a titularidade do serviço, mas apenas sua execução, ela tem que zelar pela fiel execução do contrato. Dentro desse poder de direção e controle, insere-se (...) o poder de fiscalizar, de forma ampla, a execução do contrato.179

176 Nas palavras de Marcos Juruena Villela Souto, a regulação executiva se desenvolve, essencialmente, por meio de atos de consentimento de ingresso no mercado, mediante a concessão de licenças, autorizações e permissões. Essa função se opera, ainda, por meio de adjudicação do objeto de contratos administrativos de concessões e permissões de serviços públicos, de uso de bens públicos ou do exercício de atividades econômicas relacionadas a bens ou serviços públicos. Destaca ainda o Autor que a regulação executiva se realiza por meio de atos de fiscalização da correta execução da atividade consentida ou contratada, nos limites estabelecidos na moldura regulatória, que envolve a Constituição, lei, normas do órgão regulador e atos de consentimento ou de adjudicação. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório, p.57. Marçal Justen Filho retrata esse aspecto em sua obra sobre as Agências Reguladoras Independen-tes, anotando a desnecessidade de um estudo perfunctório das funções executivas, eis que “ao desenvolver essas atividades, a agência estará desempenhando atuação muito similar àquele objeto de estudo no tocante às demais entidades da Administração indireta”. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 481. Diogo de Figueiredo Moreira Neto se refere ao tema como “funções administrativas”, exercidas em qualquer dos campos da administração, tanto no campo da polícia administrativa, quanto no dos serviços públicos, no do ordenamento econômico ou no do ordenamento social, inclusive no do fomento público, envolvendo, materialmente, desde atividades de planejamento às de gestão. Direito regulatório, p. 108.177 Sobre as funções executivas das Agências Reguladoras, Alexandre Santos de Aragão deu destaque à competência fiscalizatória. Segundo o Autor, são poderes para aplicar sanções “decorrentes do descumprimento de preceitos legais, regulamentares ou contratuais pelos agentes econômicos regulados”. E complementa seu entendimento advertindo que a “aplicação de sanções deve estar apoiada em algum dispositivo legal, ainda que genérico, ficando a graduação e a especificação das penalidades a serem normatizadas pela agência”. Agências reguladoras e a evolução..., cit., p. 318.178 Nesse sentido, dispõe a Lei nº 8.987/1995: Art. 30. No exercício da fiscalização, o poder concedente terá acesso aos dados relativos à administra-ção, contabilidade, recursos técnicos, econômicos e financeiros da concessionária. Parágrafo único. A fiscalização do serviço será feita por intermédio de órgão técnico do poder concedente ou por entidade com ele conveniada, e, periodicamente, conforme previsto em norma regulamentar, por comissão composta de representantes do poder concedente, da concessionária e dos usuários. 179 DI PIETRO, Parcerias na administração pública. São Paulo: Atlas, p. 79.

176 Nas palavras de Marcos Juruena Villela Souto, a regulação executiva se desenvolve, essencialmente, por meio de atos de consentimento de ingresso no mercado, mediante a concessão de licenças, autorizações e permissões. Essa função se opera, ainda, por meio de adjudicação do objeto de contratos administrativos de concessões e permissões de serviços públicos, de uso de bens públicos ou do exercício de atividades econômicas relacionadas a bens ou serviços públicos. Destaca ainda o Autor que a regulação executiva se realiza por meio de atos de fiscalização da correta execução da atividade consentida ou contratada, nos limites estabelecidos na moldura regulatória, que envolve a Constituição, lei, normas do órgão regulador e atos de consentimento ou de adjudicação. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório, p.57. Marçal Justen Filho retrata esse aspecto em sua obra sobre as Agências Reguladoras Independentes, anotando a desnecessidade de um estudo perfunctório das funções executivas, eis que “ao desenvolver essas atividades, a agência estará desempenhando atuação muito similar àquele objeto de estudo no tocante às demais entidades da Administração indireta”. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 481. Diogo de Figueiredo Moreira Neto se refere ao tema como “funções administrativas”, exercidas em qualquer dos campos da administração, tanto no campo da polícia administrativa, quanto no dos serviços públicos, no do ordenamento econômico ou no do ordenamento social, inclusive no do fomento público, envolvendo, materialmente, desde atividades de planejamento às de gestão. Direito regulatório, p. 108.

177 Sobre as funções executivas das Agências Reguladoras, Alexandre Santos de Aragão deu destaque à competência fiscalizatória. Segundo o Autor, são poderes para aplicar sanções “decorrentes do descumprimento de preceitos legais, regulamentares ou contratuais pelos agentes econômicos regulados”. E complementa seu entendimento advertindo que a “aplicação de sanções deve estar apoiada em algum dispositivo legal, ainda que genérico, ficando a graduação e a especificação das penalidades a serem normatizadas pela agência”. Agências reguladoras e a evolução..., cit., p. 318.

178 Nesse sentido, dispõe a Lei nº 8.987/1995: Art. 30. No exercício da fiscalização, o poder concedente terá acesso aos dados relativos à administração, contabilidade, recursos técnicos, econômicos

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Em que pese esse direito de ter acesso e fiscalizar todas as atividades da concessionária, isso jamais poderá representar o “poder” sobre a gestão da companhia. Nesse sentido, diz Di Pietro com propriedade:

O exercício desse poder de direção e controle constitui um poder-dever da Administração, ao qual ela não pode furtar-se, sob pena de responsabilidade por omissão. Mas deve ser exercido dentro de limites razoáveis, não podendo a fiscalização fazer-se de tal modo que substitua a gestão da empresa. A Administração apenas fiscaliza. Ela não administra a execução do serviço.180

Marcos Juruena Villela Souto leciona que um importante instrumento de regulação executiva é a “interpretação regulatória”, haja vista que nem sempre a generalidade da lei ou de norma se adapta ao caso concreto. Desse modo, se impõe um juízo de equidade do agente regulador, de modo a atender à finalidade da norma, ponderando custos e benefícios.181

No que tange à função de solução de controvérsias detida pelas agências reguladoras, está voltada à solução de eventuais conflitos entre os diversos agentes regulados, entre esses agentes e os usuários/consumidores ou com o Poder Público (concedente, permitente ou autorizador). Contudo, essa atribuição suscita controvérsias em sede doutrinária quanto a sua classificação ser ou não considerada uma função judicante, haja vista o papel desempenhado pelo Poder Judiciário em nosso ordenamento jurídico-constitucional.182

Marcos Juruena Villela Souto, admitindo a função judicante das agências reguladoras, denota que a diferença entre a função reguladora judicante e a função jurisdicional é que na grande maioria dos casos a função judicante do Poder Judiciário e da própria Administração é voltada para o passado, para as origens do problema e para a definição de quem errou e de quem foi vítima.183 Por outro lado, a função regulatória judicante é voltada para o futuro, impregnada de uma necessidade da interpretação prospectiva do julgador em vislumbrar quais são as prováveis conseqüências daquela decisão, que não envolve apenas as partes envolvidas, mas todo o mercado que vai sofrer com a relação custo/benefício. E conclui que as agências reguladoras têm competência judicante, pois essas entidades autárquicas têm por objetivo a solução de conflitos entre os agentes, buscando o equilíbrio entre os envolvidos.184

180 Idem, p.80. Quanto à alteração do controle societário das concessionárias de serviços públicos, e a atuação e intervenção do poder concedente, ver o artigo de Arnold Wald (Da competência das agências reguladoras para intervir na mudança do controle das empresas concessionárias. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 229, p. 27-43, jul./set. 2002).181 Conforme texto gentilmente cedido pelo Autor, de suas palestras proferidas no Auditório do Superior Tribunal de Justiça no dia 24 de junho de 2002, no Seminário organizado pelo Instituto Brasileiro do Petróleo e pelo Sindicato das Indústrias Distribuidoras de Combustíveis, e no Encontro de Integração promovido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, no dia 10 de julho de 2002, no Rio de Janeiro, parcialmente vertido para o idioma francês, para apresentação como Professor Visitante na Universidade de Poitiers – França.182 Para João Bosco Leopoldino da Fonseca essas atribuições não são consideradas judicantes, pois as Agências Reguladoras “são organismos públi-cos (a lei brasileira as caracteriza como autarquias especiais), desprovidos de poder jurisdicional. Elas não têm, diferentemente do que a lei concede ao CADE, no Brasil, o poder judicante”. Direito econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 261. Carlos Ari Sundfeld, apesar de hesitar na admissão da função judicante pela Agência Reguladora, no exercício de um papel que compete ao Poder Judiciário, acaba admitindo que o Judiciário não é capaz de conhecer todos os conflitos surgidos em decorrência da vida cotidiana, “e das normas editadas para transformar em valores jurídicos os novos valores que foram sendo incorporados pela sociedade”. SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às agências reguladoras. In: Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000., p. 31. Arnold Wald e Luíza Rangel de Moraes sustentam, de forma temperada, que “considerando o grau de independência que deve ter a agência, é admissível conceber que possa, eventualmente, ter uma competência quase judicial”. E advertem que seria preciso que se constituísse no âmbito da mesma uma “Câmara Especial”, que, não sendo dotada de competência administrativa, esteja apta a julgar os conflitos entre o poder concedente e o concessionário. Para esses Autores tal solução se constituiria na organização de uma forma de contencioso administrativo, funcionando, em relação às concessões, como os Conselhos de Contribuintes atuam em matérias fiscais, ou como o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional no tocante à área bancária, sem prejuízo da posterior apreciação pelo Poder Judiciário de qualquer lesão de direito. Agências reguladoras. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v.141, p. 143-171, jan./mar. 1999.183 Função regulatória. In: Direito empresarial público. Marcos Juruena Villela Souto e Carla C. Marshall (Orgs.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 27.184 Idem.

e financeiros da concessionária. Parágrafo único. A fiscalização do serviço será feita por intermédio de órgão técnico do poder concedente ou por entidade com ele conveniada, e, periodicamente, conforme previsto em norma regulamentar, por comissão composta de representantes do poder concedente, da concessionária e dos usuários.

179 DI PIETRO, Parcerias na administração pública. São Paulo: Atlas, p. 79.

180 Idem, p.80. Quanto à alteração do controle societário das concessionárias de serviços públicos, e a atuação e intervenção do poder concedente, ver o artigo de Arnold Wald (Da competência das agências reguladoras para intervir na mudança do controle das empresas concessionárias. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 229, p. 27-43, jul./set. 2002).

181 Conforme texto gentilmente cedido pelo Autor, de suas palestras proferidas no Auditório do Superior Tribunal de Justiça no dia 24 de junho de 2002, no Seminário organizado pelo Instituto Brasileiro do Petróleo e pelo Sindicato das Indústrias Distribuidoras de Combustíveis, e no Encontro de Integração promovido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, no dia 10 de julho de 2002, no Rio de Janeiro, parcialmente vertido para o idioma francês, para apresentação como Professor Visitante na Universidade de Poitiers – França.

182 Para João Bosco Leopoldino da Fonseca essas atribuições não são consideradas judicantes, pois as Agências Reguladoras “são organismos públicos (a lei brasileira as caracteriza como autarquias especiais), desprovidos de poder jurisdicional. Elas não têm, diferentemente do que a lei concede ao CADE, no Brasil, o poder judicante”. Direito econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 261. Carlos Ari Sundfeld, apesar de hesitar na admissão da função judicante pela Agência Reguladora, no exercício de um papel que compete ao Poder Judiciário, acaba admitindo que o Judiciário não é capaz de conhecer todos os conflitos surgidos em decorrência da vida cotidiana, “e das normas editadas para transformar em valores jurídicos os novos valores que foram sendo incorporados pela sociedade”. SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às agências reguladoras. In: Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000., p. 31. Arnold Wald e Luíza Rangel de Moraes sustentam, de forma temperada, que “considerando o grau de independência que deve ter a agência, é admissível conceber que possa, eventualmente, ter uma competência quase judicial”.

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E advertem que seria preciso que se constituísse no âmbito da mesma uma “Câmara Especial”, que, não sendo dotada de competência administrativa, esteja apta a julgar os conflitos entre o poder concedente e o concessionário. Para esses Autores tal solução se constituiria na organização de uma forma de contencioso administrativo, funcionando, em relação às concessões, como os Conselhos de Contribuintes atuam em matérias fiscais, ou como o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional no tocante à área bancária, sem prejuízo da posterior apreciação pelo Poder Judiciário de qualquer lesão de direito. Agências reguladoras. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v.141, p. 143-171, jan./mar. 1999.

183 Função regulatória. In: Direito empresarial público. Marcos Juruena Villela Souto e Carla C. Marshall (Orgs.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 27.

184 Idem.

185 Idem, p.7. Nesse mesmo sentido, Alexandre Santos de Aragão sustenta que a função julgadora das Agências Reguladoras não é, a exemplo do que se dá quando exercida pelo Poder Judiciário, voltada para o passado. Ao contrário, há um marcante caráter prospectivo de realização de políticas públicas cuja implementação lhes incumbe. Destaca, ainda, que mais do que visar a composição de determinado conflito entre as partes envolvidas, objetiva precipuamente a composição dos conflitos entre subsistemas setoriais. Agências reguladoras e a evolução..., cit., pp. 318-319. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, as Agências Reguladoras gozam de poder judicante pois “têm atribuições que se estendem ao contencioso, porque estão habilitadas a dirimir litígios, seja os que envolvam empresas que exerçam atividade por ela controlada, seja entre estas e os usuários do serviço”. Curso de direito constitucional. 28a ed. SP: Saraiva, 2002, p. 141. Em idêntico sentido, Marçal Justen Filho aduz que “se pode conceber a intervenção da agência reguladora para composição de conflitos de interesses – sejam aqueles derivados de relações entre Estado e particular, sejam os que comportem controvérsias apenas entre particulares”. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 555.

186 BRASIL. Lei n. 9.478, 06 de agosto de 1997. Art. 56. Observadas as disposições das leis pertinentes, qualquer empresa ou consórcio de empresas que atender ao disposto no art. 5° poderá receber autorização da ANP para construir instalações e efetuar qualquer modalidade de transporte de petróleo, seus derivados e gás natural, seja para suprimento interno ou para importação e exportação.

Por essa função judicante a agência reguladora deve buscar a promoção da competição e, onde houver, a livre concorrência, a não discriminação, a utilização eficiente e o incremento de investimentos em infra-estrutura voltada para a exploração das atividades econômicas e dos serviços públicos, viabilizando que as informações sejam fornecidas de forma precisa, sem criar dificuldades ao acesso de outros interessados pela sua ausência ou insuficiência.185

Desse modo, pode-se inferir, com aqueles doutrinadores que sustentam a legalidade e a legitimidade do exercício da função judicante pelas agências reguladoras, que somente as entidades tecnicamente preparadas e dotadas de todas as informações e mecanismos para regular um subsistema econômico ou social têm condições de visualizar todo o cenário que envolve uma decisão isolada diante do caso concreto.

Esse aspecto prospectivo da decisão que visa por fim a conflitos entre agentes regulados, ou até mesmo entre o Poder Público e os consumidores, tem reais condições de ponderar e estabelecer um efetivo equilíbrio entre os diversos interesses em presença.

A título exemplificativo, destaca-se no capítulo VII, da Lei nº 9.478/1997, que trata do transporte de petróleo, seus derivados e gás natural, que à Agência Nacional de Petróleo – ANP foi atribuída competência para fixar o valor e a forma de pagamento da remuneração ao proprietário dos dutos de transporte, caso não haja acordo entre este e outros interessados em transportar seus produtos nesses mesmos dutos.186

No art. 153, §2o, da Lei nº 9.472/1997187, foi conferida função à Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL que a permite deliberar acerca das condições para interconexão de redes entre os interessados, caso não haja acordo entre os mesmos.

Tem-se, ainda, a previsão legal (Lei nº 9.427/1996, art. 3o,V)188 para que a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL delibere acerca das divergências nos conflitos entre concessionárias, permissionárias, autorizadas, produtores independentes e autoprodutores, bem como entre esses agentes e seus consumidores.

Algumas leis de criação das agências reguladoras dispõem sobre a previsão da solução de controvérsias entre os agentes regulados no âmbito da função reguladora judicante.189

185 Idem, p.7. Nesse mesmo sentido, Alexandre Santos de Aragão sustenta que a função julgadora das Agências Reguladoras não é, a exemplo do que se dá quando exercida pelo Poder Judiciário, voltada para o passado. Ao contrário, há um marcante caráter prospectivo de realização de políticas públicas cuja implementação lhes incumbe. Destaca, ainda, que mais do que visar a composição de determinado conflito entre as partes envolvidas, objetiva precipuamente a composição dos conflitos entre subsistemas setoriais. Agências reguladoras e a evolução..., cit., pp. 318-319. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, as Agências Reguladoras gozam de poder judicante pois “têm atribuições que se estendem ao contencioso, porque estão habilitadas a dirimir litígios, seja os que envolvam empresas que exerçam atividade por ela controlada, seja entre estas e os usuários do serviço”. Curso de direito constitucional. 28a ed. SP: Saraiva, 2002, p. 141. Em idêntico sentido, Marçal Justen Filho aduz que “se pode conceber a intervenção da agência reguladora para composição de conflitos de interesses – sejam aqueles derivados de relações entre Estado e particular, sejam os que comportem controvérsias apenas entre particulares”. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 555.186 BRASIL. Lei n. 9.478, 06 de agosto de 1997. Art. 56. Observadas as disposições das leis pertinentes, qualquer empresa ou consórcio de empresas que atender ao disposto no art. 5° poderá receber autorização da ANP para construir instalações e efetuar qualquer modalidade de transporte de petróleo, seus derivados e gás natural, seja para suprimento interno ou para importação e exportação. Parágrafo único. A ANP baixará normas sobre a habilitação dos interessados e as condições para a autorização e para transferência de sua titularidade, observado o atendimento aos requisitos de proteção ambiental e segu-rança de tráfego. Art. 57. No prazo de cento e oitenta dias, a partir da publicação desta Lei, a PETROBRÁS e as demais empresas proprietárias de equipamentos e instalações de transporte marítimo e dutoviário receberão da ANP as respectivas autorizações, ratificando sua titularidade e seus direitos. Parágrafo único. As autorizações referidas neste artigo observarão as normas de que trata o parágrafo único do artigo anterior, quanto à transferência da titularidade e à ampliação da capacidade das instalações. Art. 58. Facultar-se-á a qualquer interessado o uso dos dutos de transporte e dos terminais marítimos existentes ou a serem construídos, mediante remuneração adequada ao titular das instalações. § 1º A ANP fixará o valor e a forma de pagamento da remuneração adequada, caso não haja acordo entre as partes, cabendo-lhe também verificar se o valor acordado é compatível com o mercado. § 2º A ANP regulará a preferência a ser atribuída ao proprietário das instalações para movimentação de seus próprios produtos, com o objetivo de promover a máxima utilização da capacidade de transporte pelos meios disponíveis. Art. 59. Os dutos de transferência serão reclassificados pela ANP como dutos de transporte, caso haja comprovado interesse de terceiros em sua utilização, observadas as disposições aplicáveis deste Capítulo.187 BRASIL. Lei n. 9.472, de 16 de julho de 1997. Art. 153. As condições para a interconexão de redes serão objeto de livre negociação entre os interes-sados, mediante acordo, observado o disposto nesta Lei e nos termos da regulamentação. § 1° O acordo será formalizado por contrato, cuja eficácia dependerá de homologação pela Agência, arquivando-se uma de suas vias na Biblioteca para consulta por qualquer interessado. § 2° Não havendo acordo entre os interessados, a Agência, por provocação de um deles, arbitrará as condições para a interconexão.188 BRASIL. Lei nº 9427, 26 de dezembro de 1996. Art. 3o Além das incumbências prescritas nos arts. 29 e 30 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, aplicáveis aos serviços de energia elétrica, compete especialmente à ANEEL: V - dirimir, no âmbito administrativo, as divergências entre concessionárias, permissionárias, autorizadas, produtores independentes e autoprodutores, bem como entre esses agentes e seus consumidores. 189 Diogo de Figueiredo Moreira Neto denota que a previsão dessas atividades administrativas judicantes nas leis de criação das Agências Regulado-ras representa um importante passo do Direito Administrativo brasileiro, haja vista que ultrapassa rapidamente as objeções que durante muito tempo impediam o desenvolvimento das formas alternativas de composição de conflitos. In: Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.231, p.129-156, jan./mar. 2003.

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A título exemplificativo, a Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, que dispõe sobre a criação da Agência Nacional de Petróleo - ANP, prevê que o contrato de concessão para as atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural deverão conter “regras sobre solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e arbitragem” (art. 43, X).

Do mesmo modo, a Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, que criou a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, dispõe no seu art. 93, inciso XV, que o contrato de concessão deverá conter “o modo para solução extrajudicial das divergências contratuais”.190

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

MOREIRA. Egon Bockmann. Regulação sucessiva: quem tem a última palavra? – Caso “pílula do câncer”: adi nº 5.501, STF. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MOREIRA, Egon Bockmann; GUERRA, Sérgio. Dinâmica da Regulação. 1.ED. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

Leitura complementar

ARAGÃO, Alexandre Santos de (coord.) O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras independentes – fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 25 a 72.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Um grupo norte-americano de telecomunicações decidiu que seria uma boa oportunidade para seus negócios ingressar no mercado brasileiro para prestar serviços de telecomunicações.

190 A lei de concessões de serviços públicos (Lei nº 8.987/95) estabelece no seu art. 23 que uma das cláusulas essenciais do contrato de concessão deve estabelecer o foro e ao modo amigável de solução das divergências contratuais (inciso XV).

Parágrafo único. A ANP baixará normas sobre a habilitação dos interessados e as condições para a autorização e para transferência de sua titularidade, observado o atendimento aos requisitos de proteção ambiental e segurança de tráfego. Art. 57. No prazo de cento e oitenta dias, a partir da publicação desta Lei, a PETROBRÁS e as demais empresas proprietárias de equipamentos e instalações de transporte marítimo e dutoviário receberão da ANP as respectivas autorizações, ratificando sua titularidade e seus direitos. Parágrafo único. As autorizações referidas neste artigo observarão as normas de que trata o parágrafo único do artigo anterior, quanto à transferência da titularidade e à ampliação da capacidade das instalações. Art. 58. Facultar-se-á a qualquer interessado o uso dos dutos de transporte e dos terminais marítimos existentes ou a serem construídos, mediante remuneração adequada ao titular das instalações. § 1º A ANP fixará o valor e a forma de pagamento da remuneração adequada, caso não haja acordo entre as partes, cabendo-lhe também verificar se o valor acordado é compatível com o mercado. § 2º A ANP regulará a preferência a ser atribuída ao proprietário das instalações para movimentação de seus próprios produtos, com o objetivo de promover a máxima utilização da capacidade de transporte pelos meios disponíveis. Art. 59. Os dutos de transferência serão reclassificados pela ANP como dutos de transporte, caso haja comprovado interesse de terceiros em sua utilização, observadas as disposições aplicáveis deste Capítulo.

187 BRASIL. Lei n. 9.472, de 16 de julho de 1997. Art. 153. As condições para a interconexão de redes serão objeto de livre negociação entre os interessados, mediante acordo, observado o disposto nesta Lei e nos termos da regulamentação. § 1° O acordo será formalizado por contrato, cuja eficácia dependerá de homologação pela Agência, arquivando-se uma de suas vias na Biblioteca para consulta por qualquer interessado. § 2° Não havendo acordo entre os interessados, a Agência, por provocação de um deles, arbitrará as condições para a interconexão.

188 BRASIL. Lei nº 9427, 26 de dezembro de 1996. Art. 3o Além das incumbências prescritas nos arts. 29 e 30 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, aplicáveis aos serviços de energia elétrica, compete especialmente à ANEEL: V - dirimir, no âmbito administrativo, as divergências entre concessionárias, permissionárias, autorizadas, produtores independentes e autoprodutores, bem como entre esses agentes e seus consumidores.

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Tendo analisado a Lei Geral de Telecomunicações e a estrutura regulatória do setor, o grupo decide participar do mercado e se sagra vencedor em um procedimento licitatório, tornando-se o principal acionista de uma concessionária de serviços de telefonia fixa comutada (STFC).

Para a definição das tarifas que podem ser cobradas pela concessionária, a ANATEL possui uma resolução que dispõe sobre a definição de “área local”. A definição da área local é de capital importância, pois identifica as áreas entre as quais é admitida a cobrança de DDD – Discagem Direta a Distância, com tarifa diferenciada. Dentro de cada região, somente pode ser cobrada a tarifa local. A concessionária iniciou suas operações seguindo a cobrança das tarifas de acordo com a resolução da ANATEL.

Todavia, o Ministério Público ajuizou ação civil pública porque a concessionária tem exigido o pagamento de DDD entre pessoas domiciliadas na mesma região metropolitana; por vezes, dentro de um mesmo município.

Caso você seja membro do Ministério Público, que argumentos embasam sua petição inicial?

Como advogado da concessionária, que argumentos você utilizaria para sustentar a validade da cobrança de DDD?

Na qualidade de juiz, como você resolveria a controvérsia?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Nessa aula foram estudados os poderes e funções exercidas pelas agências reguladoras: poder normativo, poder de fiscalização, poder de sanção, poder de conciliação, poder de resolução de controvérsias e poder de recomendação, aos quais se remetem as definições acima apresentadas.

189 Diogo de Figueiredo Moreira Neto denota que a previsão dessas atividades administrativas judicantes nas leis de criação das Agências Reguladoras representa um importante passo do Direito Administrativo brasileiro, haja vista que ultrapassa rapidamente as objeções que durante muito tempo impediam o desenvolvimento das formas alternativas de composição de conflitos. In: Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.231, p.129-156, jan./mar. 2003.

190 A lei de concessões de serviços públicos (Lei nº 8.987/95) estabelece no seu art. 23 que uma das cláusulas essenciais do contrato de concessão deve estabelecer o foro e ao modo amigável de solução das divergências contratuais (inciso XV).

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UNIDADE V: CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

AULA 17

I. TEMA

Controle do ato administrativo I: controle no âmbito do Executivo. Anulação e revogação do ato administrativo. Recurso hierárquico e recurso hierárquico impróprio.

II. ASSUNTO

Controle dos atos administrativos

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir as formas de controle dos atos praticados pelos órgãos e entidades da Administração Pública no âmbito do Poder Executivo. Com relação às entidades integrantes da Administração indireta, discutir especialmente o cabimento de recurso hierárquico impróprio.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Em um Estado Democrático de Direito, mostra-se primordial que os atos de uma entidade administrativa sejam passíveis de controle externo, isto é, por outras autoridades que não aquela que exarou o ato.

No âmbito administrativo, o “controle”, ou melhor, a “reconsideração” pelo próprio órgão que exarou o ato é sempre possível, sendo facultado à Administração revê-lo, em caso de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e tendo mesmo o dever de fazê-lo em caso de ilegalidade. Nesse sentido, mostra-se pacífico o entendimento da jurisprudência, conforme se observa do enunciado 473 da Súmula do Supremo Tribunal Federal:

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Súmula 473, STF – A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

Além disso, como regra geral, a Administração Pública organiza-se de forma hierárquica, podendo o cidadão, por conseguinte, recorrer contra determinada decisão ao ente hierarquicamente superior. Sobre o princípio da hierarquia na Administração Pública, observa Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

Este princípio diz respeito, assim, à coordenação e à subordinação desses entes, órgãos e agentes entre si e à distribuição escalonada das respectivas funções, com o objetivo de estabelecer uma sequência de autoridade progressiva, de modo a harmonizar esforços, ordenar atuações, fiscalizar atividades e corrigir irregularidades.O princípio hierárquico, de natureza instrumental, é, por esse motivo, notadamente essencial à disciplina da ação dos agentes da administração pública, que são os elementos humanos envolvidos, integrando-se com institutos dos campos da responsabilidade, da teoria das nulidades e da sanatória dos atos administrativos.191

No entanto, as entidades da Administração não se relacionam com o Poder Executivo central a partir de uma relação de subordinação, não havendo, nesses casos, que se falar em hierarquia. É o caso, por exemplo, das agências reguladoras, razão pela qual a doutrina discute se, relativamente a essas entidades não-subordinadas, caberia recurso contra seus atos ao Poder Executivo Central (o chamado “recurso hierárquico impróprio”).

Em princípio, a ausência de subordinação hierárquica das agências ao chefe do Poder Executivo se apresenta incompatível com o fato de se admitir a possibilidade de os administrados recorrerem a esse último em caso de discordância de uma decisão da agência. Cumpre lembrar, a esse respeito, que as agências reguladoras apresentam natureza jurídica de autarquias especiais, possuindo personalidade jurídica, receita e patrimônio próprios, dirigentes com mandato, e autonomia face ao Ministério a que se vinculam 192.

191 MOREIRA NETO, Diogo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 104.192 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 348-350.

191 MOREIRA NETO, Diogo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 104.

192 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 348-350.

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De fato, a relação entre a agência reguladora e o Ministério é de mera vinculação, e não de subordinação. Partindo das características de autonomia e ausência de subordinação, é possível defender ser a sua natureza incompatível com a possibilidade de recurso de suas decisões ao ministro de Estado.

Dessa forma, para uma correta aproximação do problema, torna-se necessário compreender a amplitude do direito ao recurso na esfera administrativa, e compatibilizá-lo com a autonomia inerente às agências.

Por um lado, pode-se defender que a garantia constitucional do recurso na esfera administrativa é observada com a mera previsão de recursos administrativos interna corporis, como, por exemplo, o recurso contra uma decisão monocrática à diretoria colegiada da agência. Além disso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem conferido interpretação restritiva ao art. 5º, LV, da Constituição, no que tange ao recurso na esfera administrativa, atribuindo ao dispositivo constitucional um significado próximo a uma exigência de “meios” ou “instrumentos” necessários à ampla defesa, mas não propriamente de um duplo grau de jurisdição na esfera administrativa.193

Assim, para essa corrente, a natureza jurídica das agências se apresenta incompatível com a possibilidade de recurso ao chefe do Poder Executivo ou aos ministros de Estado, mencionando-se, dentre as razões para tal recusa, (i) ausência de previsão legal, sendo que, à luz do princípio da legalidade estrita (art. 37, caput, da CF/88), a autoridade administrativa somente pode agir em havendo atribuição conferida por lei; (ii) a exigência do art. 5º, LV, da Constituição Federal encontrar-se-ia atendida pelos recursos internos à própria agência previstos nas leis que as instituíram; e (iii) admitir a possibilidade de recurso tornaria a estabilidade dos dirigentes conferida mediante mandato – justamente para torná-los insuscetíveis a pressões políticas – inócua. 194

Por outro lado, admitindo a possibilidade de recurso hierárquico impróprio em determinadas circunstâncias excepcionais, especialmente em caso de flagrante usurpação de competência, manifesta-se Sérgio Guerra:

a provocação de instâncias executivas superiores não é apenas direito dos administrados, mas torna-se também imperativo caso se pretenda observar o esgotamento das instâncias administrativas antes de sujeitar a questão ao Poder Judiciário.195

193 Veja-se, a respeito, manifestação do ministro Octávio Gallotti: “Sr. Presidente, também entendo que não há direito constitucional ao duplo grau de jurisdição, seja na via administrativa, seja na via judicial e, por esse motivo, a lei, ao criar um recurso que poderia não instituir, pode submetê-lo à exigência de depósito, ficando a ampla defesa assegurada quanto à decisão de primeira instância”. (voto do ministro Octávio Gallotti no Recurso Extraordinário nº 210.246-6/GO, proferido em 21.11.19970).194 Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 346 e ss.195 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2005, p. 256. Ver, ainda, desse autor: Agências reguladoras e supervisão ministerial. In O poder normativo das agências reguladoras. Alexandre Santos de Aragão (Coord.) Rio de Janeiro: Forense, 2006.

193 Veja-se, a respeito, manifestação do ministro Octávio Gallotti: “Sr. Presidente, também entendo que não há direito constitucional ao duplo grau de jurisdição, seja na via administrativa, seja na via judicial e, por esse motivo, a lei, ao criar um recurso que poderia não instituir, pode submetê-lo à exigência de depósito, ficando a ampla defesa assegurada quanto à decisão de primeira instância”. (voto do ministro Octávio Gallotti no Recurso Extraordinário nº 210.246-6/GO, proferido em 21.11.19970).

194 Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 346 e ss.

195 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2005, p. 256. Ver, ainda, desse autor: Agências reguladoras e supervisão ministerial. In O poder normativo das agências reguladoras. Alexandre Santos de Aragão (Coord.) Rio de Janeiro: Forense, 2006.

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Entretanto, para o autor, essa possibilidade de recurso não se apresenta ilimitada, pois que há de ser compatibilizada com a autonomia inerente às agências. Dessa forma, não é toda e qualquer matéria decidida pela agência que pode ser objeto de revisão pelo chefe do Poder Executivo. Como regra geral, quando realizadas dentro da sua esfera de competências, atos executivos, normativos ou judicantes das agências encontram-se imunes à revisão na esfera administrativa, sendo, no entanto:

plausível inferir ser cabível o recurso hierárquico impróprio contra as decisões do órgão máximo das Agências Reguladoras quando deliberarem acerca de temas exclusivamente relacionados às políticas públicas do setor regulado, em flagrante usurpação de competência do Poder Legislativo e do Poder Executivo, aí estando incluída a esfera ministerial com supedâneo no art. 76 da Constituição da República.196

A visão acima descrita se encontra baseada no art. 76 da Constituição, segundo o qual:

Art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.

O art. 84, II, da Constituição Federal, por sua vez, dispõe competir privativamente ao presidente da República a direção superior da administração federal, com o auxílio dos ministros de Estado.

Em síntese, é com fulcro nos supracitados dispositivos constitucionais, que conferem ao presidente da República competência genérica de supervisão da administração federal, que essa vertente doutrinária sustenta a possibilidade de, quando uma decisão de agência reguladora for proferida em usurpação de competência privativa do chefe do Poder Executivo (como no caso da definição de políticas públicas), o ministro de Estado a que esteja vinculada a agência possa conhecer de recurso interposto pelo administrado que se julgar prejudicado. Explica-se a denominação recurso hierárquico “impróprio” pela ausência de subordinação entre a entidade que expediu a decisão ou ato questionado e a autoridade revisora.

196 Ob. cit., pp. 257 e 258.

196 Ob. cit., pp. 257 e 258.

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V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

REHEM, Danilo; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo ; PALMA, Juliana Bonacorsi de; MERLOTTO, Nara ; GABRIEL, Yasser . Reputação institucional e o controle das Agências Reguladoras pelo TCU. Revista de Direito Administrativo - RDA, ano 15, n. 278.2, p. página inicial-página final, maio/ ago. 2019. 

Leitura complementar

GUERRA, Sérgio. Agências reguladoras e supervisão ministerial. In ARAGÃO, Alexandre Santos de. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, pp. 584 a 593.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 349 a 383.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

A Agência Nacional de Transportes Aquaviários, no exercício de sua competência fiscalizatória, receou que estivesse havendo prática anticoncorrencial relativamente à cobrança de taxa praticada pelos terminais alfandegados sobre a movimentação e entrega de contêineres destinados a terminais retroalfandegados do Porto de Salvador.

Em razão dessa suspeita, a ANTAQ exarou ato administrativo, consistente na remessa de ofício contendo suas considerações sobre o tema ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, autarquia federal com competência para decidir administrativamente sobre infrações à Ordem Econômica, para que essa adotasse as providências cabíveis na sua esfera de atribuições.

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Inconformada, uma das empresas investigadas recorreu ao Ministro dos Transportes, solicitando-lhe que anulasse o ato da agência reguladora que determinou o envio da questão ao CADE. A esse respeito, pergunta-se:

Deve o Ministro dos Transportes conhecer e julgar o recurso apresentado?

Quais são as correntes existentes sobre o poder de revisão do Poder Executivo central sobre os atos das agências reguladoras?

Por que, para a parcela da doutrina que admite a possibilidade de propositura de referido recurso, esse é denominado “recurso hierárquico impróprio”?

Ainda que se admita essa possibilidade, quais seriam os limites da revisão a ser exercida pelos membros do Poder Executivo central?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Os atos da Administração Pública, a despeito de gozarem de presunção de legalidade, estão sujeitos a controle administrativo, sendo dever da Administração Pública anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial, nos termos da Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal.

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AULA 18

I. TEMA

Controle do ato administrativo II: Controle pelo Poder Legislativo, pelo Tribunal de Contas e pelo Ministério Público.

II. ASSUNTO

Controle do ato administrativo

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar o controle dos atos da administração pública pelo Poder Legislativo e pelo Tribunal de Contas, e discutir os limites desse poder de revisão.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

O controle parlamentar

Nos termos do art. 49, X, da Constituição Federal, compete exclusivamente ao Congresso Nacional fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta.

Merece também menção, o inciso V desse mesmo dispositivo constitucional, segundo o qual incumbe ao Congresso Nacional “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.

Quanto à extensão das matérias que podem ser objeto de controle pelo Congresso Nacional, observa Marçal Justen Filho, tratando especificamente dos atos das agências reguladoras:

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O controle parlamentar pode versar, de modo ilimitado, sobre toda a atividade desempenhada pela agência, inclusive no tocante àquela prevista para realizar-se em épocas futuras – ressalvada a necessidade de sigilo em face das características da matéria regulada. Poderá questionar-se não apenas a gestão interna da agência, mas também se exigir a justificativa para as decisões de cunho regulatório. Caberá fiscalizar inclusive o processo administrativo que antecedeu a decisão regulatória produzida pela agência, com ampla exigência de informações sobre as justificativas técnico-científicas das opções adotadas.197

O controle pelo Tribunal de Contas

A Administração Pública tem suas contas, atos e contratos submetidos ao controle do Congresso Nacional. Nesse sentido expressamente dispõe o art. 70, caput, da Constituição Federal:

Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo controle interno de cada poder.

O art. 71 da Constituição, por sua vez, determina que, no exercício do controle externo, o Congresso Nacional será auxiliado pelo Tribunal de Contas da União, nos seguintes termos:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: ...II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

197 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 588.

197 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 588.

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III – apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadoria, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório (...)VIII – aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;IX – assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada a ilegalidade;X – sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;(...)§1º. No caso de contrato, o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional, que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis.§2º. Se o Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de noventa dias, não efetivar as medidas previstas no parágrafo anterior, o Tribunal decidirá a respeito. (...)

Dessa forma, por força de expressa previsão constitucional, a Administração Pública federal direta e indireta submete-se ao controle externo do Congresso Nacional, auxiliado pelo Tribunal de Contas da União, cuja natureza jurídica, portanto, é de órgão auxiliar do Poder Legislativo. Exerce, assim, atividade eminentemente administrativa de cunho fiscalizatório.198

Um tema que merece análise mais cuidadosa diz respeito à necessidade de todos os atos e decisões das entidades da Administração Pública indireta (como as autarquias, sociedades de economia mista e empresas públicas) submeterem-se ao controle do Tribunal de Contas, ou se somente aqueles nos quais se observa um efeito direto sobre dispêndio de verbas públicas subordinam-se a tal revisão.

198 Com relação aos órgãos e entidades da Administração Pública estadual, tal competência é exercida pelos Tribunais de Contas dos Estados. Es-pecificamente com relação aos municípios, por um lado, ainda são poucos os municípios que instituíram agências reguladoras. Por outro, a Constituição Federal de 1988 proibiu a criação de novos tribunais de contas municipais, mantendo, todavia, em funcionamento aqueles em vigor anteriormente à sua promulgação. Assim, em municípios onde não houver Tribunal de Contas, as agências municipais deverão prestar contas ao Tribunal de Contas estadual. Veja-se, a esse respeito, o disposto no art. 75 da Constituição Federal: “As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tri-bunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.” Vide, ainda, art. 37, §4º, da CF/88: “É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais.”

198 Com relação aos órgãos e entidades da Administração Pública estadual, tal competência é exercida pelos Tribunais de Contas dos Estados. Especificamente com relação aos municípios, por um lado, ainda são poucos os municípios que instituíram agências reguladoras. Por outro, a Constituição Federal de 1988 proibiu a criação de novos tribunais de contas municipais, mantendo, todavia, em funcionamento aqueles em vigor anteriormente à sua promulgação. Assim, em municípios onde não houver Tribunal de Contas, as agências municipais deverão prestar contas ao Tribunal de Contas estadual. Veja-se, a esse respeito, o disposto no art. 75 da Constituição Federal: “As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.” Vide, ainda, art. 37, §4º, da CF/88: “É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais.”

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Tal questão se desdobra na controvérsia, por exemplo, sobre terem os Tribunais de Contas competência para controlar “atos de regulação”, tais como reajustes tarifários ou decisões sobre reequilíbrio econômico-financeiro de contrato de concessão. O assunto é apresentado por Alexandre Santos de Aragão nos seguintes termos:

Considerando que tais atos não implicam em gasto de verba pública, isto é, que não geram despesas a serem arcadas pelo Estado, não eclodindo, consequentemente, o pressuposto do controle pelo Tribunal de Contas (art. 7, CF), Luís Roberto Barroso sustentou (...) que “não pode o Tribunal de Contas questionar decisões político-administrativas da ASEP-RJ199 nem tampouco requisitar planilhas e relatórios expedidos pela Agência ou por concessionário, que especifiquem fiscalização e procedimentos adotados na execução contratual”.Posição diversa é a sustentada por Mauro Roberto Gomes de Matos, que afirma, com fulcro no art. 71, VIII, que “o ato administrativo que defere o aumento de tarifa se inclui no enredo constitucional de contas públicas, visto que mesmo ela sendo paga pelo usuário do serviço, é cobrada mediante a prestação de um serviço público outorgado pelo Estado”.200

Apesar da controvérsia, os Tribunais de Contas não têm se furtado ao exercício de ampla competência revisional em matéria regulatória, cujos limites, em todo caso, pautam-se necessariamente pelos princípios constitucionais já acima aduzidos.

Cumpre ressaltar, ainda, que o TCU exarou atos normativos especificamente para reger a sua fiscalização sobre os processos de desestatização e sobre os processos de revisão tarifária periódica das distribuidoras de energia elétrica.201

O controle pelo Ministério Público

Nos termos da Constituição Federal, o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesse sentido, são princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

199 A ASEP era a antiga Agência Reguladora dos Serviços Públicos Concedidos do Estado do Rio de Janeiro, substituída nas suas funções pela AGE-TRANSP – Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro e pela AGENERSA – Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro.200 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 340.201 A Instrução Normativa TCU nº 27, de 07.12.1998, dispõe sobre a fiscalização, pelo Tribunal de Contas da União, dos processos de desestatização. A Instrução Normativa nº 43, de 10.07.2002, dispõe sobre o acompanhamento, pelo Tribunal de Contas da União, dos processos de revisão tarifária periódica dos contratos de concessão dos serviços de distribuição de energia elétrica.

199 A ASEP era a antiga Agência Reguladora dos Serviços Públicos Concedidos do Estado do Rio de Janeiro, substituída nas suas funções pela AGETRANSP – Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro e pela AGENERSA – Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro.

200 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 340.

201 A Instrução Normativa TCU nº 27, de 07.12.1998, dispõe sobre a fiscalização, pelo Tribunal de Contas da União, dos processos de desestatização. A Instrução Normativa nº 43, de 10.07.2002, dispõe sobre o acompanhamento, pelo Tribunal de Contas da União, dos processos de revisão tarifária periódica dos contratos de concessão dos serviços de distribuição de energia elétrica.

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Competem ao Ministério Público atribuições muito amplas, abertas, haja vista o uso de conceitos jurídicos indeterminados no texto constitucional, a saber:

a) zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

b) promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

Desse modo, e à luz dessa competência atribuída pela Carta Magna, o Ministério Público vem agindo em diversos assuntos submetidos à regulação estatal de serviços públicos e atividades econômicas. Cumpre indagar qual a extensão e os limites do exercício dessas atribuições à luz do ordenamento jurídico vigente.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:

• Controle da Administração Pública

• Controle legislativo

Leitura complementar

JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, pp. 584 a 593.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 349 a 383.

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VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador 1:

Em 2011, uma resolução da ANVISA proibiu a fabricação, importação, exportação, manipulação, prescrição e o comércio de remédios com as substâncias femproporex, anfepramona e mazindol na fórmula (anfetaminas), utilizadas no controle da obesidade. No entanto, importante ala da sociedade sustenta que referida proibição prejudica as pessoas que sofrem com obesidade, especialmente com a obesidade mórbida. O tema foi objeto de debate no Senado Federal e, em seguida, na Câmara. O Poder Legislativo pode tomar alguma iniciativa no intuito de controlar o ato praticado pela ANVISA, que não seja o exercício do seu poder de legislar?

Caso gerador 2:

A Agência Nacional de Telecomunicações fez publicar edital de licitação para outorga de faixas de frequência do serviço de provimento de acesso à internet banda larga sem fio. No edital, a ANATEL proibiu que a concessionária incumbente de telefonia fixa local participasse da referida licitação na região em que fosse titular da concessão.

O Ministério das Comunicações discordou desse posicionamento, manifestando-se publicamente contra a restrição que, a seu ver, restringiria de forma desnecessária os potenciais licitantes.

Em defesa da restrição, a ANATEL alega que as concessionárias locais, por serem titulares da exploração da infraestrutura local e já operarem o serviço de banda larga por de linha telefônica (ADSL), encontram-se em posição favorecida face às demais licitantes, e poderiam realizar concorrência predatória às entrantes.

Conforme visto, o Tribunal de Contas da União possui competência para acompanhar os processos de licitação realizados pelas entidades da administração pública indireta, como as agências reguladoras. Entretanto, discute-se qual o limite de intervenção do TCU nesses processos.

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No caso em comento, o TCU determinou a suspensão da licitação a fim de que a ANATEL prestasse informações sobre o modelo escolhido para as outorgas, e as razões pelas quais as concessionárias de telefonia fixa local foram impedidas de participar.

Considerando os fatos acima narrados, tem o TCU competência para determinar a suspensão da licitação?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Em atenção ao controle entre os Poderes integrantes da República, os atos administrativos são sujeitos também ao controle do Poder Legislativo, nos termos do art. 49, V e X, da Constituição Federal, e do Tribunal de Contas, nos termos do art. 70 da Constituição Federal. Também os atos administrativos submetem-se ao crivo do Poder Judiciário, revisão essa, no entanto, que deve ser consistente com o princípio da separação dos poderes.

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AULA 19

I. TEMA

Controle dos atos administrativos

II. ASSUNTO

Controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir o âmbito e os limites de revisão, pelo Poder Judiciário, dos atos administrativos.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

O controle judicial dos atos administrativos

Conforme visto na matéria Atividades e Atos Administrativos, a amplitude do controle do Poder Judiciário sobre os atos da administração mostra-se questão profundamente controversa.

A sujeição desses atos ao controle do Poder Judiciário não é questionada, em razão do princípio da jurisdição una ou da inafastabilidade do conhecimento de lesão a direito pelo Poder Judiciário, expressamente disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal:

Art. 5º (...)XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Ampla discussão emerge, no entanto, quanto aos limites desse controle.

De fato, classicamente se entendia que o Poder Judiciário não pode adentrar o mérito de escolhas discricionárias da Administração, uma vez que a competência para o exercício do juízo de conveniência e oportunidade incumbe à Administração Pública – e não ao Poder Judiciário.

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Nesse sentido, manifesta-se Hely Lopes Meirelles: “quanto ao objeto do controle, (...) há de ser unicamente a legalidade, sendo-lhe vedado pronunciar-se sobre conveniência, oportunidade ou eficiência do ato em exame, ou seja, sobre o mérito administrativo”.202

Sobre a necessidade de o Poder Judiciário respeitar o âmbito de discricionariedade dos entes administrativos, expõe Sérgio Guerra, no âmbito dos atos regulatórios:

o excesso da atuação jurisdicional sobre as decisões administrativas traz consigo a controvérsia acerca das decisões de agentes públicos, democraticamente eleitos ou não, pelos juízes. (...) Se o julgador alterar um ato administrativo regulatório, que envolve, fundamentalmente, a eleição discricionária dos meios técnicos necessários para o alcance dos fins e interesses setoriais – despido das pressões políticas comumente sofridas pelos representantes escolhidos pelo sufrágio –, esse magistrado, na maioria das vezes, poderá, por uma só penada, afetar toda a harmonia e equilíbrio de um subsistema regulado.203

No mesmo sentido, veja-se Marçal Justen Filho:

Insista-se em que o ato produzido pela agência, ainda quando apto a produzir efeitos abstratos e gerais, continua a se qualificar como ato administrativo. Trata-se de uma manifestação de discricionariedade, que demanda exame e qualificação pelo Judiciário segundo os princípios gerais vigentes. Isso significa que o exercício de competências vinculadas comporta ampla investigação pelo Judiciário. Mesmo no tocante à discricionariedade é possível cogitar da fiscalização jurisdicional. O controle jurisdicional não pode invadir aquele núcleo de autonomia decisória inerente à discricionariedade. (...) O Judiciário pode verificar se a autoridade administrativa adotou todas as providências necessárias ao desempenho satisfatório de uma competência discricionária. É possível invalidar a decisão administrativa quando se evidencie ter sido adotada sem as cautelas necessárias, impostas pelo conhecimento técnico-científico.204

202 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 24a ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 633203 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 271-272.204 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 590, grifou-se.

202 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 24a ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 633

203 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 271-272.

204 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 590, grifou-se.

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Portanto, o Poder Judiciário não tem competência revisora sobre o exercício da competência discricionária da Administração, desde que exercida nos limites da atribuição que lhe tenha sido legalmente atribuída e respeitados os princípios constitucionais regedores da atividade administrativa. Não se pode negar que a Administração – direta ou indireta – possui um núcleo de competências discricionárias, sobre as quais pode exercer um juízo de conveniência e oportunidade, e sobre o qual o Poder Judiciário não possui competência revisora. Conforme observa Sergio Guerra, “a Administração é livre para eleger, dentro do amplo espaço que em cada caso lhe permite a lei e o Direito, as razões (jurídicas, econômicas, sociais, técnicas, ambientais), a curto, médio e longo prazo, que servem de suporte a suas decisões”205. Essa constitui uma diferença intrínseca para o papel desempenhado pelo Poder Judiciário, que considera, em suas razões de decidir, unicamente questões jurídicas.

Veja-se, a título ilustrativo, a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça. Na qual se discutiu o limite da revisão do Poder Judiciário sobre ato administrativo exarado por agência reguladora: A partir da decisão abaixo, pode-se perceber que o STJ tem reconhecido a importância da atividade desempenhada pelas agências reguladoras, bem como a limitação da competência revisional do Poder Judiciário sobre os atos das agências, conforme se constata na decisão da lavra do ministro Edson Vidigal, no caso do reajuste tarifário da CELPE, cujo trecho segue a seguir transcrito.

Em breve síntese, foi proposta ação civil pública pretendendo a declaração de nulidade do reajuste tarifário autorizado pela ANEEL, tendo o pedido de antecipação de tutela sido deferido em primeira instância, para suspender os efeitos da Resolução Homologatória e do Despacho ANEEL que haviam fixado a nova tarifa. O juízo determinou, ainda, que a ANEEL fixasse provisoriamente novos percentuais para as tarifas, bem como fossem mantidos os valores anteriormente praticados até a divulgação das novas tarifas provisórias, em conformidade com a decisão judicial.

Tendo a decisão sido mantida em segunda instância, sobreveio pedido de suspensão da referida antecipação da tutela ao Superior Tribunal de Justiça, ocasião em que assim se manifestou o ministro Edson Vidigal, ao deferir o pedido:

Quanto ao potencial lesivo da liminar em comento, a requerente enfatizou que o questionado reajuste foi fixado com base em critérios técnicos, fiéis à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão vigente (Cláusula Sétima), determinados, inclusive, por componentes alheios à gestão da Concessionária, não havendo excesso.

205 GUERRA, Sergio. “Atualidades sobre o controle judicial dos atos regulatórios”. In: LANDAU, Elena (org.). Regulação jurídica no setor elétrico. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 174.

205 GUERRA, Sergio. “Atualidades sobre o controle judicial dos atos regulatórios”. In: LANDAU, Elena (org.). Regulação jurídica no setor elétrico. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 174.

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DIREITO DA REGULAÇÃO

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É certo que na oportunidade da celebração do contrato de concessão da distribuidora de energia elétrica, conforme autorizado pela legislação pertinente, inseriram-se cláusulas prevendo mecanismos de manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro, como o reajuste tarifário. Esses mecanismos têm origem na política tarifária previamente aprovada pelo Conselho Nacional de Desestatização – CND, e são vitais para que a prestação do serviço público possa se dar em conformidade com os princípios constitucionais e legais incidentes, e que não só permitam, mas viabilizem a celebração de tais contratos entre o Poder Público e o particular que se disponha a negociar com a Administração, notadamente em se tratando de contratos de concessão com prolongado prazo de duração.Assim já decidi em hipótese semelhante (SL 57-DF): o descumprimento de cláusulas contratuais, impedindo a correção do valor real da tarifa, nos termos em que previsto no contato de concessão, causa sérios prejuízos financeiros à empresa concessionária, podendo afetar gravemente a qualidade dos serviços prestados e sua manutenção, implicando ausência de investimentos no setor, prejudicando os usuários, causando reflexos negativos na economia pública, porquanto inspira insegurança e riscos na contratação com a Administração Pública, afastando os investidores, resultando graves conseqüências também para o interesse público como um todo, além, é claro, de repercutir negativamente no chamado “Risco Brasil”. (...)Por isso, em que pesem os argumentos do Pleno do TRF/5ª Região, que ressaltou a complexidade e inacessibilidade do sistema tarifário de energia elétrica e necessidade de contenção dos prejuízos impostos à sociedade - matéria a ser tratada no mérito da ação -, vejo caracterizados aqui os pressupostos necessários ao deferimento do pedido de suspensão, e o risco inverso, vez que a decisão é passível de causar grave lesão aos interesses públicos privilegiados, ordem administrativa e economia pública, Lei nº 8.437/92, art. 4º.

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DIREITO DA REGULAÇÃO

155FGV DIREITO RIO

Assim, defiro em parte o pedido, para suspender a decisão que antecipou a tutela nos autos da Ação Civil Pública nº 2005.83.00.008345-6, confirmada pelo Pleno do TRF 5ª Região, até o julgamento do mérito perante o Tribunal de origem.206

A decisão supratranscrita demonstra a inclinação do Superior Tribunal de Justiça em preservar o marco regulatório em vigor, reconhecendo a importância do equilíbrio econômico-financeiro da concessão e da divisão de funções entre o Poder Executivo – formulador e executor de políticas públicas – e o Poder Judiciário, guardião do Estado de Direito. Conforme observado, a regulação possui uma dimensão prospectiva e de ordenação setorial, que não pode ser desconsiderada quando da análise jurídica das questões setoriais.

Por outro lado, os Tribunais pátrios não têm se furtado a declarar a nulidade de atos praticados pela Administração Pública quando afrontam os princípios constitucionais regedores da atuação administrativa, não mais se podendo dizer que tal controle se limita a critérios como legalidade e competência, mas inclui também revisão à luz de todos os princípios constitucionais, inclusive quanto à proporcionalidade e razoabilidade. Vejam-se, a título exemplificativo, as seguintes decisões do STJ:

ADMINISTRATIVO. MEDIDA CAUTELAR. EFEITO ATIVO A RECURSO ESPECIAL. REGISTRO DE MEDICAMENTOS COM FÓRMULAS INSCRITAS NA FARMACOPÉIA BRASILEIRA. PRODUTOS FITOTERÁPICOS. ISENÇÃO. LIMINAR DEFERIDA.(...) 2. A Lei nº 6.360/76, que disciplina a comercialização de produtos farmacêuticos, é bastante clara ao estatuir, no art. 23, a desnecessidade de registro para os medicamentos cujas fórmulas estejam inscritas na Farmacopeia Brasileira, situação na qual se enquadram os produtos fitoterápicos industrializados pela requerente.

206 STJ, SLS nº 162, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ 20.09.2005.

206 STJ, SLS nº 162, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ 20.09.2005.

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DIREITO DA REGULAÇÃO

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3. A restrição imposta à requerente, consistente na apreensão, em todo o território brasileiro, dos produtos por ela comercializados, por falta de registro não exigido em lei, configura dano à sua imagem comercial, além de comprometer a própria existência da pessoa jurídica, impossibilitada que fica de exercer suas atividades comerciais, situação que coloca em risco, via reflexa, o emprego de inúmeros trabalhadores que ali ganham o seu sustento diário.4. Não se pode atribuir conotação maniqueísta e discriminatória aos interesses comerciais da empresa requerente, tão-só porque confrontados, na espécie, com os sagrados princípios que dizem o direito à vida e à saúde da população brasileira, dos quais se coloca como guardiã a Agência requerida. (...)7. Agravo regimental a que se nega provimento.207

A D M I N I S T R A T I V O . TELECOMUNICAÇÕES. REGULAMENTA-ÇÃO DO PLANO GERAL DE OUTORGAS. DECRETO Nº 2.534/98. CONCEITO DE EMPRESA COLIGADA. DESCONSIDERAÇÃO DAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA RESOLUÇÃO Nº 101/99 DA ANATEL. INVASÃO DE CAMPO NORMATIVO ALHEIO. SENTENÇA REFORMADA. APELAÇÃO PROVIDA.1. O Plano Geral de Outorgas de Serviços de Telecomunicações, editado pelo Decreto nº 2.534/98, mediante autorização expressa da Lei 9.472/97, art. 18, II, veda a autorização para prestação de serviços de telecomunicações em geral a empresa coligada com outra prestadora de serviço telefônico fixo, observados os demais termos do art. 10, § 2º.2. O conceito de empresa coligada, havendo participação sucessiva de várias pessoas jurídicas, é fornecido pelo art. 15 e § único da referida disposição normativa, que manda considerar o valor final da participação por meio da composição das frações de controle de cada empresa na linha de encadeamento.

207 AgRg na MC 6146 / DF, 2a Turma do STJ, j. em 12.08.2003, v.u.

207 AgRg na MC 6146 / DF, 2a Turma do STJ, j. em 12.08.2003, v.u.

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3. Tal conceito não pode ser alterado por critérios introduzidos pela Resolução 101/99 da ANATEL, porque refoge ao campo de competência normativa adstrito à agência reguladora, não amparado pelo art. 19, XIX, da Lei 9.472/97.4. Preliminares rejeitadas e apelação provida para determinar o exame do pedido administrativo com desconsideração dos dispositivos da aludida Resolução relativos à participação acionária sucessiva.5. Sentença reformada.208

Ainda no que tange aos limites da revisão judicial dos atos administrativos, faz-se necessário enfrentar o tema da possibilidade de o juiz substituir a decisão proferida na esfera administrativa.

Como regra geral, tem-se que tal substituição é possível, mas não devida, pois violaria o princípio da separação dos poderes. Com efeito, o juiz, ao anular uma decisão administrativa, não pode substituir o juízo de conveniência e oportunidade que é próprio da Administração Pública, pois nem a Constituição nem as leis lhe outorgam tal competência209. Assim, deverá reenviar a matéria para nova decisão pela entidade administrativa.

Excepcionalmente, em elogio ao princípio da eficiência, parcela da doutrina admite que, quando apenas uma solução legítima puder ser extraída do ordenamento jurídico, estará o juiz autorizado a determiná-la, substituindo o ato administrativo anulado.210

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo:Atlas, item:

• Controle da Administração Pública

• Controle judicial (itens 1 a 4)

208 Processo nº 200034000054157, 1a Turma do TRF da 1a Região, j. em 27.06.2001, v.u.209 Nas palavras de Sérgio Guerra: “caso o Poder Judiciário anule uma decisão regulatória discricionária por inobservância, pelo agente regulador, de elementos conformadores do ato, o magistrado deve devolver o assunto à Agência Reguladora para que exare outra decisão, levando em consideração todos os aspectos apontados pelo Tribunal.” GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2005, p. 277.210 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 353.

208 Processo nº 200034000054157, 1a Turma do TRF da 1a Região, j. em 27.06.2001, v.u.

209 Nas palavras de Sérgio Guerra: “caso o Poder Judiciário anule uma decisão regulatória discricionária por inobservância, pelo agente regulador, de elementos conformadores do ato, o magistrado deve devolver o assunto à Agência Reguladora para que exare outra decisão, levando em consideração todos os aspectos apontados pelo Tribunal.” GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2005, p. 277.

210 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 353.

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DIREITO DA REGULAÇÃO

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VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

O Ministério Público ingressou com uma ação civil pública em face de uma concessionária de serviço de telefonia fixa comutada, alegando que a cobrança de assinatura básica, i.e., de uma tarifa que o usuário do serviço paga à concessionária independentemente do seu uso efetivo, viola o Código de Defesa do Consumidor, constituindo cláusula abusiva das relações de consumo. A cobrança, no entanto, tem a aprovação da ANATEL, estando autorizada em uma resolução da Diretoria Colegiada da autarquia.

Se você fosse membro do Ministério Público, há algum outro argumento que poderia incluir em sua petição inicial?

Na qualidade de advogado da concessionária, que argumentos de defesa apresentaria?

Se fosse magistrado, como decidiria a controvérsia?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Os atos administrativos submetem-se ao crivo do Poder Judiciário, revisão essa, no entanto, que deve ser consistente com o princípio da separação dos poderes.

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DIREITO DA REGULAÇÃO

159FGV DIREITO RIO

UNIDADE VI: PROCESSO ADMINISTRATIVO

AULA 20

I. TEMA

Processo administrativo: princípios e fundamentos

II. ASSUNTO

Processo administrativo.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar os princípios norteadores dos processos administrativos, com ênfase no processo administrativo federal e sua disciplina pela Lei nº 9.784/1999.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Conforme vimos observando ao longo de todo o estudo do Direito Administrativo, a mudança do enfoque autoritário para a compreensão da função administrativa como provedora de serviços públicos e garantidora de direitos fundamentais veio a requerer uma maior sindicabilidade e transparência das atividades estatais. Também a proteção dos cidadãos ante os atos da Administração Pública ganha reforço, como já tivemos oportunidade de estudar, no que se refere aos princípios a que a Administração Pública deve obediência, em especial, legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, proporcionalidade, razoabilidade, finalidade e motivação.

Nesse contexto, a Constituição Federal garantiu a todo indivíduo também o direito ao contraditório e à ampla defesa no âmbito dos processos administrativos.

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DIREITO DA REGULAÇÃO

160FGV DIREITO RIO

Desde 1999, encontra-se em vigor a Lei nº 9.784, a qual apresenta as principais normas de direito administrativo processual em matéria federal, tendo por finalidade preservar direitos dos administrados e melhor cumprimento dos fins da Administração (art. 1º). Seus dispositivos aplicam-se a todos os processos administrativos em curso ante as autoridades que compõem a Administração Pública Federal, naquilo em que não conflitarem com eventuais leis especiais que prevejam ritos processuais próprios, que permaneceram em vigor (art. 69). Sobre o âmbito de incidência da lei, faz-se relevante observar a lição de José dos Santos Carvalho Filho:

A Administração Federal envolve, genericamente, todos os órgãos e pessoas administrativas federais. (...) vale a pena sublinhar que a lei se referiu expressamente à administração indireta, que, como é sabido, pode ser desempenhada por entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado, como é o caso das sociedades de economia mista e empresas públicas. Conquanto sejam pessoas privadas, não deixam de integrar a Administração Pública federal, de modo que também elas deverão observar o procedimento estatuído na lei, sobretudo quando houver interesses de terceiros, administrados, que devem ser preservados como deseja o diploma regulador.211

Os princípios norteadores dos processos administrativos federais são encontrados logo no artigo 2º, caput, segundo o qual:

Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Adicionalmente, no parágrafo único desse mesmo artigo apresenta outros princípios de primordial envergadura no que se refere à proteção do administrado face à Administração Pública, dentre os quais destacamos o dever de probidade e boa-fé (inc. IV); dever de fundamentação das decisões administrativas (inc. VII); e a proibição de aplicação retroativa de nova interpretação adotada pela Administração (inc.XIII):

211 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, p. 41.

211 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, p. 41.

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Art. 2º. (...)Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:I - atuação conforme a lei e o Direito;II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei;III - objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades;IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;V - divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição;VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;VII - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão;VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados;IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;X - garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio;XI - proibição de cobrança de despesas processuais, ressalvadas as previstas em lei;XII - impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuízo da atuação dos interessados;XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

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A Lei nº 9.784/1999 assegura ao Administrado os seguintes direitos:

Art. 3o O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:I - ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;IV - fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei.

Em contrapartida, impõe-lhe também importantes deveres, dentre os quais o de expor os fatos conforme a verdade e atuar de boa-fé:

Art. 4o São deveres do administrado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo:I - expor os fatos conforme a verdade;II - proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé;III - não agir de modo temerário;IV - prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar para o esclarecimento dos fatos.

A lei federal traz dispositivos eminentemente processuais, tais como competência, forma de processamento do feito, produção de provas, impedimento e suspeição do servidor ou autoridade que decidirá o pleito; forma, tempo e lugar do processo; instrução.

O princípio da motivação mereceu um capítulo especial na Lei, cujo dispositivo é aqui reproduzido pela importância das garantias que conferem aos administrados:

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DIREITO DA REGULAÇÃO

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CAPÍTULO XIIDA MOTIVAÇÃO

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública;IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório;V - decidam recursos administrativos;VI - decorram de reexame de ofício;VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais;VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.§ 1o A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.§ 2o Na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que não prejudique direito ou garantia dos interessados.§ 3o A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito.

Direito Administrativo Sancionador

Alguns processos administrativos têm por finalidade específica constatar a existência de um ilícito administrativo para, se for o caso, impor a correspondente sanção. Trata-se do denominado Direito Administrativo Sancionador.

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DIREITO DA REGULAÇÃO

164FGV DIREITO RIO

A sanção administrativa, na visão de Fábio Medina Osório consiste:

em um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos, com alcance geral e potencialmente pro futuro, imposto pela Administração Pública, materialmente considerada, pelo Judiciário ou por corporações de direito público, a um administrado, jurisdicionado, agente público, pessoa física ou jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como conseqüência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativa. A finalidade repressora, ou punitiva, já inclui a disciplinar, mas não custa deixar clara essa inclusão, para não haver dúvidas.212

No âmbito do direito administrativo sancionador, faz-se relevante trazer a lume algumas regras e princípios que vigoram no direito penal, a fim de analisar a extensão de sua aplicabilidade no âmbito do direito administrativo sancionador:

Princípio da presunção de inocência

Na seara administrativa, o princípio aplica-se, de acordo com Fábio Medina Osório, com algumas nuances. O autor observa, por exemplo, que “no Direito Administrativo Sancionador, alguns atos gozam, sim, de alguma presunção de veracidade”, a qual, no entanto, também não se mostra absoluta. Assim, poder-se-ia sugerir a existência de uma relativa inversão do ônus da prova, impensável em sede penal, onde o princípio da presunção de inocência vigora de forma mais ampla.213 Assim, o autor constata a tendência a “um caminho restritivo à presunção de inocência, estabelecendo-se, com critérios de razoabilidade, uma equilibrada distribuição do ônus probatório, sem desconsiderar as peculiaridades dos casos concretos e, inclusive, as necessidades sociais, a partir de avanços tecnológicos”.214

212 OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador. 2ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 104.213 Direito administrativo sancionador. 2ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 487.214 OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 488.

212 OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador. 2ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 104.

213 Direito administrativo sancionador. 2ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 487.

214 OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 488.

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Ausência de dever de o acusado declarar ou produzir prova contra si mesmo

Como é sabido, na seara penal, o acusado tem o direito de se manter em silêncio.

No âmbito do direito administrativo sancionador, Fábio Medina Osório sustenta que, como regra geral, o administrado não deve ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.215

Princípio da ampla defesa

Cumpre lembrar que, por força constitucional, o princípio da ampla defesa incide também em sede de direito administrativo sancionador:

Art. 5º.(...)LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

No entanto, trata-se de direito que deve ser exercido no âmbito do devido processo legal:

A norma que consagra a ampla defesa há de ser interpretada com a razoabilidade que recomenda e exige o devido processo legal. Amplitude de defesa não é uma só, insisto, em processos penais, administrativos ou de improbidade administrativa. As distinções resultam da inserção da ampla defesa, ou dos direitos de defesa, no devido processo legal. Cada processo tem suas peculiaridades e disso depende, também o alcance dos direitos de defesa. Impossível uma generalização absoluta e radical.216

Direito à informação

A doutrina alude ao direito à informação como a necessidade de que o investigado seja chamado a responder às acusações que lhe estejam sendo formuladas, sendo “condição essencial ao exercício da plena defesa e da proteção jurídica às legítimas expectativas”.217

215 ‘A questão a elucidar é se o indivíduo pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo, colaborando com a acusação à custa de sua liberdade fisiopsíquica, ou de outros direitos, o que, a meu ver, se revela, a priori, intolerável. E é intolerável semelhante exigência geral porque, evidentemente, o impu-tado não pode ser forçado a comportamentos positivos, físicos, contrários aos seus interesses, violando, claramente, sua integridade fisiopsíquica, sua liberdade de movimentos, ou diversos direitos fundamentais em jogo, para fins de auxiliar a acusação ou o Poder Público. (...) Distinta a hipótese quando o sujeito venha a ser civilmente demandado em matéria de direitos indisponíveis. Havendo razoabilidade, o Estado pode exigir do réu que se submeta a exame de DNA, para estabelecer paternidade biológica. Isso porque a mera recusa não basta, na medida em que o filho tem direito fundamental, correlato à sua dignidade humana, de conhecer o pai biológico. (...) Outro enfoque haveria na análise do comportamento do agente como meio de prova e inclusive como uma presunção contrária aos seus interesses. O sujeito que nega submeter-se a um exame de controle rotineiro deve, indiscutivelmente, comprovar motivos razoáveis e justificáveis de seu agir, afastando a mancha de culpabilidade que lhe resulta inerente. (...) Ademais, o indivíduo que adota determinados comportamentos, ilógicos e desarrazoa-dos, deve arcar com as conseqüências no plano probatório. O que não se poderia aceitar, a meu juízo, é a tipificação de formas intoleráveis de forçar o indivíduo a um comportamento contrário aos seus próprios interesses, sob pena de esvaziarmos sua presunção de inocência e seus direitos processuais fundamentais, ligados ao devido processo legal.” OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, pp. 501 e 502.216 OSORIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 522.217 OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 524.

215 ‘A questão a elucidar é se o indivíduo pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo, colaborando com a acusação à custa de sua liberdade fisiopsíquica, ou de outros direitos, o que, a meu ver, se revela, a priori, intolerável. E é intolerável semelhante exigência geral porque, evidentemente, o imputado não pode ser forçado a comportamentos positivos, físicos, contrários aos seus interesses, violando, claramente, sua integridade fisiopsíquica, sua liberdade de movimentos, ou diversos direitos fundamentais em jogo, para fins de auxiliar a acusação ou o Poder Público. (...) Distinta a hipótese quando o sujeito venha a ser civilmente demandado em matéria de direitos indisponíveis. Havendo razoabilidade, o Estado pode exigir do réu que se submeta a exame de DNA, para estabelecer paternidade biológica. Isso porque a mera recusa não basta, na medida em que o filho tem direito fundamental, correlato à sua dignidade humana, de conhecer o pai biológico. (...) Outro enfoque haveria na análise do comportamento do agente como meio de prova e inclusive como uma presunção contrária aos seus interesses. O sujeito que nega submeter-se a um exame de controle rotineiro deve, indiscutivelmente, comprovar motivos razoáveis e justificáveis de seu agir, afastando a mancha de culpabilidade que lhe resulta inerente. (...) Ademais, o indivíduo que adota determinados comportamentos, ilógicos e desarrazoados, deve arcar com as conseqüências no plano probatório. O que não se poderia aceitar, a meu juízo, é a tipificação de formas intoleráveis de forçar o indivíduo a um comportamento contrário aos seus próprios interesses, sob pena de esvaziarmos sua presunção de inocência e seus direitos processuais fundamentais, ligados ao devido processo legal.” OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, pp. 501 e 502.

216 OSORIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 522.

217 OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 524.

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DIREITO DA REGULAÇÃO

166FGV DIREITO RIO

Isso não significa, entretanto, que nos limites da lei não possa haver sigilo no interesse das investigações, devendo, todavia, essa possibilidade ser interpretada restritivamente, e somente subsistindo enquanto presentes as razões que o justificam.218

Princípio da motivação

Em que pese não se encontrar, de forma direta, o princípio da motivação em sede constitucional, a doutrina costuma extraí-lo da interpretação do art. 5º, incisos LIV e LV, da CF/88.219 Não se tecerá aqui maiores considerações sobre o princípio, o qual já foi alvo de profundo estudo no âmbito da matéria Atividades e Atos Administrativos.

Coisa Julgada Administrativa

A coisa julgada administrativa não se confunde com o instituto da coisa julgada no âmbito judicial. No processo judicial significa a imutabilidade da decisão. No âmbito administrativo significa que o assunto não mais poderá sofrer alteração “na mesma via administrativa”, embora possa ser eventualmente ainda revisto em âmbito judicial.

Prazos extintivos no âmbito da Administração Pública

Também a Administração Pública e os administrados submetem-se a prazos extintivos no curso de suas relações, em nome do princípio da segurança jurídica. Trata-se dos institutos da (i) prescrição administrativa, (ii) decadência administrativa e (ii) preclusão administrativa.

Os prazos extintivos podem aplicar-se aos administrados (por exemplo, a preclusão do direito de recorrer no curso de um processo administrativo, por perda do prazo recursal), ou à Administração (veja-se a regra geral da Lei 9.873/99, segundo a qual prescreve em cinco anos o poder punitivo de polícia da Administração, contados da data do fato)220.

218 “Nos processos administrativos, a ciência do acusado acerca das imputações que lhe são formuladas é condição básica de validade do feito. (...) O acesso aos processos, por advogados, é um direito fundamental dos acusados ou investigados em geral, salvo nas excepcionais e fundamentadas hipóteses legais de sigilo, em que a autoridade competente delimita áreas restritas, provisoriamente, ao efeito de viabilizar medidas cautelares urgentes. Não havendo concreta e plausível justificativa ao sigilo, este não deverá prevalecer, eis que o Estado Democrático de Direito supõe transparência dessas espécies de processos punitivos.” OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 525.219 Além disso, existe expressa previsão no art. 93, X, da Constituição, no que tange ao Poder Judiciário, aplicando-se tanto às decisões jurisdicionais quanto às decisões administrativas dos Tribunais. Assim, com igual razão devem ser motivadas as decisões da Administração Pública. OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 531.220 Lei 9.873/99. Art. 1º. Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.

218 “Nos processos administrativos, a ciência do acusado acerca das imputações que lhe são formuladas é condição básica de validade do feito. (...) O acesso aos processos, por advogados, é um direito fundamental dos acusados ou investigados em geral, salvo nas excepcionais e fundamentadas hipóteses legais de sigilo, em que a autoridade competente delimita áreas restritas, provisoriamente, ao efeito de viabilizar medidas cautelares urgentes. Não havendo concreta e plausível justificativa ao sigilo, este não deverá prevalecer, eis que o Estado Democrático de Direito supõe transparência dessas espécies de processos punitivos.” OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 525.

219 Além disso, existe expressa previsão no art. 93, X, da Constituição, no que tange ao Poder Judiciário, aplicando-se tanto às decisões jurisdicionais quanto às decisões administrativas dos Tribunais. Assim, com igual razão devem ser motivadas as decisões da Administração Pública. OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador, p. 531.

220 Lei 9.873/99. Art. 1º. Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.

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V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; PIVETTA, Saulo Lindorfer. O regime jurídico do processo administrativo na Lei nº 9.784/99. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 14, n. 58, p. 107-135, out./dez. 2014.

Leitura complementar

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários à Lei nº 9.784 de 29/11/1999. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005.

DALLARI, Adilson e FERRAZ, Sergio. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

A empresa XYZ Energia S/A foi multada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) por supostamente ter infringido norma reguladora setorial que estabelece o tempo máximo em que o consumidor pode aguardar atendimento ao telefone quando telefona para a concessionária.

Quando o Diretor da XYZ foi informado da decisão da ANEEL pelo departamento jurídico já havia transcorrido o prazo de dez dias, previsto na Lei 9.784/99, para a interposição de recurso administrativo. Todavia, o Diretor está inconformado, pois sustenta que houve erro material da ANEEL na decisão, que teria confundido os índices de qualidade da XYZ com os da concessionária ABC Energy S.A. Além disso, o Diretor observou que a XYZ jamais havia sido notificada pela ANEEL da existência do referido processo administrativo que resultou na multa, razão pela qual não teve oportunidade de apresentar defesa. O Diretor, então, procura seus conselhos advocatícios. Como você responderia a essa consulta?

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VII. CONCLUSÃO DA AULA

As normas de processo administrativo constituem relevantes salvaguardas dos cidadãos e das entidades privadas no trato das mais diversas questões que envolvam relacionamento com a Administração Pública.

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UNIDADE VII – RESPONSABILIDADE CIVIL

AULAS 21

I. TEMA

Responsabilidade civil do Estado.

II. ASSUNTO

Responsabilidade civil do Estado.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir a as hipóteses em que surge o dever de o Estado responder por atos lícitos e ilícitos da Administração Pública.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

A consagração da responsabilidade civil do Estado constitui imprescindível mecanismo de defesa do cidadão face ao Poder Público. Mediante a possibilidade de responsabilização, o administrado tem assegurada a certeza de que todo dano a direito seu ocasionado pela ação de qualquer agente público no desempenho de suas atividades será reparado pelo Estado. Funda-se nos pilares da equidade e da igualdade, como salienta Pontes de Miranda:

O Estado - portanto, qualquer entidade estatal - é responsável pelos fatos ilícitos absolutos, como o são as pessoas físicas e jurídicas. O princípio de igualdade perante a lei há de ser respeitado pelos legisladores, porque, para se abrir exceção à incidência de alguma regra jurídica sobre responsabilidade extranegocial, é preciso que, diante dos elementos fácticos e das circunstâncias, haja razão para o desigual tratamento.221

221 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 2a edição. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1966, Tomo LIII, p. 447.

221 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 2a edição. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1966, Tomo LIII, p. 447.

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Celso Antônio Bandeira de Mello define a responsabilidade civil do Estado nos seguintes termos: “Entende-se por responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos”.222

A responsabilidade estatal não se confunde com a de seu agente. O cidadão lesionado em seu direito por ato decorrente do agir estatal não necessita comprovar culpa do agente público para obter indenização, pois pode acionar diretamente o Estado, que responderá sempre que demonstrado o nexo de causalidade entre o ato do seu funcionário e o dano injustamente sofrido pelo indivíduo. Trata-se, portanto, de responsabilidade objetiva, expressamente prevista no art. 37, par. 6º, da Constituição Federal:

Art. 37. (...)§6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso nos casos de dolo ou culpa.

Igualmente, determina o Código Civil de 2002:

Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

A culpa do agente público poderá ser discutida em um segundo momento, caso o Estado ingresse com ação de regresso. Assim:

(...) diz-se que a responsabilidade deste [o Estado] é objetiva, porque não se impõe ao particular, lesado por uma atividade de caráter público (ou alguma omissão), que demonstre a culpa do Estado ou de seus agentes.

222 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 4a edição. São Paulo: Malheiros, 1993, p.430.

222 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 4a edição. São Paulo: Malheiros, 1993, p.430.

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Sinteticamente, a responsabilidade do Estado se caracteriza pelo preenchimento dos seguintes pressupostos: 1) que se trate de pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviços públicos; 2)que estas entidades estejam prestando serviço público; 3) que haja um dano causado a particular; 4) que o dano seja causado por agente (a qualquer título) destas pessoas jurídicas e; 5) que estes agentes, ao causarem dano, estejam agindo nesta qualidade.223

Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro abraçou a tese da responsabilidade civil do Estado, decorrente da teoria do risco da atividade desenvolvida. Defende Diogo de Figueiredo Moreira Neto a superioridade desta teoria sobre as demais, afirmando que: “(...) a teoria do risco administrativo não vai ao ponto de ignorar a culpa concorrente ou exclusiva do prejudicado na causação do evento, pois, na realidade, seria iníquo que o Estado, ou seja, toda a comunidade, respondesse pela composição de um dano para o qual a vítima concorreu com culpa”.224

Marcelo Caetano, por sua vez, esclarece que a justificativa ético-jurídica da adoção desta teoria está em que “os riscos acarretados pelas coisas ou atividades perigosas devem ser corridos por quem aproveite os benefícios da existência dessas coisas ou do desenrolar de tais atividades (...) A Administração deve responder pelos riscos resultantes de atividades perigosas ou da existência de coisas perigosas, quando não tenha havido força maior estranha ao funcionamento dos serviços (...) na origem dos danos e não consiga provar que estes foram causados por culpa de quem os sofreu”. 225

São, portanto, requisitos para o nascimento do dever ressarcitório do Estado, consoante a teoria do risco administrativo, hoje a mais difundida:

a) a existência de um dano correspondente a “lesão a um direito da vítima”226, certo e injusto (para os adeptos da teoria subjetiva em caso de omissão do poder público, estes casos exigem, ainda, o comportamento culposo da administração, conforme adiante explanado);

b) o responsável pelo ato deve se revestir da qualidade de agente da Administração Pública;

223 CZAJKOWSKI, Rainer. Sobre a Responsabilidade Civil do Estado. Jurisprudência Brasileira: cível e comércio. Curitiba: Juruá, 1993, no. 170, pp.11/12.224 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 588.225 CAETANO, Marcelo. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977 p. 544.226 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo , p. 453.

223 CZAJKOWSKI, Rainer. Sobre a Responsabilidade Civil do Estado. Jurisprudência Brasileira: cível e comércio. Curitiba: Juruá, 1993, no. 170, pp.11/12.

224 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 588.

225 CAETANO, Marcelo. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977 p. 544.

226 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo , p. 453.

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c) é preciso que haja nexo de causalidade entre o ato da Administração e o dano causado. Ressalte-se que, na apuração da causalidade, o STF abraça a teoria da interrupção do nexo causal, ou do dano direto e imediato, que proclama existir nexo causal apenas quando o dano é o efeito direto e necessário de uma causa.227

Conforme frisa Gustavo Tepedino, a adoção da responsabilidade objetiva se coaduna com os princípios constitucionais da República:

Com efeito, os princípios da solidariedade social e da justiça distributiva, capitulados no art. 3o., incisos I e III, da Constituição, segundo os quais se constituem em objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, não podem deixar de moldar os novos contornos da responsabilidade civil. (...) Impõem, como linha de tendência, o caminho da intensificação dos critérios objetivos de reparação do dano e do desenvolvimento de novos mecanismos de seguro social.228

Responsabilidade civil do Estado por ato omissivo

Conforme acima visto, em relação ao ato comissivo do agente administrativo, encontra-se consagrada a tese de que o Estado é responsável objetivamente pelos danos causados, devendo ressarcir à vítima a integralidade dos prejuízos sofridos. Todavia, quanto ao ato omissivo, tanto a doutrina quanto a jurisprudência são vacilantes, sendo que ainda é majoritária a tese de que neste caso impera a responsabilidade subjetiva, sendo necessária a comprovação de negligência do Poder Público. Entende-se que a omissão é suficiente para caracterizar a culpa, caso se comprove que a situação impunha um dever de agir ao Estado, por intermédio de seus órgãos.

Desde o advento da Constituição de 1988, Gustavo Tepedino sustenta ser a responsabilidade do Estado objetiva tanto por ato comissivo quanto por ato omissivo. Nesse sentido, ainda sob a égide do Código Civil de 1916 (revogado pela Lei nº 10.406/2002), já afirmava:

227 CAHALI, Y. Responsabilidade Civil do Estado. 2a edição, 2a tiragem. São Paulo: Malheiros, 1996, pp. 96 e 97 .228 TEPEDINO, Gustavo. Evolução da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro e suas Controvérsias na Atividade Estatal. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, p. 176.

227 CAHALI, Y. Responsabilidade Civil do Estado. 2a edição, 2a tiragem. São Paulo: Malheiros, 1996, pp. 96 e 97 .

228 TEPEDINO, Gustavo. Evolução da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro e suas Controvérsias na Atividade Estatal. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, p. 176.

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Não é dado ao intérprete restringir onde o legislador não restringiu, sobretudo em se tratando de legislador constituinte - ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. A Constituição Federal, ao introduzir a responsabilidade objetiva para os atos da administração pública, altera inteiramente a dogmática da responsabilidade neste campo, com base nos princípios axiológicos e normativos (dos quais se destaca o da isonomia e o da justiça distributiva), perdendo imediatamente base de validade o art. 15 do Código Civil,229 que se torna, assim, revogado ou, mais tecnicamente, não foi recepcionado pelo sistema constitucional.Nem de objete que tal entendimento levaria ao absurdo, configurando-se uma espécie de panresponsabilização do Estado diante de todos os danos sofridos pelos cidadãos, o que oneraria excessivamente o erário e suscitaria uma ruptura no sistema da responsabilidade civil. A rigor, a teoria da responsabilidade objetiva do Estado comporta causas excludentes, que atuam, como acima já aludido, sobre o nexo causal entre o fato danoso (a ação administrativa) e o dano, e tal sorte a mitigar a responsabilização, sem que, para isso, seja preciso violar o texto constitucional e recorrer à responsabilidade aquiliana.230

Para Marçal Justen Filho, a responsabilidade civil do Estado por ato omissivo pode ser desdobrada em pelo menos duas situações distintas:

Os casos de ilícito omissivo próprio são equiparáveis aos atos comissivos, para efeitos de responsabilidade civil do Estado. Assim, se uma norma estabelecer que é obrigatório o agente público praticar certa ação, a omissão configura atuação ilícita e gera a presunção de formação defeituosa da vontade. O agente omitiu a conduta obrigatória ou por atuar intencionalmente ou por formar defeituosamente sua própria vontade – a não ser que a omissão tenha sido o resultado intencional da vontade orientada a produzir uma solução conforme ao direito e por ela autorizada.

229 A referência era ao Código Civil de 1916, já revogado.230 TEPEDINO, Gustavo. “A Evolução da responsabilidade civil no direito brasileiro e suas controvérsias na atividade estatal”. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, pp. 191 e 192. Cumpre mencionar que a referência é ao artigo 15 do Código Civil de 1916, já revogado.

229 A referência era ao Código Civil de 1916, já revogado.

230 TEPEDINO, Gustavo. “A Evolução da responsabilidade civil no direito brasileiro e suas controvérsias na atividade estatal”. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, pp. 191 e 192. Cumpre mencionar que a referência é ao artigo 15 do Código Civil de 1916, já revogado.

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O grande problema são as hipóteses de ilícito omissivo impróprio, em que o sujeito não está obrigado a agir de modo determinado e específico. Nesses casos, a omissão do sujeito não gera presunção de infração ao dever de diligência. É imperioso, então, verificar concretamente se houve ou não infração ao dever de diligência que recai sobre os exercentes de função estatal. Se existiam elementos fáticos indicativos do risco de consumação de um dano, se a adoção das providências necessárias e suficientes para impedir esse dano era da competência do agente, se o atendimento ao dever de diligência teria conduzido ao impedimento da adoção das condutas aptas a gerar o dano – então, estão presentes os pressupostos da responsabilidade civil.Essa concepção conduz à responsabilização civil do Estado em questões de fiscalização institucional e permanente, sempre que o exercício ordinário das competências de acompanhamento dos fatos permitisse inferir a probabilidade de resultado danoso a terceiro.231

Nas situações de ilícito omisso impróprio, prevalece na jurisprudência a tese da responsabilidade subjetiva do Estado, conforme ilustram as decisões abaixo do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO.ATO OMISSIVO DA ADMINISTRAÇÃO. INSS. CONDENAÇÃO EM DANOS MORAIS.CABIMENTO. QUANTUM DEBEATUR. REDUÇÃO. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INVIABILIDADE. SÚMULA 7/STJ.1. Hipótese em que o Tribunal a quo, soberano no exame da prova, julgou que são ilegais os descontos nos proventos de aposentadoria da autora, porquanto inexistente o acordo de empréstimo consignado, e que a autarquia previdenciária agiu com desídia ao averbar contrato falso.

231 Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 600.

231 Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 600.

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2. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que, caracterizada a responsabilidade subjetiva do Estado, mediante a conjugação concomitante de três elementos - dano, negligência administrativa e nexo de causalidade entre o evento danoso e o comportamento ilícito do Poder Público -, é inafastável o direito do autor à indenização ou reparação civil dos prejuízos suportados.3. O valor dos danos morais, fixado em R$ 5.000,00 (cinco mil reais), não se mostra exorbitante ou irrisório. Portanto, modificar o quantum debeatur implicaria, in casu, reexame da matéria fático-probatória, obstado pela Súmula 7/STJ.4. Recurso Especial não provido.(REsp 1228224/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/05/2011, DJe 10/05/2011)

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. (...) ATO OMISSIVO DA ADMINISTRAÇÃO. CONDENAÇÃO EM DANOS MATERIAIS. CABIMENTO. (...)4. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que, caracterizada a responsabilidade subjetiva do Estado, mediante a conjugação concomitante de três elementos – dano, negligência administrativa e nexo de causalidade entre o evento danoso e o comportamento ilícito do Poder Público – é inafastável o direito do autor à indenização ou reparação civil dos prejuízos suportados.(...)(REsp 1191462/ES, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/08/2010, DJe 14/09/2010)

Responsabilidade do agente público

O agente público que, agindo culposamente, tenha dado causa ao evento danoso, também pode ser responsabilizado. Assim, a ação de reparação de dano proposta pelo particular ofendido poderá conter o Estado, juntamente com o agente público que cometeu delito, em litisconsórcio passivo. Nesse sentido, é a doutrina de Arnaldo Rizzardo:

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“Desde que a responsabilidade decorra da culpa, é natural que se deixe à livre escolha de quem está revestido de legitimidade ativa decidir contra quem ingressará com ação de ressarcimento de danos. Realmente, se os danos causados a terceiros pelos agentes do Estado decorrem de ato doloso ou culposo, faculta-se ao lesado acionar unicamente o Estado, ou o Estado e o servidor em litisconsórcio passivo, ou apenas o servidor.”232

A jurisprudência brasileira também defende o supramencionado posicionamento, conforme se observa pelo julgamento do Agravo de Instrumento n° 70043035377 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul233:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. OFENSAS VERBAIS E FISÍCAS PROFERIDAS POR DIRETORA DE ESCOLA MUNICIPAL. DEMANDA AJUIZADA CONTRA O AGENTE PÚBLICO. POSSIBILIDADE. DENUNCIAÇÃO DA LIDE AO ENTE PÚBLICO. DESCABIMENTO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO DE REGRESSO. 1. Fundada a ação reparatória em culpa ou dolo do agente público, o ofendido poderá propor a ação unicamente contra o Estado, ou o Estado e o servidor em litisconsórcio passivo, ou unicamente o servidor.2. Optando a vítima pelo ajuizamento da ação contra o servidor, haverá uma relação de direito privado, inexistindo possibilidade de prejuízo direto ao erário público, tampouco direito de regresso do agente contra o ente público. 3. Não havendo direito de regresso, inexiste justificativa para a denunciação da lide ao município. 4. Não verificadas as possibilidades de cabimento da denunciação da lide previstas no art. 70, CPC, é incabível o pleito. 5. O prequestionamento quanto à legislação invocada fica estabelecido pelas razões de decidir.

232 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. 3ª. edição – Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007. páginas 395-396.233 AI 70043035377 RS, Décima Câmara Cível, Des. Rel. Ivan Balson Araújo¸ Julgamento em 02/06/2011.

232 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. 3ª. edição – Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007. páginas 395-396.

233 AI 70043035377 RS, Décima Câmara Cível, Des. Rel. Ivan Balson Araújo¸ Julgamento em 02/06/2011.

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Desse modo, considerando que, não raras vezes, o agente causador do dano não possui patrimônio suficiente para responder pelos prejuízos ocasionados à vítima, é comum que as ações de responsabilidade civil sejam propostas em face do ente estatal presentado pelo agente, cabendo a este, em eventual condenação, exercer o direito de regresso contra o agente causador do dano na hipótese deste ter agido com culpa ou dolo.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:

• Responsabilidade civil do Estado

• Introdução

• Evolução

• Direito brasileiro

• Aplicação da responsabilidade objetiva

• Reparação do dano

• O Direito de regresso

Leitura complementar

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 791 a 813.

MOREIRA NETO, Diogo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 586 a 590.

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VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Ao ser chamada para atender a uma ocorrência, viatura policial com sirene ligada entrou na contramão em determinada rua, vindo a atropelar um menor. O motorista da viatura foi absolvido do crime de lesão corporal, por ausência de culpa. Há responsabilidade civil do Estado nesse caso?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

O Estado responde objetivamente pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. Existe controvérsia doutrinária acerca da natureza da responsabilidade administrativa do Estado na hipótese de ato omissivo, sendo ainda majoritária a tese que sustenta a responsabilidade subjetiva nesses casos.

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UNIDADE VIII: AGENTES ESTATAIS

AULAS 22

I. TEMA

Regime jurídico dos agentes estatais

II. ASSUNTO

Agentes estatais.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar os dois principais regimes jurídicos que a Administração Publica pode utilizar para contratar seus cargos.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

A maioria das funções administrativas é desempenhada por servidores públicos, os quais, nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho:

São todos os agentes que, exercendo com caráter de permanência uma função pública em decorrência de relação de trabalho, integram o quadro funcional das pessoas federativas, das autarquias e das fundações públicas de natureza autárquica.234

Portanto, “os servidores públicos fazem do serviço público uma profissão, como regra de caráter definitivo, e se distinguem dos demais agentes públicos pelo fato de estarem ligados ao Estado por uma efetiva relação de trabalho”235.

234 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 491.235 Manual de direito administrativo, p. 491.

234 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 491.

235 Manual de direito administrativo, p. 491.

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Até a Emenda Constitucional 19/98 vigeu o Regime Jurídico Único, segundo o qual todos os servidores da Administração Pública deveriam seguir o regime estatutário. Desde 1998, entretanto, por força das alterações introduzidas pela citada emenda, a Administração Pública passou a possuir dois regimes jurídicos básicos para reger a sua relação com os servidores, quais sejam, o (i) regime jurídico estatutário e (ii) o regime jurídico celetista. Veja-se o texto constitucional:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

A distinção dos regimes é realizada por José dos Santos Carvalho Filho da seguinte forma:

Servidores públicos estatutários são aqueles cuja relação jurídica de trabalho é disciplinada por diplomas legais específicos, denominados de estatutos. Nos estatutos estão inscritas todas as regras que incidem sobre a relação jurídica, razão por que nelas se enumeram os direitos e deveres dos servidores e do Estado.(...)A segunda categoria é a dos servidores públicos trabalhistas (ou celetistas), assim qualificados porque as regras disciplinadoras de sua relação de trabalho são as constantes da Consolidação das Leis do Trabalho.

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Seu regime básico, portanto, é o mesmo que se aplica à relação de emprego no campo privado, com as exceções, é lógico, pertinentes à posição especial de ambas as partes – o Poder Público.236

Assim, o primeiro regime tem fulcro em um conjunto de normas que disciplinam a relação entre o servidor público e a Administração, ao passo que o segundo tem natureza contratual. No primeiro regime, após período probatório, o funcionário adquire direito à estabilidade no cargo, o que não se aplica aos servidores celetistas.

É importante destacar que na Ação Direta de Inconstitucionalidade (Medida Liminar) 2135-4, decidida em Plenário no dia 02.08.2007 e cujo acórdão foi publicado em 07.03.2008, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, vencidos os Ministros Nelson Jobim, Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa, deferiu parcialmente a medida cautelar para suspender a eficácia do artigo 039, caput, da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional nº 019, de 04 de junho de 1998, nos termos do voto do relator originário, Ministro Néri da Silveira. O fundamento da decisão consiste em que a alteração do caput do art. 39 da Constituição não teria passado em dois turnos na Câmara dos Deputados e, por isso, haveria vício formal de aprovação no Congresso Nacional. Com essa decisão cautelar do STF, voltou a vigorar o Regime Jurídico Único.

Sobre a questão do Regime Jurídico Único, observa José dos Santos Carvalho Filho:237

A unicidade de regime jurídico alcança tão-somente os servidores permanentes. Para os servidores temporários, continua subsistente o regime especial como previsto no art. 37, IX, da CF. Portanto, será sempre oportuno destacar que a expressão “regime único” tem que ser considerada cum grano salis, para entender-se que os regimes de pessoal são dois — um regime comum (tido como regime único) e outro, o regime especial (para servidores temporários).

236 Manual de direito administrativo, pp. 491 e 492.237 Manual..., 24ª ed. p. 555-556.

236 Manual de direito administrativo, pp. 491 e 492.

237 Manual..., 24ª ed. p. 555-556.

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Servidores Temporários

A Constituição também admite a contratação de servidores públicos temporários, por prazo determinado, para atender a casos de excepcional interesse público. Nesse sentido, determina o art. 37, IX:

Art. 37. (...)IX - A lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;(...)

Referida lei deve ser editada por cada ente federativo (União, Estados e municípios). No âmbito federal, a Lei nº 8.745/1993 dispõe sobre a contratação temporária de servidores.

Servidores Comissionados

Por fim, vale mencionar que também são admitidos na Administração Pública pessoas estranhas aos seus quadros, na hipótese de cargos comissionados (que podem ser preenchidos por funcionários de carreira ou não). A previsão de cargos comissionados encontra-se no art. 37, II da Constituição Federal:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

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Dos Cargos Públicos

Os servidores públicos estatutários ocupam cargos. Cargo público é o lugar dentro da organização funcional da Administração Direta, e de suas autarquias e fundações públicas que, ocupado por servidor público, tem funções específicas e remuneração fixada em lei ou diploma a ela equivalente.238

Em âmbito federal, a Lei que rege a matéria é a Lei nº 8112, de 11/12/1990. Nessa lei são tratadas questões como: acessibilidade (a regra é o concurso público), provimento, investidura, reingresso, vacância, estabilidade etc.

Os servidores públicos dividem em três espécies de cargos: os vitalícios, os efetivos e em comissão.

Vitalícios: aqueles que oferecem a maior garantia de permanência a seus ocupantes.

Efetivos: constituindo a grande maioria, são aqueles que se revestem do caráter de permanência.

Cargo em comissão: são aqueles de ocupação transitória, e seus titulares são nomeados em função da relação de confiança.239

Cargo não se confunde com função de confiança, prevista no art. 37, V da Constituição Federal. Função corresponde “ao exercício de algumas funções específicas por servidores que desfrutam da confiança de seus superiores, os quais, por isso mesmo, percebem certa retribuição adicional para compensar tal especificidade. Retratam, em última análise, modalidade de gratificação, paga em virtude do tipo especial de atribuição e, somente podem ser exercidas por servidores que ocupem cargo efetivo.”240

Vedação de Acumulação de Cargos

A Constituição da República de 1988 consagrou a vedação de acumulação remunerada de cargos, empregos ou funções públicas, mantendo as ressalvas à acumulação nestes casos:

238 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 17a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007, p. 528239 Id.240 Id. Ibid., p. 529.

238 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 17a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007, p. 528

239 Id.

240 Id. Ibid., p. 529.

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a) situação de professor com outra de idêntica natureza;b) situação de professor com outra técnica ou científi ca;c) duas situações privativas de médico; exigindo-se, tão-somente, o requisito da compatibilidade de horários, a teor destas disposições.

A questão está disposta no art. 37 da Constituição de 1988:

Art. 37.XVI — é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto quando houver compatibilidade de horários:a) a de dois cargos de professor;b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;c) a de dois cargos privativos de médico;XVII — a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações mantidas pelo Poder Público;

Além das exceções previstas acima, observada, por óbvio, a compatibilidade de horários, ficaram efetivamente assegurados os seguintes direitos:

a) aos magistrados e membros do Ministério Público, o exercício da função pública de magistério (arts. 95, parágrafo único, I; e 128, § 5º, II, c, respectivamente);

b) ao médico militar, o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos de médico que estivessem, na data da Constituição, sendo exercidos na Administração Pública Direta ou Indireta (art. 17, § 1º, do ADCT);

c) o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde que estivessem, em 05/10/88, sendo exercidos na Administração Direta e Indireta (art. 17, § 2º, do ADCT).

No caso, por exemplo, dos magistrados, a Constituição Federal foi expressa:

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Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:Parágrafo único. Aos juízes é vedado:I — exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvouma de magistério;

Malgrado o texto expresso, a interpretação doutrinária seguiu na linha de que essa limitação referia-se, apenas, a instituições públicas. Veja-se, por exemplo, a doutrina de José dos Santos Carvalho Filho:

“A ressalva quanto à permissividade — uma única função de magistério — limita-se a cargos ou funções em instituições pertencentes à Administração, seja centralizada, seja descentralizada (...). Por outro lado, como a restrição do texto — uma única função — se refere a instituições administrativas, nada impede que, além do cargo de magistério nessas instituições, o magistrado tenha contrato com instituições ou cursos do setor privado, desde que, obviamente, haja compatibilidade de horários com o exercício da judicatura. Da mesma forma, é legítimo que, não ocupando cargo em estabelecimento público, tenha um ou mais contratos com instriuições privadas para a função de professor.”241

Acerca dessa questão, o Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, “alongou” essa interpretação e permitiu que magistrado ocupasse função de Diretor de Escola de Magistratura. Veja a ementa do Pedido de Providências No. 775106, cujo julgamento foi por maioria de votos:

EMENTA: Pedido de Providências. Vedações impostas aos magistrados.Consulta formulada por servidor público. Conhecimento. Vigência da LOMAN. Premissa fundamental. Conforme reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal, está em plena vigência os dispositivos da Lei Complementar no. 35/79, particularmente sobre os deveres e vedações aos magistrados. Matéria, aliás, também já apreciada no CNJ quando da edição da Resolução no. 10/05. Regras complementadas pelo art. 95 e parágrafo único da Constituição Federal.

241 Manual de Direito Administrativo. Ob. Cit., p. 567.

241 Manual de Direito Administrativo. Ob. Cit., p. 567.

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Prevalência do princípio da dedicação exclusiva, indispensável a função judicante. Não pode o magistrado exercer comércio ou participar, como diretor ou ocupante de cargo de direção, de sociedade comercial de qualquer espécie/natureza ou de economia mista (art. 36, 1 da LOMAN). Também está impedido de exercer cargo de direção ou de técnico de pessoas jurídicas de direito privado (art. 44 do Código Civil c/c art. 36, 11 da LOMAN). Ressalva-se apenas a direção de associação de classe ou de escola de magistrados e o exercício de um cargo de magistério. Não pode, consequentemente, um juiz ser presidente ou diretor de Rotary, de Lions, de APAEs, de ONGs, de Sociedade Espírita, Rosa-Cruz, etc, vedado também ser Grão Mestre da Maçonaria; síndico de edifício em condomínio; diretor de escola ou faculdade pública ou particular, entre outras vedações. Consulta que se conhece respondendo-se afirmativamente no sentido dos impedimentos.

Veja-se a manifestação do Relator, Desembargador Marcus Faver, ao sustentar essa “interpretação”:

“Por fim, a questão das escolas de magistratura me parece que haja uma diferença básica e absolutamente visível. Há um cargo que é o de direção da escola, que é um cargo executivo; portanto, pareceria vir de encontro ao que sustento. Mas atividade da escola é, ainda que a escola não seja um órgão interno, uma atividade própria do Judiciário, de formação e aperfeiçoamento de juízes. Então, é evidente que é possível ao juiz exercitar cargo de direção de escola.”

Como se vê, a interpretação quanto à acumulação de cargos por Magistrados mereceu apreciação do Conselho Nacional de Justiça — CNJ no caso concreto.

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Empresas Estatais

Quanto às empresas públicas e sociedades de economia mista que, conforme se sabe, integram a Administração Pública indireta com natureza jurídica de pessoa de direito privado, o art. 173, §1º, II, da Constituição Federal, em sua atual redação, determina que tais entidades adotem o regime celetista, pois o texto constitucional as equipara às empresas privadas no que tange às obrigações trabalhistas:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.§1º. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (...)II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:

• Servidor público

• Agentes públicos

• Servidores públicos

• Regimes jurídicos funcionais

• Organização funcional

• Regime constitucional (subitens 1 a 4)

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Leitura complementar

MOREIRA NETO, Diogo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, capítulo XII.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Seu Manoel está em dúvida sobre se faz concurso publico para o Banco Central do Brasil ou para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O que você tem a lhe informar acerca da relação jurídica entre essas entidades e os agentes públicos que compõem os seus quadros efetivos?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Ao final dessas duas aulas o aluno deve ser capaz de diferenciar as diferentes espécies de agentes públicos, assim como as características inerentes aos cargos e empregos públicos. Deverá também conhecer as principais diferenças entre sindicância e processo administrativo disciplinar.

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AULA 23

I. TEMA

Agentes estatais

II. ASSUNTO

Processo administrativo disciplinar.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Diferenciar sindicância e processo administrativo disciplinar. Conhecer as sanções a que se sujeita o agente público que falta com seus deveres funcionais.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Dentre a generalidade dos processos administrativos destaca-se a espécie do processo administrativo disciplinar, a qual tem por finalidade a averiguação da ocorrência de um ilícito administrativo para, se for o caso, impor uma sanção de natureza administrativa ao servidor público que comete faltas no exercício de suas funções.

Não há uma base normativa específica que discipline a matéria. Incide, para esse tipo de processo, o princípio da disciplina reguladora difusa.242 As regras se encontram nos estatutos funcionais das diversas pessoas federativas (cada pessoa administrativa tem autonomia para instituir o seu estatuto funcional).

Sindicância

Uma das fases da apuração da existência de alguma infração funcional é a sindicância. É uma apuração preliminar dos fatos, colhendo os seguintes indícios: i) existência de infração funcional; ii) autoria e iii) elemento subjetivo com que se conduziu o responsável.243

242 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 17a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007, p. 846.243 Idem, p. 848.

242 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 17a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007, p. 846.

243 Idem, p. 848.

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Em âmbito federal, a sindicância não se confunde com o Inquérito Administrativo.244 Este tem sinônimo de instrução. Portanto, não se trata de instituto autônomo, e, sim, de uma das fases do processo disciplinar principal. Esse é o sentido empregado na normativa federal (Lei nº 8112/90):

Art.  143.    A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa.

Art. 145.  Da sindicância poderá resultar: I - arquivamento do processo; II  -  aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30 (trinta) dias; III - instauração de processo disciplinar. Parágrafo  único.    O prazo para conclusão da sindicância não excederá 30 (trinta) dias, podendo ser prorrogado por igual período, a critério da autoridade superior.

Art.  146.    Sempre que o ilícito praticado pelo servidor ensejar a imposição de penalidade de suspensão por mais de 30 (trinta) dias, de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, ou destituição de cargo em comissão, será obrigatória a instauração de processo disciplinar.

Art. 151.  O processo disciplinar se desenvolve nas seguintes fases: I  -  instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão; II  -  inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório; III - julgamento.

Merece ser lembrado que Estados e municípios têm autonomia para legislar sobre seus respectivos processos disciplinares, tendo a Lei 8.112/90 natureza federal.

244 Idem, 849.

244 Idem, 849.

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Processo Administrativo Disciplinar

Processo Administrativo Disciplinar é todo aquele que tem por objeto a apuração de ilícito funcional. Apurado o ilícito, aplica-se a respectiva sanção. A mencionada regra federal disciplina a questão:

Do Processo Disciplinar

Art. 148.  O processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido.

Art. 149.   O processo disciplinar será conduzido por comissão composta de três servidores estáveis designados pela autoridade competente, observado o disposto no § 3o do art. 143, que indicará, dentre eles, o seu presidente, que deverá ser ocupante de cargo efetivo superior ou de mesmo nível, ou ter nível de escolaridade igual ou superior ao do indiciado. §  1o    A Comissão terá como secretário servidor designado pelo seu presidente, podendo a indicação recair em um de seus membros. §  2o    Não poderá participar de comissão de sindicância ou de inquérito, cônjuge, companheiro ou parente do acusado, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau.

Art.  150.    A Comissão exercerá suas atividades com independência e imparcialidade, assegurado o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da administração. Parágrafo único.   As reuniões e as audiências das comissões terão caráter reservado.

Art. 151.  O processo disciplinar se desenvolve nas seguintes fases: I  -  instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão;

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II  -  inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório; III - julgamento.

Art. 152.   O prazo para a conclusão do processo disciplinar não excederá 60 (sessenta) dias, contados da data de publicação do ato que constituir a comissão, admitida a sua prorrogação por igual prazo, quando as circunstâncias o exigirem. § 1o  Sempre que necessário, a comissão dedicará tempo integral aos seus trabalhos, ficando seus membros dispensados do ponto, até a entrega do relatório final. § 2o  As reuniões da comissão serão registradas em atas que deverão detalhar as deliberações adotadas.

Na esfera federal, são cabíveis as seguintes penalidades:

Art. 127.  São penalidades disciplinares: I - advertência; II - suspensão; III - demissão; IV - cassação de aposentadoria ou disponibilidade; V - destituição de cargo em comissão; VI - destituição de função comissionada

Essas penalidades são aplicadas observando-se as seguintes regras:

Art.  128.    Na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais. Parágrafo único.  O ato de imposição da penalidade mencionará sempre o fundamento legal e a causa da sanção disciplinar. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

Art. 129.  A advertência será aplicada por escrito, nos casos de violação de proibição constante do art. 117, incisos I a VIII e XIX, e de inobservância de dever funcional previsto em lei, regulamentação ou norma interna, que não justifique imposição de penalidade mais grave.

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Art.  130.    A suspensão será aplicada em caso de reincidência das faltas punidas com advertência e de violação das demais proibições que não tipifiquem infração sujeita a penalidade de demissão, não podendo exceder de 90 (noventa) dias. §  1o    Será punido com suspensão de até 15 (quinze)  dias o servidor que, injustificadamente, recusar-se a ser submetido a inspeção médica determinada pela autoridade competente, cessando os efeitos da penalidade uma vez cumprida a determinação. § 2o  Quando houver conveniência para o serviço, a penalidade de suspensão poderá ser convertida em multa, na base de 50% (cinqüenta por cento) por dia de vencimento ou remuneração, ficando o servidor obrigado a permanecer em serviço.

Art.  131.    As penalidades de advertência e de suspensão terão seus registros cancelados, após o decurso de 3 (três)  e 5 (cinco)  anos de efetivo exercício, respectivamente, se o servidor não houver, nesse período, praticado nova infração disciplinar. Parágrafo único.   O cancelamento da penalidade não surtirá efeitos retroativos.

Art. 132.  A demissão será aplicada nos seguintes casos: I - crime contra a administração pública; II - abandono de cargo; III - inassiduidade habitual; IV - improbidade administrativa; V -  incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição; VI - insubordinação grave em serviço; VII - ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem; VIII - aplicação irregular de dinheiros públicos; IX - revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo; X  -  lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional; XI - corrupção;

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XII  -  acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas; XIII - transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117.

Como se vê, acima, um dos motivos ensejadores da demissão do servidor é a denominada Improbidade Administrativa. Segundo Carvalho Filho,245 a ação de improbidade administrativa é aquela em que se pretende o reconhecimento judicial de condutas de improbidade na Administração, perpetradas por administradores públicos e terceiros, e a consequência é a aplicação das sanções legais, com o escopo de preservar o princípio da moralidade, conforme será visto na próxima aula.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:

• Servidor público

• Responsabilidade dos servidores públicos

• Processo administrativo (subitem 7.7 – Processo administrativo disciplinar)

Leitura complementar

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: RT, item:

• A responsabilidade administrativa.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Trata-se de aplicação de pena de demissão, pelo Ministro da Justiça, a policial do Departamento de Polícia Rodoviária Federal do Ministério da Justiça, em razão da prática de irregularidades na comprovação das despesas realizadas com transporte público, para fins de recebimento do auxílio-transporte, o que lhe teria rendido um proveito pessoal próprio da ordem de R$ 36,80.

245 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 17a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007, p.906.

245 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 17a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007, p.906.

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A seu ver, mostra-se proporcional a sanção aplicada face ao delito administrativo cometido? Pode o Poder Judiciário rever o ato administrativo de demissão? Sob qual fundamento?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Não há que se confundir sindicância com processo administrativo disciplinar. A imposição de sanções graves ao agente público se sujeita à prévia instauração de PAD.

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AULA 24

I. TEMA

Improbidade administrativa.

II. ASSUNTO

Análise da Lei de Improbidade Administrativa e a sua importância para a observância do dever de probidade dos agentes públicos.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Tratar dos atos que caracterizam violação do dever de probidade administrativa pelos agentes públicos e as suas consequências.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Os agentes públicos possuem determinados deveres intrínsecos aos cargos e funções que desempenham, consagrados, em grande parte, na própria Constituição Federal, merecendo destaque os princípios insculpidos no caput do art. 37.

No âmbito destes deveres de observância obrigatória pelos agentes públicos se encontra o dever de probidade administrativa, decorrente do princípio da moralidade. A essência deste dever se correlaciona com conceitos como os de honestidade e lealdade, e compreende a exigência de um comportamento ético do agente público.

O agir do agente público em desconformidade com a probidade administrativa o sujeita a diversas sanções nas esferas cível, administrativa e criminal, nos termos do que estabelece o artigo 37, § 4º, da Constituição da República de 1988:

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§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Dando cumprimento a esse mandamento constitucional, foi promulgada a Lei nº 8.429/92 para regulamentar os atos de improbidade administrativa e suas respectivas sanções.

Sobre o tema, é clássica a lição doutrinária de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

Este dever, simplesmente de probidade, ou de probidade administrativa, como se lê na Constituição (art. 37, § 4º), vem a ser a particularização do dever ético geral de conduzir-se honestamente (honeste vivere). O referido mandamento constitucional prevê lei federal (Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992), que define os atos de improbidade administrativa, simples e qualificados (arts. 9, 10, 11) e estabelece penas específicas, independentemente das cominadas em outros diplomas.246

Elementos do ato de improbidade administrativa A Lei nº 8.429/92 enumera os atos tidos como ímprobos e as sanções

aplicáveis a quem os comete.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro analisa em sua obra os elementos constitutivos que compõem os atos de improbidade, quais sejam:

“a) sujeito passivo: uma das entidades mencionadas no artigo 1º da Lei n. 8.429/92;b) sujeito ativo: o agente público ou terceiro que induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta (arts. 1 º e 3º);

246 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 359.

246 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 359.

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c) ocorrência de ato danoso descrito na lei, causador de enriquecimento ilícito para o sujeito ativo, prejuízo para o erário ou atentado contra os princípios da Administração Pública; o enquadramento do ato pode dar-se isoladamente, em uma das três hipóteses, ou, cumulativamente, em duas ou três;d) elemento subjetivo: dolo ou culpa.”247

Para fins didáticos, o tema será tratado adotando a divisão dos elementos acima.

Sujeitos do ato de improbidade administrativa

O sujeito passivo dos atos de improbidade administrativa é toda entidade atingida pelo ato ímprobo praticado. Desse modo, quaisquer entidades integrantes da Administração Pública Direta e Indireta podem ser afetadas pela prática de atos de improbidade. A Lei de Improbidade Administrativa248 incluiu no rol de sujeitos passivos dos atos de improbidade as empresas incorporadas ao patrimônio público ou entidades para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, e também as entidades que recebam subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público, bem como aquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.

Por sua vez, considera-se sujeito ativo do ato de improbidade a pessoa que efetivamente o pratica ou que tenha contribuído ou sido beneficiada pela sua prática. Assim, são sujeitos ativos o agente público, servidor ou não, e o terceiro que induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.

Ato Danoso

A Lei nº 8.429/92 elenca nos seus artigos 9º a 11 os atos de improbidade administrativa, dividindo-os em três modalidades distintas.

Comentando a divisão feita pela referida lei, Alexandre dos Santos de Aragão assevera que:

247 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Direito Administrativo”. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 826.248 Art. 1º da Lei nº 8.429/92.

247 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Direito Administrativo”. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 826.

248 Art. 1º da Lei nº 8.429/92.

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“Os tipos a serem punidos segundo a lei de ação de improbidade administrativa, muitas vezes de baixa densidade normativa, podem consistir (a) em atos ou omissões que importem enriquecimento ilícito do agente público ou de particular, independentemente de prejuízo aos cofres públicos (art. 9º); (b) que, ao contrário, gerem prejuízo aos cofres públicos independentemente de enriquecimento de quem quer que seja (art. 10); ou que, simplesmente, (c) violem princípios da Administração Pública, mesmo que não tenha causado nenhum prejuízo à Administração Pública ou enriquecimentos ilícitos;”249

Desse modo, o art. 9º da Lei de Improbidade Administrativa determina que constitui ato de improbidade importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° da própria lei.

Por sua vez, o art. 10 da referida lei determina que constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º da própria lei. A Lei Complementar 157/2017 inseriu o art. 10-A à Lei nº 8.429/92, para incluir, no rol de atos de improbidade administrativa, “qualquer ação ou omissão para conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário contrário ao que dispõem o caput e o § 1º do art. 8º-A da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003”.

Finalmente, o art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa determina que constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições.

Ao definir atos de improbidade da forma acima, utilizando conceitos indeterminados e abertos, o legislador permite que o intérprete-julgador apure as circunstâncias dos casos levados ao seu conhecimento para considerá-los ou não como ato de improbidade. Os incisos dos referidos artigos elencam determinadas práticas que o legislador a priori pode seguramente considerar como ímproba, não excluindo, porém, a possibilidade de consumação de atos de improbidade fora do rol exemplificativo contido nestes incisos.

249 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 638.

249 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 638.

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Especificamente em relação ao art. 11, que prevê que constitui ato de improbidade aquele que atente contra os princípios da Administração Pública, cabe destacar que, para se configurar um ato como ímprobo, não é necessária a demonstração da ocorrência de dano ou de enriquecimento ilícito, sendo suficiente a prova da violação aos princípios tutelados por esse dispositivo.

Dolo ou Culpa

O elemento subjetivo mostra-se essencial para a configuração do ato de improbidade administrativa; ou seja, faz-se necessária a demonstração de dolo ou culpa do agente público. Daí decorre que nem todo ato ilegal pode ser caracterizado como ímprobo. O agente público pode cometer ilegalidades sem agir com desonestidade, de modo que nesses casos não devem os atos praticados ser considerados como de improbidade administrativa, ressalvada, de qualquer forma, eventuais responsabilidades pelos danos oriundos dos atos ilegais praticados.

Para fins de configuração de ato de improbidade administrativa e de responsabilidade por sua prática, somente o ato que fere a moralidade administrativa, por meio de conduta eivada de má-fé, é que deve ser tido como caracterizador da violação ao dever de probidade administrativa. O Superior Tribunal de Justiça consolidou tal entendimento no julgamento do AgRg no AgRg no AREsp nº 166766 / SE, conforme se observa da passagem abaixo extraída da ementa do acórdão:

O reconhecimento da tipificação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa requer a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado no dolo para os tipos previstos nos arts. 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do art. 10, todos da Lei n. 8429/92.

Como sucintamente descrito na ementa acima, os elementos culpa ou dolo são essenciais para a configuração do ato de improbidade administrativa, sendo que nas hipóteses do art. 10 – que causem prejuízo ao erário – o próprio dispositivo, em seu caput, admite a prática na modalidade culposa.

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Sanções

O art. 37, § 4º, da Constituição da República de 1988, prevê que o ato de improbidade administrativa importará na suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Por sua vez, o art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa prevê outras punições ao agente público e terceiros que pratiquem atos de improbidade administrativa, dentre elas a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, o pagamento de multa civil em pecúnia e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.

De acordo com o dispositivo legal, estas sanções podem ser aplicadas cumulativamente, mas o julgador deve estar atento ao postulado da proporcionalidade na aplicação das sanções cabíveis, sendo necessária a adequada avaliação das circunstâncias do caso, do grau de culpa do infrator e da lesividade da conduta do agente para fins de efetivação da dosimetria da sanção aplicável pelo ato de improbidade.

Responsabilização pela prática do ato de improbidade administrativa

Os atos tidos como de improbidade administrativa podem representar transgressões concomitantes na esfera administrativa, civil e criminal. Pode haver ainda sanções de natureza política, como suspensão de direitos políticos.

Deste modo, verificada a prática de ato de improbidade administrativa, caberá à autoridade administrativa instaurar o competente processo administrativo disciplinar para fins de investigação do ato administrativo irregular e aplicação de eventuais sanções no âmbito administrativo, sem prejuízo da comunicação ao Ministério Público para que este adote as medidas na esfera cível – via, sobretudo, a ação civil pública por ato de improbidade administrativa – e criminais cabíveis. Sobre o tema, esclarece Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

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“Quanto à responsabilização do agente indiciado pela prática de atos de improbidade administrativa se fará por um processo administrativo preparatório, a que se seguirá um processo judicial. Qualquer pessoa poderá representar à autoridade administrativa competente para que seja instaurada investigação destinada a apurar a prática de ato de improbidade, com designação de comissão competente e instauração de processo administrativo, no qual, se encontrados fundados indícios de responsabilidade, a comissão representará ao Ministério Público ou à Procuradoria do órgão para requerer ao juízo competente a decretação do sequestro dos bens do agente ou terceiro que tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público.”250

A ação civil pública por ato de improbidade administrativa tem sido mecanismo judicial de natureza punitiva bastante utilizado na busca de sancionar o agente público e terceiros beneficiados pela conduta lesiva do dever de probidade administrativa. Essa ação não exclui a possibilidade de propositura de outras ações judiciais para apuração da responsabilidade criminal, nem a abertura de processos administrativos para a responsabilização administrativa.

O art. 23 da Lei de Improbidade Administrativa fixa o prazo de prescrição para a aplicação das sanções previstas na lei:

“Art. 23. As ações destinadas a levar a efeitos as sanções previstas nesta lei podem ser propostas:“I - até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança;“II - dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público, nos casos de exercício de cargo efetivo ou emprego.”

Cabe destacar que, para fins de ressarcimento ao erário, a ação de

improbidade é imprescritível, conforme determina o art. 37, § 5º, da Constituição da República:

250 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 690.

250 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 690.

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“A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.”

Desse modo, a ação de improbidade prescreve no prazo previsto no art. 23 da Lei de Improbidade Administrativa, sendo imprescritível no que se refere à pretensão de ressarcimento ao erário.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:

• Controle da Administração Pública

• Ação de improbidade administrativa

Leitura complementar

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, páginas 636 – 641.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, páginas 689 - 691.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

A Prefeita do Município X, candidata à reeleição, em processo investigatório em trâmite na Justiça Eleitoral, utiliza a Procuradoria do Município para efetuar sua defesa. Posicione-se sobre a legalidade do ato e se este poderia se caracterizar como de improbidade administrativa.

Como membro do Ministério Público, formule uma tese para embasar ação civil pública por improbidade administrativa.

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Na qualidade de advogado, responda à consulta da Prefeita sobre se haveria argumentos para se defender da ação judicial movida pelo Ministério Público.

VII. CONCLUSÃO DA AULA

A probidade administrativa é dever fundamental e basilar do agente público que exerça cargo ou função pública, eis que lida umbilicalmente com a máquina administrativa, cujo objetivo primordial é o atendimento ao interesse público.

Disso decorre a importância da Lei nº 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa – uma vez que seus dispositivos são instrumentos garantidores da preservação do dever de probidade, assim como da punição aos que não observarem este dever.

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AULA 25

I. TEMA

Lei anticorrupção e abuso de autoridade

II. ASSUNTO

Análise da entrada em vigor da lei anticorrupção e da lei de abuso de autoridade.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Entender os principais aspectos da lei anticorrupção e suas consequências. Apresentar a lei de abuso de autordade.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

A lei anticorrupção

Em 1º de Agosto de 2013 foi promulgada a Lei nº 12.846, denominada “Lei anticorrupção”, que estabelece a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos que resultem em consequências danosas à Administração Pública nacional ou estrangeira.251 De acordo com o doutrinador Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

“A ratio do novel diploma é responsabilizar as pessoas jurídicas que estimulem a corrupção na Administração pública, por meio do financiamento de atos ilícitos, da fraude a procedimentos licitatórios, ou causando empecilhos ao exercício da fiscalização de polícia das entidades da administração direta, indireta e estrangeira”.252

A principal inovação desta lei é a aplicação da responsabilização objetiva às pessoas jurídicas, não sendo necessária, assim, a comprovação de dolo ou culpa para aplicação das sanções previstas.

251 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, p. 104.252 Idem.

251 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, p. 104.

252 Idem.

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Desta forma, de acordo com a nova lei, para que a pessoa jurídica seja responsabilizada pela prática ilícita faz-se necessário apenas a demonstração: (i) de nexo de causa e efeito; (ii) da prática de ato lesivo; (iii) da prática deste ato lesivo ter sido realizada por pessoas jurídicas; e, por fim, (iv) do dano à administração pública.253

Mostra-se relevante observar que a responsabilidade objetiva não se confunde com a responsabilidade pelo risco integral – utilizada, por exemplo, em casos de graves danos ambientais. Desta forma, se a pessoa jurídica for capaz de comprovar, por meio de provas contundentes, que não houve danos à Administração Pública, ou que esses danos não foram decorrentes de ações de seus integrantes, ela se tornará isenta de qualquer punibilidade que poderia advir das sanções previstas. Além disso, quando se pretender responsabilizar os dirigentes ou administradores dessas sociedades, ainda será necessária a comprovação de sua culpabilidade, ou seja, a responsabilidade destes se mantém subjetiva (art. 3º, §2º).

Quanto ao ato lesivo – que, como dito acima, deverá ser comprovado para que possa ocorrer a responsabilização da pessoa jurídica – o art. 5º o define como “todos aqueles que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da Administração Pública ou contra compromissos internacionais assumidos pelo Brasil”. Após a definição, há uma lista que enumera as possíveis práticas que constituem os atos lesivos. Dentre elas, podemos citar: prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; comprovadamente utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; e, no tocante a licitações e contratos, fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente e criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo.

Como se verifica, muitos dos atos lesivos correspondem a crimes contra a Administração Pública definidos pelo código penal ou pela lei 8.666/93 – também conhecida como “lei das licitações”. Além disso, praticamente todos eles correspondem a atos de improbidade administrativa.254 Apesar de tal coincidência, a aplicação da lei anticorrupção não é afastada, “porque, nesta última, cogita-se de infrações administrativas, que podem ensejar também a responsabilidade civil”.255

253 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, p. 930.254 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, p. 931.255 Idem.

253 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, p. 930.

254 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, p. 931.

255 Idem.

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Por fim, em relação à instauração do processo administrativo contra os infratores, o art.8º confere competência à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, admitindo expressamente a possibilidade de delegação, incluindo, ainda, a Controladoria Geral da União – CGU, em seu §2º.

Acordo de leniência

Dentre os mecanismos trazidos pela lei para desestimular práticas de corrupção está o acordo de leniência, instituto que foi introduzido no direito brasileiro inicialmente no âmbito do direito da concorrência pela Lei 10.149/00, encontrando-se atualmente previsto na Lei 12.529/11.

O acordo de leniência constitui uma oferta de benefícios a agentes que denunciarem possíveis práticas ilícitas nas quais o próprio delator esteja envolvido, ou seja, é uma espécie do gênero “delação premiada”. A lógica do acordo está em incentivar a quebra do elo existente para a prática de um ilícito, trocando informações importantes para a investigação do crime por uma redução ou até mesmo extinção de sua punibilidade. Um dos motivos para a instituição de tal mecanismo está na demasiada complexidade dos ilícitos econômicos. Assim, pode-se dizer que este tipo de acordo permite flexibilizar o gasto de recursos com a investigação, tendo em vista que ele incentiva a produção de provas pelos próprios praticantes do crime.

Como disposto no §1º do art. 16 da Lei 12.846/2013, são estabelecidos alguns requisitos que devem ser cumulativamente preenchidos pelos participantes da atividade ilícita que queiram realizar um acordo de leniência. São eles: (i) a pessoa jurídica deve ser a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito; (ii) ela deverá cessar completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo; e (iii) ela deverá admitir sua participação no ilícito e cooperar plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.

Fundamental destacar que mesmo que a pessoa jurídica cumpra todos os requisitos impostos pela lei, a Administração Pública pode rejeitar o acordo de leniência proposto pela delatora. Caso isso ocorra, não haverá qualquer redução de sua punibilidade, podendo a Administração celebrar o acordo com outro participante da fraude. Nesta hipótese, estabelece o §7º do art. 16 que: “não importará em reconhecimento da prática do ato ilícito investigado a proposta de acordo de leniência rejeitada.”

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Em relação a esta disposição, Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que: “a norma é pelo menos estranha, tendo em vista que a própria proposta de celebração do acordo já implica o reconhecimento da prática de ilícito pela pessoa jurídica ou por terceiros, sem o que a proposta seria inútil”.

Abuso de Autoridade

A Lei nº 4.898, de 9 de Dezembro de 1965, elenca os atos de autoridade pública que constituem abuso de autoridade, e as penalidades aplicáveis pela prática destes atos.

Referido diploma legal estipula ainda a regulamentação do direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, naquelas circunstâncias caracterizadas como atos abusivos praticados por autoridades públicas. Ademais, possibilita à vítima de qualquer abuso de poder por parte de um agente público levar tal fato ao conhecimento das autoridades públicas, estando o autor do abuso sujeito a sanções administrativas de natureza cível e penal, previstas no caput, §1° e §2°, do art. 6º da Lei nº 4.898/65.

A responsabilidade do agente público que comete ato de abuso de autoridade se dá mediante o procedimento previsto no art. 1º da referida lei:

“Art. 1º. O direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, contra as autoridades que, no exercício de suas funções, cometerem abusos, são regulados pela presente lei.”

No que se refere às sanções aplicadas aos agentes infratores, comenta Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

“A vítima, além da promoção da responsabilização administrativa e penal do servidor, que haja procedido com abuso de autoridade, terá a faculdade de acioná-lo civilmente, independentemente da condenação da Fazenda Pública pelo dano causado por seu servidor, através de uma ação autônoma.”256

256 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 659.

256 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 659.

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Nos termos do art. 3º da lei, constitui ato de abuso de autoridade qualquer atentado:

a) à liberdade de locomoção;b) à inviolabilidade do domicílio;c) ao sigilo da correspondência;d) à liberdade de consciência e de crença;e) ao livre exercício do culto religioso;f) à liberdade de associação;g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto;h) ao direito de reunião;i) à incolumidade física do indivíduo; ej) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional.

Acrescentando ao rol do art. 3º, caracterizam-se ainda como atos de abuso de autoridade as hipóteses dispostas no art. 4º da mesma lei:

a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa;d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada;e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei;f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor;g) recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa;

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h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade.

No que tange à responsabilização do autor do ato de abuso de autoridade, entende a doutrina que o ente estatal que o autor do ato responde objetivamente pelos danos provenientes, como se constata, exemplificadamente, no ensinamento de Alexandre Santos de Aragão:

“A ação ou omissão estatal que gerar prejuízo a terceiros (particulares ou mesmo outra entidade pública) engendra responsabilidade civil objetiva (independentemente de culpa ou ilicitude, bastando nexo causal) dos entes da Federação, das pessoas jurídicas de direito público da Administração Indireta, das pessoas jurídicas de direito privado da Administração Indireta que não exerçam atividades econômicas stricto sensu em concorrência com a iniciativa privada (art. 173, §1°, CF) e dos delegatários privados de serviços públicos (ex.: concessionários de serviços públicos).” 257

Isso, porém, não exclui a responsabilidade pessoal do autor do ato

de abuso de autoridade. Nesse sentido, o art. 37, §6°, da Constituição da República de 1988 prevê o direito de regresso do Estado contra o servidor que causar dano a particular, conforme leciona Alexandre Santos de Aragão:

“O art. 37, §6°, in fine, CF, prevê o direito de regresso do Estado contra o servidor que causou o dano. Há dois requisitos para essa responsabilização: que o Estado tenha sido condenado a indenizar terceiros por ato lesivo do agente e que este tenha agido com dolo ou culpa (a responsabilidade do servidor é, repise-se, sempre subjetiva).”258

257 SANTOS DE ARAGÃO, Alexandre. Curso de Direito Administrativo.Forense. Rio de Janeiro, p. 558.258 SANTOS DE ARAGÃO, Alexandre. Curso de Direito Administrativo. Forense. Rio de Janeiro, p. 574.

257 SANTOS DE ARAGÃO, Alexandre. Curso de Direito Administrativo.Forense. Rio de Janeiro, p. 558.

258 SANTOS DE ARAGÃO, Alexandre. Curso de Direito Administrativo. Forense. Rio de Janeiro, p. 574.

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No mesmo sentido, o art. 9º da Lei nº 4.898/65 dispõe que a autoridade responsável pelo ato poderá ser responsabilizada não apenas de maneira regressiva pela Administração Pública, mas também de maneira isolada diretamente pelo particular lesado. Dessa forma, o lesado tem a opção de propor a ação diretamente contra a autoridade responsável pelo ato ou contra o ente estatal que ela presente.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. 27ª Ed. São Paulo: Atlas, pp. 929-940.

Leitura complementar:

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, pp. 102-105.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Em 15/12/2014, em notícia intitulada “Lei anticorrupção não pega em empresas”, o jornal Folha de São Paulo noticiou que “seis em cada dez empresas não estão preparadas para cumprir a lei anticorrupção no Brasil”, tendo destacado o fato de que faltaria ao país uma cultura de prevenção a esses eventos.259

Com a entrada em vigor da Lei 12.846/13, é esperado que as pessoas jurídicas se capacitem para conhecer e cumprir referida lei, evitando engajarem-se em atos de corrupção.

Na qualidade de advogado, você foi contratado para oferecer um programa de compliance a uma multinacional que está se instalando no país. O que você tem a informar aos Diretores da empresa acerca: (i) da responsabilidade das pessoas físicas e jurídicas por atos de corrupção; (ii) das multas a que se sujeitam; e (iii) da possibilidade de firmar acordo de leniência com a Administração Pública? Responda justificadamente à consulta.

259 http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/12/1562367-lei-anticorrupcao-nao-pega-em-empresas.shtml. Acesso em 11/01/2015.

259 h t t p : / / w w w 1 . f o l h a . u o l . c o m .b r / m e r c a d o / 2 0 1 4 / 1 2 / 1 5 6 2 3 6 7 -l e i - a n t i c o r r u p c a o - n a o - p e g a -em-empresas.shtml. Acesso em 11/01/2015.

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VII. CONCLUSÃO DA AULA

A entrada em vigor da lei 12.846/2013 inaugura novas possibilidades de responsabilização das pessoas jurídicas que pratiquem atos contrários à Administração Pública.

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SÉRGIO GUERRAVisiting Researcher pela Yale Law School e Pós-Doutorado em Administração Pública pela FGV/EBAPE. Doutor em Direito Econômico pela UGF. Mestre em Direito pela UCAM. Diretor e Professor Titular de Direito Administrativo da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas - RJ. Coordenador do Curso International Business Law, da Universidade da Califórnia (Irvine). Embaixador no Brasil da Yale University. Editor da Revista de Direito Administrativo (RDA). Consultor do Conselho Federal da OAB na Comissão Especial de Obras, Concessões e Controle da Administração Pública. Consultor Jurídico da Comissão de Direito Público da OAB/RJ. Tem experiência de 33 anos na área de Direito Público, com ênfase em Direito Administrativo, Regulatório e Ambiental, atuando principalmente nos seguintes temas: agências reguladoras, regulação de serviços públicos e atividades econômicas; contratação, arbitragem e controle da administração pública. Autor de diversos livros e artigos jurídicos.

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FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

FGV DIREITO RIO

Sérgio GuerraDIRETOR

Antônio Maristrello PortoVICE-DIRETOR

Thiago Bottino do AmaralCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

André Pacheco Teixeira MendesCOORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA

Cristina Nacif AlvesCOORDENADORA DE ENSINO