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L eda C orrêa (ORGANIZADORA) D ireito e A rgumentação

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Leda C orrêa(ORGANIZADORA)

D ir e it o e A r g u m e n t a ç ã o

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D i r e i t o e A r g u m e n t a ç ã o

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D ir e it o e A r g u m e n t a ç ã oL e d a C o r r ê a

( o r g a n i z a d o r a )Doutora em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ). Professora adjunta do Departamento de Letras e do Núcleo de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe ( u f s ) . Coor­denadora do grupo de pesquisa “História do ensino das línguas no Brasil”.

Â

Manole

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Copyright © 2008 Editora Manole Ltda., por meio de contrato com os autores.

Capa: Eduardo Bertolini

Imagem da capa: www.visipix.com

Projeto gráfico: Departamento Editorial da Editora Manole

Editoração eletrônica: Luargraf Serviços Gráficos Ltda. - ME

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Direito e argumentação / Leda Corrêa(organizadora). - Barueri, SP : Manole, 2008.

Vários autores.Bibliografia.ISBN 978-85-204-2533-6

1. Argumentação 2. Direito - Filosofia 3. Direito - Metodologia 4. Direito - Teoria I. Corrêa, Leda.

07-9924 CD U -340.115

índice para catálogo sistemático:1. Argumentação jurídica : Teoria do direito 340.115

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores.É proibida a reprodução por xerox.

Ia edição - 2008

Direitos adquiridos pela:Editora Manole Ltda.Avenida Ceei, 672 - Tamboré 06460-120 - Barueri - SP - Brasil Tel.: (11)4196-6000 - Fax: (11) 4196-6021 www. ma no 1 e.co m.b r [email protected]

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Sobre os autores

Aparecida Regina Borges SellanDoutora e mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Cató­lica de São Paulo ( p u c / s p ) . Coordenadora e professora da disciplina Redação e Linguagem Jurídica do curso de Direito da p u c / s p . Vice-coordenadora do curso “Secretário Executivo Trilíngüe” da p u c / s p . Vice-líder de pesquisa do “Núcleo de Pesquisa Português Língua Estrangeira”, vinculado ao Instituto Sedes Sapientiae para Estudos de Português ( i p - p u c / s p ) . Docente do curso de pós-graduação lato sensu em Língua Portuguesa da p u c / s p .

Carlos Alberto ShimoteBacharel e licenciado em Letras pela Universidade de São Paulo ( u s p ) . Mestre em Literatura Brasileira ( u s p ) e doutorando em Teoria Literária. Professor de Redação e Linguagem Jurídica na Faculdade de Direito da Pontifícia Univer­sidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ) .

Doroti Maroldi GuimarãesDoutora em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenadora do curso de Letras da Faculdade Santa Izildinha e ava­liadora do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep).

Leda Corrêa (organizadora)Doutora em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ) . Professora adjunta do Departamento de Letras e do Núcleo

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VI Direito e Argumentação

de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe ( u f s ) . Coor­denadora do grupo de pesquisa “História do ensino das línguas no Brasil”.

Lílian Ghiuro PassarelliDoutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ). Pós-dou- tora pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp/SP). Docente da Faculdade de Comunicação e Filosofia e do curso de pós-graduação lato sensu em Língua Portuguesa da p u c / s p . Lí­der do grupo de pesquisa “Estudos da linguagem para o ensino de português” (Gelep-puc/sp).

Maria Teresa Rego de FrançaGraduação em Letras Vernáculas pela Universidade de São Paulo ( u s p ) . Mes­trado em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ) e doutorado em Filologia Portuguesa na u s p . Foi professora efetiva da rede pública estadual e deu aulas de Língua e Literatura no Centro de Educação Tecnológica de São Paulo (Cefet/SP). Integrou a equipe p e c - p u c ,

ministrando cursos de capacitação para professores das redes de ensino m u ­nicipal e estadual. Lecionou Oratória nas Faculdades Integradas Rio Branco. Professora de Redação e Linguagem Jurídica na p u c / s p .

Nancy dos Santos CasagrandeMestre e doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ).

Professora associada do Departamento de Português da mesma instituição. Professora da disciplina Redação e Linguagem Jurídica no curso de Direito da p u c / s p . Vice-coordenadora do curso Secretário Executivo Trilíngüe da p u c / s p .

Membro dos grupos de pesquisa “Historiografia da Língua Portuguesa” e “Lingüística Funcional”, vinculados ao Instituto Sedes Sapientiae para Estudos de Português ( i p - p u c / s p ) , ambos cadastrados pelo C N Pq.

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Sumário

Apresentação (Dirceu de Mello) ......................................................................... IXPrefácio (Dieli Vesaro P a lm a ) ............................................................................XI

PARTE 1 - Percursos Históricos da RetóricaI - A Retórica de A ristó teles.....................................................................................1Carlos Alberto Shimote

II - A nova Retórica: um novo olhar sobre a Retórica Clássica por ChaimP ere lm an ................................................................................................................ 52Nancy dos Santos Casagrande

III - A mise en scène a rgum en ta tiva ....................................................................72Maria Teresa Rego de França

PARTE 2 - Prática Argumentativa no DireitoIV - A construção do dram a narrativo em p e tiç õ e s ...................................... 92Leda Corrêa

V - Domínio discursivo jurídico: procedimentos argumentativos no gênerotextual decisão interlocutória............................................................................116Lílian Ghiuro Passarelli

VI - O uso dos argumentos na prática do D ire i to .................................... 139Doroti Maroldi Guimarães

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VIII Direito e Argumentação

VII - A argumentatividadc nos discursos jurídicos: intertextos einterdiscursos........................................................................................................161Aparecida Regina Borges Sellan

índice alfabético-remissivo..............................................................................175

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Apresentação

Direito e argumentação, esse é o título da coletânea de textos cuja organi­zadora, Profa. Leda Corrêa, honrou-m e com o convite para apresentar.

Honraria de que me desincumbo sem qualquer dificuldade. Menos, é certo, porque diretamente ligados, os temas tratados, à área na qual, sucessi­vamente, como advogado, promotor, juiz e professor de Direito, tenho profis­sionalmente vivido; mais porque, sem exceção, de altíssimo nível os vários es­tudos compendiados.

Sabido que o operador do Direito tem como principal instrumento de trabalho, ao lado da palavra oral e escrita, a agudeza do argumento utilizado, o que dizer, com efeito, de coletânea que principia com pesquisa sobre “A Retórica de Aristóteles” (autor Carlos Alberto Shimote) e que, passando por apreciações acerca de “A nova Retórica: um novo olhar sobre a Retórica Clás­sica por Chaím Perelman” (autora Nancy dos Santos Casagrande), “A mise en scène argumentativa” (autora Maria Teresa Rego de França),“A construção do drama narrativo em petições” (autora a própria organizadora Leda), “D o­mínio discursivo jurídico: procedimentos argumentativos no gênero textual decisão interlocutória” (autora Lílian Ghiuro Passarelli), “O uso dos argu­mentos na prática do Direito” (autora Doroti Maroldi Guimarães), se encer­ra com perquirição acerca de “A argumentatividade nos discursos jurídicos: intertextos e interdiscursos” (autora Aparecida Regina Borges Sellan)?

Diretor que fui da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Cató­lica de São Paulo ( p u c / s p ) , sinto-me à vontade para atestar a importância da disciplina Redação e Linguagem Jurídica, oferecida aos alunos da graduação por professores como Leda Corrêa e demais colaboradores da coletânea con­

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X Direito e Argumentação

siderada, recrutados junto à Faculdade de Comunicação e Filosofia da insti­tuição (Comfil).

Também por isso gratifica apresentar obra que, agora já no plano reser­vado à docência do Direito, repercute ensinamentos originariamente cober­tos pela disciplina ministrada na graduação.

Direito, raciocínio, lógica, argumentação, lucidez verbal e lucidez escrita- esses, entre outros, aspectos que a publicação organizada pela Profa. Leda e em boa hora viabilizada pela Editora Manole descortina a quantos se inte­ressem pelo domínio e pela vivência superior da atividade jurídica.

Eu mesmo, confesso-o gostosamente, aprendi, e muito, na leitura que me propus fazer da obra, na tentativa de poder apresentá-la com a dignidade que merece.

Dignidade e valor que de mim, leitor primeiro e privilegiado do trabalho, ora transmudado em livro, exigem mais, ou seja, impõem-me recomendá-lo à comunidade dedicada às lides do Direito. A biblioteca, pública ou particular, a que se incorporar a obra, estará decidida e gloriosamente enriquecida.

Parabéns, Profa. Leda. Parabéns, Editora Manole. Mas parabéns, sobretu­do, àqueles que, afortunados como eu, lograrem acesso a Direito e argumen­tação, estudo maior das nuances intelectuais próprias do bem-sucedido exer­cício do mister jurídico.

Dirceu de MelloProfessor de Direito na p u c / s p .

Ex-presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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Prefácio

A obra que aqui se apresenta expressa, de forma concreta, a articulação entre ensino e pesquisa, duas das dimensões que servem de base para a cons­trução do conhecimento na universidade. Ela é o resultado da prática docente de um grupo de professores no curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na disciplina Redação em Linguagem Jurídica, que tem a árdua tarefa de despertar em seus estudantes a consciência sobre a im por­tância do domínio da língua materna para o profissional do Direito. Ao mes­mo tempo em que ela é fruto de atividades em sala de aula, aponta a relevân­cia do conhecimento teórico e da pesquisa científica na atuação didática do professor universitário. Em suma, o trabalho proposto revela novas concep­ções no processo de ensino e aprendizagem da língua portuguesa, que se ca­racterizam como rupturas em diferentes direções.

A primeira que pode ser apontada centra-se no ensino da própria língua. Até bem recentemente, para qualquer formação profissional, o ensino da lín­gua portuguesa era feito de forma geral, focado na gramática normativa, sem levar em consideração as especificidades das várias áreas de conhecimento nas quais a língua era ensinada. A partir dos anos 1970, em relação à língua materna, surge a necessidade de revisão de seu ensino, considerando-se as particularidades dos profissionais e de seus campos de atuação. Esse desloca­mento de um ensino geral para um ensino direcionado tornou-se conhecido como ensino de línguas para fins específicos. É esse o caminho didático se­guido no curso de Direito.

Ele pressupõe um diálogo intenso entre a área de atuação do professor de língua, que deve conhecer as modernas teorias sobre a linguagem e seu fun­

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XII Direito e Argumentação

cionamento, e as particularidades do discurso jurídico. Cabe ao professor de língua, fundamentado na pesquisa, conhecer essas características lingüísticas do discurso jurídico para, por meio da transposição didática, apresentá-las aos discentes do curso de Direito. Logo, o conhecimento a ser ensinado não se restringe apenas aos aspectos lingüísticos, como regras gramaticais, por exem­plo, mas implica também especificidades dos textos jurídicos. O objetivo desse ensino é conscientizar o futuro profissional sobre as práticas discursi­vas da área em que atuará. Foi esse modo de trabalhar a língua portuguesa que permitiu a produção dos textos que compõem esta obra.

A segunda ruptura diz respeito às teorias lingüísticas que embasam o processo de ensino da língua. Observando-se os capítulos que integram o li­vro, verifica-se que a linguagem é concebida como interação, da qual a argu- mentatividade é elemento constitutivo. Assim, servem de base para o debate da argumentação, trabalhos pertencentes à Lingüística do Discurso, sendo a comunicação, estabelecida por meio da língua, a finalidade última das trocas lingüísticas. Do ponto de vista teórico, os aspectos relativos a essas concep­ções estão presentes na Parte 1 da obra, sendo retomados, com suas especifi­cidades no discurso jurídico, na Parte 2. Vê-se, assim, que não é, como tem sido a tradição, a teoria gramatical normativa que fundamenta os textos aqui apresentados.

Quanto à organização, os autores, na Parte 1, “Percursos Históricos da Retórica”, têm como ponto de partida a Retórica aristotélica, que é discutida em profundidade por Carlos Alberto Shimote em “A Retórica de Aristóteles”, dado o seu caráter seminal no conhecimento da argumentação. Na seqüên­cia, trazem a Retórica de Perelman, por ser ela a vertente atual da Retórica e por sua estreita relação com o discurso jurídico. Em “A nova Retórica: um novo olhar sobre a Retórica Clássica por Chaim Perelman”, Nancy dos Santos Casagrande tem por objetivo retomar e recontextualizar a velha Retórica, à luz dos ensinamentos de Perelman, apresentando algumas técnicas argumen- tativas, com vistas a atingir as técnicas discursivas que visam a provocar a adesão das mentes às teses apresentadas ou a aumentar a adesão a elas. Ainda nessa Parte 1, há um capítulo, de autoria de Maria Teresa França, dedicado à concepção argumentativa de Vignaux (1976) e Grize (1990), conhecida como “lógica natural”, visando a oferecer ao profissional do Direito outros elemen­tos que o auxiliem na construção da argumentação, desenvolvendo, assim, sua competência argumentativa.

Na Parte 2, “Prática Argumentativa no Direito”, em “A construção do dra­ma narrativo em petições”, a autora, Leda Corrêa, objetiva aprofundar questões

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Prefácio XIII

relacionadas ao texto narrativo, uma vez que ele tem merecido pouca atenção dos estudiosos dos discursos jurídicos. No capítulo “Domínio discursivo ju ­rídico: procedimentos argumentativos no gênero textual decisão interlocu- tória”, Lílian Ghiuro Passarelli procura tratar dos procedimentos argumenta­tivos em um dado gênero textual - uma decisão interlocutória - , analisando lingüisticamente os mecanismos utilizados pelo produtor, com vistas a con­vencer e a persuadir seus interlocutores em relação a uma tese assumida. Doroti Maroldi Guimarães, em “O uso dos argumentos na prática do Direi­to”, partindo do pressuposto de que os argumentos são “a própria essência do raciocínio jurídico” e que “a prática do Direito” consiste, “fundamentalmente, em argum entar”, tem como objetivo oferecer aos alunos subsídios para a am ­pliação de recursos suasórios, a fim de que melhor possam argumentar. Fi­nalmente, em “A argumentatividade nos discursos jurídicos: intertextos e in- terdiscursos”, Aparecida Regina Borges Sellan focaliza a textualidade jurídica como prática discursiva social em que se presentifica um conjunto de outros textos e de outros discursos, aprofundando questões relativas à intertextuali- dade, em sentido amplo e em sentido restrito, e à interdiscursividade.

Assim, do ponto de vista didático, a presente obra representa também uma ruptura pelo conteúdo que desenvolve. Rompe com trabalhos dedicados ao ensino da língua em cursos de Direito que se atêm ou ao tratamento da redação técnica ou a questões exclusivamente gramaticais. Ela apresenta co­mo cerne a construção da argumentação, alma do texto jurídico, detalhando aspectos relacionados à sua elaboração, quer no âmbito lingüístico, quer no âmbito do texto, quer no âmbito do discurso.

Em síntese, esta é um a obra inovadora no tratamento da língua por­tuguesa no curso de Direito, por introduzir uma nova maneira de ensinar a língua - o ensino para fins específicos - , por trazer para a sala de aula, pela transposição didática, as teorias lingüísticas mais atuais e, finalmente, por apresentar conteúdos fundamentais para a formação do profissional do Di­reito, sempre visando ao desenvolvimento da competência argumentativa, elemento essencial na atuação de um profissional desse campo do saber. Me­recem cumprimentos os autores, que, de forma eficiente, souberam aliar en­sino e pesquisa, produzindo um material didático que, certamente, levará a mudanças no ensino da língua materna nos cursos de Direito.

Dieli Vesaro Palma Vice-Reitora Acadêmica Adjunta da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ).

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parte 1 Percursos Históricos da Retórica

i

A Retórica de Aristóteles

Corlos Alberto Shimote

Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. Toda primeira leitura de um

clássico é na realidade uma releitura.

ítalo Calvino, Por que ler os clássicos, 1981

A Retórica de Aristóteles é puramente filosófica e terá uma influência decisiva sobre todas as

determinações ulteriores do conceito.

Friedrich Nietzsche, Da retórica, 1874

A estrutura triádica da Retórica de Aristóteles

A Retórica de Aristóteles apresenta uma simetria triádica não apenas por sua divisão interna em três livros diferentes (os quais foram, provavelmente, como observa Kennedy (21), redigidos em épocas distintas), mas também pela apresentação do processo retórico da perspectiva de três segmentos in­terligados: o de quem fala, o que se fala e, finalmente, o para quem se fala. Ou, segundo a classificação aristotélica, o ethos, o logos e o pathos: o orador, o dis­curso e o auditório; os quais, por sua vez, geram três tipos diferentes de discur­so, o jurídico, o epidítico e o deliberativo.

Uma sistematização engenhosa, sem dúvida, e que, observou Roland Barthes (8, p. 179), exibe concepção do discurso como mensagem submetida à divisão de tipo informático na qual o Livro I da Retórica se apresenta como

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2 Direito e Argumentação - Parte 1

o livro do emissor da mensagem: o livro do orador, o qual se ocupa princi­palmente da concepção dos argumentos, dependentes do orador e de sua adaptação ao público. O Livro 11 se mostra como o livro do receptor da m en­sagem ou, ainda, o livro do público, pois nele se trata das emoções (das pai­xões), e de novo dos argumentos, mas, dessa vez, recebidos e não mais, como antes, concebidos. E, finalmente, o Livro III se revela o livro da própria m en­sagem, nele se tratando da lexis ou elocutio, ou seja, das figuras, e da táxis ou dispositio: a ordem das partes do discurso.

Tal estrutura triádica também foi observada por Paul Ricoeur (32, p. 18), para quem a Retórica de Aristóteles abrange três campos. Há uma teoria da ar­gumentação, constituindo seu eixo principal e fornecendo, ao mesmo tempo, o nó de sua articulação com a lógica demonstrativa e com a filosofia, que, se­gundo observação do filósofo francês, abrange dois terços do tratado. Há tam­bém uma teoria da elocução e, enfim, uma teoria da composição do discurso.

Retórica, democracia e cidadania

Aristóteles define retórica como a arte de extrair de qualquer assunto o grau de persuasão que ele comporta: “a Retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão” (Capítulo II, Livro I). Tal definição encontra sustentação na própria história da disciplina, surgida em Siracusa, na Sicília (antiga Magna Grécia), onde se tornou sinônimo dos usos da palavra pública, em decorrência da transformação da palavra em arma legítima destinada a influenciar o povo, diante do tribunal, na assembléia pública, ou, ainda, para elogio ou panegírico: uma arma chamada a dar a vitória em lutas nas quais o discurso se coloca como elemento decisivo. Havia retórica na Sicília, diz Paul Ricoeur (32), porque havia eloqüência pública, o que, por sua vez, jus­tificaria a famosa frase de Nietzsche (25): “A retórica é republicana”.

E se, conforme aguda observação de Cícero, o princípio da sociedade é a união (Prima Societas en conjugio est), retificado por Francesco Carnelutti (12, p.20), para quem o correto seria afirmar a união ser o princípio da república, entende-se melhor em que medida, na antiga cultura grega, o gos­to pela retórica como cursus studiorum ocorre na mesma época em que sur­ge a polis e a democracia. O novo regime de gestão da sociedade passa a exi­gir dos homens públicos a capacidade de exposição de suas idéias e, também, a capacidade de persuadir - por meio do discurso - os cidadãos para que não apenas se posicionem, mas também tomem decisões próprias à natureza da polis. Afinal, o que possibilita a união dos iguais em torno das coisas

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A Retórica de Aristóteles 3

e, desse modo, o princípio da sociedade (ou o princípio da república), é jus­tamente a adesão dos cidadãos (ou da maior parte deles) às teses expostas pe­los homens públicos. Escreve Eduardo Biltar: “As coisas da cidade, efetiva­mente, num sistema político de participação, se decidem a partir de um processo de ascese retórico-dialética das diversas dóxai de seus cidadãos acer­ca dos destinos da res publica” (11, p. 1.302).

Ser cidadão, segundo os gregos, é poder persuadir e ser persuadido. E os gregos foram os primeiros a viver isso na História. Não sem razão, Jtirgen Habermas (16, p.42) observa a publicidade grega se definir como “o conjunto de pessoas privadas fazendo uso público da razão”, razão que, ao se analisar o sentido grego de logos, é também um légein, ou seja, um dizer. A discursividade pública é, dessa forma, o privilégio de quem pode fazer distinção entre a esfe­ra pública e a privada, isto é, de quem funda sua cidadania na visibilidade social assegurada por seu domínio privado. Fazer uso público da razão, na perspecti­va iluminista de Kant - e que nutre a análise crítica de Habermas só é possí­vel aos sujeitos sem sujeição a qualquer outra instância que não seja a consen­sual regra do melhor argumento. Consenso só possível quando os interlocutores se reconhecem mutuamente como iguais, quando reciprocamente se reconhe­cem como sujeitos de um discurso que, recusando a violência, é capaz de mover a mente do outro, de a “co-mover”. Como lembra Aristóteles, o verdadeiro e o justo são, por natureza, mais fortes (physei) do que seus contrários.

Na origem da retórica encontram-se, portanto, polis, cidadania, dem o­cracia e uso do discurso como instrumento autônom o e legítimo para obten­ção dos direitos. A retórica surge como instrumento reivindicatório de direi­tos espoliados. O primeiro tratado metódico sobre a arte da palavra e da persuasão apareceu na Sicília em 465 a.C., a Teoria retórica, de Córax e Tísias. A obra revela a preocupação de seus autores com a premente necessidade de fornecer a seus concidadãos meios de defesa de seus direitos, no decisivo m o­mento de passagem da tirania para a democracia, quando numerosos proces­sos surgiram diante dos tribunais.

Para Paul Ricoeur (32), a antiga definição recebida dos sicilianos pela cul­tura ocidental, segundo a qual “a retórica é escrava (ou mestra) da persuasão” (peithous demiourgos), recorda a retórica ter sido acrescida como técnica à eloqüência natural, mas que essa técnica enraíza-se em um a demiurgia es­pontânea. Entre todos os tratados didáticos escritos na Sicília e posterior­mente na Grécia, foi essa techné que tornou o discurso consciente de si mes­mo e fez da persuasão um objetivo distinto a ser alcançado por meio de um a estratégia específica.

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4 Direito e Argumentação - Parte 1

O debate entre Platão e Aristóteles

Quando Aristóteles define a retórica como “a faculdade de descobrir os meios possíveis de persuasão acerca de qualquer sujeito” (Esto dè rhetorikè dynamis perí hékaston toü theorêsai tò endekómetion pithanón), está também reconhecendo a retórica como uma techné, isto é, como produto da inteligên­cia hum ana ou legítimo instrumento racional no qual o discurso é concebi­do como meio de produzir o que pode ser ou não ser, e cuja origem - con­forme aguda observação de Roland Barthes (8, p. 179) - encontra-se no agente criador, não no objeto criado, pois não há techné das coisas naturais ou necessárias, já que o discurso não faz parte nem de umas nem de outras. A definição revela ainda o uso significativo e marcante de duas palavras:“a fa­culdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar per­suasão”.

A palavra teoria tem no interior da filosofia aristotélica uma presença mui­to especial. Contemplação, em grego, diz-se theoría, do verbo theoréo, que sig­nifica observar, examinar, contemplar, e cujo correspondente em latim é o ver­bo specio, de onde vem a palavra especulação. A filosofia, espanto admirativo (to thamázein), é contemplação, conhecimento ou saber especulativo e resulta de um procedimento de coletar informações (ta éndoxa). E, embora o desejo de co­nhecer seja uma tendência natural dos humanos (Aristóteles afirma no início da Metafísica: “Todos os homens, por natureza, têm o desejo de conhecer”), a filosofia, nascida do espanto, não é um impulso espontâneo, pois nasce de uma pressão sobre nossa alma, causada por uma aporia, isto é, por uma contradição que parece insolúvel. Dessa forma, a filosofia descreve um movimento no qual o primeiro espanto tira os humanos de sua ignorância satisfeita para cair em novos espantos, ou seja, em aporias. A coleta de informações (ta éndoxa) - mé­todo legítimo da filosofia, defendido por Aristóteles - possui a peculiaridade de apresentar as opiniões dos filósofos não em uma seqüência cronológica, mas em uma seqüência de aporias, na qual cada filósofo responde ao outro, mos­trando a filosofia na condição de diálogo filosófico.

O acordo entre os filósofos é o primeiro sinal de verdade; seu desacordo, ao contrário, o da falsidade de suas opiniões. Desenvolver uma aporia e reco­lher a opinião dos antecessores significa, em primeiro lugar, que o filósofo tem de passar pelos mesmos problemas de seus antecessores, e, em segundo, que o diálogo dos filósofos é uma ascese da verdade, não como um progres­so inelutável, mas como um trabalho sempre renovado. É por essa razão que, antes de aparecer na condição de teoria, a retórica aparece na filosofia de

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A Retórica de Aristóteles 5

Aristóteles na condição de aporia: um problema concreto a ser analisado e re­fletido, uma pressão na alma causada pelas censuras de seu mestre Platão à legitimidade da retórica. Em seus renomados diálogos filosóficos, Platão com­preende a retórica como instrumento do engodo e, portanto, tal qual o abso­luto contrário do discurso apodítico. A Retórica pode ser lida, portanto, como o produto resultante do diálogo a que se viu obrigado a fazer Aristóteles com seu outrora mestre para superá-lo com a apresentação de uma nova teoria não apenas divergente, mas também diferente.

Como se sabe, a retórica aparece na obra de Platão como sinônimo de so­fistica e, por tal, não possui nada de positivo. Para o mestre de Aristóteles, o sofista não tinha compromisso algum com a verdade e, desse modo, podia fa­zer trocadilhos com os diversos sentidos de uma palavra ou um conceito, caso isso fosse útil a sua tese. Não é, pois, sem razão Platão colocar o discur­so apodítico (o que é evidente e demonstrável ou o discurso comprometido com a verdade) em um a condição oposta à da retórica, segundo o filósofo ca­paz de “vender todas as causas” ou “defender tudo”, o que, em última instân­cia, corresponde - para Platão - em não saber nada. Em Górgias, a retórica é refutada não somente como ciência (epistemé), mas igualmente como arte ( techné): ela aparece definida, antes de tudo, como habilidade de ordem prá­tica, totalmente balizada pelo m undo da experiência: emperiría kháritos tinos kai hêdonês apergasías (conhecimento prático da produção de um certo gêne­ro de entretenimento e prazer).

Ora espécie de propaganda, ora manipulação ou bajulação (kolakeia), a retórica aparece definida nesse diálogo de Platão tal qual uma habilidade fun­dada sobre a ignorância e sobre a adulação do auditório. O personagem Górgias busca legitimar a retórica, considerando-a um a atividade que valori­za não apenas os efeitos, mas também os conteúdos do discurso, enquanto Platão, por meio de Sócrates, procura desqualificá-la, considerando-a um sa- voir-faire puramente formal que, longe de permitir o conhecimento, consa­gra apenas os poderes da ignorância, pois o bem não se confunde com o agra­dável. A retórica é para a alma o que a cozinha, em contraste com a medicina, é para o corpo, instrumento para agradar e adular, em vez de ser instrum en­to para cuidar e sanar os males da ignorância. Sem preocupação alguma com o bem, a retórica não cessa de atrair, com suas armadilhas, nossa atenção para os engodos da sedução da linguagem.

Em outro diálogo de Platão, Fedro, a retórica aparece com outra nuança: desdobrada em verdadeira ou falsa, em retórica dialética e retórica sofistica. Ocorre no Fedro o triunfo da dialética em detrimento da sofistica, pois, se­

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6 Direito e Argumentação - Parte 1

gundo Platão, a dialética possibilita a visão de essências e idéias para além de suas aparências sensíveis, ou muito além de paixões ou debates (a dialética é o instrumento que possibilita a própria visão da verdade e o meio mais justo para ascender à ciência autêntica). Para Platão, é falsa a retórica sofistica que exibe um saber que, em verdade, não possui; é autêntica a retórica dialética que sabe, de fato, o que exibe. Como observou Nietzsche, há nesse diálogo de Platão uma série de exigências em torno do rétor.

No Fedro exige-se do orador que adquira, com a ajuda da dialética, conceitos claros sobre todas as coisas, a fim de estar em estado de os introduzir sempre adequadamente na exposição. Deve-se manter 110 domínio da verdade para

dispor também do verossímil e assim poder iludir os seus auditores. Mais lon­

ge, exige que saiba excitar as paixões dos seus auditores e assim tornar-se se­

nhor deles. Para isso deveria ter um conhecimento exato da alma humana e do

efeito de todas as formas de discurso sobre o ânimo humano. A formação de uma efetiva arte oratória pressupõe portanto uma preparação muito profunda e muito englobante: que a tarefa do orador seja persuadir os seus auditores com ajuda do verossímil não altera esse pressuposto. Aliás Sócrates explica que

aquele que atingiu um tal cume do saber já não se contentará com tarefas su­

balternas: o fim supremo é então “partilhar com outrem o saber adquirido”. Aquele que sabe pode portanto ser tanto rhêtorikos como didaktikós. Mas um

dos fins é muito mais elevado. No entanto não se devem excluir todos os usos

da retórica: mas nunca se trata de fazer dela um modo de vida! (25, p.31-2)

A conseqüência mais visível dessa nova nuança com a qual a retórica é analisada - bem como a aplicação desse singular critério de autenticidade ao conhecimento produzido pelo ser hum ano - é a retórica perder toda a pos­sibilidade de autonomia. Ela fica diluída entre duas ordens divergentes e in- comensuráveis: a ordem sofistica dos efeitos e a ordem dialética dos funda­mentos, a qual, segundo Platão, por meio da dupla jornada de indução e divisão, assim como de análise e síntese, pode indicar à retórica o método adequado e justo para elaboração do saber autêntico.

Em dois outros diálogos, Teeteto e Filebo, Platão continua a ocupar-se de reflexões em torno da retórica, revelando que, antes de ser uma questão me­nor de sua filosofia, a retórica é, ao contrário, uma questão de legítima mag­nitude. Em tais escritos, de perspectivas diferentes, opera-se 0 último m o­mento de tematização da retórica no interior dos diálogos, que se tornaram os textos mais admirados e lidos da obra de Platão e paradigmas de sua ad­

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A Retórica de Aristóteles 7

mirável filosofia idealista. O Filebo continua, portanto, a tratar da diferença entre retórica e dialética, todavia pelo viés da oposição entre uno e múltiplo. No Teeteto, o problema discutido é outro: a questão da relação entre ciência e opinião correta (ortho doxie). O objetivo de Platão é mostrar a retórica, malgrado sua inegável influência sobre esta última, não possuir influência al­guma sobre a ciência.

Platão, ao formular sua teoria do conhecimento em sua mais im portan­te obra filosófica (A República, Livro VII, no famoso mito da caverna), reage à retórica por meio da metafísica. Para Platão, o verdadeiro discurso, o logos, não conhece a opinião nem a contingência (aquilo sobre o qual não há cer­teza de acontecer); o conhecimento verdadeiro não admite a possibilidade de verdade contrária, o que por definição seria um erro. A verdade é absoluta ou deixa de ser verdade. A ambigüidade, o sentido plural ou a multiplicidade das opiniões são, desse modo, ferramentas dos incompetentes esforçando-se para falar de tudo e dar a impressão de saberem do que falam. Para Platão, o meio disponível para o alcance da verdade, antes de ser a retórica, é, ao contrário, a dialética, isto é, jogo de questões e respostas ou arte do diálogo e da discus­são: expressão da verdade única e unívoca que deve emergir da discussão, pois é sempre pressuposta por ela. Michel Meyer (22) observa que, com Platão, a retórica é expulsa do campo do logos centrado na apodicidade, ou seja, centrado no evidente e verdadeiro.

A crítica de Platão à retórica ocorre em três campos distintos: no campo da ética, já que por meio da adulação ela se torna instrumento para o engo­do; no campo da lógica, por ser a natureza dos argumentos de que ela se ser­ve discutível, uma vez que são argumentos falsos e sem compromisso com a verdade; e no campo da estética, pois, afinal, para Platão, o belo é necessaria­mente o bem, e este não se confunde com o agradável.

Em face de tais censuras formuladas por Platão contra a retórica (e da so­lução dualista singular de sua filosofia opondo claramente coisas e essências, o sensível e o inteligível, ou a opinião e o conhecimento), Aristóteles, para su­perar a aporia herdada de seu mestre, elabora uma organização triádica do conhecimento e, também, uma sistematização da ciência, do ponto de vista da ação humana e da natureza dos seres investigados por elas. Assim, como meio de superar o dualismo da filosofia platônica que reconhece apenas co­nhecimento verdadeiro (epistemé) e conhecimento falso (doxa), Aristóteles propõe uma terceira espécie: o conhecimento provável ou verossímil, do qual faz parte a retórica. E, além disso, Aristóteles sistematiza a ciência (epistemé) em duas grandes categorias: teorética e teórica.

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8 Direito e Argumentação - Parte 1

As ciências teoréticas abrangem conhecimentos dos seres naturais: física (compreendendo biologia, botânica, zoologia, psicologia e cosmologia), co­nhecimentos matemáticos (aritmética, geometria, astronomia, harm onia ou música) e conhecimentos teológicos (o divino, o ser puro, perfeito, imutável). Para Aristóteles, as ciências teoréticas são aquelas cujos objetos existem inde­pendentemente de vontade e ação humanas e, por isso, só podem ser contem­plados por nós. As ciências teóricas, ao contrário, são aquelas cujo objeto de conhecimento depende de vontade e ação humanas. Trata-se das ciências da ação ou das ciências teóricas sobre as práticas humanas: “Toda arte ( techné), toda investigação (méthodos), toda ação (práxis) e toda escolha racional (pmaíresis) tendem para algum bem”

Para Aristóteles, entretanto, há certa diferença entre os fins das ciências teóricas, pois a ação hum ana possui duas grandes modalidades: a ação que tem como fim a produção de uma obra e a ação que tem seu fim em si mes­ma. Disso resulta a distinção que estabelece entre práxis e poiesis (ação fabri- cadora). Poiesis é arte ou técnica e compreende agricultura, navegação, pin­tura, escultura, arquitetura, tecelagem, todos os artesanatos, poesia e retórica. Práxis compreende economia, ética, direito e política. É função de toda ciên­cia, segundo Aristóteles, investigar não apenas os princípios, mas também as causas e a natureza dos seres que são seu objeto de estudo.

O fato de as ciências possuírem em comum o procedimento (méthodos) de busca de princípios e causas não as torna, no entanto, iguais, pois a natu­reza dos seres que investigam é diferente. E essa diferença da natureza das coi­sas investigadas faz princípios e causas de cada ciência serem diferentes, o que, por sua vez, explica a organização das ciências em três grupos distintos: o das ciências teoréticas, o das ciências práticas e o das ciências produtivas ou poiéticas (também chamadas por Aristóteles techné ou, como nos legou a tra­dição latina, ars ou arte).

Dessa nova perspectiva, ciências práticas são aquelas cujo princípio, ou cau­sas, o homem como agente da ação, e a finalidade é o próprio homem. Trata-se daquelas ciências nas quais agente, ação e finalidade da ação são uma só e mes­ma coisa, ou, como se costuma dizer, são inseparáveis e imanentes. Tais ciências se referem à práxis como algo propriamente humano; uma atividade que não produz algo diferente do agente e que tem como causa a vontade humana con­siderada escolha deliberada, refletida e racional. Sendo a vontade racional causa ou princípio da ação, as ciências práticas diferem das teoréticas por, além de não serem contemplativas, seu objeto não ser necessário ou universal, mas antes contingente e particular. Esse objeto - ação, a práxis - é aquilo possível de acon­

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A Retórica de Aristóteles 9

tecer ou deixar de acontecer (contingente ou meramente provável), dependen­do da vontade racional do agente, e é aquilo que acontece de maneira determi­nada (particular), dependendo das características pessoais do agente. Apesar da contingência e da particularidade, Aristóteles fala em ciências práticas por ser possível conhecer as ações humanas, pois existe algo conferindo necessidade e universalidade a elas: a finalidade. As ações verdadeiramente racionais e refleti­das são as realizadas para alcançar um fim: o Bem. Este, por sua vez, não possui a universalidade de um princípio teorético ou de uma causa teorética, mas é re­ferência estável e geral, válida para todos, e oferece um critério, uma medida (métron) para o agente escolher entre várias ações possíveis. O critério define ser bom ou um bem o que contribui para aumentar ou conservar independência ou autonomia do agente, isto é, tudo que torne o agente menos dependente de outros ou de outras coisas é, dessa forma, bom ou um bem. O bem é, assim, a autarcia ou a auto-suficiência de alguém (autárkeia).

As ciências práticas são constituídas por ética e política. A ética tem por ob­jetivo estudar a ação do ser humano como alguém que deve ser preparado para viver na sociedade, além de estabelecer princípios racionais da ação virtuosa para o bem do indivíduo como ser sociável vivendo em relação com outros. A política visa a estudar a ação dos homens como seres comunitários ou sociais, procurando estabelecer, para cada forma de regime político, princípios racionais da ação política, cuja finalidade é o bem da comunidade ou o bem comum.

As ciências poiéticas se referem a um tipo particular de ação humana: a fa- bricadora. Tal ação, em grego, chama-se poiesis e, por isso, as ciências poiéticas também são chamadas ciências produtivas, ou, como meio de distingui-las das ciências em seu senso estrito, simplesmente techné. A poiesis difere da práxis porque, nela, agente, ação e produto da ação são termos diferentes e separados; ou, como diz Aristóteles, a finalidade da ação está fora dela, na obra, no artefa­to, em um objeto. As ciências poiéticas são, como as ciências práticas, as que li­dam com o contingente (o que pode ser ou deixar de ser) e com o particular (o que existe em tempo e lugar determinados). E, do mesmo modo que na práxis, também na poiesis é possível encontrar um ponto de referência (critério ou pa­drão) que ofereça uma necessidade e uma universalidade para a ação produto­ra ou fabricadora. Esse ponto também é uma finalidade: é o modelo do que se vai fabricar ou produzir. Ações poiéticas são todas as referentes a um aspecto particular da capacidade fabricadora ou técnica dos humanos e, por isso, são tão numerosas quanto nossas possibilidades produtivas e técnicas: pintura, es­cultura, arquitetura, medicina, eloqüência, poesia, engenharia, olaria, tecela­gem. Dessas técnicas ou artes (techné), Aristóteles deixou dois tratados: além da

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10 Direito e Argumentação - Parte 1

Arte poética, a Arte retórica, ou simplesmente a Retórica (arte da discussão e da persuasão por meio do discurso que move nossas paixões).

Retórica, poética e dialética

Aristóteles considera a retórica do domínio dos conhecimentos prováveis e não das certezas e evidências (campo de domínio dos raciocínios científicos e lógicos), sobre os quais sistematizou suas análises no Organon. A persuasão retórica desenvolve-se no campo não do conhecimento falso (como sustenta­ra Platão) ou do conhecimento verdadeiro (área da ciência e da lógica), mas no campo do conhecimento provável, plausível ou verossímil, uma vez que há em Aristóteles a convicção de serem no m undo da opinião (doxa) tecidas as relações sociais, políticas e econômicas, pois as capacidades de raciocinar (noús) e produzir discursos (logos) converteram-se em instrumentos determi­nantes para o convívio social. E, se não há ciência sem um mínimo de argu­mentação, também é verdade, constata o pensador, não existir raciocínio ou argumentação sem retórica. Por tal, cm seu estudo da comunicação humana, Aristóteles considerou os diversos tipos de argumentação: a argumentação científica, na qual se emprega o silogismo científico (este parte de premissas verdadeiras e absolutamente primeiras); a argumentação dialética, na qual o silogismo - também chamado epiquirema - é dialético por partir de premis­sas prováveis; a argumentação erística ou sofistica, que apresenta como prová­veis premissas que, em verdade, não o são ou simula conclusões, a rigor, im­procedentes; e, finalmente, a argumentação retórica, caracterizada por sustentar-se por dois procedimentos, o entimema e o exemplo.

A retórica se ocupa daquilo que é, mas pode não ser ou ser diferente, e, ainda, ser de outro modo ou ser outra coisa. Por essa razão (por não tratar de certezas e evidências), seu campo é o da controvérsia, da crença, do m undo da opinião, que se há de formar dialeticamente pelo embate das idéias e pela habilidade no manejo do discurso. O domínio da retórica, das questões judi­ciárias e políticas, não é o mesmo da verdade, mas do verossímil, pois, como se ocupa de explicar o próprio Aristóteles (2, p. 1.094b), “seria tão absurdo aceitar de um matemático discursos simplesmente persuasivos quanto exigir de um orador (rétor) demonstrações invencíveis”.

Trata-se, como observa Eduardo Bittar (11, p. 1.297), de uma arte voltada - muito mais do que pura e simplesmente para a persuasão - para o conhecimen­to dos meios pelos quais pode-se operar e para a definição de persuasivo. Ou, como afirma o próprio Aristóteles no Capítulo I do Livro I da Retórica:

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A Retórica de Aristóteles 11

Sua tarefa não consiste em persuadir, mas em discernir os meios de persuadir

a propósito de cada questão [...] é manifesto que o papel da Retórica se cifra em distinguir o que é verdadeiramente suscetível de persuadir do que só o é na aparência.

Persuadir etimologicamente vem de persuadere, per + suadere. O prefixo per significa de modo completo, suadere é aconselhar (não impor). As pala­vras da mesma família esclarecem o valor da raiz: swad - suavis, suave; sa- vium, beijo terno. Daí o sentido geral de persuadere: aconselhar, levar alguém a aceitar um ponto de vista de m odo suave, habilidosamente.

A literatura antiga é pródiga na difusão de tais sentidos de suavidade e ha­bilidade de suavizar a argumentação como típicos da palavra persuasão. Há na mitologia grega (e também latina) uma divindade da Persuasão integrando o cortejo de Afrodite, simbolizando o poder persuasivo da beleza. Persuadir, em sua raiz, significa tornar suave. Por tal razão, Dante Alighieri, nos fins da Idade Média, subordinou a retórica ao planeta Vênus. No julgamento de Páris, Venus vence Juno e Minerva não pela beleza, mas pela eloqüência.

No entanto, a retórica, de direito, é atribuída a Hermes, pois, como em ­baixador e mensageiro de Zeus, ele se identifica com o logos, a palavra divina. E foi ele quem ensinou aos homens a falar bem para persuadir. Não sem ra­zão, Marciano Capela, no século v de nossa era, faz o casamento de Mercúrio, eloqüência, com Filologia, sabedoria (De Nuptiis Mercurrii et Philologiae). Consta, também, que ladrões e comerciantes ficavam sob a proteção de Mercúrio, pois seria natural dessas profissões a exigência de muita habilidade no falar.

A retórica distingue-se da poética, visto esta tratar do que não é, mas — dentro dos limites do verossímil - poderia ser. Tal distinção, muitas vezes, não se mostra, todavia, suficiente para a compreensão plena da dimensão de cada uma das disciplinas, pois um a e outra manifestam-se por meio do uso do discurso. A retórica, porém, é antes de tudo uma técnica da eloqüência, seu alcance é o mesmo da eloqüência: gerar a persuasão. A poética, arte de compor poemas, não depende, quanto à função e situação do discurso, da re­tórica, arte de defesa, deliberação, repreensão e elogio. A poesia não é elo­qüência, uma vez que não visa à persuasão, mas - e ao contrário - à purifica­ção das paixões por meio de terror ou piedade.

Aristóteles define a retórica como a arte de inventar ou encontrar provas. Ora, a poesia nada quer provar, seu projeto é mimético: seu alcance é com ­por um a representação essencial das ações humanas, seu modo próprio é di-

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12 Direito e Argumentação - Parte 1

zcr a verdade por meio da ficção, da fábula, do mythos trágico. A tríade poie- sis-mimesis-kátharsis descreve, de maneira exclusiva, o m undo da poesia, sem confusão possível, observa Paul Ricoeur, com a tríade retórica-prova-persua- são. Por tal fato, os oradores latinos faziam correr em seu tempo a máxima: poeta nascitur, orator facitur (o poeta nasce, o orador se faz).

A retórica distingue-se também da dialética, pois esta - ainda que partin­do, como a retórica, de premissas prováveis - consiste em uma arte de argu­mentação visando ao universal (como indica claramente seu papel no estabe­lecimento dos princípios da filosofia). A relação entre retórica e dialética ocupa os três primeiros capítulos do Livro I da Retórica. E parece mesmo que, para Aristóteles (ao contrário de Platão), o intercâmbio entre dialética e re­tórica assume a função de complementaridade para aquela na mesma medi­da em que aquela está para esta. A relação entre retórica e dialética é, como revela Olivier Reboul (31), além de complexa, alvo de muita controvérsia em razão dos diversos tipos de articulação estabelecidos entre ambas por Aristóteles. A superação da controvérsia pode, contudo, ser alcançada, se for considerada a sugestão efetuada por Reboul propondo o abandono das ten­tativas de hierarquização com as quais, habitualmente, as disciplinas são tra ­tadas, e se, ao contrário, insistir-se em analisar retórica e dialética em um mesmo plano, destacando-se as características compartilhadas:

• As duas são de aplicação universal: ambas podem sustentar uma tese (e seu contrário); ambas possibilitam discussão de tudo que é controverso.

• Ambas utilizam técnicas semelhantes; retórica e dialética são capazes de provar uma tese ou seu contrário - o que não significa as duas teses serem necessariamente equivalentes, pois então se cairia na sofistica: pode-se ar­gumentar mesmo em favor de uma tese fraca.

• Ambas desenvolvem procedimentos argumentativos similares.• Ambas são capazes de estabelecer as diferenças entre o verdadeiro e o não-

verdadeiro: ambas são capazes de fazer distinção entre verdadeiro e apa­rente (a dialética, entre o verdadeiro silogismo e o sofisma; a retórica, en­tre o realmente persuasivo e o logro).

• Ambas utilizam dois tipos idênticos de argumentação: indução e dedução.

Tais semelhanças, quando somadas aos aspectos próprios da cultura grega da Antiguidade, particularmente aquele que associa a oratória às práticas com­petitivas e artimanhas próprias do jogo - pois era assim, observa Nietzsche (25), que se caracterizava a especificidade da vida helênica: todas as atividades

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A Retórica de Aristóteles 13

de entendimento, da seriedade da vida, da necessidade e mesmo do perigo eram concebidas como um jogo - , problematizam o significado do termo techné.

Quando se procura observar retórica, dialética e poesia da perspectiva do jogo, a compreensão do conceito de techné se amplia, pois o entendimento quase mecanicista que, modernamente, possui a palavra técnica não faz jus ao aspecto lúdico que também possuem tais artes. Retórica e poética, além de produto do Homo sapiens (que caracteriza o lado racional da espécie hum a­na), são também manifestações do Homo ludens- para lembrar a nomencla­tura empregada por Johan Iluizinga (18). Tal compreensão também possui Emmanuel Kant, que considera a retórica a “arte de exercer um ofício do en­tendimento” (portanto, um instrumento do intelecto ou do aspecto racional próprio da humanidade), mas com a manifesta presença do aspecto lúdico, pois, para Kant, retórica e poesia são também uma espécie de jogo.

As artes elocutivas são a eloqüência e a poesia. Eloqüência é a arte de exercer um ofício do entendimento como um jogo livre da faculdade da imaginação;

a poesia é a arte de executar um jogo livre da faculdade da imaginação como um ofício do entendimento.

O orador, portanto, anuncia um ofício e executa-o como se fosse simplesmen­

te um jogo com idéias para entreter os ouvintes. O poeta simplesmente anun­cia um jogo que entretém com as idéias e do qual contudo se manifesta tanta coisa para o entendimento como se ele tivesse simplesmente tido a intenção de

estimular o seu ofício. (20, p.227)

Quando, enfim, retórica, poética e dialética são avaliadas em consonân­cia com os aspectos mais característicos da cultura grega, tal postura crítica permite melhor compreensão de singularidades e alcance de tais technés. Todo jogo possui, como postulado, um ganhador e um perdedor, e, como ob­serva Olivier Reboul, o postulado da dialética é a máxima vencer é convencer. Ou seja, a dialética se apresenta como uma espécie de jogo no qual, por meio de observação e obediência a um conjunto de regras determinadas, visa-se a provar ou refutar uma tese. Trata-se, diz Reboul, da parte especificamente ar- gumentativa da retórica, o que, por sua vez, permite não somente distingui- la da sofistica, mas também da filosofia, já que o sofista não joga, antes simula jogar, pois seu desprezo pelas regras destrói a própria essência do jogo. Do mesmo modo, a filosofia, mesmo observando as regras naturais do jogo, tam ­bém não joga, porque seu fim transcende o próprio jogo, já que seu objetivo não é a vitória, mas a procura da verdade.

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14 Direito e Argumentação - Parte 1

Para Reboul, a dialética não é moral nem imoral, simplesmente por, no fundo, ela ser um jogo - um jogo especulativo. Retórica e dialética são, pois, duas disciplinas diferentes que se cruzam como dois círculos em intersecção, em um processo interativo. Dialética é um jogo intelectual que, entre suas possíveis aplicações, comporta a retórica. Retórica é a técnica do discurso persuasivo que, entre outros meios de convencer, utiliza a dialética como ins­trum ento intelectual. E, conforme alerta Reboul, se tais círculos podem cru­zar-se, é por se situarem no mesmo plano e por pertencerem, em sentido es­trito, ao mesmo mundo. Ou seja: a retórica utiliza a dialética para convencer. Não é sem razão, portanto, Aristóteles iniciar a Retórica constatando não so­mente similitudes entre retórica e dialética, mas também quão natural é para o ser hum ano a disposição para o debate.

A Retórica não deixa de apresentar analogias com a Dialética, pois ambas tra­tam de questões que de algum modo são da competência comum de todos os

homens, sem pertencerem ao domínio de uma ciência determinada. Todos os homens participam, até certo ponto, de uma e de outra; todos se empenham dentro de certos limites em submeter a exame ou defender uma tese, em apre­

sentar uma defesa ou uma acusação. (4, p.29)

A relação entre retórica e dialética, observada no primeiro parágrafo da obra, é reiterada outras vezes por Aristóteles. Primeiro, quando se propõe ex­por sobre a utilidade da retórica e reafirma que “a Retórica não se enquadra num gênero particular e definido, mas que se assemelha à Dialética” ( ibid., p.31); depois, no Capítulo II do Livro I, quando o filósofo afirma:

A Retórica é uma parte da Dialética e com ela tem parecenças, como deixamos dito logo no princípio. Com efeito, nem uma nem outra é ciência com seu ob­

jeto definido, cujos caracteres se dê ao trabalho de investigar. São apenas facul­

dades de fornecer argumentos. (ibicí., p.34)

E, não bastasse tais reiterações, logo após, no mesmo capítulo, retoma o assunto ao fazer a seguinte constatação:

A Retórica não encarará teoricamente o provável para cada indivíduo, por

exemplo, para Sócrates ou Hípias, mas sim o provável para homens desta ou daquela condição, e nisso se assemelha à Dialética. Esta última não raciocina

por silogismo, partindo de quaisquer premissas ao acaso - pois há premissas

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A Retórica de Aristóteles 15

que até loucos podem admitir mas parte do que precisa ser estabelecido pelo

raciocínio, ao passo que a Retórica estriba-se em fatos que já estamos habitua­dos a pôr em deliberação. (ibid., p.35)

O mérito principal da leitura concebida por Reboul encontra-se no esta­belecimento não apenas do contraste, mas também do paralelismo entre retó­rica e dialética, colocando em destaque quão determinante é para ambas o au­ditório com o qual interagem, pois tanto um a quanto outra compartilham a ambição de vencer a disputa que caracteriza o debate de idéias. Os meios de demonstrar, isto é, de recorrer às provas como mecanismo de persuasão, são idênticos, afirma Aristóteles, para a retórica e para a dialética: o método indu­tivo e o dedutivo. No entanto, a retórica se serve de um silogismo (método de­dutivo) específico, do mesmo modo que se serve de um jeito singular do mé­todo indutivo, pois o silogismo ou método dedutivo próprio da retórica é o que Aristóteles chama de silogismo retórico ou, segundo a terminologia aris- totélica, entimema. Do mesmo modo, o método indutivo próprio da retórica é, na terminologia de Aristóteles, o exemplo, que, segundo o filósofo, possui a virtude de atingir o geral partindo de casos individuais. Sobre a eficácia de um e outro instrumento de persuasão retórica, Aristóteles afirma: “os discursos baseados nos exemplos prestam-se mais que os outros para persuadir; mas os discursos baseados em entimemas impressionam mais” (ibid., p.34).

Os entimemas, por se ligarem à capacidade de raciocínio e argúcia críti­ca do orador, são argumentos ligados ao ethos, enquanto os exemplos, por se­rem referências tiradas do universo e da realidade nos quais está inserido o auditório (e com quem o orador ou ethos interage), são argumentos ligados ao pathos. Entimema e exemplo são, portanto, instrumentos de argumenta­ção marcados pela referência ao orador (e à credibilidade dele), bem como à disposição do público em ouvi-lo. Não sem razão Jeanne Croissant afirma:

Ce qui distingue la technique de In persuasion de la pure dialectique cest quaux

preuves logiques viennent s’ajouter des facteurs de persuasion qui résident soit datis le caractere de 1’orateur, soit dans les dispositions affectives qu il creé chez Vauditeur. (15, p. 193)1

1 “O que distingue a técnica da persuasão da dialética p u ra é q ue às provas lógicas vêm se ju n ta r os fatores de persuasão que residem seja n o caráter do orador, seja nas disposições afetivas que ele criou n o ouv in te”.

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16 Direito e Argumentação - Parte 1

A dialética, embora se sirva dos mesmos recursos que a epistemé das ciên­cias teoréticas, ou seja, dos métodos indutivo e dedutivo, utiliza-os em con­sonância com sua particularidade, razão pela qual, para Aristóteles, o silogis­mo dialético não se confunde com o silogismo demonstrativo. O silogismo demonstrativo parte de premissas evidentes, necessárias, que provam sua conclusão explicando-a de modo indubitável. O silogismo dialético parte de premissas simplesmente prováveis, os endoxa> aquilo que parece verdadeiro a todo mundo, ou à maioria das pessoas, ou ainda aos indivíduos competentes. O enáoxon opõe-se, observa Reboul, ao paradoxon porque, ainda que verda­deiro, o paradoxo contradiz a opinião aceita.

Podemos raciocinar e deduzir, ora partindo de proposições já demonstradas,

ora, pelo contrário, de proposições ainda não demonstradas e que precisam de

demonstração, porque não são correntemente admitidas. Destes dois meios, um é necessariamente difícil de seguir, devido à sua extensão, porque se supõe

ser o juiz pessoa simples. O outro não se presta, por natureza, para persuadir, visto que não parte de proposições, sobre as quais reine completo acordo e que sejam correntemente admitidas. (4, p.35)

A dialética renuncia à verdade das coisas em benefício da opinião aceita. Substitui a pergunta científica o que é? por o que lhe parece? Aristóteles, ao contrário dos sofistas, não se contenta simplesmente com o consenso; antes toma o cuidado de distinguir o verdadeiro consenso do consenso aparente (phainomenon endoxon). Como observa Michel Meyer:

Aristóteles afirma que a interrogação dialética, longe de ser um verdadeiro pro­cesso de questionamento, é na realidade a colocação à prova de uma tese prová­vel para toda a gente, para a maioria, ou para os sábios. Interrogar é fazer admi­

tir uma proposição oposta mas igualmente provável, confrontando-a, entre

outras coisas, com os argumentos do adversário. [...] Trata-se de chegar, tanto quanto possível, a uma proposição que exclua o seu contrário, esperando que a

ciência possa decidir apoditicamente, quer dizer, com toda precisão. (22, p.29)

É natural para os seres humanos, observa Aristóteles, a predisposição e in­clinação para a verdade: “Os homens são, por natureza, suficientemente propen­sos para o verdadeiro e na maioria dos casos alcançam a verdade” (Aristóteles, op.cit., p.30), sentença assaz parecida com aquela da metafísica que, outrora, destacamos: “Todos os homens, por natureza, têm o desejo de conhecer”.

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A Retórica de Aristóteles 17

E, por isso, retórica e dialética são úteis, pois, aponta o filósofo, “é m ani­festo que o papel da Retórica se cifra em distinguir o que é verdadeiramente suscetível de persuadir do que só o é na aparência, do mesmo modo que per­tence à Dialética distinguir o silogismo verdadeiro do silogismo aparente” (ibid., p.31). O que, no entanto, é dialética para Aristóteles? A dialética cons­titui, para ele, a parte da lógica que estuda os raciocínios dialéticos ou prová­veis. Assim, discurso retórico é o texto que pretende persuadir sobre um a questão provável, dialética. Um discurso retórico é feito de questões prová­veis, dialéticas, sendo esse, portanto, seu objeto material. E, por o discurso re­tórico se apresentar da perspectiva persuasiva, a persuasão é seu aspecto for­mal. Dessa forma, todo discurso retórico supõe outro discurso em confronto. Todo discurso retórico pede outro discurso em ato ou potência: um discurso se faz antes de outro discurso e supõe um discurso posterior, que pode ser imediato, retardado ou ficar em aberto, pois a matéria do discurso retórico é dialética.

Para entender a natureza dos raciocínios dialéticos, imaginemos uma si­tuação na qual nos encontremos diante de uma questão e nosso espírito fique, em dúvida, flutuando entre duas alternativas. A ciência resolve a dúvida e che­ga à certeza. No entanto, o âmbito da ciência é restrito. Nem sempre ela dá uma solução indiscutível. Se estamos, portanto, em face de uma dúvida e não há uma resposta científica, e ainda assim precisamos decidir e tomar uma ati­tude, buscamos a alternativa mais provável, a que pesa mais; e, se não chega­mos à certeza, ao menos atingimos uma opinião que oferece probabilidades.

Para Dante Tringali (35, p.26), o conhecimento científico funda-se em ra­ciocínios verdadeiros e evidentes e levam a uma conclusão certa; os raciocínios dialéticos, em vez de verdade, oferecem probabilidades ou crenças, isto é, opi­niões gerais. Em vez da evidência intrínseca do juízo, apóiam-se na autoridade da crença da maioria dos homens ou na maioria dos entendidos. Em vez de certeza, engendram o estado de espírito chamado opinião ou probabilidade no qual o entendimento se inclina para um dos lados da alternativa, mas tem re­ceio de que a outra alternativa possa ser mais provável. Sempre que, diante de uma dúvida, não é possível chegar à certeza (à ciência), somente a probabilida­des, está-se em face de uma questão dialética, objeto do discurso retórico.

Retórica e dialética baseiam-se, ambas, em raciocínios dialéticos e geram uma área de conhecimentos prováveis, o m undo da opinião. Diferem elas no plano formal, pois a retórica se realiza por meio de um texto contínuo, inin­terrupto (um discurso se contrapõe a outro discurso), enquanto a dialética opera pela conversação e pelo diálogo, desenrolado por falas alternadas, com

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18 Direito e Argumentação - Parte 1

relativa brevidade. Quando se pergunta a Zenão a diferença entre as duas dis­ciplinas, ele se limita a abrir e fechar a mão: a mão aberta alude à abundân­cia da retórica; a mão fechada, à concisão da dialética.

A dialética, afirma Pierre Aubenque (6, p.286), refuta no real, mas só de­monstra na aparência. Na retórica, complementa Reboul (31, p.38), na qual não se sustenta uma tese, mas se defende uma causa, na qual não se joga com idéias, mas o que está em jogo no discurso é o destino judiciário, político ou ético dos homens, é preciso levar a sério o na aparência como verossímil que faz as vezes de uma evidência sempre inapreensível. A retórica só atinge o ve­rossímil, o que acontece no mais das vezes, mas que poderia acontecer de ou­tra forma. Eqüivale a dizer que ela só é possível em certo mundo. E retórica e dialética, no interior do sistema filosófico de Aristóteles, pertencem ao mes­mo mundo, pois, dos dois m undos estabelecidos por Aristóteles, o lunar e o sublunar, retórica e dialética estão inseridos neste último.

Para Aristóteles, existem dois mundos. Primeiro, o m undo lunar, o céu, não cognoscível pela fé, mas, ao contrário, pela razão demonstrativa. Esta co­nhece tanto o divino invisível, Deus, quanto o divino visível, os astros, objeto da astronomia matemática, pois, sendo seus movimentos necessários, são cal­culáveis e previsíveis. Abaixo, o m undo sublunar, a Terra, onde existem acaso, contingência, imprevisibilidade, onde nunca é possível a ciência perfeita, mas onde existe o provável, o verossímil - mundo, enfim, aberto à ação humana.

Por tais fatos, para Reboul, retórica e dialética devem ser pensadas como “duas disciplinas que se recortam, como dois círculos que apresentam uma in- tersecção” (op.cit., p.51). Ambas pertencem a um mundo pleno de interroga­ções, pois, como adverte Pierre Aubenque, “num mundo perfeitamente transpa­rente à ciência, isto é, onde estivesse estabelecido que nada poderia ser diferente do que é, não haveria lugar para a arte, nem, de maneira geral, para a ação hu­mana”^ , p.68).

E justamente por tal razão que a retórica não aparece no interior da obra de Aristóteles como técnica de argumentação lógica ou de consideração apo- dítica, mas como técnica de argumentação verossímil, que se materializa e ga­nha forma por meio dos silogismos retóricos, isto é, os entimemas. Como ob­serva Paul Ricoeur em A metáfora viva:

O gênero de prova que convém à eloqüência não é o necessário, mas o verossí­

mil, pois as coisas humanas, a respeito das quais os tribunais e as assembléias de­liberam e decidem, não são suscetíveis de qualquer sorte de necessidade, de de­

terminação intelectual, que a geometria e a filosofia primeira exigem. (32, p.22)

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A Retórica de Aristóteles 19

Partimos de uma constatação elementar sobre a qual Aristóteles não pára de insistir: a relação retórica liga um orador e um auditório por meio da lin­guagem, permitindo, enfim, estabelecer um processo de comunicação. À di­mensão do orador Aristóteles chama ethos, pois nada é mais convincente ou sedutor do que a força moral, o caráter e as virtudes de autoridade, os quais devem tornar-se prova da matéria do que procura persuadir ou agradar. Aristóteles caracterizou a dimensão do auditório como pathos, pois o que es­cuta o discurso do orador é atravessado pelas paixões postas em movimento pelo tema tratado (donde o conceito de emoção). Quanto à dimensão que re­cobre a linguagem, Aristóteles a chamou de logos, definido, às vezes, por esti­lo ou razão, figuras ou argumentos, ou, como dito hoje, pelo figurado e pelo literal. A retórica é estudada, portanto, segundo o recorte ethos-pathos-logos, e nisto reside sua especificidade.

Retórica, persuasão e ética

A vocação original da retórica é ser uma teoria geral do discurso persua- sivo, isto é, essencialmente um a teoria da argumentação. Por tal fato, a tradi­ção latina, herdeira dos princípios aristotélicos, sob a voz de um de seus mais significativos pensadores, Cícero, anunciava as finalidades da retórica com três princípios distintos ( tria officia): docere, ensinar, informar; movere, m o­ver (“co-mover”) os sentimentos; e delectare, encantar, seduzir.

Tais princípios revelam as duas orientações pelas quais, tradicionalmen­te, a retórica clássica é compreendida: de um lado, a visão da retórica como instrumento de psicagogia, que atua pela “co-moção” da psique, por sedução, utilizando a eficácia simbólica da palavra; de outro, a compreensão da retó­rica como demonstração da verossimilhança por meio da prova. Isso, por sua vez, implica uma teoria da prova e, também, a noção, como verificado ante­riormente, de o raciocínio retórico-argumentativo não ensinar a verdade (aletheia), como ocorre com a epistemé, mas apenas um a aproximação à ver­dade, à verossimilhança, modificável no tempo e no espaço, isto é, a opinião (doxa).

A teoria da argumentação não pode adm itir que toda prova seja reduzi­da à evidência, pois, caso se admita a teoria da argumentação como estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou acrescer a adesão dos es­píritos às teses que se apresentam a seu assentimento, está-se a pressupor a adesão dos espíritos ser de intensidade variável. Não se debate ou discute so­bre o evidente e sobre as questões em torno das quais impera consenso, com ­

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20 Direito e Argumentação - Parte 1

preensão comum ou unanimidade de juízos. A função da retórica reside na organização do discurso visando à deliberação e não se delibera sobre o que se tem certeza.

A retórica é a arte de persuadir pelo discurso e, afirma Aristóteles, “ne­nhum a outra arte possui esta função” (4, p.33). Não é, portanto, aplicável a todo tipo de discurso, mas aos que têm a persuasão como parte de sua natu­reza, como pleito advocatício, alocução política, sermão, folheto, cartaz de publicidade, panfleto, fábula, petição, ensaio e tratados de filosofia, teologia ou ciências humanas. O uso do discurso persuasivo não é genérico, mas res­trito, pois, como observa Aristóteles, “usamos os discursos persuasivos para provocar um juízo, pois não há necessidade de discursos para os pontos que conhecemos e sobre os quais já temos juízo formado” (ibid., p.139).

A retórica diz respeito, portanto, ao discurso persuasivo ou ao que um discurso tem de persuasivo; trata-se do discurso que leva alguém a crer em al­guma coisa, tal qual observação de Arthur Schopenhauer:

A eloqüência é a faculdade de fazer partilhar as nossas opiniões e a nossa ma­neira de pensar a propósito de uma coisa, de lhes comunicar os nossos pró­

prios sentimentos, de os pôr em sintonia conosco. E devemos chegar a esse re­

sultado, fazendo penetrar por meio das palavras as nossas idéias nos seus cérebros com uma força tal que os seus próprios pensamentos se desviam do seu curso primitivo para seguir as nossas. E a obra-prima será tanto mais per­

feita quanto o curso das suas idéias difira anteriormente mais da nossa. (apud 25, p.29)

A retórica é uma arte que, para persuadir, utiliza meios de ordem racio­nal e também de ordem afetiva, como acentua Aristóteles, pois a formação de um juízo envolve não apenas a razão, mas também a alma e as paixões da alma. Por isso, além de techné, a retórica é também dynamis, term o emprega­do por Aristóteles ao expor, no capítulo I do livro I, a função da retórica; “a retórica então pode ser definida como a faculdade de descobrir os meios pos­síveis de persuasão acerca de qualquer objeto”(£sío dè rhetorikè dynamis peri hékaston toú theorêsai tò endekómenon pithanón). A palavra dynamis signifi­ca em grego força e poder para influenciar o curso de alguma coisa. É da mes­ma raiz do verbo dynamai, que, entre suas possíveis acepções, significa ter poder para, ter capacidade e autoridade para, e ter valor, ter significação. Tra­ta-se de um termo referente a um poder, uma força ou potência de alguém ou algo a quem torna possível certas ações. É a possibilidade ou a capacidade

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A Retórica de Aristóteles 21

contida na natureza da coisa ou da pessoa. Em Aristóteles, diz Marilena Chauí (14, p.347), significa o que um ser pode tornar-se no tempo, graças a uma potencialidade que lhe é própria. Na filosofia aristotélica, dynamis é o poder para ser, fazer ou tornar-se alguma coisa.

A tradução brasileira ao empregar o termo faculdade como o símile do original grego dynamis não é de todo feliz, pois não contempla com tal esco­lha a acepção do termo no texto aristotélico. A retórica trata do poder da lin­guagem, do poder do uso da palavra e do discurso. Linguagem e discurso não são, afinal, apenas instrumentos de agregação comunitária (que permitem, portanto, a existência das sociedades humanas e mesmo a identificação das nacionalidades, tão bem expressa, por exemplo, por Fernando Pessoa no Livro do desassossego: “Minha pátria é minha língua”). Para Aristóteles, a linguagem é mais do que um elemento característico do ser humano, pois, à diferença dos animais, o homem não apenas fala, mas também faz, por meio de cálculos ra­cionais, a fala tornar-se discurso e, desse modo, instrumento agregador, com o poder de persuadir e fazer crescer na alma humana paixões diversas.

A linguagem agrega os humanos não somente por existir como elemen­to natural e próprio do Homo sapiens, mas por se tratar de elemento que se transfigura cm produto racional, que se transforma em discurso (logos) e, portanto, em elemento no qual a racionalidade hum ana mostra toda a força de sua existência. Há no pensamento de Aristóteles a compreensão de lingua­gem e discurso não apenas como elementos próprios da natureza humana, mas também como elementos dotados de uma faceta política e ética. Se é ver­dade que, em A política, encontra-se uma das mais célebre frases de Aristóte­les - “O homem é um animal político por natureza”, frase com a qual o filó­sofo expressa ser da natureza hum ana buscar a vida em comunidade ou sociedade - , também é fato, na mesma obra, encontrar-se um a reflexão pers­picaz sobre a linguagem e sua função:

A nosso ver, a natureza nada faz em vão; e o homem é o único entre todos os animais a ter o dom da palavra. Ora, enquanto a voz (phorié) só serve para in­

dicar a alegria e o sofrimento e, por esse motivo, também pertence aos outros

animais (pois sua natureza chega a experimentar as sensações de prazer e de dor e a exprimi-las uns aos outros), o discurso (logos) serve para exprimir o

útil e o prejudicial e portanto também o justo e o injusto: pois é característica

própria do homem em relação aos outros animais ser o único a ter o sentimen­to do bem e do mal, do justo e do injusto e outras noções morais, e é a comu­

nidade desses sentimentos que gera família e cidade. (3, p.41)

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22 Direito e Argumentação - Parte 1

A Retórica, de Aristóteles, é a obra na qual o filósofo se propõe realizar uma reflexão, mais do que sobre a linguagem, sobre o logos, isto é, sobre o dis­curso racional, seus efeitos e usos - o discurso que, como observa o filósofo em A política, serve para exprimir o útil e o prejudicial, bem como o justo e o injusto. Não é, pois, por acaso o pensador constatar a retórica, além de techné, ser também dynamis. Afinal, a função da retórica é a análise do uso e dos efei­tos do discurso; e o uso do discurso (logos) envolve uso da linguagem e aná­lise dos sujeitos da linguagem, orador (ethos) e auditório (pathos). Em outros termos, Aristóteles analisa como a ação racional, quando elabora um discurso, pode, por meio do discurso elaborado, transform ar a psique humana, to r­nando-se capaz de transformar a percepção e a compreensão que os hum a­nos têm da realidade na qual estão inseridos. O orador pode, por meio do discurso que elabora, persuadir e, portanto, mover da alma de quem o ouve determinadas paixões, substituindo-as por outras, em consonância com suas intenções de ganhar, para as causas que defende, a adesão de seus iguais.

A força da retórica encontra-se, assim, na possibilidade de a techné favo­recer o orador, dotando-o de um discurso compreensível para seus iguais e com poder de “co-mover” a psique deles. Não é sem conseqüência, desse modo, o primeiro livro da Retórica indicar preocupação justamente com a apresentação de uma análise da argumentação produzida pelo orador, en­quanto o segundo livro se dedica às argumentações não baseadas na validade formal do discurso, mas na dimensão psicológica própria, segundo o filósofo, a todo discurso: disposição do espírito do ouvinte, credibilidade do orador e paixões que podem animar o auditório.

Ora, uma vez que a Arte Retórica tem por objetivo um juízo - com efeito, jul­gam-se os conselhos, e a decisão dos tribunais é igualmente um juízo --, é ab­solutamente necessário não ter só em vista os meios de tornar o discurso de­

monstrativo e persuasivo; requer-se ainda que o orador mostre possuir certas

disposições e as inspire ao juiz. Para inspirar confiança, importa sobremanei­ra, principalmente nas assembléias deliberantes, e também nos processos, que

aquele que fala mostre-se sob certo aspecto, faça crer que se encontra em de­terminadas disposições a respeito dos ouvintes, e, além disso, encontre estes

nas mesmas disposições a seu respeito. (4, p.97)

E é por tais razões que Aristóteles, ao analisar a natureza das provas for­necidas pelo discurso, divide-as em duas categorias: a das provas afetivas e a das provas retóricas. A primeira é ligada diretamente às paixões da alma

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A Retórica de Aristóteles 23

(também de duas espécies: provas ligadas diretamente ao orador ou ethos e provas ligadas ao auditório ou pathos); a segunda categoria é ligada aos as­pectos racionais típicos e característicos da espécie hum ana e, por tal, ligada diretamente ao logos.

Entre as provas fornecidas pelo discurso, distinguem-se três espécies: umas re­sidem no caráter moral do orador; outras, nas disposições que se criaram no ouvinte; outras, no próprio discurso, pelo que ele demonstra ou parece de­monstrar. (ibid.y p.33)

A preocupação com a ética é uma das bases da Retórica, razão pela qual, ao comentar a natureza das provas afetivas ligadas ao orador, o filósofo ad­verte a persuasão resultante de tal origem não ser obtida gratuitamente, mas antes, e pelo contrário, de certas condições e pressupostos de natureza ética:

Obtém-se a persuasão por efeito do caráter moral, quando o discurso procede de maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de confiança. As pes­soas de bem inspiram confiança mais eficazmente e mais rapidamente em to­

dos os assuntos, de um modo geral. (ibid.y p.33)

Com tal observação e tais condições ou pré-requisitos impostos ao ora­dor, Aristóteles supera a aporia herdada de Platão, que, como verificado, cri­tica e elimina a retórica do campo dos bens hum anos e também se sobrepõe à insensatez dos sofistas. Para Aristóteles, pois, a retórica não é apenas uma técnica útil (e, portanto, legítima): se seu uso é às vezes desonesto, não cabe censurar a técnica, mas o técnico. Por isso, no início de suas reflexões, expõe a seguinte ponderação:

Muito errônea é a afirmação de certos autores de artes oratórias, segundo a

qual a probidade do orador em nada contribuiria para a persuasão pelo dis­curso. Muito ao contrário, o caráter moral deste constitui, por assim dizer, a

prova determinante por excelência. (ibid.y p.33)

Para Aristóteles, sem contar as demonstrações (isto é, as provas imanen- tes às qualidades do discurso ou logos elaborado pelo orador e, portanto, a provas ou argumentos associados às qualidades intelectuais do orador), a cre­dibilidade inspirada pelos oradores provém de três causas. São as únicas, se­gundo o filósofo, que obtêm, efetivamente, nossa confiança: prudência, vir­tude e benevolência.

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24 Direito e Argumentação - Parte 1

Os oradores, quando falam ou aconselham, atraiçoam a verdade por falta destas

três qualidades ou de uma delas. Com efeito, por falta de prudência, suas opiniões são desprovidas de justeza; ou então, com opiniões justas, a maldade os impede de exprimir o que se lhes afigura bom; ou então, sendo prudentes e honestos, fal­

ta-lhes a benevolência. Neste último caso, o orador, apesar de conhecer a melhor determinação, não a exprime. Não existe outra causa além destas, (ibid., p.97)

Ao continuar sua análise sobre tipos de provas afetivas, abordando dessa vez as ligadas às paixões suscitadas pelo orador no auditório, Aristóteles con­sidera que “obtém-se a persuasão nos ouvintes quando o discurso os leva a sentir uma paixão, porque os juízos que proferimos variam, consoante expe­rimentamos aflição ou alegria, amizade ou ódio” (ibid., p.33). Persuadir im ­plica, portanto, o orador ser capaz de desenvolver no auditório paixão ou emoção adequada a seus objetivos de persuasão, pois “os fatos não se revelam pelo mesmo prisma, consoante se ama ou se odeia, se está irado ou em intei­ra calma” (ibid., p.97). É assim que Aristóteles dedica os dezessete primeiros capítulos do Livro II ao estudo da confiança que o orador deve inspirar (Ca­pítulo I), às diferentes paixões que animam os homens (do Capítulo II ao XI), ao caráter do ouvinte conforme seja ele jovem ou idoso, rico ou não (do Capítulo XII ao XVII), do mesmo modo que reitera, ao abrir o Livro III, exis­tirem provas afetivas e provas retóricas e que “a convicção dos juizes resulta ora do estado em que conseguimos colocá-los, ora das disposições que eles conferem aos que falam, ora, finalmente, da demonstração que lhes foi apre­sentada” (ibid., p. 173).

As provas retóricas são as construídas com emprego da dialética, entimemas e exemplos, provas que fazem a retórica acasalar-se com a dialética e aproximar- se da lógica, transformando-se na “parte propriamente argumentativa” da retó­rica, conforme palavras de Olivier Reboul e de que tratamos anteriormente.

O sistema retórico

O discurso retórico é posto por Aristóteles como produto da razão, da mente racional típica e característica da espécie Homo sapiens. Trata-se, pois, de produção estrategicamente pensada, analisada e refletida e, por tal, em nada se assemelha, por exemplo, com mecanismos literários da cultura m o­derna, que, ao valorizar a espontaneidade da expressão como meio legítimo da expressão, possibilitou, em um extremo, o surgimento da revolucionária poesia de Arthur Rimbaud com seu livro Iluminações e, no outro extremo, o

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A Retórica de Aristóteles 25

aparecimcnto da escrita automática consagrada pela vanguarda surrealista. Por tratar-se de discurso compreendido como produto racional - e, portan­to, resultante de uma estratégia racional - , a retórica consagrou um plano para elaboração e construção do discurso, plano que se revela nitidamente método ou metodologia de argumentação.

A tradição oriunda do estoicismo romano procurou, por intermédio de Cícero, justificar tal estrutura metodológica de origem aristotélica, tecendo as seguintes considerações: “Etenim caussa prosita prim um intelligere debenus, cujus modi cuassa sit, deinde invenire, quae, apta sint caussae, tum inventa rec- te et cum ratione disponere” (É preciso primeiro compreender o que a causa implica, a que gênero pertence, em seguida descobrir o que está adaptado à causa, enfim dispor o que se encontrou de maneira justa e racional).

Aristóteles abre o Livro III da Retórica afirmando: “três são as questões relativas ao discurso que precisam ser versadas a fundo: a primeira donde se tirarão as provas; a segunda, o estilo que se deve empregar; a terceira, a m a­neira de dispor as diferentes partes do discurso”.

Aristóteles está a se referir respectivamente às diferentes etapas previstas pelo método retórico para elaboração do discurso: euresis, lexis e táxis ou, como consagrou a tradição latina, inventio, elocutio e dispositio. Essas etapas constituem a primeira parte do sistema retórico e dizem respeito apenas aos aspectos da escrita.

Ocorre, contudo, o sistema retórico prever, além da concernente à escri­ta, uma segunda parte relacionada à oratória. Desse modo, a configuração completa do sistema retórico é, em verdade, constituído de duas grandes par­tes: a primeira - concernente à escrita - é composta de três etapas; e a segun­da - concernente à oratória - , de outras duas etapas.

T a b e la 1 S is tem a re tó r ico

ESCRITA ORATÓRIA

Terminologia das Etapas Terminologia das Etapas

1. Descoberta (euresis/inventio) 4. Memória (mneme/memoria)

2. Ordenação (tóxis/dispositio) 5. Exposição (hypôkrisis/actio)

3. Expressão (lexis/elocutio)

A etapa da descoberta (euresis, em grego, ou inventio, em latim) é o m o­mento no qual ocorre o estoque do material argumentativo para a construção

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26 Direito e Argumentação - Parte 1

do discurso, quando se elaboram argumentos, provas e outros meios de per­suasão relativos ao tema do discurso. Invenção, do latim inventio, liga-se ao ver­bo invenire, encontrar, descobrir, achar. Invenção é o ato de procurar e achar.

Invenção nas ciências e nas artes designa a descoberta do novo, do origi­nal, do desconhecido. Em retórica e dialética, porém, significa procurar e achar o escondido e guardado. Invenção no sentido estrito e específico, na Retórica, limita-se à busca das provas que constituem a substância da invenção. E tal é sua relevância que Aristóteles chega a definir a retórica pela invenção (a arte de achar em qualquer questão os meios de prova).

As provas se encontram e não se criam, mais uma vez, em razão de racio­cínios da retórica (e também da dialética) diferirem de raciocínios científicos por força da matéria (raciocínios científicos levam à certeza; raciocínios retó- rico-dialéticos, a probabilidades). Em função disso, as provas na retórica sem­pre giram em redor de alguns capítulos gerais: há um repertório prévio de lu­gares onde encontrar as provas. A invenção, a busca de provas, é uma operação comum à retórica e à dialética; por tal razão, Aristóteles criou uma disciplina chamada tópica, a qual estuda a invenção na retórica e na dialética.

A tópica ensina onde encontrar os lugares dos quais se tiram as provas. A palavra lugar possui, contudo, na filosofia de Aristóteles, sentido figurado, distingue lugares previamente mapeados nos quais se encontram as provas para o discurso persuasivo (lugares se traduz em grego por topoi e, em latim, por loci). Os lugares se dizem comuns e especiais e podem servir aos três gê­neros oratórios ou só a um.

Lugares, topoi ou loci são definidos como certas noções gerais ou concei­tos, expressos por uma ou poucas palavras, dos quais se tiram os argumentos (de forma figurada e o que convencionalmente se chama sedes argumento- rum). Em Aristóteles, os lugares são os de definição, divisão, etimologia, gê­nero, espécie, diferença, propriedade, acidente, causalidade, termos contrá­rios e circunstâncias.

A etapa da ordenação (táxis, em grego; dispositio, em latim) trata da manei­ra de dispor as diferentes partes do discurso, o qual deve ter os seguintes com­ponentes; exórdio, proposição, partição, narração/descrição, argumentação (confirmação/refutação) e peroração. Tal estrutura é ainda hoje empregada pelo discurso jurídico, particularmente na organização da petição, que possui como estrutura característica um análogo dessa tradição aristotélica. Direcionamento, qualificação e narração dos fatos próprios da petição são aná­logos a exórdio, proposição, partição e narração/descrição de Aristóteles; argu­mentação petitória é análoga à argumentação (confirmação/refutação) de Aris­

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A Retórica de Aristóteles 27

tóteles; e a conclusão da petição (quando ocorre o pedido) é análoga à perora- ção aristotélica. Trata-se da organização interna do discurso, de seu plano.

A disposição consiste na distribuição das partes dentro do todo, ordenan­do-as de modo a constituir uma unidade complexa na qual nada fique solto, a esmo. A ordem da seqüência das partes obedece a critérios lógicos ou psi­cológicos. Metaforicamente, o discurso se assemelha a um ser vivo, um orga­nismo (lembra Platão no Fedro). Para Aristóteles, o discurso constaria de duas partes essenciais, isto é, exposição do problema e provas, acrescentando uma parte introdutória e uma conclusão:

1. Exórdio• Proposição• Partição• Argumentação

- Confirmação- Refutação

2. Peroração

O exórdio é a parte introdutória do discurso, o primeiro contato entre ré- tor e público. Assinalam-se três objetivos à introdução: captatio benevolen- tiae, obter a benevolência dos ouvintes, tornando-os simpáticos, bem-dispos- tos, favoráveis; obter a atenção dos ouvintes de modo a evitar que se distraiam; tornar os ouvintes dóceis, sujeitos à influência do rétor (para terem atitude mais receptiva e se deixarem guiar).

A proposição assinala, em relação ao tema, à questão, o partido que o ré­tor tomará, pois o discurso sempre parte de uma tomada de posição. O rétor se situa sempre em um dos lados, em uma perspectiva, e assim está constituí­da a causa. A proposição define o status quaestionis, isto é, o m om ento no qual o rétor enuncia, em termos precisos, por meio de uma proposição, exa­tamente o que vai defender (a partir daí a questão fica fixada).

A partição caracteriza-se pela indicação feita pelo rétor aos ouvintes do roteiro que vai seguir, ou seja, as etapas que enfrentará no desenvolvimento do discurso.

A argumentação é a parte mais densa e substancial do discurso, pois aqui se concentram as provas. Argumentação é a atividade pela qual se produzem argumentos. Argumento é um raciocínio exteriorizado pelo qual se prova, ou se refuta, alguma coisa. A argumentação compreende duas atividades: confir­mação, na qual são emitidos argumentos que defendem o próprio ponto de

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28 Direito e Argumentação - Parte 1

vista, e refutação, na qual são invalidados argumentos que sustentam o pon­to de vista contrário.

A peroração é o fecho, a conclusão, o m om ento decisivo, pois, como aler­tavam os retóricos romanos, finis coronat opus (o fim coroa a obra). Para Aristóteles,

a peroração compõe-se de quatro partes: a primeira consiste em dispor bem o ouvinte em nosso favor e em dispô-lo mal para com o adversário; a segunda

tem por fim amplificar ou atenuar o que se disse; a terceira, excitar as paixões no ouvinte; a quarta, proceder a uma recapitulação. (4, p.220)

Trata-se, portanto, como indica o pensamento de Aristóteles, da etapa na qual o rétor procura observar os seguintes princípios:

• recapitulação - resumo dos pontos mais contundentes e pertinentes do discurso de modo a fixá-los na cabeça dos ouvintes;

• apelo ao ético e patético - prática dos recursos visando a comover o audi­tório (e indispô-lo contra o que ou quem se argumenta);

• amplificação - ênfase de uma idéia, intensificando-a. De acordo com a conveniência, engrandecem-se as idéias fracas e se diminuem as fortes. Amplifica-se a idéia por meio do ornamento, com figuras. A amplificação serve para expor e comover. Pode aparecer em outras partes, mas aqui en­contra seu melhor lugar.

A etapa da expressão (lexis, em grego; elocutio, em latim) trata do estilo e das escolhas que podem ser feitas no plano da expressão para que haja ade­quação de forma e conteúdo. Elocução deriva do latim elocutio, da família do verbo eloqui, falar, exprimir-se por palavras, falar com arte. Etimologica- mente, elocução significa ação de falar, de se exprimir; na terminologia da re­tórica, indica a ação de escrever o discurso, por ser regra escrevê-lo e decorá- lo para, depois, pronunciá-lo em público. A retórica repudia a improvisação. A elocução é o ato de compor o discurso, eqüivale à inventio; enquanto na in­venção se buscam as coisas, res, materiais, as provas, na elocução se buscam as palavras, verba. Na invenção se trata do que se dirá; na elocução, do modo de dizer, pois vigora a forte convicção de não se escrever bem sem ter idéias e sem amadurecê-las (só escreve bem quem pensa bem). A elocução não se limita a apenas escrever o discurso, mas almeja escrever bem, com arte; a elo­cução acaba por ser uma arte de composição e estilo. E dentro dela se desen­

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A Retórica de Aristóteles 29

volve a teoria da forma ornada, a teoria das figuras, que ocupa o centro da elocução. São qualidades da elocução: correção, clareza, adequação, isto é, o justo uso da elegância por meio do estilo simples, médio ou sublime.

A elocução é, entre as etapas do sistema retórico, a que ocupa o maior es­paço no conjunto do Livro III da obra de Aristóteles. Diz o filósofo na Retó­rica: “Não basta possuir a matéria do discurso; urge necessariamente expri­mir-se na forma conveniente, o que é de suma importância para dar ao discurso uma aparência satisfatória” ( ibid., p. 173). Questão reiterada pelo fi­lósofo quando observa que

o estilo terá a conveniência desejada, se exprimir as paixões e os caracteres e se

estiver intimamente relacionado com o assunto. Esta relação existe quando

não se tratam de modo rasteiro assuntos importantes, nem enfaticamente as­

suntos vulgares, quando não se enfeita de ornamentos uma palavra ordinária; de contrário, cai-se no estilo cômico, como sucedeu com Cleofonte, certas ex­pressões do qual eram deste tipo: “Venerável figueira”. O estilo exprime as pai­

xões, se, quando houve ultraje, a expressão é a de um homem irado; se a ação é ímpia e vergonhosa, se adota o tom de um homem cheio de indignação e de

reserva nas palavras. Se a matéria é elevada, falar-se-á com admiração. Se é dig­

na de compaixão, usar-se-ão termos de humildade. E o mesmo nos demais ca­sos. O que contribui para persuadir é o estilo próprio do assunto, {ibid., p. 187)

São conhecidos e ainda válidos os dispositivos e preceitos que, segundo Aristóteles, são próprios do bem dizer: correção, clareza, concisão, adequação e elegância. Sobre a clareza, afirma o filósofo ser a virtude maior do estilo, pois “se o discurso não tornar manifesto seu objeto, não cumpre sua missão” (ibid., p. 176). Sobre a correção, Aristóteles abre o Capítulo V do terceiro livro com a seguinte constatação: “O princípio do estilo é falar com pureza, segundo o es­pírito da língua” (ibid., p. 184). A exigência do katharon tês léxeôs (a pureza do falar e da língua) não se restringe apenas à correção gramatical, pois é neces­sária, também, a escolha correta das palavras. Aristóteles diz arché lês léxeôs tò hellênizein (a helenidade é o princípio da língua), o que implica o ethos com ­bater solecismos (a palavra solecismo vem da colônia ateniense de Sóloi, na Cilícia, onde o grego, segundo Estrabão, era particularmente mau) e barbaris- mos, os quais são os seguintes:

• Prósthesis (adição): por ex., Sôkráten por Sôcrátê.• Aphaíresis (subtração): por ex., Iiermê em vez de Hermên.

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30 Direito e Argumentação - Parte 1

• Enallagê (substituição): por ex., êâunámen por eáunámên.• Metáthesis (intervenção): por ex., dríphon por dríphron.• Synailoiphê (fusão): por ex., ho tháteros em vez de ho héteros.• Diaíresis (decomposição): por ex., Dêmosthénea em vez de Dêmosthénê.• Katà tónon ("segundo a acentuação): por ex., boulômai em vez de boúlomai.• Katà chrónous (segundo a quantidade): por ex., tratar uma palavra como

se fosse de sílabas longas, quando, em verdade, é breve.• katà pneuma (segundo a aspiração): por ex., ahyrion em vez de ayruin, omo

por homoy chorona por corona.

Entre os solecismos, o maior pecado é a hakyrologia, por negligenciar a proprietas das palavras. Por proprietas deve-se entender a designação mais completa de uma coisa, de tal forma que não possamos encontrar nada que signifique melhor (quo nihil invenirepotest significantus). Trata-se da precisão na escolha das palavras, evitando a ambigüidade, pois afirma Aristóteles se­rem três as regras que fundamentam a correção do estilo:

uma primeira consiste 110 emprego correto das conjunções. A segunda consis­

te no uso dos vocábulos próprios, sem termos de recorrer às perífrases. A ter­ceira consiste em evitar expressões anfibológicas, a não ser que propositada­mente se tome o partido contrário. É o que fazem as pessoas que nada têm que

dizer e que, no entanto, querem dar ares de dizer alguma coisa, (ibid., p. 184)

Observa Friedrich Nietzsche a obscuridade do discurso - solecismo que fere a principal virtude do estilo, segundo observação já ressaltada de Aristóteles - surgir do uso de palavras e expressões antiquadas, em decorrência do compri­mento confuso da frase (ferindo o princípio da concisão), das construções cru­zadas ou das interpolações. Nietzsche, para ilustrar o pecado da hakyrologia, cita um fragmento do livro Parerga, de seu mestre filósofo Schopenhauer:

Aqueles que compõem discursos difíceis, obscuros, enredados, ambíguos, não

sabem certamente o que é que de fato querem dizer, mas têm apenas uma consciência da qual se diria que se debate para atingir um pensamento; tam ­

bém freqüentemente querem esconder, a si próprios como aos outros, que não têm nada a dizer, (apuei 25, p.53)

Tanto Nietzsche quanto Schopenhauer revelam muito ter aprendido com Aristóteles, pois, do mesmo modo que em seu livro sobre a retórica cita frag­

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A Retórica de Aristóteles 31

mento de Schopenhauer, anos depois, em A gaia ciência, de 1882, Nietzsche afirmaria: “Aquele que se sabe profundo esforça-se por ser claro; aquele que gostaria de parecer profundo à multidão esforçar-se por ser obscuro”

Além das evidentes semelhanças que tais juízos de Schopenhauer e Nietzsche possuem com o fragmento de Aristóteles destacado da Retórica (no qual o filósofo, ao comentar as três regras do estilo retórico, sustenta a tercei­ra regra consistir justamente em “evitar expressões anfibológicas, a não ser que propositadamente se tome o partido contrário. É o que fazem as pessoas que nada têm a dizer e que, no entanto, querem dar ares de dizer alguma coi­sa”), há de se observar que Aristóteles insiste na importância da clareza como o bem maior do estilo retórico, no Capítulo X do Livro III da Retórica:

É naturalmente agradável a todos aprender sem dificuldade; ora, as palavras

têm uma significação; por conseguinte, as mais agradáveis das palavras são as que nos trazem algum conhecimento. Mas as palavras obsoletas nos são desco­

nhecidas, ao passo que conhecemos os termos próprios. Este efeito é muito particularmente produzido pela metáfora. Quando nos dizem que a velhice é como um colmo, fornecem-nos um conhecimento e uma noção pelo gênero:

velhice e colmo, ambos perderam a flor. Surtem o mesmo efeito as imagens dos poetas, pelo que, quando empregadas a propósito, conferem um ar de urbani­dade ao estilo. A imagem é, como dissemos acima, uma metáfora, diferindo

dela apenas por ser precedida de uma palavra. Pelo que é menos agradável, pelo fato de ser desenvolvida um pouco mais longamente. Ela não diz o que

uma coisa é, nem é também isso o que o espírito procura. Daí resulta necessa­

riamente que o estilo e os entimemas são elegantes, quando geram em nós um

conhecimento rápido das coisas. É o que faz com que não apreciemos os enti­memas que saltam à vista, isto é, que são evidentes a todos e que não exigem nenhum trabalho de pesquisa por parte dos ouvintes, como nem os que, de­pois de enunciados, continuam sendo ininteligíveis. Deliciamo-nos com os

que compreendemos logo que são formulados ou com que a inteligência apreende com pouco atraso. (4, p. 195)

O sistema retórico também prevê a existência de uma parte concernente à oratória, constituída de duas etapas. Cada uma delas, como nos casos anterio­res, é dotada de especificidades e funções próprias, mas com a crucial diferen­ça de manter estreita dependência da parte antecedente, isto é, do discurso es­crito e elaborado em consonância com as etapas descritas nos parágrafos anteriores.

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32 Direito e Argumentação - Parte 1

A etapa da memória (mneme, em grego; memória, em latim) consiste na retenção do material a ser transmitido, considerando-se, sobretudo, o discur­so oral, com o qual o orador transmite sua mensagem para um auditório. Para tal finalidade, constituem elementos essenciais a própria estrutura do discurso, sua coerência interna, o encadeamento lógico das partes e a eurit- mia de suas frases. A educação antiga, sob o império da retórica, exalta a memó­ria, principalmente por haver, na Antiguidade, um culto que tributa à memória papel determinante para a cultura personificado na figura de uma deusa. Memória ou Mnemosime (filha do Céu e da Terra ou Uranus e Gaia) é a es­posa com quem Zeus, em nove noites consecutivas, gera as nove musas que presidem a cultura.

A etapa da exposição (hypókrisis, em grego; actio em latim) ultrapassa os li­mites da escrita e não apenas transforma o discurso retórico em oratória, mas também o aproxima do teatro. Nela se incluem os elementos supra-segmentais (ritmo, pausa, entonação, timbre da voz) e a gestualidade. Tal etapa possui o pressuposto segundo o qual é preciso considerar vivamente a presença de um auditório, em relação ao qual o princípio básico é o de adequação, tendo como finalidade convencer pelos raciocínios e persuadir com base na emoção. Trata- se de uma etapa com a qual Aristóteles revela preocupação e cuidado desde o início do Livro III da Retórica, constatando a retórica não se restringir ao ver­bo e aos limites da escrita. Ela, em verdade, ultrapassa o verbo e adentra os li­mites da atuação teatral, tendo, por conseqüência, em alguns momentos, simi- litudes com a arte poética, o que, por sua vez, torna o orador, o ethosy também uma espécie de ator e, assim, a retórica algo próximo do teatro.

Procuramos, pois, conforme a ordem natural, o que vinha em primeiro lugar, isto é, o que há de convincente nas próprias coisas. Em segundo lugar vem o es­tilo, que permite ordená-las, e em terceiro lugar, uma questão da mais alta impor­tância da qual ninguém ainda tratou: o que respeita à ação oratória. Com efeito,

só tardiamente penetrou no domínio da tragédia e da rapsódia, pois de início só poetas dramaturgos representavam eles próprios suas tragédias. É pois evidente

que esta questão faz parte da Arte Retórica, como da Arte Poética. Da Poesia já alguns se ocuparam, por exemplo, Glauco de Teos. Esta ação ocupa-se da voz, das

diferentes maneiras de a empregar para expressar cada paixão: ora forte, ora fra­ca, ora média; estuda igualmente os diferentes tons que a voz pode assumir, al­

ternadamente aguda ou grave ou média, já que se ocupa do ritmo a ser empre­gado em cada circunstância. Estas três coisas constituem o objeto da atenção dos

oradores: a força da voz, a harmonia, o ritmo. (ibid.y p. 173)

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A Retórica de Aristóteles 33

A ação c mais uma enérgeia do que um érgon, isto é, é mais um agir do que um produto ou artefato. A ação consta de uma atividade complexa cujo eixo central é ocupado pela pronuntiatio, pronunciação, que significa o mesmo que recitativo, declamação, e, por tal, envolve, além da prosódia, a gestualidade.

Retórica e gênero jurídico

A retórica, segundo Aristóteles, possui três gêneros de discurso, pois cada um desses gêneros está vinculado aos elementos constitutivos do processo re­tórico: ethos, logos e pathos. Para o filósofo, os gêneros dos discursos retóricos são, respectivamente, o jurídico (associado ao ethos), o epidítico ou dem ons­trativo (diretamente ligado ao logos) e, finalmente, o político ou deliberativo (vinculado ao pathos). Diz Michel Meyer (23, p. 10-1):

O ethos dará lugar ao gênero judiciário, pois o orador só será crível se fizer pro­

va da justeza de seus argumentos ou, tão simplesmente, se ele estiver habilita­do a proferi-los, igual o juiz no tribunal. O que ele diz deve ser inquestionável

como os fatos. Factualidade e julgamento estão ligados, e vai-se assim da jus­teza à justiça. O logos será ligado ao gênero epidítico, em que se trata, sobretu­

do, do agradável, do belo e do conveniente, daquilo que se aprova ou desapro­va por razões estéticas. O que dá lugar ao belo discurso, bem feito, bem torneado,

até mesmo bem argumentado. A retórica literária, com seu estilo e suas figu­ras, provém diretamente de uma certa autonomia do logos. Quanto ao pathos,

ele se inscreve no jogo da receptividade e da sensibilidade que serão tão im por­

tantes para a época romântica, quando definirão a subjetividade. No entanto,

para Aristóteles, o pathos caracteriza, sobretudo, o debate político, porque o único critério de resolução das assembléias é o jogo das paixões. É o gênero de­liberativo no qual cada um responde segundo seu hum or e suas emoções.

(Tradução do autor)

Uma parte significativa do Capítulo III do primeiro livro da Retórica é dedicada aos gêneros dos discursos:

São três os gêneros da retórica, do mesmo modo que três são as categorias de ouvintes dos discursos. Com efeito, um discurso comporta três elementos: a

pessoa que fala, o assunto de que se fala e a pessoa a quem se fala; e o fim do

discurso refere-se a esta última, que eu chamo “o ouvinte”. O ouvinte é, necessa­riamente, espectador ou juiz; se exerce as funções de juiz, terá de se pronunciar

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Direito e Argumentação - Parte 1

ou sobre o passado ou sobre o futuro. Aquele que tem de decidir sobre o futu­

ro é, por exemplo, o membro da assembléia; o que tem de se pronunciar sobre o passado é, por exemplo, o juiz propriamente dito. Aquele que só tem que se

pronunciar sobre a faculdade oratória é o espectador. Donde resultam neces­sariamente três gêneros de discursos oratórios: o gênero deliberativo, o gênero

judiciário e o gênero demonstrativo (ou epidítico). Numa deliberação, aconse­

lha -se ou desaconselha-se, quer se delibere sobre uma questão de interesse par­

ticular, quer se fale perante o povo acerca de questões de interesse público. Uma ação judiciária comporta a acusação e a defesa: necessariamente os que pleiteiam fazem uma destas duas coisas. O gênero demonstrativo comporta

duas partes: o elogio e a censura. Cada um destes gêneros tem por objeto uma parte do tempo que lhe é própria: para o gênero deliberativo, é o futuro, pois

que delibera-se sobre o futuro, para aconselhar ou desaconselhar; para o gêne­

ro judiciário, é o passado, visto que a acusação ou a defesa incide sempre sobre fatos pretéritos; para o gênero demonstrativo, o essencial é o presente, porque

para louvar ou para censurar apoiamo-nos sempre no estado presente das coi­sas; contudo, sucede que freqüentemente utilizamos a lembrança do passado

ou presumimos o futuro.Cada um destes gêneros tem finalidade diferente: porque há três gêneros, há

três fins distintos. O fim do gênero deliberativo é o útil e o prejudicial, pois, quando se dá um conselho, este é apresentado como vantajoso, e quando se pretende descartá-lo, ele é apresentado como funesto. Por vezes, este gênero

toma algo dos outros, por exemplo, o justo ou o injusto, o belo ou o feio. O fim

para os pleiteantes é o justo ou o injusto, mas acontece que também eles co­

lhem elementos dos outros gêneros. Quando se louva ou se censura, as referên­

cias são feitas ao belo ou ao feio; sucede todavia que também aqui se introdu- zem no assunto elementos estranhos. Eis a prova de que cada gênero tem o fim que dissemos. Por vezes nem sequer se discute sobre os demais pontos. Por exemplo, um homem citado para comparecer em juízo pode não contestar a

realidade do fato ou do dano; mas o que por nada deste m undo ele não pode confessar é que tenha procedido injustamente, pois, em tal caso, não haveria matéria de processo. Do mesmo modo, também no gênero deliberativo conce­

de-se muitas vezes tudo o mais; mas que os conselhos dados sejam inúteis, ou desviem do que é útil, ninguém concordará com isso. Quanto à questão de sa­

ber se não é injusto reduzir à escravidão povos vizinhos, contra os quais não

há motivo de queixa, freqüentemente não se encontra a mínima alusão sobre

este assunto nos oradores. Igualmente os que se servem do elogio ou da censu­ra não examinam se a ação foi útil ou nociva a quem a cometeu: vão mais além

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A Retórica de Aristóteles 35

e muitas vezes louvam o autor da ação por ter agido nobremente, a despeito de

seu interesse. Por exemplo, Pátroclo, embora sabendo que iria morrer, quando, se não o fizesse, continuaria vivendo. Sem dúvida, semelhante m orte era mais bela para Aquiles, mas seu interesse era viver. (4, p.40-1)

As particularidades dos gêneros retóricos podem ser observadas na Ta­bela 2.

Tabela 2 Tabela geral da retórica aristotélica

Discurso Aud itó rio Tempo Objetivo Meios Processos Topoi

Jurídico ou judiciário

Juiz

[julgamento]

Passado Justo/injusto[ética]

Acusação/defesa

Entimema Real/irreal

[temporalidade]

Deliberativo ou político

Assembléia[decisão)

Futuro Útil/prejudicial[política]

Persuasão/dissuasão

Exemplo Possível/impossível

[possibilidade]

Epidítico ou demonstrativo

Público[avaliação]

Presente Nobre/vilBelo/feio

[estética]

Elogio/censura

Amplificação Mais/menos[quantidade]

O discurso jurídico é pensado por Aristóteles em consonância com a éti­ca, pois, como mostra a tabela, o discurso jurídico, ao ter como objetivo de­terminar o justo e o injusto, integra o campo da ética. O orador do discurso jurídico interage com o auditório para persuadi-lo e dele obter uma respos­ta em forma de ação, isto é, o julgamento de alguma questão envolvendo o campo do direito e, também, o campo da ética. Julga-se um fato determi­nando se ele, em consonância com os valores da sociedade na qual ocorreu, é justo ou injusto. Seu tempo característico é o passado, pois fato é ocorrên­cia indiscutível, por se tratar de evento pretérito, coisa feita, já acabada; não se confunde com indício, ocorrência possível, mas não certa. Por isso Michel Meyer acentua ser própria da natureza do discurso jurídico a ligação entre factualidade e julgamento, pois a observação precisa de uma ocorrência in­discutível, ou seja, a análise de um fato da perspectiva de ser justo ou não, tor­nando natural do discurso jurídico o processo no qual a análise precisa das ações, com o intuito de observar a exatidão das ocorrências (a justeza), con­dição para a prática da justiça.

Os meios empregados para o julgamento justo são acusação e defesa; e o método de raciocínio empregado para a ação de julgar é o dedutivo, pelo em­prego do entimema, silogismo retórico cujas premissas são extraídas da doxa, da

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36 Direito e Argumentação - Parte 1

opinião, dos valores éticos que imperam em determinado grupo social no qual um possível ato injusto (e aético) ocorreu. Os entimemas pertencem, contudo, segundo observação de Aristóteles, a um tipo de prova resultante da aplicação da techné que é a retórica; e prática e discurso jurídicos também se servem de outras provas que não dependem da arte, isto é, provas que não dependem da aplicação de técnica racional ou elaboração de entimemas persuasivos. Provas, enfim, que existem, afirma o filósofo, independentes da arte retórica: leis, teste­munhas, contratos, confissões obtidas pela tortura e juramento.

O discurso jurídico merece do filósofo alguns capítulos do Livro I. No Capítulo X, Aristóteles observa a reflexão sobre a injustiça envolver três ques­tões básicas: natureza e motivos que induzem a cometer a injustiça; disposi­ções dos que cometem a injustiça; e qualidade e disposições das vítimas da injustiça. Para Aristóteles, cometer uma injustiça consiste em causar volunta­riamente dano a alguém, por meio da violação das leis. A compreensão da justiça pressupõe, portanto, compreensão de seu contrário, a injustiça; e com ­preensão da injustiça e das ações injustas implica compreensão de questões puramente éticas, ou seja, compreensão de dano, ação voluntária, violação das leis e leis.

Há, segundo o filósofo, dois tipos de leis: a particular e a comum. Aris­tóteles considera lei particular a que possui a propriedade de apresentar-se escrita e reger, dessa forma, a polis, isto é, a sociedade. As leis comuns, ao con­trário, não se apresentam escritas, mas ainda assim “parece serem reconheci­das por todos os povos” (4, p.67).

Para Aristóteles, uma ação pode ser voluntária quando é deliberada, re­sultante de uma ação consciente, fruto de ação consciente e escolha racional: “agimos voluntariamente quando sabemos o que fazemos, sem coação de es­pécie alguma” ( ibid., p.67).

O filósofo reconhece, todavia, nem todos os atos praticados de forma vo­luntária, isto é, por força da própria vontade, resultarem de aspectos pura­mente racionais. Aristóteles invade o campo psicológico e das paixões hum a­nas, pois observa algumas ações voluntárias, antes de serem movidas pela consciência racional, serem, ao contrário, resultantes de impulsos passionais degradados, vícios que contrariam virtudes tais como maldade, intemperan- ça, avareza, covardia, ambição, ira, cobiça, rancor, insensatez e insolência.

Os motivos que impelem os homens, após escolha premeditada, a causarem dano a outrem e a procederem mal para com ele, violando as leis, são a malda­

de e intemperança. Com efeito, possuir um ou mais vícios é mostrar-se igual­

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A Retórica de Aristóteles 37

mente injusto relativamente ao objeto do vício; por exemplo» o avarento rela­tivamente às riquezas; o intemperante relativamente aos prazeres do corpo; o covarde relativamente aos perigos, pois os covardes abandonam, por medo,

seus companheiros de perigo; o ambicioso deixa-se arrastar pelas honras; o co­lérico, pela ira; o cobiçoso de triunfar, pela vitória; o rancoroso, pela vingança;

o insensato, porque se deixa iludir no concernente ao justo e ao injusto; o in­

solente, pelo desprezo que sente pela boa reputação, (ibid., p.67)

Para Aristóteles, as ações do homem derivam de causas exteriores ou in­ternas (seu caráter e complexão moral). Entre as causas exteriores, o filósofo observa umas serem efeito do acaso, outras da necessidade. As ações feitas por necessidade provêm da coação ou da natureza, pois, para Aristóteles, todas as ações humanas provenientes de causas exteriores são resultantes do acaso, da natureza ou da coação. As ações humanas provenientes de aspectos internos, configuração do espírito e complexão moral são, para o filósofo, decorrentes, em parte, de um hábito e, em parte, de uma tendência que pode ser premedi­tada ou irrefletida, configurando o que o pensador chama de ações voluntárias.

O homem age, portanto, por pressões externas ou movido pela vontade; e

ações resultantes da vontade, as ações voluntárias, são causadas por aspectos racionais próprios da condição hum ana (as ações premeditadas) ou por aspec­tos passionais (as ações irrefletidas).

A vontade é uma tendência para o bem, pois que ninguém quer senão o que

pensa ser o bem, as tendências irrefletidas são a ira e o desejo. Pelo que, todas

as ações humanas se reduzem necessariamente às sete causas seguintes: acaso,

natureza, coação, hábito, reflexão, ira, desejo, (ibid,, p.68)

Há no universo das ações humanas coisas agradáveis e outras que não o são por exigirem sacrifício, sofrimento, esforço ou trabalho. O prazer, diz o fi­lósofo, é determinado movimento da alma que a reconduz inteiramente e de maneira sensível a seu estado natural; a pena é o contrário. É agradável o que não resulta da coação, pois a coação, observa Aristóteles, é oposta à natureza, e o que é resultado da necessidade é penoso.

Preocupações, aplicação intensa, esforços prolongados são penosos por serem impostos pela necessidade. São agradáveis - entre outras coisas lista­das pelo filósofo - distrações, ausência de inquietações e preocupações, jogos, momentos de repouso e sono. É também agradável, afirma Aristóteles, tudo aquilo para o que somos arrastados por um desejo interior, pois o desejo é

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38 Direito e Argumentação - Parte 1

uma tendência que nos impele para o agradável. E são também coisas agra­dáveis praticar o bem e receber benefício, pois, quando se recebem benefícios, obtém-se o que todos desejam. Quando se pratica o bem, é sinal de o pos­suirmos, e o possuímos em maior escala, duas superioridades que, conforme observação do filósofo, também são ambicionadas.

O campo do gênero jurídico envolve o campo da ética, visto que, para a compreensão do dano, é preciso conhecer seu contrário: as questões concer­nentes ao bem e ao agradável. É por tal razão que Aristóteles, depois de defi­nir injustiça, dedica parte do Capítulo X e a totalidade do Capítulo XI do Li­vro I da Retórica para realizar reflexões sobre questões próprias da ética, algumas das quais semelhantes às abordadas pelo filósofo em outra im portan­te obra, Ética a Nicômacos, com a qual freqüentemente sua Retórica dialoga por meio de alusões e referências. Somente no Capítulo XII o filósofo retoma a questão, introduzida no início do Capítulo X, em torno da definição de in­justiça, procurando indicar a razão de sua existência na comunidade humana.

Somos levados a cometer injustiça, quando pensamos que o ato injusto pode ser cometido e cometido por nós; ou que, se forem descobertos, não sofrerão

castigo, ou que, no caso de serem punidos, o castigo será menor do que o lu­

cro que esperam para si mesmos ou para aqueles que estão a seus cuidados. [...] Julgamos poder cometer injustiça sem incorrer no menor castigo quando

possuímos o talento de falar, quando somos homens de ação, quando temos experiência dos processos, quando temos muitos amigos e somos ricos. De

modo peculiar, julgamos poder cometer injustiça, quando nos encontramos

nas condições mencionadas; ou então, quando temos amigos, servos ou cúm ­

plices que satisfazem a essas condições; são outros tantos meios que permitem a injustiça, não ser descoberto e subtrair-se ao castigo. Mesmo que se diga, quan­do se tem amizade às vítimas ou aos juizes que hão de julgá-las: os amigos não

se acautelam contra as injustiças de seus amigos, e, antes de recorrerem aos tri­

bunais, entram em acordo com eles; os juizes favorecem os amigos e, se não o ab­solvem pura e simplesmente, infligem-lhes penas leves, (ibid., p.76)

Para o filósofo, a prática da injustiça - por ação voluntária do dano ou violação das leis - tem causas determinadas:

• quando o agente não crê na possibilidade de ser descoberto;• quando o agente, apesar de descoberto, crê ser impossível a aplicação de

um castigo;

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A Retórica de Aristóteles 39

• quando, ainda que aplicado, o castigo é ínfimo relativamente ao lucro ob­tido como resultado da ação ilícita;

• quando o agente conta com o dom da retórica ou da argumentação para a vitória sobre os acusadores;

• quando o agente desfruta de amizades influentes, poderosas ou ricas;• quando o agente goza da amizade íntima com o juiz ou conta com a pos­

sibilidade de suborná-lo;• quando existe, para o agente, a possibilidade de adiar indefinidamente o

processo, procrastinando-se o julgamento da ação injusta;• quando o agente, percebendo-se indigente, considera não ter nada a perder;• quando a lei existente é ineficaz ou de punição leve para a ação injusta

cometida;• quando o agente considera poder contar com a benevolência no julgamen­

to, alegando, por exemplo, necessidade;• quando o agente goza não apenas ótima reputação, mas também estima

sociais;• quando o agente se percebe portador de péssima reputação e considera

não poder ter maiores prejuízos do que os já sofridos.

A compreensão das ações justas e injustas, para Aristóteles, só pode ocor­rer em consonância com a compreensão da diferença entre violação das leis e violação da dignidade humana.

O que é justo e injusto foi definido de duas maneiras, relativamente às leis e às pessoas. Digo que, de um lado, há a lei particular e, do outro lado, a lei comum: a primeira varia segundo os povos e define-se em relação a estes, quer seja es­crita ou não escrita; a lei comum é aquela que é segundo a natureza. Pois há uma justiça e lima injustiça, de que o homem tem, de algum modo, a intuição, e que são comuns a todos, mesmo fora de toda comunidade e de toda convenção recíproca. (ibid.y p.80)

Aristóteles pondera haver danos que atingem apenas uma pessoa; mas outros há que causam males a toda a comunidade humana. Uma coisa, por exemplo, é alguém ferir outrem, ação na qual “lesa-se apenas um membro de­terminado”; outra coisa totalmente diferente, nessa perspectiva analítica do filósofo, é, por exemplo, sonegar impostos devidos ao erário público, pois “lesa-se a comunidade inteira” em tal ação.

A Retórica, como observado, alcança, nos momentos em que trata da jus­tiça e das particularidades do gênero jurídico, posições semelhantes às encon­

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40 Direito e Argumentação - Parte 1

tradas no tratado ético escrito por Aristóteles para seu filho Nicômacos, par­ticularmente no conteúdo do Livro V da obra, concebida pelo filósofo como espécie de legado ético para educar seu então jovem filho. Em tal livro, en­contra-se a seguinte definição:

A justiça é a disposição da alma graças à qual elas [as pessoas] se dispõem a fa­

zer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo; de maneira idên­

tica, diz-se que a injustiça é a disposição da alma graças à qual elas agem injus­

tamente e desejam o que é injusto. (2, p.91)

A Retórica de Aristóteles é, na verdade, um livro híbrido, no sentido de se apossar de conteúdos de outros textos do filósofo (Retórica e Poética consti­tuem a etapa final da famosa arquitetura filosófica e enciclopédica erigida por Aristóteles). Seu texto m antém um diálogo com a obra do autor: realiza o que a lingüística contemporânea chama de diálogo intertextual não ape­nas com obras alheias, mas, sobretudo, com outros tratados filosóficos do próprio autor. A Retórica comunica-se com os conteúdos de outros livros de Aristóteles ao mesmo tem po que deles se apodera para melhor estabelecer os limites dos textos persuasivos. É perceptível, por exemplo, o diálogo que o Livro I da Retórica - ao tratar da dialética, dos silogismos lógicos, dos si­logismos retóricos, ou seja, da estrutura e características das premissas do entimema - e o Livro II - ao tratar dos lugares da argumentação dos quais se extraem as premissas argumentativas - m antêm com o Organon, mais parti­cularmente com a topica, uma das partes desse grande tratado de lógica es­crito pelo filósofo antes de seu tratado sobre discurso persuasivo. Do mesmo modo, também é notável o fato de a Retórica dialogar com sua obra co-irmã, Poética: há na Retórica seis alusões à Poética, e na Poética há uma referência à Retórica.

Não é, portanto, estranho Aristóteles revelar conteúdo semelhante ao ex­posto na Ética a Nicômacos ao tratar do discurso jurídico na Retórica. Além da notável erudição, com a exibição do conhecimento de toda a tradição in­telectual de seu tempo, a filosofia de Aristóteles é auto-referente. Tal fato traz para o leitor uma conseqüência imediata, pois, a despeito da clareza de seu estilo e da objetividade de seu discurso (nem sempre respeitados pelos tradu­tores brasileiros, pois a tradução brasileira da Retórica transformou Aris­tóteles, injustamente, em escritor barroco), seus textos muitas vezes dão por compreendidas coisas nem sempre explicadas em sua totalidade, ou pelo me­nos nem sempre definidas com toda profundidade e complexidade com que,

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A Retórica de Aristóteles 41

de fato, o filósofo as tratou no conjunto dc sua obra. Na Retórica, embora es­teja clara, a definição de ação voluntária não aparece exposta em toda sua complexidade; por ser auto-referente e fazer alusões diretas e explícitas aos conteúdos de outras obras suas - por exemplo, com o uso de notas - , Aristóteles prefere remeter e instigar seu leitor para a leitura de outros livros seus a fazer a repetição automática da explicação plena de determinados con­ceitos. Assim, na Retórica, ao definir injustiça como “ação voluntária de cau­sar dano” a alguém e ação voluntária como a ocorrida ‘quando sabemos o que fazemos, sem coação de espécie alguma”, Aristóteles remete a seu tratado de ética, quase obrigando o leitor a ler suas reflexões sobre essa ciência práti­ca, bem como a análise sobre a natureza da ação voluntária, para que, desse modo, seja possível melhor compreender a faceta ética de justiça e discurso jurídico.

Aristóteles afirma, na Retórica, a condição necessária para ocorrência de injustiça e justiça ser a existência da voluntariedade. Do mesmo modo, na Ética a Nicômacos há a seguinte passagem:

Sendo os atos justos e injustos aqueles que descrevemos, uma pessoa age injus­tamente ou justamente sempre que pratica tais atos voluntariamente; quando os pratica involuntariamente, ela não age injustamente nem justamente, a não ser de maneira acidental. O que determina se um ato é ou não é um ato de in­justiça (ou de justiça) é sua voluntariedade ou involuntariedade; quando ele é voluntário, o agente é censurado, e somente neste caso se trata de um ato de injustiça, de tal forma que haverá atos que são injustos mas não chegam a ser atos de injustiça se a voluntariedade também não estiver presente. Considero voluntária, como já foi dito antes, qualquer ação cuja prática depende do agen­te e que é praticada conscientemente, ou seja, sem que o agente ignore quem é a pessoa afetada por sua ação, qual é o instrumento usado e qual é o fim a ser atingido (por exemplo, quem ele está golpeando, com que objeto e para que fim); além disto, nenhuma destas ações dever ser praticada acidentalmente ou sob compulsão (por exemplo, se alguém segura a mão de uma pessoa e com ela golpeia outra pessoa, a pessoa cuja mão é segura não age voluntariamente, pois a prática do ato não dependia dela). (ibid.y p. 104)

Quando trata do discurso jurídico na Retórica, Aristóteles aproxima a techné da práxis, pois, ainda que para o filósofo as ciências práticas (incluídos ética, direito e política) e as ciências produtivas (incluindo retórica) sejam di­ferentes por suas finalidades serem distintas, há de se lembrar novamente a

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42 Direito e Argumentação - Parte 1

famosa passagem com a qual o autor abre Ética a Nicômacos: “Toda arte (techné) e todo procedimento (méthodos), assim como toda ação (práxis) e toda escolha (proaíeresis) tendem para um bem”. A retórica é uma techné; a ética, ao contrário, uma práxis. No entanto, apesar da distinção (e autono­mia) que essas ciências gozam, Aristóteles observa nelas um elemento co­mum: a tendência para um bem, que para o ser hum ano é sempre uma exce­lência, uma areté (virtude). Aristóteles não concebe a retórica como arte dissociada da areté.

Em outros termos, a Retórica de Aristóteles, embora seja um tratado a respeito de uma techné da persuasão, não se restringe ao universo da techné (objeto de sua reflexão e análise), pois, entre os gêneros de discursos, segun­do o filósofo, próprios dessa arte, encontram-se justamente o deliberativo ou político e o jurídico. Estes, por sua vez, relacionam-se diretamente com duas ciências práticas, política e direito, ambas diretamente relacionadas de m a­neira mais ou menos profunda à ética. Se falar em discurso jurídico é de al­gum modo referir-se ao direito, falar em direito também implica referir-se à ética.

Se a justiça é necessariamente um a ação hum ana voluntária do mesmo m odo que a injustiça, como alertou o filósofo, é preciso, então, com preen­der a diferença estabelecida por Aristóteles entre ações da natureza e ações humanas. Para Aristóteles, ações hum anas não são como operações na tu ­rais, pois na natureza cada ser segue as exigências impostas por sua matéria e forma. O hom em , ao contrário da natureza, possui vontade e poder de es­colha quando age; encontra-se em seu poder agir de um modo ou de outro. Além de animal político, o homem deve ser um animal ético, por gozar do poder de escolha e deliberação, o que exige suas ações se darem sob deter­minadas medidas, pois, para o grego, a hybris, a falta de medida, é a origem do vício.

A areté (virtude) é a medida do homem bom e do homem nobre; e a vir­tude é considerada por Aristóteles como a justa medida: a medida entre os extremos, o justo meio, nem excesso nem falta. Moderar, em grego, diz-se médo, ação que impõe o médio, a medida, méson. A virtude é uma ação-de- cisão de impor limites ao que, por si mesmo, não conhece limites. Moderar (médo) é pesar, ponderar, equilibrar e deliberar. A ética é a ciência da m ode­ração ou, como afirma Aristóteles, da prudência (phrónesis); a virtude con­siste na força do caráter educado pela moderação. A virtude é ação, atividade da vontade que delibera e escolhe segundo a orientação da razão, que deter­mina os fins racionais de uma escolha com vista ao bem do indivíduo: sua fe­

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A Retórica de Aristóteles 43

licidade (eudaimonía). O virtuoso (o ar is to, aristoi) é feliz por ser prudente, e prudente por ser, além de moderador, moderado.

Para determinar a essência da ação ética, Aristóteles distingue ações invo­luntárias e voluntárias. O filósofo considera a vontade espontaneidade natu­ral, ou seja, o que a natureza de um ser o leva naturalmente a realizar, e, no caso do ser humano, o que, além de espontâneo, é consciente, por ser resul­tado de uma deliberação. No entanto, como adverte o filósofo:

A escolha, então, parece voluntária, mas não é a mesma coisa que o voluntário, pois o âmbito deste é mais amplo. De fato, tanto as crianças quanto os animais inferiores são capazes de ações voluntárias, mas não de escolha. Também defi­nimos os atos repentinos como voluntários, mas não como o resultado de uma

escolha. Aqueles que identificam a escolha com o desejo, ou a paixão, ou a as­

piração, ou uma espécie de opinião, não parecem estar falando acertadamen- te, pois a escolha não é partilhada também pelos seres irracionais, mas a pai­xão e o desejo são. {ibid., p.52-3)

O ato involuntário é o realizado somente sob duas circunstâncias: sob constrangimento e coação, quando somos forçados a uma ação pelo poder de uma força externa, ou por ignorância das circunstâncias nas quais agimos - “tudo que é feito por ignorância é não voluntário” {ibid., p.51). O ato volun­tário é, portanto, o realizado espontaneamente, sem constrangimento e sem ignorância das circunstâncias, resultado de uma deliberação.

Para saber quando um ato voluntário é ético, Marilena Chauí (14, p .314) observa Aristóteles introduzir a pergunta ética por excelência sobre o que está ou não em nosso poder quando agimos, o que depende ou não de nós em uma ação. O ato ético voluntário é o que depende de nós na ação; o ato regido, sob qualquer circunstância, por um a disposição interior (hexis) nos permitindo responder eticamente à situação; o ato voluntário ético é o ato feito por e com virtude. A definição de virtude realizada por Aristóteles introduz dois elemen­tos essenciais da ação virtuosa, pois a ação virtuosa é, de um lado, uma esco­lha preferencial (proaíresis); de outro, é uma ação proveniente de uma delibe­ração racional (boúlesis).

Do mesmo modo que, na Retórica, Aristóteles observa usarmos “os dis­cursos persuasivos para provocar um juízo, pois não há necessidade de discur­sos para os pontos que conhecemos e sobre os quais já temos juízo formado”, o filósofo constata, no Livro III da Ética a Nicômacos, não deliberarmos so­bre todas as coisas.

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44 Direito e Argumentação - Parte 1

Será que deliberamos acerca de tudo, e tudo é um possível objeto de delibera­

ção, ou a deliberação é impossível acerca de certas coisas? É de presumir que devemos chamar de objetos de deliberação não os assuntos sobre os quais um insensato ou um louco deliberaria, mas aqueles sobre os quais deliberaria um ho­

mem sensato. Ora: ninguém delibera sobre coisas eternas - por exemplo, sobre

o universo ou sobre a incomensurabilidade da diagonal do lado de um quadra­

do; tampouco deliberaríamos sobre corpos em movimento mas que se movi­

mentam sempre de maneira idêntica, seja por necessidade, ou por natureza, ou por qualquer outra causa - por exemplo, os solstícios e a posição dos astros - nem sobre fenômenos que ora ocorrem de uma maneira, ora de outra - por

exemplo, secas e chuvas - , nem sobre eventos fortuitos, como a descoberta de um tesouro; não deliberamos sequer sobre todos os assuntos que interessam

aos homens - por exemplo, nenhum espartano delibera sobre a melhor cons­tituição para os citas, pois coisa nenhuma deste gênero pode ser influenciada

por nossos próprios esforços.Deliberamos sobre coisas que estão ao nosso alcance e podem ser feitas, e são

estas as que ainda estão por ser examinadas. [...] no caso das ciências exatas e

autônomas não há deliberação - por exemplo, sobre as letras do alfabeto (não temos dúvidas sobre a maneira de escrevê-las); mas as coisas influenciáveis por

nossas ações, porém nem sempre de maneira idêntica, são aquelas sobre as quais deliberamos - por exemplo, questões relativas ao tratamento médico ou ao enriquecimento. Deliberamos mais sobre navegação que sobre exercícios fí­

sicos, pois estes ainda estão menos organizados como ciência e são menos pre­

cisos; acontece o mesmo com outras atividades em condições idênticas, e mais

ainda no caso das artes que no das ciências, pois temos mais dúvidas acerca das

primeiras. (2, p.54-5)

Não deliberamos sobre natureza, necessidade (anánke) e fortuna (tykhe), mas sobre o que depende de razão e ação. Deliberamos sobre o que podemos escolher e escolhemos o que a deliberação nos mostrou ser o preferível. Deliberamos e escolhemos a respeito dos preferíveis e não dos necessários. Conseqüentemente, virtude e vício são atos voluntários, dependendo da na­tureza da deliberação e da escolha preferencial. O ato virtuoso obedece a três regras: o agente conhece ou sabe o que faz; o agente escolhe a ação e executa por si mesmo; o agente realiza a ação em consonância com uma disposição interior e permanente.

O homem virtuoso é o prudente e a obra do prudente é a moderação, isto é, encontrar medida e regra correta (orthòs logos) para deliberação ou esco­

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A Retórica de Aristóteles 45

lha da medida justa, da ação virtuosa. A escolha não se identifica com a opi­nião, pois a doxa se distingue por sua falsidade ou verdade, e não por sua mal­dade ou bondade, ao passo que a escolha se distingue mais por estas últimas características. A escolha, alerta o filósofo, requer uso de razão e pensamen­to, pois “seu próprio nome, aliás, parece sugerir que ela é aquilo que é esco­lhido de preferência a outras coisas” (ibid., p.54).

Ser como se deve ser, e deve-se ser como convém; esses são os adágios da polidez. Ou ainda, segundo as próprias palavras da Ética a Nicômacos, “agir de maneira que convém e quando convém” (2, p.36). O homem prudente, o ho­mem prevenido, sabe relacionar-se com o Kairós. É o homem que sabe o que convém fazer no momento certo. A prudência é a habilidade de apreender, por meio de uma percepção intuitiva do singular, o momento exato de agir.

A retórica encontra-se, para Aristóteles, relacionada à ética e ao universo das virtudes, pois afinal ela é - como depois definiram os retóricos latinos — uma recta ratio agibilium , isto é, um conjunto de regras racionais, justificada para se agir da melhor forma possível. A retórica, sob pena de se negar, deve ser justa; não pode, em hipótese alguma, praticar a injustiça, pois é preferível sofrer a cometer a injustiça. A retórica só terá direitos de cidadania quando se sujeitar totalmente ao império da dialética e, dessa forma, ao império do bem, da justiça, da verdade e do am or ao bem, ao conhecimento e à sabedoria.

A virtude é, para Aristóteles, uma disposição permanente (ou um hábito vo­luntário) para controlar determinada classe de sentimentos (tidos naturalmen­te) e, também, uma disposição para agir corretamente em determinada situação (contingente), na qual o sujeito da ação adota nem o excesso nem a falta, mas o justo meio. É possível observar as ações da natureza contingentes e voluntárias, e, entre as últimas, os vícios por excesso e por falta, bem como as virtudes morais (as ações da justa medida ou do justo meio), expostas na Tabela 3.

O termo injusto, lembra Aristóteles, aplica-se tanto a pessoas que infrin­gem a lei quanto às ambiciosas (no sentido de quererem mais do que aquilo a que, de fato, têm direito) e iníquas, de tal forma que, obviamente, as pes­soas cumpridoras da lei e as corretas serão justas. O justo, então, é o que é conforme à lei e correto, e o injusto é ilegal e iníquo. Em Aristóteles, os atos justos não aparecem dissociados da virtude (areté) e estão ligados ao bem co­mum, como observa na Ética a Nicômacos:

Chamamos justos os atos que tendem a produzir e preservar a felicidade, e os elementos que a compõem, para a comunidade política. E a lei determina

igualmente que ajamos como agem os homens corajosos (ou seja, que não de-

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46 Direito e Argumentação - Parte 1

Tabela 3 Quadro das virtudes morais

Sentim ento ou

paixão(natureza)

Situação na

qual a paixão é suscitada (contingência)

VÍCIO

(excesso)

Deliberação e escolha

VÍCIO

(falta)Deliberação e escolha

VIRTUDE (justo meio) Deliberação e escolha

Prazeres Tocar, ter, ingerir

Libertinagem Insensibilidade Temperança

Medo Perigo, dor Covardia Temeridade Coragem

Confiança Perigo, dor Temeridade Covardia Coragem

Riqueza Dinheiro, bens Prodigalidade Avareza Liberalidade

Fama Opinião alheia Vaidade Humildade Magnificência

Honra Opinião alheia Vulgaridade Vileza Respeito próprio

Cólera Relação com os

outros

Irascibilidade Indiferença Gentileza

Convívio Relação com os outros

Zombaria Grosseria Agudeza de espírito

Conceder prazer Relação com os próximos

Condescendência Tédio Amizade

Vergonha Relação de si com os outros

Sem-vergonhice Tim idez Modéstia

Sobre a boa sorte de alguém

Relação dos outros consigo

Inveja Malevolência Justa apreciação

Sobre a má

sorte de alguém

Relação dos

outros consigo

Malevolência Inveja Justa indignação

sertemos de nosso posto, nem fujamos, nem nos desvencilhemos de nossas ar­

mas), e como os homens moderados (ou seja, que não cometamos o adultério nem ultrajes), e como os homens amáveis (ou seja, que não agridamos os ou­tros, nem falemos mal deles), e assim por diante em relação às outras formas de excelência moral, impondo a prática de certos atos e proibindo outros; as

determinações das leis bem elaboradas são boas e as das leis elaboradas apres­sadamente não chegam a ser igualmente boas. Então a justiça neste sentido é a excelência moral perfeita, embora não o seja de modo irrestrito, mas em rela­

ção ao próximo. Portanto a justiça é freqüentemente considerada a mais eleva­da forma de excelência moral, e “nem a estrela vespertina nem a matutina é tão

maravilhosa”. (2, p.92-3)

Aristóteles observa que “na justiça se resume toda a excelência”, pois, diz o filósofo, a justiça é a prática efetiva da excelência moral perfeita: “Ela é per­feita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo”.

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A Retórica de Aristóteles 47

E, na medida em que concebe a justiça como um conjunto de atos que ten­dem a produzir e preservar a felicidade não apenas individual, mas, sobretu­do, coletiva, Aristóteles lembra que a justiça, “e somente ela entre todas as for­mas de excelência moral, é o bem dos outros”, e

o pior dos homens é aquele que põe em prática sua deficiência moral tanto em

relação a si mesmo quanto em relação aos seus amigos, e o melhor dos homens não é aquele que põe em prática sua excelência moral em relação a si mesmo,

e sim em relação aos outros, pois esta é uma tarefa difícil. Neste sentido, então, a justiça não é uma parte da excelência moral, mas a excelência moral inteira, nem seu contrário, a injustiça, é uma parte da deficiência moral, mas a defi­

ciência moral inteira. (ibid.y p.93)

Conclusão

A obra inaugural da cultura grega clássica, a Odisséia, de Homero (17), em seu Canto VIII, narra a chegada de Odisseu ao palácio do rei Alcino, a fes­ta e a celebração organizadas a pedido do monarca para bem receber o herói forasteiro. Além de boa comida e bebida farta, o rei também se ocupa de tra­zer à celebração o aedo cego chamado Demódoco, que, ao declamar seus poe­mas acompanhado da lira, em um a das cenas mais tocantes da epopéia de Homero, leva Odisseu às lágrimas: o herói cobre o rosto com o manto de púr- pura para esconder que, emocionado, chora copiosamente. Depois, contra­riando todas as regras da hospitalidade, Laódamas usa a palavra e elabora em público um discurso, por meio do qual desafia o hóspede e herói. Em respos­ta, saem da boca de Odisseu as palavras: “Os deuses não dispensam igual­mente aos mortais seus amáveis presentes: formosura, talento, eloqüência”.

Em linguagem mitológica, afirmava-se que Zeus teria enviado a Eloqüên­cia, guiada por Hermes, aos homens ao ter ficado sensibilizado com a misé­ria humana. Enviou-a para que os homens pudessem resolver seus problemas e viver melhor. Os gregos consideravam a Peithô (Persuasão), uma deusa po­derosa. Segundo Esquilo, a Persuasão era uma deusa, “ser encantador a quem nada se nega”. O discurso oratório era o produto da inspiração divina, dian­te do qual o ser hum ano era sempre convencido.

Com o advento da cultura filosófica e do discurso analítico, persuasão e eloqüência ganharam outras nuanças, e a Retórica de Aristóteles tornou-se a obra referencial de análise crítico-racional não apenas da eloqüência e da per­suasão propriamente ditas, mas também da retórica como techné e dynamis.

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48 Direito e Argumentação - Parte 1

Uma obra puramente filosófica e com decisiva influência sobre todas as deter­minações ulteriores do conceito, como observou Nietzsche, ainda no século xix. Tal fato não evitou, contudo, a retórica, como disciplina, passar por uma decomposição, segundo aguda observação de Michel Meyer e Roland Barthes.

Em primeiro lugar, decomposição de seu prestígio, pois, para o homem comum de nosso tempo, a palavra retórica é sinônimo, muitas vezes, de coi­sa empolada, artificial, enfática, declamatória, falsa, ou mesmo algo com sen­tido ainda mais pejorativo: quando designa um discurso de palavras ocas ou de efeito meramente ornamental. Em segundo lugar, a decomposição da pró­pria estrutura do sistema retórico outrora proposto por Aristóteles, trazendo como conseqüência diferentes modos de tratar e compreender a retórica como disciplina. Algumas vezes a retórica é retomada e repensada colocan­do-se em relevo a invenção, e, nesse caso, torna-se, como em Perelman, uma disciplina preocupada, sobretudo, com argumentação e elaboração de provas ou argumentos segundo os padrões da lógica. Outras vezes a retórica é reto­mada e reestruturada por meio da ênfase na elocução, e, nesse caso, torna-se retórica da elocução, retórica das figuras, um tratado do bem falar, do bem dizer, ou uma espécie de manual da ornamentação do discurso (iniciado com Quintiliano e, depois, radicalizado nos séculos posteriores, particularmente xvn, xvm e xix). Outras vezes, ainda, a retórica torna-se uma disciplina que coloca em destaque a ação, e, nesse caso, ela se transforma em uma retórica teatral ou gestual (como é o caso dos trabalhos de Vigneaux ou Grize).

Leitura, aproveitamento, discussão, reestruturação e decomposição da re­tórica aristotélica não são fenômenos recentes e próprios de nosso tempo. Trata-se, ao contrário, de ocorrências antigas, quando, ainda na antiga Roma imperial, a retórica tornou-se um dos mais insinuantes instrumentos de po­der; primeiro com o surgimento da Rhetorica ad Herennium (obra atribuída a Cornifício), depois com Cícero, Quintiliano e Tácito.

O primeiro a questionar Aristóteles com consistência intelectual foi Quintiliano, que, no século l da Era Cristã, em nome da lógica, problemati- zou a definição aristotélica de retórica como a técnica de persuadir e encon­trar os meios adequados à persuasão que toda questão admite. Para Q uin­tiliano, o ato de persuadir não pode fazer parte da definição da retórica por nem todo discurso persuadir, e, além disso, muitas outras coisas além do dis­curso retórico persuadem, como, por exemplo, dinheiro, poder, virtude. Quintiliano pondera, de acordo com as leis lógicas de definição, uma defini­ção só dever valer para o definido: logo, a definição da retórica como arte de

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A Retórica de Aristóteles 49

persuadir não a especifica, pois se aplica a muitas outras coisas. Surgiu, aí, o primeiro tratado de retórica no qual, à diferença de Aristóteles, coloca-se em relevo a elocução. Quintiliano - sem menosprezar a ética e questões relacio­nadas ao justo e à justa medida - define a retórica como ars bene dicendi (arte de falar bem), colocando em destaque não apenas a importância de estilo, elegância e clareza como virtudes justas do bom discurso, mas também enal­tecendo questões próprias da oratória.

Surgiu depois um texto misterioso, atribuído a Longino, de profunda in­fluência na cultura ocidental, sobretudo no período renascentista: o tratado chamado Do sublime, no qual a questão da elocução - embora acionada em conjunção com a psicagogia - é ainda mais acentuada, pois se define o subli­me pela excelência da linguagem (o máximo da linguagem!). Para Longino, as fontes do estilo sublime se encontram na nobreza das idéias, na força da fantasia e, sobretudo, na autenticidade das grandes paixões (o estilo sublime deriva do patético).

No século XVIII, com o Iluminismo e o Racionalismo na França e na Ale­manha, o pensamento de Aristóteles é revisto. DVVlembert distingue persua­dir de convencer: persuadir significa comover, e convencer, conquistar a m en­te. No entanto, é Kant, o mais decisivo e influente filósofo da era iluminista, quem vai - efetivamente - retomar as censuras inaugurais de Platão à retóri­ca. Primeiro, contrariando Plotino, com Kant opera-se radical transformação no conceito de sublime, não mais compreendido como problema de expres­são: sublime se torna uma categoria estética em oposição ao belo (enquanto o belo resulta da contemplação de um objeto limitado, o sublime resulta da contemplação de um objeto absolutamente grande e forte, o infinito). De­pois, Kant retoma a distinção aristotélica entre analítica e dialética (Aristóte­les distingue três tipos de raciocínio: analítico, dialético e sofistico; o primeiro diz respeito ao certo, verdadeiro e evidente; o segundo versa sobre o prová­vel; o terceiro sobre tudo o que é falso).

Em Kant, a analítica estabelece as leis do verdadeiro conhecimento e cor­responde à analítica de Aristóteles, a lógica dos raciocínios verdadeiros. A dia­lética, entretanto, identifica-se com a sofistica. Para Kant, a dialética é uma ló­gica das aparências e assume, tal qual a retórica, um sentido pejorativo. Kant, além de determinar a retórica como espécie de jogo, como já destacado - e, portanto como instrumento lúdico (e para ele dissociado da construção de conhecimento e saber verdadeiros) também sentencia a retórica ser a flor da decadência. Além disso, como D’Alembert, o filósofo alemão diferencia o per­

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50 Direito e Argumentação - Parte 1

suadir do convencer: persuadir se diz quando se impõe uma conclusão parti­cular, subjetiva; convencer, quando se impõe uma conclusão de validade uni­versal. Tais diretivas vão influenciar a nova retórica de Perelman, que, sem se afastar muito de Kant, usa persuadir quando se quer atingir um auditório par­ticular e convencer quando se quer atingir um auditório universal.

A Retórica de Aristóteles, pela qualidade de sua sistematização, é a obra primordial e referencial para todas as reflexões que a disciplina sofre, mesmo nos momentos mais contemporâneos. Obra puramente filosófica, como indi­cou a sensibilidade de Nietzsche, a Retórica de Aristóteles, por força de sua permanência, sua influência e contestações ou releituras sofridas, merece a al­cunha de um livro clássico. É “uma curiosa síntese de crítica literária e de ló­gica, de ética, de política e de jurisprudência de segunda ordem, mescladas ha­bilmente por um homem que conhece as debilidades do coração humano e que sabe como jogar com elas”, observa David Ross (34, p. 103), ou, então, “um dos dois vetores da transformação da linguagem natural nas linguagens codi­ficadas dos distintos saberes”, segundo observação de Paul Ricoeur (32, p.25).

A Retórica de Aristóteles é um clássico, pois apresenta a qualidade acen­tuada por ítalo Calvino como propriedade de um livro clássico: sua primei­ra leitura é uma espécie de releitura, pois seu conteúdo referencial aparece pulverizado em diferentes obras modernas e contemporâneas, sem, muitas vezes, o leitor ter disso percepção imediata. É impossível não sentir uma sen­sação de déjà vu quando, durante sua leitura, percebem-se e se reconhecem coisas vividas, vistas, conhecidas; como perceber - para além dos limites de suas páginas - seu conteúdo disseminado ou incorporado por nossas insti­tuições republicanas e presente - como um bem vivo - , por exemplo, na es­trutura de uma petição jurídica contemporânea.

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A Retórica de Aristóteles 51

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IIA Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por ChaYm Perelman

Nancy dos Santos Casagrande

Refletir sobre a retórica em pleno século xxi requer, principalmente, bus­car uma ciência que iniciou na Antiguidade e desencadeou uma série de es­tudos os quais trarão à luz a nova retórica. Nomes como Córax e Tísias sur­giram como exponenciais na Grécia antiga, com o estabelecimento de uma relação constitutiva entre necessidade de defesa jurídica e uso do recurso da eloqüência que começou a ser sistematizado no m omento em que a Sicília in­vadiu a Siracusa (Souza, in 9). Isso desencadeou um processo no qual a retó­rica se tornou referência para um caso específico, pois não havia, ainda, di­reito constituído que desse conta da situação de júri popular.

Nesse sentido, a base da retórica está ligada “à construção de categorias de certo e errado, do bem e do mal exteriores’ à própria língua: ela dirá so­bre a conduta a ser seguida pelos homens” (9, p.2), não se dissociando da m o­ral, do ético e do político, sentidos densos e complexos, muitas vezes banali­zados nas obras modernas. É preciso entender a retórica como, segundo Pfeiffer (9, p.4), um “conjunto de preceitos práticos esclarecidos por exem­plos; uma demonstração técnica e racional do verossímil”, tornando o discur­so válido de uma perspectiva lógica.

Ainda na Antiguidade, a retórica se configurou de diferentes maneiras, conforme a concepção de seus inúmeros estudiosos. Entre eles, destaca-se Aristóteles, para quem a retórica está intimamente ligada ao estudo lógico da argumentação, tendo sido definida como “a arte de procurar, em qualquer si­tuação, os meios de persuasão disponíveis”. Por isso, o objeto da retórica an ­

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A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 53

tiga era, essencialmente, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (8, p.6), “a arte de falar em público de modo persuasivo”, levando em consideração o uso da linguagem falada, do discurso em praça pública, com a finalidade de con­seguir adesão do auditório.

Este texto tem por objetivo primeiro tratar da retórica à luz dos concei­tos apresentados por Chaim Perelman, o expoente maior de aprofundam en­to do conceito de retórica postulado por Aristóteles. O segundo objetivo é apresentar algumas técnicas de argumentação propostas pelo mesmo estu­dioso a fim de chegar ao objeto de estudos da retórica: o estudo das técnicas discursivas para provocar ou aum entar a adesão das mentes às teses apresen­tadas a seu assentimento. Assim sendo,

entre os antigos a retórica se apresentava como estudo de uma técnica para o uso do vulgo, impaciente por chegar rapidamente a conclusões, por formar uma opinião para si, sem se dar ao trabalho prévio de uma investigação séria [...] (ibid., p.6)

A ele, como precursor da nova retórica, resta a tarefa de tratar da retóri­ca aliada à argumentação, pois seu objeto de estudos será restrito aos recur­sos discursivos utilizados a fim de obter a “adesão dos espíritos” por meio de técnicas que se usam da linguagem para persuadir e convencer. Ao novo con­ceito de retórica vêm aliadas quatro observações, tornando possível perceber a medida na qual ele se amplia em relação ao conceito aristotélico.

Nesse sentido, como a

nova retórica [está] identificada com a teoria geral do discurso persuasivo, que

visa a ganhar a adesão, tanto intelectual como emotiva, de um auditório, seja qual for, afirmamos que todo discurso que não aspira a uma validade impessoal depende da retórica. Desde que uma comunicação tenda a influenciar uma ou várias pessoas a orientar os seus pensamentos, a excitar ou a apaziguar as emo­ções, a dirigir uma ação, ela é o domínio da retórica, (ibid., p.8-9)

Passaremos a tratar dos novos postulados teóricos de Perelman, que afir­ma a retórica como uso do discurso para persuadir seu auditório.

Segundo Meyer1,

1 C onform e C apítu lo I, de Carlos Alberto Shimote.

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não é por acaso, portanto, que, Perelman, ao revitalizar a retórica aristotélica no século xx, procure apresentá-la como “a arte de bem falar, de mostrar elo­qüência diante de um público para o ganhar para a nossa causa”. Trata-se de uma arte que, para persuadir, utiliza meios de ordem racional, mas também de

ordem afetiva, como acentua Aristóteles, porque a formação cie um juízo en­volve não apenas a razão, mas também a alma e as paixões da alma. (5, p.31)

Nessa perspectiva, razão e emoção se misturam e as palavras ganham for­ça persuasiva por trazerem a eloqüência permeada pela emoção do orador. É necessário recorrer, em primeiro lugar, a um acordo prévio sobre o sentido das palavras, quando, em uma discussão, apenas a experiência não é suficien­te para convencer o interlocutor. Portanto, “para conseguir um acordo a esse respeito, será indispensável recorrer à retórica no sentido amplo, que englo­ba, tanto os tópicos como a dialética, as técnicas próprias do debate e da con­trovérsia” (7, p. 142).

É, ainda, preciso considerar demonstrações e relações da lógica formal com a retórica. Conforme o autor, na escola filosófica racionalista, represen­tada aqui por Descartes, a retórica foi suplantada pela evidência, isto é, a ver­dade das premissas era por ela garantida, resultante do fato de tais premissas referirem-se a idéias claras e distintas, pelas quais nenhum a discussão era possível. Para esses racionalistas, o manejo da linguagem era dispensável, pois as evidências de um fato dele davam conta sem precisar tomar como base a palavra, porém, quando havia noções vagas ou confusas, que a lógica formal era incapaz de resolver, fazia-se necessário o uso de argumentos, e seu estudo dependia da retórica.

A nova retórica discute a intensidade variável que a adesão a uma tese pode ter. A discussão em torno desse aspecto remonta ao fato de se diferen­ciarem fatos e verdades, levando em conta que “quando se trata de aderir a um a tese ou a um valor, a intensidade da adesão sempre pode ser utilmente aumentada, pois nunca se sabe com qual tese ou qual valor ela poderia entrar em competição” (ibid., p. 143).

O que distingue a retórica da lógica formal e das ciências positivas seria sua forte relação com a adesão e nem tanto com a verdade, visto que essa mesma verdade é considerada impessoal, enquanto o discurso retórico envolve um ou mais espíritos aos quais está sendo dirigido, isto é, o auditório.

Nesse aspecto, pode-se afirmar a noção de auditório ser fundamental nos estudos da nova retórica. Trazido da retórica clássica, esse conceito revela-se de suma importância, pois todo e qualquer discurso é dirigido a um auditório,

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A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaim Perelman 55

inclusive o discurso escrito; embora, às vezes, o escritor acredite estar sozinho, seu texto pretende atingir um leitor específico. No tocante à retórica,

parece-nos preferível definir o auditório como o conjunto daqueles que o ora­dor quer influenciar com sua argumentação. Cada orador pensa, de uma forma mais ou menos consciente, naqueles que procura persuadir e que constituem o auditório ao qual dirige seus discursos. (8, p.22)

Pode ser observada, no diagrama, a representatividade do auditório se­gundo os postulados de Perelman:

Segundo o autor, o papel do auditório é tão significativo que, se o orador quiser atingir seu público, será necessário adaptar-se a ele. Pelos postulados aristotélicos, percebe-se que, na Grécia antiga, interessava conquistar a m ul­tidão reunida em praça pública por meio da adesão.

A argumentação, pela nova retórica, assim será concebida:

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“Englobará, portanto, todo o campo da argumentação, complementar da demonstração, da prova pela inferência estudada pela lógica formal” (7, p. 144). Partindo de tal afirmação, pode-se dizer, se a nova retórica busca atingir lodo e qualquer auditório, é preciso pensar no tipo de linguagem a utilizar para esse feito. Dirigir-se a um auditório especializado significa os ouvintes estarem ap­tos a aderir ao discurso com certa unanimidade.

É óbvio que o valor dessa unanimidade depende do número e da qualidade dos

que a manifestam, sendo o limite atingido, nessa área, pelo acordo do auditó­rio universal. Trata-se evidentemente, nesse caso, não de um fato experimen­talmente provado, mas de uma universalidade e de uma unanimidade que o orador imagina, do acordo de um auditório que deveria ser universal, pois

aqueles que não participam dele podem, por razões legítimas, não ser levados

em consideração. (8, p.35)

Já um auditório heterogêneo requererá do orador uma adaptação em re­lação, principalmente, às questões técnicas. É nesse processo que reside o pro­blema da vulgarização das informações. Afinal, “o importante na argum enta­ção não é saber o que o próprio orador considera verdadeiro ou probatório, mas qual é o parecer daqueles a quem ela se dirige” (ibid., p.26-7).

O auditório, na nova retórica, divide-se em dois: universal e particular. O auditório universal, já mencionado, é “um conjunto de pessoas sobre as quais não temos controle sobre as variáveis”, isto é, não há como saber situação fi­nanceira, classe social, nível de instrução, idade, situação profissional. Não sendo possível conferir-lhe um perfil determinado, o auditório universal pode não corresponder à fórmula mais feliz de satisfazer a exigência de sin­ceridade e lucidez imposta a todo orador, como um “ser para o outro”, mas é, sem dúvida, uma afirmação do ideal ético que o deve nortear. O que não pa­rece admissível é ver nele o (único) critério para se classificar um discurso como convincente ou apenas persuasivo, conforme a intenção do orador seja a de obter adesão de todos ou só de alguns (6, p.37).

A fim de se vislum brar como o auditório universal é configurado, a se­guir há um fragmento de crônica escrita por Carlos Heitor Cony (3). Ela se destina a todo e qualquer leitor, não conhecido nas variáveis às quais Perelman se refere:

O assunto da semana ainda é o referendo do último domingo. Ao encampar a

consulta popular, o governo conseguiu uma cortina de fumaça para a crise que

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A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 57

está atravessando, desviando as atenções do país para uma questão que aparen­temente tem a ver com a onda de crimes que se abate sobre nós, mas distor­cendo o problema, atribuindo a violência às armas e não aos violentos, que continuam a existir e a agir com ou sem armas de fogo.

O escritor trata de terna conhecido do grande público e debatido à exaus­tão no período anterior ao referendo sobre armas de fogo. lo d o e qualquer leitor a quem se dirige a crônica tomou conhecimento do assunto. Sem pre­cisar reconhecer seu auditório-leitor, Cony apresenta o assunto de forma ge­nérica; afinal, em um país como o Brasil, poucos são os que não sofreram al­gum tipo de violência com ou sem armas de fogo. Eis o auditório universal.

O auditório particular configura-se como específico: o orador tem conheci­mento de algumas características de seus ouvintes e o conhecimento do auditó­rio influencia o discurso do orador. Um exemplo é o discurso, na cerimônia de abertura do Seminário para Investidores-Brasil e Parceiros, no qual o presiden­te da República, Luiz Inácio Lula da Silva, dirigiu-se não só a ministros, mas também a investidores. Em dado momento, afirmou:

O Brasil é um parceiro privilegiado desse renascimento continental. Não por acaso, nossas exportações devem chegar a 117 bilhões de dólares este ano. De Norte a Sul do continente, nosso país participa de projetos prioritários, que vão redesenhar as fronteiras do comércio, dos transportes, das comunicações,

da energia e das oportunidades.

Falo, por exemplo, de obras em marcha como a Rodovia Interoceânica que liga o Brasil ao Pacífico, no Peru. Falo da ponte sobre o rio Orinoco, na fron­

teira com a Venezuela. Falo da hidrelétrica San Francisco, no Equador. Falo da

ponte Assis Brasil-Inapari, na fronteira peruana. Falo das parcerias no setor de energia com o Paraguai, a Venezuela e a Bolívia. Falo do desenvolvimento mul- tilateral da região do rio Madeira. Falo dos gasodutos na Bolívia e na Argen­

tina. Falo da segunda ponte sobre o rio Paraná, na fronteira com o Paraguai. Falo do corredor bioceãnico entre Santos e Antofagasta, no Chile. Falo de uma nova ponte sobre o rio Jaguarão, na fronteira com o Uruguai. E falo da dupli­

cação da auto-estrada do Mercosul, que estreitará ainda mais nossos laços com

os irmãos argentinos, [ver íntegra do discurso nos Anexos, p.63]

Ao ser lido tal discurso, percebe-se o conhecimento do auditório ter leva­do o presidente a utilizar argumentos realçando o Brasil como país de gran­de potencial em investimentos. Utilização de dados como “ 117 bilhões de dó­

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58 Direito e Argumentação - Parte 1

lares” ao tratar das exportações e citação de infindáveis exemplos de parceria entre Brasil e países do Mercosul denotam conhecimento profundo do audi­tório em questão, caracterizado como particular de acordo com os postula­dos da nova retórica.

Nesse sentido, “a argumentação dirigida ao auditório universal deve con­vencer o leitor do caráter coercivo das razões fornecidas, de sua evidência, de sua validade intemporal e absoluta, independente das contingências locais ou históricas” (8, p.35).

Para um discurso ser assumido por um auditório, são necessárias algu­mas precauções. A adaptação da linguagem é de extrema importância, como já afirmado; no entanto, a fim de persuadir o auditório, é preciso conhecê-lo de antemão, observando quais teses ele aprova e a intensidade de adesão a elas. A argumentação parte daí, e, considerando teses controversas, a aderên­cia a uma ou a outra far-se-á de acordo com a que revelar maior intensidade. Por isso,

vincular uma argumentação a premissas às quais se concede uma adesão ape­nas de fachada é tão desastroso quanto pendurar um quadro pesado a um pre­

go mal fixado à parede: tudo corre o risco de vir abaixo e, em vez de adotadas

as conclusões, em conseqüência da solidariedade estabelecida entre elas e as te­ses iniciais, estas é que serão abandonadas pelo auditório se as conclusões em que resultou a argumentação lhe parecem menos aceitáveis do que as teses das

quais dependem. (7, p. 146)

Sendo assim, as técnicas de argumentação têm por objetivo reforçar ou enfraquecer a adesão a outras teses, ou suscitar a adesão a teses novas que re­sultam da adaptação de teses primitivas. Esse processo de reforço ou enfra­quecimento à adesão de teses pelo auditório é tratado pela nova retórica considerando o condicionamento desse mesmo auditório ante o discurso proferido. Interessa-lhe a ordem na qual os argumentos devem ser utilizados a fim de causar o efeito, desejado pelo orador, no auditório. À nova retórica interessa, ainda, os esquemas argumentativos adotados pelo orador, ao pro­ferir seu discurso: “Buscamos, acima de tudo, caracterizar as diversas estru­turas argumentativas, cuja análise deve preceder qualquer prova experimen­tal à qual se quisesse submeter sua eficácia” (8, p.10). Por isso, em relação ao auditório, a argumentação não pressupõe a adesão a uma tese somente por mostrar-se verdadeira, mas pelo fato de apresentar valores compatíveis com os do auditório em questão. Para ter plena aceitação do auditório, o orador

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A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 59

deve buscar no senso comum teses que lhe possibilitem conhecer melhor seus ouvintes para, assim, obter resultados satisfatórios quanto à adesão.

Uma característica importante da teoria da argumentação é a denom ina­da, por Aristóteles, lugar-comum. Em busca de persuadir todo e qualquer au­ditório, tarefa primeira da nova retórica, o lugar-comum se caracteriza como um valor, um ponto de vista que deve ser considerado em uma discussão. Afirmações mais gerais em um assunto específico tendem a despertar no au­ditório empatia com o orador. Assim, Perelman afirma que

lugares-com uns desempenham na argumentação um papel análogo ao dos axiomas em um sistema formal. Podem servir de ponto inicial justamente por­

que os supomos comuns a todos os espíritos. Mas diferem dos axiomas porque

a adesão que se lhes concede não é fundamentada na evidência deles, mas, ao contrário, na ambigüidade deles, na possibilidade de interpretá-los e de aplicá-

los de modos diversos. (7, p. 159)

Considerando a importância do lugar-comum no processo de adesão do auditório a determinada tese, Perelman insiste na forma como o orador deve conduzir seu discurso. Segundo ele, se ao orador cabe a escolha de fatos, va­lores ou lugares-comuns de acordo com suas necessidades discursivas, cabe- lhe também a tarefa de colocá-los em evidência de modo a incutir-lhes um a presença, deixando-os em primeiro plano na consciência dos ouvintes. O conceito de presença, embora não exerça papel algum na lógica formal, na teoria da argumentação é fundamental. A princípio refere-se à presença físi­ca, efetiva; no entanto, podemos considerá-lo “procedimentos que têm por objetivo ilustrar a tese que queremos defender” (ibid., p. 159), isto é, histórias, por exemplo, que sirvam como recurso ilustrativo na tarefa de persuadir o auditório.

As técnicas argumentativas - à luz da nova retórica, recursos valiosos na construção da argumentação em busca da adesão de uma tese pelo auditório - dividem-se em dois grandes grupos: os argumentos quase-lógicos e os ba­seados na estrutura do real.

Os argumentos quase-lógicos caracterizam-se por não-formalidade e es­forço mental de que se necessita para reduzi-lo à formalidade. Assim, “esses argumentos recebem o nome de quase-lógicos porque muitas das incompa­tibilidades não dependem dos aspectos puramente formais e sim da nature­za das coisas ou das interpretações hum anas” (7, p. 162). Por esse lado, tais ar­gumentos têm como pretensão a convicção, se comparados aos raciocínios

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formais, lógicos ou matemáticos, porém sua natureza pouco lógica leva-os à designação de quase-lógicos. Desses argumentos, alguns parecem mais práti­cos no que diz respeito às técnicas argumentativas.

O primeiro argum ento quase-lógico é o da compatibilidade e incom pa­tibilidade. Trata-se, efetivamente, de um a demonstração na qual o orador apresenta ao auditório compatibilidade ou incompatibilidade da tese ini­cial em relação à tese principal, ou seja, a adesão, conseguida por meio da tese inicial, poderá ser quebrada de acordo com a forma de condução do discurso.

Outro argumento quase-lógico é a regra de justiça. Seu conceito está li­gado ao tratamento idêntico de seres e situações pertencentes a uma mesma categoria. Assim,

a regra de justiça reconhece o valor argumentativo daquilo a que um de nós

chamou justiça formal, segundo a qual os seres de uma mesma categoria essen­cial devem ser tratados do mesmo modo. (...) a regra de justiça fornecerá o

fundamento que permite passar de casos anteriores a casos futuros, ela é que permitirá apresentar sob forma de argumentação quase-lógica o uso de prece­

dente. (8, p.248)

Um terceiro argumento quase-lógico é o de reciprocidade: visa a tratar duas situações correspondentes da mesma maneira. Os argumentos de reci­procidade utilizam-se do conceito de simetria para serem aplicados. Desse modo, há uma facilitação da “identificação entre os atos, entre os aconteci­mentos, entre os seres, porque enfatiza um determinado aspecto que parece impor-se em razão da própria simetria posta em evidência. Esse aspecto é, as­sim, apresentado como essencial” (ibid., p.250-1).

O ridículo é outro recurso muito utilizado como técnica argumentativa. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, uma afirmação é ridícula quando en­tra em choque com uma opinião já aceita.

O ridículo é a arma poderosa de que o orador dispõe contra os que podem, pro­

vavelmente, abalar-lhe a argumentação, recusando-se, sem razão, a aderir a uma ou outra premissa de seu discurso. É ela, também, que se deve utilizar contra os

que se atreverem a aderir, ou a continuar a adesão, a duas teses julgadas incom­

patíveis, sem se esforçarem [para] remover essa incompatibilidade, (ibid., p.234)

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A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 61

O último argumento quase-lógico por nós elencado é o argumento por comparação. Para entendê-lo em sua essência, pode-se dizer serem apresen­tados, de modo geral, como constatações de fato, ficando a cargo do orador atribuir-lhe a relação de igualdade ou desigualdade. Assim,

as comparações podem dar-se por oposição (o pesado e o leve), por ordena­

mento (o que é mais pesado que) e por ordenação quantitativa (no caso, a pe- sagem por meio de unidades de peso). (...) A escolha dos termos de compara­

ção adaptados ao auditório pode ser um elemento essencial da eficácia de um argumento, mesmo quando se trata de comparação numericamente especifi- cável: haverá vantagem, em certos casos, em descrever um país como tendo nove vezes o tamanho da França em vez de descrevê-lo como tendo a metade

do tamanho do Brasil, (ibid., p.275-8)

Serão abordados os argumentos fundamentados na estrutura do real mais práticos no emprego de técnicas argumentativas, sempre visando à ade­são do auditório. De início, é possível classificar os argumentos fundam enta­dos na estrutura do real como o estabelecimento de uma solidariedade entre juízos admitidos e outros que se procura promover; ou seja, eles não estão li­gados a uma descrição objetiva dos fatos, mas a opiniões relativas a eles.

O primeiro argumento ao qual será feita referência é o pragmático. Tal argumento remete-se ao “apreciar um ato ou um acontecimento consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis. (...) Para apreciar um acon­tecimento, cumpre reportar-se a seus efeitos” (ibid., p.303). Ao utilizar o ar­gumento pragmático, o orador busca transferir para a causa o valor das con­seqüências, tendo uma importância direta para a ação. Em outras palavras, o argumento pragmático fundamenta-se na relação de dois acontecimentos su­cessivos por meio de um vínculo causai.

O segundo argumento é o do desperdício. Esse argumento consiste em afirmar que, iniciada uma obra e aceitos seus sacrifícios, cabe dar continui­dade a ela; isto é, o argumento do desperdício lembra o do sacrifício inútil. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, “o sacrifício é a medida do valor cjue o determina, mas, se este valor é mínimo, o sacrifício é, por seu turno, depre­ciado” (ibid., p.319).

O terceiro argumento é o da direção. Seu intuito é direcionar o orador no sentido de responder à questão: onde se quer chegar? A utilização desse argu­mento vem alertar contra o uso do procedimento de etapas, pois “cada vez que uma meta pode ser apresentada como um ponto de referência, uma eta­

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pa num a certa direção, o argumento de direção pode ser utilizado” (ibici., p.321). Nesse sentido, esse argumento desperta o temor de determinada ação nos envolver em um encadeamento de situações cujo desfecho receamos.

O quarto e último argumento aqui apresentado é o da superação. Dife­rentemente do argumento de direção, que impõe limites no discurso, o de supe­ração insiste na possibilidade de alçar um vôo discursivo o mais longe possível, tendo em vista um crescimento contínuo de valor nessa direção. Ao utilizar esse tipo de argumento, o orador deverá ter em mente não só o cumprimento de seu objetivo, mas também sua superação, sempre no sentido de prosseguir indefini­damente. Perelman e Olbrechts-Tyteca afirmam que

freqüentemente essa técnica é utilizada para transformar os argumentos con­

tra em pró, para mostrar que o que até então era considerado um obstáculo é,

na realidade, um meio para chegar a um estágio superior, como a doença que

deixa o organismo mais resistente, imunizando-o. (8, p.329)

A utilização desse argumento pelo orador leva os ouvintes a valorizarem certos termos sobre os quais versa, de fato, o debate. Mais do que a superação sem limites de metas ou objetivos, torna-se importante ressaltar a oposição a essa progressão contínua ser necessária, pois há risco de chegar ao ridículo, resultante da incompatibilidade de valores. Assim, ao usar o argumento de superação, o orador deverá ter em mente o equilíbrio que permita, em seu discurso, harmonizar valores passíveis de entrar, no limite, em conflito.

Ainda que Perelman tenha-nos apresentado uma nova perspectiva para os estudos retóricos, seus postulados têm origem em Aristóteles e nos estu­dos por ele desenvolvidos na Antiguidade. Esse fator é de suma importância, pois demonstra que, apesar de todos os recursos tecnológicos disponíveis à humanidade, é no discurso proferido pelo homem, que residem as mais di­versas intenções, jamais perceptíveis pelo mais m oderno computador.

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ANEXOS

A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaim Perelman 63

Senhor Luiz Inácio Lula da SilvaPresidente da República Federativa do Brasil

São Paulo, SP, 02.12.2005Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de abertura do Seminário para Investidores - Brasil e Parceiros

Bom dia aos nossos convidados,Bom dia aos nossos ministros e ministras,Eu quero começar agradecendo a aceitação do convite feito pelo nosso

governo para que pudéssemos ter, aqui, o conjunto de empresários investido­res no Brasil, para que pudéssemos mostrar um pouco, não apenas aquilo que somos, mas aquilo que pretendemos ser num futuro muito próximo. Há algum tempo, fizemos uma reunião em Genebra, depois fizemos uma reu­nião em Nova Iorque, depois fizemos uma reunião em Tóquio, e eu dizia que era preciso, depois da aprovação de alguma estruturação na nossa legislação, que nós convidássemos um grupo de empresários estrangeiros e brasileiros para que nós pudéssemos mostrar o que está acontecendo no Brasil. Por isso eu quero agradecer, outra vez, a disponibilidade de vocês, de virem a São Paulo para participar deste evento.

O Brasil e a América do Sul se apresentam hoje como uma enorme fron­teira de oportunidades para os investidores de todas as partes do mundo. Estamos reconstruindo a geopolítica e a infra-estrutura de uma região que reúne mais de 300 milhões de habitantes, com um PIB superior a 1 trilhão de dólares.

Durante séculos, essa riqueza viveu desencontrada de si mesma. Agora, um continente inteiro redescobre a vocação para crescer de forma cooperada e solidária num a comunidade de nações. Unir mercados, abrir fronteiras, in­tensificar o comércio, atrair investimentos e ampliar a justiça social é a agen­da da América do Sul no século xxi.

O Brasil é um parceiro privilegiado desse renascimento continental. Não por acaso, nossas exportações devem chegar a 117 bilhões de dólares este ano. De Norte a Sul do continente, nosso país participa de projetos prioritários, que vão redesenhar as fronteiras do comércio, dos transportes, das comunica­ções, da energia e das oportunidades.

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Falo, por exemplo, de obras em marcha como a Rodovia Interoceânica que liga o Brasil ao Pacífico, no Peru. Falo da ponte sobre o rio Orinoco, na fronteira com a Venezuela. Falo da hidrelétrica San Francisco, no Equador. Falo da ponte Assis Brasil-Inapari, na fronteira peruana. Falo das parcerias no setor de energia com o Paraguai, a Venezuela e a Bolívia. Falo do desen­volvimento multilateral da região do rio Madeira. Falo dos gasodutos na Bolívia e na Argentina. Falo da segunda ponte sobre o rio Paraná, na frontei­ra com o Paraguai. Falo do corredor bioceânico entre Santos e Antofagasta, no Chile. Falo de uma nova ponte sobre o rio Jaguarão, na fronteira com o Uruguai. E falo da duplicação da auto-estrada do Mercosul, que estreitará ainda mais nossos laços com os irmãos argentinos.

Criamos no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES, um departamento especializado em integração latino-americana, com carteira de projetos de 2,6 bilhões de dólares. Temos hoje, no mínimo, um grande projeto de integração física em andamento em cada um de nos­sos parceiros continentais.

Eis a diferença substantiva entre o que acontece hoje e a integração so­nhada no passado. O processo, agora, avança intensamente sobre pontes, es­tradas, usinas, comércio e gasoduto.

Quero chamar a atenção dos senhores e das senhoras para esse fato his­tórico: estamos realizando um dos mais importantes projetos de integração continental do mundo, no século xxi. Estamos vivendo um poderoso proces­so de mobilização de recursos, de vontade política e de energia cultural e hu­mana. É para participar dessa marcha, que já mudou a face comercial e polí­tica da América do Sul, e que irá mudá-la ainda mais nos próximos dez anos, que exortamos a participação dos senhores e das senhoras.

Um outro grande mercado desponta na História. O fluxo crescente do comércio continental em produtos e serviços gerou uma dinâmica irreversí­vel. Ela é a melhor garantia de remuneração ao capital que aqui for investido. Significa dizer que investir no Brasil hoje, diferentemente do passado, eqüi­vale também a participar de um encadeamento virtuoso de projetos e opor­tunidades que, há muito, não se observava na arquitetura regional.

O Brasil rechaça qualquer pretensão hegemônica na integração regional. Todavia, seja pelo porte, seja pela sofisticação de nossa estrutura industrial e financeira, temos consciência das responsabilidades adicionais que nos ca­bem nessa trajetória.

Nossa economia está credenciada a desempenhar esse papel histórico. Hoje, ela reúne uma combinação ímpar de estabilidade com geração de em ­pregos e distribuição de renda.

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A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 65

Dcsdc 1995, a pobreza não caía tanto no Brasil. A tal ponto que em 2004, com onze anos de antecedência, atingimos a primeira Meta do Milênio, de reduzir à metade a miséria no país.

Temos hoje a m enor taxa de desemprego dos últimos cinco anos; pela primeira vez, desde 1996, a renda média do trabalhador parou de cair; o con­sumo das famílias cresce e há confiança no ambiente de negócios.

Uma parcela significativa da indústria brasileira ganhou nervos e muscu­latura como nunca teve no passado. Portanto, estão líquidas, são mais rentá­veis, ampliaram a produtividade e reduziram o seu endividamento externo e interno.

Qualquer que seja o indicador pelo qual se avalie este momento, em que pesem oscilações conjunturais da economia, o que se constata é o impulso re­novado para crescer e se transformar. Ele está ancorado num a robusta con­vergência de investimentos públicos e privados, como não se via há mais de duas décadas no nosso país.

A Petrobras prevê uma inversão de 53,5 bilhões de dólares em novos pro­jetos até 2010, com geração de 280 mil empregos diretos e indiretos. Vamos dobrar a malha brasileira de gasodutos. Até 2007, serão aplicados 2,6 bilhões de dólares para a implantação de mais 4.600 quilômetros de redes no Norte, Nordeste e Sudeste. Mais de 250 mil novos empregos serão gerados pelos 3 bi­lhões de dólares em novos investimentos atraídos por essa infra-estrutura.

Este ano, pela primeira vez, os investimentos em ferrovias vão ultrapas­sar os valores aplicados pelo BNDES em transporte rodoviário. Mais que uma mudança de portfólio, trata-se de uma redefinição de prioridades de uma economia que assumiu sua vocação exportadora. A partir de 2006, até 2010, os investimentos no setor serão da ordem de 2,5 bilhões de reais por ano. Na semana passada, iniciamos a construção da nova ferrovia Transnordestina, que terá recursos de 4,5 bilhões de reais e ligará os nove estados do Nordeste aos portos de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco. Nossa previsão é de que o transporte ferroviário cresça 20% no país em 2006, com encomen­das de vagões superiores a 7.500 unidades.

Quatorze novas usinas hidrelétricas estarão habilitadas para construção em 2006. Licitamos, este ano, linhas de transmissão para integrar definitiva­mente a rede nacional de energia. Garantimos oferta suficiente de energia para afastar, de uma vez por todas, o risco de estrangulamentos inaceitáveis como o que ocorreu em 2001 no nosso país.

O setor siderúrgico brasileiro iniciou um novo ciclo de investimentos que deve somar mais de 12,7 bilhões de dólares até 2015. No segmento químico

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e petroquímico, as inversões programadas passam de 17 bilhões de reais. No total, projetos no valor de 20,4 bilhões de dólares nos setores siderúrgico, de refino de petróleo, químico, papel e celulose estão em andamento, com ciclo de maturação até 2010.

O governo, através do BNDES, participa ativamente desse esforço de ex­pansão de nossa base produtiva e exportadora, em especial, com recursos aplicados em grandes projetos de celulose e siderurgia, envolvendo até 50% do investimento previsto.

Nosso otimismo se apóia no chão firme das decisões refletidas e de um a estratégia vitoriosa. Estamos fazendo uma transição benigna de um passado marcado pela estagnação para um ciclo de verdadeiro desenvolvimento eco­nômico e social.

O Brasil trocou uma inserção externa dependente e subordinada por uma participação soberana e cooperativa no comércio internacional. O fluxo do comércio exterior saltou de 13% do PIB, nos anos 90, para mais de 26%, atual­mente. Nossas reservas quadruplicaram. Há superávit em contas correntes. O risco-país foi drasticamente reduzido. A dívida externa recuou. Descontadas as reservas, ela se equipara às exportações previstas para 2006.

Este país lidera as exportações mundiais de carne, soja, café, açúcar, suco de laranja e álcool. Mas também exporta automóveis, celulares e aviões. Quase 55% de nossas vendas são de manufaturados. Os industrializados de média e alta in­tensidade tecnológica têm participação crescente nos embarques. São parâme­tros importantes de um país no qual já estão presentes 400 das 500 maiores multinacionais do Planeta. Essa é a hora de ampliar a parceria com o nosso de­senvolvimento. Para isso, tomamos uma série de medidas nos últimos meses com o objetivo de facilitar as exportações e desonerar o investimento produti­vo, totalizando um a renúncia fiscal da ordem de 5,7 bilhões de reais ao ano.

Estamos convidando os senhores a investir para compartilhar a matriz energética mais limpa e sustentável do Planeta no século xxi. A energia hidre­létrica atende 90% de nossa indústria. O Brasil será auto-suficiente em petró­leo ainda neste ano. Produzimos 15 bilhões de litros de álcool a preços imba- tíveis no mercado de combustíveis renováveis. O programa do Biodiesel, nesta primeira etapa, substituirá 800 milhões de derivados de petróleo por combustível extraído de soja, m am ona e girassol.

Tenho a certeza que esse horizonte fala alto a quem enxerga longe. Nele, o Brasil desponta como um parceiro diferenciado, uma ponte sólida e democrá­tica para ingresso no mercado sul-americano e mundial. Estamos de braços abertos para recebê-los, num a relação madura de respeito e transparência.

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Aprendi, em m inha longa trajetória de negociações, que os bons acordos contemplam os interesses dos dois lados da mesa. Mais do que simplesmen­te adicionar fôlego a um m omento singular da nossa História, queremos fir­m ar compromissos compartilhados de longo prazo, que gerem riqueza com justiça, e democracia, com oportunidades para todos.

Meus amigos, minhas amigas,Quero term inar dizendo a todos vocês aquilo que eu dizia no primeiro

ano do meu mandato, em vários debates com empresários. O Brasil, durante a sua história recente, teve inúmeras oportunidades de crescer, de se desen­volver e de se transformar num país definitivamente desenvolvido.

Muitas vezes, precipitações políticas, muitas vezes, pressões, às vezes jus­tas, mas feitas nas medidas equivocadas, fizeram governantes enveredarem pelos caminhos fáceis que se tornaram difíceis ao longo do tempo e, ao invés de avançar, o Brasil experimentou retrocessos.

Houve um momento na história do Brasil em que se negava o papel do Estado, tudo que fosse do Estado não valia nada. Houve um momento na his­tória do Brasil em que se negava até a empresa nacional, de que o que impor­tava era o que o mercado globalizado determinava, como se nós não pudésse­mos, enquanto Nação soberana, determinar um modelo de desenvolvimento, definição das prioridades que o Brasil precisava.

Desde que nós tomamos posse, eu tenho sido um provocador, eu diria, benigno, dos empresários nacionais. Ao invés de dizer que a empresa nacio­nal é inferior à empresa multinacional, e ao invés de dizer que a empresa na­cional tem que fechar para a entrada de uma empresa multinacional, não fo­ram poucas as vezes em que eu desafiei as empresas nacionais a virarem empresas multinacionais. É com muito orgulho que assistimos, hoje, em pre­sas brasileiras tendo uma inserção no m undo de forma extraordinária, e à mesa nós temos dois exemplos, a Companhia Vale do Rio Doce e o nosso amigo Gerdau, do grupo Gerdau.

O que nós queremos é que mais empresas brasileiras assumam essa d i­mensão multinacional, essa dimensão globalizada, para que nós não sejamos tratados como se fôssemos eternamente pequenos e não fôssemos competi­tivos como somos em muitas áreas em que os senhores, aqui no Brasil, parti­cipam com seus investimentos ou em parcerias com empresários brasileiros.

O Brasil não pode, em nenhum momento, permitir que qualquer que seja a circunstância, em função de um ano eleitoral - e eu faço questão de reiterar isso na frente dos empresários e dos trabalhadores, toda vez que sou chamado para um debate - não haverá, em função do ano eleitoral, nenhuma tomada

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de posição do governo que possa colocar em perigo, em risco, o que nós con­seguimos criar nesses três anos de sustentabilidade, de seriedade e de perspec­tiva de o Brasil ser um país que tenha, definitivamente, um crescimento de longo prazo, um ciclo virtuoso de crescimento para que a gente possa, não apenas desenvolver o Brasil, mas para que possamos, além de desenvolvê-lo, fazer a justa distribuição de renda que ao longo da história não foi feita.

Durante vinte anos, os trabalhadores brasileiros, por mais que lutassem, eram poucas as categorias de trabalhadores que conseguiam fazer acordos acima da inflação. Normalmente as categorias menos organizadas perdiam nos acordos coletivos. Vejam a boa coincidência, pela primeira vez, nas últi­mas décadas, as empresas brasileiras ganham mais do que os bancos, lucram mais do que os bancos.

E pela primeira vez, em vinte anos, os trabalhadores brasileiros, este ano, 85% dos acordos salariais foram feitos acima da inflação, com ganhos reais, definitivamente melhorando a vida dos trabalhadores. Isso sintetiza o quê? Sintetiza uma máxima que nós acreditamos: quanto mais a empresa ganhar, mais chances os trabalhadores terão de ter os seus dividendos pela sua parti­cipação no resultado do ganho dessas empresas.

E nós sabemos que, para as empresas ganharem, nós precisamos investir em tecnologia. Por isso estamos formando, este ano, a marca dos 10 mil dou­tores que prometemos em 2003. Por isso estamos anunciando este ano mais quatro universidades federais, e hoje vou lançar a pedra fundamental da Universidade Tecnológica do ABC; inauguramos a universidade tecnológica no Paraná; e vamos fazer quatro universidades federais, 32 extensões, das quais cinco são faculdades que serão transformadas em universidades fede­rais. E, ao mesmo tempo, estamos construindo 32 escolas técnicas.

E por que estamos fazendo isso? Porque acreditamos que o Brasil não pa­rará de crescer. Não se preocupem com o índice do terceiro trimestre, não se preocupem, porque, embora tenha me deixado chateado, porque você sem­pre espera números altamente positivos, os indicadores demonstram que a economia vai crescer, e vai crescer de forma sólida, em 2006. E, se Deus qui­ser, vai crescer em 2007, 2008,2009, 2010, porque eu espero, em qualquer lu­gar do m undo que encontrar com vocês, sendo presidente ou não sendo pre­sidente, ouvir de vocês a frase de que a empresa de vocês está ganhando dinheiro no Brasil e não que a empresa de vocês quebrou por estar no Brasil.

E queremos carregar junto conosco nessa trajetória um trabalho intenso, que vocês têm acompanhado, criando uma consciência no Continente, em to­dos os países que fazem fronteira com o Brasil, de que não é possível um país

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A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaim Perelman 69

crescer sozinho, é possível o Brasil crescer e, junto com o Brasil, crescer a Argen­tina, crescer o Uruguai, crescer Paraguai, Colômbia, Peru, Equador, Chile, e to­dos aqueles que pertencem à América do Sul, porque assim a gente vai ter a cer­teza de que o século xxi vai ser para nós, na América do Sul, o que foi o século x jx para a Europa, o que foi o século XX para os Estados Unidos. E isso só será possível se vocês tiverem a ousadia de acreditarem tanto na integração da América do Sul, na perspectiva de crescimento do Brasil, como nós acreditamos.

O que eu estou dizendo a vocês é que tenham a certeza, de uma vez por todas: o Brasil não cometerá os erros que já foram cometidos historicamente.

Queremos olhar para a história, para o nosso passado, e aproveitar tudo aquilo que já foi feito de bom pelos outros governos, porque o Brasil não co­meçou conosco e tampouco terminará conosco; queremos aproveitar as boas lições para aperfeiçoá-las; queremos aproveitar as coisas que nós sabemos que foram ruins para extirpá-las de uma vez por todas da política brasileira.

Em economia não existe mágica, em economia existe seriedade, existe transparência, existem passos a serem dados, do tam anho da nossa perna. Não adianta ficar olhando para a China, não adianta ficar olhando para os Estados Unidos, não adianta ficar olhando para alguém que cresceu mais ou menos do que nós. Não adianta. Nós temos que olhar para nós, para a nossa indústria, para a nossa cultura, para a nossa política, para as nossas possibi­lidades, e aí sim, juntos, nós poderemos encontrar o m omento certo de to­mar as medidas certas para que o Brasil passe para o rol dos países ricos.

Ontem, eu fiz um telefonema ao Tony Blair, e dizia ao Primeiro-Ministro in­glês: as negociações da Rodada de Doha são de tamanha magnitude para o mundo subdesenvolvido e, sobretudo, para os países mais pobres que nós não temos o direito de permitir que os nossos assessores negociem sem que haja par­ticipação direta dos Presidentes da República ou dos Primeiros-Ministros na de­cisão final. É uma negociação muito difícil e eu disse ao primeiro-ministro Tony Blair: se nós, governantes do mundo, queremos provar que estamos querendo fazer uma política justa, onde os países que já conquistaram a sua cidadania, a sua riqueza, o seu bem-estar social, tomem posições para permitir que os países mais pobres possam vender aquilo que produzem na agricultura. Se a gente qui­ser provar que estamos falando sério, num mundo mais justo, sem terrorismo, com democracia e com paz, eu disse a ele: o senhor, que é o coordenador do G-8, neste momento, convoque o G-8 e convoque cinco países emergentes, a qual­quer dia e a qualquer hora, nós certamente, a hora em que juntarmos os Presidentes da República, poderemos encontrar o caminho de uma boa nego­ciação, o que os nossos interlocutores até agora não encontraram.

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70 Direito e Argumentação - Parte 1

Eu acho que se nós fizermos isso, veja que não estamos falando pelo Brasil. O Brasil, quando se trata do agronegócio, não temos medo de compe­tir com qualquer país do mundo, não estamos falando pelo Brasil, estamos falando pelos países da África, estamos falando pelos países mais pobres da América Latina e estamos falando pelos países mais pobres do mundo, que têm na agricultura a única possibilidade. Eu tenho certeza de que se o primei­ro-ministro Tony Blair conseguir convencer o G-8 de que essa reunião é im ­portante, nós teremos, meu caro Roberto Rodrigues e meu caro Furlan, cer­tamente, o sucesso na Rodada de Doha, que não estava previsto.

Se não acontecer, e não houver acordo, fiquem certos: os ricos continua­rão mais ricos e os pobres continuarão mais pobres e as Metas do Milênio d i­ficilmente serão alcançadas. E, certamente, nós não conseguiremos fazer isso sem que os empresários do m undo inteiro, do Brasil e de qualquer país do mundo assumam junto com o Estado a responsabilidade de construir este m un­do que todos nós sonhamos.

Muito obrigado.

Fonte: www.mre.gov.br/portugue$/po1itica_externa/discursos; acessado em 12.12.2005.

O grande silêncio

O assunto da semana ainda é o referendo do último domingo. Ao encam­par a consulta popular, o governo conseguiu uma cortina de fumaça para a crise que está atravessando, desviando as atenções do país para uma questão que aparentemente tem a ver com a onda de crimes que se abate sobre nós, mas distorcendo o problema, atribuindo a violência às armas e não aos vio­lentos, que continuam a existir e a agir com ou sem armas de fogo.

Paralelamente, tivemos o previsível desfile de opiniões, a turm a do Bem, dos politicamente corretos, apoiando a proibição das armas, responsáveis pe­las desgraças da humanidade. Do lado contrário, os Maus, os violentos, os sem-entranhas que defendem o comércio das armas para dar vazão aos bes­tiais instintos que cultivam com a habitual ferocidade.

Como são manjados, os Bons e os Maus, nem se precisa ver ou ouvir o desfile. Sabemos de que lado estão Agnaldo Timóteo, o coronel Erasmo Dias,

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A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 71

o Bolsonaro, o Severino, o Maluf, o povo do Mal em peso, berrando por ar­mas, clamando por fogo e ranger de dentes.

De outro, os Puros, os de coração limpo e sem mácula, as Vestais de sem­pre que elegeram Lula e acreditam que o PT é a salvação da lavoura e do povo. Nas últimas eleições presidenciais, a atriz Regina Duarte foi crucifica­da pela mídia e pelos colegas de profissão, discriminada como a ovelha negra do rebanho, condenada e sacrificada em nome do Bem e do Lula - que pare­ciam a mesma coisa.

Nos dias de hoje, a mesma turm a do Bem, que tanto se esbofou pela proi­bição das armas, evita se comprometer com o Mal, preferindo o silêncio so­bre a corrupção daqueles que ajudou a eleger.

Carlos Heitor Cony, membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000.

Referências bibliográficas

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IIIA /W/se en Scène Argumentativa

Maria Teresa Rego de França

Invejo o ourives quando escrevo:Imito o amorCom que, em ouro, o alto-relevo Faz de uma flor

Olavo Bilac

A citação ilustra a postura comum àqueles que, admirados diante de um produto - um texto ou uma jóia - buscam entender-lhe o processo de cons­trução. Ilustra, também, como o conhecimento de tal fazer pode nos tornar mais aptos, a ponto de escolhermos, ao criar nosso próprio texto-produto, um percurso semelhante para sua construção.

Todo operador do direito sabe a importância do bom domínio do idio­ma para sua carreira. Todo operador de direito já deparou com a certeza de que saber argumentar é tão importante quanto saber interpretar as leis e apli­cá-las. No entanto, a ciência de ser a competência argumentativa fundamen­tal não garante um texto bem elaborado. É necessário mais. É necessário o operador não só se exercitar na complexa atividade linguageira, mas, sobre­tudo, ter dela alguns conhecimentos teóricos.

Portanto, o intuito deste texto é levar aos operadores do direito, em espe­cial, e a outros profissionais que se interessam pelo assunto, alguns conheci­mentos teóricos sobre argumentação, pois a prática respaldada teoricamente pode se tornar mais eficiente. Dessa forma, será apresentada, em linhas ge­rais, a concepção argumentativa de Vignaux (10) e Grize (4), conhecida como lógica natural.

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A Mise en Scène Argumentativa 73

O texto de José Eduardo Martins Cardozo (3, reproduzido no final deste capítulo), deputado federal pelo PT-SP e presidente da Comissão da Reforma do Judiciário na Câmara (2004), é admirável em termos de argumentação e apresenta, entre outras características, aquilo a que Vignaux (10, p.229) se re­fere como o autoritarismo inerente a toda (boa) construção discursiva, no sentido de nada nele ser gratuito. Entender como e por que o texto-produto resultou tão bem-feito requer assumir a posição do analista com respaldo na teoria escolhida.

Argumentação e retórica

Falar sobre argumentação leva, inexoravelmente, a Aristóteles (388-322a.C.), como sabido, o primeiro filósofo ocidental a especular sobre linguagem e a formalizar uma teoria sobre o poder da palavra. Melhor dizendo, uma teoria sobre o poder do orador que sabe, pois considera a situação de intera­ção, enfeitiçar um auditório com a energia de suas palavras.

Coube também a Aristóteles a percepção de que despertar as paixões do auditório é um a forma eficaz de envolvê-lo: é a função psicagógica aristoté­lica. A passagem que se segue (apuei 6, XLI), retirada da Poética, bem revela tal função: “as paixões constituem um teclado no qual o bom orador toca para convencer”. Revela, ainda, outro aspecto extremamente valorizado pelo estagirita sobre a energia que determinadas figuras e construções podem im­primir ao discurso: a própria citação aristotélica se constrói pelo uso de uma metáfora.

Se a retórica é definida por Aristóteles como a “faculdade de ver teorica­mente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão” (1, Cap. II), se a finalidade dela é “aduzir provas” (ibid., Cap. I), é conveniente notar que a retórica é uma disciplina “cuja tarefa não consiste em persuadir, mas em discernir os meios de persuadir a propósito de cada questão” (ibid., Cap. I). Neste sentido, ela pode ser considerada uma disciplina instrumental, cujos conhecimentos e técnicas são extremamente importantes para quem vai ar­gumentar, mas não se confunde com a própria argumentação, como se pode depreender das sábias palavras de Mosca (7): “A Retórica fornece os meios para analisar o discurso argumentativo, mas também para defender-se dele”.

Curioso ainda é notar que, sendo a retórica, como a considerava Aristóteles, a arte dos contrários, a arte não do verdadeiro, mas do provável, do verossí­mil, certamente ela viabiliza a diversidade de opiniões e até a liberdade dos sujeitos, que não ficam restritos ao apodítico, ao demonstrável. Não é sem ra­

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74 Direito e Argumentação - Parte 1

zão, durante o período das monarquias absolutas, a retórica ter caído em des­crédito. Não é sem razão também que, esgotado o racionalismo cartesiano, revalorizada a subjetividade, as questões ligadas à retórica e, por conseguin­te, à argumentação tenham exsurgido com tanta freqüência.

Na segunda metade do século XX, Perelman e Olbrechts-Tyteca, ao anali­sarem o discurso da propaganda totalitarista, redescobriram a retórica clássi­ca aristotélica e publicaram, em 1958, uma obra que é um marco nos estudos retóricos atuais, Tratado da argumentação: a nova retórica. Nela, os autores apresentam um conceito de argumentação que já pode ser considerado um truísmo: toda argumentação busca a adesão dos espíritos às teses propostas.

Publicado o Tratado, houve verdadeira explosão de obras ligadas à retó­rica e à argumentação, e novas tendências foram se delineando. Alguns teó­ricos, como os do grupo |j, por exemplo, priorizaram a retórica das figuras. Já Vignaux e Jean-Blaise Grize privilegiaram o caráter teatral da argumenta­ção e as operações lógicas nela presentes.

O discurso como representação da realidade

Segundo Vignaux (10, p.261), “toute realité ríexiste que par un domaine de representations qui lui sont afférentes; le discours est lieu privilégiépour Vácte constitutif de ces représentations” (toda realidade só existe por um domínio de representações que a ela são conduzidas; o discurso é o lugar privilegiado para o ato constitutivo dessas representações). Talvez a citação já seja sufi­ciente para se entender o pressuposto básico da teoria de Vignaux sobre a ar­gumentação: o discurso não reproduz a realidade, ele a representa. Isso im ­plica afirmar que, dado um texto - aqui considerado a manifestação concreta de um discurso - , as idéias nele expostas não são a realidade exterior; são a representação que um sujeito discursivo faz dela.

Tal representação é o que se pode designar uma representação de segun­do grau, ou seja, realiza-se por meio de outra, pois a própria linguagem tam ­bém é representação. Vignaux propõe que o discurso cria sua própria reali­dade, embora, obviamente, ele sempre nos reenvie à realidade exterior, que lhe fornece os referentes. Em outras palavras: a realidade exterior fundamen­ta e motiva o discurso, pois o sujeito parte dela, mas este - por meio de suas representações - também pode modificar a realidade, uma vez que seu dis­curso busca influir nas representações do outro. Em suma, o que nos move são as representações que fazemos do mundo. Talvez por isso Santaella (9) afirme vivermos na noosfera, isto é, o reino dos signos e das linguagens.

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O discurso como ação do sujeito

Do exposto, decorre outra premissa da teoria da lógica natural de Vignaux: todo discurso subsume a ação de um sujeito. O discurso é, portan­to, uma forma de o sujeito atuar sobre o mundo. Se, como sabido, o forma­lismo estruturalista das décadas de 1960 e 1970 concebia o sujeito subordi­nado ao código e ao sistema, não lhe reconhecendo, pois, a autonomia (o sujeito era produto e reprodutor das coerções ideológico-sociais ou mero de- codificador do código lingüístico), a concepção de sujeito atuante de Vignaux reflete uma nova concepção filosófica e lingüística. Se nos reportarmos ao ca­ráter libertário da retórica, não é difícil entender a concomitância entre o boom retórico e a nova concepção de sujeito.

De qualquer forma, é a questão da construção discursiva feita pelo sujei­to que interessa destacar. Para esclarecer sua postura metodológica, Vignaux faz, constantemente, ao longo de sua obra VArgumentation: essai d ’une logi- que discursive (10), várias comparações buscando desvelar não só o que é, mas, principalmente, como se processa essa ação constitutiva do sujeito. Para o autor, todo discurso argumentativo embute o projeto de um sujeito que fala de um determinado lugar - o que ele ocupa no seio de uma formação social - , mas tal ação é delimitada pelo auditório a quem ele - o sujeito - se dirige e ao qual ele quer convencer, se não da verdade de suas idéias, ao menos da jus­teza delas.

Isso significa que as representações sociais que permeiam e constituem nossa ideologia são basicamente as circulantes e atuantes no meio social em que vivemos. Tal fato levou alguns filósofos e lingüistas a falar em ilusão dis­cursiva do sujeito; ou seja, o sujeito pensa inovar discursivamente, produzir representações originais, ter voz própria, mas, na verdade, ele apenas repro­duz representações vigentes em seu meio.

A diferença de postura filosófica e metodológica comparada com a que vi­gia nas décadas de 1960 e 1970 (época do apogeu do estruturalismo lingüístico), portanto, é enorme. O que parece simples diferença de terminologia lingüística encerra, na verdade, outra postura filosófica, outra maneira de ver o mundo. O próprio Vignaux, ao finalizar sua obra e avaliar a importância de ter proposto um novo modelo metodológico para a análise dos textos argumentativos, apon­ta a inserção do sujeito como um dos pontos altos de sua contribuição: “Possam os estudos sobre argumentação reintroduzir um sujeito que eles tinham consi­derado até então apenas como uma existência passiva [grifo nosso] dentro do produto e das condições exteriores do produzir” (ibid., p.329).

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76 Direito e Argumentação - Parte 1

A questão da argumentação como construção de um projeto do sujeito implica, necessariamente, a questão da própria liberdade - o que reforça a noção de sujeito-agente - , pois lhe cabem as escolhas relativas ao objeto ou objetos de seu discurso e às operações necessárias para dar existência a eles, ou seja, para representá-los. Há, ainda, outro dado fundamental: tais repre­sentações devem prever um destinatário e as estratégias discursivas necessárias para envolvê-lo de tal forma que haja adesão do auditório. Nesse sentido, a re­tórica aristotélica continua atualíssima.

A teatralidade argumentativa

Antes de serem especificados objetos, ações, operações e processos envol­vidos na argumentação, será feita uma referência ao que parece a analogia fundamental da concepção de discurso argumentativo de Vignaux: a teatra­lidade da atividade discursiva, isto é, um sujeito desempenha para seu audi­tório, com intuito de envolvê-lo, uma mise en scène discursiva. Também para Grize (4), o discurso argumentativo se caracteriza pela teatralidade, pois o sujeito elabora um a esquematização e a representa diante de seu auditório. Isso significa a argumentação visar à eficácia e não à veracidade dos conheci­mentos. Visa à verossimilhança e não à comprovação de alguma verdade. Ela é de natureza retórica.

Dentro dessa analogia grizeana, o espectador também é um ator (agente) cuja atividade envolve três momentos: receber, concordar e aderir. Se receber implica um espectador disposto a reconstruir a esquematização, concordar pressupõe ausência de objeções, ao passo que aderir significa compartilhar, ou seja, o espectador se apropria da esquematização e a faz sua.

Parece fácil, agora, entender o conceito de lógica natural dado por Grize (ibid., p.65): a lógica entendida como “o estudo das operações lógico-discur- sivas que permitem construir e reconstruir uma esquematização”, ou seja, a lógica que preside a construção de um discurso argumentativo. Segundo Grize (apud 10, p.21), um estudo de lógica natural está a meio caminho en­tre um estudo estrutural e um estudo funcional concreto, ligado este aos pro­blemas de eficiência, criação de efeitos e atmosfera. Seria possível, pois, dizer que a lógica do discurso argumentativo é também retórica.

Todo texto argumentativo constrói uma esquematização e, para tanto, lança mão de esquemas lógicos, não havendo nele a preocupação com a ver­dade, mas com a verossimilhança. É um a lógica do sujeito em interação com seu auditório e com os próprios objetos discursivos construídos, entendidas

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como objetos as representações de m undo feitas pelo sujeito. É, pois, a lógica não-formal, cotidiana.

Talvez uma comparação ajude a entender o que restou afirmado: qual o objetivo maior de um ator? Apresentar a seu público uma peça - uma esque- matização - cuja construção é naturalmente lógica, mas apresentá-la de for­ma a envolvê-lo, seduzindo-o por meio de determinadas estratégias decor­rentes da própria ação do sujeito ao representar. Na verdade, o discurso argumentativo encerra jogos e estratagemas do sujeito, cuja representação e forma de representar estão indissoluvelmente imbricadas.

A atividade argumentativa - no sentido de teatralidade e construção de uma representação do m undo - busca aprisionar o leitor-espectador. A sen­sação de completude diante de uma peça bem representada e a sensação de assentimento que um texto argumentativo bem desenvolvido desperta são próximas. Como espectador ou leitor, pode-se, posteriormente à admiração que causa todo bom espetáculo, endossar idéias e teses representadas ou re­futá-las, buscando responder - ao menos de forma especulativa - com novas representações. No entanto, importa frisar que, independentemente da res­posta de adesão ou negação, houve reação; melhor dizendo, interação. Ainda mais, houve uma atividade estritamente retórica: um orador {ethos), diante de um auditório (pathos), buscou conduzi-lo a assentir com seu discurso (logos). Um ouvinte-leitor diante da esquematização apresentada busca, imbuído de suas próprias representações, responder às teses propostas.

Nesse sentido, convém notar que, conforme afirma Vignaux, toda argu­mentação responde a outra. Isso parece muito claro: os objetos das argum en­tações são, normalmente, assuntos polêmicos. Aliás, se verdades fossem, não haveria argumentações.

O fazer argumentativo

Isso posto, buscaremos, a partir de agora, entender os tipos de ações e operações dos quais o sujeito lança mão para construir seu projeto argum en­tativo. Buscaremos mais: os tipos de relação estabelecidos para o percurso previsto pelo orador permitir consecução e sucesso de seu projeto. A idéia de percurso é fundamental para refletir sobre a necessidade de um plano que conduza às metas: não há como escrever, sobretudo um texto argumentativo, contando apenas com a inspiração. O texto argumentativo é, antes de tudo, uma construção lógica, racional, até quando quer persuadir. Cumpre-nos, pois, observar-lhe o tipo de lógica subjacente.

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Vignaux procura desvelar a essência do fazer argumentativo, destacando- lhe os elementos constituintes: objetos, relações entre objetos, determinações, modalidades e procedimentos de ordem. Escolhido o objeto do discurso, o sujeito passará a executar duas atividades: a de construir os objetos escolhi­dos, definindo-os, qualificando-os, fazendo-os agir, o que já implica atores colocados em relações espaço-temporais; e a de operar relações entre eles. Tais relações serão de natureza lógica ou retórica.

As operações de natureza lógica envolvem, por exemplo, uso de asserções, negações, inclusão ou exclusão, implicação, complementação, analogia. Já as operações de natureza retórica dizem respeito às modalidades do certo, do provável, do possível. Em síntese, se a ação de construir se relaciona ao dizer do sujeito, a ação de operar se relaciona a seu julgar, a sua valoração.

O objeto é aquilo de que o discurso argumentativo fala. Em uma perspec­tiva retórica, poder-se-ia associá-lo à proposição, ou seja, ao resumo claro e breve do assunto que será tratado pelo sujeito e, geralmente, inicia o texto. Todavia, segundo Vignaux, o objeto não pode ser confundido, como costuma acontecer, com o tema, a tese. O texto de José Cardozo (3), objeto de nossa análise, fala, por exemplo, sobre súmulas vinculantes, mas o tema vai além, como será visto adiante.

Obviamente, um texto, embora tenha um objeto principal, trabalha com vários objetos discursivos, e observar como são designados e qualificados é uma forma de buscar as marcas do sujeito no texto. Kerbrat-Orecchioni (5), lingüista francesa, denomina essas marcas de subjetivemos, e é sempre conve­niente observar como determinadas escolhas lexicais - sobretudo referentes a verbos, adjetivos, substantivos, advérbios e alguns pronomes - podem tra­duzir uma axiologia. Essa ação de escolher designações e qualificações por meio das quais o sujeito vai representando seus objetos para referenciar a rea­lidade, bem como a operação de relacioná-los, situando-os no tempo e no es­paço, Vignaux denomina determinação.

Já os procedimentos de ordem, que Vignaux reputa retóricos por excelên­cia, são as estratégias usadas pelo sujeito para privilegiar determinada ordem que lhe permite melhor conduzir seu auditório. É por meio da ordem, arbi­trada pelo sujeito, que alguns objetos são mais explorados, outros ficam la­tentes, alguns são recuperados. De fato, a ordem é fundamental para torneios e meneios, ou seja, para dar ao discurso a modulação prevista pelo autor, para os jogos do sujeito, cujo intuito é conseguir a adesão de seu leitor. Essas ações e operações vão sendo tecidas no e pelo discurso, e a imagem da atividade discursiva, como uma rede de relações, é bastante elucidativa: relações do dis­

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curso com seu próprio objeto, do discurso com seu sujeito, do discurso com seu destinatário, do discurso com a realidade social.

Merece destaque a atenção dada por Vignaux às relações estabelecidas entre os pares de proposições sucessivas, as relações lógicas locais, ou diádi- cas, fundamentais para entender por que alguns textos argumentativos pare­cem tão cerrados, tão irrefutáveis. Ou seja, quando está o ouvinte-leitor re­construindo a esquematização proposta pelo sujeito, não encontra brechas em seu dizer; é como se o percurso proposto não permitisse desvios interpre- tativos. Embora seja da natureza da argumentação ser dialética, contra-argu- mentável, a verossimilhança de um texto parece ser diretamente proporcio­nal à dificuldade de refutá-lo. Certamente o uso das operações lógicas locais é essencial para isso.

A seguir algumas operações lógicas locais citadas por Vignaux:

• (Causa) Conseqüência - Essa relação pode ser explicada, segundo o senso comum, pela expressão isto leva àquilo. Há, por exemplo, no texto de Cardozo: “Às vezes, a busca desesperada dos meios para a solução de um problema leva a que se perca a visão maior dos fins que animam a solução do próprio problema”; “Nem sempre as boas intenções geram boas conse­qüências” (terceiro parágrafo).

• Incompatibilidade - Ocorre quando duas noções não podem coexistir no mesmo domínio. A relação de incompatibilidade supõe as de oposição e exclusão: “Não há, pois, como pretender agilizar as prestações jurisdicio- nais eliminando a finalidade maior a ser alcançada por essa própria agili­zação” (penúltimo parágrafo). No contexto, da forma como a questão foi colocada, a agilização da prestação jurisdicional é incompatível com a fi­nalidade da própria agilização. Em suma: a priorização dos meios exclui, é incompatível com os fins desejáveis.

• Implicação - E o tipo de relação definida pelos lógicos da seguinte forma: se x contém necessariamente y, sempre que ocorrer x, teremos y: “Por ela [proposta de súmulas vinculantes], o Supremo Tribunal Federal [...], po­derá fixar regras gerais determinando o alcance e o sentido das nossas leis, de modo que todos os magistrados estejam sempre obrigados a segui-las” (quarto parágrafo).

• Oposição - Há diferentes tipos de oposição: por natureza, identidade, pro­priedade, conseqüências: “É sabido que a interpretação de uma lei não é um ato de técnica jurídica pura e neutra, mas sim uma verdadeira opção iníluen-

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ciada por fatores ideológicos, culturais e políticos” (oitavo parágrafo); “A rapi­dez decisória de um litígio não é um fim, mas um meio” (quinto parágrafo). Equivalência - Dois termos de um a relação são colocados como equiva­lentes, até mesmo idênticos, se produzem os mesmos efeitos, as mesmas conseqüências, ou o sujeito os define como de mesma natureza, dotados de propriedades próximas ou idênticas: “Ao se tentar salvar a árvore, ani­quila-se a floresta. [...] É o que poderá ocorrer com a reforma do Poder Ju­diciário, se for acolhida pelo Senado a proposta de súmulas [vinculantes]” (terceiro e quarto parágrafos). Há uma equivalência, embora metafórica, entre as duas ações relacionadas como causa e conseqüência. Adotar a pro­posta das súmulas vinculantes eqüivale a destruir a Reforma do Judiciário. Salvar-se-á uma proposta (= uma árvore) em detrimento do todo, da plu­ralidade, da floresta, da própria democracia.União - Processo de assimilação, que deve ser entendido mais como iden­tificação do que como mera adição: “A rapidez decisória de um litígio, na­turalmente, não é um fim, mas um meio. Um meio para que a ofensa ao direito não se perpetue e para que a vontade da maioria, expressa pela lei, seja assegurada. Um meio, enfim, para a manutenção da democracia” (quinto parágrafo).Hierarquia - Essa relação marca a desigualdade entre dois objetos e apon­ta, conseqüentemente, a superioridade de um sobre outro. Em geral, essa superioridade é dada em termos da importância, da natureza, do papel exercido: “Seu poder será soberano, pois aos juizes da Corte Suprema ca­berá dizer para a sociedade, de modo genérico, o que afirma a lei. Suas pa­lavras valerão mais do que as palavras votadas e aprovadas pelos represen­tantes eleitos pelo povo (Poder Legislativo)” (sexto parágrafo).Analogias e comparações - Analogias e comparações são também aponta­das por Vignaux entre as operações lógicas locais. Dizemos também por­que tanto Aristóteles quanto Perelman as destacam como excelentes recur­sos argumentativos. E bastante difundida a opinião de um texto rico em analogias e comparações ser poético. Contudo, é interessante verificar a analogia perfeita - aquela na qual a dupla proporção se explicita - repro­duzir um raciocínio lógico-matemático cuja expressão formal a regra de três subsume: “Ao se tentar salvar a árvore, aniquila-se a floresta” (terceiro parágrafo). E perceptível, entre tais proposições, ter sido estabelecida uma relação lógica de causa-conseqüência, mas parece inegável que expressar tal relação de forma metafórica dá mais força ao dito. Na verdade, existe aí

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uma dupla comparação que pode revelar a construção de uma analogia; o que simbolizam a árvore e a floresta? Voltaremos a essa questão oportuna­mente. Embora ligeiramente modificada, a mesma analogia fecha o texto, o que, no mínimo, indicia sua força lógico-retórica.

Lembrando sempre que a lógica natural, embora siga esquemas lógicos - como alguns aqui já especificados - , não tem compromisso com a verdade, Vignaux destaca que um bom argumento deve atender aos objetivos do sujeito e o encadeamento das proposições deve repousar sobre a relação fundamental que liga a conseqüência ao princípio. Dessa maneira, mesmo uma proposição te- nuemente verdadeira é legítima se introduz a verdade de sua conseqüência. Como exemplo, é possível citar a analogia anterior: salvar uma árvore não re­dundaria, verdadeiramente, em destruir uma floresta (aliás, as campanhas eco­lógicas reforçam o contrário), mas nesse texto a imagem é procedente, é verossí­mil: sintetiza a verdade (passou a ser uma verdade discursiva).

Reconstruindo a esquematização

Observações

O sujeito, m unido de um projeto, constrói seu discurso representando-o de forma não só a permitir ao leitor reconstruí-lo, mas que, ao fazê-lo, assu­ma a tese que o outro quer passar. O discurso argumentativo é teatral, pois o sujeito, ao proceder a suas escolhas, ao designar os objetos, ao fazê-los agir, prioriza determinadas operações e determinada ordem: encobrirá o que não lhe interessa, redundará um argumento importante, deixará pistas para o lei­tor as preencher, recuperará o julgado relevante.

A noção de sujeito discursivo não é imune a controvérsias. As definições variam conforme a teoria assumida; e, se o rigor lingüístico obriga a distin­guir sujeito discursivo (interno) de sujeito comunicacional (externo), a expe­riência didática permite afirmar que, sobretudo em textos jornalísticos argu- mentativos, a tendência do leitor comum é identificá-los. A questão se adensa ao se reportar o fato de, mesmo entre lingüistas, além da variabilidade, não haver uniformidade no uso de designações. Tal oscilação também se estende à nomenclatura referente ao receptor.

Charaudeau e Maingueneau (2, p.459) esclarecem a distinção entre locu­tor externo e interno ao discurso se estribar no pressuposto de todo sujeito falante ter dupla identidade, um a social e uma discursiva. Os autores pro­põem um quadro no qual situam as diferentes designações usadas em relação

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ao sujcito-falante (emissor, autor, orador, enunciador) e também em relação ao sujeito-ouvinte (receptor, leitor, auditório, co-enunciador).

Sujeito Posição de produção Posição de recepção

Externo (ao discurso) Emissor Receptor

Locutor Interlocutor

Alocutário

Autor OuvinteLeitor

Interno (ao discurso) Enunciador DestinatárioAlocutárioCo-enunciador

Narrador Narratário

Autor modelo Leitor modelo

O quadro organiza e situa designações que no dia-a-dia se imiscuem e permite ao leitor comum entender a pertinência de sua confusão, pois, se o sujeito discursivo depende do sujeito social, a recíproca também é verdadei­ra, ou seja, não há sujeito social que não seja também um sujeito discursivo; o homem e sua linguagem estão constantemente imbricados. Isso talvez ex­plique por que, para o leitor comum, a distinção entre sujeito discursivo e so­cial não é relevante.

A análise

Se, como visto, os objetos são os tópicos selecionados pelo sujeito discur­sivo, convém notar, desde o título, não só o objeto principal já estar coloca­do, mas também a tese já se encontrar anunciada, pois o articulista é contra a adoção das súmulas vinculantes na reforma do Judiciário em andamento: “Pela reforma sem súmulas vinculantes”.

Interessante no primeiro parágrafo é a forma naturalmente lógica de construí-lo: o sujeito emite um juízo de valor sobre a reforma do Judiciário e, em seguida, passa a justificá-lo. A reforma ser incipiente e pouco concreta, as designações (“m undo das preocupações”), qualificações (“abstrato”) e ver­bos escolhidos (“parece ter começado a sair”) revelam. O sujeito julgá-la tar­dia é uma valoração que o uso do modalizador (“finalmente”) deixa transpa­recer. As várias ações dos envolvidos com a reforma são taxadas de “iniciativas”, e, entre elas, o sujeito seleciona e destaca (“em especial”) a que será o objeto central de sua tese: a proposta do senador José Jorge.

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Mais interessante ainda é notar o próprio articulista presidir a comissão da reforma na Câmara. Em termos de construção do ethos, isso significa o su­jeito, constituído no discurso, ter autoridade para opinar. Merece credibilidade. De tal aspecto, é ainda bastante producente o sujeito elogiar aquele que re­presenta (como veremos a seguir) seu adversário, cuja tese combate. Não é outra a estratégia do sujeito, ao abrir o segundo parágrafo: de forma perem p­tória (“não tenho dúvidas”) elogia a intenção de seu opositor (“foi a melhor possível”) ao apresentar a proposta de emenda constitucional.

Citar, na seqüência, as atividades executadas pelo opositor é uma opera­ção lógica por meio da qual se justifica o elogio feito, pois tais ações são valo­radas positivamente (o senador definiu parâmetros “objetivos” e “ainda” apon­tou um sistema mais “transparente e eficiente”), o que pode ser comprovado pelo uso dos adjetivos axiológicos, os subjetivemas, segundo Orecchioni.

Se, conforme a retórica clássica, o exórdio é importante não só para o ora­dor dizer a que veio, mas principalmente por ser o momento de conquistar a be­nevolência do auditório (captatio benevolentiae), a estratégia é eficaz: é crível um orador que consegue destacar as boas intenções e algumas ações produtivas de seu adversário. A esse respeito, as afirmações de Vignaux são elucidativas:

Não é sem razão que a tradição retórica tem insistido sobre o exórdio, a intro­dução do discurso, que tem por meta captar, de imediato, o interesse do audi­tório. É nesse momento discursivo que o sujeito tentará criar, por exemplo, a comunhão de valores que ele deseja repartir com o seu auditório, ou ainda, éo momento em que ele insistirá sobre a sua competência, sua imparcialidade, sua honestidade, sua boa vontade. (10, p. 159)

Importa ainda notar, em termos de operações lógico-discursivas, os dois parágrafos iniciais encerrarem praticamente raciocínios silogísticos: apresen­tam a conclusão (a conseqüência), a regra mais geral e, a seguir, a especificam com dados singulares (as causas). Aliás, se não nos anteciparmos, essa ordem lógica reaparece ao longo do texto.

Elogiado o adversário, anunciado o estado da questão (a situação), tendo buscado a benevolência do auditório, o sujeito pode iniciar a desconstrução da tese adversária e dizer de fato a que veio. É o outro lado da questão, um ra­ciocínio de oposição que se anuncia no terceiro parágrafo. Requer, pois, cau­tela, diplomacia. Nesse sentido, o uso do modalizador (“nem sempre”) é estra­tégico e fundamental, permitindo ao sujeito negar - sem se comprometer - o discurso do senso comum segundo o qual boas intenções geram boas conse­qüências, além de permitir desmerecer o adversário de forma polida. Seria

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agressivo, por exemplo, não modalizar, o que implicaria afirmar que boas in­tenções nunca geram boas conseqüências. Contudo, como a expressão “boas intenções” reporta, de imediato, à proposta do adversário (“a intenção do se­nador foi a melhor possível”), seria incoerente denegar de forma taxativa o elogio já feito. Sutileza combina com diplomacia.

E a boa intenção do senador - a proposta apresentada ao Senado - vai ser, a partir de agora, rejeitada; e o sujeito passará a explicar o porquê de tal re­jeição. Coincidentemente, as operações diádicas sucessivas vão se tornar mais presentes e, por vezes, até superpostas, tornando o texto cerrado. Por meio de relações lógicas de causa e conseqüência, uma negada (boas ações não geram boas conseqüências), outra afirmada (a busca desesperada dos meios leva a que se perca a visão dos fins), o sujeito vai desvelando sua posição a respeito do objeto selecionado.

Há ainda, nesse trecho, um raciocínio de dupla equivalência - base da analogia matemática - , pois, se a busca desesperada dos meios eqüivale às boas intenções, a perda da visão dos fins corresponde às más conseqüências. É fundamental frisar o papel do adjetivo desesperada, pois essa escolha do su­jeito é responsável pela veracidade da asserção em tela: só buscas desespera­das ofuscam os fins que as motivaram.

Quando o autor, no final do terceiro parágrafo, afirma “ao se tentar sal­var a árvore, aniquila-se a floresta”, é óbvio ele ter estabelecido uma relação também não-verdadeira, mas bastante convincente e persuasiva; e tal analo­gia fisga, racional e emotivamente, o leitor. Racionalmente, dada a própria es­trutura lógica, inerente à analogia (a/b:c/d); emocionalmente, em decorrên­cia da figurativização ou metáfora com a qual a estrutura foi preenchida. Talvez seja essa a razão pela qual as analogias metafóricas são construções fortes ou enérgicas, como diria Aristóteles.

Se de um lado foi estabelecida uma equivalência entre a salvação da árvore e a busca desesperada dos meios, na outra ponta estabeleceu-se equivalência en­tre a destruição da floresta e a cegueira quanto aos fins. Portanto, se só os meios preocupam, se a busca desesperada é salvar a árvore, muito provavelmente será esquecida a floresta, o todo maior, os fins a que se deve chegar. Obviamente, a síntese que a analogia subsume encerra uma operação lógica de implicação e conseqüência1: salvar a árvore implica aniquilar a floresta. Obviamente, tam ­bém, tal analogia ganhará outras relações e significações ao longo do texto.

1 É por vezes bastante difícil distinguir implicação de conseqüência, pois, como dito, a lógica ar- gumentativa não c formal.

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A Mise en Scène Argumentativa 85

É o que ocorre quando o sujeito discursivo estabelece uma relação de identidade entre a analogia criada e a reforma do Judiciário, se adotada a pro­posta das súmulas vinculantes. O quarto parágrafo trabalha, partindo dessa identidade, basicamente, com implicações sucessivas (a conseqüência de uma proposição pode ser vista como causa de outra, cuja conseqüência pode ser causa da outra). Tais implicações vão, em um crescendo, formulando hipóte­ses das conseqüências negativas que a adoção das súmulas vinculantes impli­cará: o Supremo Tribunal Federal fixará regras interpretativas para nossas leis; os magistrados não poderão discordar dessas regras superiores; as inter­pretações de matérias controvertidas serão unificadas.

Quando o sujeito, ao fechar o quarto parágrafo, revela que a pretensão de tal proposta é a agilização da Justiça, torna-se evidente para o leitor a oposi­ção à proposta das súmulas vinculantes, cuja adoção representará uma busca desesperada na qual a salvação dos meios levará à obliteração dos fins. Fica claro, também, que as novas competências atribuídas ao Supremo Tribunal Federal - STF (observemos os grifos no parágrafo precedente) conferem a esse órgão um caráter despótico.

O quinto parágrafo inicia de forma altamente retórica, pois interpelar o auditório e se identificar com ele (“perguntemos”) favorece, como afirma Perelman, a comunhão de orador e auditório. Para responder à pergunta por ele formulada, o sujeito estabelece, inicialmente, uma relação de não-identi- dade, ou seja, destaca o que a agilidade decisória não é (“A rapidez decisória de um litígio não é um fim”) para, a seguir - estrategicamente - , acentuar o que ela é, ou seja, criar as relações lógicas de identidade. Negar alguns aspec­tos, para em seguida, por oposição, destacar outros é expediente lógico-retó- rico eficaz, cuja força se expressa em construções do tipo: tal coisa não é isto, mas é isto e isto e mais aquilo.

Sendo a agilização do Judiciário um meio, resta saber para qual fim. Dito de outro modo, se a analogia com a árvore permitiu identificá-la com os meios e estes com as súmulas vinculantes, resta saber como as informações desse parágrafo permitem preencher o outro termo da analogia, ou seja, sa­ber o que a floresta simboliza. Se a árvore está para a floresta assim como os meios estão para os fins, ou seja, árvore/floresta:meios/fins; se os meios são identificados com as súmulas vinculantes, e os fins, com a democracia, então: árvore/floresta:súmulas vinculantes/democracia. Curioso é a analogia assim constituída expressar a equivalência proposta pelos adversários, mas refuta­da pelo sujeito.

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86 Direito e Argumentação - Parte 1

De qualquer forma, apenas no sexto parágrafo o sujeito explicita sua tese: a proposta das súmulas vinculantes é equivocada por nela valorizarem-se os meios e olvidarem-se os fins; salva-se a árvore em detrimento da floresta.

Se a analogia já permitira associar, de um lado, a salvação da árvore à adoção das súmulas (opinião dos adversários) e, de outro, o aniquilamento da floresta à destruição da democracia (opinião do articulista), o sujeito vai, a partir desse momento, defender sua posição, m ostrando todas as implica­ções e conseqüências do equ ívoco de se adotarem as súmulas vinculantes.

É bastante elucidativo observarmos, nos sexto e sétimo parágrafos, como as escolhas lexicais vão reiterando o caráter despótico que a adoção das súm u­las conferirá ao STF, redundando implicações e informações já colocadas no quarto parágrafo: “A cú p u la do Judiciário f ix a r á as n o rm a s que caberá a todos

obedecer, sem p o d e r de contestação e de revisão ; seu poder [o do s t f ] será sobe­

rano; a lei será d ita d a pe lo s t f ” e outras. Convém observar que toda língua é redundante e insistir conscientemente em determinadas informações é proce­dimento eficaz, sobretudo em discursos argumentativos.

Não é sem razão que, no fechamento do sexto parágrafo, o sujeito discur­sivo, por comparação, opera com relações de hierarquia, as quais, na realida­de, subsumem redundantemente o já dito ao longo dos parágrafos anterio­res: as palavras dos juizes da Corte Suprema valerão m a is do que as dos representantes do povo. Bem, se é sabido o estado democrático de direito se fundar em autonomia e equilíbrio dos três poderes, tal valorização do Judi­ciário compromete a essência da democracia. Aliás, a considerar o poder que a adoção das súmulas conferirá ao Supremo - conforme a representação construída pelo sujeito - , fica para o leitor a sensação de que tal adoção con­figurará a “ditadura do s t f ”.

Pertinente é lembrar, aqui, a concepção de Vignaux e Grize quanto à tea­tralidade inerente à argumentação, ou seja, a argumentação como a m ise en

scène de um sujeito que busca o melhor desempenho diante de seus leitores e espectadores para aceitarem, acatarem e se apropriarem de sua representa­ção, isto é, de sua opinião. Vale sempre, portanto, lançar mão de operações ló­gicas e retóricas para convencimento e persuasão; valem recorrências, insis­tências e interferências do sujeito em seu discurso.

Começar, por exemplo, no oitavo parágrafo, negando um possível exa­gero que poderia surgir no espírito do leitor, pois as implicações anteriores atingiram um ápice (os ministros ditarão a lei a seu bel-prazer), é um a m a­neira estratégica de aplacar qualquer desconfiança do leitor (considerando o texto um lugar de interação). Modalizar sua assertiva com um s in cera ­

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A Mise en Scène Argumentativa 87

mente pode significar confie em mim. Reforçar de modo não pessoal (“é sa­bido que”) a questão da interpretação, excluindo pela negação (“interpre­tar não é técnica jurídica pura e neutra”) para, na seqüência, incluir pela afirmação (“mas sim uma verdadeira opção”), é um percurso naturalm en­te lógico para reforçar a conclusão de toda interpretação ser valorativa, im ­plicar escolhas.

Afinal, cabe perguntar a quem o sujeito/orador quer convencer, a quem quer persuadir. Em outras palavras: cabe perguntar qual é seu auditório. Talvez o conceito de argumentação dado por Vignaux ajude a resolver a ques­tão:

Eu definirei então o discurso argumentativo como aquele que, a partir de um

lugar determinado de um orador no seio de uma formação social, marca uma

posição desse orador sobre um sujeito ou conjunto de sujeitos; esta posição re­

velará diretamente, não diretamente ou mesmo disfarçadamente, o lugar do orador dentro da formação social considerada. Esta posição é sempre determi­nada por um outro, que o autor pode convocar ou não, mas que intervém como referencial delimitativo. (10, p.58)

Fica claro todo sujeito ocupar determinado lugar social, e seu discurso mostrará, direta ou indiretamente, esse lugar dentro de determinada forma­ção social. Fica claro, ainda, a linguagem ser essencialmente dialógica: nosso discurso é sempre dirigido para o outro e é por ele delimitado, podendo o ou­tro estar nele convocado ou não.

Portanto, se o Congresso Nacional (Senado e Câmara dos Deputados) promulgar as súmulas vinculantes, designadas como verdadeiras leis interpre- tativas, a outra conclusão óbvia a que se chega é que, ironicamente, o próprio Poder Legislativo - representante lídimo da voz e da vontade do povo - abri­rá mão dessa representatividade. Valerá a interpretação do s t f , refletindo ou não a intenção do legislador.

Se for recuperada a informação de ser o autor do texto um representan­te do Legislativo (e seu discurso traz as marcas do lugar social de onde ele fala), pode-se afirmar que o texto prevê dois tipos de auditório: o universal — leitores do jornal; e o particular - representantes do povo na Câmara e no Senado, estes em especial. Aliás, é possível afirmar, considerando a definição de Vignaux, o auditório particular ter sido convocado no parágrafo final.

Diante de todas as implicações e conseqüências negativas aventadas, o modo categórico pelo qual o penúltim o parágrafo conclui a argumentação

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88 Direito e Argumentação - Parte 1

(“não há, pois, como agilizar”) reforça a tese central do texto, ou seja, a ques­tão da incompatibilidade entre adoção de súmulas e democracia. Obvia­mente, como toda afirmação requer uma confirmação, o sujeito redunda e recupera alguns argumentos, expandindo-os, ou explicitando o que ficara a cargo do leitor inferir, por exemplo, a questão do equilíbrio dos poderes, ou melhor, do desequilíbrio (o verbo escolhido é destroçado).

À proposição que levanta a hipótese de a agilização do Judiciário e a de­mocracia poderem ser compatíveis (“Há, com certeza, outros meios para que a vontade democrática possa ser”) seguem-se proposições que, ao excluírem as conseqüências negativas (“sem que o equilíbrio seja”, ”e sem que”), recu­peram, na verdade, o argumento básico do autor: a agilização deve ser feita, mas não da forma equivocada proposta.

Chega-se, assim, ao parágrafo final, que a retórica clássica denomina pe- roração e, normalmente, representa uma dor de cabeça para alguns, cuja queixa comum é de nem sempre conseguirem fechar seus textos satisfatoria­mente. Também quanto a esse aspecto, o texto de Cardozo tem muito a ensi­nar: é um fecho que apela ao bom senso do adversário (“medite cuidadosa­mente”), ressaltando-lhe a responsabilidade (“importante decisão”), sem deixar, contudo, de alertá-lo (“E não aniquile a floresta ao pretender salvar a árvore”). É um fecho que fala à razão e à emoção; e a recuperação da analo­gia - síntese imagética da tese do autor - é o último movimento estratégico da mise en scène representada pelo sujeito.

Portanto, parece só restar aderir e aplaudi-lo! Pelo menos, até que sejam reconstruídas outras representações de outros sujeitos para os quais “salvar a árvore não implica aniquilar a floresta” e, fundamentalmente, que tais repre­sentações envolvam e convençam.

Palavras finais

Alguns aspectos da teoria de Vignaux e Grize, conhecida como lógica na­tural, merecem ser aqui reiterados. O primeiro deles é a visão do fazer argu­mentativo como uma mise en scène desempenhada pelo sujeito com o objeti­vo de o destinatário, ao endossar a representação discursiva, endossar a tese subjacente.

Desse aspecto, toda argumentação subsume um projeto de dizer e julgar, ou seja, organiza-se como um a esquematização cuja propriedade de conven­cimento e persuasão depende das operações lógico-retóricas realizadas pelo sujeito. E é justamente com relação às operações lógicas que a teoria de

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A Mise en Scène Argumentativa 89

Vignaux parece reveladora, sobretudo quando mostra como o encadeamen- to entre pares de proposições sucessivas reproduz, de forma natural, alguns esquemas da lógica formal. São as relações diádicas.

Bastante interessante é notar a lógica inerente às relações diádicas decor­rer, muitas vezes, do fato de elas trabalharem essencialmente com o elo prin- cípio-conseqüência. Há, por exemplo, a própria relação causa-conseqüência, (in)compatibilidade-conseqüência, implicação-conseqüência, equivalência- conseqüência. O próprio raciocínio analógico se estriba, como visto, em uma relação lógico-matemática, de dupla equivalência, possível de ser usada como premissa para uma conclusão.

O caráter de construção cerrada que a princípio toda boa argumentação apresenta deve-se fundamentalmente a seqüências de encadeamentos lógicos, que vedam as brechas para questionamentos e dúvidas do leitor. A própria questão da ordem, que Vignaux recupera da retórica aristotélica, bem como a questão das escolhas lexicais, que indiciam subjetividade e conseqüente valo- ração do sujeito, contribuem para envolvimento e persuasão do leitor.

ANEXO

Pela reforma sem súmulas vinculantes

A reforma do Poder Judiciário finalmente parece ter começado a sair do abstrato mundo das boas preocupações. As várias iniciativas tomadas pelo Ministério da Justiça e pela comissão especial criada pela Câmara dos Depu­tados, e em especial o parecer apresentado pelo senador José Jorge (PFL-PE) sobre a proposta de emenda constitucional que trata da matéria, na Comissão de Justiça do Senado Federal, recolocaram a discussão na ordem do dia.

Não tenho dúvida de que a intenção do senador ao apresentar essa m a­nifestação foi a melhor possível. Acolheu a proposta de controle externo da magistratura, definiu parâmetros objetivos para impedir que juizes exerçam a advocacia imediatamente após suas aposentadorias e ainda apontou diver­sas regras para a busca de um sistema de prestação jurisdicional mais trans­parente e eficiente para o Estado.

Todavia a vida tem nos ensinado que nem sempre as boas intenções geram boas conseqüências. Às vezes, a busca desesperada dos meios para a solução de um problema leva a que se perca a visão maior dos fins que animam a solução do próprio problema. Ao se tentar salvar a árvore, aniquila-se a floresta.

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90 Direito e Argumentação - Parte 1

É o que poderá ocorrer com a reforma do Poder Judiciário, se for acolhi­da pelo Senado a proposta de súmulas sugerida no parecer do senador Jorge. Por ela, o Supremo Tribunal Federal, consolidando sua posição interpretati- va acerca de certas questões, poderá fixar regras gerais determinando o alcan­ce e o sentido das nossas leis, de modo que todos os magistrados estejam sempre obrigados a segui-las. Não poderão mais discordar dessas “ordens su­periores”, mesmo que as reputem erradas ou tenham novos argumentos para questioná-las. Com isso, pretende-se unificar para todo o país as interpreta­ções legais de matérias controvertidas, agilizando as decisões de litígios.

Mas perguntemos: para que se quer um Judiciário mais ágil? A rapidez decisória de um litígio, naturalmente, não é um fim, mas um meio. Um meio para que a ofensa ao direito não se perpetue e para que a vontade da maio­ria, expressa pela lei, seja assegurada. Um meio, enfim, para a manutenção da democracia.

É na ausência dessa compreensão que reside o equívoco da proposta das súmulas vinculantes. Com a sua adoção, a pretexto de agilizar a prestação ju- risdicional, estar-se-á atribuindo à cúpula do Judiciário, constituída por m a­gistrados não eleitos pelo povo, e vitalícios, o poder de fixar, em situação su­perior ou no mínimo equivalente à dos legisladores, regras interpretativas genéricas que a todos caberá obedecer, sem contestação e sem poder de revi­são, já que apenas por esses mesmos magistrados é que poderão ser revistas. Seu poder será soberano, pois aos juizes da Corte Suprema caberá dizer para a sociedade, de modo genérico, o que afirma a lei. Suas palavras valerão mais do que as palavras votadas e aprovadas pelos representantes eleitos pelo povo (Poder Legislativo).

Afinal, aos parlamentares apenas caberá produzir a “lei” no seu sentido formal. No seu sentido “real”, no seu sentido que tem valor efetivo e vinculan- te, a lei será ditada pelo STF sempre que seus ministros entenderem que assim deva ser feito.

Não há nessa afirmação, sinceramente, nenhum exagero. É sabido que a in­terpretação de uma lei não é um ato de técnica jurídica pura e neutra, mas sim uma verdadeira opção influenciada por fatores ideológicos, culturais e políti­cos. Interpretar, portanto, é sempre uma escolha valorativa feita pelo intérpre­te a partir dos vários sentidos possíveis de uma norma legislativa. E é na inter­pretação que se fixa o conteúdo do que de fato deve ser respeitado por todos.

Se assim é, se vier o Congresso a atribuir à cúpula do Judiciário o poder de promulgação dessas verdadeiras leis interpretativas, a que se convencio­nou chamar de súmulas vinculantes, estará retirando do povo o poder de de­

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A Mise en Scène Argumentativa 91

finir, por seus representantes, o sentido e o alcance da sua própria vontade. A lei valerá genericamente não pelo que o Legislativo afirmou dentro da ordem jurídica, mas pelo que o Supremo disser, dentro das suas opções valorativas.

Não há, pois, como pretender agilizar as prestações jurisdicionais elimi­nando a finalidade maior a ser alcançada por essa própria agilização. Há, com certeza, outros meios para que a vontade democrática da população possa ser mantida por decisões ágeis do Judiciário, sem que o equilíbrio dos Poderes seja destroçado e sem que o poder das leis passe a ser emanado não mais do povo, como ordena a Constituição, mas de uns poucos homens togados não eleitos pelo voto direto de todos os brasileiros.

Sinceramente, espero que o Senado Federal medite cuidadosamente sobre a importante decisão que tomará quando apreciar o parecer do senador Jorge, nos próximos dias. E não aniquile a floresta ao pretender salvar a árvore.

José Eduardo Martins Cardozo, advogado, deputado federal pelo PT-SP, é o presidente da Comissão de Reforma do Judiciário da Câmara.

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parte 2 Prática Argumentativa no Direito

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L. A Construção do DramaNarrativo em Petições

Leda Corrêa

Pouca atenção tem recebido o texto narrativo nos estudos voltados à construção dos discursos jurídicos. Em uma breve reflexão, atribuímos essa escassez primeiro à relação sócio-histórica entre retórica e Direito; mais es­pecificamente entre a sofistica, de Protágoras, e o Direito. Em segundo lugar, ao proselitismo do m undo contemporâneo, que insiste cm reduzir a com u­nicação hum ana a relações de meio e fim, ou, ainda, a relações de perdas e ga­nhos, por meio da persuasão pura e simples.

Entendemos que os mais diferentes campos do saber social não se estru­turam apenas por essa face utilitária e finalística do uso da linguagem. O campo do Direito, em especial, constrói-se sobre outras bases sociais: ética, tradição e cultura. A narrativa é um tipo textual que torna mais evidente a busca por essas bases históricas e, portanto, abre-se com mais clareza à cons­trução dialógica entre o longo tempo de permanência dos sentidos e o curto tempo, que opera com sua transitoriedade.

A petição, m omento exordial das ações processuais, se organiza parcial­mente pelo texto narrativo. Eis uma das razões que a qualificam como gêne­ro discursivo de abertura da fase processual no Direito; ela apresenta o dra­ma e propõe soluções cabíveis à sua resolução pela narração dos fatos e pela formalização do pedido.

Em síntese, a compreensão do m undo pela narrativa recupera o caráter essencial e dramático das relações humanas que se esconde m udo por detrás das aparências.

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A Construção do Drama Narrativo em Petições 93

A tridimensionalidade da ação na linguagem e no Direito

No vasto campo do Direito, o vocábulo ação apresenta muitas acepções, das quais destacamos três por remeterem à tridimensionalidade temporal que configura o campo das interações jurídicas.

A primeira acepção designa “o direito que têm as pessoas (físicas ou ju rí­dicas) de dem andar ou pleitear em juízo, perante os tribunais, o que lhes per­tence ou o que lhes é devido” (7, p. 12-3). Nessa acepção, atribui-se relevo à ação em potência, ao que pode ou deve ser. Assim, ação apreende a perspec­tiva futura do acontecimento, ou seja, acontecível: como possibilidade ou de­ver de agir em juízo, assegurado aos cidadãos pelo Direito. Ainda sob essa definição, o vocábulo ação se funda no princípio manifestado na lei civil: “A todo direito corresponde uma ação que o assegura”.

A segunda acepção de ação designa “o próprio processo intentado em juízo para se pedir alguma coisa, de que se julga com direito, seja o restabe­lecimento de um a relação jurídica violada, seja para pedir o cum primento de um a obrigação” (ibid., p. 13). Nessa acepção, atribui-se relevo à ação em cur­so, intentada em juízo. Assim, o vocábulo apreende a perspectiva presente do acontecimento, isto é, o lugar de manifestação ou realização do próprio Direito.

As duas dimensões temporais da ação não se consubstanciam sem uma terceira: a do passado, doravante acontecido, sedimentado em códigos, juris­prudência e doutrinas, que orientam tanto o direito de demandar ou pleitear, quanto o próprio processo intentado em juízo.

No âmbito dos estudos lingüísticos, com a inserção e o desenvolvimento da Pragmática como disciplina que possibilita explicar o funcionamento da língua em contextos particulares de uso, a concepção de linguagem alinhavou igualmente as três dimensões temporais da ação, isto é, passou a ser concebi­da como uma forma de ação praticada por usuários da língua envolvidos em uma dada situação comunicativa. A ação do homem pela linguagem faz dele um ser capaz de manter e modificar os sentidos das coisas do m undo nas di­ferentes situações de discurso. Nesse processo de (inter)ação comunicativa o homem se constitui como pessoa - ser simultaneamente uno e plural, pois apresenta suas vicissitudes como indivíduo, que o singularizam frente aos de­mais homens, com os quais compartilha modos de ser e agir no m undo social.

Dessa perspectiva, também está presente na linguagem a tridimensiona­lidade espaço-temporal da ação, pois, ao usar o código lingüístico, o homem não apenas age intencionalmente sobre outro homem, mas com ele interage

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94 Direito e Argumentação - Parte 2

para manter, projetar e modificar estados de coisas na sociedade por um pon­to de vista individual.

De acordo com a teoria da ação, mudança é o fundamento que rege as ações. Entretanto nada muda fora da relação com o que se mantém sedimen­tado através dos tempos. Estranho paradoxo. Contudo, deixa de sê-lo se com­preendemos a inexorabilidade entre identidade e diferença. Dessa ótica, os sentidos só mudam na relação estabelecida com o dado, o já construído, o pas­sado que, na perspectiva textual-discursiva, apresenta-se sob a forma de m o­delos de representação social arquivados na memória humana. Tais modelos são compartilhados por grupos ou por toda a sociedade, ao mesmo tempo em que são reinterpretados pelo indivíduo nos processos de socialização.

Observemos, por exemplo, a palavra petição como forma substantivada do verbo pedir, que, por sua transitividade, necessita de complementos ver­bais: o teor do pedido (algo) e a pessoa a quem se destina o pedido (alguém). Nosso conhecimento da língua possibilita, nesse caso, a ativação dos actantes do verbo pedir: o que pede e a quem se pede; bem como possibilita ativar a existência do conteúdo do pedido. No campo do fazer jurídico, o uso do ter­mo petição implica uma seqüência orientada e ordenada de ações por uma ação maior ou macroação: a ação de pedir. Esqucmaticamente, tal seqüência é assim representada na Figura 1:

X = autor da ação;Y = advogado; Z = réu; W = juiz.

Figura 1

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A Construção do Drama Narrativo em Petições 95

Segundo Van Dijk (11), as seqüências de ações, em geral, são esquemas conceituais ou modelos mentais, designados scripts, aqui concebidos como micro-narrativas conceituais estereotipadas dos acontecimentos. Os scripts,

portanto, dizem respeito à dimensão passada dos acontecimentos, visto refle­tirem o processo sócio-cultural e ideológico sedimentado, além de orientarem a elaboração dos planos de ação futura a serem efetivados em língua, em uma dada situação comunicativa. Em outros termos, todo scrip t pressupõe uma or­dem social preestabelecida, passível de ser lentamente alterada no curso do tempo por interação dos diferentes grupos sociais. Essa ordenação social es­trutura as interações desenvolvidas no interior dos campos do saber social.

Nesse sentido, existência e estruturação do campo do Direito obedecem a esse tipo de ordenação social que, no plano conceituai, funciona como uma macro-narrativa, de ordem cultural ou macro-histórica, designada por Corrêa (2) m egascrip t. Esse conceito refere-se a um esquema mais amplo e genérico de organização social que ultrapassa os limites dos grupos sociais, estendendo-se a todo o campo social ou a toda a sociedade como princípio comum de organização sócio-histórica. Entendemos o m egascrip t como for­ma de conhecimento simbólico e pactuai que transita para além dos contra­tos sociais. Em termos valorativos, esse esquema, além de sua abrangência só- cio-cultural, compreende também o domínio da ética social.

Conforme Reale, as normas éticas não envolvem apenas um juízo de valor sobre as ações humanas, mas culminam “na escolha de uma diretriz obrigató­ria numa coletividade” (6, p.33). Essa diretriz, sendo expressão de um comple­xo processo de opções valorativas, resulta na imperatividade da via construída e escolhida pelos diferentes grupos sociais. A imperatividade, nesses termos, é a expressão do poder hegemônico, edifkado por um concerto polifônico de vo­zes e lugares sociais. Por tal razão, as normas, da perspectiva da ética, são for­mas especiais de contrato social, designadas por Corrêa (2) como pactos. Os pactos sociais são sócio-historicamente construídos e sedimentados.

No campo do Direito, por exemplo, a petição é o ato inaugural ou exor- dial de um processo mais amplo, que se apresenta como uma macro-narrati- va, cuja importância reside na conservação do pacto ou acordo in te r eives, ou, simplesmente, pacto de civilidade. Esse esquema m eg a scrip tu ra l está repre­sentado na Figura 2.

No referido esquema, é possível observar que seqüências de ações decor­rem da desmobilização do pacto, cuja finalidade mais importante é o resta­belecimento da normalidade, inscrita nas ações ordinárias e cotidianas dos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, a fase processual (penal e civil) do Direito

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96 Direito e Argumentação - Parte 2

Figura 2

caracteriza-se socialmente como evento ou acontecimento extraordinário, pois o andamento das ações processuais tem como objetivo o retorno ao equi­líbrio social na voz derradeira daquele que tem o poder de julgar - o juiz. Segundo Carnelutti (1, p.33), o processo serve, portanto, “para fazer que en­trem em juízo aqueles que não o têm”

O utro aspecto observável na Figura 2 é a natureza das ações possíveis de desencadear o processo penal ou civil. Certamente essa seara é complexa até mesmo para os especialistas em Direito; porém, do ponto de vista lingüísti­co, o vocábulo penal designa castigo ou punição aplicado a crimes ou deli­tos cometidos. Nesse sentido, crime e castigo são acontecimentos que m an­têm entre si estreita relação. Distinguem-se, sobremaneira, no plano temporal, pois o vocábulo crime marca a ruptura do pacto, m om ento no qual se dá o início do processo. Já os vocábulos castigo e pena marcam a retomada do pacto, m om ento no qual se dá o fim do processo. Há, de tal perspectiva, re­

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lação sinonímica entre as expressões processo criminal e processo penal, pois não deve haver crime sem penalização ou penalização sem crime. Roubar é crime, portanto aquele que pratica tal ação deve ser penalizado. Por exem­plo, no campo da política nacional, o lugar-comum “ele rouba, mas faz” é amplamente utilizado pelos cidadãos brasileiros desde os tempos do popu- lismo, quando fazia-se referência ao político que rouba, mas executa a con­tento seu ofício público.

Nós brasileiros sabemos que, historicamente, o preenchimento semânti­co do pronom e ele é atribuído, de preferência, a dois personagens da história política nacional. Entretanto, interessa compreender que, nesse campo de in­teração, salvo raras exceções, o crime (roubo, no exemplo) não m antém liga­ção estreita com a pena, pois, em geral, nas representações sociais sobre nos­sos políticos, prevalece a idéia de serem corruptos e nunca ou quase nunca sofrerem punições. Por razões históricas, a esse enunciado segue-se outro, igualmente usado quando se faz necessária a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar crimes nessa esfera de ações sociais: “Tudo acaba em pizza”. É voz geral do povo, que sabe e projeta o final do processo com isen­ção da pena devida aos criminosos.

Ainda da perspectiva lingüística, o vocábulo civil diz respeito ao cidadão considerado em suas circunstâncias particulares dentro da sociedade, no in­terior da qual assume direitos e deveres. Nas interações civis, não raro, sur­gem alterações de ânimo ou discórdia, ou, ainda, conflitos de interesses entre os cidadãos, que podem culminar ou não na prática criminosa. Segundo Carnelutti (1, p.26), o processo civil intervém “porque ainda não surgiu o de­lito que reclama a pena”. Ainda, para esse autor, “a situação diante da qual in­tervém (o processo civil) leva o nome de lide ou litígio” (ibid. p.26).

Assim, a lide contém o crime em estado de latência. Por essa razão, lide e delito são dois índices correlatos de não-civilidade. A diferença é na lide ha­ver perigo iminente e no delito, dano. É preciso considerar, todavia, o proces­so civil poder assumir natureza preventiva ou contenciosa; nesta, opera-se com o dano, naquela, com o perigo iminente.

O caráter tridimensional da ação da linguagem, portanto, viabiliza a co­municação humana, pois, para agir no presente e projetar o futuro, necessá­ria é a recorrência a modelos mentais de representação social (megascripts e scripts). Tais modelos, todavia, não são estáticos, por orientarem a produção textual-discursiva presente e serem lenta e gradativamente por ela modifica­dos. De forma análoga, a projeção futura da ação pela linguagem e seus efei­tos sociais mais fecundos dependem da resultante da relação dialógica entre

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acontecido (passado) e acontecimento (presente), pois só se projeta a dim en­são do que ficou por fazer pelo constante diálogo entre as vozes do passado - cristalizadas na forma de modelos de representação generalizantes e específi­cos - e o sujeito situado no presente. Nesse sentido, o acontecível - perspec­tiva futura da ação - é a via das projeções do sujeito pela qual ele cria possi­bilidades para transformar, paulatinamente, o m undo a seu redor.

Contexto e interação

Toda ação implica interação de sujeitos contextualmente situados. Estar situado pode ser entendido de duas perspectivas: local e global. O contexto local é o espaço da ocorrência efetiva das interações sociais. Uma audiência no fórum, uma aula ou uma consulta médica são alguns exemplos da dim en­são social na perspectiva localizada do contexto. O contexto global, por sua vez, é o espaço organizado por campos de interação social. Segundo Thompson (9), esses campos são formados por espaços institucionais e não-institucio- nais. Tais espaços, sobretudo os institucionais, apresentam forte estrutura hierárquica de organização do poder.

Interações efetivadas em um dado contexto local ocorrem no interior desses campos, sendo por eles orientadas. A longo prazo, ocorrências locais também modificam lentamente as estruturas dos campos. Devido à interação pela linguagem, esses campos são também designados campos do saber so­cial. Com efeito, um campo tem considerável autonomia, mas sua formação e mudança não ocorrem fora do espaço de integração intercampos, isto é, sem a socialização com outros campos do saber. O campo de interação social do Direito, por exemplo, é organizado por instituições como tribunais, fó­runs e varas e por espaços não-institucionais, nos quais informalmente dis- cutem-se assuntos do saber jurídico.

Os contextos local e global também apresentam dimensão cognitiva, não apenas social. Os modelos de contexto local são inúmeros, assim como o são as situações sociais, e são representados por seqüências de ações estereotípi- cas (scripts); há modelos de representação de consulta médica, aula etc. Os modelos de contexto global dizem respeito à ordenação estrutural de campos do saber em uma dada sociedade. São representados por seqüências de ações, resultantes da complexidade dos fatores sócio-histórico-culturais e ideológi­cos que envolvem a conjugação de conhecimentos e valores de diferentes gru­pos para construção de um terreno comum de conhecimento, o qual assume de forma tácita a forma de pacto social.

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A dimensão cognitiva dos contextos globais é representada por mega- scripts. Eles são genéricos por não representarem situações específicas, mas orientarem a maior parte delas. Sua fundação, formação e sedimentação his­tórica são bastante complexas, e seu estudo pormenorizado não constitui o escopo deste capítulo. Dessa perspectiva, a formação sócio-histórico-cultural das estruturas sociais tem como fundação simbólica pactos que se estendem a todos, ou a quase todos, os membros de um ou mais campos de interação social.

O drama na narrativa jurídica

Historicamente, o vocábulo drama vincula-se ao teatro, à arte da repre­sentação. De etimologia grega, dráma, designa ação. Sabe-se que a linguagem é uma forma de ação pela qual sujeitos sociais investem-se de papéis sociais para interpretá-los de determinados pontos de vista diferenciados, às vezes até controversos. Essa é uma das explicações para o vocábulo drama ter assu­mido, no curso do tempo, estreita relação com as noções de conflito, atrito, desacordo etc.

É proposta aqui a ordenação causai dos conceitos conflito e drama. Sen­do o conflito causa do drama, ele é o dram a iminente. Já dram a é a conse­qüência do conflito, o conflito deflagrado. Dessa perspectiva, no dram a pode haver ruptura parcial ou total de um dado contrato regido pelo pacto social. As ações que buscam retecer esgarçamento ou ruptura do tecido social cons­tituem a tram a narrativa da qual o dram a é parte constitutiva, além de qua- lificar-se como acontecimento extraordinário; isto é, o que foge à ordem do dia, no dizer de Da Matta (3), em sua tipologia de eventos ordinários e ex­traordinários.

O mero relato de acontecimentos, quando não ocorre efetiva violação ou tentativa de violação de normas, não constitui propriamente narrativa, pois não há reconstrução das relações que entretecem a tram a social. Nesse senti­do, há graus de dramaticidade nas narrativas, desde que se considere a imi­nente ou a real ruptura da trama instituída e representada cognitivamente por scripts e megascripts. No campo do Direito, ações de natureza preventiva, em geral, funcionam como relatos.

O esquema megascriptural, representado na Figura 2, orbita a esfera do pacto de civilidade; e a ação processual, uma das etapas do esquema, qualifi­ca-se como cerne do drama. Observa-se, ainda, que, no direito processual pe­nal, há o dano instaurado nas teias da trama; já no direito processual civil,

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pode ou não haver ruptura, conforme observado em casos de natureza pre­ventiva ou contenciosa. Conseqüentemente, na área civil, pode ou não ocor­rer narrativa.

As narrativas apreendem as dimensões global e local dos contextos. As ações efetivas entre personagens ocorrem no espaço do contexto local. Con­forme observado, as ações são tridimensionais, por isso abarcam, dialogica- mente, outros tempos e espaços situados no passado e no futuro, a partir de um presente determinado. Essa totalidade de tempos e espaços responde pela perspectiva global do contexto. Assim, o contexto global orienta as ocorrên­cias discursivas localizadas por meio da conformação e estruturação históri­ca dos campos de interação social.

A organização sócio-histórica do campo do Direito rege-se pelo pacto de civilidade, cuja função é assegurar a manutenção dos contratos sociais, por meio da obediência às normas jurídicas pelos cidadãos em suas interações or­dinárias. Por essa razão, sempre que a preservação dos contratos estiver amea­çada, encontrar-se-á igualmente ameaçado o campo do Direito e o pacto que o rege.

Análise da construção do drama narrativo em petição inicial de ação indenizatória por danos morais e materiais

O texto abaixo selecionado para análise é um fragmento extraído de um a petição inicial de ação de indenização por danos morais e materiais. A ação foi proposta em face de médico e hospital responsáveis por diagnóstico e tra ­tamento inadequados de uma paciente, portadora de doença por si já bastan­te constrangedora, que, além de ficar exposta ao ridículo, viu-se impedida de trabalhar por longo período. Depois de fracassadas tentativas de cura, a pa­ciente procurou outro médico, que, em pouco tempo, conseguiu curá-la por meio de intervenção cirúrgica simples.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA _________VARA CÍVEL DA COMARCA DE CURITIBA/PARANÁ

(Autora) [...], por seu advogado adiante assinado, Dr. Leucimar Gandin, brasi­leiro, casado, inscrito na OAB/PR sob o n. 28.263, com endereço [...], onde rece­be intimações e notificações, vem respeitosamente perante Vossa Excelência, com fulcro nos arts. 159, 1.545 e demais artigos do Código Civil Brasileiro [CC/1916], bem como art. 14 do CDC, propor a seguinte

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A Construção do Drama Narrativo em Petições 101

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO por DANOS MORAIS E MATERIAIS em face de R R. A., brasileiro, médico, inscrito no CRM/PR sob o n. [...] com en­dereço na Av. [...] e H. M. C. LTDA., pessoa jurídica de direito privado com sede na rua [...], pelas razões de fato e direito a seguir expostas:

RAZÕES DE FATONo início do ano de 1998, a autora começou a sentir algumas dores em seu bo­

tão anal (ânus), principalmente quando necessitava ir ao banheiro. Estas dores fo ­ram se repetindo e se agravando com o passar do tempo, a ponto de ser obrigada a procurar um profissional da medicina visando obter um diagnóstico e a cura.

Em data de 27.03.1998 procurou o primeiro réu e realizou uma consulta para verificar o que estava ocorrendo. Este alegou que a paciente apresentava “botão hemorroidário sangrante” e marcou uma cirurgia reparadora de emer­gência para o dia 06.04.1998. Devido às fortes dores, foi-lhe recomendado um afastamento do trabalho por período de 15 dias, bem como receitada uma série de medicamentos com o fim de amenizar as fortes dores que sentia.

A cirurgia foi realizada nas dependências do segundo réu, uma vez que o primeiro réu atendia com freqüência naquela instituição hospitalar. Submetida à cirurgia, retornou à sua residência, permanecendo em recuperação por alguns dias, mesmo porque sentia fortes dores, principalmente quando evacuava.

Não obstante as orientações do médico, as dores e o sangramento continua­ram ininterruptamente por diversos dias, desta vez com maior intensidade, po­rém o primeiro réu alegou serem normais tais sintomas, eis que a paciente se en­contrava em fase de recuperação.

Em data de 18.05.1998, já passados mais de 42 (quarenta e dois) dias da realização da cirurgia, a autora já não suportava as dores que a acometiam. Somente conseguia fazer suas necessidades à base de laxantes e analgésicos, além de diversos outros medicamentos que lhe vinham sendo receitados com freqüên­cia. Nesse quadro, dirigiu-se novamente até a clínica do primeiro réu comuni­cando as fortes dores e a impossibilidade de evacuar normalmente, esclarecendo que se encontrava muito pior que antes da realização da cirurgia. Novamente foram-lhe receitados uma infinidade de remédios (vide documentos anexos) e recomendado mais um período de 15 (quinze) dias para repouso.

Em 29.05.1998, quando a paciente retornou ao consultório do médico, com as mesmas dores, o réu entendeu por bem realizar novos exames laboratoriais, justificando que as dores poderiam ter decorrido de uma suposta anormalidade do aparelho reprodutor da paciente. Submetida então a um exame ecográfico de pelve na própria clínica do réu, cujo resultado fora o seguinte:

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102 Direito e Argumentação - Parte 2

“COMENTÁRIO: Útero discretamente aumentado de volume, porém de contornos regular es e aspecto homogêneo. Presença de massa mista pélvica em topografia anexial direita, medindo 52x43x40mm (V=46y8cm3)y com áreas hi- perecogênicas e algumas imagens císticas em seu interior; sendo a maior delas de 25x14mm.

CONCLUSÃO: Ultra-som pélvico com alterações sugestivas de massa pél­vica à direita

Ao final da página de resultado do exame vinha transcrita a seguinte m en­sagem:

“Os exames complementares dependem de análise em conjunto com dados clínicos. Lembramos que muitas vezes existem limitações no método utilizado, devendo haver complementação diagnostica.” (grifamos) Com base no resulta­do deste exame, E SOMENTE DESTE, o primeiro réu informou a paciente que as fortes dores resultavam, sem dúvida nenhuma, da existência de um cisto (massa pélvica mista) o qual deveria ser removido via intervenção cirúrgica, poisy do contrário, as fortes dores permaneceriam. Mesmo assumindo que o exa­me realizado não era suficientemente capacitado para apurar com precisão a anormalidade da autora, o réu agendou uma nova cirurgia para extração do su­posto “corpo estranho” sem antes complementar referido exame ou buscar outra solução ao problema, estando certo de que as dores resultavam do pequeno cisto existente.

Enquanto aguardava a cirurgia a autora recebeu novo atestado de licença para o trabalho por 15 (quinze) dias.

Apesar de surpresa com referido diagnóstico, eis que jamais havia sofrido de qualquer dor ou anormalidade em seu aparelho reprodutor; a autora estava en­volvida pela insuportável e ininterrupta dor, o que a impossibilitou sequer de ra­ciocinar sobre qual seria a gravidade das alegações do “especialista”, razão pela qual autorizou a nova cirurgia, na esperança de se ver aliviada daquele pesade­lo que vivenciava, confiando sobretudo na alegada experiência do médico, efo i justamente por confiar extremamente nas habilidades daquele profissional que permitiu o tratamento sem questionar com outro profissional da medicina. Ressalte-se que não foi informada detalhadamente acerca dos motivos da nova intervenção cirúrgica, nem mesmo se era a única forma de eliminar a massa existente em seu aparelho reprodutor.

Em 08.06.1998 foi submetida à nova cirurgia, também nas instalações do segundo réu (Hospital e Maternidade Caritas) ocasião em que a massa pélvica fo i retirada para, aí simy ser enviada à analise laboratorial. Permaneceu mais al­guns dias em recuperação, eis que desta vez a intervenção fora mais delicada de­

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A Construção do Drama Narrativo em Petições 103

vido à sua localização (foi realizada em seu ventre). Novamente foram-lhe re­ceitados diversos medicamentos para recuperação, permanecendo mais alguns dias em repouso.

Da análise da massa retirada, chegou-se à conclusão de que se tratava de:“Segmento de ovário: 30x30x25mm. Superfície externa branco-acinzenta-

day lisa e brilhantey com uma área cruenta de 30x18mm. Ao corte é cístico con­tendo sangue coagulado e parede branco-amarelada com 2 a 8 mm de espessu­ra. Na área mais espessa notam-se cistos de conteúdo líquido, límpido, esféricos, o maior com 5 m m de diâmetro. Diagnóstico macro e microscópico.

CISTO LUTEÍNICO HEMORRÁGICO DE OVÁRIO. ”Apesar das características da massa retirada serem totalmente diversas das

que haviam sido detectadas no exame ecográfico, após a realização de referidos exames e concluídos os diagnósticos, o réu tranqüilizou a autora, alegando que as dores não tardariam a passar e novamente receitou uma infinidade de medi­camentosy aconselhando repouso à sua paciente, desatento ao fato de que tal cis­to sequer possuía qualquer relação com as dores de sua paciente. Ademais, om i­tiu da mesma o fato de que a retirada de tal massa não necessitava de cirurgia, e somente da aplicação de um simples medicamento. Até no relatório que forne­ceu à paciente o médico assume que optou pela Laparostomia Exploradora (ci­rurgia) “ [...] como forma de tratam ento mais adequado [...]” assumindo que existiam outras formas de tratamento, até menos dolorosas e constrangedoras à autora, sem deixar cicatrizes, porém omitindo tais fatos desta. Não bastasse, o profissional chega ao absurdo de cogitar a possível retirada de um ovário ou até mesmo da trompa direita na cirurgia.

Porémy por ironia do destino e infelicidade da autora, as dores sequer dim i­nuíram e seu quadro clínico passou a complicar-se ainda mais após a segunda cirurgia, poisy após esta outra intervenção, além das dores em seu botão anal, iniciaram-se problemas em seu aparelho reprodutor, situações que jamais ha­viam ocorrido em toda a sua vida, como fortes dores no abdômen e descontrole do ciclo menstruai. Tudo isso chegou a causar desequilíbrio psico-emocional à paciente, a qual passou a tomar novos medicamentos para tentar amenizar a dor, sem qualquer sucesso.

Em 31.07.1998, 63 (sessenta e três) dias após a realização da segunda ci­rurgia e 115 (cento e quinze) dias após a primeira, sem qualquer resultado po­sitivo e com a complicação de seu quadro clínico, a autora entendeu por bem procurar novo médico, eis que já havia perdido totalmente as esperanças do tra­tamento com o primeiro réu, mesmo porque havia seguido a risca todas as orien­tações daquele, sem qualquer melhora.

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104 Direito e Argumentação - Parte 2

Procurou então o Dr. Fernando Hinz Greca, especialista em cirurgia do apa­relho digestivo, pagando nova consulta no valor de R$ 70,00 (setenta reais), vide recibo anexo. Este, após avaliar o quadro da autora, encaminhou-a de imediato para realização de exames, marcando nova cirurgia para o dia 06.08.1998. Realizada a intervenção cirúrgica, a autora permaneceu no hospital por dois dias, quando então teve alta. Felizmente, no dia da alta, 08.08.1998, já não sen­tia mais dor.

Permaneceu com atestado para repouso por 15 dias, porém, já no segundo dia após a alta sentia-se recuperada. Retornou ao consultório do médico em 08.09.1998 totalmente recuperada e sem qualquer dor.

Da análise de todos os fatos acima percebe-se que a autora permaneceu do dia 27.03.1998 ao dia 08.09.1998 em tratamento devido ao total desleixo, negli­gência, imprudência e imperícia do primeiro réu, o qual, juntam ente com o se­gundo réu, deixou de prestar a atenção devida ao estado clínico da paciente, mantendo-a por mais de 06 (seis) meses, ou seja, 180 (cento e oitenta) dias com insuportável dor física, causando diversos constrangimentos e aflições, pois, se um dia de dor é desagradável, imagine, Excelência, 180 dias!! Não bastasse, re­ceitaram inúmeros medicamentos, os quais não surtiram qualquer efeito, e, além do mais, devido à negligência deles, a autora fora submetida a 03 (três) in­tervenções cirúrgicas, quando somente uma, bem feita como foi a última, teria surtido resultado.

Além da dor física e mental, a autora se submeteu a diversos constrangi­mentos de ordem moral, senão vejamos que permaneceu por seis meses em tra­tamento clínico sendo obrigada a expor todas as suas partes íntimas por inú­meras vezes para exames, cirurgias, curativos, depilações púbicas, aplicação de medicamentos e análises diversas, eis que tais procedimentos se faziam necessá­rios para acompanhar o seu quadro, e os mesmos eram sempre realizados por profissionais do sexo masculino, como pode ser perfeitamente verificado nos do­cumentos anexos. Além disso, permaneceu tomando laxantes por diversos m e­ses, quando era obrigada a se deslocar ao banheiro em média 10/15 vezes ao dia. Em seu ambiente de trabalho não era diferente; se via obrigada a trabalhar o tempo todo em pé pois não podia sequer sentar, o mesmo ocorrendo quando se deslocava ao trabalho, eis que sempre teve que utilizar transporte coletivo de passageiros.

Ocorre que a autora trabalhava em uma empresa de cobrança e, devido ao seu incessante e incorreto tratamento médico, fo i obrigada a se afastar de re­ferido labor, pois, do contrário, não mais poderia continuar com referido tra­tamento. Ademais, suas dores durante todo o período eram tamanhas que se­

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A Construção do Drama Narrativo em Petições 105

quer poderia deslocar-se até seu trabalho ou até mesmo permanecer traba­lhando, uma vez que não se sentia bem. Além disso, somente conseguia eva­cuar com a ajuda de laxantes, razão pela qual sentia-se constrangida em seu ambiente de trabalho, uma vez que permanecia indo ao banheiro inúmeras vezes ao dia.

Evidentes desta forma as lesões materiais, psicológicas, morais e físicas que atingiram a autora diante do equívoco dos réus, razão pela qual perfeitamente cabível a indenização pleiteada.

Organizamos a análise textual-discursiva pela relação que se estabelece entre o longo e o curto tempo das interações sócio-cognitivas. Conforme de­finimos anteriormente, o megascript é um esquema genérico, organizado por uma macro-narrativa de ordem cultural ou macro-histórica, cuja seqüência de ações prevê conservação de um dado pacto social. Esse esquema concei­tuai expressa modos de proceder ou de agir mais gerais que orientam as in­terações localizadas em um determinado campo do saber.

Postulamos o campo do Direito ter como suporte o pacto de civilidade, que orienta os contratos sócio-jurídicos. Tais contratos são representados por modelos de ação organizados em função das ramificações dos direitos públi­co e privado. Desse modo, práticas contratuais entre membros da sociedade flexibilizam diferentes visões de m undo dos grupos.

Da perspectiva do tem po de curta duração, situações de comunicação constituem ocorrências sociais concretas manifestadas lingüisticamente por uso oral ou escrito da língua. O texto é lugar da materialidade lingüís­tica das práticas sócio-discursivas, por isso deve ser concebido como ponto de partida, mas não necessariamente como ponto de chegada da análise discursiva.

Segundo Spink (8), o tem po de curta duração organiza-se por presen­te, passado próximo (tem po vivido) e futuro esperado. O presente é o tem ­po da enunciação propriam ente dita, pelo qual constitui a relação dialógi- ca entre o eu e o tu, participantes diretos da ação comunicativa. O passado próximo, ou tempo vivido, é resultante do processo de socialização do su­jeito enunciador, pelo qual as vozes sociais ecoam na expressão de sua voz, constituindo ponto de vista individual. Finalmente, o futuro esperado é o tem po dos planos de ação discursiva, pelo qual se edifica sua finalidade na intencionalidade do sujeito enunciador e nos efeitos de sentidos construí­dos pelo leitor.

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106 Direito e Argumentação - Parte 2

A organização macronarrativa da petição selecionada: a questão da dramaticidade

Na primeira etapa de análise, o objetivo é verificar o modo pelo qual o modelo de representação genérico e representativo do longo tempo das inte­rações sócio-históricas aponta para o reconhecimento dos graus de dram ati­cidade das narrações, constituindo a narratividade, concebida, segundo Grei- mas & Courtés (4), como princípio de organização do texto narrativo. Para tanto, é preciso proceder ao investimento semântico das seqüências de pro­posições genéricas que estruturam o megascript do campo do Direito.

Proposição 1: X dever cumprir as normas jurídicas

Essa proposição estrutura-se pela modalidade do dever, que traduz força e poder das normas jurídicas sobre os cidadãos em geral. Segundo Todorov (10), a modalidade do dever designa uma ação ainda não ocorrida (= acontecível).

No texto em análise, por se tratar de consulta médica, as partes envolvi­das, médico e paciente, assumem uma forma contratual da qual decorre o nexo causai: ação do médico-resultado no paciente. A cada uma das partes compete exercício e interpretação do papel correspondente à situação viven- ciada. Sabe-se que os papéis são consuetudinários, por isso apresentam pro­priedades mais ou menos fixas. Suas variações decorrem, pois, da interpreta­ção dos atores.

Em uma consulta, o que interpreta o papel de médico tem o dever de exe­cutar as ações de diagnosticar o paciente e de oferecer-lhe tratam ento ade­quado, de modo a promover a cura de sua doença. Disso resulta o nexo cau­sai ação do médico (diagnosticar e tratar adequadamente)-efeito da ação do médico no paciente (promover a cura). O papel de paciente, por sua vez, pre­vê cumprimento das orientações médicas indicadas para tratamento e cura de sua enfermidade. Se o paciente não acata as tais orientações, é desfeito o nexo causai referido.

A instituição hospital também participa do caso em questão: “A cirurgia foi realizada pelo primeiro réu utilizando a estrutura do segundo como se veri­fica na documentação anexa”.

Do viés das normas jurídicas, o princípio da responsabilidade civil orien­ta as ações do médico c da instituição hospitalar. No texto selecionado, o ad­vogado aplica esse princípio pela incidência dos seguintes deveres (Figura 3):

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A Construção do Drama Narrativo em Petições 107

Figura 3

No que tange à paciente, se tiver acatado as orientações médicas, não lhe cabe nenhum outro dever jurídico, apenas o direito de indenização por erro médico.

Proposição 2:X cumprir as normas jurídicas

A segunda proposição designa o cum primento efetivo das normas para assegurar o acordo inter eives ou pacto de civilidade. No texto sob análise, o médico cumpre as ações previstas no contrato social firmado com a pacien­te, pois executa as ações manifestadas nos verbos diagnosticar e tratar. C on­tudo, suas ações revelam-se inadequadas ao resultarem na piora substancial do quadro clínico da paciente, mesmo após reiteradas tentativas de acerto. Rompe-se, desse modo, o nexo causai diagnosticar e tratar-curar.

A paciente cumpre sua parte no contrato estabelecido, submetendo-se às orientações de seu médico. Entretanto, mediante ruptura do nexo causai, desfaz-se também sua submissão às ordens médicas. Logo, sua procura pelo segundo médico não configura, no plano jurídico, ruptura de contrato, mas conseqüência da ineficiência das ações do primeiro médico e do hospital no qual a paciente sofrerá intervenção cirúrgica.

Ressalta-se, ainda, a cura da paciente pela ação do segundo médico refor­çar a tese de ocorrência de erro por parte dos primeiros. Já as provas docu­mentais e periciais utilizadas posteriormente, na fase processual, legitimam a

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108 Direito e Argumentação - Parte 2

avaliação da existência do erro por imperícia, negligência e imprudência, ca­racterizando danos materiais e morais causados à paciente. Nesse sentido, instala-se a procedência do pedido de indenização fundado no pacto de civi­lidade e fundamentado no princípio da responsabilidade civil, explicitado na primeira proposição. O pacto de civilidade, nesse caso, rompe-se totalmente por ocorrência de dano à paciente.

Proposição 3: Y reclamar a possibilidade de descumprimento do contrato por X

A terceira proposição dá início à lide que caracteriza os processos cíveis de natureza contenciosa ou conflitiva. O primeiro passo é propor ação pro­cessual cível visando ao ressarcimento dos danos sofridos pela paciente, ago­ra autora da ação, que se faz ouvir na voz da lei, representada pelo advogado por ela contratado.

A petição é o texto inaugural desse tipo de processo. Em termos lingüís­ticos, ela consiste em pedir algo a alguém. No texto em foco, o principal ob­jetivo da macroação de pedir é “a condenação dos réus ao pagamento de in­denização por danos materiais e morais”. O pedido destina-se ao juiz, cuja função mais típica é julgar os fatos narrados pelos advogados das partes en­volvidas e decidir a causa a favor ou contra os réus. Do ponto de vista da au­tora da ação (vítima), a narração dos fatos apresenta-se com alto grau de dra- maticidade, pois o ocorrido não transita na iminência do dano, mas em sua ocorrência efetiva. Se há dano, é necessário responsabilizar seus causadores, condenando-os.

Nesse sentido, na dimensão macronarrativa, a narração dos fatos preten­de o retorno ao pacto de civilidade, mediante aplicação da sanção jurídica aos réus. Na dimensão micronarrativa dos contratos sociais, a narração dos fatos tem função argumentativa, evidenciada por seleção e ordenação dos fatos e por apresentação das provas periciais e documentais, cujo objetivo é conven­cer o juiz da procedência do pedido.

Proposição 4: Y cessa o litígio contra X

Mediante a apresentação dos fatos pelas partes, cabe ao juiz o poder de fundamentar sua decisão nas normas jurídicas para restabelecer o pacto so­cial. A análise, aqui, não se estende ao âmbito da sentença judicial, embora essa instância responda pelo efetivo retorno à manutenção do pacto de civilidade.

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A Construção do Drama Narrativo em Petições 109

A organização micronarrativa da petição selecionada: a função argumentativa

Na segunda e última etapa de análise, o objetivo é verificar o modo pelo qual os esquemas de representação específicos e representativos do curto tempo das interações sociais apontam para construção e reconhecimento da função argumentativa da narração.

O curto tempo das interações sócio-comunicativas organiza-se pelo:

1. Presente: tempo da enunciaçãoEU (aquele que fala): nesse tempo, o eu enunciativo, representado na fi­

gura do advogado da autora, constitui o narrador observador dos fatos.POSIÇÁO: em relação aos fatos, assume a posição de narrador onisciente,

o que lhe confere maior flexibilidade em seleção e organização dos fatos. Em relação ao tu, tem posição inferior, visto que narra para lhe pedir algo.

PAPEL (função): advogado - o que advoga sobre causa alheia para obter ganho da ação.

TU (aquele com quem se fala): nesse tempo, o tu, representado na figura do juiz, constitui autoridade judicial máxima, lingüisticamente manifestada no texto pelo uso do pronome de tratamento Vossa Excelência.

POSIÇÃO: superior ao eu (advogado), pois é quem tem o poder de aca­tar ou não o teor do pedido a ele encaminhado.

PAPEL (função): julgar e deferir ou indeferir o pedido.

2. Passado próximo (tempo vivido): tempo de socialização do sujeito enun- ciador - vinculação do individual com o social pela atualização em língua do modelo de representação contrato médico versus paciente sob perspec­tiva jurídica

Inicialmente, o narrador (advogado) propõe o tipo de ação processual, “ação de indenização por danos morais e materiais”, fundamentado nos arts. 159, 1.545 e demais do Código Civil de 1916 (revogado pelo Código Civil de 2002), bem como no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. O enun­ciado destacado estrutura-se pela relação entre causa e conseqüência: danos morais e materiais (causa) versus penalidade de indenização (conseqüência). Os textos de lei referidos legitimam essa relação seqüencial, pois as leis, bem como sua aplicação, têm por objetivo manter e assegurar o pacto de civilida­de ou acordo inter eives.

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110 Direito e Argumentação - Parte 2

Na organização textual das petições, a designação do tipo de ação proces­sual e das partes envolvidas preenche a categoria qualificação, formalizada por um único parágrafo, de natureza descritiva. A narração dos fatos propria­mente dita tem início após a qualificação. Seleção e ordenação dos fatos a se­rem narrados pelo advogado orientam-se pela eleição do fato juridicamente relevante, sem o qual o narrador perde o viés jurídico. No texto em questão, constitui fato juridicamente relevante para proposição de ação indenizatória por danos morais e materiais erro médico por imprudência, negligência ou imperícia fundamentado no art. 1.545 do Código Civil de 1916 (revogado pelo Código Civil de 2002).

Na dimensão micronarrativa do texto, o narrador seleciona e ordena os demais fatos em função do fato juridicamente relevante, que precisa ser com ­provado. Dessa forma, os fatos selecionados funcionam como razões ou ar­gumentos de comprovação do fato jurídico desencadeador da ação proces­sual ou, simplesmente, a relação dano-pena.

A categoria textual que organiza a narração nas petições denomina-se “Dos Fatos ou Razões de Fato”. Na petição selecionada, o narrador, tendo por orientação o erro médico, seleciona os fatos e os ordena no eixo do tempo cronológico. O erro médico por imperícia, por exemplo, é um desvio do m o­delo de representação scriptural consulta médica, gerando a complicação da narrativa, que, por sua vez, conduz ao dram a na dimensão megascriptural ou macronarrativa (etapa processual civil ou penal). Nesse sentido, a seleção dos fatos e sua ordenação devem apontar para a ruptura do script (erro médico = complicação) e, conseqüentemente, para a ruptura do pacto de civilidade.

Mediante tal orientação, o narrador dispõe os fatos em três tempos, or­ganizados por marcadores temporais (Figuras 4 a 7):

Figura 4

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A Construção do Drama Narrativo em Petições 111

T2 Tempo da formalização do contrato médico.

Diagnóstico 1 (em 27.03.1998) -» "botão hemorroidário sangrante"

Tratamento 1 -> "cirurgia reparadora de emergência" para curar o mal;"afastamento do trabalho por período de 15 (quinze) dias de­vido às fortes dores";"série de medicamentos com o fim de ameni­zar as fortes dores"

Execução do tratamento 1 -> 06.04.1998: realização da cirurgia nas dependências do segundo réu: Hospital e Maternidade Caritas.

Fase de recuperação 1 - » a) "depois de alguns dias": paciente "sen­tia fortes dores, principalmente quando evacuava"Avaliação do médico: "alegou serem normais tais sintomas''

b)"Em data de 18.05.1998, já passados 42 (quarenta e dois) dias da realização da cirurgia": paciente apresentava dores insuportá- veis;"somente conseguia fazer suas necessidades à base de laxan­tes e analgésicos, além de outros medicamentos que lhe vinham sendo receitados com freqüência"Avaliação do médico: "foram-lhe receitados uma infinidade de remédios (vide documentos anexos) e recomendado mais um período de 15 (quinze) dias para repouso"

c)"Em 29.05.1998"-» Paciente retorna ao consultório com as mesmas dores.

Avaliação do médico -» "entendeu por bem realizar novos exames laboratoriais, justificando que as dores poderiam ter decorrido de uma anormalidade do aparelho reprodutor da paciente"Exame solicitado e realizado: ecografia da pelve, realizada na própria clínica do réu.Resultado do exame: "alterações sugestivas de massa pélvica à direita""muitas vezes existem limitações no método utilizado, de­vendo haver complementação diagnóstica" [grifo do narrador].

Figura 5

Mediante a seleção dos fatos que caracteriza o primeiro diagnóstico e a apresentação das provas documentais, constata-se a primeira etapa do erro médico por imperícia, pois o tratamento não possibilitou cura ou recupera­ção da paciente. As avaliações do médico, apresentadas pelo narrador, funcio­nam como argumentos de reforço à sua imperícia. A Figura 6, ainda em T2, ilustra a ordenação da segunda fase do contrato médico:

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112 Direito e Argumentação - Parte 2

Diagnóstico 2 -» "Com base no resultado deste exame, E SOMENTE DESTE, o primeiro réu"deu o seguinte diagnóstico:"as fortes dores resultavam,sem dúvida nenhuma, da existência de um cisto (massa pélvica mista)"

Tratamento 2 intervenção cirúrgica "para extração do'corpo estranho'"

Execução do tratamento 2 (em 08.06.1998) realização da cirur­gia nas mesmas instalações do segundo réu (hospital).Avaliação do médico: (prova documental: relatório médico - "assume que optou pela Laparoscopia Exploradora (cirurgia)'como forma de tratamento mais adequado'assumindo que existiam outras formas de tratamento, até menos dolorosas e constrangedoras à autora, sem deixar cicatrizes"Avaliação explícita do narrador, mediante comparação do exame laboratorial e relatório pós-operatório: "características da massa retirada serem totalmente diversas das que haviam sido detectadas no exame ecográfico"- médico (réu) errou não só por imperícia, mas por negligência, pelo fato de não observar a ausência de relação entre exame laboratorial e pós-operatório. E, por imprudência, por omitir outras possíveis formas de tratamento. Fase de recuperação 2 -> período considerado em relação à realização da segunda cirurgia = 63 (sessenta e três dias) dias; período considerado em relação à realização da primeira cirurgia =115 (cento e quinze) dias:"as dores sequer diminuíram e seu quadro clínico passou a complicar-se ainda mais após a segunda cirurgia, pois, após esta outra intervenção, além das dores em seu botão anal, iniciaram-se problemas em seu aparelho reprodutor, situações que jamais haviam ocorrido em toda a sua vida, como fortes dores no abdômen e descontrole do ciclo menstruai." Em decorrência, o "[...] desequilíbrio emocional [...]"

T2 -> Tempo da formalização do contrato médico.

Figura 6

No texto, o narrador marca a efetiva ruptura do script pelo erro médico na seguinte passagem: “Porém, por ironia do destino e infelicidade da au to ra’ seu quadro clínico complicou, pois em vez de curar uma enfermidade (botão anal), acresce-lhe outra (aparelho reprodutor). Depois de reiteradas tentativas de resolução da gradativa complicação de seu problema, a paciente se vê de­sobrigada a acatar as orientações dos réus e procura resolução por formaliza­ção de novo contrato médico com outro profissional da mesma área.

No passado próximo, o narrador (advogado) vale-se dos conhecimentos não-jurídicos para interpretar, por um ponto de vista pessoal, a história vivi-

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A Construção do Drama Narrativo em Petições 113

Figura 7

da pela autora da ação, de modo a passar para o tempo da história narrada. Constata-se, ainda no passado próximo, o narrador criar condições que lhe possibilitam executar a macroação de toda e qualquer petição: pedir algo ao juiz. Nesse sentido, com pondo as perspectivas temporais do curto tempo na dimensão da micronarrativa, há ainda o futuro esperado, que diz respeito ao plano de ação comunicativa do sujeito enunciador.

3. Futuro esperado: plano de ação comunicativa

O sujeito da enunciação, representado na figura do advogado, tem por intenção comunicativa comprovar o dano em juízo por imperícia, negligên­cia e imprudência dos réus. Essa intenção aponta para o objetivo de conven­cer o juiz a acatar o pedido de condenação dos réus pela aplicação da pena de indenização por danos materiais e morais.

Considerações finais

A construção da dramaticidade narrativa, portanto, torna-se possível quando concebida na perspectiva dialógica do longo e do curto tempo dos sentidos. As duas dimensões temporais apontam para modelos de represen­tação social que caracterizam campos de interação e grupos sociais. O mega­script abarca a dimensão dos campos, por isso é altamente genérico; já o script abarca a dimensão social dos grupos: ser mais específico. Como ambos são

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114 Direito e Argumentação - Parte 2

lingüisticamente manifestados por seqüências ordenadas de ações, postula-se poderem ser concebidos como macro e micronarrativas.

Nesse sentido, a análise do texto narrativo ganha novos contornos, defi­nidos pelo eixo dialógico e interacional das duas perspectivas temporais. As narrações jurídicas, observadas por esse eixo, facultam às ações processuais o alcance das dimensões de contratos e pactos sociais. Com efeito, o campo do Direito edifica-se pelo acordo primordial entre cidadãos. Esse acordo genera­lizado tem amplo grau de projeção social, pois sua historicidade explica-se por matrizes socioculturais e éticas de convivência responsável entre os membros da sociedade. De tal prisma, o acordo funciona como pacto social em torno do qual os cidadãos, pertencentes a diversos grupos sociais, voltam- se uníssonos. Assim se define a natureza simbólica dos pactos.

Embora orientem os contratos e sejam por eles orientados, os pactos não se caracterizam como espaço de controvérsia, por isso não constituem lugar de argumentação, mas de histórias simbólicas e cristalizadas pelo longo tem­po. Por outro lado, os pactos não são estáticos, embora demorem séculos para se modificar. Neles, não encontram lugar os argumentos propriamente ditos, mas a argumentatividade, como princípio constitutivo da linguagem, cuja materialidade lingüística se apresenta sob a forma de argumentos, pre­sente no curto tempo das interações.

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A Construção do Drama Narrativo em Petições 115

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VDomínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória

Lílian Qhiuro Passarelli

Quando é preciso argumentar por escrito, por sermos fruto de uma escola cujas aulas de língua materna conferem primazia ao normativismo ditado por um ensino gramatical ortodoxo, à moda do que prescrevem as práticas calca­das na noção de certo e errado, não raro ficamos atormentados diante de ati­vidades linguageiras que exijam leitura crítica ou produção textual. Em detri­mento das aulas de linguagem (pressupondo, aqui, um rico conjunto de usos), esse ensino pautado por uma perspectiva prescritivista impõe a aprendizagem da língua como produto independente de suas condições de produção.

Com a imposição do normativismo, ensinam-se regras, atendendo a uma normativa cujo objetivo se atém à fixação de regras e convenções - a

regra pela regra de alguns temas referentes a acentuação, ortografia, alguns usos da pontuação, sintaxe de colocação (pronomes pessoais oblíquos), sin­taxe de concordância. No m omento em que precisamos registrar e com uni­car algo (até mesmo de maneira mais íntima ou informal), não vemos uma

clara entre a escrita para a escola e a escrita para a vida fora dos m u­ros escolares. Usos e funções da escrita variam histórica e culturalmente; va­riam, da mesma forma, em função dos contextos definidos por comunidades específicas (hoje, a comunidade dos usuários da internet é um exemplo disso). Quando o indivíduo não encontra a relevância do ensino da escrita em suas necessidades reais, fica contaminado por um desânimo exemplar.

Assim, em busca de alternativas para dar conta de ler e produzir textos argumentativos, é necessário considerar algumas especificidades em função da natureza desse tipo textual.

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Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 117

Tratar dos procedimentos argumentativos em determinado gênero tex­tual - uma decisão interlocutória por meio de análise lingüística dos me­canismos de que o produtor se vale, no intuito de convencer e persuadir seu interlocutor acerca de uma tese, é a proposta deste capítulo. Para averiguar como se dá a criação de efeitos de sentido no m om ento da construção da lin­guagem em contextos sociais, algumas concepções precisam ser tomadas, pois elas nortearão este estudo.

• Linguagem: processo interacional entre sujeitos que usam a língua em suas variedades para se comunicar, exteriorizar pensamentos e informa­ções e, sobretudo, realizar ações verbais com o outro, sobre o outro. É ter a linguagem como atividade constitutiva histórica e social, realizada por su­jeitos que interatuam partindo de lugares sociais estabelecidos pela socie­dade em questão, embora não descarte a liberdade de cada sujeito, pois cada um se constitui diferente do outro (cf. 27, p .61-2, a partir de 20 e 21). Daí Koch afirmar que

usar a linguagem é sempre engajar-se em alguma ação em que ela é o próprio lu­

gar onde a ação acontece, necessariamente em coordenação com os outros. Essas

ações [verbais] não são simples realizações autônomas de sujeitos livres e iguais. São ações que se desenrolam em contextos sociais, com finalidades sociais e com papéis distribuídos socialmente. Os rituais, os gêneros e as formas verbais dispo­

níveis não são em nada neutros quanto a este contexto social e histórico. (23, p.31)

• Língua: produto histórico de diferentes instâncias sociais, resultante do trabalho discursivo do passado, obtido em processos de interlocução que acontecem no interior das múltiplas e complexas instituições de determi­nada formação social. Por ser produto da história e condição de produção da história presente, a língua “vem marcada pelos seus usos e pelos espa­ços sociais destes usos” (21, p.27-8). Daí a língua nunca poder ser conside­rada produto acabado, pronto, fechado em si mesmo.

• Texto: objeto lingüístico observável por meio de sua organicidade, cujos princípios gerais de produção e funcionamento se dão em nível superior à frase. Bronckart (8, p.75) complementa ao afirmar que texto é “toda uni­dade de produção de linguagem situada, acabada e auto-suficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação)”. Tal panorama se constitui em uma perspectiva sociointerativa e histórica e considera que os textos apre­sentam traços distintivos formais, funcionais, comunicativos e interacio-

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118 Direito e Argumentação - Parte 2

nais. Isso implica os textos se realizarem nos diversos gêneros textuais exis­tentes; e, de acordo com as necessidades da situação de linguagem (inter­locutores, lugar de produção, finalidade comunicativa), é preciso adequa­ção do gênero a ser utilizado. Por sua relação com as atividades humanas, e por conta da diversidade dessas atividades, os gêneros são múltiplos e em número infinito, o que se deve também a seu caráter histórico.Discurso: linguagem em interação, isto é, linguagem relacionada a suas condições de produção, o que pressupõe considerar interlocutores, situa­ção e contexto sócio-histórico. O discurso é a materialização de sentido do texto em funcionamento e, ainda que se dê na manifestação lingüística, diz respeito mais ao resultado de um ato de enunciação do que uma configu­ração morfológica de encadeamentos de elementos lingüísticos. Daí Fiorin (19) considerar ser no discurso que se manifestam plenamente as coerções ideológicas incidentes sobre a linguagem.Domínios discursivos: instâncias discursivas de uma cultura, mais pro­priamente de uma esfera de atividade humana, nas palavras de Bakhtin (3), que abrangem uma série de discursos específicos. Como Marcuschi (25) adverte, não se trata de um princípio de classificação de textos, pois indica instâncias discursivas, tais como discurso jurídico, discurso jorna­lístico, discurso religioso, discurso militar e discurso acadêmico. Um do­mínio discursivo não abarca um gênero em particular, mas dá origem a vá­rios deles, constituindo práticas discursivas nas quais se pode identificar um conjunto de gêneros textuais que, às vezes, lhe são próprios ou especí­ficos como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas e instau- radoras de relações de poder. No âmbito do discurso jurídico, por exem­plo, podem ser identificados gêneros textuais como petição, contestação, m andado de segurança, sentença, decisão interlocutória, libelo.Gênero textual1: realização lingüística concreta definida por propriedades sociocomunicativas. Trata-se do texto empiricamente realizado que cumpre funções em situações comunicativas. Um texto se organiza em determinado gênero em função das intenções comunicativas, por isso se diz que um dado

1 C o m o a noção dc gênero tem sido bastante discutida c não há consenso em relação a questões term inológicas, para não m encionar as epistemológicas, usa-se, aqui, o te rm o gênero textual em lugar de gênero discursivo ou gênero do discurso. O bserve-se essa m esm a advertência em relação a tipo textual, com o s in ô n im o dc tipo de discurso ou tipo discursivo. Sc gcneros são form as tex­tuais, parece mais razoável o p ta r po r tal term inologia. Em função da com plexidade da noção de gênero, m uitos autores usam som ente o te rm o gênero em seus textos científicos, e, ao que pare­ce, não faz m uita falta o acréscim o da adjetivação.

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Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 119

gênero se funda em critérios externos: sociocomunicativos e discursivos. São textos orais ou escritos materializados em situações comunicativas re­correntes com os quais temos acesso em nossa vida cotidiana. Por estar liga­do à vida em sociedade, todo gênero de texto é produzido para determina­da sociedade e dentro dela. Bilhete, lista de supermercado, poema, e-mail, receita médica, petição inicial, telegrama, recibo, bula de remédio, notícia jornalística, nota fiscal, mensagem eletrônica, decisão interlocutória, aula expositiva, bate-papo pela rede virtual, conto e por aí afora são gêneros tex­tuais com objetivos preestabelecidos. Assim, gêneros são formas textuais es­critas ou orais relativamente estáveis, histórica e socialmente situadas. Forma, aqui, diz respeito aos aspectos físicos e lingüísticos, mais propria­mente aos elementos estruturais observáveis e que, em conjunto, possibili­tam caracterizar um gênero e distingui-lo em meio a outros (33).

• Tipo textual: noção referente mais a modalidades discursivas ou seqüên­cias textuais do que a um texto em sua materialidade (25). O tipo textual funda-se em critérios internos lingüísticos e se define pela natureza lin­güística de sua composição - modalidade, aspectos sintáticos e lexicais, tempos verbais, relações lógicas, estilo, organização do conteúdo. Os tipos textuais envolvem algumas categorias conhecidas, que, em geral, são: nar­ração, argumentação, exposição, descrição, injunção (há autores que acres­centam a categoria dialogai ou conversacional). Com predominância de uma característica tipológica em um texto concreto, diz-se esse texto ser argumentativo, narrativo, expositivo, descritivo ou injuntivo (ou dialogai). Os tipos textuais constituem modos discursivos organizados no formato de seqüências estruturais sistemáticas que entram na composição de um gênero textual. Tipo e gênero não formam uma dicotomia, mas se comple­mentam na produção textual. Como um gênero pode envolver vários tipos (embora um sempre predomine), essa peculiaridade é designada por hete- rogeneidade tipológica. Uma fábula, por exemplo, é um gênero em cujo nível textual predominam seqüências narrativas, mas há, também, a pre­sença de seqüências descritivas (cenário, características das personagens) e do caráter argumentativo instaurado pela sentença moral.

Para aplicar em parte o aparato teórico até então estudado, há a possibilida­de de análise lingüística que contempla a questão da tipologia textual, partindo da operacionalização de ordem didática proposta anteriormente (cf. 27, p.63-4) e sistematizada na Tabela 1. A coluna da direita oferece especificações teóricas para, na coluna da esquerda, serem aplicadas em relação à peça jurídica em tela.

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120 Direito e Argumentação - Parte 2

Tabela 1 Sistematização dos elementos constitutivos de práticas de linguagem consubstanciadas em textos verbais

Gênero textual: decisão interlocutória.

Dom ínio discursivo: jurídico.

Modalidade de realização: escrita.

Forma textual materializada em situação comunicativa, cuja modalidade de realização pode ser oral ou escrita.

Funda-se em critérios externos: sociocomunicativos e discursivos.Um texto se organiza dentro de determ inado gênero em

função das intenções comunicativas.

Suporte (de onde, materialmente, o texto foi

retirado): folhas de papel ofício.

Suporte ou ambiente no qual o texto aparece; meio mate­

rial da mensagem e redes técnicas e humanas que lhe perm item circular.Dimensão mediológica:os modos de existência material e de difusão de um texto intervém em sua constituição. Nâo se separa o que é dito das condições institucionais do dizer.

Marcuschi (25) considera suporte de um gênero uma su­perfície física ou virtual que, em formato específico, supor­ta, fixa e mostra um texto.

Veicu lação ou tipo de situação com unicativa em que o gênero se situa: pública.

O texto veicula em uma situação pública, privada, corri­

queira, solene ou íntima?

Função social ou propósitos: função utilitária - argumentar, formar opinião.

Os propósitos comunicativos podem se desdobrar em:• função estética: entreter, elogiar, sensibilizar, provocar

prazer (hedonismo?) etc.;• função utilitária: informar, formar opinião, explicar,

argumentar, documentar, orientar, divulgar, instruir etc.

Natureza da inform ação ou conteúdo: causas

da queda do avião de marca Fokker 100, da TAM, que provocou a morte de 99 pessoas.

Assunto ou informação transmitida (o que é ou pode tor­

nar-se dizível por meio do gênero).

T ipos textuais em predom inância: argumentativo.

Observam-se, ainda, seqüências descritivas e

narrativas.

Fundam-se em critérios internos: lingüísticos e formais.

Podem-se agrupar os gêneros em relação à predom inân­cia dos tipos narrativo, descritivo, injuntivo, expositivo, ar­gumentativo, conversacional.

Relação entre partic ipantes da situação comunicativa: presumivelmente conhecidos, por

se saber de antemão se tratar de operadores das altas instâncias do Direito.

Situação de ausência e presença de contato imediato en­tre remetente e destinatário: conhecidos, desconhecidos,

nível social, formação.

N ível de linguagem predom inante: formal. Formal, semiformal, informal, dialetal.

Retomando o objetivo maior deste estudo - analisar os diferentes modos pelos quais se manifestam procedimentos argumentativos para uma lingua­gem mais influente (ou deliberada) cabe ainda a pergunta sobre o que é ar­gumentar e se argumentar é manipular. Argumentar é agir com honestidade, o que confere uma característica importante a um processo argumentativo - a credibilidade. Por isso, argumentação não pode ser manipulação. Para Abreu (1), argumentar é a arte de, gerenciando a informação, convencer o outro de algo no plano das idéias e de, gerenciando a relação, persuadi-lo, no plano das emoções, a fazer alguma coisa que desejamos.

Na verdade, o autor defende a idéia de argumentar ser, antes de tudo, convencer, vencer junto com o outro, utilizando, com ética, técnicas argumen-

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Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 121

tativas para remover obstáculos que impedem o consenso. É motivar o outro a fazer o que queremos, mas com autonomia, de modo que ele perceba suas ações serem fruto de sua própria escolha. Em síntese, argumentar é saber do­sar o trabalho com idéias e emoções, despendendo mais esforços em persua­dir do que em convencer.

Para dar conta do relacionado aos campos do convencer e do persuadir, pois a persuasão se apresenta estreitamente ligada ao ato de convencer, obser­vando a Tabela 2 (cf. 32, p. 139), tem-se a inter-relação de tais aspectos.

Tabela 2 Discurso convincente e discurso persuasivo

Persuasivo -» Recorre a: emoções, interesses pessoais, desejos e motivações irracionais, subjetividade, adesões, casos, piadas.

evidências, dados objetivos,

raciocínio lógico, provas, comprovações. iBaseia-se na:argumentação ----------------->

Tento:esclarecer, informar, recordar, modificar

condutas, elim inar uma opinião, crença ou teoria, influir.

Aproveita:estatísticas, cifras, demonstrações, pesquisas,

testemunhas e testemunhos, exemplos, fatos.

-> Baseia-se na: propaganda

Aproveita:orgulho, medo, ódio, simpatia, inveja, patrimônio, vaidade,

rivalidade, preconceitos.

Argumento é uma manifestação lingüística que inclui uma asserção ca­paz de levar a uma conclusão. Nos âmbitos formais, a formulação do argu­mento tem de se resguardar de dois tipos de erros: os de norm a culta e os de argumentação lógica. Para Coste (13, p. 15), toda atividade comunicativa en­volve, além de outros componentes relativos ao dom ínio da língua, do conhe­cimento de m undo e do conhecimento enciclopédico, um componente de ca­pacidade textual definido como “saberes e habilidades relativos aos discursos e às mensagens enquanto seqüências organizadas de enunciados”, no qual se observam elementos retóricos e argumentativos dos vários textos.

No entanto, considerando a complexidade do processo comunicativo, pela nítida diferença entre a comunicação recebida e a assumida, comunicar é agir sobre o outro; e isso é bem mais do que levar o interlocutor a receber c compreender mensagens. É, pois, conduzi-lo a aceitar o transmitido, a crer no dito, a fazer o proposto que ele faça. Assim, comunicar implica obter ade-

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122 Direito e Argumentação - Parte 2

são: conseguir que um indivíduo ou um auditório adote determinado com­portam ento ou partilhe determinada opinião.

Nas diferentes instâncias comunicativas do dia-a-dia, são inúmeras as si­tuações nas quais se propõe obtenção da adesão (31). No campo da argumen­tação, as relações entre locutores e interlocutores podem ser de poder, influên­cia etc. Em busca de adesão, um alguém, orador, está diante de um auditório, universal ou particular, expondo algo, manifestação discursiva (todo e qual­quer discurso), visando à adesão do ouvinte.

As duas características básicas da argumentação são eficácia e caráter uti­litário. A eficácia do discurso é atingida quando suscita a adesão ao apresen­tado como tese.

Quando alguém usa a linguagem para defender uma idéia, está fazendo uma argumentação que pode ser fraca ou forte para essa defesa. Por meio de um a maneira de dizer, do imaginário de um vivido, são passadas as idéias contidas no discurso do texto. O grau de força de um argumento depende de vários fatores, entre os quais se destacam sua formulação e o contexto em que é utilizado.

Para levar à convicção e persuasão, há vários recursos, como, por exem­plo, escolha de termos para expressar o pensamento que raramente deixa de ter alcance argumentativo. Também o procedimento da singularização pode ser visto como um eficaz procedimento argumentativo.

Procedimentos argumentativos

No processamento textual, há uma série de expedientes argumentativos2 usados pelo produtor do texto para criar efeitos de sentido, no intuito de con­vencer e persuadir o interlocutor. O enunciador vale-se de procedimentos ar­gumentativos, em um jogo discursivo intencional cujo propósito é convencer e persuadir o ouvinte ou leitor a aceitar a validade do sentido produzido pela argumentação. Eis alguns procedimentos argumentativos:

• Linguagem metafórica: desde que deixe de ser concebida como mero or­namento, compõe um conjunto de estratégias capazes de contribuir para a produção dos efeitos persuasivos. O uso, por exemplo, de eufemismos como recurso para suavizar a carga conotativa de outra expressão menos agradável, mais grosseira, ou acepções tabus.

2 Esse rol de p rocedim entos argum entativos baseou-se especialm ente em Citelli (11), Perelman (28 e 29) e Perelman & Olbrechts-Tyteca (31).

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• Diferentes tipos de argumentos: argumento de autoridade, destacado por invocar o peso da opinião de uma autoridade universalmente reconhecida; argumento de justiça, baseado no tratamento conferido a seres e situações de uma mesma categoria; argumento pragmático, fundamentado na relação de dois acontecimentos sucessivos por meio de um vínculo causai, como a transferência de valor de uma conseqüência para sua causa; argumento do desperdício, implicando a idéia de, se o trabalho já foi iniciado, ser preciso ir até o fim para não perder tempo e investimento; argumento pelo exemplo ou modelo, incluindo a sugestão de imitar as ações de outros; argumento pelo antimodelo, variação da argumentação pelo exemplo, trazendo o que se deve evitar; argumento pela analogia, utilizando como tese de adesão inicial um fato com uma relação analógica à tese principal (exemplo de 1, p.63-4: tese [principal] defendida pelo médico baiano em seu livro Menstruação, a san­gria inútil: as mulheres devem inibir a ovulação para evitar a menstruação com medicamento. Questionado quanto a contrariar algo natural, Elsimar Coutinho alega que nem tudo que é natural é bom, como os terremotos, a co­caína etc.); argumento baseado em provas concretas, declarações apoiadas em fatos concretos ou em dados que devem apresentar-se com pertinência, suficiência, adequação e fidedignidade, com muita atenção para não incorrer em apresentação insuficiente ou generalizações impróprias.

• Escolha lexical: escolha de palavras, locuções e formas verbais. Costuma significar cruzamento dos planos estilísticos e ideológicos, configurando um jogo retórico para qualificar ou desqualificar. Destaque para o eufe­mismo, que, ao trocar nomes, tenta suavizar expressões.

• Intertextualidade: implica conhecimento sobre outros textos; a dependên­cia de outros textos já produzidos. A noção de intertextualidade - um diá­logo entre textos, presente em um texto - é fator importante de coerência, pois, para o processamento cognitivo (produção e recepção) de um texto, recorre-se ao conhecimento de outros textos. O conceito do fenômeno da intertextualidade é estudado partindo da concepção de polifonia textual (coro de vozes) formulada por Bakhtin (4, p.24): “Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto”. Usar citações literais, por exemplo, revela conhecimento sobre algum assunto, ou para atestar o dizer do locutor pela citação do discurso de ou­trem, o que vai ao encontro do que o argumento de autoridade implica.

• Coesão: é a ligação entre os elementos superficiais do texto, o modo como se relacionam, o modo como frases ou partes delas se combinam para as­segurar um desenvolvimento proposicional. O conceito de coesão textual

Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 123

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124 Direito e Argumentação - Parte 2

diz respeito a todos os processos de seqüencialização que asseguram (ou tornam recuperável) uma ligação lingüística significativa entre elementos na superfície textual. A coesão contribui, no sentido linear, estrutural, do texto, para obtenção da coerência. Contudo, é esta última que promove a interação autor-leitor mediada pelo texto. Leffa (24) indica a coesão de um texto poder ser estabelecida de quatro maneiras diferentes:- pela organização lexical

repetição - um mesmo item lexical é repetido;sinonímia - na relação sinonímica, o significado está no dicionário; o sentido é construído no texto.

- pela referênciaanáfora - referência a um conteúdo verbal já mencionado; na anáfora endofórica, uma palavra do texto não remete ao m undo real ou possí­vel, mas a outra palavra do texto;catáfora - referência a um conteúdo verbal que ainda será mencionado.

- pela elipse (ou apagamento de um termo da frase)um item omitido para não ser repetido, mas recuperável pelo contexto.

- pelos conectoresuso argumentativo de elementos conectores para estabelecimento ou manutenção da coesão textual por seqüenciação feita por encadeamen- to de segmentos textuais. São usados conjunções, locuções conjuntivas, preposições, locuções prepositivas (causa, finalidade, conclusão, contra­dição, condição, adição, conseqüência, comparação, oposição, conces­são, proporção, tempo) e operadores argumentativos3. Sendo responsá­veis pela sinalização da argumentação, os elementos conectores, além de encadear os segmentos textuais,

3 Os elementos que funcionam com o operadores argumentativos têm papel transfrástico e atendem a fatores de função textual por orientarem a seqüência do texto. São elementos lingüísticos que atuam com o instruções dc natureza gramatical c determ inam os encadeam entos possíveis n o tex­to para sua progressão semântica. Afetividade: felizmente, queira Deus, pudera, oxalá, ainda bem (que). Afirmação: com certeza, indubitavelmente, p o r certo, certamente, dc fato. Conclusão: em sum a, em síntese, em resumo, afinal. Conseqüência: assim, conseqüentemente, com efeito, então, e (então, assim). Continuidade: além de, ainda por cima, bem com o, tam bém . Designação: eis. Dúvida: talvez, provavelmente, quiçá. Ênfase: ate, ate mesmo, no m ínim o, n o máximo, só. Exclusão: apenas, exceto, m enos, salvo, só, somente, senão. Expletivo: lá, só, ora, que. Explicação: a saber, isto é, po r exemplo. Inclusão: inclusive, tam bém , m esm o, até. Oposição: pelo contrário, ao contrário de. Prioridade: em prim eiro lugar, prim eiram ente, antes de tudo, acima de tudo, inicialmente. Situação: mas, então, pois. Realce: é que. Restrição: apenas, só, somente, unicamente. Retificação: aliás, ou an ­tes, melhor, isto é, o u seja. Tempo: antes, depois, então, já, posteriorm ente (cf. 6 e 44).

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Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 125

relacionam enunciados entre si e/ou com o próprio evento da enunciação, isto

é, assinalam os processos de seqüencialização, por meio dos quais se exprimem os diversos tipos de interdependência semântica e/ou pragmática entre os enunciados componentes de uma superfície textual. (22, p.85)

Coerência: diz respeito à configuração de conceitos e relações na estrutu­ra profunda do texto. A coerência está diretamente ligada à possibilidade de estabelecer um sentido para o texto, ou seja, ela faz com que o texto te­nha sentido para os usuários, devendo ser vista como um princípio de in- terpretabilidade do texto. Em decorrência da análise da coerência, é funda­mental o conhecimento prévio de cada leitor como agente influenciador no processo de compreensão do texto. A coerência pode ser, também, liga­da à inteligibilidade do texto em um a situação de comunicação e à capaci­dade que o receptor do texto tem ao interpretá-lo para compreendê-lo, para calcular seu sentido. Trata-se, pois, da possibilidade de estabelecer, no texto, alguma forma de unidade ou relação. Essa unidade é sempre apre­sentada como unidade de sentido no texto, caracterizando a coerência como global, isto é, referente ao texto como um todo.Alusão: faz rápida menção a alguém ou algo de modo vago ou indireto. Por esse processo, o leitor ou ouvinte absorve, por meio de pequenos índices, va­lores, idéias ou conceitos. Pode-se usar esse recurso para avaliar indireta­mente um fato ou uma pessoa, pela citação de algo que o lembre. Expressões de valor fixo: fórmulas lingüísticas (termos, expressões, ditos populares, provérbios), geralmente de origem popular, que sintetizam um conceito a respeito da realidade ou uma regra social ou moral.Ironia: blague, paródia, piada, chiste. Recursos irônicos constituem argu­mentos, pela via do hum or corrosivo, quando desvalorizam ou ridiculari­zam uma idéia, um valor, uma assertiva presente no dizer de alguém. A blague, pelo riso e pela brincadeira, desqualifica algo ou alguém por afir­mações inusitadas das qualidades positivas da contraparte. A paródia é obra literária, teatral ou musical imitando outra obra ou procedimentos de uma corrente artística com objetivo jocoso ou satírico. A piada é um texto humorístico curto de final surpreendente, às vezes picante ou obsce­na, contada para provocar risos. O chiste é um dito espirituoso, geralmen­te de hum or fino e adequado gracejo (pilhéria).Instâncias gramaticais: recursos explicativos com uso de interpolações conferindo sentidos novos aos enunciados (destacar informação, ainda que aparente ser mero acessório, explorar efeito irônico ou demonstrar conhe-

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126 Direito e Argumentação - Parte 2

cimento de algo). Trata-se de esquemas explicativos em geral incluindo des­de uso de apostos até mecanismos adverbiais. O uso de segundo se afirma - esquema explicativo-conformativo - revela a informação veiculada não ser de responsabilidade do redator. Lança-se mão desses recursos para dar mais força de verdade aos enunciados. Como os esquemas coesivos, as instâncias gramaticais também implicam uso argumentativo da gramática.

Como os gêneros textuais são fatos sociais que emergem na atividade de compreensão intersubjetiva em situações típicas nas quais é preciso gerenciar atividades e compartilhar significados rum o a propósitos de ordem prática (5), tomemos uma prática comunicativa autêntica do domínio discursivo da jurisprudência, a fim de analisar como o produtor busca “fazer com que os destinatários respondam segundo uma certa organização persuasiva da lin­guagem” (11, p.7), ou seja, como, pelos procedimentos argumentativos, o ope­rador do direito pretende provocar uma reação no interlocutor.

Uma decisão interlocutória é uma decisão de cunho interlocutório que, ao contrário de uma sentença, não tem o condão de colocar fim ao processo, ou seja, como decisão interlocutória proferida cm inquérito policial, tem por ob­jetivo precípuo a apuração de crime de ação penal pública. Como parte inte­grante de um inquérito policial, segundo Bozolo (7), a finalidade de um in­quérito policial é servir de base para instauração da ação penal pública a ser promovida pelo órgão do Ministério Público. Bozolo recupera as palavras de Augusto Mondin para caracterizar mais:

É o registro legal, formal e cronologicamente escrito, elaborado por autorida­

de legitimamente constituída, mediante o qual esta autentica as suas investiga­

ções e diligências na apuração das infrações penais, das suas circunstâncias e dos seus autores, (ibid., p.l)

O trabalho a seguir se propõe analisar os recursos expressivos argumenta­tivos da linguagem verbal, partindo da relação texto-contexto, de modo a exa­minar como operam a serviço da intencionalidade. Esse fator de textualidade refere-se ao direcionamento ideológico e intencional do produtor do texto, ao preenchimento de suas expectativas, enfim, ao modo como ele constrói textos para perseguir e realizar suas intenções, produzindo, para tanto, textos adequa­dos à obtenção dos efeitos desejados. A intenção do autor é uma constitutiva essencial e inseparável à criação de seu texto; mas, como ensina Eco (18, p.86), não se deve confundir: a intenção do texto é do próprio texto-produto já aca­

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Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 127

bado, que se torna autônomo e, de certa forma, pode ser visto dissociado do autor. No momento da leitura, a intenção do texto normalmente prevalece para o leitor, o que é verificável nas interpretações feitas pelos leitores.

A peça jurídica eleita como corpus, uma decisão interlocutória, é oriunda de uma prática comunicativa autêntica'1, como pode ser atestado por parte da notícia jornalística publicada em 22 de setembro de 20005:

O juiz da Ia Vara Criminal do Fórum do Jabaquara, Ricardo Graccho, não con­cordou com o pedido de arquivamento do inquérito policial da queda do

Fokker 100 da TAM. O arquivamento foi requerido pelo promotor de Justiça Mário Sarrubbo, que reconheceu que o acidente foi causado pela abertura, em pleno vôo, do reverso (freio), mas que inexistem provas quanto às responsabi­

lidades criminais.

Ao vivenciar situações didáticas de análise lingüística (atividades epilin- güísticas e metalingüísticas), o indivíduo tem mais condições de refletir sobre as intenções do produtor, observar usos mais característicos dos expedientes argumentativos nesse gênero de texto e efeitos de sentido provocados pelas escolhas lexicais e estilísticas e sobre o papel social do redator do texto, por exemplo. As atividades epilingüísticas procedem de uma reflexão voltada para o uso, no próprio interior da atividade lingüística na qual se realiza (20). Por serem praticadas nos processos interacionais, tais atividades dizem respeito à reflexão sobre a língua em situações de uso, possibilitando aprim orar o con­trole sobre nossa própria produção lingüística. Assim, a reflexão sobre os re­cursos expressivos utilizados pelo produtor do texto - quer esses recursos se refiram a aspectos gramaticais, quer a aspectos envolvidos na estruturação dos discursos - não prioriza a categorização. Isso implica as atividades epilin­güísticas poderem transformar-se em processos extraordinariamente produ­tivos na conscientização lingüística do estudante e na formação de sua com ­petência comunicativa, para que ele se torne também criador e não apenas reprodutor do conhecimento.

4 Por causa do lim ite do n ú m ero de páginas a que este capítu lo se subm ete, a fo rm atação original sofreu alterações, especialm ente e m relação a recuo de parágrafo da p rim eira linha e espaços e n ­tre parágrafos.

5 M atéria in titu lada “Famílias do caso tam recusam RS 40 m ilhões”, assinada p o r A ndréa Portella. In: O Estado de S. Paulo, wvvvv.estado.estadao.com.br/editorias/2000/09/22/cid992.html; acessa­do em 02.03.2005.

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128 Direito e Argumentação - Parte 2

As atividades metalingüísticas estão relacionadas a um tipo de análise vol­tada para a descrição, por meio da categorização e sistematização dos elemen­tos lingüísticos, com a classificação ou o levantamento de regularidades sobre essas questões6. A metalinguagem não precisa ser sempre relegada; ao contrá­rio, é necessário falar sobre a língua, pois, em situações didáticas, a atividade metalingüística pode desenvolver-se de modo a propiciar a sistematização e a classificação das características específicas da língua. É preciso ressaltar, no en­tanto, a abordagem da língua em seu contexto sociocomunicativo pressupor um âmbito que extrapola o campo da análise lingüística, pois aqui se necessi­ta de um saber mais amplo - um saber sobre o mundo.

Para operacionalizar a análise lingüística, que não se pretende exaustiva, a Tabela 3 apresenta, na coluna esquerda, o texto original e, na coluna direita, os comentários analíticos paralelamente a cada parágrafo.

Inquérito Po lic ia l n. 382/96 1a Vara Crim inal

Vistos.

Trata-se de inquérito instaurado

pela autoridade Policial, visando

apurar as causas do lamentável acidente aéreo ocorrido em 31 de outubro de 1996, ocasião em que

foram abruptamente ceifadas as vidas de noventa e nove seres humanos.

O texto tem início com dois fatores contextualizadores (número do inquérito e vara), seguidos do termo vistos, que, na linguagem do foro, implica o ope­rador do direito já ter exam inado toda a documentação submetida para apreciação.O ponto de partida para a argumentação, como esclarece Perelman (28, p.243), leva necessariamente o autor a fazer uma escolha que d iz respeito

"tanto aos fatos e aos valores mencionados, com o à sua descrição numa certa linguagem e com uma insistência que varia segundo a importância

que se lhe atribui'.'As seleções feitas serão o indicativo de manifestações de uma parcialidade se a elas poderem ser opostas outras escolhas.

Para introduzir o assunto7, o autor anuncia o objetivo de tal inquérito po li­cial. As escolhas lexicais com pondo esse enunciado revelam mais do que mera apresentação do fato (morreram 99 pessoas em acidente de avião que caiu), pois não se isentam de ju ízo de valor:• lamentável acidente: o adjetivo remete à idéia de o ju iz considerar o

acidente d igno de ser lamentado por seu caráter trágico e doloroso;

continua

6 “Entre o saber m etalingüístico e o saber epilingüístico, há o que os filósofos da linguagem cha­m am consciência lingüística e os diferentes procedim entos que perm item manifestá-la” (2, p. 84).

7 A inda q ue não seja escopo deste estudo , p ode-se observar nesta peça ju ríd ica os e lem entos es­tru tu ra is do texto a rgum en ta tivo , fixados p o r Aristóteles em q u a tro instâncias seqüenciais e in tegradas: I a) exórdio : in tro d u z a idéia central, indica o p o n to de vista a ser defendido , con- tex tua lizando o assun to , cu jo p ro p ó s ito é p ren d er a a tenção do in te rlo cu to r; 2a) narração: d e ­senvolvim ento dos fatos na m ed ida certa, co m p reen d en d o a a rg u m en tação p ro p riam en te dita; 3a) provas: e lem entos co m p ro b a tó rio s que susten tam a a rgum en tação , c o m p o n d o a instância p a r ticu la rm en te significativa do d iscurso ju ríd ico ; 4a) peroração: conclusão, epílogo, instância que fecha a a rg u m en tação e, p o r ta n to , a ú ltim a o p o r tu n id a d e para convencer e persuadir, c o m p o n d o -se de q u a tro partes: d isp o r o recep to r mal em relação ao adversário, am plificar ou a ten u a r o que foi dito , excitar as paixões do recep to r e p roceder a u m a recap itu lação (cf. 10).

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Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 129

continuação

• abruptamente ceifadas as vidas: uso do advérbio para intensificar o

sentido da rapidez das mortes;• ceifadas as vidas: ceifar é matar com foice. O uso no sentido figurado

(hiperbólico) instaura conotação de violência e enaltece a crueldade do fato;

• noventa e nove seres humanos: aqui o efeito retórico é mais contundente

do que uma escolha mais referencial, com o pessoas ou indivíduos em vez

de seres humanos.O somatório desses recursos lingüísticos induz o destinatário a considerar o

fato com indignação, além de orientar o leitor para a tese a ser defendida.

Eram por volta das oito horas e trinta

minutos, quando a aeronave da marca Fokker 100, prefixo PT-WRK,

de propriedade da empresa TAM -

Transportes Aéreos Regionais S/A, logo depois de decolar partindo da cabeceira 17 de pista do Aeroporto

de Congonhas, veio a projetar-se contra o solo, atingindo e destruin­do várias edificações.

As escolhas que seguem conferem uma carga semântica que, de início, pa­recem objetivas e imparciais, mas, na verdade, manifestam um caráter ten­dencioso, se comparadas a outras possibilidades correlatas.

• veio a projetar-se contra o solo: por que não simplesmente caiu? Para dar

maior força argumentativa pelo esmero retórico;* atinçindo e destruindo várias edificações: a repetição do gerúndio

intensifica o estardalhaço e confere gradação dos fatos para expressar

a circunstância.

Inúmeras testemunhas foram ouv i­

das e abundante prova documental restou reunida, inclusive o relatório final do M inistério da Aeronáutica, subscrito pelo Coronel Aviador Douglas Ferreira Machado, Chefe do CENIPA/SIPA-ER - Sistema de

Investigação e Prevenção de Acidentes Aéreos - e aprovado pelo Tenente Brigadeiro do Ar

Ronald Eduardo Jaeckel, Chefe do EMAer - Estado Maior da

Aeronáutica (apenso n. 13).

Para não deixar dúvidas quanto ao fato, o ju iz se vale de testemunhos de

pessoas devidamente documentados, configurando-se, portanto, argumen­to baseado em prova concreta, e do relatório redigido por coronel do M inistério da Aeronáutica e aprovado pelo chefe do EMAer, duas autorida­des cuja área tem relação direta com o caso. Recorrer ao argumento de au­toridade é uma forma de tornar as autoridades citadas fiadoras da veracida­

de do que está relatado.Para somar o testemunho das autoridades ao das testemunhas, foi empre­gado o operador argumentativo de inclusão inclusive.

O M inistério Público, por seu repre­

sentante especialmente designado para acompanhar o presente proce­dimento investigatório, requereu o

arquivamento do feito, por não vis­lumbrar indícios suficientes de in­fração penal a ser acossada, confor­me se extrai do bem lançado parecer de fls. 1.602/27.

Uso de interpolações com o recursos explicativos para conferir sentidos no­

vos aos enunciados e dar mais força de verdade aos enunciados:• a seqüência por seu representante especialmente desionado para acompa­

nhar o presente procedimento investioatório exerce função explicativa so­

bre representante do M inistério Público;• a seqüência por não vislumbrar indícios suficientes de infração penal a ser

acossada exerce função explicativa sobre a causa do arquivamento.O uso de elemento coesivo, a conjunção conforme, revela a informação vei­culada não ser de responsabilidade do redator e serve para dar mais força

de verdade ao enunciado anterior, ao mesmo tempo que o liga à fonte fidedigna da qual foi retirado o parecer.Escolhas lexicais:

• vislumbrar indícios suficientes: o emprego desse verbo, em sentido figurado, significa perceber ou compreender indistintamente, confere conotação irônica e hiperbólica indicativa de quão impossível foi encontrar indícios suficientes;

• infração penal a ser acossada: a escolha de acossada em lugar de perseouida, por exemplo, pode ser indicativo do efeito retórico abarcado

pela palavra, por ser uma palavra que revela mais erudição;• bem lançado parecer: advérbio com a função de manifestar a circunstân­

cia de intensidade que cerca a significação do adjetivo, realçando, por

conta do significado do termo juríd ico lançado (que passou do prazo; expirado), o parecer já ter sido devidamente dado.

continua

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130 Direito e Argumentação - Parte 2

Escolhas lexicais:• consione-se: termo juríd ico que significa depositar em juízo, nas mãos de

um terceiro;• ainda: elemento coesivo cuja carga semântica é de inclusão, liga a

idéia do parágrafo anterior {prova documental) à idéia deste parágrafo (outra prova documental, a respeitável sentença) para conferir mais sustentabilidade ao rol de provas concretas do relatório;

• respeitável sentença: adjetivaçáo indicativa de ju ízo de valor meritório.

É o breve relatório. Outro aspecto a ser evidenciado no texto é a pontuação como fatorimportante para estabelecimento das relações coesivas por conta da progressão temática vinculada à constituição dos parágrafos. Pelas escolhas do autor, fica evidente que, no funcionamento do texto, a pontuação atua na construção do sentido. O estilo enxuto da paragrafação em circunstâncias com o esta, a seguinte e outras ao longo do texto ordena as idéias apresentadas, realça a informação e confere clareza.

Os termos juríd icos fundamentação e decisão orientam ordenadamente o leitor no sentido de, com a fundamentação, ter in ício a exposição do princípio da legalidade estrita, segundo o qual "as decisões judiciais devem basear-se em normas legais pertinentes" (14, p.220),o que de fato se dá, com o observado no parágrafo seguinte. Com a decisão, serão iniciadas as ponderações sobre questões incidentais que interferem no andamento do processo referente ao crime.

Para dar in ício à fundamentação de sua tese, o autor se vale da responsabilidade objetiva - que não é fundada em culpa - prevista pelo conjunto da legislação referente ao âmbito criminal: se há responsabilidade, há culpabilidade.Neste e nos parágrafos subseqüentes, ao valer-se das peculiaridades da legislação penal brasileira, o autor recorre ao argumento de autoridade para sustentar suas ponderações.

O crime punível é um fato típico, Prossegue o ju iz defin indo o crime passível de punição, com escolhasantijurídico e culpável. lexicais de termos jurídicos:

• crime: conforme o conceito analítico, ação típica e antijurídica, culpável e

punível (16);• fato típico: correspondente à descrição do tipo penal (14);• antijurídico: que contraria as normas jurídicas; ilegal, injurídico.Este parágrafo retoma o anterior ao relacionar se há responsabilidade, há culpabilidade e se há crime, há culpabilidode. Esse procedimento pode ser considerado como o de argumento pragmático.

De forma clara e bastante didática, o ju iz expande o sentido dos termos

empregados no parágrafo anterior, respeitando a ordem na qual sãoenunciados:• tipicidade: reunião, em um fato, de todos os elementos que definem

legalmente um delito. Cunha (14) esclarece mais: característica do enun­ciado da norma penal, concernente à existência do tipo; correspondência entre conduta e tipo penal;

• antijuridicidade: oposição ao direito; ilegalidade jurídica.

Por outro lado e ainda de forma A culpabilidade merece um parágrafo em separado provavelmente parasimplista, a culpabilidade nada destacar que, em direito penal, cu lpabilidade é concebida como elementomais é do que o elo de ligação en- subjetivo ligando o fato ao seu autor, manifestando-se pelo dolo.tre o agente e a punibilidade.

Portanto, para que uma infração penal seja perseguida e mereça o agente tratamento punitivo, não basta que o fato seja típ ico e antijurídico.

continuação

continua

A conclusão a que chega o autor acerca da punição à violação de norma de direito penal é iniciada com o elemento conector portanto, que, além de ligar esta oração à anterior, mantém entre ambas determ inada relação de sentido, não sendo, por conseguinte, fruto do acaso a escolha de tal elemento de coesão. Outra escolha lexical do âmbito jurídico: aoente, que significa o que infringe a lei penal; agente do crime.

Com bastante singeleza, a tipicidade

consiste no fato que se enquadra na descrição da lei penal, na espécie, homicídio. A antijuridicidade emerge no momento em que uma conduta humana fere um interesse defendido pelo Direito, no caso, a vida, o que a torna ilícita.

Passa-se à fundamentação e decisão.

Não existe no atual ordenamento juríd ico crim inal brasileiro, diverso da órbita civil, a denom inada res­ponsabilidade objetiva.

Consigne-se, ainda, a pedido do M inistério Público, a anexação da respeitável sentença de Io Grau de Jurisdição referente à responsabili­

dade Civil (fls. 1.544/600).

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Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumeniativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 131

continuação

Há necessidade que fique

cabalmente demonstrado tenha o agente concorrido com dolo ou culpa (em sentido estrito), presente a culpabilidade até como pressuposto da sanção.

Feitas essas resumidas considerações

doutrinárias, mas necessárias ao desenvolvimento do raciocínio que conduzirá à conclusão, passa-se à

análise do quanto apurado no

presente inquérito.

Distante de qualquer dúvida, a causa do acidente fundou na

abertura não comandada do reverso do motor direito em momento inoportuno, pois, no exato instante em que a aeronave transitava de"ground" para "air

position" indicando o momento da decolagem.

Tal anormalidade, não obstante o esforço da tripulação para corrig ir o problema, resultou na inclinação do

avião para a direita, de oitenta e

sete graus, bem com o na perda do controle em vóo, quando ocorreu o impacto com o solo.

Para encerrar esta etapa da argumentação, o autor adverte ser necessário

demonstrar a atuação do agente do crime se configurar dolo ou culpa por ser essa condição da própria norma penal (dolo, elemento de vontade consistente na intenção de causar dano, cf. 14). O operador argumentativo até enfatiza esse último aspecto do enunciado com o pressuposto da sanção.

Não se trata apenas de demonstrar, mas de demonstrar cabalmente, o que, na seqüência do texto, o juiz fará. Cobolmente parece conferir mais força semântica do que um termo equivalente, como, por exemplo, completamente.

No intuito de orientar o leitor, este parágrafo anuncia a transição das consi­derações levadas em conta à análise do que o inquérito averiguou. No en­

tanto, não se trata de meras considerações: são considerocões doutrinárias, ou seja, a escolha do adjetivo elucida quanto aos princípios imutáveis e ab­

solutos para os quais não há contestação, por se basearem em doutrinas do

ordenamento juríd ico brasileiro.Como recurso explicativo, o uso de interpolação da seqüência mos necessá­rias ao desenvolvimento do raciocínio que conduzirá à conclusão, em tom de advertência (conferido pelo uso da adversativa mas),óè mais força de ver­dade ao enunciado.

Embora o parágrafo anterior anuncie que será analisado o apurado, o autor opta por apresentar antes a causa do crime para, depois, dar conta

da análise prometida, recurso mais contundente em termos de procedimentos argumeniativos também por iniciar pela seqüência distante de aualauer dúvida. O advérbio distante estabelece conotação afastando a possibilidade de haver dúvida a respeito do que causou o acidente.A conjunção conclusiva pois em posposição marca pausa maior, e a

pontuação a destaca; ao participar do segmento que denota uma conclusão para o dito anteriormente, a posposição enfatiza a causa do acidente.O emprego de termos técnicos para caracterizar o momento de levantar vòo confere mais precisão ao enunciado.

Para referir-se à abertura involuntária do reverso, o autor se vale do mecanismo de coesão textual ao estabelecer a ligação lingüística entre esse fato e o ju ízo de valor conferido pela escolha de tal anormalidade {tal, pronome demonstrativo + anormalidade). A interpolação não obstante o esforço do tripulação para corriçir o problema, iniciada pelo conector não obstante, indica idéia oposta ao restante do enunciado, que diz respeito ao empenho da tripulação em reverter a abertura do reverso.

E, no que diz respeito aos pressupostos do crime, ajusta-se, de primeira vista, que não há indícios

para sustentar eventual dolo ou

culpa de qualquer membro da tripulação.

Reitera o ju iz a ressalva à culpa ou do lo da tripulação e, ao isentá-la, prepara o leitor para os argumentos que sustentarão a tese do autor em relação ao culpado pela abertura do reverso.

Basta conferir a conclusão encartada no Relatório Final do Estado-Maior da Aeronáutica

(anexo n. 13):

“A investigação constatou ter ocorrido uma abertura inadvertida de reverso (reverse unlocked) do motor direito auando a aeronave deixou a pista (Lift off)"

Neste parágrafo, o ju iz passa a oferecer dados para convencer e sustentar a assertiva quanto à isenção de culpa da tripulação, citando documento do

qual reproduz passagens nos dois parágrafos seguintes. O argumento tem muito mais peso, pois se embasa em fato comprobatório,aqui configurado pelo Relatório da Aeronáutica - argumento baseado em prova concreta.

Esse relatório constitui argumento de autoridade por conta do peso da declaração proveniente de um órgão de tal natureza.

continua

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132 Direito e Argumentação - Parte 2

continuacão

E mais:"/4 pane foi inusitada e náo previsto nos procedimentos de emergência, ocorrendo na fase mais critica de performance do vôo: TRANSIÇÃO - corrida de decolaaem/ subida - e mais, submetida a inter­pretações induzidas, corroborada pelas informações anterioresf ooravada pelos avisos sonoros e luminosos e, ainda, pela intermitência do travamento/destravomento do manete do motor direito - ciclaoem do reversor".

Para concatenar esta citação à anterior, ambas retiradas do relatório já

citado, o ju iz se vale da locução e mais, que funciona como operador argumentativo de continuidade e complementaridade.Observe-se o valor catafórico dos dois-pontos para anunciar o in ício da citação e o realce das citações conferido pelo itálico e pelas aspas, mecanismos de notação orientando o leitor acerca do que foi com pilado

do relatório.

Destarte, totalmente imprevisível a

conjuntura para quem não tinha as informações e instruções, escritas ou práticas, para reconhecimento

da anormalidade.

Afasta-se, assim, qualquer indício de

do lo ou culpa, em qualquer de suas modalidades, por parte da tripu la­ção do Fokker 100 da TAM.

Todavia, ao contrário da tese defen­dida pelo M inistério Público, há for­

tes indícios de que pessoa de rele­vo científico tinha informações suficientes para prever que o rever­so poderia abrir independentemen­te de comando.

Dando curso à progressão lógico-argumentativa do texto,o conector

destarte interliga as citações à idéia da imprevisibilidade com a qual se deu inadvertidamente a abertura do componente, aliada à impotência da tripulação para agir em virtude do desconhecimento de com o proceder

nesse tipo de situação. Para referir-se ao fato, o ju iz usa a repetição do item lexical anormalidade, reiterando o juízo de valor provocado por essa escolha. Destaque-se o emprego do advérbio totalmente, que exprime idéia de quantidade ou medida em relação à abrangência por com pleto da imprevisibilidade com a qual aconteceu a abertura do reverso.

Neste parágrafo, com o conseqüência do raciocínio desenvolvido, o juiz apresenta argumento pragmático, fundamentado na relação de dois acon­tecimentos sucessivos por meio de um vínculo causai (a abertura inadverti­da do reverso e o travamento/destravamento da manete do motor direito),

com a transferência de valor de conseqüência - isenção de responsabilida­de da tripulação - para sua causa. Esse teor instaura-se mais especificamen­te pelo operador argumentativo de conseqüência assim.Fazendo uso repetido do adjetivo auolauer, aqui com sentido de todo ou

toda, há reforço à idéia de a tripulação não ter tido absolutamente nada a ver com a causa do acidente. Observação interessante: o item lexical aualouer é empregado quatro vezes pelo autor durante todo o texto, todas elas quando se trata de isentar a tripulação de dolo ou culpa.Isentada definitivamente a tripulação, resta saber em quem recai a culpa.

0 fluxo dessa linha de raciocínio progride com o efeito de sentido de con­traste gerado pelo elemento conector todavia, interligando a idéia da isen­

ção da tripulação anteriormente defendida a fortes indícios de outrem que sabia da possibilidade de abertura ingovernada do reverso. Caracterizar in­dícios pelo adjetivo fortes indica avaliação de reprovação do produtor do texto. Se eram fortes tais indícios, por que não houve manifestação de quem conhecia a probabilidade do problema?

O recurso explicativo da interpolação ao contrário da tese defendida pelo Ministério Público destaca a tese desse órgão público, ainda que aparente­mente essa informação pareça mero acessório, por já constar desta decisão

interlocutória. Esse uso argumentativo da gramática, além de servir de es­quema explicativo, demonstra o ju iz náo concordar com tal tese, por conta do uso do operador argumentativo de oposição ao contrário.Para designar a pessoa que detinha informações acerca da possibilidade de o reverso abrir por si só, o jurista emprega a locução adjetiva de relevo cien­tífico para orientar delim itativamente a referência a um aspecto do denota­

do: d istinguir seu reconhecido saber. Esse efeito de sentido é obtido tam­bém pelo uso da linguagem metafórica no referente ao item lexical relevo, cujo significado é distinção, realce, destaque (cf. 15).

continua

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Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 133

continuação

O seu fabricante, a Northrop Grumman Corporation.

Ora, o relatório em itido pelo Instituto de Fomento e Coordenação Industrial (IFI),do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) do M inistério da Aeronáutica, em

3 de fevereiro de 1997, a respeito

dos testes nos indutores dos reversos, foi taxativo:

"O relatório concluiu aue - Os testes realizados nos dois solenóides do Secondary Lock Actuador (Cl.l. P/N A- 1.355, S/N 874 - do reversor esauerdo e S/N 870 - do reversor direito) de atuação da trava secundária das portas dos reversores de empuxo das turbinas mostraram inconsistência nas respostas dos mesmos e a conseaüente falta de confiabilidade por eles apresentada.

A expectativa a respeito da identidade da pessoa de relevo cientifico é elucidada com destaque conferido pelo estilo da pontuação empregada, pois a essa revelação o ju iz destina um só parágrafo.Ao anunciar se tratar do fabricante do reverso, o autor mais uma vez se vale do recurso explicativo da interpolação com o uso do aposto para destacar o nome do fabricante.

O uso do elemento coesivo anafórico referencial - pronome possessivo seu - faz referência à palavra do parágrafo anterior reverso.

Tendo revelado, no parágrafo anterior, o responsável pela fabricação do componente que gerou o acidente, aqui a progressão semántico-argu- mentativa flui a partir do denotador oro, que funciona com o operador argumentativo e tem como função realçar as averiguações de outro argumento de autoridade, o Relatório do M inistério da Aeronáutica. Em

relação à postura de tal relatório ante os resultados a que chegou, o

jurista usa o adjetivo taxativo, metáfora que desencadeia a idéia de não dar margem à objeção, ou seja, não adm ite réplica ou contestação.

Este e os três parágrafos subseqüentes estabelecem a intertextualidade por meio de citações literais retiradas do Relatório da Aeronáutica, que, como

documento oficial, atesta o discurso do ju iz pela citação do discurso de ou­trem, indo ao encontro do que o argumento de autoridade implica.Neste parágrafo, a citação apresenta a conclusão do relatório: o problema

dos reversores e, conseqüentemente, a inconfiabilidade por eles ocasionada.

Os componentes, aue deveriam apresentar um padrão de aualidade aeronáutica, colocados em operação, sofrem uma deterioração anormal, inexplicada pelos próprios fabri­cantes que vêm, há algum tempo, pesquisando formas de otimização.

Para destacar que o fabricante já era sabedor da anormalidade com que se deu a deterioração dos reversores e a falta de condições de explicá-la, o juiz usa o negrito com o mecanismo de notação que gera efeitos particulares - aumentar e preservar a força do argumento de autoridade.

Mesmo assim, ficou claro aue as uni­dades continuam a ser montadas e fornecidos aos clientes com as defi­ciências aue, aparentemente, só não eram de conhecimento do FAA - uma vez que o Fabricante demonstrou que já as conhecia e o Representante Acreditado doaue- le órção mostrou-se surpreso com o aue presenciou.

0 fato de o fabricante já saber das insuficiências técnicas dos reversores aqui também é destacado pelo negrito com o mecanismo de notação.

Em resumo, as unidades (S/N 874 e S/N 870) aue eauipavam a aeronave acidentada, nos testes operacionais propostos e realizados, apresentaram desempenho muito inferior ao mini- mo aceitável paro oarontir o segu­rança e o confiabilidade do sistema e, conforme o concluído ao final dos trabalhos, especificamente a de S/N 870 (do reversor direito), teve parcela de contribuição na

Mais uma vez, o uso do negrito com o realce: a conclusão final dos

trabalhos de averiguação com a constatação de ter o encadeamento de fatos levado à abertura inadvertida do reverso quando o avião levantou vòo.

continua

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134 Direito e Argumentação - Parte 2

continuacão

seqüência de eventos que levaram à abertura não comandada das portas do reversor de empuxo da turbina n. 2, durante a fase de decolagem da aeronave".

Com efeito, em ficando consignado que a Northrop Grumman Corporation,fabricante das unidades questionadas, já vinha, há aloum tempo (momento temporal consignado na data da emissão do

relatório - 3 de fevereiro de 1997), pesquisando e trabalhando no

sentido de otim izar o seu produto,

é bastante provável que era do seu conhecimento, na época do acidente, a existência de deficiências

nos componentes que, segundo o Relatório Final do Estado-Maior da Aeronáutica, contribuíram na

seqüência de eventos que derrubaram o Fokker 100.

Não se trata, dessa forma, de

responsabilidade penal objetiva, instituto que independe de

demonstração da culpabilidade.

Seleção e organização de argumentos apresentados em defesa da perspectiva da responsabilidade do fabricante são recuperadas neste parágrafo, in iciado com o denotador de situação com efeito, cujo papel transfrástico implica explicação. Explicar, aqui, envolve ratificação de o fabricante já conhecer o problema do reverso por ocasião do acidente (o ju iz evidencia a questão do fator temporal com o grifado em seu

próprio discurso, outro tipo de notação). A explicação tem continuidade com algo do âm bito do convencimento, com o acréscimo de dados

precisos sobre a época da emissão do relatório, que vêm apresentados

entre parênteses, notação que tem por função inclu ir aspectos complementares ao que está sendo tratado.Também do discurso convincente o autor recupera o empenho do

fabricante no sentido de retroverter o problema do desgaste do reverso, indicando, portanto, já ser anteriormente do conhecimento da empresa.No entanto, para formular a assertiva, o jurista faz uso da modalização bastante provável, expressão que denota explicitamente possibilidade, aqui com o efeito de sentido “a atenuação do conteúdo da proposição','pois o

locutor acredita na veracidade do que escreve, mas não pode ou não deve comprometer-se totalmente com tal veracidade (9, p.219).Essa assertiva vem referendada pelo uso de secundo o Relatório Final do Estado-Maior da Aeronáutica, que, como esquema explicativo-conformativo, revela a informa­ção veiculada não ser de responsabilidade do juiz, recurso para dar mais força de verdade aos enunciados.Por estar chegando ao final do texto, outra significativa escolha lexical patenteia a tese defendida durante esta decisão interlocutória: em

deficiências nos componentes (...) contribuíram na seaüência de eventos aue derrubaram o Fokker 100, o verbo derrubor, cujo significado (deixar cair de

modo proposital ou inadvertido, deitar abaixo) im põe força argumentativa bem maior do que seria o uso de outro termo correlato.

Tendo apresentado seus argumentos, o jurista volta a valer-se dos

fundamentos de sua área de atuação para dar in ício aos arremates finais de seu texto. O indicativo mais tácito disso é o uso do elemento de coesão

por seqüenciação dessa forma,que assinala um tipo de interdependência

semântica ou pragmática entre este e o parágrafo anterior; ou seja, o uso desse elemento coesivo estabelece o sentido de conclusão, considerando o somatório dos argumentos e o que apresenta com respaldo nos

pressupostos do direito.Assim, o ju iz descarta da questão a responsabilidade penal objetiva, que não é fundada em culpa, isto é, cujo surgimento se dá simplesmente com a verificação do dano produzido, sem necessidade de comprovar relação entre ato praticado por um agente e dano decorrente desse

ato (14 e 16).Para explicitar o que implica a responsabilidade penal objetiva, recorre o jurista ao recurso explicativo da interpolação, destacando o sentido de tal

conceito jurídico. Ao construir seu discurso, o operador do direito emprega os termos jurídicos instituto (conjunto de regras e princíp ios jurídicos que regem determinadas entidades ou determinadas situações de direito, cf. 16) e demonstração (ato ou efeito de demonstrar, que é argumentar de m odo ir­refutável, cf. 14).

continua

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Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 135

continuacão

Na verdade, a conduta do

fabricante do reverso esbarra nas portas do dolo eventual e representa, pelo menos, indícios de culpa grave, consistente na falta de perícia para confecção de tão

importante componente, cuja

deficiência, repita-se, já conhecida na época (conforme relatório em itido pelo CTA/IFI), deu causa à tragédia de desmedida proporção.

Justifica-se, nessa linha de reflexão, o "jus persecutione" do Estado, por

seu representante, o M inistério Público.

Em assim sendo, determ ino sejam os autos do presente inquérito

instaurado pela autoridade Policial, com todos os seus apensos, remetidos ao Procurador-Geral de

Justiça do Estado de São Paulo, para os fins e efeitos do artigo 28, do Código de Processo Penal.

Para convencer e persuadir o receptor, este parágrafo procede a uma

recapitulação de fatos e argumentos apresentados e se propõe excitar as paixões do receptor, como é típ ico da peroração.O modalizador na verdade remete à idéia de reafirmação enfática de fortes reivindicações de conhecimento e manifesta o ju iz ter com o verdadeiro o conteúdo da proposição apresentada com o uma afirmação que náo admite

dúvidas, constitu indo uma necessidade epistémica (cf. 9). Com o o uso desse

tipo implica não adm itir argumentos contrários, o discurso do juiz ganha mais contundência, com o se percebe pela forma com a qual se refere à conduta do fabricante, que esbarra nas portas do dolo eventual. A metáfora esbarra nos portas também modaliza dolo eventual, pois, se dolo, em direito penal, é o elemento de vontade consistente na intenção de causar dano, esbarrar nas portas não implica entrar porta adentro. Ainda que adm ita por essa atenuação poder não haver dolo, na progressão argumentativa ocorre

o emprego da expressão quantitativa pelo menos relacionada a culpa grave. 0 adjetivo grave caracteriza a possibilidade designativa do substantivo culpa por orientar delim itativamente a referência à culpa, que, segundo Cunha (14), significa pesado, sério, importante.

Outra escolha lexical para designar culpa grave advém da caracterização partindo do adjetivo consistente, ou seja, logicamente coerente, em referência à imperícia com a qual foi fabricado o reverso.Também esse item lexical agora merece adjetivação que contribui para a defesa do ponto de vista do juiz, pois não se trata mais de mero componente, mas de um im­portante componente. Ao mencionar a importância do reverso, o ju iz se vale mais uma vez da interpolação com repita-se, destacando o retomado acerca do conhecimento pelo fabricante da deficiência apresentada,

assertiva realçada pelo grifo (para grifar seu próprio texto, o ju iz usa o grifado; para o texto das citações, o negrito).Para atestar seu dizer, o ju iz recorre ao argumento de autoridade com a menção ao relatório e, por fim, apresenta como causa do acidente a deficiência do produto.Diferentemente das outras vezes nas quais se referiu a ele, aqui, na

peroração, o acidente vem sob o rótulo de tragédia de desmedida proporção. O emprego em sentido metafórico de tragédia confere ao acidente o cunho de acontecimento funesto que desperta piedade ou horror, catástrofe,

desgraça, infortúnio (cf. 16) para provocar o efeito de sentido de ser o fato lastimável.

O operador do direito vale-se dos argumentos apresentados, aos quais se refere como linha de reflexão, como fundamento para que se cumpra o jus persecutione (persecução do direito) pelo M inistério Público. Observe-se o uso de notações do itálico e aspas para evidenciar a expressão latina.Tal ex­pressão latina implica o prosseguimento judiciário em busca de alcançar

um ideal de justiça, traçando as fronteiras do ilegal e do obrigatório, pelo conjunto de normas da jurisprudência.

Este parágrafo inicia com o elemento de coesão seqüencial de conclusão assim sendo, que inter-relaciona a idéia do jus persecutione com o epílogo,

que é consumado prescrevendo como orientação para a persecução do direito o envio dos autos (conjunto ordenado das peças jurídicas produzidas no decorrer do inquérito) ao Procurador-Geral, de acordo com o que reza o

art. 28 do Código de Processo Penal.

São Paulo, 10 de setembro de 2000 Ao assinalar a data de conclusão e provavelmente da emissão desta decisão

interlocutória, o ju iz lança mão de um fator de contextualização.

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136 Direito e Argumentação - Parte 2

Ao tratar dos procedimentos argumentativos da decisão interlocutória, gênero textual, procedemos à análise lingüística dos mecanismos usados pelo operador do direito para convencer e persuadir seus interlocutores acerca de sua tese: considerar o fabricante o responsável pelo acidente aéreo.

Análise, interpretação, relacionamento de dados, informações e alguns conceitos amplos da jurisprudência foram levados em conta para que fosse possível acompanhar a construção da argumentação em defesa do ponto de vista do juiz, que, na argumentação jurídica, deve ser óbvio. Fazer menção a essa necessária obviedade eqüivale a dizer que toda argumentação é parcial, pois o trabalho do operador do direito visa à busca de argumentos legais que sustentem seu ponto de vista e, em contrapartida, anulem os argumentos da parte contrária a fim de convencer da validade e legitimidade do que pretende. Ressalte-se os argumentos não serem verdadeiros ou falsos, mas, sobretudo, fortes ou fracos, convincentes ou não, em relação à situação discursiva em pauta, pois a argumentação jurídica enreda a lógica retórica, sem jamais se pretender prova categórica da mais pura verdade. Daí alguns operadores do direito aceitarem determinadas teses rejeitadas por outros. Além disso, é per­tinente assinalar a questão da interpretação da lei, que revela parcialidade inerente à argumentação jurídica tanto de quem a elabora quanto de quem vai julgar a argumentação elaborada.

Como o que mais caracteriza a atividade jurídica é a argumentação, por estar em correspondência à própria natureza persuasiva do discurso forense, é preciso reiterar que toda idéia só atinge força persuasiva se as razões que a fundamentam estiverem explicitadas com clareza e, logicamente, garantidas com argumentos eficazes constituídos de fatos, pois estes, a rigor, não preci­sam ser esclarecidos.

A seleção dos fatos e a forma de narrá-los, como visto, também envolvem aspectos argumentativos, e a narração apresenta, ainda que implicitamente, o ponto de vista do juiz. Também foi constatada a importância da seleção de itens lexicais como indicativo da subjetividade do produtor do texto, mesmo que ele se proponha parecer com isenção e imparcialidade.

Inquestionavelmente, o juiz, um conhecedor do Direito, formula sua de­cisão partindo não só de seu senso de eqüidade, mas também de seu conhe­cimento arguto de técnicas e norm as do foro, como pensam Perelman e Olbrechts-Tyteca (31).

O reconhecimento das características dessa decisão interlocutória e a aná­lise lingüística de alguns expedientes argumentativos - dos quais o autor se vale para construir efeitos de sentido que levem a convencer e persuadir o lei­

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Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 137

tor - mostram que, quanto mais desenvolvemos sistematicamente nossos sa­beres lingüísticos referentes ao funcionamento textual, mais proficiência po­demos adquirir em termos de leitura e construção de textos.

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138 Direito e Argumentação - Parte 2

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VIO Uso dos Argumentos

na Prática do Direito

Doroti Moroldi Guimarães

As novas nuanças da sociedade contemporânea têm exigido das univer­sidades uma atuação mais dinâmica de seu conteúdo pedagógico no ensino do Direito, de modo a contribuírem para a boa formação dos alunos, futuros profissionais da área jurídica, principalmente no que diz respeito à argum en­tação. Como afirma Atienza,

ninguém duvida que a prática do Direito consista, fundamentalmente, em ar­gumentar, e todos costumamos convir que a qualidade que melhor define o

que se entende por um “bom jurista” talvez seja a sua capacidade de construir

argumentos e manejá-los com facilidade. (2, p. 19)

Considerando, como o autor, os argumentos serem a própria essência do raciocínio jurídico, e a prática do Direito consistir, fundamentalmente, cm argumentar, este estudo oferece subsídios à produção de conhecimentos que permitam lidar com a necessidade de persuadir com maior desenvoltura, am ­pliando a gama de recursos suasórios. O estudo está situado na análise críti­ca do discurso (ACD) e delimitado a aspectos da abordagem cognitiva e so- ciointeracional da argumentação. Segundo Van Dijk (9), ACD é designação genérica aplicada à investigação científica dedicada a estudar textos e fala em uma visão multidisciplinar e está centrada em recursos discursivos que in­fluenciam o pensamento de grupos sociais em conflito e, indiretamente, as ações de pessoas.

Será demonstrado, pela organização textual, a sentença de desclassifica­ção construir-se a partir de um a hierarquização de categorias que definem a estrutura argumentativa desse gênero do discurso jurídico.

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140 Direito e Argumentação - Parte 2

O discurso jurídico em sociedade: ação e interação

Contemporaneamente, para os estudos discursivos, as noções básicas são complexas, pois estão fundamentadas em princípios tais como: o discurso, além de estrutura, também é ação e interação; o texto, além de lingüístico, tam­bém é social e cultural; da mesma forma que ambos são relativos à cognição.

Petri, ao partir da norm a jurídica como elemento básico, diz que o dis­curso jurídico busca interpretá-la, adequando os fatos aos valores semânticos de seus termos com força persuasiva, por meio de uma adequação da expe­riência de vida aos valores eleitos pelo grupo social e integrados ao ordena­mento jurídico. É no campo jurídico, segundo a autora, que mais se eviden­cia a relatividade da verdade.

Cada situação de tempo, local e ação exige uma análise, com vistas ao relacio­namento da tese com a norma jurídica. Não é possível, então, que uma ciência social, ligada diretamente ao homem, enquanto membro de uma comunidade, tenha como fundamento verdades absolutas, capazes de se aplicarem ao pre­sente e, ao mesmo tempo, se projetarem para o futuro. (6, p.97)

No que se refere aos processos sociocognitivos envolvidos em produção e compreensão do discurso jurídico, utilizando a linguagem como forma de in­teração social, é possível destacar o papel dos conhecimentos, atitudes e ou­tras representações mentais e a influência exercida por esse discurso sobre as opiniões das pessoas. Todos os conhecimentos construídos em sociedade são organizados na forma de crenças factuais ou avaliativas, sendo estas últimas as opiniões. Tais crenças decorrem do marco de cognições sociais, definido como um conjunto de idéias adquiridas e usadas pelo grupo social, pois de­correm de critérios e normas aceitos socialmente.

Considerando os estudos realizados por Van Dijk (9), pode-se dizer o re­lacionamento entre estruturas e contextos sociais do discurso jurídico não poder ser estabelecido sem serem tratadas as representações mentais sociais e individuais. As sociais, adquiridas e partilhadas, definem culturas e grupos sociais, de forma a organizar e m onitorar suas crenças e práticas sociais. Já as individuais explicam as razões de diferentes reações dos indivíduos diante do mesmo acontecimento. Para o autor, é a integração do estudo das dimensões cognitivas com as sociais que permite melhor compreensão das relações en­tre discurso e sociedade.

Dessa forma, quando discursa, um locutor não está meramente verbali­zando palavras ou sentenças gramaticais de determinada língua. Ele o faz cm

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0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 141

determinado contexto (por exemplo: o juiz se expressa em um contexto que lhe permite julgar), em data e m om ento histórico específicos. Em síntese, analisar um discurso, como ação e interação em sociedade, compreende en­tendê-lo como uma complexidade de atos relativos a forma, significado e re­presentações mentais, tanto quanto uma complexidade de funções sociais que definem os tipos de interação envolvidos.

Assim, se o discurso jurídico é visto como ação e interação, a produção e a compreensão de frases, palavras, estilo, retórica ou argumentação também podem ser consideradas ações que envolvem vários atos na prática social dis­cursiva. Esses atos implicam, por exemplo, asserções, elogios, depreciações, acusações, de forma a argumentar e a contra-argumentar em defesa de opi­niões resultantes de uma postura ideológica. São, portanto, atos intencionais ou desencadeados por outra ação intencional, em determinada situação.

Sentença de desclassificação

Para a caracterização da sentença de desclassificação, foi selecionada a fala de Oliveira Júnior (5), docente em Direito Processual da u c a m e analista processual do Ministério Público Federal, apresentada a seguir.

Oliveira Júnior inicia sua fala afirmando que,

por disposição constitucional, todos os crimes dolosos contra a vida e, tam­bém, os que, porventura, lhes forem conexos, são julgados pelo Tribunal do Júri, ante verificação da regra de competência absoluta, estatuída no art. 5o, XXXVIII, da c r f b c/c art. 7 8 ,1, do c p p .

O procedimento do júri, segundo o autor, é escalonado e tem duas fases. A primeira vai da denúncia até a sentença de pronúncia, que corresponde ao juízo de acusação ou de afirmação da culpa. A segunda situa-se entre o libe- lo-crime acusatório, que pressupõe o trânsito em julgado da sentença de pro­núncia, e a realização do julgamento em plenário.

Pode ser que, na primeira fase, o magistrado, com base no instituto da emendatio libeli (art. 383 do c p p ) ' , profira decisão de desclassificação para o juízo singular do crime descrito pelo m p como afeto ao Tribunal do Júri, por considerar não haver a prática de crime doloso contra a vida. Só vai merecer atenção especial do magistrado se houver, na denúncia, crime conexo àquele

1 “Identificador de que o Juiz, q u an d o de sua decisão, não esta adstr ito à classificação dada ao cri m c pelo M inistério Público na peça exordial (art. 408 e parágrafo ún ico do c p p ) " (cf. 5).

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142 Direito e Argumentação - Parte 2

que, em princípio, estava afeto ao Tribunal do Júri e que, por decisão desclas- sificatória sujeita a recurso, passou a ser de competência do juízo singular.

O autor cita, como exemplo,

uma denúncia em que se atribui ao réu a prática de homicídio doloso contra

a vida (art. 121 do CP), em concurso de crimes com desacato (art. 331 do CP),

sendo o crime de homicídio desclassificado para o crime de lesão corporal, este sabidamente de competência do Juiz singular e, não, do Tribunal de Júri.

Mesmo estando livre para decidir sobre o crime conexo, é prudente o magistrado não proferir julgamento sobre esse crime antes da ocorrência do trânsito em julgado da decisão desclassificatória (crime de homicídio). O au­tor esclarece que, caso seja dado provimento ao recurso, poderá ser devolvi­da a competência do júri para julgar tanto o crime de homicídio doloso con­tra a vida como o crime de desacato conexo.

Segundo o autor, se o magistrado optar por

proferir julgamento condenatório em relação ao crime conexo, antes do trân­sito em julgado da decisão desclassificatória em relação ao crime de homicídio, provocará, em caso de provimento de eventual recurso interposto contra essa decisão, a nulidade absoluta de sua própria sentença em relação ao crime co­nexo por error in procedendo, ante a inevitável verificação de ter sido proferida

por juiz absolutamente incompetente, tudo a evidenciar a ausência de um dos pressupostos processuais subjetivos em relação ao juiz para o desenvolvimen­to válido e regular do processo, qual seja, a competência.

Argumentação

Para Petri (6), o discurso jurídico é um discurso argumentado e consti­tuído de estratégias, à luz de valores que lhe são pretextos para fundamentar enunciados normativos. Além dessa autora, há, ainda, outros que tratam do assunto, a seguir apresentados de acordo com o encadeamento de conceitos por eles formulados.

É importante considerar, inicialmente, a afirmação de Koch de que “a in­teração social por intermédio da língua caracteriza-se, fundamentalmente, pela argumentatividade” (4, p. 17). Segundo a autora,

o homem, como ser dotado de razão e vontade, constantemente, avalia, julga, critica, isto é, forma juízos de valor. Por outro lado, por meio do discurso —

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0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 143

ação verbal dotada de intencionalidade - tenta influir sobre o comportamen­

to do outro ou fazer com que compartilhe suas opiniões. É por esta razão que se pode afirmar que o ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sen­tido de determinadas conclusões, constitui o ato lingüístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais ampla do

termo. A neutralidade é apenas um mito: o discurso que se pretende "neutro”,

ingênuo, contém também uma ideologia - a da sua própria objetividade.

(ibid., p. 17)

É importante, também, no estudo da argumentação, a ideologia, já que, segundo Van Dijk (8), ela desempenha papel central na (re)produção dos processos persuasivos e tem natureza cognitiva, pois está representada na m e­mória das pessoas. No entanto, ao mesmo tempo, a ideologia tem natureza social, uma vez que é partilhada por outros membros do grupo, e é adquiri­da, formada e aplicada em situações sociais, segundo condições sociais e com conseqüências sociais.

Uma concepção ampla de argumentação é desenvolvida por Vignaux (10, 11). Para o autor, os processos argumentativos estão presentes em todas as operações da vida social, abandonando, assim, a idéia de a argumentação ser definida como o que está expresso por argumentos. Ele entende o domínio da argumentação para além do verossímil, da prova, de forma a abranger como o hom em focaliza algo no m undo para representá-lo como possível ou provável. Vignaux associa argumentação a discurso e busca justificar tal ati­tude declarando as operações da vida social implicarem a não-existência de discurso que, produzido em um contexto humano, não seja argumentativo. Logo, qualquer discurso implica um jogo de intenções e processos persuasi­vos, e, nesse sentido, o discurso é apresentado como um conjunto de estraté­gias destinadas a persuadir pessoas. Vignaux insiste que não basta tratar dos fenômenos de interação orador-auditório. Para o autor, é necessário, além disso, analisar um discurso partindo de um texto que o formalize.

Assim, toda argumentação é um conjunto de raciocínios decorrentes de reflexões que produzem uma afirmação, uma tese. Para haver um a tese, é ne­cessário construir um problema e, para tanto, é preciso começar por duvidar do já conhecido. Trata-se de construir outra opinião que se oponha à já exis­tente ou a complemente. Isso é possível quando se tem por ponto de partida idéias já admitidas e, ao argumentar, constroem-se outras idéias ainda não ad­mitidas. A argumentação implica, portanto, articular idéia nova com idéias já aceitas, construindo mundos possíveis nos quais essas idéias possam conviver,

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144 Direito e Argumentação - Parte 2

ou um m undo de representações prováveis, utilizando elementos do m undo real como prova da veracidade do proposto no discurso.

No caso da possibilidade, as idéias já admitidas são complementadas por idéias novas e, por essa razão, constroem m undos possíveis. No caso da pro­babilidade, parte-se de provas não generalizáveis, que, por isso, não cons­troem o necessariamente verdade, mas o provavelmente verdade.

Segundo Álvarez (1, p.26), do ponto de vista dialético, o texto da argumen­tação se move sobre probabilidades, nunca sobre certezas. Assim, a argumenta­ção não trata do que é verdade, mas de crenças apresentadas como sociais ou individuais no discurso, e, por essa mesma razão, as relações estabelecidas no texto implicam crenças, possibilidades e probabilidades.

Estrutura argumentativa

A estrutura argumentativa é um dos pontos-chave deste estudo, pois, como já dito, nossa proposta está centrada na categorização do gênero sentença de desclassificação do discurso jurídico. Partindo dessa estrutura, são construídos os argumentos de legitimidade e reforço apresentados por Van Dijk (7) ao agrupar, na estrutura argumentativa, as categorias2: Justificação, Conclusão, Marco, Circunstância, Pontos de Partida, Fatos, Legitimidade e Reforço.

Segundo o autor, essas categorias podem ser modificadas conforme o tipo de argumentação. No caso do discurso jurídico, verifica-se a modificação da es­trutura argumentativa proposta por Van Dijk (7) apontar, para a sentença de desclassificação, as seguintes categorias: Acontecimento, Opinião, Argumen­tação (fato, comentário - argumentos de possibilidade, de probabilidade e de legitimidade - , conclusão parcial - argumentos de legitimidade e de reforço - e conclusão final - argumentos de legitimidade e de reforço).

Aplicação

A título de exemplificação, apresentamos a aplicação das categorias aponta­das em uma sentença de desclassificação extraída do Processo n. 17.901, do TJ - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, emitida em 9 de agos­to de 1997 pelo Tribunal do Júri de Brasília (ver texto integral no Anexo, p. 151).

Nessa sentença de desclassificação,

2 Term os que designam categorias são escritos com iniciais maiúsculas.

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0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 145

Max Rogério Alves, Antônio Novely Cardoso de Vilanova, Tomás Oliveira de Al­

meida e Eron Chaves de Oliveira, todos qualificados nos autos, foram denuncia­dos pelo Ministério Público, como incursos nas sanções do art. 121, § 2o, I, III e IV> do Código Penal e art. Io da Lei n. 2.252/54 e art. 1° da Lei n. 8.072/90, porque, juntamente com o menor Gutemberg Nader Almeida Junior, jogaram substância inflamável e atearam fogo em Galdino Jesus dos Santos, causando-lhe a morte.

Categorias

Acontecimento

Trata-se de um acontecimento desencadeador do processo argumentativo, no qual se projeta um modelo de situação que focaliza esse acontecimento pelo prisma da crueldade. Dessa forma, ativa-se o marco de cognição social dos brasileiros, que não aceita esse tipo de atitude.

(...) ao amanhecer, o grupo passou pela parada de ônibus onde dormia a víti­ma. Deliberaram atear-lhe fogo, para o que adquiriram dois litros de combus­tível em um posto de abastecimento. Retornaram ao local e enquanto Eron e

Gutemberg despejavam líquido inflamável sobre a vítima, os demais atearam fogo, evadindo-se a seguir.

Opinião

Como já afirmado, o acontecimento é focalizado pelo prisma da cruelda­de. A seguinte opinião (implícita) é a conclusão avaliadora resultante de tal focalização, que, todavia, pode ser modificada no decorrer do processo argu­mentativo: os acusados são culpados.

Argumentação

A argumentação do texto é construída, estrategicamente, tendo por base duas categorias: fato e comentário.

Fato

Na categoria Fato, apontam-se os seguintes fatos:

• Foi decretada a segregação preventiva dos acusados.• A prisão em flagrante foi relaxada.• Não houve perseguição.• Os réus foram localizados em virtude de diligências policiais.• Tão logo praticado o crime, os réus evadiram-se do local.

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146 Direito e Argumentação - Parte 2

Comentário

Na categoria comentário, de caráter opinativo, tem-se a análise dos fatos voltada para a demonstração de tais fatos encontrarem um correspondente na lei, sendo, portanto, penalmente relevantes. Nesse sentido, apontam-se os seguintes comentários:

• Salvaguardar a ordem pública.• Evitar o descrédito do Poder Judiciário.• A liberdade não deve servir de incentivo a práticas similares.• Conveniência da instrução criminal.• Assegurar a integridade física dos réus e de seus familiares.• Salvaguardar a aplicação da lei penal.• Os acusados demonstraram que pretendiam furtar-se a eventual condenação.

Argumentos

Focaliza-se algo no m undo para representá-lo como possível ou provável. Constrói-se, assim, um percurso que vai da possibilidade à

Argumentos de Possibilidade

São utilizados argumentos baseados em crenças, recorrendo-se, estrategi­camente, à maximização do m undo possível sim e à minimização do mundo possível não (m undo possível sim versus m undo possível não).

Mundo possível sim:• Os denunciados teriam agido para se divertir com a cena de um ser humano

em chamas. Foi, portanto, um motivo torpe que os levou a agir dessa forma.• A m orte foi provocada por fogo. “Adquiriram álcool combustível, que foi

parcialmente despejado sobre a pessoa que dormia, sendo ateado o fogo.”• Tinham consciência de que o álcool combustível é substância altamente

inflamável.• Os denunciados recorreram, portanto, a um meio cruel para agir.• A vítima foi atacada enquanto dormia. Os denunciados usaram esse recur­

so, o que impossibilitou a defesa da vítima.• “Se não tinham os agentes do crime manifesta intenção de causar a morte

da vítima, no mínimo assumiram o risco de provocar o resultado lamenta­velmente advindo. A pretendida desclassificação, se fosse o caso, só poderia ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário de Júri.”

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0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 147

«

M undo possível não:

“Ao avistarem a vítima no ponto de ônibus, tiveram a idéia de ‘pregar um susto para ver a vítima correr’.”“Ficaram assustados e saíram do local, tendo em vista a aproximação de um veículo, embora tivessem cogitado ajudar a vítima.”“Não esperavam que o fogo ‘tomasse a proporção que tom ou’.” “Resolveram dar um susto na vítima.”A brincadeira seria com uso de álcool e fósforos.”Ida ao posto de abastecimento para aquisição do combustível, que não se­

ria utilizado por inteiro, razão pela qual Eron despejou o conteúdo de um dos litros em um gramado situado próximo à parada de ônibus.”

• “Enquanto Eron deixava cair o combustível sobre a vítima, um dos auto­res riscou precipitadamente o fósforo, m omento em que as labaredas su­biram na direção de Eron, que se assustou e jogou o vasilhame no chão, tendo todos saído do local.”

• “Em nenhum momento passou pela cabeça que o fogo ‘pegasse com rapi­dez e queimasse toda a vítima’.”

• “A intenção era somente derramar o líquido sobre a vítima, a Fim de dar- lhe um susto para vê-la correr.”

• “Em m omento algum passou pela cabeça que a vítima poderia morrer, como também ficar lesionada.”

• “Imaginaram que a vítima fosse acordar e correr atrás do grupo para agredi-los.”

• “Os defendentes, ao realizarem as condutas, não previram o resultado m orte e sim a lesão corporal, ocorrendo crime preterdoloso.”

Argumentos de Probabilidade

No caso da probabilidade, parte-se de provas, mas elas não são generali-záveis e, por essa razão, não constroem o necessariamente verdade, mas oprovavelmente verdade. Nesse sentido:

• auto da prisão em flagrante de fls. 08/22;• boletins de vida pregressa de fls. 43 a 45;• relatório final de fls. 131/134;• laudo cadavérico de fls. 146 e seguintes;• laudo de exame de local e de veículo de fls. 172/185;

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148 Direito e Argumentação - Parte 2

• exame em substância combustível de fls. 186/191;• termo de restituição de fls. 247;• continuação do laudo cadavérico, fls. 509;• termos de audiência de fls. 390/409,434/454 e 470/474;• carta precatória, fls. 485;• art. 406 do Código de Processo Penal;• alegações de fls. 512 e seguintes;• art. Io da Lei n. 2.252/54;• art. 129, § 3o, do Código Penal;• art. 121, § 3o, do mesmo Códex;• art. Io da Lei n. 2.252/54.

Argumentos de Legitimidade

Os argumentos de possibilidade e de probabilidade são usados, estrategi­camente, como argumentos de legitimidade.

Conclusão Parcial

• “A assistência da acusação ratificou as razões finais do Ministério Público.”• “A defesa de Eron e Tomás pugnou pela desclassificação do ilícito.”• “A defesa do réu Max Rogério [...) pretende também a revogação da prisão

preventiva.”• Para a defesa de Antônio Novely, “o dolo do agente, ainda que eventual,

deve ser provado e não presumido”.

Argumentos de Legitimidade

O juiz sentenciante terá quatro opções: a pronúncia, porque determina o art. 408 do Código de Processo Penal que, se o juiz se convencer da exis­tência do crime e de indícios de que o réu seja o autor, irá pronunciá-lo, dando motivos do seu convencimento; a impronúncia, quando não se convencer da existência do crime ou de indício suficiente da autoria; a des­classificação, prevista no art. 410 do mesmo diploma, quando o juiz se convencer, em discordância com a denúncia ou queixa, da existência de crime diverso daquele da competência do Tribunal do Júri e a absolvição sumária, quando ocorrente alguma causa de justificação, na forma do dis­posto no art. 411 do Código de Processo Penal.”“Assim, não tem razão a douta representante do Ministério Público quan­do afirma que a desclassificação só poderá ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário de Júri.”

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0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 149

• “Se por um lado é certo que também durante a sessão de julgamento, quando da votação do questionário, pode ser operada a alteração da clas­sificação penal, por outro não se pode negar vigência ao disposto no art. 410 do Código de Processo Penal.”

• “ [Afasta-se] a possibilidade de tratar-se somente de crime culposo, pois, no tipo culposo, o agente realiza um a ação cujo fim é lícito, mas, por não se conduzir com observância do dever de cuidado, dá causa a um resul­tado punível.”

• “Assim, restam somente o homicídio praticado com dolo eventual e o cri­me de lesões corporais seguidas de morte, denominado preterdoloso, em que há dolo quanto à lesão corporal e culpa quanto ao homicídio. A linha divisória entre ambos é tênue. Cumpre trazer a lição dos doutrinadores a respeito do que sejam as duas figuras em cotejo.”

Argumentos de Reforço

São citados: Assis Toledo, Heleno Fragoso, Frank, Fernando AlmeidaPedroso, Albani Pecoraro, Alberto Silva Franco.

Conclusão Final

Conforme afirmado, a opinião inicial poderia ser modificada no decorrerdo processo argumentativo, o que realmente ocorreu, chegando-se ao seguinte:

• “Ocorrência do crime preterintencional e não do homicídio.”• “ [Desclassificação] da imputação de homicídio doloso.”

Argumentos de Legitimidade

São retomados os argumentos de possibilidade e de probabilidade da ca­tegoria Argumentos e transformados em argumentos de legitimidade.

Argumentos de Reforço

Arts. 408, § 4o, e 410, do Código de Processo Penal.

Considerações finais

Pela aplicação das categorias propostas para o gênero sentença de des­classificação do discurso jurídico, pode-se verificar, na articulação do uso efe­tivo da língua com cognição, discurso e sociedade, como a juíza reformula a representação mental ocorrente de seus leitores, persuadindo-os.

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150 Direito e Argumentação - Parte 2

A argumentação do texto é construída, estrategicamente, tendo por base duas categorias, fato e comentário, partindo de um acontecimento desenca- deador do processo argumentativo. Nesse acontecimento, é projetado um modelo de situação que o focaliza por determ inado prisma, sendo a opinião a conclusão avaliadora resultante de tal focalização. Na categoria com en­tário, de caráter opinativo, tem-se a análise do fato voltada para a dem ons­tração de tal fato encontrar correspondente na lei, sendo, portanto, penal­mente relevante.

Dessa forma, são utilizados argumentos baseados em crenças, construindo, para o leitor, conhecimentos factuais a respeito do acontecimento e, ao mes­mo tempo, m undos possíveis. A estratégia argumentativa, para construção da opinião do leitor, é a maximização de um m undo possível em relação a ou ­tro, seguindo um percurso que vai da possibilidade à probabilidade.

O discurso jurídico é apresentado, então, como um conjunto de estraté­gias persuasivas tratadas por usos textuais argumentativos, agrupados com base na estrutura da argumentação, modificada pelo uso dos argumentos de probabilidade e possibilidade como argumentos de legitimidade.

É importante ressaltar a categoria conclusão subdividir-se em parcial e fi­nal, havendo, em ambas, continuação do processo argumentativo, com argu­mentos de legitimidade e reforço. Na conclusão parcial, há argumentos de le­gitimidade e de reforço, estes apresentados por citações de doutrinadores. Na conclusão final, são retomados argumentos de possibilidade e de probabili­dade da categoria argumentos, transformados em argumentos de legitimida­de, e artigos do Código de Processo Penal, corno argumentos de reforço.

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0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 151

ANEXO

Sentença de desclassificação selecionada para aplicação

MAX ROGÉRIO ALVES, ANTÔNIO NOVELY CARDOSO DE VILA- NOVA, TOMÁS OLIVEIRA DE ALMEIDA E ERON CHAVES DE OLIVEI­RA, todos qualificados nos autos, foram denunciados pelo Ministério Públi­co, como incursos nas sanções do art. 121, § 2o, I, III e IV, do Código Penal e art. Io da Lei n. 2.252/54 e art. Io da Lei n. 8.072/90, porque, juntamente com o m enor Gutemberg Nader Almeida Junior, jogaram substância inflamável e atearam fogo em Galdino Jesus dos Santos, causando-lhe a morte.

Narra a inicial da acusação que, ao amanhecer, o grupo passou pela pa­rada de ônibus onde dormia a vítima. Deliberaram atear-lhe fogo, para o que adquiriram dois litros de combustível em um posto de abastecimento. Retornaram ao local e, enquanto Eron e Gutemberg despejavam líquido in­flamável sobre a vítima, os demais atearam fogo, evadindo-se a seguir.

Três qualificadoras foram descritas na denúncia: o motivo torpe, porque os denunciados teriam agido para se divertir com a cena de um ser humano em chamas; o meio cruel, em virtude de ter sido a morte provocada por fogo, e o uso de recurso que impossibilitou a defesa da vítima, que foi atacada en­quanto dormia.

A inicial, que foi recebida por despacho de 28 de abril de 1997, veio acompanhada do inquérito policial instaurado na Ia Delegacia Policial. Do caderno informativo constam, de relevantes, o auto de prisão em flagrante de fls. 08/22, os boletins de vida pregressa de fls. 43 a 45 e o relatório final de fls. 131/134. Posteriormente vieram aos autos o laudo cadavérico de fls. 146 e se­guintes, o laudo de exame de local e de veículo de fls. 172/185, o exame em substância combustível de fls. 186/191, o termo de restituição de fls. 247 e a continuação do laudo cadavérico, que está a fls. 509.

O Ministério Público requereu a prisão preventiva dos indiciados. A pri­são em flagrante foi relaxada, não configurada a hipótese de quase flagrância, por não ter havido perseguição, tendo sido os réus localizados em virtude de diligências policiais. Na mesma oportunidade foi decretada a segregação pre­ventiva dos acusados, com fundamento na necessidade de salvaguardar a or­dem pública, evitar o descrédito do Poder Judiciário, para que a liberdade não servisse de incentivo a práticas similares. Além da garantia da ordem pública, a prisão foi decretada por conveniência da instrução criminal, para assegurar a integridade física dos réus e de seus familiares e para salvaguardar a aplica­

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ção da lei penal, porquanto tão logo praticado o crime os réus evadiram-se do local, demonstrando que pretendiam furtar-se a eventual condenação.

MM. Juiz Federal da 10a Vara oficiou noticiando ter prolatado decisão firmando a respectiva competência para apreciar e julgar os autos da ação pe­nal. Suscitado conflito de competência, o processo ficou paralisado. Julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, foi declarado competente o Juízo de Direito da Vara do Tribunal do Júri.

O genitor da vítima foi admitido como assistente do Ministério Público, conforme despacho de fis. 286.

Os réus foram interrogados. Max Rogério afirmou que, ao avistarem a ví­tima no ponto de ônibus, tiveram a idéia de “pregar um susto para ver a víti­ma correr”. Adquiriram álcool combustível, que foi parcialmente despejado sobre a pessoa que dormia, sendo ateado o fogo. Asseverou que ficaram as­sustados e saíram do local, tendo em vista a aproximação de um veículo, em­bora tivessem cogitado ajudar a vítima. Alegou ter consciência de que o ál­cool combustível é substância altamente inflamável, mas que não esperavam que o fogo “tomasse a proporção que tom ou”, (fls. 292/294)

Antônio Novely Cardoso de Vilanova argumentou que resolveram dar um susto na vítima, que a brincadeira seria com uso de álcool e fósforos. Mencionou a ida ao posto de abastecimento para aquisição do combustível, que não seria utilizado por inteiro, razão pela qual Eron despejou o conteúdo de um dos litros em um gramado situado próximo à parada de ônibus. Assevera que, enquanto Eron deixava cair o combustível sobre a vítima, um dos autores riscou precipi­tadamente o fósforo, momento em que as labaredas subiram na direção de Eron, que assustou-se e jogou o vasilhame no chão. Narrou que entre os acusa­dos houve o comentário de que “a vítima pegou fogo demais”. Mencionou ter consciência de ser o álcool combustível substância altamente inflamável, mas alegou que sua intenção, como a dos demais, era somente derramar o líquido sobre a vítima, a fim de dar-lhe um susto para vê-la correr, sendo que em m o­mento algum lhe passou pela cabeça que a vítima poderia morrer, como tam­bém ficar lesionada. Assegurou que a intenção era só dar um susto na vítima.

Tomás Oliveira de Almeida, interrogado em Juízo, também relatou que ao ser avistada a vítima surgiu a idéia de atear-lhe fogo para que esta corres­se. Confirmou que adquiriram os dois litros de álcool combustível e que, após darem mais algumas voltas, dirigiram-se ao local do crime, onde deci­diram esvaziar um dos vasilhames, pois entenderam que não haveria neces­sidade de utilização dos dois litros de álcool. Afirmou ter sido Eron quem despejou o líquido na vítima e que, ao riscarem os fósforos, a labareda foi em

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0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 153

direção à garrafa que estava nas mãos de Eron, que a soltou, tendo todos saí­do do local. Afirmou também ter consciência de que o álcool combustível é substância altamente inflamável, mas que em nenhum m omento lhe passou pela cabeça que o fogo “pegasse com rapidez e queimasse toda a vítima”.

O acusado Eron, ao ser ouvido, informou que todos assentiram na idéia de atear fogo à pessoa que estava no abrigo, para o que adquiriram álcool combustível. Alegou que todos imaginaram que a vítima fosse acordar e cor­rer atrás do grupo para agredi-los. Argumentou ter derramado o conteúdo de um dos vasilhames no gramado e que estava jogando o líquido nos pés da ví­tima quando iniciou o fogo, “que subiu de baixo para cima”, vindo em direção às suas mãos. Asseverou ter largado o vasilhame, saindo do local às pressas.

Todos os réus apresentaram as defesas prévias, que estão a fls. 337/379, re­querendo a realização de diligências. Algumas delas foram deferidas, não o sendo a instauração de incidente de insanidade mental, além da oitiva de tes­temunha que não constava do rol apresentado com as alegações preliminares.

Na fase instrutória foram ouvidas nove testemunhas arroladas pela acu­sação e trinta e uma pelas defesas, conforme assentadas em termos de au­diência de fls. 390/409, 434/454 e 470/474.

A fls. 485 está carta precatória expedida para depoimento de testemunha de defesa residente em Pau Brasil - Bahia.

Na oportunidade do art. 406 do Código de Processo Penal, o Ministério Público e as defesas apresentaram alegações finais. A Promotora de Justiça, por entender presentes os requisitos necessários à pronúncia, manifestou-se pelo julgamento pelo Egrégio Tribunal do Júri, mantidas as qualificadoras e a imputação de corrupção do menor. Asseverou que, “se não tinham os agen­tes do crime manifesta intenção de causar a m orte da vítima, no mínim o as­sumiram o risco de provocar o resultado lamentavelmente advindo. A pre­tendida desclassificação, se fosse o caso, só poderia ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário de Júri”.

A assistência da acusação ratificou as razões finais do Ministério Público.A defesa de Eron e Tomás pugnou pela desclassificação do ilícito, argu­

m entando que a prova produzida leva à inconteste conclusão de que os de- fendentes, ao realizarem as condutas, não previram o resultado morte e sim a lesão corporal, ocorrendo crime preterdoloso. Pretende o afastamento das qualificadoras, caso pronunciados os réus e a impronúncia com relação ao crime previsto no art. Io da Lei n. 2.252/54.

Na mesma linha, a defesa do réu Max Rogério. Nas alegações, que tecem comentários à personalidade do acusado, diante das informações obtidas

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quando da oitiva das testemunhas de defesa, pretende também a revogação da prisão preventiva.

Nas alegações finais apresentadas, a defesa de Antônio Novely rechaça os ar­gumentos do Ministério Público e argumenta que o dolo do agente, ainda que eventual, deve ser provado e não presumido. [...] desclassificação para o ilícito previsto no art. 129, § 3o, do Código Penal ou no art. 121, § 3o, do mesmo Códex e a impronúncia em relação ao crime descrito no art. Io da Lei n. 2.252/54.

É o relatório. Decido.Finda a instrução, apresentadas as alegações finais, o Juiz sentenciante

terá quatro opções: a pronúncia, porque determina o art. 408 do Código de Processo Penal que, se o juiz se convencer da existência do crime e indícios de que o réu seja o autor, pronuncia-lo-á, dando os motivos do seu conven­cimento; a impronúncia, quando não se convencer da existência do crime ou de indício suficiente da autoria; a desclassificação, prevista no art. 410 do mesmo diploma, quando o juiz se convencer, em discordância com a denún­cia ou queixa, da existência de crime diverso daquele da competência do Tribunal do Júri; e a absolvição sumária, quando ocorrente alguma causa de justificação, na forma do disposto no art. 411 do Código de Processo Penal.

Assim, não tem razão a douta representante do Ministério Público quan­do afirma que a desclassificação só poderá ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário de Júri. Se por um lado é certo que também du­rante a sessão de julgamento, quando da votação do questionário, pode ser operada a alteração da classificação penal, por outro não se pode negar vigên­cia ao disposto no art. 410 do Código de Processo Penal.

Os acusados foram denunciados porque, ao praticarem o crime, teriam agido com animus necancii, na forma do dolo eventual. É o que consta da peça acusatória:

No dia 20 de abril de 1997, por volta de cinco horas, na EQS 703/704 - W3 Sul -

Brasília - DF, os denunciados, juntamente com o menor de idade Gutemberg Nader Almeida Junior, mataram Galdino Jesus dos Santos, índio Pataxó, contra o

qual jogaram substância inflamável, ateando fogo a seguir, assumindo claramen­

te o risco de provocar o resultado morte.

Nas alegações finais, o Ministério Público argumentou: “se não tinham os agentes do crime manifesta intenção de causar a morte da vítima, no míni­mo assumiram o risco de provocar o resultado lamentavelmente advindo”.

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0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 155

Não se contende sobre autoria e materialidade do ilícito. Os acusados as­sumiram a responsabilidade pela prática delituosa. A confissão está corrobo­rada pela ampla prova trazida aos autos. Já a materialidade está patenteada no laudo de exame cadavérico. As fotografias anexadas à peça técnica de­monstram as lesões sofridas pela vítima do crime e que, certamente, lhe cau­saram sofrimento atroz. A conduta dos agentes, sem dúvida, deixou a todos indignados, tal a reprovabilidade da selvagem “brincadeira”, independente­mente de tratar-se de mendigo ou índio - ambos seres humanos.

Assim, o único ponto controvertido é o elemento subjetivo. Deve ser sa­lientado que a vontade é elemento integrante do tipo penal. Importante saber se os réus quiseram o resultado m orte ou assumiram o risco de produzi-lo, para fixar a competência constitucional deste Tribunal do Júri, ou se ocorreu outro crime com resultado morte, hipótese em que competente para julga­mento o juízo singular.

A atividade hum ana é um acontecimento finalista, não somente causai. Toda conduta humana é finalisticamente dirigida a um resultado. Nosso Código Penal é finalista. Neste sentido o entendimento jurisprudencial:

Após a reforma da Parte Geral do Código Penal Brasileiro, operada em 1984, a

análise do elemento subjetivo que move a conduta do agente de qualquer de­lito é medida que se impõe em razão da Lei, eis que o Diploma Penal Substan­tivo adotou como seu corolário a teoria da Ação Finalista. (TJDF, rel. Des.

Hermenegildo Gonçalves)Hoje, pela doutrina de Welzel (Das deutsche Strafrecht), a denominada “teoria

finalista da ação”, adotada por nosso CP, a culpa integra o tipo. (REsp. n.

40.180/MG, rel. Min. Adhemar Maciel)

A denúncia veio fundada no dolo eventual. Pretendem os réus a desclas­sificação do ilícito, seja para o crime de lesões corporais seguidas de morte, previsto no art. 129, § 3o, do Código Penal, para tipo do art. 121, § 3o, ou o do art. 250, § 2o, do mesmo diploma. Desde já afasto a possibilidade de tra­tar-se somente de crime culposo, pois, no tipo culposo, o agente realiza uma ação cujo fim é lícito mas, por não se conduzir com observância do dever de cuidado, dá causa a um resultado punível. E atear fogo em pessoa que dor­mia no abrigo de ônibus, para assustá-la, à evidência não é atividade lícita. Também não pode ser aceita a pretendida capitulação do ilícito como incên­dio culposo. Os acusados confessaram que atearam fogo na vítima. E o tipo

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do crime dc incêndio é a vontade deliberadamente dirigida ao in­cêndio dc alguma coisa, tendo o agente consciência e vontade de produzir uma situação de perigo comum. Um ser hum ano não é coisa, seja ele índio ou mendigo.

Assim, restam somente o homicídio praticado com dolo eventual e o cri­me de lesões corporais seguidas de morte, denominado “preterdoloso”, em que há dolo quanto à lesão corporal e culpa quanto ao homicídio. A linha di­visória entre ambos é tênue. Cumpre trazer a lição dos doutrinadores a res­peito do que sejam as duas figuras em cotejo.

Em suma, há dolo eventual quando o agente prevê como provável e não apenas como possível o resultado e o tenha conscientemente aceito. A situa­ção psíquica do agente em relação ao fato deve ser deduzida das circunstân­cias do fato e do caráter dos agentes. No julgamento do AC n. 285.215 - TA- CRIM SP, o Rel. Silva Franco deixou assentado:

O momento volitivo se manifesta na esfera do subjetivo, no íntimo do agente e, deste modo, não é um dado da realidade que possa ser diretamente apreen­dido. Mas isto não significa que não possa ser extraído do caráter do agente e

de todo o complexo de circunstâncias que cercaram seu atuar.

Traçados os balizamentos, tarefa mais árdua é a de pesquisar, no caso concreto, o animus que conduziu os agentes ao crime. Coloca-se o julgador à frente do dilema: “Queriam os jovens matar aquele que dormia no abrigo de ônibus ou fazer uma brincadeira cujo resultado foi mais grave do que o de­sejado?” Para obter a difícil resposta sobre o elemento subjetivo, um dos meios a considerar é a potencialidade lesiva do meio empregado, dado bas­tante relevante. O fogo pode matar, e foi o que ocorreu, mas sem dúvida não é o que normalmente acontece.

No julgamento do Habeas Corpus n. 7.651/97, o Des. Joazil Gardes dei­xou consignado:

Se perguntarmos: tiro mata? Veneno mata? Enforcamento (esganadura) mata?

Afogamento mata? A resposta inevitável será: mata; mas, se perguntarmos: queimadura mata?, a resposta até mesmo de médicos que não sejam especia­

listas em queimados, invariavelmente será: queimadura não mata, isto porque

toda a sorte de queimadura, produzida por fogo ou por substâncias dc efeito análogo, é possível de ser tratada, sendo natural avistarmos pelas ruas e salões

sociais pessoas com rostos, membros e corpos deformados por queimaduras.

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0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 157

Por outro lado, mais um dado importante evidenciou-se durante a ins­trução. É que, apesar de terem adquirido dois litros de combustível, logo que chegaram ao locus delicti o conteúdo de um dos vasilhames foi derramado na grama. O laudo de exame de local dem onstra a afirmativa, principal­mente a fotografia de fls. 182. A prova técnica, por seu turno, também vem ao encontro da versão dos acusados de que os fósforos foram acesos precipitada­mente, enquanto Eron derramava o líquido inflamável sobre a vítima, fazen- do-o largar abruptamente o vasilhame. A fls. 173 dos autos está consignado que “sob o bando do abrigo havia um recipiente plástico, opaco, na cor verde, com as inscrições ‘LUBRAX SJ ÓLEO PARA MOTORES A GASOLINA E ÁLCOOL’-V olum e 1.000 ml, vazio, que se encontrava com a parte superior comburida”.

No interrogatório Antônio Novely afirmou:

(...) que nesse instante alguém cuja identidade o interrogando não se recorda

riscou precipitadamente um fósforo e o jogou na direção do pano, momento em que este começou a pegar fogo e as labaredas subiram na direção de Eron, o qual estava com o litro de combustível em suas mãos; que o interrogando es­

tava ao lado de Eron e pôde sentir as labaredas de fogo bem próximo de si e

nesse instante Eron assustou-se e jogou o litro de combustível no chão; que nesse instante todos os quatro correram (...)

O acusado Eron confirmou:

(...) que concomitantemente alguém riscou um fósforo, sem que o interrogan­

do saiba quem foi, momento em que iniciou-se o fogo, “que subiu de baixo

para cima”, vindo em direção à mão do interrogando, que imediatamente sol­tou a garrafa e saiu correndo (...)

As testemunhas que presenciaram a fuga dos réus informaram o estado de ânimo dos mesmos após os fatos: estavam todos afobados. José Maria Gomes asseverou que “quando viu os elementos atravessando correndo a via W3 Sul eles pareciam estar com muita pressa e desesperados”.

Assiste razão à defesa do acusado Antônio Novely quando afirma que deses­pero e afobação não se coadunam com aqueles que agem com animus necandi.

O caráter dos agentes foi exposto durante a instrução criminal. Por outro lado, as declarações prestadas imediatamente após os fatos demonstram que não havia indiferença na ocorrência do resultado.

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Assim, analisada como um todo, a prova dos autos demonstra a ocorrên­cia do crime preterintencional e não do homicídio. A ação inicial dos réus, sem qualquer dúvida, foi dolosa. Não há como afastar a conclusão de que, ao atea­rem fogo na vítima para assustá-la, sabiam que iriam feri-la. O resultado m or­te, entretanto, que lhes escapou à vontade, a eles só pode ser atribuído pela pre­visibilidade. Qualquer infante sabe dos perigos de mexer com fogo. E também sabe que o fogo queima, ainda mais álcool combustível, líquido altamente in­flamável. Os réus também têm este conhecimento. Entretanto, mesmo saben­do perfeitamente das possíveis e até mesmo prováveis conseqüências do ato impensado, não está presente o dolo eventual. Uma frase constante do depoi­mento de Max, no auto de prisão em flagrante, sintetiza o que realmente ocor­reu. Está a fls. 15: “pegou fogo demais, a gente não queria tanto”. Como já en­focado, assumir o risco não se confunde, em hipótese alguma, com previsibilidade do resultado. Assumir o risco é mais, é assentir no resultado, é querer ou aceitar a respectiva concretização. E necessário que o agente tenha a vontade e não apenas a consciência de correr o risco. E o “ter a vontade” é ele­mento subjetivo que está totalmente afastado pela prova dos autos, que de­monstrou à sociedade que os acusados pretendiam fazer uma brincadeira sel­vagem, ateando fogo naquele que presumiram ser um mendigo, mas nunca anuíram no resultado morte. Tem razão o Ministério Público quando afirma que “não se brinca com tamanha dor nem de um animal, quanto mais de um desprotegido ser humano”. Acrescento que a reprovabilidade da conduta mais se avulta quando estreme de dúvidas que os acusados tiveram muitas e varia­das oportunidades de desistir da selvagem diversão. Por outro lado, agiram de forma censurável, pois, após avistarem a vítima no ponto de ônibus da EQ 703/704 Sul, deslocaram-se a um posto de abastecimento distante do local, nas quadras 400, para adquirir o combustível, dizendo que o faziam porque havia um carro parado por falta de combustível. O acusado Antônio Novely, no in­terrogatório, asseverou:

(...) que o interrogando não se recorda de quem partiu a idéia de dar o susto

na vítima, sabendo dizer que todos concordaram com a idéia; (...) que em se­

guida alguém teve a idéia de que o susto seria aplicado com uso de álcool e fós­foros, porém o interrogando não sabe dizer de quem partiu a idéia, mas todos

concordaram com a mesma; que assim combinados, todos se dirigiram para

um posto de gasolina, localizado na 405 sul, salvo engano; que ali chegando to­dos desceram do veículo e se dirigiram ao frentista alegando que tinham um

carro ali próximo sem combustível e precisariam de um vasilhame para levar

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0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 159

até o carro; que o frentista sugeriu que todos olhassem em um latão de lixo

próximo, a fim de procurarem um vasilhame vazio; que todos procuraram e o interrogando não se recorda quem achou os dois litros de óleo vazio, os quais encheram de álcool combustível; [...) que não foram de imediato ao encontro

da vítima, já que depois da compra do combustível ainda rodaram um certo tempo pelas ruas da cidade a fim de procurarem algo para fazer [...] (fls.

296/297)

Por mais ignóbil que tenha sido a conduta irresponsável dos acusados, não queriam eles, nem eventualmente, a morte de Galdino Jesus dos Santos. A emoção e indignação causadas pelo trágico resultado não podem afastar a ra­zão. Assim, os réus devem ser julgados e punidos unicamente pelo crime come­tido, que, salvo entendimento diverso do MM. Juiz competente, é o de lesões corporais seguidas de morte. Inexistente o animus necandi (por não terem os acusados querido o trágico resultado ou assumido o risco de produzi-lo, repi­ta-se), está afastada a competência do Tribunal do Júri, devendo os autos ser encaminhados a uma das Varas Criminais, a que couber por distribuição.

Por último cumpre examinar se deve ou não persistir a custódia cautelar dos acusados, diante da desclassificação do ilícito.

Em princípio, salvo entendimento diverso do MM. Juiz a quem couber o julgamento do feito, os réus deverão responder pelo crime previsto no art. 129, § 3o, do Código Penal, verbis:

Art. 1 2 9 - (...|

§ 3o Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o

resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo.

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

A nova capitulação que se delineia não é afiançável e, como sabido, o fato de os réus serem primários e de bons antecedentes não pode, por si só, de­sautorizar a prisão fundamentalmente decretada. Por outro lado, persistem, ao menos parcialmente, os motivos que levaram à segregação cautelar. Acrescento que a 2'1 Turma Criminal do Tribunal de Justiça, por maioria, ne­gou habeas corpus impetrado em favor de Max Rogério Alves. Assim, não vis­lumbrando qualquer maltrato a preceito constitucional que justifique anteci­pação da decisão que o juiz da causa venha a tomar, deixo de examinar o pedido de liberdade provisória para não subtrair do Juízo competente a dire­ção do processo.

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160 Direito e Argumentação - Parte 2

Diante do exposto e com fundamento nos arts. 408, § 4o, e 410 do Código de Processo Penal, desclassifico a imputação de homicídio doloso contra Max Rogério Alves, Antônio Novely Cardoso de Vilanova, Tomás Oliveira de Al­meida e Eron Chaves Oliveira e declino da competência para uma das Varas Criminais, determinando que, após o decurso do prazo recursal e feitas as anotações de estilo, remetam-se os autos à Distribuição.

P.R.I.Brasília, 9 de agosto de 1997.Sandra de S. M.de F. Mello

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VIIA Argumentatividade

nos Discursos Jurídicos: Intertextos e Interdiscursos

Aparecida Regina Borges Sellan

O encontro com o direito é diversificado» às vezes conflitivo e incoerente, às vezes linear e conseqüente. Estudar o direito é, assim, uma atividade difícil, que exige não só acuidade, inteligência, preparo, mas também encantamento,

intuição, espontaneidade. [...] Por tudo isso, o direito é 11111 mistério, o misté­rio do princípio e do fim da sociabilidade humana. Suas raízes estão encerra­

das nesta força oculta que nos move a sentir remorso quando agimos indig­

namente e que se apodera de nós quando vemos alguém sofrer uma injustiça. Introduzir-se ao estudo do direito é, pois, entronizar-se num mundo fantás­

tico de piedade e impiedade, de sublimação e perversão, pois o direito pode ser sentido como uma prática virtuosa que serve ao bom julgamento, mas também usado como 11111 instrumento para propósitos ocultos e inconfessáveis.

Estudá-lo sem paixão é como sorver um vinho precioso para saciar a sede. Mas estudá-lo sem interesse pelo seu domínio técnico, seus conceitos, seus princí­

pios, é inebriar-se numa fantasia inconseqüente. Isto exige, pois, precisão e ri­gor científico, mas também abertura para o humano, para a história, para o so­

cial, numa forma combinada que a sabedoria ocidental, desde os romanos, vem esculpindo como obra sempre por acabar. (3, p.25)

O discurso jurídico, em razão do universo no qual está inscrito, uma área específica profissional, e das práticas sociais também específicas que ordena, pode ser compreendido, ainda que envolto em grande complexidade, como um discurso técnico. Dessa maneira, está sujeito à análise de sua produção como processo e produto em busca de sua regularidade. Por evidenciar suas condições de produção, pelo reconhecimento dos sujeitos participantes e suas atitudes, em

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determinado lugar e tempo, tal discurso reflete os paradigmas que o legitimam. Por esse raciocínio, Proença postula que “pensar no direito é envolver-se num turbilhão de idéias que se complementam ou se contrapõem; idéias nossas ou de outros, além de nossas paráfrases de idéias alheias” (11, p.42).

Tais palavras referenciam este estudo por apontarem para o que se con­sidera textualidade jurídica, pela construção da argumentação por meio de recursos próprios da linguagem humana, circunscrita a uma prática discur­siva social na qual se vê presentificar um conjunto de outros textos e de ou­tros discursos. Por essa razão, a intertextualidade, em sentidos amplo e restri­to, e a interdiscursividade são as bases deste estudo.

Argumentatividade e discurso jurídico

Segundo Pardo (9, p. 119), o discurso jurídico é essencialmente organiza­do por um texto argumentativo. Nessa acepção, compreende-se o texto como a manifestação lingüística do discurso. Para a autora,

um texto necessita ir delineando algum argumento, uma necessidade do falan­

te de predicar algo, sobre o que depois possa voltar a predicar, de modo a aten­

der aos fins de um contexto no qual se circunscreve a própria situação de fala, a necessidade de um dizer, com caráter pragmático [tradução nossa].

Lavandera (7) postula a criação de um texto avançar mediante estratégias interdependentes essencialmente pragmáticas, chamadas argumentativas. Para a autora, argumentatividade não coincide com argumentação nem a im ­plica. Um texto pode construir-se com estratégias argumentativas e não che­gar a construir uma argumentação. Por sua visão, a argumentatividade é, pois, um conceito pragmático; a argumentação, um conceito semântico. As estratégias argumentativas estão dirigidas para o texto poder ter continuida­de. Podem estar implementadas por recursos distintos, mas sua função defi­nida cria um espaço lingüístico para o mesmo emissor poder prosseguir.

Vignaux (12) define o discurso argumentativo como o que, partindo de uma situação determinada do falante no seio de uma formação social, assi­nala uma posição desse falante acerca de um tema ou um conjunto de temas que reflita - de maneira direta, não direta ou disfarçada - sua posição na for­mação social considerada. Por essa concepção, pode-se compreender a posi­ção do falante, proposta pelo autor, estar sempre determinada por um outro, ao qual o orador pode apelar ou não, mas que intervém como referencial de-