Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

483
1

description

Entre os dias 23 e 24 de maio de 2014, ocorreu, em João Pessoa (PB), a I Conferência Brasileira de Direito e Saúde (I CBDS), uma iniciativa do corpo docente e discente da Universidade Federal da Paraíba, com o apoio de várias outras instituições. O evento também contou com um concurso de artigos, os quais foram defendidos presencialmente por seus autores. Os melhores trabalhos, selecionados por uma seleta Comissão Científica, estão sendo publicados, através deste livro.

Transcript of Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

Page 1: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

1

Page 2: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

2

DIREITO E SAÚDE: TRATAMENTO JURÍDICO DA

REALIDADE DA SAÚDE NO BRASIL E OUTROS

DIÁLOGOS

Page 3: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

3

CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA

Diretor Presidente da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO

Diretor - Adjunto da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

VALFREDO DE ANDRADE AGUIAR FILHO

Coordenador de Política Editorial do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

NÁJILA MEDEIROS BEZERRA E YULGAN TENNO DE FARIAS

Coordenadores-Adjuntos de Política Editorial do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e

Direito

ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA – AREPB

CNPJ 12.955.187/0001-66

Acesse: www.abarriguda.org.br

CONSELHO CIENTÍFICO

Adriano Marteleto Godinho

Adolpho José Ribeiro

Alana Ramos Araújo

Chirlaine Cristine Gonçalves

Gisele Padilha Cadé

Gustavo Rabay Guerra

José Flôr de Medeiros Júnior

João Peixoto Neto

Laryssa Mayara Alves de Almeida

Luciano do Nascimento Silva

Luis Carlos dos Santos Lima Sobrinho

Marconi do Ó Catão

Maria Cezilene Araújo de Morais

Raymundo Juliano Rego Feitosa

Renato José Ramalho Alves

Rômulo Rhemo Palitot Braga

Ronivaldo de Oliveira Bastos

Uberlandia Islândia Barbosa Dantas

Vinícius Leão de Castro

Page 4: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

4

EDUARDO SÉRGIO SOARES SOUSA E GUSTAVO RABAY GUERRA

COORDENADORES

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIRA

PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA

RENATO JOSÉ RAMALHO ALVES

VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO

ORGANIZADORES

1ª EDIÇÃO

ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA - AREPB

2014

DIREITO E SAÚDE: TRATAMENTO JURÍDICO DA REALIDADE DA

SAÚDE NO BRASIL E OUTROS DIÁLOGOS

Page 5: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

5

©Copyright 2014 by

Editor-chefe

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E LUCIANO NASCIMENTO SILVA

Coordenação do Livro

EDUARDO SÉRGIO SOARES SOUSA E GUSTAVO RABAY GUERRA

Organização do Livro

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA

SILVA, RENATO JOSÉ RAMALHO ALVES E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO

Capa

PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA

Editoração

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA

SILVA, RENATO JOSÉ RAMALHO ALVES E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO

Diagramação

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA

SILVA

O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos autores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D597

Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no

Brasil e outros diálogos / Eduardo Sérgio Soares Sousa e Gustavo

Rabay Guerra (Coords.); Laryssa Mayara Alves de Almeida,

Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva, Renato José Ramalho

Alves e Vinícius Leão de Castro (Orgs.).– Campina Grande:

AREPB, 2014.

484 p.

ISBN 978-85-67494-05-0

1. Direito e Saúde I. Título.

CDU 341.27

Todos os direitos desta edição reservados à Associação da Revista Eletrônica A Barriguda – AREPB.

Foi feito o depósito legal.

Data de fechamento da edição: 10-12-2014

Page 6: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

6

O Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED,

responsável pela Revista Jurídica e Cultural ―A Barriguda‖, foi criado na cidade de

Campina Grande-PB, com o objetivo de ser um locus de propagação de uma nova

maneira de se enxergar a Pesquisa, o Ensino e a Extensão na área do Direito.

A ideia de criar uma revista eletrônica surgiu a partir de intensos debates em

torno da Ciência Jurídica, com o objetivo de resgatar o estudo do Direito enquanto

Ciência, de maneira inter e transdisciplinar unido sempre à cultura. Resgatando, dessa

maneira, posturas metodológicas que se voltem a postura ética dos futuros profissionais.

Os idealizadores deste projeto, revestidos de ousadia, espírito acadêmico e

nutridos do objetivo de criar um novo paradigma de estudo do Direito se motivaram

para construir um projeto que ultrapassou as fronteiras de um informativo e se

estabeleceu como uma revista eletrônica, para incentivar o resgate do ensino jurídico

como interdisciplinar e transversal, sem esquecer a nossa riqueza cultural.

Nosso sincero reconhecimento e agradecimento a todos que contribuíram para a

consolidação da Revista A Barriguda no meio acadêmico de forma tão significativa.

Acesse a Biblioteca do site www.abarriguda.org.br

e confira E-Books gratuitos.

Page 7: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

7

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 9

Laryssa Mayara Alves de Almeida, Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva

Renato José Ramalho Alves e Vinícius Leão de Castro

1. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL: UM PROBLEMA

INTERINSTITUCIONALIZADO 10

Renato José Ramalho Alves e Ingrid Coderceira Costa

2. ACESSO A MEDICAMENTOS E PROPRIEDADE INTELECTUAL: PARTICIPAÇÃO DA

SOCIEDADE CIVIL NA FORMULAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 25

Luciana Correia Borges

3. O DEVER DE INFORMAÇÃO E A RESPONSABILIDADE 53

Emanuel Lins Galvão de Albuquerque Bastos

4. PARADIGMAS INSTITUCIONAIS E MATERIAIS PARA A CONCRETIZAÇÃO DO

DIREITO À SAÚDE 68

João Trindade Cavalcante Filho e José Trindade Monteiro Neto

5. (DES)ASSISTÊNCIA À SAÚDE EM UMA PENITENCIÁRIA FEMININA: DIREITOS

FUNDAMENTAIS 89

Josilene do Nascimento Rodrigues, Alanny Nunes de Santana e Lívia Cristina da Silva

6. A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE ATRAVÉS DO PROTOCOLO DE ENTRADA

DE BIOMATERIAIS DO CERTBIO/UFCG 102

Carlos Alberto Oliveira Rodrigues, Geanne Gomes de Moura e Mariana Luz Silveira

7. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E A PROMOÇÃO DE DESENVOLVIMENTO

SUSTENTÁVEL: ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO 116

Giovanna Paola Batista de Britto Lyra Moura

8. iA SAÚDE SOB A PERSPECTIVA DAS TEORIAS DA JUSTIÇA: APROXIMAÇÕES

ENTRE O CONCRETO E O ABSTRATO 130

Igor Diniz da Mota Silveira

9. A TRAJETÓRIA DA PSIQUIATRIA E A SUA RELAÇÃO BÁSICA COM O DIREITO 158

Arthur Cicupira Rodrigues de Assis e Ana Carolina de Souza Pieretti

Page 8: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

8

10. ATUAÇÃO JUDICIAL E DIREITO À SAÚDE 170

Marianna Cavalcante de Aguiar

11. CONSECUÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: ABUSIVIDADES NOS SERVIÇOS

DE SAÚDE SUPLEMENTAR E ENTRAVES NO ACESSO À JUSTIÇA 197

Rafael Duarte Lins

12. CUIDADOS PALIATIVOS NA ÉGIDE DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA 227

Francisco Bruno Santana da Costa, Eduardo Gomes de Melo,

Gabriela Tavares de Oliveira e Jhayme Farias Cartaxo Lopes

13. DA MERA PROMESSA AO CUMPRIMENTO EFETIVO DO DIREITO

FUNDAMENTAL À SAÚDE: A CRISE DE IDENTIDADE DA

CONSTITUIÇÃO INSINCERA 237

Paulo Fernando de Mello Franco, João Lopes de Farias da Matta e

Tiago Musser dos Santos Braga

14. EUTANÁSIA: A CONJUNTURA ATUAL DIANTE DA REGULAMENTAÇÃO

PÁTRIA E UMA PROPEDÊUTICA ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA

LEGISLATIVA ESTRANGEIRA 251

Ramon Olímpio de Oliveira, Robson Antão de Medeiros e Nayara Toscano de Brito Pereira

15. LEI DO TRATAMENTO DO CÂNCER: ESFORÇOS E OBSTÁCULOS PARA

EFETIVAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE 268

Antônio Alves Pontes Trigueiro da Silva, Manoel Pedro Alexandre Mineiro

Simões e Silva e Winicius Faray da Silva

16. O DIREITO À SAÚDE E A QUALIDADE DOS MEDICAMENTOS GENÉRICOS 285

Anaïs Eulálio Brasileiro, Elis Lucena Formiga e Milena Barbosa de Melo

17. O DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO SUPORTE AO DIREITO

FUNDAMENTAL À SAUDE: O EXEMPLO DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA 308

João Ademar de Andrade Lima e Januária Costa dos Santos Lima

18. O ESPORTE NO PROCESSO DE RESSOCIALIZAÇÃO NO SISTEMA PENITENCIÁRIO:

POSSIBILIDADES, LIMITES E DESAFIOS 328

Adílio Moreira de Moraes, Berla Moreira de Moraes e Márcia Maria Mont‟Alverne Barros

19. OS GRAUS DE VINCULAÇÃO NA ATUAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NAS

POLÍTICAS PÚBLICAS DE DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS 345

Mônia Aparecida de Araújo Paiva e Davi Augusto Santana de Lelis

Page 9: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

9

20. REFLEXÕES ACERCA DA VIOLÊNCIA CONTRA A PESSOA IDOSA: A REALIDADE

ENTRE OS ASPECTOS ÉTICOS E LEGAIS 362

Rebeka Souto Brandão Pereira e Grasiela Piuvezam

21. REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE TESTAMENTO VITAL 381

Cinthia Caroline Luiz do Nascimento

22. SUICÍDIO ASSISTIDO E A COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS:

DIREITO À VIDA VERSUS DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 398

Ingrid Coderceira Costa e Lorena Daniely Lima de Castro

23. FERTILIZAÇÃO IN VITRO: UMA ANÁLISE DO PROCEDIMENTO À LUZ DA

JURISPRUDÊNCIA RECENTE DAS CORTES INTERAMERICANA E EUROPEIA

DE DIREITOS HUMANOS 412

Ana Cláudia Ruy Cardia

24. O DESAFIO DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE COMO UM DIREITO

HUMANO: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS E A

RESPONSABILIDADE DOS DEMAIS ATORES INTERNACIONAIS

PARA COM A SUA EFETIVAÇÃO 434

Lucília Napoleão Barros

25. A OBRIGAÇÃO DE MEIOS E RESULTADO NA MEDICINA: UMA

OPORTUNIDADE DE QUESTIONAMENTO 456

André Fonseca Guerra

26. A LEGALIZAÇÃO DA MACONHA COM FINS MEDICINAIS SOBRE O

OLHAR DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO 470

Rossana Tavares de Almeida e Edeurlan Albino Duarte

Page 10: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

10

APRESENTAÇÃO

Entre os dias 23 e 24 de maio de 2014, ocorreu, em João Pessoa (PB), a I

Conferência Brasileira de Direito e Saúde (I CBDS), uma iniciativa do corpo docente e

discente da Universidade Federal da Paraíba, com o apoio de várias outras instituições.

A Conferência, realizada sob a coordenação dos professores Dr. Gustavo Rabay

Guerra (CCJ-UFPB) e Dr. Eduardo Sérgio Soares Sousa (CCM-UFPB), teve o objetivo

proporcionar discussões sobre diversos pontos de comunicação entre as áreas do Direito

e da Saúde. Durante os dois dias de evento, profissionais de renome nacional e

internacional das duas áreas e de outras afins, representantes de entidades públicas e

privadas, acadêmicos e agentes políticos participaram de debates divididos em quatro

principais temas: a) judicialização da saúde; b) políticas públicas da saúde; c)

desdobramentos jurídicos do exercício dos profissionais da área da saúde, e; d) direito

fundamental.

O evento também contou com um concurso de artigos, os quais foram

defendidos presencialmente por seus autores. Os melhores trabalhos, selecionados por

uma seleta Comissão Científica, estão sendo publicados, através deste livro.

Nesse sentido, para a seleção e publicação dos trabalhos, o evento contou com a

parceria da consolidada Revista Jurídica A Barriguda (ISSN n° 2236-6695). A obra,

registrada na Biblioteca Nacionalsob o ISBN n° 978-85-67494-05-0, pode ser acessada

virtualmente por meio do website da revista (www.abarriguda.org.br).

Assim, com muita satisfação, os organizadores desta obra têm a honra de

apresentar os artigos frutos das discussões promovidas pela I CBDS, elaborados por

pesquisadores de várias instituições nacionais e internacionais de ensino superior, que

apresentam olhares e reflexões inovadoras no âmbito das relações entre as Ciências

Jurídicas e da Saúde.

João Pessoa, Paraíba.

Laryssa Mayara Alves de Almeida

Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva

Renato José Ramalho Alves

Vinícius Leão de Castro

Page 11: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

11

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL: UM PROBLEMA

INTERINSTITUCIONALIZADO

Ingrid Coderceira Costa1

Renato José Ramalho Alves2

Sumário: 1 Introdução. 2 O Direito à Saúde no Brasil e o Sistema Único de Saúde.

3 A Judicialização da Saúde no Brasil. 4 Alternativas à Judicialização da Saúde. 5.

Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho analisa o tema da judicialização da saúde no Brasil, buscando, sem

esgotar o assunto, apontar, com base em mecanismos já existentes, algumas alternativas

viáveis à solução do problema.

Desde já, delimita-se que o estudo ora exposto tem como enfoque as ações e as

políticas públicas de saúde por parte de entes públicos, excluindo-se a análise da questão sob

a ótica dos particulares que atuam na prestação de serviços de saúde, tal como os planos de

saúde e as cooperativas.

Com efeito, no Brasil, atualmente, a necessidade de efetivação do direito

constitucionalmente previsto à saúde se contrapõe à dificuldade vivenciada pelo Sistema

Único de Saúde brasileiro em prover meios que logrem, de fato, garantir este direito a toda a

coletividade.

A opção pela esfera judicial, por isso, vem se tornando uma das principais alternativas

a garantia do direito à saúde. Principalmente por meio de medidas liminares3, vem sendo

assegurado, por nossos Tribunais, que os indivíduos obtenham suas pretensões. A esse

fenômeno convencionou-se chamar de judicialização da saúde.

Entretanto, essa garantia – quase irrestrita – que vem sendo proporcionada

judicialmente ocasiona diversas implicações econômicas, orçamentárias e estruturais em todas

as esferas do setor público. Isto porque a judicialização da saúde tornou-se excessiva,

1Graduada em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba; Servidora pública do Município de João Pessoa,

com atuação em demandas judiciais sobre a saúde. 2Pós-graduando em Direito Tributário pela Escola Superior da Advocacia Flósculo da Nóbrega (ESA/OAB-PB);

Pesquisador do Projeto de Pesquisa "Justiça e Política: Constitucionalismo, democracia e ativismo jurídico"

(UFPB/CNPq); Realizou estágio jurídico na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (2014). 3Medidas liminares são decisões judiciais concedidas in limine litis, ou seja, no início da lide, em regra, sem que

tenha havido ainda a oitiva da parte contrária (cf. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA,

Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil, vol 2. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 538).

Page 12: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

12

acarretando uma sobrecarga de processos pelos diversos Tribunais do país, configurando-se

como um dos principais assuntos a serem discutidos por todos os entes envolvidos no meio

jurídico, administrativo e político. Por isso, o desafio atual é encontrar medidas que tentem

amenizar esta problemática.

Nesse sentido, a seguir, será analisado o contexto que levou ao surgimento da

judicialização da saúde, sendo, posteriormente, apontadas alternativas já existentes que vêm

se mostrando bastantes eficazes para atenuar os efeitos do fenômeno ora estudado.

2 O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

O quadro crítico vivenciado pela população brasileira no final da década de 1970 e

início da década de 1980, resultado de um agravamento das carências da sociedade, e da

decadência do regime militar, desencadeou inúmeras reivindicações por parte da população

brasileira, a fim de maiores direitos e garantias na área social4.

Naquela época, um dos maiores movimentos organizados da sociedade civil foi o

Movimento da Reforma Sanitária, que se destacou por sua luta pela democratização da saúde.

De acordo com Cohn5, tratou-se de um movimento que buscava o desenvolvimento de

instituições e a organização do aparato institucional da saúde.

A Reforma Sanitária fez parte do Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de

Saúde, que ocorreu em 1986, indicada como um projeto a ser implementado através de um

conjunto de ações e políticas da saúde. As ideias discutidas naquela Conferência tiveram forte

influência para elaboração da Constituição de 1988 – obviamente, no que se refere às normas

sobre o direito à saúde – e da Lei Orgânica da Saúde ou Lei do SUS (Lei nº Lei nº 8.080/90).

Com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, o direito à saúde, pela primeira

vez em nosso sistema constitucional, foi elevado ao patamar de direito fundamental e

universal, previsto no art. 6º do texto constitucional. A saúde, assim, foi inserida no rol dos

direitos sociais pertencentes àqueles ligados ao mínimo existencial – reconheceu-se, pois, sua

essencialidade à vida humana.

4 O direito à saúde, doutrinariamente, é amplamente reconhecido como um dos mais importantes direitos sociais.

Nas palavras de Ferreira Filho, ―como as liberdades públicas, os direitos sociais são direitos subjetivos.

Entretanto, não são meros poderes de agir- como é típico das liberdades públicas de modo geral – mas sim

poderes de exigir. São direitos de ‗crédito‘‖ (in: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos

fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 67-68). 5 COHN, Amélia. Saúde e cidadania: análise de uma experiência de gestão local. In: EIBENSCHUTZ, Catalina.

(org.). Políticas públicas: o público e o privado. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996, p. 318.

Page 13: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

13

De acordo com a Constituição de 1988, é competência material comum da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde pública (art. 23, II).

No art. 24 e parágrafos da Carta Magna, há a previsão de que a competência para

legislar sobre a defesa da saúde será concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal.

Nesse sentido, a União é competente para elaborar normas gerais sobre o tema, devendo ser

respeitadas pela legislação dos estados e do Distrito Federal (§1°), os quais, nesse caso,

poderão estabelecer normas de caráter suplementar (§2°). Não exercendo a União sua

competência de instituir normas gerais, cabe aos estados – e ao Distrito Federal (por analogia)

– a competência legislativa plena, até que sobrevenha a norma federal (§3°). A superveniência

de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual – ou distrital –, no que

lhe for contrário (§4°)6.

Nossa Constituição ainda dispõe, em seu art. 196, que a saúde é direito de todos e

dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do

risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para

sua promoção, proteção e recuperação.

Acerca do direito à saúde em nossa Constituição, disserta Ingo Sarlet que

[...] o direito a saúde pode ser considerado como constituindo simultaneamente

direito de defesa, no sentido de impedir ingerências indevidas por parte do Estado e

terceiros na saúde do titular, bem como – e esta a dimensão mais problemática –

impondo ao Estado a realização de políticas públicas que busquem a efetivação

deste direito para a população, tornando, para, além disso, o particular credor de

prestações materiais que dizem com a saúde, tais como atendimento médico e

hospitalar, fornecimento de medicamentos, realização de exames da mais variada

natureza, enfim, toda e qualquer prestação indispensável para a realização concreta

deste direito à saúde7.

Seguindo esse entendimento, Canotilho8 entende que o direito à saúde possui duas

vertentes distintas, sendo uma delas de natureza negativa, relacionado ao direito do cidadão de

exigir do Estado e de particulares que deixem de praticar atos que prejudiquem sua saúde, por

outro lado, positiva, no sentido de ter o povo o direito ao acesso adequado a serviços de saúde

prestados sob responsabilidade do Estado.

6 Nas hipóteses de competência concorrente, estabelece-se verdadeira situação de condomínio legislativo entre a

União Federal e os Estados-membros (in: HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo

Horizonte: Del Rey, 2003, p. 366). 7 SARLET. Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à

saúde na Constituição Federal de 1988. Revista diálogo jurídico. n. 10, jan/2002. Salvador: Bahia. Disponível

em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 14 out. 2014.

8 Apud José Afonso da Silva, Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 188.

Page 14: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

14

Nesse sentido, o cabe ao Estado brasileiro reger as políticas de saúde, e,

especificamente, aos Poderes Executivos – de todas as esferas – desenvolverem e executarem

essas políticas de maneira mais abrangente e eficaz possível.

Com efeito, o direito à saúde está intimamente ligado ao direito a uma vida digna.

Nesse sentido é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme se depreende do

seguinte trecho do julgamento do AgR-RE n° 393.175-RS:

O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a

todas as pessoas – representa consequência indissociável do direito à vida. O Poder

Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atenção no plano da

organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da

saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em

grave comportamento inconstitucional.

Nesse contexto, após o advento da nova ordem constitucional, outra importante

inovação, também influenciada pelo Movimento de Reforma Sanitária, foi a criação do

Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990, regulamentado pela Lei nº 8.080/90.

O SUS compreende o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e

instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das

fundações mantidas pelo Poder Público (art. 1° da Lei nº 8.080/90).

Com o advento do SUS, o Brasil se tornou um dos únicos países que asseguram a

universalidade do acesso à saúde à sua população. O Estado, assim, deve oferecer ao cidadão,

desde o atendimento ambulatorial até o transplante de órgãos, garantindo acesso integral,

universal e igualitário para toda a população do país, sendo responsável pela formulação da

política de medicamentos, equipamentos e outros insumos de relevância para a saúde.

Essas inovações proporcionaram uma grande mudança no que tange ao modo de

elaboração das políticas da saúde e do regramento do direito à saúde no Brasil, sendo ele hoje

reconhecido como um direito relacionado ao mínimo existencial dos indivíduos. Por isso, é

dever do Estado a sua garantia, de modo gratuito e igualitário, sem qualquer espécie de

discriminação9.

Dentre os princípios que fundamentam e norteiam a atuação do Sistema Único de

Saúde, encontram-se o da descentralização, universalidade e integralidade no atendimento10

.

9 BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema Único de Saúde (SUS): princípios e conquistas. Brasília: Ministério da

Saúde, 2000, p. 5. 10

O princípio da descentralização acarreta a transferência das políticas de saúde do nível federal, para os estados

e municípios. A universalidade garante o acesso às ações e serviços de saúde a todos aqueles que deles

necessitam. Já pelo princípio da integralidade, deve-se considerar as pessoas como um todo, atendendo a todas

as suas necessidades; para isso, é preciso garantir o acesso às ações de promoção, prevenção de riscos e agravos,

assistência e recuperação.

Page 15: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

15

O princípio da descentralização acarreta a transferência das políticas de saúde do nível

federal, para os demais entes federativos. A universalidade garante o acesso às ações e

serviços de saúde a todos aqueles que deles necessitam. Já pelo princípio da integralidade,

deve-se considerar as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades; para

isso, é preciso garantir o acesso às ações de promoção, prevenção de riscos e agravos,

assistência e recuperação.

Como consequência do princípio da descentralização, o SUS proporcionou o

fenômeno denominado de municipalização da saúde, no qual a proteção e a garantia do

direito à saúde deve ser iniciada nos municípios, através da criação de políticas públicas que

atendam às necessidades específicas das comunidades locais, seja por meio de tratamento ou

de prevenção11

. Dessa forma, a União e os estados devem executar de forma direta as políticas

públicas sanitárias de maneira suplementar, objetivando suprir eventuais ausências por parte

dos municípios12

.

Por outro lado, além de criar um sistema abrangente, buscou-se, com o SUS, elaborar

mecanismos que atuassem de modo pluralista e democrático, ouvindo os entes sociais

envolvidos. Essa busca por uma maior participação da comunidade remete às lutas do

Movimento de Reforma Sanitária, que proporcionaram o impulso inicial para a criação deste

sistema13

.

Assim, percebe-se que, com a nova ordem constitucional e com a regulamentação do

SUS, almejou-se tornar mais eficaz as ações e políticas públicas da saúde no Brasil. No

entanto, como será analisado a seguir, atualmente, as inúmeras deficiências do setor público

nessa área levam, muitas vezes, o cidadão a acionar o Poder Judiciário, a fim de ver satisfeito

seu direito a receber o adequado serviço público de saúde por parte do Estado.

3 A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL

O fenômeno da judicialização da saúde é recente no Brasil. Antes da Constituição

Federal de 1988, as ações envolvendo direito à saúde no Brasil eram, em regra, provenientes

11

Cf. LIPPEL, Alexandre Gonçalves. O direito à saúde na Constituição Federal de 1988: caracterização e

efetividade. Revista de Doutrina da 4º Região. Porto Alegre, n. 01, jun. 2004. Disponível em:

<http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao001/alexandre_lippel.htm.>. Acesso em: 15 out. 2014. 12

BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 13

BRASIL. Ministério da Saúde, op. cit, p. 6.

Page 16: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

16

da atuação do Ministério Público, através da ação civil pública, instrumento processual

adequado para proteger os interesses difusos da sociedade, além de ser uma espécie de

controle sobre os atos do poder público.

Entretanto, a regra começou a mudar, principalmente após o desenvolvimento das

atividades da Defensoria Pública, com o advento da nova ordem constitucional. Assim, há

quase três décadas, através das defensorias, vêm sendo propostas diversas demandas

individuais, com o objetivo de se obter uma tutela jurisdicional que garanta o direito à saúde.

Some-se a isto o fato de que as Defensorias Públicas, com a promulgação da Lei nº.

11.448/2007, que alterou a redação do art. 5º, inciso II, da Lei nº. 7.347/85, passaram a figurar

como legitimadas ativas da ação civil pública, o que ocasionou um aumento do número de

ações coletivas sobre o tema.

Por outro lado, a Advocacia (particular) também começou a contribuir para o aumento

de ações versando sobre o direito a saúde. Com as novas regras previstas na Constituição e na

legislação infraconstitucional, inúmeros advogados começaram a se especializar no tema e

iniciaram a prestação de serviços advocatícios voltados para demandas que almejassem a

condenação dos entes federativos a uma prestação de serviço de saúde eficiente para seus

clientes.

Um movimento relevante para a mudança de paradigma quanto às ações judiciais

sobre o direito à saúde ocorreu a partir de meados da década de 1990. Naquele período,

inúmeros pacientes contaminados pelo vírus da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

(HIV) começaram a se unir por meio de Organizações Não Governamentais (ONGs) e outras

espécies de associações, para a defesa de seus direitos. Um dos principais objetivos dessas

instituições era pleitear, na esfera judicial, o fornecimento, pela Administração Pública, de

medicamentos necessários ao tratamento da AIDS.

Um marco na luta dessas organizações se deu quando uma liminar, requerida contra

o Estado de São Paulo, foi julgada favorável, em 25 de julho de 1996, por meio de uma

demanda judicial apresentada por uma associação constituída sob a forma de um grupo de

apoio à prevenção à AIDS, determinando o fornecimento gratuito de medicamentos

antirretrovirais para HIV/AIDS pelo Poder Público. A decisão abriu precedente para o

ajuizamento de várias demandas que viriam a sobrecarregar os tribunais brasileiros nos anos

seguintes, proporcionando um expressivo impacto orçamentário para a Administração

Pública, sobretudo, na cidade de São Paulo.

Page 17: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

17

De acordo com Machado14

, até o início da década de 1990, praticamente todas as

ações ajuizadas no judiciário eram sumariamente negadas. Os magistrados baseavam suas

decisões negativas na interpretação do art. 196 da Constituição Federal, considerando-a uma

norma programática, não passível de produzir efeitos jurídicos imediatos.

Foi graças às inúmeras demandas ajuizadas para a obtenção do fornecimento dos

medicamentos aos pacientes portadores do vírus HIV que, em 1996, foi promulgada a Lei

Federal n. 9.313/96, que garantiu a distribuição de antirretrovirais de maneira universal e

gratuita, instituindo a obrigação solidária dos entes federativos. A promulgação da referida lei

é considerada um marco no direito à saúde no Brasil e provocou um aumento dos pleitos

acolhidos no âmbito do judiciário. O fenômeno se espalhou pelo país, ocasionando um

crescimento alarmante no número de ajuizamento de ações requerendo medicamentos para

outras doenças além do HIV, bem como cirurgias, exames e tratamentos dos mais diversos.

De outra banda, o crescimento do número das demandas judiciais também fora

acentuado em virtude das mudanças do entendimento dos magistrados sobre o tema. A partir

das mencionadas inovações legislativas, compreende-se, atualmente, que cabe à

Administração Pública, solidariamente, em todas as esferas, implementar políticas públicas e

meios eficazes de acesso aos medicamentos e tratamentos de saúde em favor dos cidadãos.

Nesse sentido, em 2005, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp n°

771.537/RJ, sedimentou seu posicionamento – que permanece hígido até hoje –, no sentido

que o funcionamento do SUS é de responsabilidade solidária da União, dos estados (e Distrito

Federal) e dos municípios, ―de modo que qualquer dessas entidades têm legitimidade ad

causam para figurar no polo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à

medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros".

Mais do que nunca, percebe-se, claramente, o desenvolvimento do fenômeno da

judicialização da saúde. Para Barroso15

, o termo ―judicialização‖ significa

que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas

por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o

Congresso Nacional e o Poder Executivo. [...] Como intuitivo, a judicialização

envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações

significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da

sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma

tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional

brasileiro.

14

MACHADO, Felipe. Contribuições ao debate da judicialização da saúde no Brasil. Revista de Direito

Sanitário, São Paulo v.9, n.2, pp.73-91, 2008, p.78. 15

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. [s.d.], [s.l].

Disponível em: < http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ ArtigoBarroso_para

_Selecao.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014, p. 3

Page 18: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

18

Para Vieira, nem só por aspectos negativos é caracterizada a judicialização. Ela

poderá estimular, por exemplo, fora do âmbito judiciário, a efetivação de políticas públicas

mais adequadas às necessidades da população, além de evitar a negligência do Estado,

principalmente em casos mais graves de risco de vida16

. A judicialização possui, assim, um

viés pedagógico para o Poder Executivo, que buscará, previamente, evitar o problema, sob

pena de ter que solucioná-lo no âmbito judicial, arcando com maiores e inesperados custos.

No entanto, o fenômeno da judicialização da saúde, no Brasil, é marcado,

preponderantemente, pelas dificuldades por ele causadas, gerando inúmeras discussões acerca

dos problemas de gestão do Poder Público na área da saúde.

É perceptível, por exemplo, sérias complicações orçamentárias, sobrecarregando as

finanças públicas. Isto porque, na maior parte das vezes, os custos advindos de uma demanda

judicial são arcados de forma não planejada, sendo o ente público obrigado a realocar

recursos, a fim de cumprir decisões judiciais que, e. g., determinam o fornecimento de

determinado medicamento.

Acerca do tema, ressalta Luiz Carlos Romero17

:

Atualmente, os governos federal, estaduais e municipais – gestores do SUS – sofrem

uma avalanche de ordens judiciais determinando a dispensação de medicamentos, o

que gera efeitos negativos, especialmente sobre o gerenciamento da assistência

farmacêutica nos estados e sobre os seus benefícios diretos, como a interrupção do

tratamento de pacientes regulares em razão da transferência de medicamentos em

estoque que lhe seriam destinados para pacientes beneficiados por determinação

judicial [...]. Essas decisões da Justiça comprometem, assim, a dispensação regular,

o atendimento de prioridades definidas e a implementação das políticas de

assistência farmacêutica aprovadas, já que os gestores precisam remanejar recursos

vultosos para atender situações isoladas.

Por outro lado, Barroso destaca que a judicialização da saúde, embora existente

como pretexto de promover os direitos fundamentais à saúde de determinados indivíduos,

pode causar graves lesões a direitos da mesma natureza de outros18

. Muito se questiona sobre

decisões judiciais que impõem ao Poder Público, por exemplo, o fornecimento de

determinada cirurgia a um paciente, quando, na verdade, existiam outros cidadãos em

posições anteriores na ―fila‖ do SUS, necessitando com mais rapidez de tal procedimento.

16

VIEIRA, Fabiola Sulpino; ZUCCHI, Paola. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de

medicamentos no Brasil. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Revista

Saúde Pública, São Paulo, v.41, n.2, pp.214-222, 2007, p.221. 17

ROMERO, Luiz Carlos. Judicialização das políticas de assistência farmacêutica: o caso do distrito

federal. Brasília: Consultoria Legislativa do Senado Federal; 2008. Disponível

em <http://www.senado.gov.br/senado/coleg/ textos_discussão>. Acesso em: 19 abr. 2014. 18

BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva. Rio de Janeiro: Renovar, 2009,

p. 4.

Page 19: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

19

Tratar-se-ia de uma preterição em desfavor daqueles que possuem menos condições de

recorrer ao Judiciário?

Além do mais, o excesso de proposituras de demandas judiciais que buscam tutelas

jurisdicionais para a obtenção de determinado medicamento ou tratamento de saúde provocam

iniquidades no acesso à justiça, principalmente quando são manifestamente infundadas, eis

que tais demandas, quase sempre, têm prioridade sobre os outros processos judiciais19

.

Segundo Barroso20

, tais excessos de demandas podem inviabilizar a implantação de

políticas coletivas, direcionadas a promover a saúde pública de uma forma ampla. Isto porque

o direito à saúde, assim como os demais direitos sociais, requer, principalmente, uma

prestação positiva por parte do Estado: construção de hospitais, fornecimentos de

medicamentos, adoção de medidas preventivas etc. Por isso, o direito à saúde encontra-se

relacionado diretamente à reserva do possível, isto é, encontra limitação na disponibilidade de

recursos públicos para sua implementação21

.

Noutro giro, conforme já ressaltado, o direito à saúde está no cerne do mínimo

existencial a uma vida digna, com base na dignidade da pessoa humana. Trata-se, pois, de um

núcleo essencial das garantias constitucionais, devendo os entes federativos promovê-lo na

maior extensão possível, seja de forma coletiva ou individual22

.

Dessa forma, a grande questão gira em torno de como compatibilizar as necessidades

na área da saúde da população com os limitados recursos públicos. Nesse sentido, o Ministro

do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, na Audiência Pública n.º 04 de 2009, que

discutia as principais temáticas envolvendo as ações de prestação da sanitária, no intuito de

esclarecer questões técnico-científicas, administrativas, político-econômicas e jurídicas

relacionadas ao tema, fez a seguinte análise:

O fato é que a judicialização do direito à saúde ganhou tamanha importância teórica

e prática que envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores

públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo. Se, por

um lado, a atuação do Poder Judiciário é fundamental para o exercício efetivo da

cidadania e para a realização do direito social à saúde, por outro, as decisões

judiciais têm significado um forte ponto de tensão perante os elaboradores e

19

Cf. VENTURA, Miriam et al. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde.

Physis, Rio de Janeiro, v.20, n.1, p.77-100, 2010, p. 79-80. 20

Ibidem. 21

Cf. SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo

existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, ano

1, n. 1, p. 217-218. 22

BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento

gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista Interesse Público. 2007, p. 10.

Disponível em: < http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/saude/Saude_-

_judicializacao_-_Luis_Roberto_Barroso.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014.

Page 20: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

20

executores das políticas públicas, que se vêm compelidos a garantir prestações de

direitos sociais das mais diversas, muitas vezes contrastantes com a política

estabelecida pelos governos para a área da saúde e além das possibilidades

orçamentárias. A ampliação dos benefícios reconhecidos confronta-se

continuamente com a higidez do sistema (informação verbal).

Buscando solucionar o problema, caso a caso, a jurisprudência dos tribunais

superiores tende a se posicionar no sentido de que há inoponibilidade da reserva do possível

ao mínimo existencial, principalmente naqueles casos em que há grave risco à vida e ausência

de demonstração de impossibilidade financeira.

Nesse sentido, no fim de 2014, quando do julgamento do AgRg no REsp

1107511/RS, que versava sobre uma demanda judicial onde se impôs o fornecimento de

medicamentos ao Poder Público, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que os órgãos do

Poder Judiciário podem, inclusive, determinar ―a inclusão de determinada política pública nos

planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da

incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal‖.

Entretanto, por outro lado, é possível encontrar recentes decisões do Supremo

Tribunal Federal no sentido de que, para a imposição, em face do Poder Público, do custeio de

uma cirurgia, faz-se necessário, além da demonstração da necessidade do procedimento, a

ineficácia de outras alternativas, ou seja, que o jurisdicionado, ao menos, tenha tentado

satisfazer sua pretensão na esfera administrativa. Esse foi o entendimento, por exemplo, do

Ministro Presidente do Tribunal, Ricardo Lewandoski, na STA n° 748.

4 ALTERNATIVAS À JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

Após o reconhecimento, pelo Judiciário, Executivo Legislativo, dos efeitos negativos

causados pela judicialização da saúde, iniciou-se o desenvolvimento de medidas a serem

tomadas, de forma cooperativa entre os diversos órgãos públicos, para atenuar o problema.

Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça expediu a Resolução nº 31/2010, com

base na Audiência Pública nº 4, realizada pelo Supremo Tribunal Federal, em 27/04/2009,

quando foram ouvidos advogados, defensores públicos, promotores, procuradores de justiça,

magistrados, professores, médicos e outros profissionais especialistas na área da saúde.

A resolução recomendou aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e

os Tribunais Regionais Federais que celebrassem convênios com profissionais da saúde, com

Page 21: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

21

a finalidade de fornecer apoio técnico-especializado, subsidiando os magistrados e demais

operadores do Direito, em relação às demandas envolvendo o direito à saúde.

Dessa forma, com base na Recomendação nº 31/2010 do CNJ, alguns Tribunais vêm

implementando importantes mecanismos de auxílio aos magistrados no que se refere às

demandas envolvendo o direito à saúde. Por meio de mecanismos interinstitucionalizados,

busca-se, por exemplo, analisar a real necessidade do medicamento pleiteado, as

circunstâncias da patologia alegada pelo autor da demanda e o medicamento ou insumo

adequado ser concedido.

Nesse aspecto, tem destaque a criação do Núcleo de Assessoria Técnica (NAT), que

entrou em funcionamento em fevereiro de 2009, atuando junto a diversas varas da comarca do

Rio de Janeiro. O NAT foi constituído por meio de um convênio firmado entre o TJRJ e a

Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro23

. É formado por uma equipe é composta por

funcionários de várias áreas distintas: funcionários administrativos, farmacêuticos,

nutricionistas, enfermeiros e médicos. Possui como função principal a de emissão pareceres

técnicos baseados no binômio necessidade/utilidade, isto é, observando-se a real eficácia do

tratamento solicitado e o menor custo diante do objeto da ação. Por meio da atuação do NAT,

também evita-se interferências externas ligada a interesses particulares, como dos laboratórios

ou fabricantes de produtos farmacêuticos.

O NAT possui um banco de dados onde os processos sobre o direito à saúde são

devidamente cadastrados e, posteriormente, distribuídos aos membros da equipe para análise e

posterior parecer técnico. Após emissão do parecer, o documento é enviado à coordenação de

revisão e, por último, retorna para o cartório ou secretaria do juízo que o solicitou. Nos casos

em que o medicamento exista na lista do SUS e está disponível, sendo oferecido

gratuitamente à população, o autor da demanda é orientado a se encaminhar ao local de

distribuição e retirá-lo, dando fim ao processo. Dessa forma, o Núcleo ajuda a impedir a

compra desnecessária de medicamentos, evitando, até mesmo, fraudes nesse tipo de

solicitação e o consequente desperdício de dinheiro público24

.

Outros estados como o Paraná, Espírito Santo, Pernambuco e Piauí também

introduziram seus respectivos NATs, no intuito de reduzir os impactos da judicialização da

23

COSTA, Aline da; FERREIRA, Siddharta. Núcleo de assessoria técnica e judicialização da saúde:

constitucionais ou inconstitucionais?SIRJ, Rio de Janeiro, v.20, n. 36, p. 219-240, abr. 2013, p. 221. Disponível

em: <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/371/345>. Acesso em: 23 out. 2014. 24

CASTRO, Kátia Regina Tinoco Ribeiro de. Os juízes diante da judicialização da saúde: o NAT como

instrumento de aperfeiçoamento das decisões judiciais na área da saúde. Dissertação de mestrado – Fundação

Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2012, p. 41. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/9769/K%C3%A1tia%20Regina%20Tinoco%20Ri

beiro%20de%20Casatro.pdf?sequence=1>. Acesso em: 23 out. 2014.

Page 22: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

22

saúde. No que se refere à estrutura e à finalidade do órgão nesses estados mencionados, elas

se assemelham ao do TJRJ, isto é, almejam proporcionar um auxílio técnico aos magistrados

nas suas tomadas de decisão25

.

Por sua vez, o Comitê Interinstitucional de Resolução Administrativa de Demandas da

Saúde (CIRADS) foi fundado no Rio Grande do Norte, a partir de uma cooperação

formalizada em 22 de julho de 2009 entre diversos órgãos que atuam junto ao Poder

Judiciário26

.

A atuação do CIRADS se dá através da utilização da conciliação como meio de

reduzir a judicialização, solucionando os conflitos através da via administrativa . Também

atua junto à Administração Pública, no intuito de buscar uma melhoria das políticas públicas

direcionadas à saúde, assim como o aprimoramento do SUS.

Por outro lado, a Câmara Técnica de Saúde (CTS) foi implementada no Município de

João Pessoa, na Paraíba, em 2013, constituindo-se como um órgão colegiado consultivo,

vinculado ao Poder Judiciário e ao Poder Executivo do Estado da Paraíba e do Município de

João Pessoa. A equipe multidisciplinar que compõe a CTS possui, ao total, oito profissionais,

sendo dois médicos, dois nutricionistas e quatro farmacêuticos, tendo como atribuições

semelhantes aos NATs, ou seja, o auxilio aos magistrados na tomada de decisões, através da

emissão de pareceres técnico-científicos, baseados nas informações e documentos contidos

nos autos.

Para se garantir uma maior agilidade nos processos da saúde, estipulou-se que o prazo

para o envio do parecer pela CTS é, em regra, de até quarenta e oito horas, ou seja, muito

menor que o tempo necessário para a realização de uma perícia técnica, como ocorreria em

processos sobre outras matérias.

Com efeito, a importância da atuação de mecanismos como o NAT, o CIRADS e a

CTS ultrapassa o âmbito do Poder Judiciário. Na verdade, tais as atividades desenvolvidas por

tais organismos ajudam os gestores públicos a visualizarem as áreas em que se devem alocar

maiores recursos públicos, bem como quais políticas públicas tornaram-se necessárias para a

sociedade.

Através de tais experiências, é possível perceber que, para combater os efeitos

negativos da judicialização da saúde, é fundamental constituir um diálogo direto e constante

25

COSTA, Aline da; FERREIRA, Siddharta, op. cit., p. 227. 26

Especificamente: a Procuradoria da União no Estado do Rio Grande do Norte (vinculada à Advocacia Gerald a

União); a Defensoria Pública da União no Estado do Rio Grande do Norte; a Procuradoria Geral do Estado do

Rio Grande do Norte; a Procuradoria Geral do Município de Natal; a Secretaria de Estado da Saúde Pública do

Rio Grande do Norte e a Secretaria Municipal de Saúde de Natal. Em 2014, a cooperação recebeu a adesão da

Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte.

Page 23: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

23

entre os diferentes órgãos e as esferas políticas acerca do problema, a fim de se estabelecer,

entre eles, uma atuação conjunta e cooperativa.

5 CONCLUSÃO

De acordo com o que fora abordado, é possível concluir que é iminente a necessidade

de formulação e de adoção de medidas que visem combater a excessiva judicialização da

saúde existente no Brasil, principalmente, quando se percebe a dimensão que este fenômeno

vem tomando nos últimos anos.

A problemática surgiu, notadamente, após o advento da Constituição de 1988 e da

Lei do SUS (Lei nº 8.080/90), que determinam a responsabilidade solidária dos entes

federativos para garantir a integralidade, universalidade e descentralização do acesso à saúde

no Brasil. Acrescente-se a isto o fato de que o desenvolvimento do princípio da dignidade

humana em nosso ordenamento jurídico ocasionou uma acentuada mudança de

posicionamento dos tribunais, cada vez mais sensíveis às demandas que versam sobre o

direito à saúde.

Ocorre que são inúmeras as consequências negativas ocasionadas pela

judicialização, dentre elas, destacam-se os impactos orçamentários e a priorização de

determinados pacientes em face de outros, o que vai de encontro com as metas e planejamento

do próprio SUS.

Observa-se, assim, que as medidas que foram implementadas em alguns estados do

Brasil, a exemplo do Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Paraíba, mostraram-se como

alternativas viáveis para a redução dos altos índices de processos, em face da Administração

Pública, envolvendo a prestação de serviços de saúde, fornecimento de produtos ou

medicamentos. Nesse sentido, embora não sejam suficientes para a solução completa do

problema, mecanismos como o Comitê Interinstitucional de Resolução Administrativa de

Demandas da Saúde (CIRADS), os Núcleos de Assessoria Técnica (NATs) e as Câmaras

Técnicas (CTs) têm fornecido importante auxílio para o combate aos efeitos da judicialização.

É possível perceber que tais instrumentos atuam de forma semelhante, promovendo

uma análise de cada caso de uma forma racional e isenta, além de promover a colaboração

mútua entre diversos órgãos estatais. Servem, pois, de modelos a serem implementados nos

demais estados brasileiros, a fim de expandir a busca por medidas alternativas à

judicialização, que efetivem, de fato, o direito à saúde em nosso país.

Page 24: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

24

Dessa forma, a solução do problema da judicialização da saúde, embora distante,

parece se pautar pelo caminho da cooperação interinstitucional, com a atuação conjunta, de

forma colaborativa, de diversos órgãos da Administração Pública.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva. Rio de Janeiro:

Renovar, 2009.

______. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento

gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista Interesse Público.

2007. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-

apoio/publicacoes/saude/Saude_-_judicializacao_-_Luis_Roberto_Barroso.pdf>. Acesso em:

20 out. 2014.

______. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. [s.d.], [s.l]. Disponível

em: < http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/

ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretária Executiva. Sistema Único de Saúde (SUS):

princípios e conquistas. Brasília: Ministério da Saúde, 2000.

CASTRO, Kátia Regina Tinoco Ribeiro de. Os juízes diante da judicialização da saúde: o

NAT como instrumento de aperfeiçoamento das decisões judiciais na área da saúde.

Dissertação de mestrado – Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2012. Disponível

em:<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/9769/K%C3%A1tia%20Re

gina%20Tinoco%20Ribeiro%20de%20Castro.pdf?sequence=1>. Acesso em: 23 out. 2014.

COHN, Amélia. Saúde e cidadania: análise de uma experiência de gestão local. In:

EIBENSCHUTZ, C. (org.). Políticas públicas: o público e o privado. Rio de Janeiro: Fiocruz,

1996.

COSTA, Aline da; FERREIRA, Siddharta. Núcleo de assessoria técnica e judicialização da

saúde: constitucionais ou inconstitucionais? SIRJ, Rio de Janeiro, v.20, n. 36, p. 219-240, abr.

2013. Disponível em:

<http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/371/345>. Acesso em: 23

out. 2014.

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de

direito processual civil, vol 2. Salvador: Juspodivm, 2013.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva,

2010.

HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

Page 25: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

25

LIPPEL, Alexandre Gonçalves. O direito à saúde na Constituição Federal de 1988:

caracterização e efetividade. Revista de Doutrina da 4º Região. Porto Alegre, n. 01, jun. 2004.

Disponível em:

<http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao001/alexandre_lippel.htm.>. Acesso em:

15 out. 2014.

MACHADO, Felipe. Contribuições ao debate da judicialização da saúde no Brasil. Revista de Direito

Sanitário, São Paulo v.9, n.2, pp.73-91, 2008.

ROMERO, Luiz Carlos. Judicialização das políticas de assistência farmacêutica: o caso do

distrito federal. Brasília: Consultoria Legislativa do Senado Federal; 2008. Disponível

em <http://www.senado.gov.br/senado/coleg/ textos_discussão>. Acesso em: 19 out. 2014.

SARLET. Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do

direito à saúde na Constituição Federal de 1988. Revista diálogo jurídico. n. 10, jan/2002. Salvador:

Bahia. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 14 out. 2014.

_____; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito

à saúde: algumas aproximações. Revista da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, ano

1, n. 1, jul./dez., pp. 179-234, 2008.

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2012.

VENTURA, Miriam et al. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à

saúde. Physis, Rio de Janeiro, v.20, n.1, p.77-100, 2010.

VIEIRA, Fabiola Sulpino; ZUCCHI, Paola. Distorções causadas pelas ações judiciais à

política de medicamentos no Brasil. Revista Saúde Pública, São Paulo, v.41, n.2, pp. 214-222,

2007.

Page 26: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

26

ACESSO A MEDICAMENTOS E PROPRIEDADE INTELECTUAL:

PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NA FORMULAÇÃODA

POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA

Luciana Correia Borges1

Sumário: 1 Introdução.2Regime de Propriedade Intelectual e o Interesse Público.

2.1 Aspectos Gerais. 2.2 AIndústria Farmacêutica e as Doenças Epidêmicas. 3 Os

Atores da Sociedade Civil e a Evolução do Assistencialismo Brasileiro nas Questões

de Saúde Pública. 3.1 LicençaCompulsória e o Caso HIV/AIDS. 4 A Participação da

Sociedade Civil sob a Ótica da Análise de Política Externa. 4.1 OProcesso

BottomUp. 4.2 A Utilização do Soft Power na Política Externa BrasileiraAtravés da

Diplomacia da Saúde Global e o Papel da Sociedade Civil no Suporte dessa Política.

5 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é analisar o engajamento da sociedade civil na formulação da

política externa brasileira no que tange a saúde pública e o acesso a medicamentos. Para tanto,

optou-se por focar na problemática em torno das doenças epidêmicas, principalmente a

HIV/AIDS; tratando das discordâncias que permeiam as flexibilidades do sistema

internacional de proteção à propriedade intelectual e da participação do Brasil nas discussões

e negociações que envolvem direitos de propriedade intelectual e saúde pública,ao longo da

Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC).

A batalha sobre o acesso a medicamentos essenciais gira em torno, além de outras

questões,da fabricação e exportação de medicamentos, o que esbarra nas normas

internacionais de proteção a propriedade intelectual, que regulam a possibilidade dos Estados

emitirem licença compulsória e fazerem uso da importação para paralela para ampliar a

capacidade de produção de genéricos e ampliar o acesso a fármacos essenciais.

Em contrapartida, o Brasil, junto às organizações não governamentais (ONGs) e

outros países em desenvolvimento,tem procurado esclarecer interpretações e aplicarnormas

que permitam maiores acesso a conhecimento protegido2, por um lado, evitando a produção

1 Graduanda dos cursos de Relações Internacionais (UFPB) e Direito (UNIPÊ).

2Esse debate e a pressão dos países em desenvolvimento acarretou no avanço para os que defendem a maior

flexibilização do TRIPS através da Declaração sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública (Declaração de Doha)

OMC e, posteriormente, da implementação da emenda adotada pelo Conselho-Geral da Organização Mundial do

Comércio, em 6 de dezembro de 2005, que consiste em incluir no texto do Acordo TRIPS o teor da Decisão do

Conselho-Geral da OMC, adotada em 30 de agosto de 2003 (a qual regulamenta o Parágrafo 6 da Declaração

Ministerial de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública), mediante a flexibilização das normas constantes no artigo 31

do TRIPS; e do acréscimo de um anexo ao Acordo TRIPS relativo ao licenciamento compulsório de patentes.O

Page 27: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

27

de normas específicas que aumentem os períodos de proteção; assim como, por outro, através

da utilização de prerrogativas existentes no sistema internacional como a emissão de licenças

compulsórias, da importação paralela e da fabricação e exportação de medicamentos

genéricos.

Voltando-se especificamente para o Regime Internacional de Propriedade Intelectual,

temos como padrão mínimo de regimento o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de

Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – TRIPS, na sua silha em inglês – acordo

da OMC que foi negociado na Rodada Uruguai de negociações, entre 1986-1994, por parte

dos membros da OMC. Esse estabelece certas regras relativas aos direitos de propriedade

intelectual com o objetivo de estabelecer um conjunto uniforme de regras em todo o mundo,

visando certa padronização, previsibilidade e estabilidade nas relações econômicas

internacionais. Nesse cenário de padronização das normas, os Direitos de Propriedade

Intelectual (DPIs) passaram a ser contestados, posto que o conhecimento é, ao mesmo tempo,

uma forma de capital e um bem público, mas as discussões tornaram-se mais agudas desde a

entrada do Acordo TRIPS da OMC, em 1995. Desde então, essa estrutura internacional de

DPIstem sido quase exclusivamente dominada por interesses privados, especialmente os da

indústria farmacêutica, originários, na sua grande maioria, em países desenvolvidos. Isso

sugere que a política de propriedade intelectual é mais voltada para os interesses comerciais

dos produtores do que para uma concepção imparcial de interesse público(MUZAKA, 2011;

SELL, 2007).

Entretanto, no que concerne o acesso a medicamentos, as ONGs e os países em

desenvolvimento alcançaram um considerável avanço através da Declaração de Doha e Saúde

Pública, de novembro de 2001. Por meio dessa, países membros da OMC asseguraram

direitos para implementaro TRIPS de forma a proteger a saúde pública e promover o acesso a

medicamentos para todos, configurando a Declaração como um importante mecanismo legal

que consolidou um valioso policyspace para o governo tratar das questões de interesse público

(GALLAGHER, 2005; MUZAKA, 2011; SELL,2007).

Historicamente, movimentos sociais e coletivos de ONGs têm lutado para garantir a

sustentabilidade de políticas públicas de saúde; o acesso universal a medicamentos utilizados

no tratamento de doenças epidêmicas e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). A

projeção desse engajamento da sociedade civil na conformação do direito à saúde se fez

presente, de forma eficaz, na luta pelo acesso universal ao tratamento antirretroviral, marcada

Acordo TRIPS e a Declaração sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública (Declaração de Doha) OMC serão

discutidos posteriormente, na seção destinada ao tema.

Page 28: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

28

pela confluência de esforços das ONGs, as quais apresentaram diversas ações judiciais

exigindo o acesso gratuito e universal ao tratamento necessário; e pelos setores do governo,

responsivos às exigências de tais organizações.

No que se refere especificamente à proteção à propriedade intelectual e a atuação dos

movimentos sociais para ―sensibilizar‖ o governo, um caso que reflete essa atuação de ONGs

e sociedade civil é alicença compulsória emitida pelo Brasil para o antirretroviral Efavirenz,

em 2007. Esse caso se tornou emblemático para a questão, uma vez que contou com um

abaixo-assinado em apoio à licença, caracterizando a pressão das ONGse grupos de ativismo

domésticos que já advogavampelo licenciamento compulsório de antirretrovirais no Brasil há

cerca de dez anos.

Desse modo, no que tange a saúde pública, aformulação da política externa brasileira

no se aproxima da formulação proposta por Andrew Cooper (2005) como um processo

bottomup, tendo em vista que a participação da sociedade tem sido cada vez mais importante

para garantir que a promoção e proteção do direito a saúde3 recebesse tratamento prioritário,

exigindo, também, que o governo assumisse a responsabilidade pelas decisões e posições

adotadas no plano internacional. Assim, podemos inferir que a sociedade civil é importante

para criação de uma cultura de accountability na política externa, além de contribuir com o

fortalecimento da democracia no nível nacional.

É importante ressaltar que, recentemente, a tensão e contradição associadas à proteção

da propriedade intelectual e saúde pública se tornaram mais latentes devido ao maior escopo

de fóruns e regimes que tratam da questão, expandindo a discussão para além da OMC e por

meio de regras TRIPS-plus - que transcendem os ditames do Acordo TRIPS - causando um

impacto direto na sustentabilidade do acesso universal ao tratamento retroviral oferecido pelo

Brasil.

Destarte, a meta desse estudo é deixar particularmente claro que as novas demandas

exigem repensar a participação da sociedade civil organizada e a redefinição de suas lutas

frente ao contexto e a complexidade que permeiam o atual sistema de proteção de propriedade

intelectual e acesso a medicamentos, principalmente por meio da diplomacia da saúde global.

3 O direito à saúde é interesse público constitucionalmente protegido e parte do rol dos direitos humanos, através

da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que estabelece um vasto campo de dispositivos

referentes aos direitos sociais, em especial à saúde. Tendo grande influência desse documento, a Constituição

Federal de 1988 designou uma seção exclusiva para tratar dos direitos sociais, sendo esses qualificados como

direitos fundamentais, dentre eles à saúde. Em destaque, temos o artigo 5º, 6º, 196 (CF88); que exigem a ação do

Estado na prestação e eficácia desse direito, tendo aplicabilidade imediata e eficácia plena, uma vez que se

consubstancia como direito subjetivo público.

Page 29: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

29

2 REGIME DE PROPRIEDADE INTELECTUAL E O INTERESSE PÚBLICO

2.1 ASPECTOS GERAIS

Ao longo das discussões sobre a proteção dos DPIs e saúde pública, duas vertentes

merecem destaque. De um lado, há o argumento de que todos os direitos de propriedade

intelectual são valiosos para os negócios e beneficiam o público em geral, posto que abrem as

portas para o progesso técnico. Argumento normalmente encampado pelos países

desenvolvidos. Esses defensores destacam os altos custos de desenvolvimento de novas

drogas, a importância dos direitos de propriedade fortes como incentivos para a inovação, e a

necessidade de uma compensação substancial para o desenvolvimento de medicamentos que

salvam vidas. A indústria farmacêutica global, enquanto instituição privada, juntamente com

os Estados Unidos, União Europeia e Japão promovem essa perspectiva. Ela também tem sido

influente na OMC e na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) (MUZAKA,

2011; SELL, 2007).

De outro lado, temos os representantes de países em desenvolvimento4, impulsionados

por determinadas ONGs,os quais advogam que os direitos de propriedade intelectual são

susceptíveis de prejudicar o desenvolvimento da indústria local e a tecnologia; além de

causarem relevante impacto no acesso a medicamentos. Eles defendem o acesso ao

conhecimento, em geral, inclusive por meio do licenciamento compulsório, da indústria de

medicamentos genéricos e da importação paralela. Desse modo, esta visão aponta que a forte

proteção à propriedade intelectual pode trazer resultados adversos para economias em

desenvolvimento e para setores de interesse público.

Entretanto,os argumentos utilizados pelos países desenvolvidos não corresponderam à

situação concreta após a assinatura do TRIPS, ao passo que, como mostram as evidências,

essas promessas de benefícios ao público em geral não estão se materializando. O que ocorre,

de fato, por meio das novas disciplinas multilaterais, é o aumento das exportações dos países

desenvolvidos, seguidos pelas perdas de bem-estar e visíveis crises no âmbito da saúde

pública nos países em desenvolvimento. Como consequência, tivemos o fortalecimento de

críticas a respeito dos Direitos de Propriedade Intelectual, por parte das ONGs e países em

4 Faz-se uma ressalva que esses países não são um grupo homogêneo e tem visões diferentes sobre algumas

matérias. Entretanto, no que se refere ao acesso a medicamentos, temos forte atuação do Brasil, Índia e África do

Sul, representando esse grupo frente às Organizações e Regime que disciplinam a temática.

Page 30: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

30

desenvolvimento, assim comoa consolidação das cooperações na área de saúde pública

(CORREA, 2000).

Até a consolidação do acordo TRIPS, em 1995, os acordos internacionais de

propriedade intelectual permitiam que os governos nacionais tivessem uma maior liberdade

política para projetar suas próprias leis de propriedade intelectual. Entretanto, o TRIPS

interferiu abertamente nesse processoatravés da imposição de uma maior proteção da

propriedade intelectual, que excluiu a possibilidade das normas jurídicas serem contestadas e

desenvolvidas internamente. Em outras palavras, o acordo TRIPS transformou o tradicional

paradigma nacional; pautando as políticas em função das obrigações do Acordo ao invés de

atender as exigências domésticas.

Nesse contexto, a exacerbada proteção dos direitos à propriedade afetaram diretamente

as liberdades importantes para que países optassem por definir, de forma autônoma, políticas

públicas destinadas a garantir a provisão devida de políticas sociais aos seus cidadãos,

principalmente no tocante à saúde pública.

Essa questão nos remete ao tema trabalhado por Gallagher (2005), qual seja: a questão

concernente ao policyspace. Segundo o referido autor,o que antes eratido como um

instrumento majoritariamente de políticanacional, agora se configuracada vez maissujeito

adisciplinasinternacionais,ao passo que o mundo se move para uma harmonização no

gerenciamento na área de Propriedade Intelectual. Entretanto, o movimento em direçãoà

harmonização diverge dealcançar uma harmonização, além de ser essencialter em menteque o

primeiroenão o últimodescreve os arranjos contemporâneos. Nesse sentido, a tendência é

deuma redução nopolicy space, um recurso que para muitos estudiosos merece relevante

preocupação (Gallagher, 2005).

A maior forma de limitação do policyspaceno âmbito da saúde pública e acesso a

medicamentos é através das peculiaridades contidas no TRIPS.Dentre as normativas do

Acordo, podemos destacar que ele estende os direitos de patente por, no mínimo, 20 anos;

obriga a concessão de patentes para todos os setores tecnológicos, incluindo os produtos

farmacêuticos; e, de grande impacto, circunscreve as liberdades que os Estados possuem ao

definir critérios para exaustão de direitos, como a emissão de licenças compulsórias e

importação paralela.No geral, o TRIPS reflete e promove os interesses das corporações

globais que buscam ampliar seu controle sobre sua propriedade intelectual. Essas empresas,

por intermédio do governo dos Estados Unidos (e com o apoio da Europa e Japão),

capturaram o processo da OMC e conseguiram fazer com que a lei pública internacional se

adequasse aos seus interesses particulares (SELL, 2007; MUZAKA,2011).

Page 31: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

31

Como consequência desse cenário, ou seja, do aumento do controle sobre o

conhecimento, exercício mais forte do monopólio e aumento dos preços;a aquisição dos

medicamentos essenciais se tornou cada vez mais custosa, principalmente para aqueles que

mais precisam deles, impactando negativamente na garantia do direito à saúde. Ao passo que

as patentes afetam a promoção da saúde pública, principalmente através do impacto no acesso

a medicamentos, a concessão de direitos exclusivos aos titulares das mesmas permitea

cobrança de preços exacerbadosem relação aos custos marginais de produção, tornando os

medicamentos patenteados mais caros e acessíveis a menos clientes; o que seria diferente se

tivessem produtos similares produzidos em ambiente competitivo.

Um caso específico demonstra claramente a disparidade de preços em um ambiente

competitivo – sem proteção patentearia –e não competitivo, a saber: 150 mg do medicamento

para HIV fluconazola custa 55 dólares na Índia, onde não é protegido por patente, e 697

dólares na Malásia, 703 dólares na Indonésia e 817 dólares nas Filipinas, onde existe a

proteção por patente (NWOBIKE,2006).

A proteção ao direito à propriedade intelectual não pode inviabilizar nem comprometer

o dever dos Estados de garantir o respeito, a proteção e a implementação do direito ao acesso

a medicamentos, pelo fato de ser a propriedade intelectual um produto social que possui uma

função social,

Que não pode ser obstada em virtude de uma concepção privatista deste direito que

eleja a preponderância incondicional dos direitos do autor em detrimento da

implementação dos direitos sociais, como o são, por exemplo, à saúde, à educação e

à alimentação(PIOVESAN, 2007, p.22).

Nesse sentido, se consolidou dentre os países em desenvolvimento uma concepção a

respeito do Sistema de Propriedade Intelectual e o direito à saúde pautada no fato de que o

acesso a medicamentos deve ser o objetivo principal na determinação do regime. Portanto,

tais direitos devem ser monitorados de perto, para assegurar que, de fato, promovam objetivos

de assistência à saúde e, acima de tudo, não sejam uma barreira na formulação de políticas

públicas em prol da efetivação do acesso à saúde. Dessa forma, o Acordo TRIPS e suas

limitadas flexibilidades não deveriam mais se configurar como um mecanismo impeditivo do

direito à saúde;afetando diretamente as populações pobres dos países em desenvolvimento

pelo mero fato de ser um direito constitucionalmente resguardado e, inclusive, parte do rol

dos Direitos Humanos.

Page 32: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

32

De um modo geral, esse debate trouxe um avanço para os que defendem a maior

flexibilização do TRIPS através da Declaração da Rodada Doha (OMC). Em 14 de novembro

de 2001, a Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio, reunidos em Doha,

no Catar, adotou a Declaração sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública (Declaração de Doha),

que ressalta que o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual

Relacionados com o Comércio ―pode e deve ser interpretado e implementado de forma a

apoiar o direito dos membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, promover

o acesso a medicamentos para todos‖.Outro ponto a ser enfatizado é que a Declaração

―reafirma que o Acordo fornece flexibilidade(s) para essa finalidade‖ (ABBOTT, 2005).

Os atores da sociedade civil tinham estado ausentes durante as negociações do TRIPS,

mas eles surgiram como os principais intervenientes no debate da saúde pública e propriedade

intelectual. Na verdade, foram esses que estabeleceram a ligação, em primeiro lugar. A

declaração foi uma vitória para os países em desenvolvimento e os atores da sociedade civil,

na medida em que, sendo aprovada por todos os membros do regime de comércio, ela

reconheceu explicitamente as flexibilidades oferecidas no TRIPS e do direito desses membros

para usá-las para resolver problemas de saúde pública, como exposto anteriormente.

Entretanto, assim como o TRIPS, a Declaração não foi a última palavra sobre o assunto,

permanecendo aberta à interpretação(MUZAKA, 2011; SELL, 2007).

De fato, assim como o TRIPS trouxe consigo as sementes para futuras contestações

dentro do regime de comércio e fora dele, a declaração continuou a ser contestada, desafiada e

negada. A maior forma de negação se dá através da utilização de regras TRIPS-plus, no

âmbito de Acordos Preferenciais de Comércio, seja de forma bilateral ou regional; e na

utilização de outros fóruns que não o multilateral para negociação de novos compromissos

internacionais sobre a matéria.Essa estratégia sugere que os poderes econômicos e políticos se

configuram como fator chave nas negociações comerciais (ABBOTT, 2005).

Nesse contexto, a margem de manobra que os Estados mais pobres/fracos têm na

utilização de abordagens regulatórias que são mais adequadas às suas necessidades

individuais e estágios de desenvolvimento é reduzida. Os EUA e a EU perseguem

agressivamente os esforços empregados pelos países em desenvolvimento na utilização das

flexibilizações do TRIPS por meio da assimetria de poder, através do jogo de governança

aplicado aos acordos bilaterais e regionais.

Assim, a Declaração de Doha não contestou a ligação da propriedade intelectual com o

comércio contida no TRIPS, ao contrário, ela reafirmou o compromisso dos governos, por

Page 33: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

33

meio do Acordo, na proteção do papel da propriedade intelectual em pesquisa e inovação; e

apenas consolidou uma pequena brecha na utilização de conhecimento protegido.

A vitória da rede de atores representantes dos países em desenvolvimento reside

apenas no fato de que a Declaração esclareceu as flexibilidades do TRIPS, oferecendo aos

governos que enfrentam desafios de saúde pública (licença compulsória e importação

paralela), flexibilidades que até então tinham sido ativamente restritas e mal

interpretadas.Dada a expansão dos direitos de propriedade intelectual e distribuição desigual

de poder político e econômico em todo o mundo, os países em desenvolvimento enfrentam

desafios substanciais para guiar o sistema em seu benefício (MUZAKA, 2011; SELL, 2007).

Assim, o cenário internacional frente ao caso da HIV/AIDS, edemais problemas de

saúde pública que atingem, em especial, os países em desenvolvimento, é permeado por

contradições edisputas de interesse econômico em detrimento do interesse público. Desse

modo, a resposta global para essas questões continua ineficaz, o que acarreta em bilhões de

pessoas sem acesso ao básico necessário no que toca a saúde pública.

2.2 A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA E AS DOENÇAS EPIDÊMICAS

Apesar do inquestionável avanço na prevenção e tratamento em muitas regiões do

mundo, doenças como a HIV/AIDS, a tuberculose (TB) e a malária continuam a flagelar os

mais pobres e mais vulneráveis da população mundial. É constatado que a grande maioria das

pessoas que sofre dessas doenças vive em países menos desenvolvidos, onde prevalecem

baixos salários, falta de condições sanitárias e limitado acesso a serviços médicos básicos.

Essas condições, atreladas aos altos preços dos medicamentos praticados no mercado,

produzem uma grande dificuldade no acesso a muitos dos medicamentos que salvam vidas e

que, por sua vez, são normalmente de fácil acesso em países desenvolvidos (PNUD, 2013;

PORTALODM, 2014).

Dados comprovam que cerca de um terço da população mundial não tem acesso a

medicamentos essenciais; e os 80% da população mundial que vive em países em

desenvolvimento e menos desenvolvidos consomem menos de 20% de todos os produtos

farmacêuticos (PNUD, 2013). No Brasil, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE) constataram que 40% dos brasileiros não têm acesso efetivo a

medicamentos essenciais. Segundo Basso e Polido (2005), a respeito do balanço das despesas

familiares, os gastos com saúde aparecem em quarto lugar, perdendo, apenas, para os gastos

com habitação, alimentação e transporte. Nesse cenário, grande parte dos gastos decorre da

Page 34: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

34

compra de medicamentos essenciais que, na sua maioria, apresentam preços elevados e

desproporcionais à renda efetiva da população brasileira.

O problema do acesso a medicamentos essenciais para o mundo em desenvolvimento é

pautado em duas razões primordiais. Em primeiro lugar, a Pesquisa e Desenvolvimento

(P&D) para produção de novos medicamentos têm sido impulsionados principalmente pelas

forças de mercado, em detrimento da necessidade médica. Problemas típicos do mundo

industrializado – como impotência sexual, obesidade, calvície e outros problemas estéticos –

são prioridade nos esforços inovadores dos grandes laboratórios farmacêuticos,

negligenciando doenças que afetam desproporcionalmente os pobres, como a AIDS, a

tuberculose e a malária. De fato, 90% da carga de doenças no mundo pertencem a uma

população para quem apenas 5% das despesascom P&D sãodirigidas. Um recente estudo, em

que foram realizadas entrevistas com dirigente das onze maiores empresas farmacêuticas do

mundo, descobriu que dos 1.393 medicamentos introduzidos nos últimos 25 anos, apenas 13

trataram dessas doenças supracitadas (menos de 1%), que são as principais causas de morte no

mundo em desenvolvimento (MUZAKA, 2011).

Em segundo lugar, os preços elevados das marcas e produtos farmacêuticos

patenteados muitas vezes criam uma barreira ao acesso dos países em desenvolvimento. O

monopólio da patente de novas drogas oferece tempo mais que suficiente para que a empresa

recupere seu custo na P&D do medicamento, custo esse com estimativa bastante controversa.

Além disso, investidores, muitas vezes, procuram recompensar o gasto com a patente através

de uma série de lacunas existentes. Nesse sentido, os acordos comerciais internacionais

tornaram-se uma questão extremamente importante para o acesso a medicamentos essenciais e

serviços de saúde.

Vale ressaltar que a lógica que move as empresas farmacêuticas é a lógica do mercado,

levando à concentração de seus esforços em P&D para setores em que há um mercado

potencial que lhes permita recuperar o investimento e obter lucros. O que não coincide

necessariamente com as necessidades de saúde humana. Isto posto, na indústria farmacêutica,

os investimentos em P&D têm como objetivo primordial ganhos de competitividade face a

produtos estabelecidos no mercado.

O argumento utilizado pelas empresas farmacêuticas para justificar tal postura é, como

coloca a PharmaceuticalResearchandManufacturersofAmerica (PhRMA; Estados Unidos),

que o custo médio para o lançamento de um novo medicamento pode atingir 800 milhões de

dólares americanos, sendo que todo o processo, desde a descoberta da molécula, a realização

de testes pré-clínicos e clínicos à entrada de um medicamento no mercado, pode levar entre

Page 35: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

35

10 e 15 anos; somado ao fato de que o índice de perda entre projetos iniciados e

medicamentos aprovados para comercialização é alto. Substantivamente, os defensores da

PhRMA são contra qualquer enfraquecimento da proteção da propriedade intelectual por meio

de exceções à saúde pública. Eles rejeitam a licença compulsória como instrumento de

política para reduzir os custos de medicamentos essenciais e rejeitam a importação paralela,

através da qual Estados podem tirar proveito de políticas de preços diferenciados e importar a

versão mais barata da marca de produtos farmacêuticos patenteados (SELL, 2007).

Do outro lado do debate, temos a aliança de governos de PEDscom o forte auxílio das

ONGs e sociedade civil organizada, que luta pelo acesso a medicamentos essenciais. Eles

argumentam que a proteção de patentes é uma barreira para o acesso e que as exceções

voltadas a resguardar a saúde pública seriam essenciais para garantir direitos fundamentais e

até mesmo evitar mortes desnecessárias. Eles defendem o licenciamento compulsório, a

concorrência dos genéricos, a importação paralela e as taxas fixas de compensação para as

empresas farmacêuticas.

Dentre os PEDs, Brasil, Índia e África do Sul formam o grupo de países líderes nos

esforços intergovernamentais para enfrentar suas emergências de saúde pública. Tais países,

com o apoio das ONGs, estabeleceram um intercâmbio de informações e, assim, aumentaram

o poder de barganha dos três governos. Inclusive, o trabalho conjunto das ONGs dos referidos

países, que lutam pelos direitos de pessoas portadoras do HIV e doenças negligenciadas,

rendeu uma impactante mobilização que, junto com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),

colocou em pauta a discussão em busca da melhor maneira para cooperar no desenvolver de

medicamentos destinados ao combate dessas doenças.

A importância da relação PEDs e ONGs está exatamente na crescente problemática

entre os DPIs e monopólio farmacêutico; e o acesso a medicamentos, uma vez que surge a

necessidade da criação de soluções em comum entre os PEDs para enfrentar as questões

advindas, também, das disparidades econômicas que permeiam as nações. O lucro demasiado

das companhias farmacêuticas, assim como o foco voltado para doenças mais rentáveis, que

comercializa a saúde pública e assola as comunidades mais carentes; e as rigorosas leis de

propriedade intelectual que se sobrepõem aos interesses públicos, atingem ferreamente países

onde a população ainda sofre com doenças epidêmicas. Desse modo, a atuação desses atores é

cabal para a implementação de políticas que se enquadrem nesse cenário, assim como para

maior esclarecimento quanto às flexibilidades parte do Acordo TRIPS, principalmente no que

tange a quebra de patentes de medicamentos essenciais.

Page 36: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

36

3 OS ATORES DA SOCIEDADE CIVIL E A EVOLUÇÃO

DOASSISTENCIALISMO BRASILEIRO NAS QUESTÕES DE SAÚDE PÚBLICA

Por meio de um amplo movimento pela reforma do sistema de saúde e pela

redemocratização, conhecido como movimento sanitarista, princípios como o acesso

universal, equitativo e integral a serviços de saúde passaram a fazer parte do regulamento

maior da legislação brasileira. Esse movimento foi liderado essencialmente por organizações

da sociedade civil, movimentos sociais e ONGs. Com tais conquistas, esses princípios

passaram a ser resguardados pela Constituição Federal de 1988, no seu Art. 196, a qual

estabeleceu ainda o novo Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado por meio das Leis

8.080/90 e 8.142/90. Ressalta-se que entre os campos de atuação do SUS está a assistência

terapêutica integral, incluindo a farmacêutica, o que implica a obrigação de o Estado fornecer

medicamentos para todos aqueles que deles necessitem.

Cumpre ressaltar que o conceito de sociedade civil utilizado para fins desse artigo se

insere na formulação proposta por Habermas (1997), o qual a considera como uma

composição de movimentos, organizações e associações às quais captam os ecos dos

problemas sociais que, por sua vez, ressoam nas esferas privadas, e os transmitem para a

esfera pública política. ―O núcleo da Sociedade Civil forma uma espécie de associação que

institucionaliza os discursos capazes de solucionar problemas, transformando-os em questões

de interesse geral no quadro de esferas públicas‖ (HABERMAS, 1997, p. 99).

Ao considerarmos tal formulação, é possível depreender a relevância exercida pela

sociedade civil ao pressionar as entidades públicas internacionais e instituições domésticas

responsáveis por formular propostas e metas que, de fato, atendam as demandas e anseios da

sociedade. A participação da sociedade civil no âmbito da saúde publica, especificamente, foi

intensificada pela ascensão das ONGs principalmente na década de 90. Essas são entidades

privadas sem fins lucrativos, que contam comparticipação voluntária e são identificados com

a sociedade civil – distintas do Estado ougoverno, e também do mercado ou empresas

(SCHERER; WARREN, 1994). Diante do processo deredemocratização, as ONGs passaram a

reivindicar diretamente os seus interesses, modificando o seu caráter tão somente acessório,

assumindo um papel mais proativo.

Nesse novo contexto de reabertura democrática, as unidades subnacionais e as antigas

e novas formas de organização da sociedade civil encontram espaço para fortalecer a si e às

instituições democráticas; promovendo a descentralização e criando novos canais de inter-

relação entre os entes federados e os atores sociais.

Page 37: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

37

Voltando-se para a questão do assistencialismo no que concernem as doenças

epidêmicas, no Brasil, dois casos retratam bem essa dinâmica entre a sociedade civil e os

entes federados, inicialmente movidos pelos movimentos sociais e,

posteriormente,fortalecidos pelo engajamento das ONGs, quais sejam: as políticas em torno

da TB e a política pública de acesso universal aos medicamentos antirretrovirais (HIV/AIDS).

Para melhor ilustrar o caráter conceitual da questão, temos que uma política pública é uma

ação gerencial que se desenvolve por meio da interação negociada entre o setor público e a

sociedade civil. Tal negociação é mediada por grupos de interesse, tendo em vista a

impossibilidade de o Estado negociar com cada um dos cidadãos interessados, de forma

individual (TENÓRIO, F. G. & ROZENBERG, 1997).

De acordo com os dados fornecidos pelo Relatório das atividades de Pesquisa do

Instituto do Milênio Rede TB (2005), o surgimento de iniciativas compostas por organizações

comunitárias concernentes à TB é bastante recente. Até 2003, a presença da sociedade civil na

luta contra a TB era pautada, basicamente, pelas iniciativas de pesquisadores, profissionais de

saúde e estudantes de medicina, respectivamente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e

Tisiologia, da Rede TB, e da Liga Científica contra a Tuberculose. Nesse caso, tais entidades

são compostas por pessoas comprometidas com o controle da TB, todavia, carecem de um

escopo comunitário, principalmente das pessoas afetadas e vivendo com a doença.

Nesse diapasão, três aspectos contribuíram para que diferentes níveis de governo

tomassem a decisão de fomentar a inclusão da sociedade civil nos esforços para o controle da

TB, em particular de caráter comunitário. O primeiro aspecto é a legitimidade e o amparo

legal dessa participação. O segundo aspecto que coadunou com tal postura foi o acordo

firmado por vários países, incluindo o Brasil, na Declaração de Amsterdã para Combater a

Tuberculose, em 2000. Nesse acordo, os governos se comprometeram a ―monitorar e avaliar

seus programas nacionais de TB de acordo com os padrões estabelecidos pela Organização

Mundial de Saúde (OMS) e a apoiar as parcerias com as ONGs e a comunidade‖ (The

Amsterdam DeclarationtoStop TBO, 2000). Por fim, o terceiro e mais significativo aspecto

para essa iniciativa foi a conscientização dos gestores estaduais de que a ausência de

monitoramento das políticas públicas em TB, advindas da sociedade civil,resultavam na

morosidade, falta de transparência e ineficiência das ações e políticas governamentais

(SANTOS, 2006).

Considerando as características da população afetada pela TB atualmente, em grande

parte, de baixa renda; que enfrentam estigma pela doença e acesso restrito à assistência em

saúde, não se pode esperar reações espontâneas e politicamente articuladas como as vistas no

Page 38: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

38

caso daAIDS, desde o início. A epidemia de HIV/AIDS acometeu em grande número pessoas

de classe média; com bom nível educacional e habilitada a articular com diversos setores da

sociedade. Assim, o avanço das políticas voltadas para o controle da TB é mais restrito,

devido à limitada pressão por parte da sociedade civil, divergindo do que ocorreu na luta

contra a AIDS (SANTOS, 2006).

Fazendo um sucinto apanhado sobre o processo que resultou na política pública de

acesso universal aos medicamentos antirretrovirais (HIV/AIDS); que fornece terapias contra a

AIDS gratuitamente para todos os pacientes para os quais tais terapias foram receitadas,

destaca-se, de início, o surgimento dos movimentos homossexuais, pioneiros na reivindicação

de respostas governamentais voltadas ao enfretamento da epidemia. Os movimentos

homossexuais atuavam de forma a aumentar a visibilidade do problema, utilizando-se de

ferramentas como a publicação de manuais explicativos sobre as peculiaridades da doença.

Outras formas de organização se pautaram no assistencialismo às vítimas, através do

fornecimento de moradias às pessoas que sofriam violência e preconceito decorrentes do fato

de serem portadoras do vírus.

Fortificando a luta contra o preconceito e enfrentamento da AIDS, diante do cenário

mais democrático que resultou na abertura de espaços de participação da sociedade, tivemos a

ascensão das ONGs. Dentre elas, destacam-se quatro que apresentaram importante inserção

política na luta nacional contra a AIDS: o Grupo de apoio à Prevenção da AIDS (GAPA);

Associação BrasileiraInterdisciplinar de AIDS (ABIA); o Grupo Pela Valorização, Integração

e Dignidade do Doente de AIDS (Pela Vidda) e o Apoio Religioso Contra AIDS/Instituto de

Estudos da Religião (ARCA/ISER).

Até a década de 90, principalmente pelo fato da política brasileira ser pautada pela

conjuntura neoliberal, a experiência brasileira na questão da AIDS se limitava à lógica

defendida e financiada pelo Banco Mundial, unicamente baseada nos aspectos preventivos,

voltados à população carente. Ao invés de fornecer o tratamento antirretroviral, era

recomendado que os países em desenvolvimento concentrassem seus recursos escassos em

estratégias de prevenção que, para essa instituição, era supostamente mais custo-efetivas.

Entretanto, mesmo contrariando tais premissas do Banco Mundial, o PN DST/AIDS

(Programa Nacional de DST/AIDS), articulado com os demais atores interessados pela causa,

pressionaram para, em 1996, conquistarem a distribuição gratuita e universal da medicação

necessária ao tratamento da doença, através da política pública de acesso universal a

antirretrovirais. Desse modo, o Brasil provou que o tratamento antirretroviral seria não apenas

viável, mas também altamente bem sucedido, mesmo em países em desenvolvimento.

Page 39: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

39

O Brasil foi o primeiro país a fornecer terapias contra a AIDS gratuitamente para todos

os pacientes para os quais tais terapias foram receitadas. Em 2010, cerca de 200 mil pacientes

se beneficiaram delas no país. No entanto, o tratamento da AIDS no Brasil tem sido desafiado

pelos altos custos dos medicamentos antirretrovirais patenteados e pela falta de capacitação

tecnológica na produção desses medicamentos, em especial dos seus princípios

ativos(MELLO e SOUZA, 2007).

3.1 LICENÇA COMPULSÓRIA E O CASO HIV/AIDS

Segundo dados do Ministério da Saúde - MS, entre 1996 e 2002, com a introdução da

política deacesso universal do tratamento antirretroviral combinando drogas de diferentes

formas deação, houve redução de 50% na mortalidade, 70% na morbidade, redução das

internações em80%, bem como aumento de cinco anos na sobrevida dos pacientes que vivem

com AIDS (BRASIL, 2005a). Assim, mais de 60.000 novos casos de AIDS; 90.000 mortes e

633.200 admissões hospitalares relacionadas com a doença foram evitados, o que resultou em

economia para o governo de mais de US$ 1,8 bilhão entre 1997 e 2003. Ao somarmos a esse

montante o adicional de US$ 1,2 bilhão proveniente da economia com atendimento

ambulatorial e procedimentos terapêuticos evitados; incluindo medicamentos para infecções

oportunistas, o total aumenta para mais de US$ 2 bilhões (TEIXEIRA; VITORIA;

BARCAROLO,2004).

Desse modo, o caso brasileiro comprova que o tratamento antirretroviral é viável em

locais com poucos recursos, abrindo o caminho para um novo consenso de políticas de saúde.

Assim sendo, a estratégia de prevenção impulsionada pelo Branco Mundial; e o tratamento da

AIDS, que tem o Brasil como pioneiro no acesso universal aos antirretrovirais, podem ser

ambas implementadas e se reforçam mutuamente.

Um dos fatores que ajudam a explicar o sucesso do programa brasileiro é a capacidade

que o país possui na produção de medicamentos, seja através de empresas e laboratórios

governamentais, mas também por empresas privadas do setor de fármacos genéricos. Vale

destacar que a maior parte dos medicamentos que compõem o coquetel é formada por drogas

patenteadas, de alta efetividade, produzidas por laboratórios transnacionais e com preços

extremamente altos5. Desta feita, em termos de custo, as drogas patenteadas representam o

5O orçamento total do Ministério da Saúde p ara a compra de medicamentos antirretrovirais em 2007 foi de R$

984.000.000,00. Estima-se que mais de 80% desse valor é utilizado para a aquisição de 11 medicamentos

patenteados e 20% para a compra de 7 medicamentos fabricados por laboratórios nacionais (BRASIL, 2009).

Page 40: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

40

maior peso orçamentário do coquetel. Para que haja atendimento à lei de distribuição gratuita

dos antirretrovirais, uma das estratégias do governo foi investir nos laboratórios e recursos

humanos nacionais, almejando a produção de versões genéricas de medicamentos cujas

patentes já expiraram.

Entretanto, com a necessidade de introdução crescente de antirretrovirais patenteados

no programa; somado ao fato de a Índia ter deixado de ser fonte de genéricos de

medicamentosnovos ou de segunda escolha, em 20056 - momento em que o país passou a

reconhecer patentes farmacêuticas, o que impactou fortemente na produção de genéricos - a

política de acesso universal e gratuito dos antirretrovirais poderia estar fortemente

comprometida. Desse modo, tivemos o fim da possibilidade de importar insumos baratos da

Índia para a produção de genéricos e, por conseguinte, tanto o Brasil quanto os demais países

em desenvolvimento ficaram altamente dependentesdas empresas farmacêuticas; assim como

da licença compulsória, como medida de exceção.

A licença compulsória é um mecanismo de defesa contra possíveis abusos cometidos

pelo detentor de uma patente. Consiste na autorização concedida pelo Estado para o uso da

invenção patenteada sem o consentimento do detentor da patente (CHAVES, 2006). O Brasil

utilizou da ameaça de decretar o licenciamento compulsório algumas vezes e, na última,

efetivou o decreto. Em 2001, o processo de licenciamento foi interrompido pelo governo

brasileiro, pois o laboratório Roche aceitou reduzir o preço do nelfinavir em 40%, desde que o

governo brasileiro não emitisse uma licença compulsória. No ano de 2005, na segunda

negociação para a redução de preço do lopinavir/r, o governo brasileiro aceitou o preço fixo

de US$ 1.380,00 por paciente/ano até 2011, se comprometendo em não emitir uma licença

compulsória para esse medicamento7(CHAVES; VIEIRA; REIS, 2008).

Nesse contexto,tivemos a pressão de grupos da sociedadecivil, sobretudo os grupos

ligados à saúde e aos direitos humanos, ao passo que esses entraram na Justiça Federalpara

obrigar o Poder Executivo a licenciar compulsoriamente o medicamento Kaletra®(CORIAT;

ORSI; ALMEIDA, 2006).

Entretanto, o Estado só se posicionou diante da intransigência do laboratório Merck,

nas várias negociações iniciadas pelo governo brasileiro na tentativa de redução do preço do

medicamentoefavirenz. No dia 25 de abril de 2007, foi publicada a Portaria 886 de

6 A Tailândia mudou a sua legislação em 1994-1995, o Brasil no início de 1996, mas a lei só entrou em vigor em

1997; e a Índia somente no final de 2005, o que lhe garantiu exercer um papel importante como fornecedor de

medicamentos genéricos a custos baixos. 7 Em 2005, quatro medicamentos importados nelfinavir, efavirenz, lopinavir/r e tenofovir foram responsáveis por

mais de 50% do orçamento do PN DST Aids.

Page 41: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

41

24/04/2007 (BRASIL, 2007) que declarou o efavirenz de interesse público para fins de

concessão de licença compulsória. A Merck foi notificada em 24 deabril de 2007 e teve um

prazo de sete dias paraque apresentasse uma proposta que atendesse tal interesse.Em 27 de

abril, a Merck Sharp &Dohme (MSD) ofereceu desconto de 30% sobre o preço de US$

1,5920/comprimido, mas a proposta mostrou-se insatisfatória, já que o Brasil pleiteava o

mesmo preço cobrado pela Merck na Tailândia, de US$ 0,65 (BRASIL, 2008). Em maio

de2007, o governo decretou a licença compulsória do antirretroviral efavirenz, começando a

produção nacional em 20098.

A versão genérica chegou ao Brasil em julho de 2007, entregue pelos laboratórios

indianos via organismos internacionais a um custo de US$[0,4270 - 0,4430] para o

comprimido de efavirenz 600 mg, um terço do preço cobrado pela MSD (BRASIL, 2008;

BRASIL, 2009).

A produção nacional do efavirenz se deu através da Farmanguinhos (Fiocruz)/MS e

Lafepe. O consórcio formado pelas empresas privadas Cristália (SP), Nortec (RJ) e

Globequímica (SP) ficou responsável pelo fornecimento da matéria-prima ou insumo

farmacêutico ativo (IFA) para os laboratórios públicos. O primeiro lote do medicamento

nacional foi produzido em fevereiro de 2009. Pelo contrato firmado com a Fiocruz, o

Ministério da Saúde pagará R$ 1,35 (US$ 0,675) por comprimido de 600 mg produzido

localmente (BRASIL, 2009). Dados comprovam que a produção local impactou

positivamente nos custos com o programa.

Segundo os especialistas que tratam da questão, a licença compulsória é inevitável

para a sustentabilidade do Programa DST/AIDS, devendo o Brasil defender a autonomia

nacional e a ampliação do acesso à prevenção e ao tratamento no país. Vale destacar que um

importante componente impulsionador para a utilização desse mecanismo no Brasil foi a

mobilização da sociedade civil, inclusive através de denuncias na esfera judicial e abaixo-

assinados, visando superar ameaças à sustentabilidade do acesso universal pelo fato dos altos

custos dos medicamentos. Prepondera o entendimento que a decisão do governo brasileiro em

proceder com a licença compulsória do efavirenz, bem como de outros medicamentos

antirretrovirais, tem perfeita base legal e não contraria o direito à propriedade intelectual.

Todavia, não obstante o amparo normativo e respectivo pagamento de royalties ao laboratório

detentor da patente, o Brasil não está livre de enfrentar novas polêmicas. As discussões e

embates levantados no âmbito da OMC, principalmente pelos EUA, na defesa dos seus

8 Nos anos de 2005 e 2006, os gastos somente com a compra de efavirenz 600mg representaram cerca de 11%

dos gastos totais do ministério com medicamentos antirretrovirais (BRASIL, 2009).

Page 42: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

42

interesses econômicos, podem levar o Brasil a sofrer retaliações da indústria farmacêutica, em

especial do laboratório Merck. Desse modo, as novas demandas exigem repensar a

participação da sociedade civil organizada e a redefinição das suas lutas frente ao complexo

contexto que regula a propriedade intelectual atualmente.

4 A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL SOB A ÓTICA DA ANÁLISE DE

POLÍTICA EXTERNA

4.1 O PROCESSO BOTTOM UP

Os movimentos retratados nos tópicos antecedentes, principalmente os referentes ao

acesso universal a medicamentos antirretrovirais, tiveram repercussão nacional e internacional

graças à pressão social e conquistas no âmbito da saúde pública. Desse modo, podemos

inferir, de logo, que questões primordialmente à margem das prioridades do Estado podem

configurar-se como mandatórias, desde que tenham como força propulsora uma relevante

legitimidade e credibilidade por parte da sociedade civil.Assim, o alcance e sucesso que o

programa de acesso a antirretrovirais obteve, em especial no cenário internacional, retrata o

quão eficiente é uma política pública munida da credibilidade e legitimidade interna; o que,

nesse caminho, pode ter cominado na projeção restringida da política referente à TB que,

como tratado anteriormente, não compartilhava do mesmo engajamento por parte da

sociedade civil, primordialmente por carência de articulação política dos diretamente

afetados.

A teoria democrática apresenta dois modelos que avaliam o impacto dos atores sociais

nos processos políticos: o modelo bottomup, originário da tradição pluralista; e o modelo top

down. O caso em análise, sobre o processo de participação da sociedade civil na formulação e

implementação das políticas públicas de saúde pública, que o conferiu maior legitimidade e

credibilidade no trato de doenças marginalizadas, se enquadra como um caso típico de

processo bottomup.

Desse modo, temos a hipótese de que a sociedade brasileira e o Estado, na questão da

politica externa; desde o seu processo de redemocratização e descentralização política,

passaram por um momento de transição de uma relação inteiramente top down para uma

bottomup. Segundo Cooper (2005), a dinâmica bottomup se caracteriza por ser uma

abordagem diplomática ―voluntária, com atores mistos‖; divergindo da primeira que, por sua

vez, é pautada no modelo centrado no Estado, de forma estratégica ―coercitiva e oportunista‖.

Page 43: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

43

Tendo em conta os obstáculos impostos pelas novas regras patentearias e a

necessidade da manutenção de políticas públicas como a de acesso universal a tratamentos

antirretrovirais, o engajamento da sociedade civil se dividiu, de forma estratégica, em três

etapas: o arrebatamento do apoio interno; a parceria com as ONGs (nacionais e

internacionais) e, por fim, o desenvolvimento do processo de negociação entre os governos

através do soft power diplomático. Desse modo, é viável o enquadramento da participação da

sociedade civil no processo acima disposto, ao passo que sua projeção se deu, inicialmente,

nos grupos de interesses envolvidos na causa, e, no seu ápice, na pauta das demandas

governamentais no âmbito interno e internacional.

Para melhor visualização dessas etapas, vale apresentar algumas características

peculiares de cada momento, no intuito de deixar claro como eles se interligam e, mais que

isso, coadunam para a inserção do tema na agenda central da política externa do governo. No

que tange o arrebatamento do apoio interno, a luta contra o HIV/AIDS teve início com a

mobilização dos movimentos homossexuais e, em sequencia, de todos os atingidos

diretamente pela epidemia que, através de programas de conscientização da população a

respeito do preconceito e assistencialismo às vítimas foram, aos poucos, chamando a atenção

da sociedade em geral para o caso; ganhando a amplitude necessária para liderar as pautas das

discussões sobre políticas públicas.Desse modo, a luta contra o preconceito e enfrentamento

da AIDS resultou na abertura de espaços de participação da sociedade, o que proporcionou a

ascensão das ONGs.

Em seguida, já partindo para a segunda etapa do processo, tais grupos da sociedade

civil, juntamente com as primeiras ONGs que surgiram, uniram esforços no enfrentamento do

tema. Como consequência, diante da crescente discussão sobre propriedade intelectual no

âmbito internacional e o impacto causado pelos acordos internacionais no âmbito nacional,

surgiu, em 2001, o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela

Integração dos Povos (GTPI/REBRIP). A Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS –

ABIA - coordena o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) da Rede

Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP)9. O GTPI reúne entidades da sociedade civil

que buscam discutir temas e propor ações sobre recursos genéticos e, sobretudo, buscam

alternativas para minimizar o impacto das patentes farmacêuticas no acesso aos medicamentos

essenciais.

9Para mais informações ver <www.rebrip.org.br>.

Page 44: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

44

A REBRIP, por sua vez, reúne organizações da sociedade civil brasileira para

acompanhar e monitorar os acordos comerciais nos quais o governo brasileiro está envolvido,

com o propósito de discutir e delimitar o seu impacto direto na sociedade (ABIA, 2009). Um

dos temas em destaque é a questão das patentes e acesso a medicamentos, o que justifica a

REBRIP criar um grupo de trabalho para encaminhar as reivindicações da sociedade civil

sobre essa questão (GTPI). De acordo com as informações dispostas no site da ABIA (2009),

o GTPI atua com o objetivo de minimizar o evidente impacto negativo do sistema de patentes

no Brasil em algumas frentes, principalmente: 1) Identificação de alternativas que permitam

ampliar o acesso a medicamentos; 2) Fortalecimento da cooperação Sul-Sul para a troca de

experiências no tema e possível ação conjunta entre organizações da sociedade civil; 3)

Formação e mobilização da opinião pública quanto ao impacto social dos acordos comerciais

de propriedade intelectual; 4) Acompanhamento de fóruns internacionais que discutam o tema

da propriedade intelectual e acesso a medicamentos.

Ademais, o GTPI promove ações positivas com relação à manutenção do acesso

universal ao tratamento antirretroviral, através da redação de cartilhas que explanam a

legislação internacional e nacional; e também de fatos importantes, como a emissão da licença

compulsória no Brasil10

. Outro ponto que demostra a importante participação do grupo é a

organização de oficinas e exercícios temáticos que visam conscientizar a população em geral

de como a propriedade intelectual afeta suas vidas e os seus trabalhos.A atuação desse grupo

foi de extrema importância para a efetivação do programa universal de antirretrovirais e a

magnitude da sua projeção internacional.

Em um terceiro momento, a conjuntura entre esses grupos e as ONGs internacionais

proporcionou uma repercussão internacional da demanda, o que resultou em uma aliança entre

governos munidos dos mesmos interesses em prol da flexibilização do Acordo TRIPS e

sobreposição do interesse público em detrimento dos fatores econômicos que permeiam o

Regime Internacional de Propriedade Intelectual. A atuação desses grupos junto às ONGs é

pautadano fortalecimento da sociedade civil e do aprofundamento de suas redes para que

possa ser aprimorada a troca de experiências, o apoio aos problemas nacionais, e a busca por

alternativas conjuntas contra os impactos negativos causados pelas patentes no acesso à saúde.

Dessa maneira, o Brasil, como outros países em desenvolvimento, passou a utilizar a

via da Diplomacia da Saúde Global nas suas ações internacionais, tendo as questões de saúde

pública como um mecanismo de soft powerna seara internacional. Desse modo, podemos

10

ABIA, Patentes farmacêuticas: por que dificultam o acesso a medicamentos?, 2006. Disponível em:

<http://www.abiaids.org.br/_img/media/cartilha_patentes.pdf>. Acessado em: 17/02/14.

Page 45: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

45

destacar dois aspectos inter-relacionados, como ressalta Lopes (2013; p.8): ―a participação de

atores não estatais em fóruns e instituições internacionais e uma relação mais dinâmica entre

política internacional e doméstica, conhecida como interméstica”. A mesma autoria ainda

ressalta que teorias como a dos jogos de dois níveis, de Putnam(1988),permitiramvisualizar o

impacto do âmbito doméstico na política externa do Estado, além de mostrar os jogos de

coalizão, alinhamentos e alianças.

4.2 A UTILIZAÇÃO DO SOFT POWER NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRAS

ATRAVÉS DA DIPLOMACIA DA SAÚDE GLOBAL E O PAPEL DA SOCIEDADE

CIVIL NO SUPORTE DESSA POLÍTICA

Nas relações internacionais, os estudos sobre opinião pública e política externa

remetem à correlação entre questões domésticas e internacionais, tratando do impacto dos

atores domésticos na formulação da política externa. De acordo com o pressuposto liberal, as

instituições; ideias e interesses influenciam a postura do Estado. Assim, as demandas sociais

passam a figurar no sistema político, e, por conseguinte, influenciam nas ações de política

externa. Nesse viés, a política externa não se restringe aos estímulos internacionais, sendo,

também, reflexo das demandas domésticas advindas de forças sociais que direcionam o

comportamento do Estado (ROSENAU, 1967).

Como descrito nos tópicos anteriores, são perceptíveis as mudanças da participação da

sociedade civil na produção da política externa brasileira, principalmente no que toca a

questão de políticas públicas na área da saúde. O engajamento da sociedade civil no combate

à HIV/AIDS, em especial, elevou a questão da saúde para o centro da política externa

brasileira. Vale ressaltar que essa ascensão da participação da sociedade civil, primeiramente

no âmbito interno e, posteriormente, na formulação da política externa brasileira; junto à

fática participação do governo na cooperação Sul-Sul,legitimou e deu o suporte necessário

para que o governo tivesse força pra manter uma política controversa, ao passo que essa era

contra interesses privados muito fortes.

Outra questão que pode ter coadunado para obtenção desse resultado foi a reação do

Itamaraty às pressões e demandas que partiram principalmente da sociedade civil, visando a

superação do seu tradicional insulamento, como apontam Faria e Mesquita (2012). Ambos

ressaltam que a partir do governo FHC, que proporcionou uma maior abertura para entidades

da sociedade civil, tivemos o aceleramento da aproximação do Itamaraty com a sociedade

civil organizada, o que acabou por trazer credibilidade para a diplomacia brasileira, em

Page 46: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

46

especial no relacionamento com a ONU. Nesse cenário, configurou-se o que foi classificado

como diplomacia pública que, segundo Lima (2009) tinha o ponto central na inclusão dos

diversos atores da sociedade civil no processo de formulação da política externa nacional.

Ponto crucial no tocante ao maior alcance das questões de saúde na política externa diz

respeito à correlação entre saúde e desenvolvimento. Até recentemente, as melhorias em

saúde eram vistas como algo positivo apenas para o crescimento econômico. Entretanto, à

medida que esse tema passou a vigorar como parte das prioridades em questões de política

externa, evidências mostram que melhorias na saúde (e outros determinantes sociais da saúde,

tais como educação, saneamento e capacitação de gênero)estão associados com o

desenvolvimento, posto que o custo com a saúde é mais um investimento do que puramente

um gasto, sendo um bem público intrínseco.

Focando diretamente na política externa no âmbito da saúde pública, entre as

economias emergentes, o Brasil tem sido particularmente hábil em utilizar o que é descrito

como soft power11

, principalmente através do alcance internacional que a política a favor do

acesso aos medicamentos antirretrovirais proporcionou; como, também, na busca pela

execução dos Objetivos do Milênio ODM12

. É perceptível que o Brasil tem desempenhado um

papel central nos debates concernentes à política pública do HIV/AIDS, posto que seu

programa nacional de HIV/AIDS, amplamente reconhecido pela ONU como o melhor de seu

tipo no mundo em desenvolvimento, funciona como modelo para os demais países em

desenvolvimento, assim como para a política global de HIV/AIDS adotada pela Organização

Mundial de Saúde (OMS) desde 2003.

Assim, o Brasil vem fazendo uma combinação eficaz de poder econômico e

perspicácia diplomática em questões de saúde pública, servindo de modelo para outros países

em busca de desempenhar um papel de liderança mais proeminente na ordem mundial

emergente. É o que vem sendo caracterizado como soft powerdiplomático, ou seja, a

utilização de recursos que não militares ou políticos clássicos nas relações internacionais

(NYE, 2008).O principal viés utilizado pelo governo brasileiro de soft power diplomático é a

11

Apresentado por NYE (2008), o conceito de soft power contrasta com o hard power pelo qual a coerção

(sustentada por poderio militar e econômico) é usada para influenciar os outros a agir de maneiras pelas quais

eles não fariam normalmente. Desse modo, o soft power é definido pelo autor como a capacidade de persuadir ou

atrair os outros a fazerem o que se quer através da força de ideias, conhecimentos e valores. 12

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio - ODM (UN, 2000) constituem um pacto global entre as nações do

mundo para diminuir a pobreza e as barreiras relacionadas com a saúde para o desenvolvimento, com metas e

objetivos definidos. Enquanto todas as ODM têm influência importante sobre a saúde, vários são consideradas

como específicas da saúde. O Brasil se engajou consideravelmente com os ODM, atingindo, antes mesmo no

prazo preestabelecido, as metas almejadas, inclusive nas questões de saúde e combate à AIDS. Entretanto, é

primordial que se estabeleça um laço mais sólido de diálogo com a sociedade civil nacional e internacional, de

forma que a relevância da participação social no cumprimento de tais metas se consolide (LOPES, 2013).

Page 47: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

47

diplomacia da saúde global, que parte da premissa de que a saúde da população precisa ser o

centro das atenções da diplomacia.

Como exposto anteriormente, um dos melhores exemplos da estreita cooperação entre

o Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Saúde no Brasil é política global

contra a HIV/AIDS, em particular, o acesso aos antirretrovirais, ilustrando que a boa

governação da saúde global começa no nível nacional. Alguns defensores da saúde global

como Kickbusch I, Silberschmidt G, Buss P (2007) têm argumentado que as implicações

políticas, sociais e econômicas dos problemas de saúde estão acima da hierarquia de

interesses da política externa tradicional, por conseguinte, questões como âmbito doméstico e

internacionalelowand high politics, não se aplicam mais, ao passo que melhorar a saúde

global se tornou objetivo mais importante da política externa, por si só; sendo a diplomacia de

saúde uma forma de gerenciar o ambiente de política global para a saúde.

A conjuntura de atores na luta contra a HIV/AIDS é bastante heterogênea, com

diferentes atores, não só no que diz respeito ao seu caráter (público, privado), a sua estrutura

institucional (formalizada, informal) ou o seu nível de atividade (global, nacional, local); mas

também no que diz respeito aos seus interesses, a sua lógica de ação e seus recursos de poder.

Segundo Kickbusch I, Silberschmidt G, Buss P (2007) a diplomacia da saúde global tem

como objetivo capturar esses processos multi- nível e multi- ator de negociação e gerenciar o

ambiente de política global para a saúde.

O Relatório dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ODM (2013)13

,

mencionado anteriormente, retrata esse processo multi - nível e multi - ator de forma clara, ao

mostrar que as ações conjuntas dos governos nacionais, da comunidade internacional, da

sociedade civil e do setor privado estão tornando realidade o cumprimento dos ODM. Um

relatório da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) (2013)14

indica que os países da

América Latina e do Caribe devem reforçar o sistema de saúde para avançar no acesso

universal ao tratamento antirretroviral (TAR) contra o HIV/AIDS. De acordo com o texto

intitulado ―Tratamento antirretroviral sobre a Lupa: uma Análise da Saúde Pública‖, que

estuda as vulnerabilidades existentes, a América Latina e o Caribe têm os índices mais altos

de cobertura de tratamentos antirretrovirais, mas o desabastecimento de medicamentos pode

impedir a sustentabilidade do programa.

13

Relatório disponível em: http://www.unric.org/html/portuguese/mdg/MDG-PT-2013.pdf Acesso em

22/02/2014. 14

Relatório disponível em:

http://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=23710&Itemid= Acesso em

22/02/2014.

Page 48: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

48

Como exposto no decorrer do artigo, a sociedade civil tem desempenhado um papel

fundamental na luta pela sustentabilidade do programa de acesso universal aos

antirretrovirais. De acordo com o relatório da OPAS supracitado, na reunião de Tratamento

2.0 na América Latina, realizada em Buenos Aires, em 2012, a sociedade civil definiu a sua

função em três áreas fundamentais: (a) o protesto social, (b) a supervisão e (c)

aconselhamento voluntário, especialmente no que diz respeito à adesão do tratamento e o

alcance das comunidades mais expostas. Determinou-se que essas funções devem ser

colocadas dentro de um quadro de cooperação que inclui a coordenação e sustentabilidade

financeira.

Outro ponto importante destacado no relatório é que vários países já estabeleceram

normas que incluem a participação da comunidade na prestação de cuidados de saúde e

serviços de tratamento. No entanto, merece destaque o fato de que quando existem esses

serviços, a cobertura é limitada, ao passo que o financiamento vem principalmente de fundos

externos (principalmente o Fundo Global para a AIDS, tuberculose e malária). Entretanto, a

saída de recursos internacionais e o enfraquecimento da relação entre o governo e a sociedade

civil têm colocado a eficácia e a sustentabilidade desse trabalho em risco. Como exposto

nesse artigo, o programa de AIDS brasileiro se consolidou da conexão forte com as ONGs.

Desse modo, as mesmas não podem ficar sem recursos e motivação.

Apesar do evidente interesse e capacidade das ONGs e dos movimentos da sociedade

civildo Brasil para assegurar a manutenção das políticas públicas de saúde, o diálogo com o

governo ainda parece insuficiente. É primordial destacar que o engajamento das organizações

e dos movimentos dasociedade civil do Brasil com temas de políticainternacional, dentre eles

a questão das patentes e saúde pública - e seus impactos sobre a realidade nacional – é um

tanto peculiar, por ser um campo carente de regulamentação e apoio nopaís. Ademais, o

marco regulatório das Organizações daSociedade Civil, parte das demandas da sociedadecivil

organizada, aindanão se consolidou, o que dificulta o acesso arecursos e a prestação de contas

transparente (LOPES, 2013).

Ponto crucial na sustentabilidade e sucesso do programa e que torna clara a

participação da sociedade civil são as denúncias a respeito da falta de médicos, leitos e

exames para os pacientes; de medicamentos para tratar doenças causadas pelos

antirretrovirais; bem como episódios de desabastecimento do coquetel em postos de saúde,

obrigando os pacientes a interromper o tratamento. Ao passo que o tratamento com

antirretrovirais acabam acarretando no surgimento de outras doenças, a defasagem da saúde

pública do Brasil compromete diretamente os resultados. De acordo com O Ministério da

Page 49: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

49

Saúde, 250 mil brasileiros são portadores do vírus sem que saibam, o que torna relevante a

ampliação dos diagnósticos e monitoramento da eficácia do programa. O fato de o programa

ter sido descentralizado em 2003, dependendo dos estados e municípios para a devida

execução, acaba dificultando ainda mais sua consecução, inclusive na questão do repasse do

investimento direcionado pela união às ONGs.

É de extrema relevância destacar que outro desafio para prosseguimento do programa

é o custo dos novos medicamentos adotados pelo consenso terapêutico, assim como as

crescentes barreiras patentearias para o acesso dos mesmos. Nesse sentido, tivemos um

grande avanço, de acordo com o Portal Fiocruz (2014)15

. Segundo o Portal, o Instituto de

Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz) será o responsável pela produção do

medicamento Sulfato de Atazanavir, nas concentrações 150 mg, 200 mg e 300mg. Assim, o

Brasil terá a garantia do abastecimento para o Sistema Único de Saúde (SUS). A produção

nacional do antirretroviral partiu da Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP) firmada

entre o Ministério da Saúde – por meio de Farmanguinhos – e o laboratório internacional

Bristol-Myers Squibb. A produção será realizada em território nacional, e terá início em 2015.

A parceria prevê ainda a transferência da tecnologia do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) a

uma indústria farmoquímica privada nacional, garantindo toda a cadeia produtiva do

medicamento em território brasileiro.

Segundo o site do Farmaguinhos (2014)16

, O Ministério da Saúde disponibiliza

gratuitamente 20 antirretrovirais, que representam investimentos de R$ 850 milhões por ano

na aquisição dos medicamentos. Desses 20, oito são objeto de PDP. Além do Atazanavir, o

país terá Tenofovir, Raltegravir, Ritonavir Termoestável, Lopinavir + Ritonavir, Ritonavir

Cápsula Gel. Mole, Tenofovir + Lamivudina (2 em 1) e Tenofovir + Lamivudina + Efavirenz

(3 em 1), anunciados em 2012, o que comprova o relevante avanço no desenvolvimento da

indústria farmacêutica nacional.

Tendo em vista que o Brasil está cada vez mais presente na esfera internacional e na

cooperação Sul-Sul em saúde, por desenvolver um modelo de cooperação participativo,

democrático, inclusivo e amplo; capaz de abrigar não apenas a dimensão da saúde, mas

também seus determinantes sociais e políticas intersetoriais(MRE, 2008; ALMEIDA, 2009)o

desenvolvimento da indústria farmacêutica nacional irá refletir de forma positiva nos países

15

Saiba mais em: https://portal.fiocruz.br/pt-br/content/instituto-de-tencologia-em-farmacos-produzira-sulfato-

de-atazanavir Acessado em 23/02/2014. 16

Saiba mais em:

http://www2.far.fiocruz.br/farmanguinhos/index.php?option=com_content&view=article&id=742&catid=53&Ite

mid=94 Acessado em 23/02/2014.

Page 50: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

50

parceiros. Já é fato que o país se configurou como um dos maiores doadores através do

envolvimento em diplomacia da saúde global. A ajuda bilateral tem sido menos focada em

assistência financeira, sendo pautada na transferência de ideias, técnicas e conhecimento

científico. Nesse sentido, o Programa Nacional de AIDS, especificamente o Centro de

Cooperação Técnica em HIV/AIDS (CICT), enviou equipes de médicos e especialistas de

laboratório farmacêutico para treinar funcionários em Moçambique, Nigéria e Angola.

Ademais, o CICT convidou as autoridades de saúde da África para receberem o conhecimento

técnico e treinamento na construção e manutenção da capacidade de produção doméstica

(CEPIK; SOUSA, 2011) No geral, essa exportação de políticas de saúde pública,

especialização técnica e capacitação aumentaram ainda mais a capacidade do país para

alavancar influência por meio do soft powerdiplomático.

Entretanto, devido à assimetria entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento a

respeito da capacidade tecnológica e domínio de conhecimento necessário para competir na

esfera das patentes farmacêuticas; o que implica diretamente na aptidão da população ter

acesso a medicamentos essenciais, a cooperação entre países do sul, seja no âmbito da

sociedade civil organizada, seja no campo governamental, é fator essencial para a projeção do

trabalho da sociedade civil brasileira. Por meio dessa cooperação, foram alcançadas inúmeras

parcerias que, por sua vez, ampliaram a colaboração e troca de informações e tecnologias; e,

de forma a ser destacada, legitimou a participação efetiva da sociedade civil nacional e

internacional na concretude dos acordos entre os governos dos seus países.

5 CONCLUSÃO

Foi o suporte doméstico, resultado da sinergia entre governo e sociedade civil; e o soft

power diplomático do Brasil, junto aos demais países em desenvolvimento, que assegurou que

a pressão para maior flexibilização do acordo TRIPS viesse como resultado das negociações

que levaram à Declaração de Doha e Saúde Pública. O que emergiu foi uma coesão de

governos com interesses comuns; ONGs e organizações da sociedade civil chaves, através das

quais houve uma atuação efetiva na arena doméstica e internacional, na busca pela garantia do

acesso a medicamentos e proteção do direito fundamental a saúde.

Mesmo diante desse avanço, a problemática que envolve a sustentabilidade de

políticas públicas na área da saúde tem, como cerne, o contexto em que se inserem os Direitos

de Propriedade Intelectual, seja pelo maior escopo atingido através dos diversos fóruns que,

agora, discutem a temática; pela inquestionável disparidade de poder político e

Page 51: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

51

econômicopresente entre os Estados membros da OMC; ou, ainda, pelo latente monopólio da

indústria farmacêutica que tanto assola os países em desenvolvimento, com maior presença

das doenças epidêmicas. Por conseguinte, os PEDs enfrentam desafios substanciais para guiar

o sistema em seu benefício, sendo primordial a cooperação entre eles, agindo em conjunto na

defesa de políticas públicas favoráveis às suas necessidades, que sobreponham o interesse

público ao lucro privado.

A respeito da sustentabilidade do acesso aos antirretrovirais, ponto chave desse artigo,

tanto os PEDs quanto as ONGs precisam atuar no sentido de alcançar um maior

esclarecimento quanto às flexibilidades parte do Acordo TRIPS, principalmente no que tange

a quebra de patentes de medicamentos essenciais. Concomitantemente, torna-se cabal pensar

em políticas públicas na área de ciência e tecnologia que facilitem a P&D de novos produtos,

inclusive através de pesquisas financiadas com recursos públicos no âmbito das

universidades. A sociedade civil tem que pressionar de maneira a desenvolver capacidade de

produção, gerando maior competência para a indústria local e maior concorrência de mercado.

Essa medida é aplicável justamente pelo fato do Brasil possuir uma indústria farmacêutica

nacional com relativa capacidade de produção, sendo um dos poucos países em

desenvolvimento, ao lado de Índia e China, com capacidade de produzir diversos

medicamentos que atualmente estão protegidos por patentes. O resultado desse investimento

será positivo tanto no âmbito interno, quanto no cenário internacional, visto que o Brasil

poderá contribuir para solucionar problemas de saúde pública que são comuns em países mais

pobres, principalmente através da continuidade do viés de cooperação Sul-Sul.

REFERÊNCIAS

ABBOTT, Frederick. WTO Medicines Decicion. The American Journal of International Law,

Vol. 99, No. 2, p. 317-358. 2005.

ALMEIDA C.; CAMPOS R. P.; BUSS P. M.; FERREIRA J. R.; FONSECA L. E. Brazil‟s

conception of South-South „structural cooperation in health‟, Innovating for the health for all,

Global forum Update on Research for Health, v. 6, p. 199-107, 2009.

BASSO, M. POLIDA, F. PI e Preços Diferenciados de Medicamentos Essenciais. Coleção

ABIAS. Políticas Públicas, n4, 2005.

BRASIL, 2005. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em saúde. Programa Nacional

de DST e Aids. Plano Estratégico. Programa Nacional de DST e Aids, 2005.

Page 52: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

52

_________, 2007. Portaria 886, de 24.04.2007. Declara de interesse público os direitos de

patente sobre o efavirenz para fins de concessão de licença compulsória para uso público não

comercial.

_________, 2008. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa

Nacional de DST e Aids. UNGASS: Resposta Brasileira 2005/2007. Relatório de Progresso

do país. Programa Nacional DST e Aids. MS.

_________, 2009. PN DST e Aids/SVS/MS. Relatório de Gastos com medicamentos

antiretrovirais.

_________, 2009. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa

Nacional de DST e Aids. Fiocruz entrega primeiras unidades do efavirenz nacional. Agência

de Notícias da Aids.

CHAVES, Gabriela Costa; VIEIRA, Marcela Fogaça; REIS, Renata. Acesso a medicamentos

e propriedade intelectual no Brasil: reflexões e estratégias da sociedade civil. Sur, Rev. int.

direitos human. São Paulo, v. 5, n. 8, 2008.

COOPER, Andrew. Stretching the Model of Coalitions od the Willing 2005. Disponívelem :

SSRN: : http://ssrn.com/abstract=857444. Visualizadoem 09/01/2014.

CORIAT B., Orsi F, d‘Almeida C., ―TRIPs and the international Public health

Conytroversies.Issues and Challenges‟ Industrial and Coroprate Change, 2006.

CORREA, Carlos. ―New Intellectual Standards for Intellectual Property: impact on

technology flows and innovation in developing countries‖. Science and Public Policy, vol. 24,

n. 02, p. 79-92, 1997.

________.Intellectual Property Rights, the WTO and Developing Countries: The TRIPS

Agreement and Policy Options.Zed Books, 2000.

GALLAGHER, K. P. Putting Development First: The Importance of Policy Space in the

WTO and International Financial Institutions. London and New York: Zed Books, 2005.

GONÇALVES, Fernanda Cristina Nanci Izidro. Cooperação sul-sul e política externa: um

estudosobre a participação de atores sociais. Dissertação apresentada ao IRI/PUC Rio, 2011.

HABERMAS, Jurgen.Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro. v. 2, 1997.

KICKBUSCH I. Global health governance: some new theoretical considerations on the new

political space. In: Lee K, ed. Globalization and health. London: Palgrave; p. 192-203, 2003.

LIMA, Rodrigo. A Participação da Sociedade Civil Organizada Na Formulação da Política

Externa Brasileira – As Conferências Sociais da ONU na Década de 90. Dissertação em

Relações Internacionais da Universidade de Brasília,2009.

LOPES, lopes; CEBRI. A Sociedade Civil Global e o Desenvolvimento Pós-2015. Rio de

Janeiro: CEBRI, 2013.

Page 53: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

53

MELLO e SOUZA, A. M. Defying globalization: effective self-reliance in Brazil. In:

HARRIS, P. G.; SIPLON, P. D. (Eds.). The global politics of AIDS. Boulder-Co: Lynne

Rienner Publishers, 2007.

MINISTÉRIO da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Plano Nacional de Controle da

Tuberculose. Brasília; 1999.

MUZAKA, Valbona. The politics of intellectual property rights and access to

medicines. Basingstoke, GB, Palgrave Macmillan, 2011.

NYE, J. Public diplomacy and soft power. The Annals of The American Academy of Political

and Social Science, v. 616, n. 1. p. 94-109, 2008.

NWOBIKE, J. C. Empresas farmacêuticas e acesso a medicamentos nos países em

desenvolvimento: o caminho a seguir. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos, v.3,

n.4, Jun. São Paulo, 2006.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Propriedade Intelectual. 2007. Disponível em:

www.culturalivre.org.br. Acesso em: 05/04/2014

PNUD. Relatório do desenvolvimento humano de 2013. New York: PNUD, p. 163, 2013.

PORTAL ODM.Disponível em: <http://www.portalodm.com.br/>. Acessoem: 08 mar. 2014.

PUTNAM, Robert D. Diplomacy and domestic politics: the logic of two-level games.

International Organization , Vol.42, Nº.3, 1988.

ROSENAU, James N. Pre-theories and theories of foreign policy. In: The scientific study of

foreign policy. London: The Free Press, 1971.

SANTOS Filho ET. Política de TB no Brasil: Uma perspectiva da sociedade civil: Tempos de

mudanças no controle da tuberculose no Brasil. Rio de Janeiro: Open Society Institute; 2006.

SCHERER-WARREN, Ilse. ―Organizações não-governamentais na América Latina:seu

papel na construção da sociedade civil”. São Paulo emPerspectiva 8, 3: 6-14, 1994.

SELL, Susan K TRIPS-plus free trade agreements and access to medicines. Liverpool Law

Review 28: 41–75, 2007.

TEIXEIRA, P. R.; VITÓRIA, M. A.; BARCAROLO, J. Antiretroviral treatment in resource-

poor settings: the Brazilian experience. AIDS, [S.l.], v. 18, p. S5-S7, 2004.

TENÓRIO, F. G.; ROZENBERG, J. E. Gestão pública e cidadania: metodologias

participativas em ação. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, vol. 07, p. 02-35, 1997.

Page 54: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

54

O DEVER DE INFORMAÇÃO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA

DUTY OF INFORMATION AND MEDICAL LIABILITY

Emanuel Lins Galvão de Albuquerque Bastos

1

Sumário: 1 Introdução. 2 Evolução histórica. 3 Do dever profissional. 4 O

consentimento informado. 5 A teoria dos riscos significativos. 6 A iatrogenia. 7 O

cuidado na prestação da informação - protocolo spikes. 8 Aplicação do código de

defesa do consumidor na relação médico-paciente. 9 A falta de informações e o

dever de reparação. 10 As teorias limitadoras da responsabilidade médica. 10.1

Teoria do âmbito de proteção da norma. 10.2 Teoria doconsentimento hipotético.

10.3 Teoria dacausalidade hipotética. 11 O dever do sigilo. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A atividade médica é marcada pelo risco:as intervenções clínicas apresentam perigo

potencial de causar danos ao paciente.Com ser assim, o médico devecientificaro enfermo do

procedimento e de suas consequências, dando condições para esse avaliar se lhe convém

realizar o tratamento.

O dever de esclarecimentos assume notável importância diante da responsabilização

pelos riscos da terapia. Haveria o médico de indenizar o paciente por falta com seu dever de

informação?

Nesse esteio, impende se analisar a extensão do dever de informação, quais os riscos

a serem levados a lume do paciente e a responsabilidade do médico em face da obrigação de

prestar esclarecimentos.

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Na antiguidade clássica, inexistia o dever de esclarecimento sobre os riscos da

intervenção clínica. Sustentava-se caber somente ao médico o cuidado e escolha de

tratamentos a realizar no corpo do enfermo, considerando ser ele o profissional e detentor dos

conhecimentos específicos à cura. Imperava a ética hipocrática do paternalismo clínico

(BEIER, 2010).

A análise etimológica do termo ―paternalismo‖, oriundo do latim pater, traduz a

existência de um poder subjugando outro, calcado na premissa de lhe fazer o bem.Consoante

ensinamento de Rui Stoco (2007, p. 552), o ato médico se resumia no liame entre uma

confiança - a do paciente - e uma consciência - a do galeno.

1 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Page 55: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

55

Intervenções abusivas e a valorização do homem como sujeito de direitos deram azo

a uma mudança de paradigma(BEIER, 2010).O império da vontade médica na tomada de

decisões, a perdurar até meados do início do Século XX, foi suplantado pelo princípio da

autonomia do paciente(PEREIRA, 2005).

Em 1914, quando tribunais americanos despertaram para o reconhecimento da

autodeterminação do enfermo, o Juiz Benjamin Cardozo aduziu que ―todo ser humano de

idade adulta e mente sã tem o direito de determinar o que deve ser feito com o seu próprio

corpo2‖. Em 1957, foi criada a expressão informedconsent (consentimento informado) por um

Tribunal da Califórnia e houve proliferação de decisões reconhecendo o dever de informação,

o qual também passou a ser assentido pelos ordenamentos de países anglo-saxônicos e da

Europa Ocidental (PEREIRA, 2005).

No Brasil, os Códigos de Deontologia Médica de 1929, 1931 e 1945 prescindiam do

agir médico a aquiescência do paciente, estipulando apenas dever de notificação nos casos de

moléstia grave ou desenlace fatal (no código de 29) e autorização dos pais ou responsáveis

para realização de operações em menores e incapazes (no códex de 31). O dever de

esclarecimento médico e a necessidade de consentimento do paciente para realização de

procedimentos só foram incorporados ao ordenamento com o advento do Código de Ética

Médica de 1953, em seus arts. 313 e 49

4.

Atualmente, o consentimento informado encontra esteio no Código de Ética de 2009,

instituído através da Resolução n.º 1.931/2009 do Conselho Federal de Medicina, a vaticinar

no seu art. 24 ser vedado ao médico ―deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de

decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para

limitá-lo‖.

3 DO DEVER PROFISSIONAL

Conforme alhures mencionado, a ética médica de não se esclarecer os perigos do

procedimento foi superada pelo amplo esclarecimento das consequências de uma intervenção,

em apanágio à autonomia do paciente.

2 No processoSchloendorff contra a Society of New York Hospitals. Tradução pelo Autor.

3 ―Artigo 31º- O médico tem o dever da veracidade para com o seu doente, devendo informá-lo do diagnóstico,

salvo se essas informações puderem causar-lhe dano, caso em que serão prestadas à família.‖ 4 ―Artigo 49º- O médico salvo caso de ‗iminente perigo de vida‘, não praticará intervenção cirúrgica sem o

prévio consentimento, tácito ou explicito, do paciente ou do seu representante legal, se se tratar de menor ou de

incapaz de consentir.‖

Page 56: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

56

Não mais se concebe o médico oferecer ao enfermo informações incompletas ou ser

omisso quanto aos riscos do ato clínico. A obrigação de esclarecimento assumiu natureza de

dever profissional(PEREIRA, 2005).

O encargo de esclarecimentos é corolário da boa-fé objetiva, do dever de cooperação,

lealdade, transparência, probidade e de confiança a imperar na relação médica (CAVALIERI,

2014).Nesse sentido, o art. 34 do Código de Ética Médica dispõe que o médico deve informar

ao paciente o diagnóstico, prognóstico, riscos e objetivos do tratamento.

No escólio de José de Aguiar Dias (2011, p. 285), o dever de conselhos é

obrigaçãoimplícita no contrato clínico: cabe ao médicoinstruir o paciente sobre as precauções

indispensáveis diante de seu estado de saúde e lhe alumiar os riscos do tratamento, sem nada

lhe ocultar.

Trata-se do que a doutrina alemã denomina de Aufklärungsppflicht - dever de

informar e esclarecer dos médicos (STOCO, 2007).

Visto que esteja a lidar com a saúde do paciente, havendo a possibilidade inclusive

de morte em certos casos, faz-se mister o médico cientificá-lo de todas as complicações que

podem advir da intervenção. Afirma André Gonçalo Pereira (2005, p. 72) que ―só o

consentimento devidamente esclarecido permite transferir para o paciente os referidos riscos

que de outro modo deverão ser suportados pelo médico‖.

O direito do paciente de dispor sobre o próprio corpo figura como a justificativa

jurídica da obrigação de informar, conforme doutrina de Catherine Paley-Vincent (2002, apud

STOCO, 2007). O esclarecimento visa permitir ao paciente poder se autodeterminar,

valorando se é vantajoso consentir na feitura da terapia médica.

4 O CONSENTIMENTO INFORMADO

Para além do dever de informação, é indispensável ao médico colher o

consentimento do paciente, o qual precisa estar ciente dos riscos da intervenção. A decisão de

anuência à feitura do procedimento é do enfermo (ou de sua família, no caso deste quedar

impossibilitado de manifestar sua vontade), o qual precisa estar suficientementeesclarecido de

seus riscos.

Segundo André Gonçalo Pereira (2005, p. 104), há riscos os quais o Direito pretendia

recaírem sobre a esfera do paciente e outros a incidir na esfera médica. Estes últimos devem

ser sempre informados ao enfermo, ―para que este em liberdade e em consciência decida

Page 57: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

57

sobre se autoriza a intervenção, autocolocando-se em perigo...‖. Os riscos a orbitar na esfera

do paciente, pela extrema raridade, imprevisibilidade e conhecimento comum, não

precisariam ser transmitidos.

Kfouri Neto (2009, p. 40) aduz consistir o consentimento do paciente em pré-

requisito essencial a todo atoclínico, visto o médico ser responsabilizado pelos riscos não

divulgados e, por conseguinte, não assentidos pelo enfermo. O profissional só se exime da

responsabilidade quando esclarece os riscos e o paciente os assume, em aquiescência livre e

clara.

O Código de Ética da Medicina, ao versar sobre a anuência esclarecida, giza no art.

22 ser defeso ao médico deixar de obter o consentimento do paciente após esclarecê-lo sobre a

intervenção. No art. 24, dispõe ser direito do paciente decidir livremente sobre sua pessoa ou

bem-estar.

O consentimento informado recebe tutela jurídica em virtude de seu aspecto dúplice:

é condição indispensável para a formação do contrato entre médico e paciente e é expressão

de uma liberdade fundamental do indivíduo de recusar sofrer danos à sua integridade

física(PENNEAU, 1977, apudKFOURI NETO, 2009).

A obtenção da anuência esclarecida, importa frisar,não é apenasum dever legal.

Constitui-se em meio propulsor do vínculo de confiança a imperar na relação médico-

paciente.

Consentimento informado representa mais do que uma mera faculdade de escolha do

médico, da recusa (ou dissenso) sobre uma terapia, ou mero requisito para afastar o

espectro da negligência médica. A obtenção do consentimento representará o

corolário do ‗processo dialógico e de recíprocas informações‘ entre médico e

paciente [...] (KFOURI NETO, 2002).

Tal consentimento deve ser dado com conhecimento de causa, e não pelo doente mal

informado. Nesse diapasão, são requisitos do consentimento: a) ser voluntário, b) dado por

quem seja capaz, c) após esclarecimento substancial (KFOURI NETO, 2002).

Significa dizer que só será válido se for oferecido por livre vontade daquele a se

encontrar em plenas faculdades mentais, após ter sido devidamente informado dos riscos da

intervenção.

Desta feita, se o paciente estiver em estado de excitação para realização de

procedimento meramente estético, verbi gratia, aconselhável será o cancelamento ou

adiamento da intervenção, visto essa situação comprometer o livre-arbítrio do cliente e

invalidar a anuência à intervenção médica(DIAS, 2011).

Page 58: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

58

Em se tratando de cirurgia, especialmente a estética, assevera STOCO (2007, p. 553)

dever o esclarecimento ser completo e exaustivo,destituído de coação, influência ou indução,

cabendoao médico alertar o paciente sobre os resultados do procedimento em termos

compreensíveis. Do contrário, não será alcançado o consentimento informado.

Embora não se exijam formalidades ao ato de consentir, Kfouri Neto (2002, p.

300),com o escopo de resguardar o médico, aduz que o consentimento deverá ser expresso de

forma escrita; quando verbal, deverá ser testemunhado. Assim, o médico contará com lastro

probatório a lhe eximir de responsabilidade.

Porém, nem sempre será indispensável a aquiescência do paciente.

Até então se defendeu a necessidade de o médico obter o consentimento informado

do enfermo.Todavia,é preciso destacar algumas situações que fazem prescindir a autorização

do enfermo.José de Aguiar Dias (2011, 289) exemplificao que seriam circunstâncias

excepcionais: nos casos de emergência (e não sendo possível contatar parentes da pessoa) e

em face de propósito suicida do paciente.No primeiro caso, porque há iminente perigo à vida.

No segundo, porque a perturbação mental impede a manifestação livre e clara de vontade.

Há de se acrescentar as situações de tratamento compulsório, a exemplo de

campanhas de vacinação obrigatórias, porquanto se mitigue o direito de autodeterminação do

paciente em prol do direito à saúde a nível coletivo. Também é forçoso o tratamento do preso,

por se encontrar em proteção do Estado.

Ademais, impende pontuar que, para os casos de enfermo menor ou alienado, a

anuência ao tratamento precisará ser advinda de seus responsáveis(DIAS, 2011).

5 A TEORIA DOS RISCOS SIGNIFICATIVOS

A doutrina portuguesa tradicional sustentava o dever de informação albergar apenas

os riscos ―normais e previsíveis‖, sérios, os quais se apresentassem com certa frequência,

excluindo-se os graves, particulares, hipotéticos e anormais. O objetivo era não atemorizar o

paciente com riscos longínquos, que fugissem à álea da contumácia(PEREIRA, 2005).

Posteriormente, alguns pensadores passaram a defender a teoria dos riscos

significativos, reconhecendo a obrigação de se esclarecer o paciente dos riscos ―que o médico

sabe ou devia saber que são importantes e pertinentes‖(PEREIRA, 2005, p. 75).

Page 59: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

59

Para os sequazes dessa teoria, são quatro os critérios a permitir a aferição do risco

significativo: a) sua frequência; b) sua gravidade; c) a necessidade terapêutica da intervenção;

e d) o comportamento do paciente (PEREIRA, 2005).

Em face da frequência, defende-se relação de direta proporcionalidade entre ela e o

dever de informar: quanto mais recorrentes os perigos, maior será a obrigação de

esclarecimento. Os riscos frequentes, ainda que de pequena gravidade, devem ser sempre

esclarecidos.

André Gonçalo Pereira (2005, p. 79) pontua a frequência do risco não dever ser

analisada in abstrato, porquanto seja preciso atentar para os ―riscos especializados‖, levando-

se em conta, exempli gratia, o estado do paciente, o grau de instrução do médico e a estrutura

do centro hospitalar.

No que pertine à gravidade dos riscos, ao liame entre essa e o dever de informar

também se aplica proporção direta: se maior for a gravidade, mais detalhados serão os

esclarecimentos.

Lógica diferente rege a obrigação de esclarecer em face do grau de necessidade da

intervenção: quanto maior for a necessidade, menos detalhado poderá ser o esclarecimento

dos riscos. Permite-se uma flexibilização do dever de informação em razão da cogência da

medida. Deve-se ressaltar, não obstante, que nesses casos haverá mitigação do dever de

informar, e não sua extinção.

Noutra toada, procedimentos menos necessários como os meramente estéticos,

doação de órgãos e cirurgias voluntárias (como vasectomia, rinoplastia), deveriam ser

precedidos de farto esclarecimento dos riscos(PEREIRA, 2005).

Ademais, os partidários da corrente do risco significativo defendem os hábitos,

personalidade e grau de instrução do paciente poderem fazer variar a extensão do dever de

esclarecimento. Ao paciente com formação médica, por exemplo, a obrigação de informar

restaria atenuada.

6 A IATROGENIA

Já se afirmou o risco ser inerente à atividade médica. Mesmo os procedimentos

clínicos eficientes podem implicar em complicações à saúde do paciente.Às alterações

patológicas provocadas ao paciente pelo médicodá-se o nome de danos iatrogênicos(STOCO,

2007).

Page 60: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

60

Rui Stoco(2007, p. 588), forte em lição de Paulo Jatene, aduz existirem três tipos de

iatrogenia: a) lesões previsíveis e esperadas do tratamento, b) lesões previsíveis, mas

inesperadas, inerentes à técnica e c) lesões decorrentes de falha humana.

(...) a ‗iatrogenia‘ representa um dano causado ao paciente pelo médico, em razão de

sua ação ou omissão no exercício de sua atividade ou especialização, e que

iatrogenia é um fato natural que poderá qualificar-se como ato jurídico, e, portanto,

lícito, ou ato sem respaldo na lei, e, portanto, ilícito, como, aliás, todos os demais

atos, praticados no mundo fenomênico (STOCO, 2007, p. 590).

O insigne doutrinadorcontinua sua exposição aduzindoexistirem procedimentos em

que a lesão se constitui como única forma de se ministrar o tratamento, exemplificando com a

impossibilidade de retirada de apêndice sem o corte no tecido que recobre os órgãos. Desta

forma, atuaria o médico em exercício regular de direito, sendo as lesões previsíveis e aceitas

em prol do benefício à saúde.

O exercício normal da atividade médica ou cirúrgica justifica-se formalmente

porque consiste no exercício regular de uma faculdade legítima e materialmente

porque constitui meio justo para um justo fim ou meio adequado para um fim

reconhecido pela ordem estatal(STOCO, 2007, p. 589).

André Gonçalo Pereira (2005, p. 72) leciona suceder com frequência o dano

iatrogênico, independentemente de falha médica ou da instituição hospitalar. Para fins do

galeno se eximir da responsabilidade pela iatrogenia, deveráesclarecer todos os riscos ao

paciente, sob pena de dever suportar aqueles que se concretizarem.

7 O CUIDADO NA PRESTAÇÃO DA INFORMAÇÃO- PROTOCOLO SPIKES

Embora exista dever de esclarecimento em face dos riscos da intervenção, há a

necessidade de se manter esperançoso o paciente, para este não se angustiar ou desesperar.

Em casos graves, com vultosa possibilidade de óbito, a informação deve ser prestada

ao responsável. Ao paciente, será compreensível a informação ser dissimulada, de modo a

amenizar seu sofrimento (STOCO, 2007).

O prognóstico grave pode ser compreensivelmente dissimulado; o fatal, revelado

com circunspecção ao responsável. Em se tratando de risco terapêutico, o médico

pode advertir os riscos previsíveis e comuns, os excepcionais podem ficar na sombra

(STOCO, 2007, p. 553).

Nos casos de pacientes acometidos com quadros clínicos de acentuada gravidade, a

literatura médicaapontaum método estratégico para a transmissão de más notícias:o Protocolo

Page 61: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

61

SPIKES - Setting up, Perception, Invitation, Knowledge,Emotions,

Strategyandsummary(MEDEIROS, 2013).

De acordo com o método, há seis passos para a prestação dos esclarecimentos. Num

primeiro momento, o médico precisa se preparar para o encontro com o paciente, conhecendo

seu histórico, identificando o que este já conhece sobre a doença e como ele se comporta

diante da notícia (setting up); após, identifica os sentimentos do paciente, como está se

sentindo e se se dispõe a falar sobre o assunto (perception); depois disso, o convida ao

diálogo, permitindo a presença de um ente querido quando necessário (invitation).

Criado um ambiente favorável à conversação, transmite-lhe as informações

necessárias, explicando a doença, propondo tratamentos e alertando aos seus riscos

(knowledge); nesse momento deverá se mostrar solidário frente às angústias do paciente,

permitindo que este expresse suas emoções (emotions); alfim, precisará resumir quais serão as

estratégias para fins de tratar a doença, traçando planos de cuidado em integração com os

familiares do paciente (strategyandsummary).

Conforme bastante profundido neste trabalho, o médico deverá ser diligente na

prestação das informações, deixando o paciente a par dos riscos da intervenção. Porém,

considerando o abalo psicológico a se encontrar o enfermo, caberá ao médico cautela no

atendimento, para que o paciente se sinta confortado e não perca a esperança de cura.

8 APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NA RELAÇÃO

MÉDICO-PACIENTE

José de Aguiar Dias (2011, p. 277) ensina não restar dúvidas hoje sobre a natureza

contratual da responsabilidade médica.A tendência da substituição da responsabilidade

aquiliana pela contratual, profetizada por Josserand, firmou-se na jurisprudência francesa

desde a década de 40.

No Brasil, a responsabilidade do médico encontra previsão legal no capítulo II do

Título IX do Código Civil, atinente à responsabilidade delitual. Tal fato, porém, não afasta

nem nega a existência de uma relação contratual: o dever médico de reparação pode exsurgir

por falta de execução do contrato (responsabilidade contratual) ou pelo cometimento de ato

ilícito (responsabilidade aquiliana)(DIAS, 2011).

Considerando tratar-se de relação contratual, na qual o médico presta serviços ao

paciente (pessoa física a utilizar dos serviços como destinatário final), e existindo manifesta

Page 62: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

62

desproporção de forças (vulnerabilidade do enfermo),na prática da medicina incide a Lei

Federal n.º 8.078/90, o Código de Defesa do consumidor.

Atentando ao regramento pertinente à relação médico-enfermo, tem-se que o

microcosmo consumerista confere ao hipossuficiente tratamento especial (art. 4º, I5),

facilitando-lhe os meios de defesa. Além disso, obriga o médico a prestar informação

adequada e clara sobre o serviço (art. 6º, III6). Descumprindo o dever de esclarecimentos, o

clínicoresponderá pela reparação dos danos causados por informações insuficientes ou

inadequadas sobre a fruição e riscos do serviço (art. 147).

O codex ressalva no art. 14, §4º8, ser subjetiva a responsabilidade do profissional

liberal, é dizer, apurada mediante a verificação de culpa.

Nesta senda, observa-se que o paciente pode utilizar as regras do Código de Defesa

do Consumidor com o escopo de garantir a reparação de danos causados pela falta médica de

informação.

9 A FALTA DE INFORMAÇÕES E O DEVER DE REPARAÇÃO

Kfouri Neto (2009, p. 41) destaca normalmente ser irrelevante a discussão sobre a

qualidade da informação nos casos em que há dano por culpa médica; se há dano e nexo de

causalidade, a responsabilidade é inconteste. Porém, na hipótese de intervenção médica

correta, exsurge a problemática de dever ou não o médico responder pela falta de

esclarecimentos.

Lorenzetti (1997, apud KFOURI NETO, 2009) vaticina a inexistência de

consentimento informado poder constituir lesão autônoma, por si só capaz de ensejar o dever

de reparação- a culpa surgiria pela falta de informação, independentemente de negligência no 5 ―Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos

consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a

melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os

seguintes princípios:

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

(...).‖ 6 ―Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(...)

II - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de

quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que

apresentem;

(...).‖ 7 ―Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos

danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações

insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

(...).‖ 8―Art. 14 (...).

§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.‖

Page 63: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

63

tratamento.Rui Stoco (2007, p. 554)asseveraser possível a responsabilização médica antes

mesmo de intervenções ou tratamentos em decorrência dafalta de informação. 9

Emboraab initio pareça coerente sustentar-se o dever de indenizarem decorrência

única da falta de esclarecimentos(em virtude de lesão ao bem jurídico da autodeterminação do

paciente), não se pode concluir pela responsabilização automática do médico, porquanto nessa

hipótese parece o dano, acaso existente, ser deveras longínquo.A angústia do paciente em

saber que poderia ter sofrido lesões com o tratamento, quando no mundo dos fatos nada

aconteceu, não se afigura merecedora de compensação.

Sérgio Cavalieri (2014, p. 92) afirma não bastar o risco de dano: ―sem uma

consequência concreta, lesiva ao patrimônio econômico ou moral, não se impõe o dever de

reparar‖.

Inclusive porque é função da responsabilidade civil a reparação integral do dano, a

saber, repor-se a vítima ao status quo ante.É de se considerar que o tratamento só trouxe

benefícios ao paciente. Tendo em vista ele se encontrar em situação melhor, o que seria

indenizado? Decerto que nada.

Jean Penneau (1990, apud STOCO, 2007) leciona a falta de informação não redundar

obrigatoriamente em responsabilidade, porquanto nem sempre exista dano.

Outrossim, se assim não fosse, criar-se-ia ambiente propício àmedicina defensiva,

burocratizando a relação médico-paciente, fazendo com que o profissional, antes de proceder

a intervenções clínicas, tivesse de se munir de extensos formulários e de todos os examesao

seu alcance (até os desnecessários) para fins de se resguardar de eventuais processos judiciais.

Ocorre que em muitos casos não há tempo para tamanha investigação preliminar, visto lidar o

médico com a saúde e vida do enfermo. Ademais, a medicina defensiva criaria embaraços e

desconfiança na relaçãomédico-paciente, os quais se deseja sejam parceiros na atividade

terapêutica (PEREIRA, 2005).

Assim, persiste maior coerência à doutrina que sustenta só haver ônus de reparação

caso a falta de informações dê azoa danos concretos ao paciente.

10 AS TEORIAS LIMITADORAS DA RESPONSABILIDADE MÉDICA

9 E continua o doutrinador: ―ora, a falta de informação acerca das consequências do tratamento ou da intervenção

cirúrgica poderá conduzir à realização do procedimento, com o surgimento de sequelas ou incômodos ou outras

intercorrências que poderiam não ser assumidas pelo paciente se tivesse a informação prévia e adequada‖

(STOCO, 2007, p. 554).

Page 64: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

64

No Direito Europeu, surgiram teorias a minorar o largo espectro de responsabilidade

médica, poisanalisando o dever de informar de forma não acurada, poder-se-ia concluir que

qualquer omissão de informação daria ensejo a um ilícito civil, fato a impedir inclusive o

regular exercício da medicina.

Intencionando evitar uma ―objetivação‖ da responsabilidade, as teorias do âmbito de

proteção da norma, do consentimento hipotético e da causalidade hipotética exsurgiram como

defesas médicas.

10.1 TEORIA DO ÂMBITO DE PROTEÇÃO DA NORMA

A teoria do âmbito de proteção da norma foi consagrada nas doutrinas austríaca e

alemã ese relaciona com a violação de uma disposição legal de proteção. É considerada como

uma superação da teoria da causalidade adequada, discernindo quais os danos que teria o

legislador razoavelmente pretendido impedir através da expedição da norma (PEREIRA,

2005).

Para esta teoria, apenas se justifica a responsabilidade médica quando o dano se

insere dentro do âmbito de proteção da norma; a saber, só há dever de reparar se o dano

estiver dentro dos limites razoáveis do que era pretensão do legislador combater. Deve existir,

portanto, nexo de imputação da ilicitude entre a conduta e o dano.

Em sendo assim, afirma André Gonçalo Pereira (2009, pag. 93) que ―no caso de

informação insuficiente sobre os riscos da intervenção, deve-se delimitar a responsabilidade

na medida da concretização dos riscos que ilicitamente não foram informados, isto é, aqueles

que deveriam ter sido informados e não o foram‖.

AJurisprudência do Tribunal de Justiça Federal da Alemanha (BGH) consagra a

proteção do paciente exigirque ele esteja sempre informado das consequências positivas e

negativas do tratamento, para que tenha uma informação base (Grundaufklärung) a lhe

permitir compreender, ao menos genericamente, o vulto da gravidade do procedimento e os

tipos de danos passíveis de ocorrer,devendo ser cientificado do risco mais grave da

intervenção. Se o médico não ofertar ao paciente este mínimo de esclarecimentos que estejam

dentro do âmbito de proteção da norma, responderá por todos os danos causados, ainda que

sejam longínquos(PEREIRA, 2005).

10.2TEORIA DOCONSENTIMENTO HIPOTÉTICO

Page 65: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

65

Através do consentimento hipotético, se sustenta uma limitação da responsabilidade

médica por omissão de informações, pautando-se na seguinte premissa: ainda que sabedor

fosse dos riscos, o paciente optaria pela realização do procedimento.

Também denominada de comportamento lícito alternativo, a tese imputa ao médico

o ônus de provar que o paciente anuiria ao tratamento mesmo se tivesse sido informado sobre

os riscos da intervenção(PEREIRA, 200).

Noutro flanco, caso o paciente alegue que recusaria a intervenção se houvesse

recebido os esclarecimentos necessários, deverá provar a possibilidade de que passaria por um

conflito de decisão,mostrando a plausibilidade de eventual recusa. Não precisará comprovar

como se determinaria, mas apenas a viabilidade da dúvida na feitura do procedimento médico

(PEREIRA, 2005).

Eisner (1992, apud PEREIRA, 2005) professa serem condições à defesa fundada no

consentimento hipotético: a) que ao paciente se tivesse ofertado informação base, b) com

fundada presunção de que não negaria se submeter ao tratamento, c) sendo a intervenção

medicamente indicada, conduzindo melhoria na saúde do paciente e visando afastar perigo

grave.

STOCO (2007, p. 595) entende o consentimento hipotético ser causa excludente de

responsabilidade.

10.3 TEORIA DACAUSALIDADE HIPOTÉTICA

Por meio da causalidade hipotética,sustenta-seos resultados da intervenção médica,

relativamente à qual houve falta de informações, serem menos nefastos que as consequências

a advir da ausência de intervenção clínica.(PEREIRA, 2005).

É dizer, defende-se a inexistência de danos: se a omissão médica causaria maiores

gravames ao paciente, significa o procedimento clínico ter trazido apenas benefícios ao

enfermo.

Poder-se-ia sustentar a causalidade hipotética levando em conta ateoria da diferença,

no que pertine a danos patrimoniais, analisando-se a diferença entre a situação real a se

encontrar a vítima e a condiçãona qual se encontraria acaso não havido o ilícito. Se o paciente

auferir melhoras com a intervenção médica, não haverá dever de indenização pelo médico.

11 O DEVER DE SIGILO

Page 66: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

66

Não devem existir segredos na relação médico-paciente.

Todavia,perante terceiros o raciocínio é diverso, havendo obrigação médica denão

divulgar as informações relativas ao estado de seus pacientes.

O Código de Ética Médica de 1988 proclama nos seus artigos 102 a 109 regras

alusivas ao segredo médico, determinando, dentre outras normas, ser vedado ao profissional

revelar fatos conhecidos em decorrência de seu múnus, ressalvadas as situações de justa

causa, dever legal ou autorização expressa do paciente.A violação de segredo profissional é

considerada ainda ilícito penal, entabulado no art. 15410

do Código Penal Brasileiro.

O segredo médico, segundo Kfouri Neto (2002, pag. 382),não subsiste como fim em

si mesmo, e sim como instrumento a serviço do respeito à vida privada, à intimidade,

perdurando inclusive se extinta a relação médico-paciente.Não é apenas dever médico; é

direito do paciente.

Tem-se enfatizado a importância da confidencialidade, especialmente a partir da

constituição de 1988, a Constituição-cidadã, e a introdução, no art. 5º, da tutela

específica do patrimônio moral (art. 5º, X: são invioláveis a intimidade, a vida

privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo

dano material ou moral decorrente de sua violação) (KFOURI NETO, 2009, p. 194).

Com ser assim, se o profissional revelar segredo a ele confiado, causando danos ao

paciente, dará azo ao dever de indenizar.

Há duas correntes doutrinárias tratando da extensão do dever de sigilo: a primeira, a

teoria relativista, apregoa ser permitida a mitigação diante de certos valores jurídicos, éticos,

morais e sociais de relevo. Já para a teoria absolutista, considera-se o dever de sigilo como

questão de ordem pública, cuja revelação não se admite(KFOURI NETO, 2009).

José de Aguiar Dias (2011, pag. 293) admite apenas em situações excepcionais ser

possível a mitigação do dever de sigilo, a exemplo de acidentes coletivos e hospitalização de

pessoa pública. Porém, faz a ressalva de se prestarem apenas informações genéricas.

A exemplificar o dever de sigilo, o STJ, em julgamento no Recurso Especial

159.527/RJ, decidiu que ―viola a ética médica a entrega de prontuário de paciente internado à

companhia seguradora responsável pelo reembolso das despesas‖.

CONCLUSÃO

10

―Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício

ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

(...).‖

Page 67: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

67

A obrigação médica de esclarecer os riscos do tratamento ao paciente alçou patamar

de dever profissional. O enfermo precisa estar ciente dos riscos da intervenção, afinal,

somente quando devidamente informado será capaz de manifestar seu consentimento livre e

consciente.

Em atenção à teoria dos riscos significativos, caberá ao galenoanunciar todos os

riscos importantes e pertinentes, analisando a gravidade, frequência, necessidade da

intervenção e comportamento do paciente.

Se o médico não informar os perigos da terapia, deverá responder pelos riscos que se

concretizarem. Tal responsabilidade, todavia, apenas exsurgirá se existirem danos ao paciente.

Nesse esteio, nem sempre existirá obrigação de indenizar pelo simples fato de se

faltar com o dever de informação. Sem lesão concreta, dissipa-se qualquer ônus de reparação.

Importa destacar, também, que, se ao paciente é imperativa a prestação de

esclarecimentos, aos terceiros se faz iniludível o dever de sigilo, resguardando-se as

informações obtidas em virtude do múnus médico.

REFERÊNCIAS

BEIER, Mônica. Algumas considerações sobre o Paternalismo Hipocrático. Revista Médica

de Minas Gerais, Minas Gerais, v. 20, n. 3, p. 246-254, 2010.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 11. ed. rev. e ampli.São

Paulo: ATLAS, 2014.

DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade Civil. 12. ed.São Paulo: Lumen Juris, 2011.

KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance,

cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado:

responsabilidade civil em pediatria e responsabilidade civil em gineco-obstetrícia. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2002.

______. Responsabilidade Civil do Médico.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

MEDEIROS, Luciana Fernandes de. Comunicação na Saúde: como comunicar más notícias?

2013. Digitado.

Page 68: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

68

PEREIRA, André Gonçalo Dias. O dever de esclarecimento e a responsabilidade médica.

Revista dos Tribunais, v. 839, n. 94, pag. 69-109, set. 2005.

STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil: doutrina e jurisprudência. 7ª ed., rev.,

atual e ampli. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

Page 69: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

69

PARADIGMAS INSTITUCIONAIS E MATERIAIS PARA A

CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

João Trindade Cavalcante Filho1

José Trindade Monteiro Neto2

Sumário: 1 Introdução. 2 Modernidade periférica: consequências na formação do

sistema social e nas relações entre Direito, Política e Saúde. 2.1 Coesão do sistema

social: o acoplamento estrutural. 2.2 Degeneração do sistema social: as

interferências destrutivas. 2.3 Modernidade periférica e predominância da alopoiese.

3Protagonismo Judicial no Brasil: ativismo judicial ou judicialização? 4 Direito à

saúde: características, classificação e natureza. 4.1 Eficácia mediata ou imediata dos

direitos sociais? 4.2 Direito à saúde e caráter relativo dos direitos fundamentais. 5

Direito à saúde e a relação entre os sistemas sociais. 5.1 Reserva do possível: outra

simplificação indevida. 5.2 Políticas públicas para a Saúde e reserva do possível:

interferência entre Direito e Política. 5.3 Isolamento do judiciário em decisões

relativas à saúde: fechamento (excessivo) do sistema jurídico. 6Caminhos

institucionais para a efetivação do Direito à Saúde. 6.1 Diálogos entre o sistema

jurídico, profissionais de saúde e sociedade civil. 6.2 Diálogos entre Judiciário e

Executivo.

1 INTRODUÇÃO

A atual conjuntura de protagonismo do Poder Judiciário Brasileiro não é tema

meramente teórico. É eivado de causas e consequências práticas, que se desdobram por

diversos âmbitos da sociedade.

Um dos setores sociais em que mais se verifica o referido fenômeno é o campo do

direito fundamental à saúde, tradicionalmente definido como direito fundamental de segunda

geração, classificação associada aos direitos sociais ou prestacionais, categoria segundo a qual

o Estado deve condutas comissivas (prestações) aos indivíduos, tendo em vista,

primordialmente, a igualdade material entre estes.

A maior complexidade para a implementação de ações que promovam o bem-estar, em

comparação com as condutas omissivas do Estado em relação aos direitos de primeira geração

(vida, liberdade, etc.), aliada à resistência da administração pública em executar tais ações –

resistência muitas vezes alicerçada na ideia de ―reserva do possível‖ – criam um cenário

favorável à judicialização da saúde, em que o indivíduo, necessitando da prestação, por parte

do poder público, de políticas de preservação e reparação de suas condições físicas,

fisiológicas e psíquicas, e esbarrando na não execução de tais atos, busca, no poder judiciário,

o amparo necessário para conseguir seu ensejo.

1Mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

2Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

Page 70: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

70

Outro aspecto, relativo à judicialização da saúde, que merece destaque, é o fato de que

direitos sociais são, por natureza, implementados por meio de políticas públicas. E políticas

públicas são, segundo firme entendimento jurisprudencial e doutrinário, com base no que

afirma a Constituição da República Federativa do Brasil, de competência privativa do Poder

Executivo. Desse modo, um papel mais ativo do Judiciário nessa seara enseja discussões

institucionais, acerca do princípio fundamental da separação dos poderes e dos limites da

legitimidade e adequação da atuação judicial nesse campo.

Por fim, mesmo após resolvidos tais imbróglios, deve-se lidar com mais um obstáculo

relativo à temática: uma vez delimitado o campo de atuação dos Juízes e Tribunais no que

concerne à saúde pública, como deve ser processada tal atuação? Em que medida é útil e

necessária, para tanto, a associação dos sistemas jurídico e político? Qual o papel dos

profissionais de saúde nesse processo, e como deve acontecer a interação entre eles e os

intérpretes/aplicadores/criadores do Direito?

Buscando solucionar tais obstáculos e questionamentos, o presente artigo se vale de

discussões relativas à definição do direito fundamental à saúde, em vista das consequências

práticas diferenciadas que pode assumir cada uma das classificações teóricas a ser adotadas.

São abordados também aspectos importantes do cenário de protagonismo do Poder Judiciário,

e suas consequências para a separação dos poderes, para a eficácia dos direitos fundamentais e

para a implementação de políticas públicas para a saúde. Por fim, tratar-se-á, aqui, de aspectos

associados à interseção entre os operadores da saúde e as instâncias de criação do Direito –

esferas legislativa e judiciária, mais precisamente.

Para tanto, será usada como referencial teórico a teoria dos Sistemas Sociais

(especialmente na formulação do sociólogo Niklas Luhman), aplicada à realidade de

modernidade periférica e de pouca maturidade institucional na qual se insere o Brasil.

Considerar-se-á a Saúde Pública, para fins explicativos, como um subsistema social, no

mesmo patamar dos subsistemas jurídico e político.

2 MODERNIDADE PERIFÉRICA: CONSEQUÊNCIAS NA FORMAÇÃO DO

SISTEMA SOCIAL E NAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO, POLÍTICA E SAÚDE

2.1 Coesão do sistema social: o acoplamento estrutural

O fenômeno da positivação do Direito, pautado, sobretudo, na autonomização do

âmbito jurídico (e não mais subordinação) em relação a outras fontes normativas e no

Page 71: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

71

monopólio estatal da produção normativa, aparece como consequência direta da crescente

complexidade social – para atender a demandas cada vez mais diversificadas, o sistema social

se desmembra em subsistemas, em certa medida autônomos e mais especializados, divisão

que confere ao sistema global maior dinâmica e funcionalidade (ADEODATO, 2002, pp. 205

e ss.).

Seguindo esses parâmetros, cada subsistema é dotado de códigos próprios, exatamente

com o intuito de assegurar-lhe autonomia em relação aos demais e permitir que se resolvam

com mais eficiência os conflitos que surgirem no seu interior. Por outro lado, não se pode

negligenciar o fato de que as partes compõem um todo que deve ser dotado de coerência e

coesão, uma vez que a especialização tem em vista, acima de tudo, conferir dinâmica ao

sistema social dito ―global‖.

Assim, surge uma tensão entre a especialização das partes e a coesão do todo.

Evitando que de tal conflito resulte a supremacia de um dos extremos – fechamento absoluto

das partes ou rigidez estática do todo, o que, sob qualquer aspecto, seria prejudicial ao

conjunto social –, aparece um mecanismo que permite o equilíbrio na antítese relatada: a

abertura cognitiva.

Constituída como uma interseção entre os subsistemas sociais, a abertura cognitiva

constitui-se numa margem de similaridade entre os subsistemas, a partir da qual se permite

que elementos de uma parte entrem em contato com elementos de outra. Nesses termos, a

referida abertura funciona, metaforicamente, como uma verdadeira cola – acoplamento

estrutural, mecanismo de conjunção entre os subsistemas sociais que confere coesão ao

sistema social global (ADEODATO, 1995, pp. 215 e ss.).

Tal panorama é uma explicação bastante adequada para o fenômeno, historicamente

verificado, de positivação do Direito (formação do Direito moderno), cuja principal

característica, como já citado anteriormente, é a emancipação do Direito como subsistema

autônomo, dotado do próprio código (lícito/ilícito), mas mantendo relações com outros

subsistemas (econômico, político, etc.).

Seguindo esse raciocínio, o acoplamento estrutural entre o subsistema Jurídico e o

Político, por exemplo, é a Constituição, ao mesmo tempo decisão política fundamental (por

parte do Poder Constituinte Originário) e norma máxima do ordenamento jurídico interno

(CAVALCANTE FILHO, 2014, p. 14). No presente trabalho, considerando-se, como já

exposto, para fins de clareza argumentativa, a Saúde como um subsistema autônomo, dotado,

também, de códigos próprios (ao nosso ver, bem-estar/mal-estar, seguindo definição ampla da

Organização Mundial de Saúde – OMS), a interseção, em primeiro plano, entre Saúde e

Page 72: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

72

Direito poderia também ser considerada a Constituição, uma vez que a Carta Magna

estabelece, muito além de regras, também princípios, diretrizes e objetivos relacionados ao

sistema de Saúde. Constitui o estatuto jurídico dos prestadores de assistência à saúde e os

objetivos dos aplicadores do direito quando da efetivação desse direito.

2.2 Degeneração do sistema social: as interferências destrutivas

Entretanto, uma relação excessivamente intrincada entre os subsistemas pode levar à

desordem social, de modo que o agente de coesão do sistema global – o acoplamento

estrutural por meio da abertura cognitiva entre as partes – pode se revelar, se em exagero, um

elemento tão destrutivo quanto o excesso de especialização e consequente fechamento entre

os subsistemas: os chamados ―intrincamentos‖ bloqueantes e destrutivos (NEVES, 1995, p.

331).

Se a abertura cognitiva pressupõe influências construtivas entre os subsistemas sociais,

o ―intrincamento‖ seria mecanismo de interferência destrutiva, mesmo de corrupção entre os

referidos âmbitos. No caso do acoplamento estrutural, garante-se a coesão entre as esferas do

social por meio de processo de assimilação, sem que um subsistema corrompa o código do

outro: ocorre a autopoiese (para utilizar a nomenclatura de Luhman), processo no qual um

subsistema assimila as influências dos demais, ―traduzindo-as‖ para o próprio código,

incorporando-as, portanto, ao próprio ―patrimônio‖. (CAVALCANTE FILHO, 2014, p. 16)

Por outro lado, quando se trata dos referidos intrincamentos, ocorre a degeneração da

coesão do sistema global por meio da interferência destrutiva de um código sobre outro

(alopoiese, na nomenclatura proposta por Marcelo Neves). Assim, quando a interseção entre

sistemas ocorre de forma excessiva, um sistema coloniza o outro, corrompendo seu código e

minorando-lhe perigosamente a autonomia.

Em nossa abordagem da Saúde como um subsistema social, haveria uma corrupção do

direito pelo subsistema de assistência à saúde, quando a implementação de direitos se

subordinasse unicamente à opinião dos profissionais de saúde. Por outro lado, há uma

corrupção do sistema de proteção à saúde pelo direito quando decisões de aplicadores

jurídicos substituem a análise técnica de profissionais de saúde.

2.3 Modernidade periférica e predominância da alopoiese

Page 73: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

73

Como dito, é com o aumento da complexidade que o sistema social passa a se

desmembrar em subsistemas, e foi nesse contexto que o subsistema jurídico assumiu a atual

forma de Direito Positivado, autônomo em relação a outros âmbitos da sociedade – em

especial, em relação a outras esferas normativas, como moral e religião –, deles não deixando

de receber influências, mas assimilando estas por meio da sua ―tradução‖ ao código jurídico

do lícito/ilícito.

Tal ocorrência é mais clara nas sociedades que tiveram seu sistema jurídico

desenvolvendo-se de acordo com a evolução do todo. É o caso da Europa, em que o

surgimento do Direito Moderno é marcado pela passagem de um panorama de ausência de

fontes oficiais do Direito para um ordenamento codificado, acompanhado da emancipação da

política em relação à religião e à moral. Todavia, nas sociedades periféricas, de

desenvolvimento tardio de instituições próprias, o que se verificou, predominantemente, foi a

imposição de um modelo externo de ordenamento jurídico, geralmente já na fase pós-

codificação. Desse modo, nessas regiões, o Direito já aflorou sob sua forma ―moderna‖, sem

haver a coincidência com o processo de autonomização dos demais âmbitos sociais.

(ADEODATO, 2002, p. 113 e ss.)

Logo, era de se esperar que, em sistemas sociais florescidos sob essas condições, a

coesão social, ao menos no âmbito institucional, restasse prejudicada. É o que se verifica,

efetivamente, no Brasil, cujo Direito já ―nasceu moderno‖, imposto pelo colonizador

português. A consequência de toda essa conjuntura é a maior dificuldade de se efetivar a

estrutura coerente e coesa dos subsistemas acoplados estruturalmente. Em vez de autopoiese,

têm-se, aqui, ocorrências comuns de processo alopoiéticos, em grau extremo e profundo,

caracterizando um quadro generalizado de interferências destrutivas e corrupções sistêmicas –

uma verdadeira miscelânea social. (NEVES, 1995, p. 321).

É nesse contexto que emerge a problemática da relação entre o Poder Judiciário

(âmbito jurídico, guiado primordialmente pelo código lícito/ilícito), os Poderes Executivo e

Legislativo (guiados, predominantemente, pelo código político de poder/não-poder e pelo

mérito administrativo) e o Sistema de Saúde (especialmente o público, guiado pelo código

bem-estar/mal-estar), sendo que este último polo reside em verdadeiro ―fogo cruzado‖ entre

os dois outros vértices do triângulo.

Page 74: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

74

3 PROTAGONISMO JUDICIAL NO BRASIL: ATIVISMO JUDICIAL OU

JUDICIALIZAÇÃO?

No referido contexto de ―miscelânea alopoiética‖ em que o Brasil se encontra,

regularmente podem-se verificar interferências mais ou menos destrutivas entre os

subsistemas sociais. Dentre elas, a que mais vem recebendo destaque é a contínua corrupção

sistêmica (às vezes, recíproca) entre Direito e Política, tendo como pano de fundo as também

frequentes interferências entre os Poderes da República.

Se, na década de 1990, a maior quantidade de ―intrincamentos‖ era verificada entre os

poderes Executivo e Legislativo, tendo como principal instrumento de corrupção sistêmica a

figura das Medidas Provisórias, nos últimos anos (inclusive devido a significativas mudanças

nas disposições jurídicas relativas às MP‘s) o foco foi deslocado para a relação entre o

Judiciário e os demais poderes.

Seja por modificações estruturais que permitiram um maior acesso da população à

Justiça, seja por ineficiência administrativa e legislativa que alçaram o recurso ao Judiciário

como última tentativa de efetivação de prestações do Estado frente aos indivíduos, ou ainda

por postura deliberadamente ativa dos juízes e tribunais, constata-se a presença de fatos e

disputas que remetem à ocorrência do chamado Protagonismo Judicial.

Muito tem sido escrito sobre o tema, mas preponderam visões ideológicas, além de

críticas mais morais que políticas e jurídicas sobre o tema. Entretanto, para compreender

melhor o problema que ora levantamos, mais útil que juízos de valor acerca do protagonismo

judicial é uma análise metódica, mais detalhada e aprofundada acerca do fenômeno.

Síntese dessa posição analítica encontra-se no agrupamento da realidade fática da

atuação do Judiciário brasileiro em dois ramos, seguidos da diferenciação entre estes: de um

lado, o ativismo judicial, em que, como o próprio nome já indica, a Justiça toma a iniciativa

de expansão, adentrando, muitas vezes de forma excessiva ou imprudente, ao nosso ver, em

esferas outras da estrutura social, utilizando-se de estratégias de protagonismo que serão

detalhadas mais à frente, neste artigo, e muitas vezes sobrepondo o código do lícito/ilícito ao

código do subsistema social ―invadido‖. Sob outro ângulo, o protagonismo judiciário pode se

expressar sob a forma da judicialização da política, em que se pode falar, também, em

interferência (destrutiva, por vezes), do âmbito jurídico sobre outras esferas sociais, mas desta

feita sem caráter necessariamente ativo por parte do Judiciário. Em outras palavras, o

fenômeno da judicialização é contextual, contingente, e ocorre devido a uma conjuntura que

Page 75: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

75

pede ação mais firme do Poder Judiciário, seja por inércia dos demais poderes, seja por outro

fator mais associado a um maior acesso à Justiça por parte da população (BARROSO, 2012).

Dito isso, conclui-se que se referir a qualquer situação de protagonismo judicial no

Brasil por meio do termo ―judicialização‖ constitui reducionismo, imperfeição teórica que

pode gerar consequências práticas em relação ao trato com a matéria e com as medidas a

serem tomadas.

O mesmo deve ser dito em relação à Saúde. Obviamente, o maior número de casos

observados em que pendências e conflitos relativos à prestação do serviço de saúde são

levados ao âmbito do poder judiciário enquadra-se no conceito de judicialização, por ser

geralmente fruto da inércia dos demais Poderes da República em cumprir as determinações

constitucionais e legais.

Se o Legislativo é ineficaz em editar normas que concretizem os princípios, diretrizes

e regras gerais estabelecidos na Constituição acerca do Direito Social à Saúde, ou o Executivo

não implementa políticas públicas para eficiência e universalização da garantia do direito à

saúde, e os prejudicados (pessoas que deveriam ser destinatárias dos serviços de Saúde, mas

não o recebem com qualidade ou sequer o recebem minimamente) recorrem ao Judiciário

como meio de obter, do Estado, a prestação a que têm direito, pode-se, seguramente, falar em

judicialização da Saúde.

Todavia, situações há em que o Judiciário, além de conferir ele mesmo impulso às

demandas, apresenta soluções que invadem o mérito administrativo (prerrogativa da

administração pública), contrariam outras leis (leis orçamentárias, por exemplo) e até mesmo

a própria Constituição Federal. Ora, há de se entender que os direitos sociais (prestacionais)

têm custos que impedem a implementação de todas as políticas públicas necessárias à

consecução de todos os aspectos de cada um deles, simultaneamente, e a vinculação de

recursos para o cumprimento de mais uma prestação pode comprometer a execução, por parte

da Administração Pública, de políticas de implementação de outros direitos.

Percebe-se, assim, que há dois fenômenos associados ao protagonismo judicial na

efetivação do direito constitucional à saúde. Um, ligado a uma necessidade de atuação para

suprir lacunas de efetivação atribuíveis a outros poderes. Outro, relativo a um ativismo

judicial que pode prejudicar inclusive a própria assistência à saúde, por interferir

negativamente na autonomia do Sistema de Saúde.

Portanto, ainda que seja maioria dos casos, seria prejudicial denominar ―judicialização

da saúde‖ todo e qualquer fenômeno relativo à interferência do sistema jurídico sobre o

sistema de Saúde, sob pena do equívoco de incluir, no mesmo âmbito, o ativismo judicial,

Page 76: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

76

com consequências diretas sobre a maneira de lidar com o fenômeno (prescrições acerca dessa

maneira de tratar o protagonismo judicial no âmbito da prestação dos serviços de saúde serão

elencadas ao fim deste artigo).

4. DIREITO À SAÚDE: CARACTERÍSTICAS, CLASSIFICAÇÃO E NATUREZA

4.1 Eficácia mediata ou imediata dos direitos sociais?

Com a positivação do Direito, os Direitos Humanos, antes considerados uma ordem

supra-normativa de direitos (direito natural, seja qual for sua corrente), passaram a ser

inscritos expressamente em ordenamentos jurídicos. Entretanto, tal ocorrência se deu

paulatinamente, acompanhando a própria evolução, em gerações ou dimensões, dos direitos

fundamentais (direitos humanos positivados).

Sendo assim, quando atingida a segunda geração dos direitos fundamentais, tomou

parte uma realidade peculiar. Positivados os direitos fundamentais de primeira dimensão,

relativos à proteção do indivíduo frente ao Estado, com vistas à limitação do poder deste

(liberdade, segurança jurídica, igualdade formal, propriedade, entre outros, além dos direitos

políticos), verificou-se uma rápida aplicação, denotando grau elevado de efetividade dos

referidos postulados. Ora, para serem seguidos, tais direitos fundamentais exigiam

predominantemente do Estado as chamadas ―prestações negativas‖, ou seja, abstenção,

condutas omissivas em relação aos cidadãos (não matar, não violar a propriedade, não

proceder a julgamentos arbitrários). (SCHÄFER, 2013)

Todavia, quando atingido o segundo patamar da evolução dos direitos fundamentais,

ligado aos direitos sociais, que estabeleciam, ao Estado, obrigação de ―prestações positivas‖

frente aos cidadãos, com vistas à qualidade de vida, ao bem-estar e à busca da igualdade

material (não mais meramente formal) entre os indivíduos, constatou-se dificuldade muito

mais premente na efetivação dessas premissas, pelo simples fato de que a imposição ao

Estado, pelo ordenamento jurídico, de prestações, condutas comissivas, a serem implantadas

por meio de políticas públicas, implicava maior complexidade nas ações a ser realizadas e em

maior mobilização da estrutura estatal.

Diante desse cenário, surgiam tentativas teóricas de limitar ou amenizar a imposição

que os direitos fundamentais de segunda geração faziam à administração pública,

capitaneadas pela corrente defensora da eficácia mediata dos direitos sociais (em oposição à

citada eficácia imediata dos direitos de primeira dimensão). Aliado a isso, há o argumento de

Page 77: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

77

suporte fático de que a efetivação dos direitos sociais depende da quantidade de recursos

materiais disponíveis para que o poder público ponha em prática as políticas necessárias à sua

consecução.

Todavia, a igualdade formal, isolada no ordenamento e proporcionada pela efetivação

dos direitos de primeira dimensão, sem a ―companhia‖ da igualdade material, não se fazia

justa; os desníveis sociais entre as diversas classes comprometia o exercício dos próprios

direitos negativos. Que liberdade poderia exercer um indivíduo preso a condições degradantes

de vida? De que segurança jurídica poderia se valer, ou que participação política poderia

exercer um cidadão que não visse respeitada, em mínima escala, sua dignidade como pessoa?

Como podia-se afirmar que o Estado garantia o direito à vida, se morria-se de fome por conta

da má distribuição, muitas vezes de responsabilidade do próprio Estado, dos recursos

materiais da sociedade?

Percebeu-se, então, que a ideia de eficácia mediata dos direitos sociais comprometia a

própria e tão propalada eficácia imediata dos direitos de primeira geração. Criou-se, então, o

arcabouço para a atualmente mais aceita visão acerca dos direitos de segunda dimensão –

possuem eficácia imediata, devendo situar-se em equilíbrio perante duas fronteiras: não

devem ser tão negligenciados a ponto de permitir que os indivíduos sucumbam perante

condições materiais degradantes e que comprometam a dignidade da pessoa humana (teoria

do mínimo existencial), mas também não podem ser exigidos de maneira a não observar as

condições materiais disponíveis para que o poder público realize a implementação de políticas

a eles voltadas (teoria da reserva do possível).

Embora se possa dizer que tal posição procedeu a uma importante síntese acerca do

tema, deve-se atentar para as apenas aparentes simplificação e resolução da discussão. Ocorre

que a definição de mínimo existencial para todos é complexa e de difícil concretização, pois,

historicamente, o que se considera ―mínimo‖ segue padrões variáveis, contingentes. Além

disso, muitas vezes o mínimo existencial pode ser garantido de maneira geral, mas não

universal.

Há, também, o óbice de que pode haver situações concretas em que os recursos

necessários para se garantir mesmo o mínimo existencial a todos estejam além de qualquer

disponibilidade de recursos, o que dificulta por demais a garantia de tal patamar aos

indivíduos, por mais disposta que esteja a administração pública a concretizá-la.

Por fim, deve-se levar em consideração que o outro extremo (reserva do possível) vem

sendo frequentemente utilizada como mero meio de escape à responsabilidade do Estado em

realizar prestações aos cidadãos, tornando-se, muitas vezes, um instrumento de volta à

Page 78: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

78

posição original de eficácia mediata dos direitos sociais (KRELL, 1999). É necessário

ponderar, além disso, se argumentos de ordem fática (mundo do ser) podem obstaculizar, a tal

ponto, a concretização de preceitos jurídicos, a obediência de mandamentos do ordenamento

jurídico, o respeito a direitos (mundo do dever-ser).

Nesse embate, vem ganhando bastante notoriedade a posição do Direito Fundamental

à Saúde – nitidamente de segunda geração (prestacional), leva a patamares elevados a tensão

entre eficácia imediata e reserva do possível, além de estar clara e intimamente ligado à

composição do mínimo existencial para uma vida digna dos indivíduos que compõem o

Estado.

4.2 Direito à saúde e caráter relativo dos direitos fundamentais

Assentada a ideia de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, não se pode

ceder à fácil tentação de simplificação, anunciando-se que todos eles devem ser concretizados

de uma só vez, e que a não concretização por completo gera responsabilização judicial do

administrador. Ora, além das limitações fáticas da reserva do possível que, embora não

vinculem a aplicação, a condicionam, e embora também as normas constitucionais não devam

se submeter, por completo, à dependência de normas legislativas infraconstitucionais para se

verem respeitadas, tem-se por óbvio a situação de dependência de alguns instrumentos

instituidores de direitos sociais em relação a condições exteriores ao texto constitucional.

Nesse sentido, BRANCO (2013, p. 154), afirma que

―Essa característica [aplicabilidade imediata] indicada pela própria constituição,

entretanto, não significa que, sempre, de forma automática, os direitos fundamentais

geram direitos subjetivos, concretos e definitivos (...)

Há normas constitucionais, relativas a direitos fundamentais, que, evidentemente,

não são autoaplicáveis. Carecem de interposição do legislador para que produzam

todos os seus efeitos. As normas que dispõem sobre direitos fundamentais de índole

social, usualmente, têm a sua plena eficácia condicionada a uma complementação

pelo legislador.‖

Seguindo esse raciocínio, percebe-se que, quanto ao direito à saúde, todos o detêm,

imediatamente. Entretanto, não se pode exagerar essa afirmação, assegurando que todos os

aspectos, mesmo os mais específicos, relativos a esse direito fundamental, devam ser

garantidos e concretizados imediatamente.

Em outras palavras, há dois tipos de pretensão em relação ao direito à saúde:

pretensões gerais, que encontram embasamento e legitimação diretamente no texto

Page 79: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

79

constitucional (pretensões gerais de atendimento e de acesso à dispensação de medicamentos

no Sistema Único de Saúde, por exemplo, uma vez que o próprio mandamento constitucional

assegura, diretamente, a universalidade), e pretensões específicas, que não se podem legitimar

diretamente a partir da incidência das normas constitucionais (na mesma linha semântica dos

exemplos anteriores, pretensão de obtenção, por meio do SUS, da dispensação de

medicamentos de alto custo para doenças crônicas raras, ou, como ocorrido recentemente no

estado da Paraíba, pretensão de que o Poder Executivo forneça recursos para a transferência

de pacientes para outras unidades da federação, dotadas de equipamentos e pessoal mais

preparados para o tratamento de determinado problema de saúde).

Perceba-se, a partir da própria exemplificação, o desnível de complexidade das

situações. Obviamente, em casos concretos, pode-se ter uma situação limítrofe, em que resta

impossível ou de alto grau de dificuldade a delimitação da fronteira entre pretensões gerais e

pretensões específicas. Tem-se consciência, também, do risco de se fazer uma classificação,

vez que toda ela implica em segregação e em simplificação que muitas vezes comprometem a

formulação de preceitos de ordem prática. Mas o que se deseja aqui é mais alertar para o fato

de que nem todas as pretensões de prestação, por parte do Poder Público, em relação ao

direito à saúde, são dotadas de aplicabilidade imediata, somente por se considerar tal direito

como fundamental.

Nesse contexto, é útil recorrer à lição de Canotilho (apud CIARLINI, 2013, pp. 36-

37), para quem é preciso atentar aos ―pressupostos de direitos fundamentais‖, uma vez que

―os direitos econômicos, sociais e culturais e respectiva proteção andam

estreitamente associados a um conjunto de condições – econômicas, sociais e

culturais (...). Considera-se pressupostos de direitos fundamentais a multiplicidade

de fatores – capacidade econômica do Estado, clima espiritual da sociedade, estilo

de vida, distribuição de bens, nível de ensino, desenvolvimento econômico (...) –

que condicionam, de forma positiva e negativa, a existência e proteção dos direitos

econômicos, sociais e culturais. Esses pressupostos são pressupostos de todos os

direitos fundamentais. Alguns deles, porém, como os da distribuição dos bens e da

riqueza, o desenvolvimento econômico e o nível de ensino, têm aqui particular

relevância.‖

Resta mais do que claro o caráter simplório da mera afirmação de ―aplicabilidade

imediata‖ do direito à saúde, sem se analisar as complexidades das situações concretas a ele

associadas.

Outro aspecto a ser destacado em relação à discussão aqui tratada é o argumento do

caráter absoluto do direito à saúde. Afinal, ―direito absoluto é uma contradição em termos‖

(CAVALCANTE FILHO, 2011), pois tal caráter conferiria a determinado direito o condão de

Page 80: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

80

se sobrepor a qualquer outro, de modo a se criar rígida hierarquia entre direitos fundamentais

(em violação ao pressuposto hermenêutico da unidade da Constituição). Em situações

concretas, surgirá a necessidade de afirmação de um direito sobre outro, a ser regida pelo

juízo de proporcionalidade, mas disso criar-se uma regra rígida, aplicável a todas as demais

colisões entre direitos, é negar a essência do conceito de ―direitos fundamentais‖ (ALEXY,

2012, p. 94). Além do mais, se o próprio direito à vida, ao qual está intimamente ligado o

direito à saúde, é alvo de limitação (art. 5º, XLVII, a), por que não haveria de sê-lo este?

É necessária, aqui, a ressalva de que as limitações dos direitos fundamentais devem,

necessariamente, ter base no enfrentamento com outros valores de ordem constitucional, ou

no juízo de proporcionalidade associado a esses valores, sob pena de, caso contrário, ter-se a

limitação de direitos ditos fundamentais por outros fatores que o ordenamento jurídico não

elegeu como essenciais à sociedade (ALEXY, 2012, p. 98).

Por outro lado, além do seu caráter relativo, a efetivação do direito à saúde torna-se

mais complexa pelo fato de que, nem sempre, os impedimentos à sua execução advém do

conflito com outros direitos. Em vasta gama de situações concretas, mandamentos judiciais de

prestações do Estado perante alguns indivíduos constituem prejuízo a prestações do Estado

perante outros indivíduos, no âmbito do mesmo direito. É o caso de determinação judicial

para subvenção total de medicamentos de alto custo para tratamento de doenças crônicas

raras, que não raramente desloca recursos de outras áreas da saúde, acarretando prejuízos, por

exemplo, na dispensação de medicamentos de uso corrente ou na aquisição de materiais

essenciais à realização de procedimentos na área.

Mais uma vez, restam rebatidas, ao nosso ver, as teses de aplicabilidade imediata do

direito à saúde em todos as possibilidades e do caráter absoluto do direito à saúde perante

outros direitos.

5 DIREITO À SAÚDE E A RELAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS SOCIAIS

5.1 Reserva do possível: outra simplificação indevida

Além da análise simplista rebatida anteriormente, o outro lado da discussão também

traz simplificações constitucional e metodologicamente inadequadas. O argumento,

largamente utilizado pela administração pública, para negar prestações à sociedade no âmbito

Page 81: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

81

do serviço público de saúde, de ausência de recursos materiais, é, se usado em exagero, além

de cientificamente inadequado, juridicamente falso e moralmente reprovável.

Cientificamente inadequado porque não se pode conceber a utilização inaudita de

situações fáticas como argumento para a não implantação de mandamentos e prescrições que

visam modificar a realidade fática. Em outros termos, não se pode utilizar de proposições da

ordem do ―ser‖ – realidade concreta – para negar a aplicação de preceitos da ordem do

―dever-ser‖ – normas – que visem, exatamente, a modificar a própria realidade concreta, que

se está usando como ―escudo‖. Se faltam recursos para concretização de direitos

fundamentais, que a administração pública trate de encontrar meios administrativos (aumento

da captação de recursos, transferência de recursos de áreas menos essenciais, melhor

planejamento orçamentário) de sanar o problema, de modo a cumprir os mandamentos

constitucionais e legais.

Derivada disso, tem-se a falsidade jurídica do argumento, visto que, recordando-se a

diferença entre a aplicação do princípio a particulares e à administração, há de se relembrar

que, enquanto ao particular é dada a prerrogativa de exercer o que é expressamente permitido

e o que não é proibido pelas normas do ordenamento jurídico, à administração não é conferida

tal liberdade, devendo ela limitar-se a exercer o que está previsto em norma. É o que se

costuma chamar de estrita legalidade da administração pública. Logo, tem-se, por óbvio, que,

se não se pode cobrar da administração a concretização imediata e simultânea de todos os

aspectos inerentes aos direitos fundamentais, também não é coerente afirmar que a

administração poderá se eximir de suas obrigações prestacionais, resumindo tudo à mera

reserva do possível. Portanto, conclui-se que o argumento da reserva do possível pode mesmo

limitar a aplicação imediata de direitos fundamentais, em alguns aspectos e de maneira

parcial, mas jamais impedir (totalmente, portanto) a concretização desses mandamentos

(KRELL, 1999).

Por fim, a questão moral, premente nos discursos políticos e do senso comum da

sociedade, nos leva a questionar a má distribuição dos recursos entre os âmbitos das políticas

públicas. Se o poder constituinte elegeu determinadas áreas como fundamentais, elas devem

ter prioridade na captação dos recursos, em relação a áreas menos relevantes do ponto de vista

constitucional e legal. Entretanto, como será aprofundado adiante, tal questionamento

localiza-se mais na esfera do planejamento orçamentário, exigindo mais atenção sobre planos

e leis a ele inerentes, do que propriamente na seara do questionamento judicial de aspectos

relativos ao serviço público de saúde.

Page 82: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

82

5.2 Políticas públicas para a Saúde e reserva do possível: interferência entre Direito e

Política

Desse modo, pode-se inferir que o argumento político da reserva do possível,

incorporado ao código jurídico por meio da doutrina e da jurisprudência, em especial do

Direito Constitucional, se usado em excesso, além de transpor a fronteira do sistema do

Direito, constituindo-se como essencialmente político, corre o risco de tornar-se antijurídico,

nos termos do tópico anterior deste artigo.

Especificamente na análise das relações entre Direito e Política, é possível estabelecer

indicadores qualitativos e empíricos de interferência sistêmica alopoiética da política sobre a

construção da argumentação no âmbito do judiciário CAVALCANTE FILHO (2014, p. 40 e

seguintes). Dois dos indicadores enquadram-se perfeitamente ao caso aqui em estudo:

transformação de argumentos políticos em argumentos jurídicos e utilização direta de

argumentos políticos para conclusões jurídicas.

Isso porque

―Logicamente, é impossível distinguir totalmente argumentos políticos de

argumentos jurídicos. Contudo, ao se reconhecer (algo que aqui se pressupõe) o

caráter autopoiético dos sistemas jurídico e político (aqui, especialmente do sistema

jurídico), é possível analisar os códigos binários predominantes em cada argumento,

de modo a classifica-lo como eminentemente político ou eminentemente jurídico.

Além disso, o conteúdo da argumentação – inclusive quanto às fontes utilizadas –

pode servir para identificar a natureza do argumento. (...)Mais um indicador de

influência política é a utilização direta de argumentos políticos para fundamentar a

decisão jurídica. Aqui se tem um indicador ainda mais forte que a mera

transmutação de argumentos jurídicos em argumentos políticos. Realmente, a

transformação de um argumento em outro significa que o julgador, a partir de um

juízo político-moral, constrói um argumento jurídico.‖

Portanto, infere-se que o uso de um argumento fático, de natureza política, para

justificar negativas reiteradas a prestações constitucionalmente estabelecidas constitui-se

indicador forte corrupção sistêmica entre a política e o Direito, e deve ser combatido.

A má distribuição de recursos orçamentários ou a não disponibilidade de previsão

orçamentária para determinadas prestações relativas ao serviço público de saúde estão, muitas

vezes, mais ligadas a uma medição política de forças entre Parlamento e Executivo, ou

mesmo entre membros do próprio Poder Legislativo. E disso não pode resultar negação a

mandamentos jurídicos, sobremaneira em se tratando de mandamentos acerca de direitos

fundamentais.

Não se diga que o Direito brasileiro não reconhece as limitações da reserva do

possível, mas tal argumento somente será coerente com o sistema jurídico se não passam a

Page 83: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

83

impedir, de maneira plena, como dito anteriormente, a execução de aspectos relativos ao

Direito à Saúde.

Por outro lado, há de se destacar que, se a reserva do possível não poderá limitar, de

maneira total, a concretização desse direito, também é impossível negar a observância, em

situações concretas, de impossibilidade fática de execução de determinadas prestações

(limitação parcial, não caracterizada como global nem impeditiva) com base exatamente no

argumento da limitação de recursos materiais. E nada há de antijurídico nisso; reitere-se que a

corrupção sistêmica somente se verifica quando a negação com base na reserva do possível

passa a ser agente impeditivo, negação sistemática à concretização do direito à saúde.

Mas no presente cenário não é apenas a Política que invade o código jurídico: o

Direito, muitas vezes, vem, por meio do Poder Judiciário, inerferindo de maneira prejudicial

em âmbitos inerentes ao sistema político. Um exemplo já clássico é a invasão do mérito

administrativo – juízo de conveniência e oportunidade – com a substituição do juízo de valor

administrativo pela opinião pessoal do julgador.

Situações há em que o Judiciário toma as vezes de verdadeiro administrador e impõe,

diante de limitação de recursos, de que forma o capital disponível será investido – escolha que

deve fazer parte do mérito administrativo, privativo da Administração Pública. Também

prejudicial, essa corrupção sistêmica vem gerando situações de garantias de prestações a

determinadas pessoas em detrimento da garantia de prestações, relativas ao mesmo direito

fundamental, a outros indivíduos – obrigatoriedade de subvenção de medicamentos que

deslocam recursos e impedem a dispensação, que já vinha sendo realizada, de outros

medicamentos, por exemplo. Ora, tal decisão não cabe ao judiciário, visto que ele não detém

os meios necessários à análise completa da situação como o administrador possui. Cabe a este

decidir, entre alternativas, aquela mais conveniente e oportuna, de modo a satisfazer, da

maneira mais próxima à plenitude, o interesse público.

No pensamento de CIARLINI (2013, p. 29), a busca desmesurada pela universalidade

na prestação do serviço de saúde acaba por acarretar em mais restrições ao seu acesso:

―Em que pese a importância do estabelecimento de critérios de acesso universal à

saúde, no marco do Estado de Bem-Estar Social, tais diretrizes jurídicas e políticas,

quando transpostas para o mundo vivido e arrostadas por suas contingências

econômicas, financeiras, políticas e sociais, bem como pelas peculiaridades

burocráticas próprias da organização de tais processos de inclusão, acabam gerando,

não raras vezes, justamente o efeito contrário, potencializando e levando ao extremo

essas mesmas políticas como forma de exclusão social‖.

Page 84: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

84

Essa situação de possível corrupção sistêmica decorrente da atuação excessiva do

Judiciário é agravada quando se percebe que o sistema judicial brasileiro não dispõe, muitas

vezes, de instrumentos adequados à solução de controvérsias supraindividuais.

Com efeito, todo o sistema processual brasileiro é calcado na resolução de conflitos

individuais. Tudo se baseia, quase sempre, na busca individual do acesso á justiça, e da

resolução do tema de forma atomística. A busca pela solução de controvérsias de forma

supraindividual ou coletiva tem aplicação apenas marginal. Especificamente no que tange ao

direito à saúde, essa peculiaridade do sistema processual brasileiro potencializa um problema:

a priorização das soluções individuais em detrimento da análise da efetivação dos direitos

sociais (saúde, especificamente) de forma holística.

Portanto, no quadro de miscelânea social descrito no início deste trabalho, o direito à

saúde encontra-se em primeiro plano, por ser palco para interferências sistêmicas destrutivas

e, muitas vezes, indevidas, não só de um sistema sobre o outro, mas de maneira recíproca,

entre os sistemas jurídico e político.

5.3 Isolamento do judiciário em decisões relativas à saúde: fechamento (excessivo) do

sistema jurídico

Entretanto, além da excessiva abertura dos sistemas, proporcionando corrupção

sistêmica e problemas estruturais, como relatado no tópico anterior, o direito à saúde

presencia também outro obstáculo à sua concretização: o fechamento absoluto ou excessivo

do Poder Judiciário (do sistema jurídico, em termos mais amplos) em relação a outros

sistemas sociais importantes à consecução de tal direito.

Muitas vezes, não é apenas o conhecimento das condições materiais de orçamento que

falta aos órgãos julgadores; falta o conhecimento prático acerca de questões inerentes à

prestação dos serviços de saúde, de detalhes procedimentais e estruturais do sistema público

de saúde e de questões substanciais relativas à saúde pública. Como um julgador pode definir

o melhor investimento a ser feito entre dois medicamentos se, além de não ter sob seu

domínio conhecimento dos recursos a serem aplicados, ainda não dispõe de informações

consistentes acerca da eficácia de cada um dos produtos, urgência de tratamentos, necessidade

maior ou menor de determinado material, outros materiais pressupostos para a aplicação do

procedimento imposto? Um dilema muito comum é a ordenação de subvenção medicamentos

de poucas chances de eficiência (seja por gravidade da doença a ser tratada, seja por parco

desenvolvimento científico relativo àquele tema) que obriga o poder público a retirar recursos

Page 85: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

85

da subvenção de outros medicamentos essenciais e que apresentam maior índice de eficácia

no tratamento.

Conclui-se, portanto, que tão ou mais prejudicial que as interferências excessivas entre

os sistemas é o fechamento estrutural do sistema jurídico em relação às peculiaridades e

conhecimentos técnicos e científicos do sistema da saúde, e em relação à própria sociedade

civil.

Ademais, ressalte-se que há disposição legal que determina a participação da

sociedade na construção do Sistema único de Saúde, que, segundo a mesma disposição, dar-

se-á ―por intermédio das conferências e dos conselhos de saúde, sem prejuízo da criação de

outros mecanismos de participação da sociedade civil na gestão do sistema‖ (BRASIL, 1990).

Nos dizeres de CIARLINI (2013, p. 31), ―a participação social, nesse contexto, é de

primordial importância, pois fundamenta a ideia de pluralismo, em um ambiente democrático

participativo‖.

Ora, se a abertura à sociedade é pressuposto para o pluralismo democrático, conclui-se

que o fechamento do judiciário na formulação e decisão de questões relativas à saúde, além de

ilegal, é antidemocrático.

6 CAMINHOS INSTITUCIONAIS PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À

SAÚDE

6.1 Diálogos entre o sistema jurídico, profissionais de saúde e sociedade civil

Nos termos da legislação acerca de saúde no Brasil (leis 8080/90 e 8142/90), a

construção, gestão e manutenção do sistema público de saúde no Brasil têm, como um dos

fundamentos, tão premente quanto a ideia de universalização, a abertura do diálogo com a

sociedade civil. Nessa seara, foi passo fundamental a Recomendação nº 31, de 2010, do

Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A partir da constatação do grande número de ações judiciais relativas à assistência à

saúde, da ―relevância dessa matéria para a garantia de uma vida digna à população brasileira‖

e da carência de informações clínicas e estruturais prestadas aos magistrados a respeito dos

problemas de saúde enfrentados pelos autores das demandas, a referida recomendação instou

os tribunais brasileiros a adotarem medidas de subsídio aos juízes, de modo a assegurar maior

Page 86: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

86

eficiência na solução das demandas judiciais relacionadas à saúde, a exemplo do ―apoio

técnico de médicos e farmacêuticos às decisões dos magistrados‖ (BRASIL, 2010).

Entretanto, muito ainda há de ser feito. A efetiva implantação do referido apoio

técnico às decisões do Poder Judiciário deve vir acompanhada da efetiva implantação dos

demais mecanismos de diálogo com a sociedade civil, já previstos na legislação do início da

década de 1990 (legislação a qual, inclusive, destaca que o rol de institutos que visem a esse

diálogo não é, nem deve ser, ao nosso ver, taxativo).

Vale ressaltar que, numa atmosfera de protagonismo judicial, fala-se somente em

diálogo entre Judiciário e sociedade civil. Todavia, ressalte-se que esse diálogo deve referir-se

a todos os âmbitos do sistema público de saúde, abrangendo criação de institutos e gestão do

sistema, vinculando, portanto, também os Poderes Legislativo e Executivo – a necessidade de

abertura cognitiva em relação ao campo da saúde se estende a todo o sistema jurídico.

Esse diálogo, além de contribuir para a autonomização dos sistemas sociais envolvidos

na efetivação do direito à saúde, pode representar uma saída para o problema, já comentado,

da insuficiência do arcabouço jurídico-processual brasileiro para o tratamento de questões

supraindividuais ou coletivas. Realmente, a maior interação do Judiciário com profissionais

de saúde pode permitir ao julgador ter uma visão macro dos problemas, distanciando-se um

pouco da tendência a enxergar os pleitos judiciais de efetivação do direito à saúde apenas por

uma perspectiva individual-atomística.

6.2 Diálogos entre Judiciário e Executivo

A própria recomendação 31/2010 do CNJ reconhece, expressamente, que o problema

não está somente na relação entre Direito e sociedade. As relação entre âmbitos internos do

sistema jurídico também estão presentes quando tratamos de decisões judiciais acerca da

assistência à saúde. Tal relação fica suficientemente clara, em um de seus aspectos, pelo

trecho da recomendação:

―CONSIDERANDO as reiteradas reivindicações dos gestores para que sejam

ouvidos antes da concessão de provimentos judiciais de urgência e a necessidade de

prestigiar sua capacidade gerencial, as políticas públicas existentes e a organização

do sistema público de saúde‖ (BRASIL, 2010).

Resta clara a preocupação do eminente órgão de controle do Judiciário com o

problema anunciado no tópico 5.2 deste trabalho.

Page 87: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

87

Entretanto, invadir a esfera do mérito administrativo não engloba o fato de o Poder

Judiciário se contrapor à também aqui relatada prática da administração pública de tudo

simplificar em nome da reserva do possível.

Desse modo, somos do posicionamento que, quando negada, pelo poder público,

assistência à saúde nos termos das anteriormente definidas pretensões gerais, o Judiciário

deve intervir e impor a prestação estatal, visto que, do contrário, verificar-se-ia limitação

excessiva a um direito basilar do nosso ordenamento, justificada por mera situaçãoo fática

decorrente de imbróglios políticos – evita-se, assim, a interferência danosa de questões

extrajurídicas sobre enunciados jurídicos. Ainda ao nosso ver, mesmo quando deparando-se

com demandas judiciais acerca de pretensões específicas, a negação deve ser fundamentada

pelo poder público, visto, ainda assim, a negativa de direitos com base em argumentos fáticos

(mesmo os inerentes à reserva do possível) deverem constituir situação excepcional.

Obviamente, para que todo esse cenário se concretize, é imprescindível que, consoante

à preocupação demonstrada pelo CNJ, na recomendação aqui apresentada, o Executivo seja

ouvido antes de serem emitidas decisões impositivas de prestações relativas à assistência à

saúde.

Vale salientar, em adendo, que a posição aqui adotada pode ser verificada na

jurisprudência do próprio STF, no sentido de que decisões em sede de Mandado de Injunção

(instrumento de controle difuso de constitucionalidade, que visa a combater a não

concretização de prestações, sobretudo associadas aos direitos sociais, a que o Estado estaria

obrigado), se não têm natureza de mera recomendação, também não possuem caráter absoluto

e instantâneo de sanar a ausência da prestação requerida, pois, se assim o fosse, o judiciário,

mais uma vez, estaria tomando prerrogativas inerentes ao Poder Executivo.

7 CONCLUSÃO

Diante do dilema em que se encontra a assistência à saúde, atualmente, no Brasil, é

necessária uma postura analítica. Não se deve ceder à tentação de recorrer a simplificações,

que, muitas vezes, trazem consequências maléficas ao panorama institucional e, sobretudo, à

prestação do serviço de saúde – a delicadeza e gravidade do tema reforçam a necessidade do

cuidado analítico no seu trato.

Dessa forma, não é recomendado pender, sem discussão e reflexão aprofundados, a

qualquer um dos extremos que se abrem na discussão atual sobre a temática: nem o exagero

Page 88: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

88

de considerar o direito à saúde como absoluto, nem o uso banalizado e irrefletido de

argumentos fundados na reserva do possível.

Considerar um direito absoluto é abrir precedente para a redução irrefletida do âmbito

de aplicação dos demais direitos, enquanto a relativização do conjunto de direitos

fundamentais, por mais paradoxal que pareça, leva a maior ponderação e aplicação mais

coerente com a realidade dos preceitos ordenamento jurídico. Além disso, muitas vezes, as

demandas em sede da assistência à saúde geram conflitos não entre direitos fundamentais,

mas entre aspectos internos ao próprio direito à saúde, situação que reforça o caráter simplista

da afirmação da natureza absoluta do direito fundamental à saúde.

Por outro lado, negar, sistematicamente, prestações de assistência à saúde da

população com base na ausência de recursos materiais para sua execução é uma afronta a

preceitos jurídicos, relativos à obrigação do Estado de caminhar no sentido da efetivação por

completo dos direitos sociais, morais, derivados do mau planejamento e da má distribuição de

recursos orçamentários, e filosóficos, segundo os quais enunciados fáticos, pertencentes ao

mundo do ser, não devem ser deliberadamente usados para negar enunciados prescritivos,

integrantes do mundo do dever ser.

Para tal postura analítica, é necessário buscar, na teoria dos sistemas sociais e na

formação do Direito brasileiro num contexto de modernidade periférica, explicações para

aformação do aludido quadro institucional e social. É lá que encontraremos formas de

combater as interferências destrutivas entre os sistemas sociais, potencializadas quando se

trata concretização do direito à saúde, e o fechamento institucional do sistema jurídico quando

de decisões relativas à assistência à saúde – outra chaga a ser combatida, que compromete a

eficiência da atuação das diversas esferas sociais no sentido da concretização máxima do

direito social à prestação de assistência à saúde dos cidadãos: base de sustentação da

dignidade humana, do direito à vida e de tantos outros preceitos essenciais para o alcance de

uma sociedade mais justa e formalmente mais igual.

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica para uma teoria da dogmática jurídica. São

Paulo: Saraiva, 2002.

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2012.

Page 89: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

89

BARROSO, Luís Roberto. Direito e Política: a tênue fronteira. Disponível em

www.osconstitucionalistas.com.br. Acesso em 20/04/2014.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito

Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação 31/2010, de 30 de março de 2010.

Disponível em: www.cnj.jus.br. Acesso em 02/05/2014.

_____. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei 8080, de

19 de setembro de 1990.

_____. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei 8142, de

28 de dezembro de 1990.

CAVALCANTE FILHO, João Trindade. O Discurso do ódio na jurisprudência alemã,

americana e brasileira: uma análise à luz da filosofia política. Brasília: Instituto Brasiliense

de Direito Público, 2014.

_____. Roteiro de Direito Constitucional. Brasília: Grancursos, 2011.

CIARLINI, Alvaro Luis de Araújo Sales. Direito à Saúde: Paradigmas procedimentais e

substanciais da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2013.

KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha.

Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.

NEVES, Marcelo. Do pluralismo jurídico à miscelânea social: o problema da falta de

identidade da(s) esfera(s) de juridicidade na modernidade periférica e suas implicações na

América Latina. In: Revista Direito e Debate, volume 4, 1995. Disponível em:

https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/885. Acesso

em 28/04/2014.

SCHÄFER, Jairo. Classificação dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema

unitário – uma proposta de compreensão. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

Page 90: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

90

(DES) ASSISTÊNCIA À SAÚDE EM UMA PENITENCIÁRIA

FEMININA: DIREITOS FUNDAMENTAIS

Josilene do Nascimento Rodrigues1

Alanny Nunes de Santana2

Lívia Cristina da Silva3

Sumário: 1 Introdução. 2 Método. 3 Resultados e Discussões. 3.1 A Assistência à

Saúde da Mulher Presa. 3.2 A Assistência à Saúde na Penitenciaria Regional

Feminina de Campina Grande-PB. 4 Conclusões. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O sistema carcerário no Brasil é marcado historicamente por carências que vem

acumulando-se ao longo dos tempos, como os desgastes físicos e emocionais que são

agravados, ainda mais, pela precariedade estrutural (tais como superlotação, insalubridade),

além dos abusos de poder, violência, falta de assistência jurídica, negação de direitos,

precariedades que atingem a todos os corpos sociais presentes no ambiente prisional. Todos

esses elementos além de denegrirem a imagem/representação do sistema penitenciário

brasileiro também afetam o bem-estar dos apenados.

Assim, a prisão acaba sendo um espaço esquecido pelas políticas públicas, o que se

torna evidenciado até mesmo no que diz respeito a localização, pois as penitenciárias são

construídas nos bairros mais marginalizados, onde a presença do Estado é quase inexistente.

Desse modo, o Estado aparece quase que exclusivamente como fonte de punição,

comumente de forma desmedida, com exercício de uma violência exacerbada e sem o aval da

lei. Como expressa Wacquant (2001), os espaços prisionais revelam a verdade do Estado

neoliberal que se propõe a uma menor participação nos âmbitos econômicos e sociais, mas em

contra partida, uma maior investida na segurança direcionada apenas aos aspectos criminais,

de forma a tentar conter e ‗reparar‘ as consequências dessa menor participação do Estado na

vida da população. Onde o Estado- providência se ausenta e dá lugar ao Estado Penal.

Nesse sentido, o apenado sofre por viver em um "mundo" regido pelo esquecimento

tanto da sociedade como do Estado, destarte, diante desta questão Xavier (2010, p. 72) afirma:

"É possível dizer que o apenado no Brasil é punido duplamente: a primeira punição quando

1 Graduanda em Psicologia pela UFCG.

2Graduanda em Psicologia pela UFCG.

3Graduanda em Psicologia pela UFCG.

Page 91: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

91

sua sentença é selada nos Tribunais extramuros, [...] e a segunda e mais cruel lhe aguarda nos

intramuros dos famigerados cárceres de todo o País‖.

Conforme os dados do DEPEN do Ministério da Justiça os índices de encarceramento

no país aumentaram, onde de 2010 a junho de 2013, houve uma elevação de mais de 15% da

população prisional brasileira, passando de um total de 496.251 em 2010 para um total

de574.027 em 2013 (BRASIL, 2012).

O aumento expressivo da população carcerária também representa prejuízos e

agravamentos na condição de vida dos apenados, causando danos que vão para além da saúde

física atingindo também a psicossocial. Como é sabido, a prisão além de fragilizar o sujeito

em todos os âmbitos (psíquico, biológico, social, entre outros) negligência, muitas vezes, a

própria assistência à saúde, propiciando a negação de seus direitos, direitos esses assegurados

pelas legislações dos Direitos Humanos, pela Lei de Execução Penal (LEP), pelo Plano

Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), bem como, pela Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988.

Assim, o acesso dos apenados a assistência à saúde está assegurado por leis

especificas, onde deve-se cumprir os preceitos constitucionais : ―a saúde é um direito de todos

e um dever do Estado.‖ Desse modo, é obrigação do Estado oferecer assistência material,

jurídica, à saúde, educacional, social, bem como religiosa (BRASIL, 1988).

Sendo firmado ainda nos artigos 10 e 14 da LEP, a assistência ao preso e ao internado

é dever do Estado, visando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade;

e a assistência à saúde do preso e do internado deve ser de caráter preventivo e curativo,

compreendendo também o atendimento médico, farmacêutico e odontológico (BRASIL,

1984).

Não obstante, caso o estabelecimento penal não esteja aparelhado para prover a

assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da

direção do estabelecimento. Levando em consideração a mulher encarcerada, percebe-se que

em relação à assistência a saúde, há maior atenção apenas no tocante ao acompanhamento

médico no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido.

Além disso, o PNSSP pauta a inserção da população penitenciaria no Sistema Único

de Saúde (SUS), garantindo a efetivação do direito a assistência à saúde do apenado. Percebe-

se a importância dada aos apenados, contudo não é realmente o que se efetiva, visto que paira

a negação, o preconceito e o descaso da sociedade e do Estado frente a essa população,

negligenciando os direitos dos mesmos.

Page 92: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

92

Um fenômeno bastante expressivo nos últimos tempos é o também crescente número

da população carcerária feminina. Na Paraíba, por exemplo, entre 2004 e 2012, o número de

mulheres encarceradas aumentou de 96 apenadas para 252, representando uma elevação de

mais de 38 % nessa população (BRASIL, 2012). Diante disso, segundo Jesus e Lermen (2013,

p. 02) o aumento da população feminina, expressa que a mulher "vem fazendo parte no

cenário atual marcado pela exclusão social e das relações sociais mediadas pela violência".

No tocante a esses dilemas, a mulher também inserida nessa realidade sofre bem mais,

visto que essa está colocada em um segmento historicamente descriminado, pautados pela

dominação masculina, afetando a sua saúde. Segundo Howard (2006), as mulheres sofrem

mais do que os homens, visto que elas além de terem uma assistência mais precária,

frequentemente adoecem mais. Desse modo, e sendo a mulher um sujeito visto pela sociedade

como mais vulnerável como então é manejada sua saúde no âmbito prisional?

Portanto, o presente trabalho visa evidenciar e discutir como e em que medida a

assistência à saúde está sendo prestada às mulheres que se encontram em regime fechado na

Penitenciaria Feminina de Campina Grande localizada no Estado da Paraíba, realizando uma

comparação com os preceitos assegurados pelo Plano Nacional de Saúde no Sistema

Penitenciário (PNSSP). Além disso, buscou-se destacar quais as dificuldades enfrentadas

pelas mulheres no cotidiano da prisão no que se refere à saúde.

Vale ressaltar que esta pesquisa é um fragmento retirado do Projeto de Iniciação

Científica que ainda encontra-se em desenvolvimento, intitulado Trajetórias e experiências de

mulheres presas: etnografia de uma Unidade Penal Feminina4.

Inicialmente, apresentaremos um breve panorama sobre a assistência à saúde da

mulher-presa, elencando alguns direitos concernentes a estas, bem como discutiremos os

aspectos mais importantes sobre a assistência à saúde na realidade da Penitenciaria Feminina

de Campina Grande-PB, concomitantemente uma comparação com os direitos oferecidos pelo

PNSSP. Por fim, apresentaremos também algumas falas das mulheres referente ao sofrimento

e as fragilidades proporcionado pela realidade prisional em sua saúde.

2 MÉTODO

4 Orientador: professor doutor Eduardo Henrique Araújo de Gusmão; bolsista: Lívia Cristina da Silva, e;

colaboradoras voluntárias: Josilene do Nascimento Rodrigues e Alanny Nunes de Santana.

Page 93: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

93

Este trabalho consiste na realização de um estudo descritivo de cunho qualitativo,

realizado através das experiências vivenciadas pelos pesquisadores na Penitenciaria Feminina

de Campina Grande-PB.

Para a investigação da temática utilizamos da técnica de entrevista do tipo focalizada,

na modalidade de grupos focais, de abordagem Etnográfica, com 18 mulheres (entre 20 e 70

anos) que cumprem pena privativa de liberdade na Penitenciária Feminina de Campina

Grande/PB. Vale ressaltar, que a coleta de dados iniciou-se após aprovação pelo comitê de

ética do Hospital Universitário Alcides Carneiro que envolvendo seres humanos. Geertz

(1989) afirma que através da abordagem Etnográfica é possível a maior valorização das falas

das participantes edas observações efetuadas em campo, valorizando assim a maneira pela

qualos indivíduosapreendemasimesmos, acondiçãoemquevivem, bem como suas atuações

dentro desse campo.

De acordo com Backes et al. (2001), o Grupo Focal é uma técnica de pesquisa

qualitativa que apresenta-se como uma fonte que amplia o acesso às informações acerca de

uma temática, além de possibilitar problematizações, trocas de ideias e construções de novas

concepções entre os participantes. Assim, a partir das falas foi possível obter informações

diversas que envolvem a assistência à saúde e as fragilidades decorrentes da realidade

presentificada.

No estudo também nos utilizamos do diário de campo a fim de destacar as

informações advindas da coleta. Segundo Minayo et al. (2007), o diário de campo é um

instrumento de apoio onde o pesquisador coloca suas percepções, questionamentos,

problemáticas e informações obtidas no cenário vivenciado. Na pesquisa realizamos também

observações espontâneas do local, que segundo Gil (1991), acontece quanto o pesquisador

observa o local de forma espontânea sem que haja uma relação de aproximação do

pesquisador com o cenário.

Além disso, para melhor organização e familiaridade com a temática, realizamos uma

pesquisa bibliográfica. Vale salientar, que nessa pesquisa a finalidade é a de perceber as

mulheres como agentes sociais, logo, nos propomos a dar voz as mulheres para conhecermos

mais acerca dos seus sentimentos e experiências frente a situação vivenciada.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

3.1 A ASSISTÊNCIA À SAÚDE DA MULHER PRESA

Page 94: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

94

Uma das problemáticas mais marcantes no sistema penitenciário diz respeito à questão

da saúde, que se configura no espaço prisional como uma das questões mais dramáticas.

Nesse ínterim, as condições das unidades penais além de maltratarem o apenado em vias de

privação de liberdade, o ferem e o desrespeitam em relação aos seus direitos já assegurados.

Causando assim a negligência aos direitos humanos, tanto por parte do Estado como por parte

da sociedade, por tratar-se de um cenário que é compreendido pelo meio social como sendo

lugar de "marginais", que concomitantemente não devem ter direitos efetivados.

O acesso da população prisional a ações e serviços de saúde é regularmente

determinado pela "Constituição Federal de 1988, pela Lei nº 8.080, de 1990, que regulamenta

o Sistema Único de Saúde, pela Lei nº 8.142, de 1990, que dispõe sobre a participação da

comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde, e pela Lei de Execução Penal nº 7.210, de

1984" (BRASIL 2005, p. 11). Neste sentido, todos devem ter garantida a efetivação de

assistência à saúde, não importando o fato de estarem encarcerados em uma penitenciária,

visto que é um direito constitucional o acesso à saúde.

Reconhecendo sua responsabilidade frente a essa necessidade e garantia de assistência

à saúde da presa, o Ministério da Saúde, em ação integrada com o Ministério da Justiça,

elaborou em setembro de 2003, o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário

(PNSSP), através da portaria 1777, que foi desenvolvido dentro de uma lógica de atenção à

saúde fundamentada nos Princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), atendendo aos

preceitos da cidadania conforme os Direitos Humanos (BRASIL, 2005).

Direcionando o olhar a situação das penitenciárias femininas Costa (2008, apud

Oliveira et al., 2009, p. 05), afirma que há agravantes, visto que não existe uma política

específica na prestação de assistência ao público feminino preso, nada que a "considere como

sujeito de direitos inerentes a sua condição de pessoa humana, e muito particularmente, ás

suas especificidades advindas das questões de gênero".

Não obstante, conforme Oliveira et al. (2009, p. 05), o que persiste no meio prisional

feminino é a omissão dos poderes públicos em prestar assistência à saúde, evidenciando a

ausência de políticas públicas que busquem suprir as carências nesse âmbito, tendo como

"justificadas pela falta de recursos materiais e humanos".

Além disso, neste cenário também se impera as diferenças de gênero, propiciando

mais sofrimento para a mulher presa, principalmente fragilizando a sua saúde. Segundo Jesus

e Lermen (2013), as mulheres presas estão em espaços de maior vulnerabilidade que os

homens presos. Assim, cerca de 25% das mulheres presas no Brasil estão em custodia em

locais inapropriados, onde em relação aos homens presos esta porcentagem cai para 13%,

Page 95: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

95

enfatizando a "urgência da garantia de dignidade no tratamento penal" (BRASIL, 2007, p.

32).

Nesse sentido, as péssimas condições do estabelecimento, como a superlotação,

espaços inadequados, falta de higiene, de lazer, violência, má alimentação, afetam a saúde das

mulheres, se configurando assim com um descaso da sociedade e do Estado. Muitas mulheres

adentram saudáveis no sistema penitenciário, de onde não saem sem serem afetadas por

alguma doença ou com sua saúde fragilizada (BRASIL, 2007).

A mulher presa, muitas vezes, adoece devido à situação de discriminação na

sociedade, até mesmo discriminação advinda do próprio seio familiar, tornando assim a

mulher carente de assistência em todo o âmbito biopsicossocial. No tocante a isso, é

fundamental a efetivação do acesso das mulheres presas à assistência a saúde, visto que elas

carecem de atendimentos que envolvem o âmbito da saúde mental.

Porém a realidade prisional é precária, atualmente os presídios brasileiros são

"bolsões" de infectocontagiosas, como tuberculose, bem como doenças como pneumonia,

DST/AIDS, hepatite, dermatose, hipertensão e diabetes (BRASIL, 2007). Diante disso, essas

doenças não só afetam as mulheres presas como também a sociedade em geral, visto que estas

podem ser adquiridas pelos funcionários penitenciários, familiares, entre outros.

São garantidos alguns direitos à mulher apenada: receber visita do cônjuge,

companheiro, parentes e amigos, em dias específicos, assegurado pela LEP (art. 41, inciso X);

direito ao pré-natal, assim que descoberta a gravidez, a presa deve ser transferida para uma

unidade prisional que possua assistência, equipe médica e estrutura qualificada para

acompanhamento dos 9 (noves) meses de gestação (pré-natal), na qual em parte deve

acontecer em uma unidade hospitalar do sistema penitenciário ou da rede de saúde pública

(Sistema Único de Saúde e conveniados); em 2009 de acordo com os artigos 83, par. 2º e 89

da LEP, os estabelecimentos prisionais destinados a mulheres devem possuir berçário e creche

para que os filhos possam permanecer com a mãe, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6

(seis) meses de idade (BRASIL, 1984; BRASIL, 2009).

Desse modo, percebe-se que muitos direitos, são oferecidos e assegurados por leis

especificas, porém a realidade, como a presenciada na Penitenciária Feminina de Campina

Grande-PB, mostra que o que se encontra na teoria nem sempre se efetiva na prática.

3.2. A ASSISTÊNCIA À SAÚDE NA PENITENCIARIA REGIONAL FEMININA DE

CAMPINA GRANDE-PB

Page 96: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

96

No tocante a assistência à saúde, nota-se que existe uma gama de leis específicas que

asseguram o direito à assistência à saúde no sistema penitenciário. Contudo, a prisão, por si

só, é um cenário que favorece a violação de direitos. Conforme Espinoza (2004, p. 78), ―o

cárcere é uma instituição totalizante e despersonalizadora‖, onde o sujeito que nela

presentifica-se sofre rupturas e perdas não somente na liberdade, mas também na autonomia,

causando bastante sofrimento o que afeta o bem-estar físico e psíquico.

No Complexo Penitenciário do Serrotão de Campina Grande-PB, onde há a

Penitenciaria de Segurança Máxima: capacidade 150, lotação 454; a Penitenciaria Regional

Masculino: capacidade 300, lotação 685; e a Penitenciaria Regional Feminino: capacidade 32,

lotação 81. Este conta com uma equipe composta por: um médico, um enfermeiro, dois

assistentes sociais, um dentista e uma psicóloga. E é contemplado com PNSSP, embora em

condições de precariedade.

A pesquisa ocorreu, especificamente, na Penitenciaria Regional Feminino de Campina

Grande-PB, e a partir dos resultados apresentados pela pesquisa, foi possível notar que o

acesso aos serviços de saúde é ainda precária, porém a assistência à saúde melhorou, devido à

implantação da Unidade Básica de Saúde, assegurada pelo PNSSP.

Nesse sentido, o atendimento e os serviços à saúde das reeducandas ainda é falha e

precária, sendo um dos fatores à superlotação da prisão, visto que a Unidade Básica de Saúde

que está situada dentro do Complexo atende todos os presidiários, havendo insuficiência nos

atendimentos, devido o elevado número de detentos, à escassez de profissionais de saúde, de

medicamentos e insumos. Uma das reeducandas afirmou: “o cuidado com a saúde da gente

aqui é mais ou menos, recebemos visitas de ginecologista, mastologistas, só não ainda de

dentistas e existem poucos materiais para melhor cuidar da gente” (L).

Por isto, é preciso que estes profissionais da saúde não fiquem no comodismo de nada

fazer, porque nada tem, visto que podem realizar um trabalho em Rede, como preconiza o

PNSSP, que essa equipe deve trabalhar articulada a redes assistenciais de saúde, onde têm

como atribuições fundamentais: Planejamento das ações; Saúde, promoção e vigilância; e

Trabalho interdisciplinar em equipe (BRASIL, 2005).

Uma fala bastante expressiva foi: "ainda é precário o atendimento a saúde, porque

ainda tem muito preconceito e estigmas dos profissionais da saúde e da sociedade” (M).

Tambémfalaram que ao ficarem doentes são encaminhadas para alguma Unidade Básica de

Saúde fora da prisão, visto que não há atendimento todos os dias na Unidade Básica de Saúde

que existe dentro do Complexo, onde percebem que a comunidade fica com medo e os

profissionais da saúde não querem atender.

Page 97: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

97

É notório, que o preconceito e o estigma inabilitam uma possível ressocialização, bem

como propicia o adoecimento e o sofrimento das mulheres presas, visto que elas precisam

sentir aceitas na sociedade, para superarem a situação vivenciada e buscarem caminhos

futuros melhores. Nesse ínterim, Goffman (1980, p.07) afirma que o estigma é "atributo

profundamente depreciativo", onde este inabilita o sujeito para a aceitação social integral.

As mulheres presas carregam o estigma por serem mulheres fora dos preceitos sociais,

na qual acabam sendo excluídas por toda a sociedade. Segundo Garcia (1998 apud Castilho,

2007, p. 38):

...a prisão para a mulher é um espaço discriminador e opressivo, que se expressa na

aberta desigualdade do tratamento que recebe, no sentido diferente que a prisão tem

para ela, nas consequências para sua família, na forma como o Judiciário reage em

face do desvio feminino e na concepção que a sociedade atribui ao desvio.

Além disso, percebe-se que a privação de liberdade adoece a mulher presa, visto que

ela tem suas peculiaridades e necessidades. De acordo com Howard (2006), as mulheres

sofrem um efeito desproporcional em relação à desassistência a saúde, além do mais, elas

geralmente são acometidas por mais problemas de saúde, precisando mais de assistência

médica que os homens.

Vale considerar também, os Estudos das Nações Unidas, de 2004 (apud Howard 2006,

p. 71) afirma que:

As presas mulheres tendem a sofrer física e mentalmente em graus e com severidade

que excedem, de longe, os presos ou as mulheres da população em geral. Parte disso

pode estar relacionada às razões pelas quais elas foram encarceradas; por exemplo,

dependência de drogas e problemas decorrentes de saúde. Outro fator é a maior

prevalência de abuso sexual e exploração das mulheres antes e durante o

encarceramento – problemas ginecológicos, HIV e outras doenças transmitidas

sexualmente, gravidez e parto ou aborto.

Contudo, a prisão é um mal necessário, como afirma Foucault (2006, p. 261) ―[...] ela

é a detestável solução, de que não se pode abrir mão‖. A situação carcerária é precária para

todos os reeducandos, entretanto a mulher sofre mais, estando em maior vulnerabilidade,

porque o sistema prisional não foi construído considerando as especificidades de gênero

(Brasil, 2007). Entretanto, deve-se refletir sobre essa problemática, percebendo que é

indispensável uma assistência à saúde especifica e especializada para atender a mulher-presa.

Uma detenta falou que: "a sociedade pensa que somos vagabundas, mas não tem

trabalhos para todos nós aqui, no artesanato só tem 12 de 70 mulheres, o resto fica dentro de

um quadrado, isto estressa” (J). Uma detenta concordou com a outra detenta dizendo que:

Page 98: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

98

“ficar dentro deste quadrado estressa” (A).

Assim, é importante notar que as condições de confinamento são essenciais para

garantir o bem-estar da presa, visto que o está preso "estressa", sendo o ócio um fator que

também prejudica a sua saúde. De acordo com Brasil (2005), as condições de confinamento

são determinantes para o bem-estar físico e psíquico, onde muitas detentas ao serem

custodiadas para os estabelecimentos prisionais trazem problemas de saúde, vícios e possíveis

transtornos mentais, que são pouco a pouco agravados pela precariedade do estabelecimento,

em relação à alimentação, a assistência á saúde e a moradia.

No que se refere a isto, o PNSSP, preconiza em uma de suas diretrizes que deve-se

"prestar assistência integral resolutiva, contínua e de boa qualidade às necessidades de saúde

da população penitenciária", bem como, assegura como ação complementar a atenção em

saúde mental "ações de prevenção dos agravos psicossociais decorrentes do confinamento"

(BRASIL, 2005, p. 15, 33).

Dito isso, percebe-se a desassistência que elas sobre no âmbito da saúde mental que

mesmo preconizado no PNSSP, não é efetivado na penitenciária. Assim, é fundamental

refletir e questionar sobre a ociosidade que estas mulheres são submissas, buscando manejar

essa situação. Bem como, é necessário perceber o sujeito para além da doença, percebendo-o

como um todo, integralmente, visto que o adoecer não é somente em âmbito biológico, mas

também psicológico.

De acordo com Colombaroli (2012, p. 04) "as políticas penitenciárias foram pensadas

pelos homens e para os homens", desse modo, as mulheres encontram-se situadas na (in)

visibilidade, na qual, muitas vezes, suas necessidades não são atendidas, havendo a violação

constante de sua dignidade.

Em relação à situação de mulheres que padecem de problemas psiquiátricos, é

evidente a carência de serviços médicos na penitenciaria e a falta de articulação com o sistema

de saúde o que resulta em diagnósticos inexistentes ou equivocados, prejudicando o quadro de

saúde mental já agravado pelas condições da prisão. Presas provisórias com problemas

mentais já identificados permanecem no regime destinado às outras presas, enquanto

aguardam a realização da perícia médica, que costuma levar bastante tempo para ocorrer.

Segundo Brasil (2007), mesmo havendo a determinação da medida de segurança na

modalidade de internação, muitas mulheres com problemas psiquiátricos são mantidas em

unidades prisionais diante da ausência de vagas nos hospitais de custódia e tratamento

psiquiátrico.

Page 99: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

99

Assim, perceber-se nessa realidade que não existe uma assistência especifica para

reeducandas que precisam ser assistidas devido problemas psiquiátricos, não tendo assim um

tratamento diferenciado. Desse modo, evidencia-se que a assistência médica e o acesso aos

cuidados que envolvem a saúde mental também são precários, onde a equipe de saúde não é

preparada para lidar com situações que abranjam problemas de âmbito mental.

Outro fato marcante que se evidencia nas falas das reeducandas relacionado à saúde é

a questão das drogas. Uma reeducanda afirma: “to nessa vida louca não quero mais não, mas

pela droga não saiu não, agente sente o vicio é danado, eu sinto saudade dos meus filhos, da

minha mãe, mas sinto saudade da droga, quando você fuma Deus sai de perto de você” (G).

Enquanto outra afirma: "O crack é tão peso, pesado que mesmo que digam que sua

mãe morreu você não quer saber, não quer sair da droga” (K).

Além disso, as falas das apenadas também evidenciam o efeito da abstinência gerada

pelo não consumo de drogas devido à privação de liberdade. Uma reeducanda afirma: "agente

ver coisas que não existe, tudo é o diabo que faz isso” (B). Uma delas afirma: "Você que não

usa droga não sabe o que corre nas veias não, a droga ainda me domina, tenho a vontade,

sonho com ela, me acordo com o cheiro dela” (T). Outra apenada expressa: "Se você não for

mais forte que ela, ela lhe derruba, no meu psicológico, eu penso assim eu tenho que ser mais

forte que ela” (S).

Nos discursos, percebe-se que não existe uma atenção sobre os efeitos da abstinência,

porém isto acomete a saúde das mesmas. Contudo, esse cuidado é assegurado pelo PNSSP,

como uma ação complementar da atenção em saúde mental, garantindo: "atenção às situações

de grave prejuízo à saúde decorrente do uso de álcool e drogas, na perspectiva da redução de

danos" (BRASIL, 2005).

Outra problemática que é verificada nos discursos diz respeito aos agravos

psicossociais que fragilizam a saúde, isso se mostra em relação às visitas familiares, visto que

a falta destas abalam psicologicamente as apenadas, sendo assim um efeito propiciado pelo

confinamento. Uma detenta relata: "não recebi minha visita... Castigo... Isso me deixa muito

triste...” (G). Nota-se o sofrimento expresso em seus rostos ao falarem do não recebimento

das visitas, a saudade que as consome e as deixam revoltadas e indignadas com a realidade a

que estão submetidas.

Também evidencia-se agravos à saúde em relação ao cotidiano do confinamento,

ficando expresso em uma fala de uma reeducanda: "a pior hora do dia é pela manhã porque

nos acordam... já acordo estressada” (J). Diante disso, o PNSSP vem assegurar assistência à

atenção em saúde mental, garantindo: "ações de prevenção dos agravos psicossociais

Page 100: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

100

decorrentes do confinamento" (BRASIL, 2005, p. 33). Contudo não é efetivado, evidenciando

novamente o descaso com problemas relacionados ao âmbito psicossocial e a saúde mental.

Notar-se em seus discursos que o fato de encontrarem-se em um quadrado já é algo

alarmante, onde o fato de ver-se privada é algo destruidor do ser, que aniquila o eu, logo,

fragiliza sua saúde.

Nas observações do espaço, percebeu-se a construção do berçário, sendo um avanço

para este espaço prisional feminino. Onde, acaba sendo efetivado o preceito dito pela LEP em

seu artigo 83, inciso 2o: "serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de

seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade" (BRASIL,

1984).

4 CONCLUSÕES

Com a efetivação de uma Unidade Básica de Saúde dentro da penitenciária,

assegurada pelo PNSSP, apesar das dificuldades como: superlotação, ausência de matérias,

medicamentos e falta de profissionais de saúde, o acesso à saúde melhorou bastante. Percebe-

se, assim que com a implantação do PNSSP, ocorreram alguns avanços frente à assistência a

saúde das apenadas.

Entretanto, ainda mostra-se necessário um olhar reflexivo frente ao estado das

mulheres presas, em relação a problemas atrelados a condição de confinamento, ao

preconceito e estigma, ao descaso com a saúde mental que estas sofrem, sendo um dos fatores

propulsores do adoecimento. Além disso, é necessária a ampliação de ações que possibilitem

à melhora das condições do encarceramento, promovendo estratégias de atenção à saúde, de

promoção de atividades, de lazer, e de inserção no mercado de trabalho.

Nota-se que algumas mudanças vêm ocorrendo no meio prisional em relação à

assistência a mulher presa grávida, contudo, todas as mulheres necessitam de assistência à

saúde, visto que todas tem a possibilidade de adoecer. Assim é necessária uma assistência à

saúde não somente priorizando o tratamento, mais também a prevenção.

Por fim, pode-se afirmar que a ausência de políticas públicas e de um sistema

penitenciário que leve em consideração as particularidades das mulheres presas e que não

reconheça que estas são sujeitos de direitos, compromete a qualidade de vida das mesmas,

transformando as instituições penais em depositários de pessoas, que está ali aguardando o

cumprimento de sua pena.

Page 101: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

101

REFERÊNCIAS

BACKES, Dirce Stein, et al. Grupo focal como técnica de coleta e análise de dados em

pesquisas qualitativas. O Mundo da Saúde, São Paulo: 2011; 35(4): 438-442.

BRASIL. Lei 7210/84 | Lei Nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução

Penal. Citado por 17116. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/109222/lei-

de-execucao-penal-lei-7210- 84. Acesso em: 23 abr. 2014.

______. Constituição da República Federativa do. 1988. Brasília: Senado Federal

Subsecretaria de Edições Técnicas, 2004. Disponível em:

<www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>. Acesso em: 23 abr. 2014.

______. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional- DEPEN. InfoPen.

dez, 2005. Disponível em:< http://portal.mj.gov.br/main.asp? View={D574E9CE-3C7D-

437A-A5B6-22166AD2E896}&Team=&params=itemID={C37B2AE9-4C68-4006-8B16-

24D28407509C}%3B&UIPartUID={2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26}>.

Acessado em: 21 abr. 2014.

______. Lei Nº 11.942, de 28 de maio de 2009. Dá nova redação aos arts. 14, 83 e 89 da Lei

no 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal, para assegurar às mães presas e

aos recém-nascidos condições mínimas de assistência. Disponível em:<

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11942.htm>. Acessado em: 23

abr. 2014.

______. Relatório Final de Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional

Feminino. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres,

2007. Disponível em:<

http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relatorio_final_reorganizacao_prisional_feminino.

pdf>. Acessado em: 22 abr. 2014.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações

Programáticas Estratégicas. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário / Ministério

da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas.

– 2. ed. – Brasília : Editora do Ministério da Saúde, 2005. Disponível em:<

http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cartilha_pnssp.pdf >. Acessado em: 22 abr. 2014.

______. Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil. Pastoral Carcerária; Conectas

Direitos Humanos e Instituto Sou da Paz. 2007. Disponível em:< http://carceraria.org.br/wp-

content/uploads/2013/02/Relato%CC%81rio-para-OEA-sobre-Mulheres-Encarceradas-no-

Brasil-2007.pdf>. Acessado em: 03 maio. 2014.

CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Execução da pena privativa de liberdade para mulheres: a

urgência de regime especial. Justitia, São Paulo, n. 64, p. 37-45, jul./dez. 2007. Disponível

em: < http://revistajustitia.com.br/revistas/w3137c.pdf>. Acessado em: 26 abr. 2014.

COLOMBAROLI, Ana Carolina de Morais. Violação da dignidade da mulher no cárcere:

restrições à visita íntima nas penitenciárias femininas. CNPQ. 2012. Disponível em:

Page 102: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

102

http://www.cnpq.br/documents/10157/e6cac230-4faa-42f7-a078-8abebaa4e2ec. Acessado em:

26 abr. 2014.

ESPINOZA, Olga. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. São Paulo: IBCCrim,

2004. 183 p.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. de Raquel Ramalhete. 31. ed. Petrópolis: Vozes,

2006.

______________ (1975 d) Os Anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2002.

GEERTZ, Clifford. ―Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura‖. In: A

Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. p. 13-41.

GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de

Janeiro: Zahar, 1980.

HOWARD, Caroline (Org.). Direitos humanos e mulheres encarceradas. São Paulo:

Instituto Terra, Trabalho e Cidadania; Pastoral Carcerária do Estado de São Paulo, 2006.

Disponível em: < http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2012/09/Livro-Direitos-

Humanos-e-mulheres.pdf> . Acesso em: 26 abr. 2014.

JESUS, Luciana Oliveira de; LERMEN, Helena Salgueiro. Mulheres e Políticas de Saúde

no Sistema Prisional do Rio Grande do Sul. In:Seminário Internacional Fazendo Gênero 10

(Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X. Disponível

em:<http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1386686774_ARQUIVO_Luci

anaOliveiradeJesus.pdf>. Acessado em: 24 abr. 2014.

OLIVEIRA, Hilderline Câmara de et al. Assistência a saúde à mulher - presa: um direito

negado. In: II SEMINÁRIO NACIONAL GÊNERO E PRÁTICAS CULTURAIS Culturas,

leituras e representações.2009, João Pessoa. Anais ... João Pessoa, 2009. Disponível

em:<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0C

CoQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.sigaa.ufrn.br%2Fsigaa%2FverProducao%3FidProd

ucao%3D1897343%26key%3D2b115d84a14810cb0539357238333eb5&ei=YX5cU5bdHNTT

sATsmoHABw&usg=AFQjCNG0-

yZ7HoFzInT8IDm_5kWEhnsryA&bvm=bv.65397613,d.cWc>. Acessado em: 21 abr. 2014.

SOUSA, Caroline Azevedo Visgueira. A Efetivação da Assistência à Saúde no Sistema

Prisional do Estado do Piauí. In: PLACITUM, Onde os profissionais do direito se

encontram. Teresina. Placitum, 2014. Disponível em:<

https://www.placitum.com.br/verbigratia/Artigo/32/a-efetivacao-da-assistencia-a-saude-no-

sistema-prisional-do-estado-do-piaui.html >. Acessado em : 22 abr. 2014.

XAVIER, A.R. Política criminal Carcerária no Brasil e políticas públicas, Ceará, p. 67-

74, 2010. Disponível em: <http://www.forumsegurança.org. br>. Acessado em: 20 abr. 2014.

WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

Page 103: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

103

A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE ATRAVÉS DO PROTOCOLO

DE ENTRADA DE BIOMATERIAIS DO CERTBIO/UFCG

A EFFECTIVE RIGHT TO HEALTH THROUGH THE PROTOCOL OF

BIOMATERIALS CERTBIO INPUT / UFCG

Carlos Alberto Oliveira Rodrigues1

Geanne Gomes de Moura2

Mariana Luz Silveira3

Sumário: 1 Introdução. 2 Direito fundamental à saúde. 3 CERTBIO. 4 Norma de

entrada de biomaterial. 5 A efetivação do direito à saúde. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Efetivar um direito é possível através da entrega de algo, da realização ou não de

alguma coisa. Ao se falar em Direito à saúde, inicialmente pensa-se em ações públicas que

possam garantir essa tal efetivação, contudo, a concretização especialmente desse direito

fundamental, depende também das ações de cidadãos e de entidades privadas trabalhando em

consonância com o Estado. Essas ações têm reflexo direto no completo bem–estar físico,

mental e social das pessoas, em outras palavras, repercute diretamente na saúde de cada

pessoa.

O presente artigo objetiva apontar que as reponsabilidades que possam efetivar o

Direito à Saúde não são apenas do Estado mas também de particulares como por exemplo as

ações do Laboratório de Avaliação e Desenvolvimento de Biomateriais do Nordeste –

CERTBIO ao instituir um rígido protocolo de entrada de biomatérias para análises em suas

dependências.

O artigo foi fruto de pesquisa bibliográfica utilizando o método dialético e

amoldurado pelas condutas éticas – jurídicas dos integrantes do Laboratório de Avaliação e

Desenvolvimento de Biomateriais (CERTBIO), na Unidade Acadêmica de Engenharia de

Materiais da Universidade Federal de Campina Grande (UAEMa/UFCG).

1 Especialista em Marketing pela UEPB; Engenheiro Eletricista pela UFPB; Bacharelando em Ciências Jurídicas

pela FACISA. 2 Bacharel em Ciências Jurídicas pela UEPB.

3 Bacharelanda em Ciências Jurídicas pela FACISA.

Page 104: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

104

2 DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

O direito à saúde foi colocado na posição atual, direito fundamental, devido a

Constituição de 1988. Os textos constitucionais anteriores abordavam o tema de forma

dispersa, como por exemplo, a garantia de ―socorros públicos‖ no art. 179 XXXI da

Constituição de 1824 ou da garantia da inviolabilidade do direito à subsistência exposto no

art. 113 caput da Constituição de 1934 (Sarlet,2008 p.127). Tal consagração foi fruto da

incorporação dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que

dispõe:

Artigo XXII

Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à

realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo

com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos,

sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento

da sua personalidade.

Artigo XXV

1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e

a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,

cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança

em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos

de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.

2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência

especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão

da mesma proteção social.

Além da incorporação dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos

de 1948, outros dispositivos protetivos à saúde influenciaram para alçar o direito à saúde no

Brasil como direito fundamental, dentre eles destacamos a Carta Social Europeia de 1965 e o

Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966(Mendes, 2013

pp.22-39).

Observa-se que o saúde torna-se o principal direito social elencado no art. 6º da

constituição de 1988 que assim dispõe:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a

moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade

e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

A constituição federal reserva a seção II do capítulo II do título VIII só para abordar o

direito à saúde que assim dispõe:

Page 105: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

105

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido

mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco

de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às

ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde,

cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua

regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser

feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física

ou jurídica de direito privado.

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede

regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único,

organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades

preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195,

com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.

(Parágrafo único renumerado para § 1º pela Emenda Constitucional nº

29, de 2000)

§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão,

anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos

derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: (Incluído pela

Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

I - no caso da União, na forma definida nos termos da lei

complementar prevista no § 3º; (Incluído pela Emenda Constitucional

nº 29, de 2000)

II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da

arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de

que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas

as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios;

(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da

arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de

que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.(Incluído pela

Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco

anos, estabelecerá:(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de

2000) Regulamento

I - os percentuais de que trata o § 2º; (Incluído pela Emenda

Constitucional nº 29, de 2000)

II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde

destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos

Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a

progressiva redução das disparidades regionais; (Incluído pela

Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com

saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; (Incluído pela

Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

Page 106: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

106

IV - as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela

União.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

§ 4º Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir

agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por

meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e

complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua

atuação. .(Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006)

§ 5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico, o piso salarial

profissional nacional, as diretrizes para os Planos de Carreira e a

regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e

agente de combate às endemias, competindo à União, nos termos da

lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao

Distrito Federal e aos Municípios, para o cumprimento do referido

piso salarial. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 63, de

2010)Regulamento

§ 6º Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do art.

169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções

equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de

combate às endemias poderá perder o cargo em caso de

descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu

exercício. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006)

Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma

complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste,

mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as

entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

§ 2º - É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou

subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.

§ 3º - É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou

capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos

previstos em lei.

§ 4º - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a

remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de

transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento

e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de

comercialização.

Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras

atribuições, nos termos da lei:

I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de

interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos,

equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem

como as de saúde do trabalhador;

III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;

IV - participar da formulação da política e da execução das ações de

saneamento básico;

V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e

tecnológico;

Page 107: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

107

VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de

seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo

humano;

VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte,

guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e

radioativos;

VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o

do trabalho.

Somando-se à previsão constitucional acima referida, encontramos a Lei nº 8.080, de

19 de setembro de 1990, chamada Lei Orgânica da Saúde, que dispõe sobre as condições para

a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços

correspondentes e dá outras providências. Dessa Lei destacamos os seguintes artigos:

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado

prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e

execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de

doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que

assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua

promoção, proteção e recuperação.

§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e

da sociedade.

Art. 3o Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do

País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a

alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a

renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens

e serviços essenciais. (Redação dada pela Lei nº 12.864, de 2013)

A vida é de fato o maior bem tutelado seja por normas constitucionais ou

infraconstitucionais acima citados, pois ao se garantir direito à saúde garante-se manutenção à

vida, vida com qualidade, vida com dignidade. Vê-se também que existe interdependência dos

direitos fundamentais de forma que o direito à saúde se dá também pela proteção a outros

direitos fundamentais.

É cediço que o maior responsável pela eficácia vertical dos direitos e garantias

fundamentais é o Estado. Contudo a efetivação plena do direito à saúde se dá também com a

sua eficácia horizontal, que implica na repercussão desses direitos nas relações de Direito

Privado.

Para corroborar com o acima exposto, analisemos a definição de saúde posta pela

Organização Mundial da Saúde – OMS durante a Introdução da Constituição da Organização

Mundial da Saúde e adotada pela Conferência Internacional de Saúde, realizada entre 19 a 22

Page 108: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

108

de junho de 1946 em New York, que diz:"Healthis a stateof complete physical, mental and

social well-beingandnotmerelytheabsenceofdiseaseorinfirmity."

Ora, se saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social e não só a

ausência de doença. O bem estar social implica em perceber que saúde para o homem requer

viver bem em comunidade, significa que o ser humano integra uma comunidade e encontra-se

socialmente vinculado ao cumprimento de certos deveres, não podendo exclusivamente só ser

responsável pela sua própria saúde (AITH,2013 p.270). Assim, não só o Estado é o único

responsável pela efetivação do direito à saúde, o cidadão também o é.

O exposto no art. 197 da Constituição Federal reforça a ideia que o cidadão também

é responsável pela promoção à saúde ao conclamar que pessoa física ou jurídica de direito

privado deve executar ações de serviço à saúde (LIMA, 2011 p. 183). Tal pensamento é

ratificado claramente no segundo parágrafo do artigo segundo da Lei 8.080 de 1990, ao

afirmar que o dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da

sociedade.

O professor Ingo Wolfgang Sarlet pontua muito bem que os deveres fundamentais no

que concerne à Constituição pátria são esquecidos, tendo em vista a concepção neo-liberal de

um Estado de Direito. Ele fala em ―hipertrofia dos direitos‖ ao se referir a valorização

exacerbada dos direito em detrimento aos deveres que acaba forjando um cidadão

individualista sem o comprometimento com a sociedade e seus semelhantes (SARLET, 2012

p.227).

O que abordamos aqui ao nos referirmos aos deveres fundamentais é em especial ao

dever do cidadão em proteger a saúde, respeitando as suas especificidades e limitações,não

esquecendo que existem outros deveres como o de votar; dever de pagar impostos;dever de

família por exemplo.

A efetivação do direito à saúde vai além do que afirmou o Ministro Gilmar Mendes

(MENDES, 2012 p. 698) ao dizer que são necessárias ações específicas e políticas públicas

para a redução do risco de doença. É necessário, além do que foi dito, a ação do cidadão com

medidas e comportamentos que visem a proteção e promoção à saúde, deixando de ser apenas

espectador e tornando-se ator juntamente com o grande protagonista o Estado.

Nesse interim aduz o Dr. Fernando Aith

A sociedade, por meio dos atores sociais mencionados, tem uma importância muito

grande na proteção da saúde das pessoas em geral. De um lado, a sociedade deve

dosar bem a forma como impõe certas condutas: na empresa, o trabalho excessivo;

na família, a alimentação inadequada; na sociedade como um todo, definições de

padrões estéticos e comportamentos nocivos à saúde, etc. (AITH,2013, p.273).

Page 109: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

109

É amparado nessa linha de pensamento que o professor Ingo Wolfgang Sarlet nos

alerta quanto a limitação da dimensão subjetiva de direitos e ressalta a importância e por

vezes a obrigatoriedade de se aplicar o princípio da proporcionalidade para assegurar que

todos os direitos fundamentais constitucionais estejam devidamente resguardados (SARLET,

2012, p. 231-232).

3 CERTBIO

O Laboratório de Avaliação e Desenvolvimento de Biomateriais do Nordeste –

CERTBIO – é entidade sem fins lucrativos, situada no município de Campina Grande,

Paraíba, e vinculada à Unidade Acadêmica de Engenharia de Materiais da Universidade

Federal de Campina Grande UAEMa/UFCG. Atua no desenvolvimento e avaliação de

biomateriais, como também na formação científica de acadêmicos da graduação e pós-

graduação, tanto em mestrado acadêmico, como em níveis doutorais e pós-doutorais.

O CERTBIO é um laboratório de caracterização de biomateriais, designado pela

Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA – para realização dos ensaios e das

análises laboratoriais, especialmente de natureza fiscal, estudos e pesquisas para avaliar a

qualidade dos produtos de uso em saúde, além de abranger atividades de pesquisas e

desenvolvimento de projetos em biomateriais.

Criado em 2006, o CERTBIO vem atuando, de forma destacada, na introdução de

conhecimentos em gestão da qualidade, desenvolvimento de produtos e avaliação tecnológica

de biomateriais, bem como no estimulo ao empreendedorismo, com direção prontamente

apontado para a política de saúde pública do país, tornando o acesso cada vez mais ampliado

da sociedade através do Sistema Único de Saúde – SUS – e contribuindo à dotação do país às

condições científicas e tecnológicas condizentes à competição global.

No seu primeiro triênio, o CERTBIO estabeleceu um marco em suas atividades, com

a chegada dos primeiros equipamentos obtidos pelo apoio do Ministério da Saúde/Fundo

Nacional de Saúde, passando a ser dotado de uma sólida infraestrutura capaz de realizar

ensaios de avaliação e caracterização de materiais e de produtos para uso em saúde, tendo

como público assistido toda a comunidade científica, órgãos governamentais, a exemplo da

Agência Nacional de Vigilância sanitária - ANVISA e do Ministério da Saúde -MS, ede

empresas privadas, bem como, firmando parcerias com empresas e instituições de abrangência

nacional e internacional.

Nessa progressão, o CERTBIO adentra seu terceiro triênio com notória solidez e

maturidade, elementos que, somados aos resultados acadêmicos, científicos e inovadores,

Page 110: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

110

consubstanciados por seus inúmeros procedimentos de pesquisas laboratoriais realizadas, suas

defesas de dissertação de mestrado e de teses doutorais, além da acolhida de vários

pesquisadores em níveis doutorais e pós-doutorais,além da implantação de políticas de

prospecção tecnológica e proteção à propriedade intelectual.

Nesse norte, consoante exposto abaixo, o CERTIBIO abarca, em sua nova e mais

visível expansão, quatro dimensões: ensino e pesquisa, extensão universitária,

desenvolvimento de produtos e residência médica, conforme descrições:

• Ensino e Pesquisa, como vocação principal, em níveis de Graduação e Pós-

Graduação (lato e stricto sensu), incluindo mestrados, doutorados e pesquisas pós-doutorais;

• Extensão Universitária, como agente de desdobramento social das atividades

ora ofertadas, expandindo, à comunidade, os benefícios resultantes das atividades acadêmicas

desempenhadas, por meio de instrução científica (cursos de extensão) e transferência

tecnológica;

• Desenvolvimento de Produto, como resultado de uma política gerencial que

visa a conversão da pesquisa pura em pesquisa aplicada, suportada por políticas de

prospecção, ainda nas fases iniciais de P&D, e proteção à propriedade intelectual em nível

patentário;

• Residência Médica, como mais uma porta de acesso ao incremento da missão

social de agregar base científica diferenciada, especialmente no que tange aos biomateriais,

para formação de médicos-cientístas, agentes propagadores dos avanços técnico-científicos

correlatos, com apontamento notório a toda a população de uma geral.

4 NORMA DE ENTRADA DE BIOMATERIAL

Para estabelecer e manter procedimentos que assegurem que as atividades de

planejamento e o controle do processo sejam realizados de forma imune à de quaisquer

pressões ou influências indevidas, foi elaborado o procedimento gerencial PG03 Análise

Crítica de pedidos, propostas e contratos. Nele, o laboratório identifica e planeja as atividades

que influenciam na realização da análise crítica de pedidos, propostas e contratos. Desde o

primeiro contato do cliente com o laboratório até a emissão do laudo técnico acerca do

biomaterial.

As solicitações de serviços pelos clientes podem ser realizadas via endereço

eletrônicowww.certbio.org ou na recepção do laboratório.

Page 111: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

111

Os dados dos clientes bem como as referências científicas dos biomatérias

correspondentes ficam armazenados em uma planilha de acesso restrito, chamada controle de

protocolo de amostras, sendo gerado número que identifica cada cliente, mantendo de forma

sigilosa os dados pessoais do mesmo. O técnico responsável pela análise técnica de cada

biomaterial não tem conhecimento da propriedade dessebiomaterial, restringindo-se apenas

aos aspecto técnicos e científicos da amostras avaliada.

Dessa forma o CERTBIO aplica políticas e procedimentos que asseguram a

confiança na sua competência, enquanto agente certificador autorizado pela ANVISA e pelo

INMETRO.De forma que as informações confidenciais são protegidas e, que os membros do

laboratório estejam livres de quaisquer pressões ou influências indevidas sejam elas

comerciais ou não. Essa proteção se estende desde o primeiro contato do cliente com a

instituição, passando pela entrada das amostras nos laboratórios até o envio dos resultados aos

clientes. Todo o procedimento é realizado por pessoal técnico capacitado autorizado e

responsável.

5 A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

O CERTBIO ao estabelecer procedimento normativo de entrada de biomatérias para

aferição em seus laboratórios está resguardando de forma preventiva a saúde, objetivando que

o biomaterial por ele certificado não venha a vilipendiar a saúde de qualquer pessoa, visto que

essa pessoa se servirá um produto, seja órtese ou prótese, criado a partir desse biomaterial.

Essa ação preventiva se dá através, como visto, de imposições de condutas e normas

proibitivas, materializando nitidamente o que apontou o professor Ingo Wolfgang Sarlet ao

falar sobre a limitação da dimensão subjetiva de direitos (SARLET, 2012 p. 231).

Agindo assim o CERTBIO resguarda preventivamente o direito à saúde de um futuro

usuário que utilizará peça com biomaterial certificado por ele. Materializando o que dispõe o

artigo 196 da Constituição Federal, tomando para si uma conduta que visa reduzir o risco de

doenças, disponibilizando serviço de proteção à saúde. Assim não se está praticando um

ilícito omissivo. Garantindo que ocorra o exercício da cidadania através da saúde. De sorte

que através desse procedimento de entrada de materiais o CERTBIO atua como vetor da

garantia do Direito à Saúde.

Além da proteção do Direito à Saúde, o CERTBIO ao normatizar a entrada de

biomateriais também protege ao mesmo tempo à produção científica e os direitos de

Page 112: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

112

propriedade intelectual ao resguardar a privacidade do proprietário do biomaterial bem como

os resultados obtidos com esses.

CONCLUSÃO

O CERTBIO, ao inserir a referida norma em suas atividades e análises, afunilando o

processo de admissão de matérias e assegurando, assim, a efetivação do direito à saúde no que

lhe concerne, inovou ao criar novo instrumento normativo que regula a qualidade e a maneira

que tais materiais são incorporados aos laboratórios.

O que se pode inferir do exposto, consoante se lê acima, é que a atuação do

CERTBIO na análise, aprovação e entrada de biomateriais em seus laboratórios, através da

norma, acaba atuando de maneira preventiva na qualidade dos materiais e que estes iriam

interferir na saúde daqueles que os utilizassem, sendo possível àqueles que se valem de tais

materiais, depositar confiança e certeza na qualidade do produto com o qual irão trabalhar.

Assim, tendo em mente os aspectos analisados pelo laboratório, explorados neste

trabalho, e a norma reguladora criada para o próprio CERTBIO, conforme se extrai do

estudado, o CERTBIO já é referência no desenvolvimento e avaliação de biomateriais,

obtendo cada vez mais destaque na introdução de conhecimentos e desenvolvimento de

produtos, certificando-os e atendendo a uma parcela que tem seamplificado, já sendo possível

perceber a solidez que atingiu o referido trabalho realizado pelo CERTBIO.

Entrementes, a atividade realizada pelo CERTBIO é dotada de notória seriedade e

reconhecida como certificadora do INMETRO e da ANVISA, o que mostra a qualidade e a

importância adquiridas pelo laboratório em tão pouco tempo de existência.

Nessa seara, em suma, por todo o exposto depreende-se que a norma reguladora,

muito bem elaborada, foi parte essencial para que se atingisse tal qualidade, para que fosse

possível dar maior efetividade aos direitos inseridos no âmbito da saúde, no que se refere às

atividades desenvolvidas no CERTBIO, que buscam, em todos os seus procedimentos,

garantir qualidade dos produtos certificados e anular os riscos inerentes à saúde de seus

utilizadores, além de salvaguardar os direitos à propriedade intelectual, uma vez que é

interesse do laboratório, previsto na norma, manter em sigilo todas as etapas do procedimento

realizado fazendo valer, assim, a ideia e uma análise justa e desvinculada de qualquer

interferência externa.

Page 113: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

113

REFERÊNCIAS

AITH, Fernando. Direito à saúde e suas garantias no Brasil: Desafios para efetivação de

um Direito Social. Direitos Humanos e Direitos Fundamentais Diálogos Contemporâneos.

Salvador:JusPODIVM, 2013.

LIMA. Andréia Maura Bertolina Rezende de Lima. O direito fundamental e social à saúde e à

dignidade da pessoa humana na sociedade de risco. Revista de direito do consumidor.n. 47,

jul./set., 2011. São Paulo: Revista dos Tribunais.

MENDES, Karyna Rocha. Curso de direito da saúde. São Paulo: Saraiva, 2013.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de direito

constitucional. 7 ed. rev. e atual.São Paulo: Saraiva 2012.

SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações sobre o direito fundamental à proteção e

promoção da saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988. Revista de direito do

consumidor. n. 17 – jul./set., 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais.

______. A eficácia dos Direitos Fundamentais uma teoria dos direitos fundamentais na

perspectiva constitucional. 11 ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,

2012.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1824. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em 06 de mar.

De 2014.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1934. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm, Acesso em: 06 de mar.

De 2104.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 Disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 06 de março

2014.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE1948 Disponível em

http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm Acesso em 06 de

março 2014.

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Page 114: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

114

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htmacesso em 06/03/2014Lei Dispõe sobre as

condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o

funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.

Preamble to the Constitution of the World Health Organization as adopted by the International

Health Conference, New York, 19-22 June, 1946; signed on 22 July 1946 by the

representatives of 61 States (Official Records of the World Health Organization, no. 2, p. 100)

and entered into force on 7 April 1948

emhttp://www.who.int/library/collections/historical/en/index3.htmlacessoem 06/03/2014.

Page 115: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

115

ANEXO I4

DATA DA SOLICITAÇÃO: ___/____/_____ DATA PREVISTA P/ ENTREGA DOS RESULTADOS: ____/____/_____

____________________________________________________________________________ Em, ______/______/__________

RESPONSÁVEL PELO RECEBIMENTO DA SOLICITAÇÃO E AMOSTRAS

ANÁLISE DE VIABILIDADE TÉCNICA (APENAS CLIENTES INTERNOS)

VIÁVEL NÃO VIÁVEL

_____________________________________________________________________ Em,______/______/__________

RESPONSÁVEL PELA PREPARAÇÃO DAS AMOSTRAS

_____________________________________________________________________ Em,______/______/__________

RESPONSÁVEL PELA ANÁLISE DE BIOMATERIAIS

____________________________________________________________________ Em,______/______/__________

ASSINATURA DO GERENTE TÉCNICO

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

RAZÃO SOCIAL / NOME::

NOME FANTASIA (quando houver):

CNPJ / CPF:

RAMO DE ATIVIDADE: SITE :

ENDEREÇO: BAIRRO:

CIDADE: UF: CEP:

E-MAIL: TELEFONE / CELULAR:

CIENTE: ORIENTADOR / EMPRESA:

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

RAZÃO SOCIAL / NOME:

DATA PREVISTA PARA ENTREGA DOS RESULTADOS:__________________________________________

DOCUMENTAÇÃO ACADÊMICA NECESSÁRIA: PROTOCOLO PREENCHIDO E ASSINADO / AMOSTRA PARA CADA ENSAIO / CD

PARA CADA ENSAIO / PEDIDO

DIA DE ATENDIMENTO: QUARTAS DAS 14 ÀS 17 HORASCONTATO: 2101 1843

PARA RECOLHIMENTO DO RESULTADO/AMOSTRAS APRESENTAR ESSE COMPROVANTE

OBS: O PRAZO LIMITE PARA RETIRADA DOS RESULTADOS E AMOSTRAS SERÁ DE ATÉ 30 DIAS CORRIDOS APÓS A DATA

PREVISTA PARA ENTREGA.

4 Protocolo extraído do SGQC em setembro/2013

PROTOCOLO DE ANÁLISES

CÓDIGO: F25

REVISÃO: 01

PÁGINA:1/1

SERVIÇO SOLICITADO Nº PEDIDO:

ENSAIOS E ANÁLISES LABORATORIAIS DESENVOLVIMENTO DE BIOMATERIAIS

DADOS COMPLEMENTARES QUANTO AOS ITENS DE ENSAIO

NATUREZA DOS ITENS DE ENSAIOS: POLIMÉRICO CERÂMICO METÁLICO COMPÓSITO OUTROS

DESCRIÇÃO DAS AMOSTRAS:

ENSAIOS E ANÁLISES NECESSÁRIAS

CONTAMINAÇÃO POR PARTÍCULAS

CITOTOXICIDADE

ABSORÇÃO DO GEL

CONTAMINAÇÃO POR METAIS

DETERMINAÇÃO DA MATÉRIA VOLÁTIL

FRX

ENSAIOS MECÂNICOS

COESIVIDADE DO GEL

DETERMINAÇÃO DE MATERIAL SOL. EM

HEXANO

OUTROS ENSAIOS______________________________________________________________________________________________

PARÂMETROS DO ENSAIO

Nº DO LOTE QTD AMOSTRAS OBSERVAÇÕES

IDENTIFICAÇÃO DO CLIENTE Nº PEDIDO:

COMPROVANTE DE RECEBIMENTO Nº PEDIDO:

Page 116: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

116

O NÃO RECOLHIMENTO NO PRAZO ESTIPULADO ACARRETARÁ: MULTA NO VALOR COMERCIAL COBRADO PELO

ENSAIO, A AMOSTRA SERÁ CONSIDERADA “COISA ABANDONADA” SENDO AUTOMATICAMENTE INCINERADA. ALÉM DO

IMPEDIMENTO DE REALIZAÇÃO DE ANÁLISES NO CERTBIO PELO PRAZO DE 1 ANO.

Page 117: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

117

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E A PROMOÇÃO DE

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA

DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

Giovanna Paola Batista de Britto Lyra Moura

1

Sumário: 1 Introdução. 2 O Desenvolvimento Sustentável Enquanto Diminuição

das Desigualdades Sociais. 3 A Judicialização da Saúde. 4 A Judicialização da

Saúde no Município de São Paulo. 5. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Hodiernamente, a ideia de desenvolvimento sustentável supera a concepção de

preservação do meio ambiente, para abraçar, também, um aspecto social. É inegável que, na

sua concepção nascedoura, a expressão possuía uma abordagem ecológica, de preservação do

meio-ambiente, frente à exploração desenfreada dos recursos naturais não-renováveis pela

ação antropocêntrica.

Hoje em dia, a sustentabilidade adquire uma nova nuance, para englibar, além da

conservação do meio ambiente visando à satisfação das necessidades das gerações atuais sem

se esquecer das gerações futuras (COUTINHO e BARACHO, 2013), um processo contínuo

que deve incorporar aos programas de combate à pobreza e de melhoria na distribuição da

renda, outros fatores igualmente tão importantes quanto como a dotação do indivíduo de

dotações de capital humano adequadas, aliados a criação e constituição de um elevado capital

social (SEN, 2000).

Neste sentido, Xavier e Lanzillo (2013) caracterizam a terceira acepção do

desenvolvimento como aquele que integra todos os fatores da sociedade. Para os autores,

―além do crescimento da riqueza, representante do aspecto quantitativo do desenvolvimento,

tem-se o aspecto qualitativo, representado pela melhoria dos indicadores sociais (saúde,

educação, acesso a bens essenciais, entre outros)‖.

No contexto moderno, pensar o desenvolvimento sustentável é analisar a relação entre

desenvolvimento econômico e meio ambiente e buscar mecanismos de equilíbrio entre ambos

para que o homem, com liberdades mínimas, isto é, com condições suficientes para

sobrevivência, construa a sua autonomia, sua cidadania e sua liberdade frente ao

1Graduada em Direito pelo UNIPÊ; Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável – UNIPÊ; Advogada.

Page 118: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

118

desenvolvimento econômico, sem desprezo ao meio ambiente e identificar, na ecologia de

restauração, a fundamentação cidadã do desenvolvimento sustentável (JARDIM, 2005).

Deste modo, o acesso ao direito à saúde seria verdadeiro promotor da ampliação das

liberdades dos cidadãos e, por conseguinte, do desenvolvimento sustentável, porque garantiria

um maior equilíbrio entre as fatias da população brasileira, tão assolada pela má distribuição

de renda e marginalização das camadas mais pobres. Assim, daria sua contribuição, de

maneira efetiva, para uma maior autonomia destas pessoas, em um claro processo de aumento

da cidadania e redução das desigualdades sociais.

Uma das maneiras mais atuais de acesso à saúde, não reside, incrivelmente, no

incremento das políticas públicas voltadas ao melhoramento da rede pública de saúde,

mormente o Sistema Único de Saúde (SUS), por uma quase que completa inércia dos poderes

Legislativo e Executivo no que tange ao fomento desta área tão importante da vida de

qualquer ser humano. Para suprir esta carência, o Judiciário vem sendo cada vez mais

acionado, para garantir aos cidadãos o acesso, principalmente, a medicamentos e ao custeio de

tratamentos de enfermidades. Trata-se de ação do Poder Judiciário em razão da vulneração de

direitos fundamentais pela maioria política (BARROSO, 2007). É claro que a consecução das

políticas públicas de saúde dependem, essencialmente, da atividade dos poderes Legislativo e

Executivo, mas, na prática, o que se vê é um arcabouço legislativo inexpressivo, complexo e

inoperante (burocrático), o que dificulta a ação do Poder Executivo em seu dever

constitucional de garantir o direito à saúde. Soma-se a isso o próprio fato de o Poder

Executivo não destinar os recursos necessários à saúde, além de não zelar pela correta

aplicação de tal numerário, o que por diversas vezes resulta na realização de gastos

desnecessários (como a compra de medicamentos em patamar muito superior ao necessário,

aparelhos ultrapassados, etc.) ou mesmo no desvio de tais valores (através de atos de

corrupção) (FRANCO, 2013).

A interferência do poder Judiciário em questões que, outrora, eram consideradas da

alçada dos outros dois poderes que compõem o Estado Democrático de Direito brasileiro

representa, conforme já dito anteriormente, uma mudança no paradigma de interpretação e

efetivação dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. Outrossim, demonstra

que aquele poder está empenhando-se em rever seus papéis, passando de mero expectador a

ator, na busca pela implementação prática dos ditames da Carta Política, em uma verdadeira

fuga de sua zona de conforto, posto que supera o histórico de decisões despidas de coragem e

força, para desafiar a prevalência dos interesses dos poderes Executivo e Legislativo.

Page 119: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

119

Entretanto, discute-se se o crescimento no número de demandas judiciais visando ao

fornecimento de medicamentos e de tratamentos de saúde parte das camadas mais vunleráveis

da população, e se promove, na realidade, desenvolvimento sustentável. Cuida-se de verificar

se a judicialização da saúde contribui para a ampliação do acesso à saúde, direito fundamental

constitucionalmente garantido, ou se, ao invés disso, maximiza ainda mais o abismo existente

entre as camadas mais ricas e mais pobres da população.

2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ENQUANTO DIMINUIÇÃO DAS

DESIGUALDADES SOCIAIS

Antigamente, o desenvolvimento de um país era medido de maneira simplistas, pois

levava em consideração apenas os termos monetários como parâmetro para caracterizá-lo

como desenvolvido ou subdesenvolvido (SILVA, 2013). Assim foi até o advento da literatura

do economista indiano Amartya Sen, que representou uma verdadeira guinada na maneira de

pensar o desenvolvimento das nações. Para o criador do IDH – Índice de Desenvolvimento

Humano e vencedor do Prêmio Nobel de Economia, a qualidade de vida das pessoas é

requisito indispensável ao desenvolvimento dos países, de modo que não somente a renda

individual deve ser considerada como instrumento de aumento das liberdades das pessoas,

mas depende, também, de outras determinantes, tais como as disposições sociais e

econômicas, como, por exemplo, o acesso aos serviços de educação e saúde (SEN, 2000).

Para Maria Camila Florêncio da Silva (2013), este câmbio no modo de pensar o

desenvolvimento mudou seu significado: agora, desenvolvimento não é mais o mesmo que

crescimento econômico, e nem é mais um problema exclusivo dos países subdesenvolvidos,

senão de todas as nações. Cita, para justificar sua ideia, não só as palavras de Amartya Sen,

mas também a obra de Martha Nussbaum (2011), segundo a qual o desenvolvimento supera o

aumento de capital e renda, para abordar as capacidades humanas.

Portanto, pensar o desenvolvimento sustentável enquanto proteção apenas do meio-

ambiente, preservando-o de acordo com as necessidades das atuais gerações, sem, contudo,

esquecer-se das gerações futuras, é uma ideia, no mínimo, incompleta. A ecologização do

desenvolvimento sustentável deve ser entendida como apenas uma das faces deste

pensamento. É que, conforme preleciona Juarez Freitas (2011), o conceito de sustentabilidade

tem natureza multidisciplinar. No que nos interessa, sustentabilidade, em sua concepção mais

moderna, está intrinsecamente relacionada aos direitos humanos, e ultrapassa a ideia de

Page 120: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

120

ecodesenvolvimento para abordar, também, os direitos sociais dos cidadãos, e a maneira como

esses direitos estão sendo (ou não) atendidos, como forma de reduzir as desigualdades sociais

e possibilitar o exercício da liberdade real tão defendida por Amartya Sen.

Significa dizer, então, que o desenvolvimento sustentável é um conceito

multifacetado, que supera a ideia preliminar de preservação do meio-ambiente – ecologização

– face à exploração desmedida dos recursos naturais não-renováveis pelo homem, para alçar

vôos ainda maiores. Ultrapassa, também, a concepção de crescimento econômico (aumento de

capital e renda), para abordar, ainda, a maneira como a divisão desses recursos está sendo

feita, se há aumento das liberdades e capacidades dos indivíduos, e se há maior garantia de

seus direitos sociais.

Neste sentido, Ana Paula Basso e Sérgio Cabral dos Reis (2013):

A concretização dos direitos sociais deve se circunscrever à garantia das condições

necessárias ao desenvolvimento do cidadão, não apenas quanto ao mínimo

existencial, mas em relação a fatores que permitam a participação de todos quanto à

realização de um projeto razoável de vida (autonomia privada) e à formação da

vontade coletiva (autonomia pública). Ao Estado, em matéria de políticas públicas,

não incumbe apenas concretizar o mínimo inerente à vida digna, especialmente

quando se trata de educação emancipatória, mas sim, considerando as limitações

fático-jurídicas porventura existentes, estabelecer progressivamente a melhoria de

condições de desenvolvimento do ser humano, sendo essa a função do Estado pós-

moderno.

Ainda sobre o assunto, Ana Luisa Celino Coutinho e Manoel Alexandre Cavalcante

Belo (2013) observam que ―la pobreza extrema es mucho más que la definición de ingresos

muy bajos. Se trata de la privación de las capacidades básicas‖.

Urge lembrar-nos que vivemos em um Estado Democrático de Direito, como definido

pela Carta Política de 1988, e este é pautado no princípio da dignidade da pessoa humana,

devendo garantir a sustentabilidade mínima das pessoas que o integram (LIMA, 2013). Desta

forma, cumpre ao Estado desenvolver mecanismos de garantia dos direitos sociais àqueles que

a ele se submetem. A garantia dos direitos sociais aos cidadãos brasileiros aparece como uma

das muitas maneiras de promoção do desenvolvimento sustentável.

Para garantir os direitos sociais aos cidadãos brasileiros, é preciso uma cooperação

entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Através da elaboração de políticas

públicas, encargo inerente à atividade dos dois primeiros, é que se atinge tal objetivo,

conforme ensinamento de Luiza Rosa Barbosa de Lima (2013), já que estas políticas são

―destinadas a dar cumplimiento al Estado Constitucional de Derecho, democrático, pues tiene

como contenido de su dimensión material los valores de la libertad, la seguridad, la igualdad y

Page 121: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

121

la solidaridad‖. O Poder Judiciário só interferiria em casos de exceção, quando houvesse a

necessidade de interpretação da norma jurídica.

Entretanto, o que vemos no cenário político de nosso país, atualmente, é a inoperância

dos dois primeiros poderes supramencionados, incapazes de elaborar políticas públicas que

atendam à necessidade da maioria dos integrantes do Estado brasileiro. Face à inércia

daqueles a quem pertence o encargo da criação de políticas públicas destinadas à

implementar, na prática, os direitos sociais dos cidadãos, a atuação do poder Judiciário vem

crescendo substancialmente, haja vista que ―los derechos sociales que conforman el mínimo

existencial no pueden ser negados porque no existen suficientes recursos para su realización‖

(LIMA, 2013).

Tais demandas versam, principalmente, sobre o fornecimento de medicamentos e o

acesso à saúde, direito este constitucionalmente garantido e tão urgente para aqueles que dele

necessitam. Experimentamos, assim, o que os doutrinadores denominam ―judicialização da

saúde‖.

3 A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

O fenômeno da judicialização da saúde é recente, e sua ocorrência vem causando

muita polêmica entre os estudiosos do Direito no Brasil. Isso se deve à discussão travada,

principalmente nos âmbitos acadêmico e jurisprudencial, acerca da possibilidade ou não de

interferência do poder Judiciário no que concerne à gestão da saúde, matéria classicamente da

alçada dos poderes Legislativo e Executivo.

Este tipo de demanda judicial teve seu início na década de noventa, motivada pelo

avanço da contaminação pelo vírus da AIDS, e da consequente necessidade dos cidadãos de

fornecimento de medicamentos antiretrovirais, naquela época tão raros e caros, por parte do

Sistema Único de Saúde (SUS). (PEPE, FIGUEIREDO, SIMAS, OSÓRIO-DE-CASTRO e

VENTURA, 2010). Entretanto, nos últimos anos, o Judiciário brasileiro vem recebendo uma

enxurrada de processos versando sobre o direito à saúde, mormente ações individuais visando

à entrega de medicamentos, sejam estes componentes ou não da assistência farmacêutica do

SUS, alguns sem registro no país ou em indicação terapêutica não constante do registro

sanitário (FIGUEIREDO, 2010).

Assim, não é somente a AIDS que leva o cidadão, atualmente, a entrar no judiciário

brasileiro; outros problemas como diabetes, cânceres e doenças degenerativas ou não; têm

Page 122: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

122

sido objetos de ação na esfera jurídica. O Conselho Nacional de Justiça divulgou que

tramitam, atualmente, no judiciário brasileiro 240.980 processos judiciais envolvendo

questões de saúde, sendo que na maioria é pedido para medicamentos, seguido de pedidos de

procedimentos médicos pelo SUS (CASTRO, 2012).

Em sendo a saúde um componente importante da classe dos direitos sociais, necessário

se faz analisarmos esta intervenção judicial no tocante à implementação de direitos cuja

competência pertenceria, inicialmente, aos poderes Executivo e Legislativo. É preciso

entender até que ponto a interferência do poder Judiciário no âmbito dos direitos sociais é

saudável e promove sustentabilidade em sua forma mais moderna – ampliação das liberdades

das partes mais marginalizadas da sociedade, melhor distribuição de renda, entre outros

fatores.

Toda a celeuma é oriunda da mudança de paradigma quanto à eficácia das normas

programáticas constitucionais, entre as quais se enquadram os direitos sociais e, por sua vez, o

direito à saúde. Inicialmente, na década de 90, o STJ começou a embasar suas decisões na

premissa de que as normas programáticas não tinham poder normativo e, por isso, não se

poderia exigir do Estado prestações com base em normas não dotadas de eficácia plena.

Vejamos a ementa do RMS 6564 RS, Relator Ministro Demócrito Reinaldo, julgado

em 23/05/1996, versando sobre o tema:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA.

DIREITO LIQUIDO E CERTO. INEXISTENCIA. DIREITO LIQUIDO E CERTO,

PARA EFEITO DE CONCESSÃO DE SEGURANÇA, E AQUELE

RECONHECIVEL DE PLANO E DECORRENTE DE LEI EXPRESSA OU DE

PRECEITO CONSTITUCIONAL, QUE ATRIBUA, AO IMPETRANTE, UM

DIREITO SUBJETIVO PROPRIO. NORMAS CONSTITUCIONAIS

MERAMENTE PROGRAMATICAS - AD EXEMPLUM, O DIREITO A SAÚDE -

PROTEGEM UM INTERESSE GERAL, TODAVIA, NÃO CONFEREM, AOS

BENEFICIARIOS DESSE INTERESSE, O PODER DE EXIGIR SUA

SATISFAÇÃO - PELA VIA DO MANDAMUS - EIS QUE NÃO DELIMITADO O

SEU OBJETO, NEM FIXADA A SUA EXTENSÃO, ANTES QUE O

LEGISLADOR EXERÇA O MUNUS DE COMPLETA-LAS ATRAVES DA

LEGISLAÇÃO INTEGRATIVA. ESSAS NORMAS

(ARTS. 195, 196, 204 E227 DA CF) SÃO DE EFICACIA LIMITADA, OU, EM

OUTRAS PALAVRAS, NÃO TEM FORÇA SUFICIENTE PARA

DESENVOLVER-SE INTEGRALMENTE, "OU NÃO DISPÕEM DE EFICACIA

PLENA", POSTO QUE DEPENDEM, PARA TER INCIDENCIA SOBRE OS

INTERESSES TUTELADOS, DE LEGISLAÇÃO COMPLEMENTAR. NA

REGRA JURÍDICO-CONSTITUCIONAL QUE DISPÕE "TODOS TEM DIREITO

E O ESTADO O DEVER" - DEVER DE SAÚDE - COMO AFIANÇAM OS

CONSTITUCIONALISTAS, "NA REALIDADE TODOS NÃO TEM DIREITO,

PORQUE A RELAÇÃO JURIDICA ENTRE O CIDADÃO E O ESTADO

Page 123: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

123

DEVEDOR NÃO SE FUNDAMENTA EM VINCULUM JURIS GERADOR DE

OBRIGAÇÕES, PELO QUE FALTA AO CIDADÃO O DIREITO SUBJETIVO

PÚBLICO, OPONIVEL AO ESTADO, DE EXIGIR EM JUÍZO, AS

PRESTAÇÕES PROMETIDAS A QUE O ESTADO SE OBRIGA POR

PROPOSIÇÃO INEFICAZ DOS CONSTITUINTES". NO SISTEMA JURÍDICO

PATRIO, A NENHUM ORGÃO OU AUTORIDADE E PERMITIDO REALIZAR

DESPESAS SEM A DEVIDA PREVISÃO ORÇAMENTARIA, SOB PENA DE

INCORRER NO DESVIO DE VERBAS. RECURSO A QUE SE NEGA

PROVIMENTO. DECISÃO INDISCREPANTE.

Assim, naquela década, o entendimento daquela Égrégia Corte era da impossibilidade

de geração de direitos subjetivos individuais para os cidadãos brasileiros com base nas normas

constitucionais ditas programáticas. Face ao caos da saúde, só restaria à população esperar,

pacientemente, a tomada de alguma atitude pelo Estado.

Hoje em dia, já não se pensa mais assim. A inércia dos poderes Executivo e

Legislativo na formulação de políticas públicas tendentes a implementar, de maneira efetiva,

o direito à saúde levou o poder Judiciário a mudar seu entendimento acerca dos programas

constitucionais, em uma verdadeira ruptura do papel antes passivo daquele poder frente à falta

de efetividade dos outros dois poderes em cumprir com seus papéis. Nesse momento, as

normas constitucionais referentes aos direitos sociais não são mais programas, senão normas

jurídicas cuja obediência não comporta uma atitude discricionária por parte do legislador. Os

programas, antes encarados como conselhos, agora tem sua eficácia imediata reconhecida, de

modo que não estamos mais diante de ―compromissos dilatórios‖ (SCHMITT, 1992),

Diante disto, o Judiciário está sendo cada vez mais acionado, para conferir efetividade

aos direitos fundamentais. É que esses direitos, se não garantidos no momento em que deles

há necessidade, não comportam ressarcimento ou reparação posterior, e as agressões

resultantes do atingimento destes lesam todo o sistema jurídico, colocando abaixo a própria

jurisdição como um direito (ROCHA, 2014).

Alguns estudiosos apontam riscos negativos do efeito da judicialização da saúde. O

jurista francês Antoine Garapon entende que a judicialização torna o judiciário um verdadeiro

ator político, que diretamente interfere nas decisões de políticas públicas e sendo visto como

um último refúgio para uma democracia idealizada, diminuindo, assim, a confiança e o

interesse na política (CASTRO, 2012).

Quanto ao caso específico do Brasil, o principal aspecto negativo da judicialização da

saúde seria o agravamento das desigualdades já existentes no tocante ao acesso ao sistema

público de saúde, uma vez que as decisões judiciais deferindo o fornecimento de

medicamentos beneficiaria àqueles que possuem maiores condições financeiras de veicular

Page 124: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

124

suas demandas na esfera judicial, em detrimento daquelas camadas marginalizadas da

sociedade, cujo poder aquisitivo não permite essa fácil provocação da Justiça (VIEIRA e

ZUCCHI, 2007).

Neste sentido, Luís Roberto Barroso (2007):

As políticas públicas de saúde devem seguir a diretriz de reduzir as desigualdades

econômicas e sociais. Contudo, quando o Judiciário assume o papel de protagonista

na implementação dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso

qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com

os custos do processo judicial. Por isso, a possibilidade de o Judiciário determinar a

entrega gratuita de medicamentos mais serviria à classe média que aos pobres.

Neste sentido, a análise de dados concretos se faz especialmente importante para

entender se a judicialização da saúde, enquanto fenômeno cuja existência não se pode olvidar

ou ignorar, contribui de maneira direta para a promoção do desenvolvimento sustentável em

sua concepção moderna, qual seja, de diminuição das desigualdades sociais e maior acesso

das camadas marginalizadas da população aos direitos constitucionalmente garantidos a todos

os cidadãos, seja qual for sua situação financeira. Existe uma desconfiança de que o aspecto

negativo anteriormente mencionado impede que a judicialização da saúde funcione como

mecanismo de promoção de sustentabilidade e, para desfazer a dúvida, tomemos como

exemplo dados obtidos no âmbito da Justiça Estadual da cidade de São Paulo.

4 A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

Estudos conduzidos no âmbito do município de São Paulo, mormente pelos autores

Octávio Motta Ferraz (2011) e Sônia Rocha (2009), revelou que a maior parte das ações

interpostas contra a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) daquele município, versando sobre

pedido de remédios com base na necessidade de implementação do direito à saúde partiu dos

bairros mais nobres daquela cidade.

Vejamos, primeiramente, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) pelos bairros

da capital paulista:

Page 125: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

125

Figura 1 – Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) pelos bairros de São Paulo

O mapa abaixo, de autoria do primeiro pesquisador supracitado, é uma cópia fidedigna

do mapa acima, e mostra as regiões de onde advém as demandas judiciais concernentes ao

direito à saúde, no ano de 2005:

Page 126: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

126

Figura 2 – Ações contra a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo/SP, distribuídas por bairros

De acordo com a análise de ambos os mapas, bem como da interpretação dos dados

(FERRAZ, 2011), as pessoas que vão à justiça em busca de medicamentos e outros direitos

concernentes à saúde são residentes nas partes dotadas dos menores índices de

vulnerabilidade social, representadas pela parte central do mapa. A maior parte dos autores

dos ditos processos judiciais estão concentrados em bairros nobres como Santa Cecília,

Higienópolis, Jardins, Tatuapé e Vila Mariana, localizados na parte central – norte do mapa.

Tais bairros estão representados, no mapa acima, pelas cores azul escuro e azul claro,

mostrando, claramente, que aqueles que provocam o poder Judiciário em busca do

fornecimento de medicamentos e outros produtos relacionados ao direito à saúde advém dos

bairros com maior IDH no município de São Paulo.

Aquelas regiões mais afastadas do centro, onde estão, obviamente, os indivíduos mais

pobres e marginalizados da sociedade, tais como Marsilac, Parelheiros e Grajaú (parte sul),

Tremembé e Jaçanã (nordeste), conforme podemos ver, não geraram nenhuma demanda

judicial atinente à saúde naquele ano.

A análise superficial dos dados acima dispostos revela que o acesso à saúde via poder

Judiciário ainda está restrito àqueles que se encontram em situação mais privilegiada no que

tange à disponibilidade de recursos. Isso se deve, provavelmente, à ineficiência das

Defensorias Públicas enquanto órgãos garantidores do acesso à justiça aos mais carentes, à

Page 127: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

127

inércia do Ministério Público, à falta de informação dos menos favorecidos acerca de seus

direitos e, principalmente, na descrença da maioria da população na efetividade do poder

Judiciário para aqueles que mais necessitam. Sobre este último tema, ainda paira a concepção

de que a Justiça só funciona para os mais ricos, e que é inútil dispender os já parcos recursos

na busca pela tutela jurisdicional.

A análise da experiência do município de São Paulo, o mais rico da federação, revela o

quadro da maioria das outras cidades e estados brasileiros. É certo que faltam pesquisas no

sentido de coletar dados semelhantes em outras localidades, mormente na Paraíba, mas é de

corrente sabença que os bairros mais afastados da capital paraibana sofrem com a prestação

jurisdicional. O exemplo de São Paulo é perfeitamente transferível para a nossa realidade,

porquanto a ineficiência das Defensorias Públicas, que contam com efetivo insuficiente à

demanda populacional, face ao seu crescimento nos últimos anos, verificada naquele

município, acontece da mesma forma em nossa capital.

5 CONCLUSÃO

Para que se pense a sustentabilidade em seu conceito moderno, é necessário

abandonarmos o anterior sentido ecológico da palavra, para nela incluirmos, também, a

ampliação das capacidades e liberdades humanas, o acesso das camadas mais marginalizadas

da sociedade aos direitos constitucionalmente previstos, tais como o direito à saúde.

Face à inércia dos poderes Executivo e Legislativo na elaboração de políticas públicas

que visem a melhorar as condições do Sistema Único de Saúde (SUS) e a situação da saúde

pública como um todo no Brasil, o Judiciário muda o seu papel, antes passivo, para interferir

de maneira direta na consecução dos ditames constitucionais atinentes à matéria.

Muito embora se discuta se essa atuação é ou não positiva, não se pode olvidar que

aqueles que buscam a tutela jurisdicional referente ao direito à saúde encontram-se, quando o

fazem, em situação de necessidade, doentes e, por isso, tem pressa. A eles não lhes é facultado

esperar pela boa vontade dos poderes a quem cabe a consecução de políticas públicas, pois

precisam com urgência do fornecimento de determinado medicamento ou tratamento de

saúde, cuja falta pode, inclusive, acarretar-lhes a morte.

Assim, ainda que haja fatores negativos a respeito da judicialização da saúde, sua

existência é necessária, para garantir aos indivíduos que recorrem ao poder Judiciário em

Page 128: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

128

busca da implementação desses direitos não padeçam face à falta de ação dos demais poderes

no que tange à melhoria da qualidade do sistema público a que temos, todos nós, acesso.

Com base em todas as digressões acima carreadas, mormente nos dados coletados no

município de São Paulo, cuja experiência podemos expandir para todo o país, podemos

concluir que a judicialização da saúde, ainda que conte com a melhor das intenções, ainda não

é instrumento de promoção de desenvolvimento sustentável. É que o acesso à justiça, ainda

que garantido em sua forma gratuita pela Constituição Federal, encontra sérios entraves no

que tange aos instrumentos de acesso dos indivíduos mais vulneráveis à prestação

jurisdicional.

É necessário que haja uma reformulação dos mecanismos de acesso da população ao

judiciário, como a melhoria das Defensorias Públicas e a conscientização dos indivíduos

acerca de seus direitos. No entanto, não podemos nos esquecer que a alternativa mais viável à

solução desses conflitos seria um maior engajamento dos poderes Legislativo e Executivo na

consecução de políticas públicas de melhoria da saúde em nosso país.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direitos à

saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial.

Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-

apoio/publicacoes/saude/Saude_-_judicializacao_-_Luis_Roberto_Barroso.pdf>. Acesso em:

27 abr. 2014.

BASSO, Ana Paula; REIS, Sérgio Cabral dos. O papel da educação emancipatória no

desenvolvimento sustentável. In:___ BASSO, Ana Paula et al. Direito e Desenvolvimento

Humano Sustentável. São Paulo: Verbatim, 2013, p. 17.

CASTRO, Kátia Regina Tinoco Ribeiro de. Os juízes diante da judicialização da saúde: O

NAT como instrumento de aperfeiçoamento das decisões judiciais na área da saúde.

Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/9769/K%C3%A1tia%20Regin

a%20Tinoco%20Ribeiro%20de%20Castro.pdf?sequence=1>. Acesso em: 07 mai. 2014.

COUTINHO, Ana Luísa Celino; BARACHO, Hertha Urquiza. A efetividade do princípio da

capacidade contributiva como requisito para o desenvolvimento fiscal sustentável. In:___

BASSO, Ana Paula et al. Direito e Desenvolvimento Sustentável: Desafios e perspectivas.

Curitiba: Juruá, 2013, p. 153.

Page 129: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

129

FERRAZ, Octávio Motta. Texas law review. Symposium on Latin American

Constitucionalism. 2011.

FIGUEIREDO, Tatiana de Aragão. Análise dos medicamentos fornecidos por mandado

judicial na Comarca do Rio de Janeiro: A aplicação de evidências científicas no processo de

tomada de decisão [dissertação]. Rio de Janeiro (RJ): Escola Nacional de Saúde Pública

Sérgio Arouca. Fundação Oswaldo Cruz; 2010.

FRANCO, Lafaiete Reis. A judicialização do direito constitucional à saúde no Brasil: a

busca pela efetivação de um direito fundamental. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n.

3735, 22 set. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25377>. Acesso em: 25 abr.

2014.

FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 53-

65.

JARDIM, Jean de Sousa. Desenvolvimento sustentável, desenvolvimento como liberdade e a

construção da cidadania na perspectiva ambiental. Revista do Programa de Mestrado em

Direito do UniCEUB, Brasília, v. 2, n. 1, p. 189-201, jan./jun. 2005.

LIMA, Luiza Rosa Barbosa de. Desarrollo y orden social: retos en el marco de las políticas

públicas. In:___ RUBERT, María Belén Cardona et al. Ciudadanía y desarrollo. Espanha:

Bomarzo, 2013.

NUSSBAUM, Martha C. Creating capabilities – the human development approach.

Cambridge: Belknap Harvard, 2011.

PEPE, Vera Lúcia Edais; FIGUEIREDO, Tatiana de Aragão; SIMAS, Luciana; OSÓRIO-DE-

CASTRO, Claudia Garcia Serpa; VENTURA, Míriam. A judicialização da saúde e os novos

desafios da gestão da assistência farmacêutica. Disponível em: <

http://www.scielosp.org/pdf/csc/v15n5/v15n5a15.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2014.

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O constitucionalismo contemporâneo e a

instrumentalização para a eficácia dos direitos fundamentais. Disponível em:

<http://daleth.cjf.jus.br/revista/numero3/artigo10.html>. Acesso em: 07 mai. 2014.

ROCHA, Sonia. 2009. Pobreza e indigência. Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade

(IETS). Disponível em: <http://www.iets.org.br/dado/sonia-rocha>. Acesso em: 07 mai. 2014.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. 8. ed. Berlin, Duncker & Humblot, 1993, pp. 28-31.

SILVA, Maria Camila Florêncio da. A virada nos estudos de direito e desenvolvimento: do

capital às pessoas. In:___ BASSO, Ana Paula et al. Direito e Desenvolvimento Humano

Sustentável. São Paulo: Verbatim, 2013, p. 17.

VIEIRA, F.S.; ZUCCHI, P. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de

medicamentos no Brasil. Rev. Saúde Publica 2007, pp. 214-222.

Page 130: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

130

XAVIER, Yanko M. de Alencar; LANZILLO, Anderson S. da Silva. A regulação do

biodiesel no Brasil na perspectiva do desenvolvimento sustentável. In:___ BASSO, Ana Paula

et al. Direito e Desenvolvimento Sustentável: Desafios e perspectivas. Curitiba: Juruá, 2013,

p. 253.

Page 131: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

131

Page 132: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

132

A SAÚDE SOB A PERSPECTIVA DAS TEORIAS DE JUSTIÇA:

APROXIMAÇÕES ENTRE O CONCRETO E O ABSTRATO

Igor Diniz da Mota Silveira1

Sumário: 1 Introdução. 2 O Entrelaçamento entre os Direitos Socioeconômicos e as

Teorias de Justiça em Jeremy Waldron. 2.1 Intuições sobre Justiça e Autoevidência

do Direito à Saúde. 2.2 Os Direitos Socioeconômicos entre a Crítica e a Exaltação.

2.3 A Rejeição Moderna às Teorias Alocativas. 2.4 Mundo Ideal x Mundo Real: o

surgimento dos direitos socioeconômicos a partir das Teorias de Justiça. 3 A Teoria

de Justiça de Rawls. 3.1 O desenvolvimento da Teoria Rawlsiana. 3.2 Viabilidade da

Leitura dos Direitos Socioeconômicos sob a Perspectiva da Posição Original. 3.3

Saúde como Justiça: a vaguez da Teoria de Justiça de Rawls. 4 Teoria de Justiça de

Daniels: a extensão da teoria rawlsiana aplicada à saúde. 4.1 A Importância Moral

da Saúde para Preservação das Oportunidades. 4.2 A incorporação da saúde na lista

de bens primários de Rawls. 4.3 Determinantes Sociais, Desigualdades e Escassez

de Recursos. 5. Justiça e Saúde na visão de Ronald Dworkin. 5.1 A Concepção

Liberal Existencialista em Ronald Dworkin: o ponto intermediário entre bem-estar

social e laissez-faire. 5.2 A Moeda da Igualdade em Dworkin: igualdade de recursos.

5.3 O Leilão Hipotético. 5.4 Justiça e Saúde: princípio do seguro prudente. 5.5

Críticas ao Seguro Hipotético. 6. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Estabelecer conexões entre as teorias de justiça e a questão da saúde é fundamental

para que, a partir de uma abordagem ideal e abstrata, possam-se solucionar as demandas e

necessidades práticas na área da saúde, visto que as teorias de direitos não consideram de tal

forma o impacto desses direitos na estrutura da sociedade e perspectiva de vida dos

indivíduos.

A primeira parte do artigo dedica-se, primordialmente, à análise das considerações de

Jeremy Waldron sobre a necessidade de entrelaçamento entre os direitos socioeconômicos e

as teorias de justiça.

Posteriormente, o artigo divide-se na abordagem da questão da assistência médica em

teorias de justiça de três importantes filósofos: Rawls, Daniels e Dworkin. Assim, discute-se a

vagueza da teoria rawlsiana no tocante à saúde, a extensão de sua teoria por Daniels, ao

incluir à lista de bens primários a saúde, e a hipótese do seguro hipotético e aplicação no

mundo prático do princípio do seguro prudente por Ronald Dworkin.

2 O ENTRELAÇAMENTO ENTRE OS DIREITOS SOCIOECONÔMICOS E AS

TEORIAS DE JUSTIÇA EM JEREMY WALDRON

1 Graduando de Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

Page 133: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

133

Em artigo intitulado ―Socioeconomic Rights and Theories of Justice‖, Waldron busca

encontrar a relação entre os direitos socioeconômicos e as teorias da justiça, escolhendo como

paradigma de análise a teoria rawlsiana, que possibilita inúmeros pontos de acesso para

argumentos sobre esses direitos, em virtude de sua complexidade. Dessa forma, procura um

encaixe necessário entre, por exemplo, o direito à saúde, defendido sempre num esquema

―line-item way‖, ou seja, de forma isolada, peremptória, autoevidente, e as teorias de justiça,

que operam num nível de abstração muito mais elevado, estabelecendo princípios gerais que

estruturam a base da sociedade, permitindo um estudo das demandas e princípios com os

quais esse direito compete. (WALDRON, 2010).

Portanto, é através de uma teoria de justiça que se deve promover a alocação dos

recursos escassos, demandados pelos direitos socioeconômicos, e daqueles recursos que já

estão designados para outras finalidades, através de uma justificação que não é possível

apenas com uma teoria de direitos. Esta, por sua vez, é importante para explicar o porquê cada

direito é importante, mas insuficiente para tratar sobre conflitos entre direitos ou entre

demandas que aspiram serem tratadas como direito num contexto distributivo. (WALDRON,

2010).

As teorias de justiça pecam por deixar a elaboração de julgamentos mais aprofundados

sobre políticas públicas para um estágio sempre subsequente, presos à estrutura principal da

teoria e justificados, muitas vezes, de forma superficial. Como se verá adiante, no tópico

referente à Rawls, isso se torna evidente nos comentários do filósofo acerca das provisões

estatais de bem-estar e o que ele chama de ―social minimum‖. Assim, fundamental é o

entrelaçamento entre os dois campos, a fim de se obter respostas para os conflitos que

vivemos em sociedade, elaboradas dentro num espectro amplo de abordagem.

2.1 INTUIÇÕES SOBRE JUSTIÇA E AUTOEVIDÊNCIA DO DIREITO À SAÚDE

As teorias de justiça são motivadas, dirigidas e até mesmo delimitadas por nossas

intuições sobre justiça, ou, de forma mais precisa e técnica, juízos pré-teóricos sobre assuntos

que a justiça lida. Waldron (2010, p.6) preconiza: ―(…) we may find a given theoretical

position plausible or implausible (intuitively plausible or implausible as we say) because of its

consonance or dissonance with one or more of these considered judgments.‖

Tais juízos podem ter o status de ―preceitos de justiça‖, ou seja, verdades do senso

comum enraizadas na cultura de dada sociedade, e até mesmo entre os filósofos. Assim, os

direitos socioeconômicos também encontram apoio em vários desses juízos e preceitos.

Page 134: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

134

(WALDRON, 2010, p.7). Muitos acreditam, por exemplo, que uma criança em situação

clínica emergencial, numa sociedade economicamente próspera, cujos pais não dispõem de

recursos financeiros para tratá-la, deve receber algum tipo de auxílio estatal, que detém a

responsabilidade de providenciar essa ajuda. No mesmo diapasão, muitos rejeitariam

quaisquer teorias de justiça que negassem essa providência estatal nesses casos de

necessidade.

Esses juízos ponderados sobre provisões para custear necessidades devem ser

reconciliadas com outros juízos ponderados que parecem apontar para uma direção oposta.

Como exemplo, muitos mantêm a visão, pré-teórica, que cada pessoa é dona dos frutos do seu

labor, e não iriam encarar com bons olhos uma teoria da justiça que sustentasse que esses

frutos fossem postos à disposição, contra sua vontade, para satisfazer as necessidades de

outras pessoas. (WALDRON, 2010, p.7).

Assim, nossas convicções sobre a saúde são vistas por nós como óbvias, de forma que

não exige uma elaboração filosófica mais requintada. Pelo fato de os direitos

socioeconômicos clamarem por necessidades diretas e urgentes, não é difícil realizar uma

retórica capaz de apoiá-los. (WALDRON, 2010, p.3). No campo doutrinário e jurisprudencial,

a defesa do direito à saúde é permeada por um senso comum teórico, pois se tornou mecânico

classificá-lo como corolário do direito à vida, sendo, portando, prioritário e o bem máximo a

ser protegido. Esse absolutismo a priori pode ser visto na postura de Sarlet (2007):

Não há duvida alguma de que a saúde é um direito humano fundamental, aliás

fundamentalíssimo, tão fundamental que mesmo em países nos quais não está

previsto expressamente na Constituição, chegou a haver um reconhecimento da

saúde como um direito fundamental não escrito (implícito), tal como ocorreu na

Alemanha e em outros lugares. Na verdade, parece elementar que uma ordem

jurídica constitucional que protege o direito à vida e assegura o direito à integridade

física e corporal, evidentemente, também protege a saúde, já que onde esta não

existe e não é assegurada, resta esvaziada a proteção prevista para a vida e

integridade física (SARLET, 2007, p.3).

É dessa forma que, na lição de Warat (1982, p. 49), aliena-se o conhecimento

científico em sua expressão material, reduzindo as significações a conceitos, colocando fora

de dúvidas e fora da política, a fala da ciência. Canotilho (2004, p.100), por sua vez, afirma

que: ―paira sobre a dogmática e a teoria jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais a

carga metodológica da vaguidez, indeterminação e impressionismo que a teoria da ciência

vem apelidando, em termos caricaturais, sob a designação de ‗fuzzismo‘ ou ‗metodologia

fuzzy.‖ Complementa, ainda, afirmando que os juristas não sabem do que estão a falar quando

Page 135: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

135

abordam os problemas complexos dos direitos econômicos, sociais e culturais, razão pela qual

essa problemática foi deslocada para as teorias de justiça, argumentação e econômicas do

direito. (CANOTILHO, 2004, p.98).

Assim, ao relacionar esse direito com a justiça, torna-se aparente que nem tudo aquilo

que parece autoevidente para um indivíduo ou sociedade pode permanecer conciso, ou ao

menos de forma inalterada.

2.2 OS DIREITOS SOCIOECONÔMICOS ENTRE A CRÍTICA E A EXALTAÇÃO

Aqueles que atacam os direitos socioeconômicos clamam prioridade para estrutura de

mercado e direitos de propriedade, pela responsabilidade sobre as próprias decisões e pelo

merecimento, rejeitando o privilégio promovido pelas provisões de bem-estar aos

―preguiçosos‖. Segundo Waldron (2010):

These attacks cannot be dismissed; they require (and, in my view, they can be given)

an answer. But they are not adequately answered just by saying that the case for

welfare provision is urgent and should command a very high place in the order of

moral priorities. Even if one can defend the claim that socioeconomic rights are

important, the nature of their priority over other concerns is not self-evident. There

are all sorts of priorities in this area of moral and political life, and we need to

develop an articulate account of what kind of priority we are talking about

(WALDRON, 2010, p.3).

Além disso, afirmam que eles devem ser rejeitados por violarem o princípio lógico

―ought implies can‖. Ou seja, se os Estados não possuem recursos suficientes para promover

assistência médica para toda a massa de cidadãos, por exemplo, não faz sentido atribuir às

provisões econômicas uma questão de direitos humanos universais. (WALDRON, 2010, p.9).

A escassez de recursos indica que deve haver um balanceamento e delimitação de

prioridades com relação a essas demandas, não a rejeição imediatista dos direitos

socioeconômicos. ―There is no reason to suppose that there are not enough resources in the

world to feed or house or provide basic medical care to everybody in it, as (for example)

Articles 11 and 12 of ICESCR require.‖(WALDRON, 2010, p.9).

Por outro lado, os direitos socioeconômicos são defendidos contra as críticas mais

óbvias, e seus defensores ou minimizam a questão da propriedade, merecimento e outras

prioridades fiscais, ou tentam demonstrar que esses aspectos são bem menos importantes do

que os direitos pelos quais clamam. (WALDRON, 2010, p.9).

Page 136: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

136

Nozick, autor do livro Anarquia, Estado e Utopia, acredita que as demandas baseadas

em necessidade ocupam um papel superficial numa teoria de justiça. Assim, os direitos

socioeconômicos (se existirem) existem apenas nos interstícios da propriedade. Segundo o

autor (NOZICK, 1999, p.160): ‗Things come into the world already attached to people having

entitlements over them. The trouble with socioeconomic rights, on this account, is that they

‗treat objects as if they appeared from nowhere, out of nothing‘.

Entretanto, afirma Waldron (2010, p.11) que Nozick, assim como John Locke, acredita

que a aquisição inicial de direitos de propriedade não deve ser conduzida de modo a ser

indiferente à situação dos indivíduos necessitados que podem ser prejudicados pelos direitos

em questão. Segundo Nozick (1999, p.178): ―A process normally giving rise to a permanent

bequeathable property right in a particular thing will not do so if the position of others no

longer at liberty to use the thing is thereby worsened.‖

2.3 A REJEIÇÃO MODERNA ÀS TEORIAS ALOCATIVAS

As teorias alocativas são aquelas que aspiram produzir princípios tais como: ―para

cada um de acordo com suas necessidades‖ ou ―para cada um de acordo com seu

merecimento‖. Entretanto, os teóricos modernos, como Rawls e Nozick, cada vez mais

rejeitam esse posicionamento. (WALDRON, 2010, p.13). Para este, as teorias alocativas

tratam os bens como se eles simplesmente estivessem ali, aguardando distribuição, como se o

processo pelo qual foram produzidos não fosse relevante. De acordo com o filósofo

(NOZICK, 1999):

To think that the task of distributive justice is to fill in the blank in ―to each

according to his ____‖ is to be predisposed to search for a pattern; and the separate

treatment of ―from each according to his ___‖ treats production and distribution as

two separate and independent issues. On an entitlement view these are not two

separate questions. (NOZICK, 1999, p.159-160)

.

Segundo Waldron (2010, p.13), faz parte da rejeição ao que ele chama de ―princípios

padronizados‖, ou seja, princípios que tentam padrão na distribuição de bens em decorrência

de necessidade ou merecimento. Para entendermos sua crítica, faz-se importante explicar que,

para Nozick (1999, p.160), quem quer que crie algo, é o legítimo dono.

Rawls (2008, p.94) também entende que uma teoria da justiça não deve ser limitada à

questão da alocação de recursos distributivos, ou seja, quem ganha o que, quando e como.

Page 137: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

137

Esse posicionamento, entretanto, parece ser o defendido pelo STF (SL 47-AgR/PE)na

concretização do artigo 196 da Constituição:

Em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de

todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das políticas sociais e

econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria,

invariavelmente, escolhas alocativas. Essas escolhas seguiriam critérios de justiça

distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como

típicas opções políticas, as quais pressupõem ‗escolhas trágicas‘, pautadas por

critérios de macrojustiça.

De acordo com o liberal igualitário (RAWLS, 2008, p.94): ―Se perguntarmos de forma

abstrata se u distribuição de um dado estoque de coisas para indivíduos concretos com desejos

e preferências conhecidas é melhor que uma outra, simplesmente não haverá resposta para

essa pergunta.‖Como será analisado no tópico relativo a Rawls, seu princípio da diferença não

deve ser interpretado como se ao grupo menos favorecido fosse entregue uma certa parcela

dos recursos. O que ele impõe é que, quando se está avaliando e reformando a estrutura de

regras que compõem a estrutura institucional de uma economia, devemos nos orientar de

modo a privilegiar o grupo menos favorecido.

Waldron observa no princípio da diferença uma razão de fundo semelhante às

provisões de bem-estar, mas que, em razão de sua abstração, é incapaz de gerá-las por si só:

The Difference Principle certainly reveals a spirit congenial to something like

welfare provision inasmuch as it requires particular attention to the plight of the

worst-off members of society. On the other hand, it also suggests that it might be

possible to justify great inequalities, which on some accounts it is the task of

socioeconomic rights to mitigate. In general the Difference Principle is too abstract

to generate, by itself, any particular case for welfare provision. It is a principle

governing the most abstract distributive implications of the basic structure, and it

deals with them holistically, without regard to particular institutional arrangements

or sources of advantage or disadvantage. If the Difference Principle provides the

basis of a case for socioeconomic rights, it does so in the context of its further

detailed elaboration.(WALDRON, 2010, p.14)

2.4 MUNDO IDEAL X MUNDO REAL: O SURGIMENTO DOS DIREITOS

SOCIOECONÔMICOS A PARTIR DAS TEORIAS DE JUSTIÇA

Relacionando Hayek e Rawls, Waldron (2010, p.15) imagina uma situação em as

instituições da economia produzem uma distribuição de riqueza D1, que, entretanto, é julgada

Page 138: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

138

inferior a uma distribuição D2, nos termos do princípio da diferença. Deve-se, então,

imediatamente interferir e realocar a riqueza a fim de transformar D1 em D2? Segundo

Waldron, a resposta em ambos seria ―não‖. Entretanto, enquanto para Hayek o assunto

termina aí, Rawls abordaria uma outra questão: podemos alterar a estrutura institucional, de

modo a torná-la mais suscetível a render distribuições, no futuro, como D2 ao invés de D1? A

resposta para isso também pode ser "não", porque a mudança proposta pode ser incompatível

com as virtudes institucionais, como a publicidade, estabilidade e do Estado de Direito. Ainda

assim - e é isso que Hayek passa desapercebido - a resposta não é necessariamente "não." Se a

mudança é possível e se a estrutura institucional resultante for viável, somos obrigados por

uma questão de justiça a implementá-lo, pois o princípio da diferença obriga-nos a organizar

(e , se necessário, reorganizar ) nossas instituições para que as desigualdades sociais e

econômicas sejam direcionadas para o maior benefício dos menos favorecidos;

O propósito de tal digressão é de demonstrar que, em uma teoria de justiça como a de

Rawls, não há garantia de que os direitos socioeconômicos irão emergir de forma familiar,

como uma garantia legal ou constitucional.

As an abstract matter we can say, with the drafters of Article 25 of the UDHR, that

everyone has ‗the right to a standard of living adequate for the health and wellbeing

of himself and his family.‘ But that may not necessarily emerge as a specific legal or

constitutional guarantee: a just society may not have a rule to that effect, nor even

any particular agency charged with administering this standard. There may be a

variety of provisions and arrangements, ranging from tax-breaks to educational

opportunities to rent control (or its abolition) to unemployment insurance schemes—

all of which taken together may represent the best (and genuinely the best) that can

be done in an institutional framework to honor the underlying claim for the

individuals in whose behalf it can be made.(WALDRON, 2010, p.16)

A teoria de justiça de Rawls pode ser descrita como irrealista, visto que nenhum de

nós foi posto na posição original sob um véu de ignorância para decidirmos sobre quais

princípios escolheríamos para governar as estruturas básicas de nossa sociedade. Reforçando

a ideia de transcendentalismo das teorias de justiça, nenhum de nós também recebeu uma

distribuição igualitária de recursos, nem a maioria de nós teve a oportunidade de fazer um

seguro num mercado justo contra a falta de talento, habilidade ou quaisquer formas de azar

(seguro hipotético de Dworkin).

Estamos presos no mundo real, e é esse mundo em que as pessoas sofrem desemprego,

privações e insegurança, nas quais as crianças tem fome e não tem a livre opção de decidir

Segundo o autor (WALDRON, 2010, p.24): ―In general, theories of justice do not seem to be

Page 139: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

139

designed for the real world. But the socioeconomic rights that people talk about are. They are

designed exactly to operate in a real world that does not answer to ideal models of the

philosophers.

O direito à assistência médica, por exemplo, garantido no artigo 25, I da Declaração de

Direitos Humanos foi positivado no intuito de ser aplicado nas situações do mundo real,

independentemente se essas situações são ou não adequadamente governadas pelas estruturas

da melhor teoria de justiça. Embora seja verdade que algumas demandas dos direitos

socioeconômicos possam ser utópicas, assumindo-se que o que esses direitos requerem pode

ser feito, a consequência lógica é que eles devem ser realizados, sem a necessidade de espera

por uma teoria de justiça para subsidiar sua aplicação.

Por outro lado,a ideia de que os direitos socioeconômicos deve ter esta aplicação

imediata no mundo real não significa que eles podem ser totalmente considerados sem levar

em conta as teorias da justiça. A maioria dos teóricos da justiça defende sua ênfase na teoria

ideal por acreditar que ela ilumina e proporciona a melhor base para abordar questões

práticas, de uma teoria não-ideal, uma vez que os direitos socioeconômicos não possuem a

capacidade que uma teoria de justiça tem de avaliar o impacto na rede da estrutura básica ao

compreender a totalidade dos aspectos referentes às perspectivas de vida dos indivíduos.

(WALDRON, 2010, p.25).

Para o autor, não está claro que os tribunais de justiça são o lugar correto para resolver

as demandas entre esses direitos, que possuem, além da dimensão interpretativa, uma

dimensão orçamentária. Assim, seria uma pena se as cortes fossem vistas como o único meio

de reivindicá-las.Caso assumíssemos que é importante que essas demandas sejam também

perseguidas num contexto político, então a justificativa para a elaboração de demandas

socioeconômicas no contexto de uma teoria de justiçaé evidente. (WALDRON, 2010, p.28).

A linguagem dos direitos sociais e econômicos se expressa exigindo reivindicações

morais, apresentando o caso de cada indivíduo peremptoriamente, como se não se admitisse

recusa, equilíbrio, compromisso. Uma teoria geral de justiça, por outro lado, leva em

consideração demandas urgentes de todos os tipos. Gera, portanto, suas conclusões com base

em tal consideração, passando a tratá-las como absolutas. Teorias de direitos, por outro lado,

apresentam esse absolutismo de forma precipitada, num estágio anterior às considerações

sobre as demais demandas concorrentes.

Para Waldron (2010, p.29), é melhor adiar os debates sobre os direitos

socioeconômicos até que consideremos como as diversas demandas socioeconômicas se saem

numa teoria de justiça. Assim, não nega que o direito à assistência médica, por exemplo,

Page 140: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

140

possa ser justificado. O que ele enfatiza é que pode ser elaborado um caso mais forte e

convincente sobre esses direitos caso sejam validados a partir de uma teoria que permita que

outras reivindicações, demandas e considerações morais façam seus melhores ataques contra

eles.Assim, assume sua posição (WALDRON, 2010, p.30): ―Theorizing about justice offers

just such a context. For that reason, I think it is better to let socioeconomic rights emerge from

a theory of justice than to try to defend them, line by line, on their own merits.‖

3 A TEORIA DE JUSTIÇA DE RAWLS

3.1 O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA RAWLSIANA

A teoria de justiça de Rawls foi construída com base num modelo teórico de ideias,

como a posição original e o véu de ignorância, abrangendo concepções meta-éticas como o

equilíbrio reflexivo, e relacionando nossos juízos ponderados sobre justiça a partir de uma

construção filosófica. Seu conceito pode ser definido por aquilo que expõe e defende

princípios gerais que governam a estrutura básica da sociedade tendo em vista os impactos

sob as perspectivas de vida e o gozo de bens primários pelos indivíduos. (RAWLS, 2008).

Tais princípios, escolhidos por pessoas racionais e livres na posição original,

encobertas pelo véu de ignorância que as impedem de terem conhecimento sobre suas

próprias características, habilidades, renda, são dois:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de

liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de

liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem

ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como

vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e

cargos acessíveis a todos.(RAWLS, 2008, p.64)

Segundo Vita (2008b, p.XXIII), a concepção de justiça dada por esses princípios é

justificada através da articulação de três componentes: ao primeiro princípio, conjuga-se o

componente das liberdades e direitos fundamentais; ao segundo, conjugam-se o de igualdade

equitativa de oportunidades e o do princípio de diferença ou critério maximin de justiça social,

para o qual somente deve-se admitir a desigualdade econômica que favorecer ao terço mais

pobre da sociedade.

Page 141: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

141

Há entre esses princípios uma ordenação serial, ou seja, uma complementaridade

circular entre os direitos, impedindo-os de se tornarem mutuamente substituíveis. (RAWLS,

2008, p.65).Desta feita, o primeiro princípio tem prioridade sobre o segundo – as liberdades

fundamentais protegidas pelo primeiro princípio não podem ser violadas em favorecimento,

justificadas ou compensadas por maiores vantagens sociais e econômicas – e a parte (b) do

segundo princípio tem prioridade sobre a parte (a), garantindo que condições de igualdade

equitativa de oportunidades sejam asseguradas a todos.

Segundo Rawls (2005), esse primeiro princípio de justiça só pode ser precedido por

outro que prescreva a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, desde que tais

necessidade sejam essenciais para que os cidadãos entendam e exerçam seus direitos e

liberdades.

3.2 VIABILIDADE DA LEITURA DOS DIREITOS SOCIOECONÔMICOS SOB A

PERSPECTIVA DA POSIÇÃO ORIGINAL

Analisando a teoria de Rawls, Waldron entende que ela não é hostil à ideia de ―welfare

provision‖, mas que os princípios decorrentes dos direitos socioeconômicos, a primeira vista,

não se fundamentam diretamente dosdois princípios básicos de justiça como equidade,

levantando a seguinte hipótese:

Why is this? The most plausible explanation is that socioeconomic rights or

principles embodying socioeconomic rights are usually formulated at the wrong

level of generality or abstraction to be included among the most fundamental

principles of a theory such as Rawls‘s. But then we should ask: what is the

relationship between abstract principles of justice and these somewhat less abstract

principles requiring welfare provision?‖(WALDRON, 2010, p.1)

Seria, entretanto, viável uma leitura dos princípios que emergem dos direitos

socioeconômicos, e em especial, do direito à saúde, sob a perspectiva da posição original de

Rawls a partir de um aprofundamento? Como já dito, essa perspectiva imagina pessoas

tomando decisões sobre importantes aspectos estruturais de sua sociedade sob um véu de

ignorância, através do qual eles desconhecem seus interesses particulares que poderiam

direcionar suas decisões para promover seu próprio bem-estar.

One might imagine a Rawlsian response to the effect that a non-allocative theory

simply doesn‘t generate principles of that sort in this direct way. Rawls might say

Page 142: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

142

that if justice requires welfare payments, for example, then that will emerge in the

course of the detailed elaboration of what is implied as a matter of public policy by

the very abstract propositions that are the subject-matter of decision in the original

position.(WALDRON, 2010, p.17)

Entretanto, o autor argumenta que sob a forma que a teoria de justiça rawlsiana foi

concebida, essa resposta não está correta. (WALDRON, 2010, p.17). O primeiro princípio da

concepção de justiça como equidade de Ralws contém o componente das liberdades e direitos

fundamentais, como já explanado. De acordo com Ralws, esses princípios são extraídos

diretamente da ideia da posição originária. Então, questiona-se: se é um meio apropriado para

argumentar a favor de direitos como liberdade religiosa, por que não seria para argumentar a

favor dos direitos socioeconômicos, e, portanto, do direito à saúde?

A teoria de Rawls apresenta o que geralmente as teorias de direitos contém, o que

Waldron chama de ―list-like aspects‖: ―É essencial observar que é possível determinar uma

lista dessas liberdades.‖.(RAWLS, 2008, p.65).Em Political Liberalism, o autor afirma

(RAWLS, 2005, p.292): ―Note, however, that if we can find a list of liberties which (…) leads

the parties in the original position to agree to these principles rather than to the other

principles available to them, then what we may call ‗the initial aim‘ of justice as fairness is

achieved.‖ Prossegue, ainda, afirmando que a lista pode ser elaborada considerando quais

liberdades são condições sociais essenciais para um desenvolvimento adequado e para o

completo exercício da personalidade moral sobre uma vida completa.

Assim, se o igualitário liberal incluiu na sua teoria de justiça uma lista de direitos civis

e políticos, o que impede que se faça o mesmo com os direitos socioeconômicos?

Those who believe in such rights defend them by arguing that they indeed represent

‗essential social conditions for the adequate development and full exercise … of

moral personality.‘ And, as we shall see in a moment, there might well be a direct

original-position argument to be made in their favor. If all this is true, then the list-

ness of socioeconomic rights—the fact that they are not theorized holistically in the

way that theories of justice normally theorize things— need not be an obstacle, at

least if we accept the general outlines of Rawls‘s methodology in this regard and

buy into his rejection of the criticism (which is more or less a version of the

criticism with which I began this chapter) that the use of such a list of rights in a

theory of justice is a disreputable ‗makeshift‘. (WALDRON, 2010, p.18)

Por outro lado, Waldron assevera que é possível que haja razões específicas para não

tratar os direitos socioeconômicos dessa forma. Haja vista, como exemplo, a negativa de

Rawls em incluir o valor da liberdade sob o manto do primeiro princípio.

Page 143: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

143

A incapacidade de beneficiar-se dos próprios direitos e oportunidades, como

consequência da pobreza e da ignorância, e da falta de meios em geral, é às vezes

incluída entre as restrições que definem a liberdade. Essa, porém, não será minha

posição; em vez disso, quero pensar que essas coisas afetam o valor da liberdade.

(RAWLS, 2008, p.221)

Rawls não acreditava que uma sociedade poderia orgulhar-se em oferecer aos seus

cidadãos mais pobres direitos civis e políticos, neste sentido restrito, sem prestar atenção à sua

condição material.O princípio da diferença (difference principle) expressa a opinião de Rawls

de que qualquer indivíduo coberto pelo véu da ignorância, ao escolher princípios para

governar a estrutura básica da sociedade em que ele vive, insistiria num princípio que

assegurasse que desigualdades sociais e econômicas fossem reguladas em proveito, a priori,

do grupo menos favorecido. (RAWLS, 2008, p.89-96).

3.3 SAÚDE COMO JUSTIÇA: A VAGUEZ DA TEORIA DE JUSTIÇA DE RAWLS

Não constitui objeto de estudo de Rawls uma teoria sobre a saúde em uma sociedade

justa. Temas como esse devem ser tratados apenas em estágios posteriores, quando os

indivíduos que deles participam já possuem informações precisas e explícitas sobre questões

sociais e econômicas de sua sociedade. Portanto, não é algo que deva ser abordado no âmbito

da posição original.

Além disso, nem a saúde, nem outros bens considerados fundamentais, tanto pelo

nosso ordenamento jurídico, quanto pela Declaração de Direitos Humanos, comoalimentação,

educação, moradias figuram, explicitamente, na lista de bens sociais primários do autor. Estes

constituem um meio objetivo de julgamentos sobre justiça; são a base das expectativas das

pessoas, que dependem de fatos gerais sobre necessidades e aptidões humanas, suas fases e

requisitos normais de cuidados, relações de interdependência social e uma concepção

normativa de pessoa). Segundo Rawls (2008, p.66): ―Outros bens primários como a saúde (...)

são bens naturais; embora a sua posse seja influenciada pela estrutura básica, eles não estão

sob seu controle de forma tão direta.‖

De acordo com De Mario (2013, p.35-39): ―Autores como Amartya Sem (1992;2009)

e Martha Nussbaum (2006) focam-se na saúde, dentre outros bens sociais, para mostrar que o

acordo ralwsiano e a métrica de bens primários são insuficientes por não garantir às pessoas a

realização de suas necessidades.‖ Como Rawls considera como participantes da posição

original apenas aqueles mental e fisicamente aptos, as pessoas acometidas por deficiências

Page 144: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

144

e/ou doenças que lhes impeçam de agir socialmente como os demais da sociedade por

requererem atenção especial estariam excluídas. Ainda segundo a autora (DE MARIO, 2013,

p.35): ―Por outro lado, Norman Daniels (2008) afirma pensar a saúde dentro da perspectiva de

justiça como equidade é possível, desde que não seja feito a partir da lista de bens primários,

pois esse bem estaria contido nas exigências dos princípios de justiça celebrados na posição

original.‖

Sendo a estrutura básica o objeto primário da justiça como equidade, por exercer

influência sobre a vida das pessoas, inevitavelmente a sociedade terá que se apoiar em

algumas desigualdades para ser bem ordenada e planejada. Tais desigualdades tratadas pela

justiça como equidade são aquelas que afetam as perspectivas de vida dos cidadãos,

determinadas pelo índice de bens primários. Três tipos de contingência são capazes de afetá-

las:: classe social de origem; talentos e as oportunidades que têm de desenvolvê-los; (3) sua

boa ou má sorte ao longo da vida. (RAWLS, 2003, p.78).

Os problemas provenientes de questões sociais e de desigualdades serão decididos

tomando o segundo princípio – o princípio de diferença e o da igualdade equitativa de

oportunidades – como referência. A saúde, portanto, pode ser reconhecida como um fator de

contingência, ao possibilitar a afetação das expectativas de vida e, portanto ser desencadeador

de desigualdade. Entretanto, os menos favorecidos não devem ser definidos pela sua ausência,

pois esta não é um bem primário.

4 TEORIA DE JUSTIÇA DE DANIELS: A EXTENSÃO DA TEORIA

RAWLSIANA APLICADA À SAÚDE

4.1 A IMPORTÂNCIA MORAL DA SAÚDE PARA PRESERVAÇÃO DAS

OPORTUNIDADES

Daniels assume que a importância moral que a assistência médica possui, para os

propósitos da justiça, ao prevenir e tratar doenças e deficiências com efetivos serviços

assistenciais, deriva da forma com a qual a proteção da organização funcional normal do

organismo contribui para proteção das oportunidades. Mantendo nas pessoas o funcionamento

normal, a assistência médica preserva nelas a possibilidade de participar na vida política,

social e econômica da sociedade.

Page 145: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

145

By maintaining normal functioning, health care protects and individual‘s fair share

of the normal range of opportunities reasonable people would choose in a given

society. (…) Individual‘s fair shares of that societal normal opportunity range are the

plans of life it would be reasonable for them to choose were they not ill or disabled

and were their talents and skills suitably protected against mis- or underdevelopment

as a result of unfair social practices and the consequences of socio-economic

inequalities.‖(DANIELS, 2001, p.2)

Essa ideia de proteção do leque normal de oportunidades, ou seja, planos de vida que

seriam razoáveis que as pessoas desejassem para si, também depende das características de

uma dada sociedade, de sua história, das condições materiais de bem estar, de seu

desenvolvimento tecnológico e sua cultura, sendo essencial na construção da sua teoria. Sua

relação com a assistência médica sugere que o princípio de justiça distributiva apropriado para

regular o sistema de atendimento medico é um princípio que protege a igualdade de

oportunidades.Assim, afirma (DANIELS, 2001, p.2): ―Disease and disability, by impairing

normal functioning, restrict the range of opportunities open to individuals.‖

Dessa forma, De Mario (2013, p.59) afirma que para Daniels, a saúde é uma questão

de justiça porque―uma sociedade que não garante aos seus cidadãos condições de saúde, mais

precisamente, de uma vida saudável, será invariavelmente injusta, pois não assegurará a todos

as mesmas condições e oportunidades para realizarem de suas vidas algo valoroso (...).‖

A assistência médica se distingue de outras necessidades básicas do ser humano que

também preservam o funcionamento normal do organismo, como alimentação, moradia,

justamente pelo fato de que necessidades médicas são mais desigualmente distribuídas e

podem ser catastroficamente caras, sendo objeto de seguro privado ou social. (DANIELS,

2001, p.3-4). Nesse sentido, a perspectiva de Danielsapoia a previsão de assistência médica

universal, a fim de respeitar o princípio da igualdade equitativa de oportunidades.

The account supports the provision of universal access to appropriate health care –

including traditional public health and preventive measures – through public or

mixed public and private insurance schemes. Health care aimed at protecting fair

equality of opportunity should not be distributed according to ability to pay and the

burden of payment should not fall disproportionately on the ill. (DANIELS, 2001,

p.4)

Ao justificar a importância moral especial da saúde, busca contextualizá-la dentro

teoria de justiça de Rawls, evitando aquilo que Waldron constata na argumentação em prol

dos direitos socioeconômicos: sua autoevidência, cuja importância moral é presumida a priori,

sem levar em consideração outras demandas e direitos.

Page 146: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

146

4.2 A INCORPORAÇÃO DA SAÚDE NA LISTA DE BENS PRIMÁRIOS DE RAWLS

Segundo Daniels (2001, p.2): ―Any theory of justice that supports a principle assuring

equal opportunity (or giving priority to improving the opportunities of those who have the

least opportunity) could thus be extended to health care.‖ Essa afirmação já estabelece os

contornos para uma extensão da teoria de Rawls. Esta, já discutida, determina que devemos

medir nossos níveis de bem-estar através de medidas de acesso público, ou seja, uma lista de

bens primários que incluem direitos e liberdade, poder, oportunidade, renda, riqueza e as

bases sociais de respeito.

Sua extensão da teoria de Rawls recai sobre o princípio de Igualdade Equitativa de

Oportunidades, através da incorporação do status de saúde ao índice de bens primários, em

virtude dos seus efeitos sobre a oportunidade, já que pessoas com índices iguais não terão as

mesmas chances de desenvolver suas vidas com a mesma qualidade se tiverem necessidades

em saúde diferenciadas. ―Since opportunity is included in the index of primary social goods,

the effects of health inequalities are thereby included as well.‖ (DANIELS, 2008, p. 94).

Modifica, portanto, o conceito de oportunidade de Rawls.

Para Daniels a extensão da lista de bens primários não significa uma violência à teoria

de Rawls, desde que movamos nosso foco da posição original para os estágios constitucional

e legislativo, momentos nos quais os bens primários podem ser debatidos e estendidos de

diversas formas. Assim, incluir instituições que garantam serviços de saúde dentre as

instituições básicas responsáveis por garantir iguais oportunidades satisfaria integralmente a

principal preocupação de Rawls: reduzir arbitrariedades em virtude do nascimento e pela

posição de cada um na sociedade, moralmente inaceitáveis (loteria natural e social). (DE

MARIO, 2013, p.62).

Para adequar a abordagem da saúde como um bem primário à justiça como

equidade, o autor assinala que, para decidir sobre os princípios e normas dos

sistemas de saúde, é preciso que tenhamos conhecimento sobre fatos acerca da

sociedade e dos indivíduos, ou seja, é preciso que o véu da ignorância presente no

primário estágio da justiça seja retirado. Essas decisões precisam ser tomadas não

considerando os gostos e as preferências das pessoas, mas sim, como pontua Rawls,

levando em conta que o que se tem são pessoas livres para elaborar e revisar seus

planos de vida. Consequentemente, essas pessoas têm interesse em que as condições

para tal sejam garantidas e mantidas ao longo de suas vidas. (DE MARIO, 2013,

p.63)

Page 147: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

147

A justa parcela dos indivíduos do leque normal de oportunidades é definida com

relação aos talentos e habilidades que estes teriam de acordo com um funcionamento normal.

Além disso, essa parcela inclui tudo aquilo que os indivíduos selecionariam de maneira

razoável, não somente o que eles de fato podem selecionar.

Manter o funcionamento normal através do acesso a bens e serviços de saúde tem

um efeito particular e limitado sobre as parcelas individuais do leque normal. Isso

permite aos indivíduos desfrutarem da parcela a que têm acesso, através de seus

talentos e habilidades, neste leque considerando que esse acesso não é restringido

por outras desvantagens sociais. Esse fato não sugere que devemos eliminar ou

nivelar diferenças naturais que funcionam como um delimitador da porção do leque

normal ao qual os diferentes indivíduos terão acesso. Entretanto, quando diferenças

entre talento e habilidades são resultado de patologias, e não de uma variação

normal, devemos empreender, de acordo com nossos recursos, esforços para corrigir

os efeitos da loteria natural‟.‖ (DANIELS, 2011, p.45)

4.3 DETERMINANTES SOCIAIS, DESIGUALDADES E ESCASSEZ DE RECURSOS

A fim de se assegurar justiça no campo da saúde, é necessário mais do que o simples

tratamento médico, visto que ela é concretizada não apenas com a prevenção e tratamento,

mas com também com uma extensão maior de ações, através da experiência acumulada nas

condições sociais ao curso da vida de cada indivíduo. Segundo Daniels, os princípios de

justiça de Rawls regulam os determinantes sociais da saúde:

Rawls‘s principles of justice thus turn out to regulate the key social determinants of

health. One principle assures equal basic liberties, and specifically provides for

guaranteeing effective rights of political participation. The fair equality opportunity

principle assures access to high quality public education, early childhood

interventions, including day care, aimed at eliminating class or race disadvantages,

and universal coverage for appropriate health care. Rawls ―Difference Principle‖

permits inequalities in income only if the inequalities work (e.g., through incentives)

to make those who are worst off as well off as possible. (…) It would therefore

flatten socioeconomic inequalities in a robust way, assuring far more than a ‗decent

minimum‘ (Cohen 1989).‖ (…) The implication is that we should view health

inequalities that derive from social determinants as unjust unless the determinants

are distributed in conformity with these robust principles.(DANIELS, 2001, p.9)

Afirma, além disso, que, por mais que a assistência médica seja importante, não é o

único bem social relevante. Assim, as sociedades devem decidir quais necessidades devem ter

prioridade e quando os recursos são bem gastos.

Would be much simpler if people could agree on principles of distributive justice

that would determine how to set fair limits to health care. (…) I shall develop the

Page 148: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

148

following argument: 1) We have no consensus on principled solutions to a family of

morally controversial rationing problems, and general principles of justice for health

and health care fail to give specific guidance about them; 2) In the absence of such a

consensus, we should rely on a fair process for arriving at solutions to these problem

and for establishing the legitimacy of such decisions; 3) A fair process that addresses

issues of legitimacy will have to meet several constraints that I shall refer to as

‗accountability for reasonableness‘. (DANIELS, 2001, p.10)

5. JUSTIÇA E SAÚDE NA VISÃO DE RONALD DWORKIN

5.1 A CONCEPÇÃO LIBERAL EXISTENCIALISTA EM RONALD DWORKIN: O

PONTO INTERMEDIÁRIO ENTRE BEM-ESTAR SOCIAL E LAISSEZ-FAIRE

Dworkin não adere à concepção estrita do conceito de igualdade distributiva, ou seja, a

igualdade absoluta na distribuição das riquezas sociais, visto que tal atitude relevaria a

responsabilidade que as pessoas têm sobre suas próprias decisões livres. Como ilustração,

Ferraz (2007, p.1) cita a fábula da formiga trabalhadora, que, em virtude do seu empenho,

conserva mantimentos para sobreviver ao inverno, e da cigarra indolente, que opta por cantarolar

durante o verão, morrendo de fome no inverno. Seria justa a transferência dos recursos da formiga

para a cigarra que optara livremente por não trabalhar?

The person who worked or saved in order that he would have enough resources for a

rainy day is not treated with equal dignity if he is required to subsidize the person

who did not work or save despite being conscious of what the consequences of that

would be and despite having had the opportunity to do so.(WALDRON, 2010, p.23)

No mesmo diapasão, para Dworkin, imunizar as pessoas das consequências de suas

próprias escolhas livres seria contrário ao princípio da igual consideração e respeito. Este

princípio, ao contrário do que possa parecer, não requer que o governo garanta que todos

tenham igual riqueza, ou oportunidades iguais, ou o suficiente para satisfação das

necessidades mínimas. Como consequência da aplicação do princípio ético da

responsabilidade, as desigualdades materiais não atribuíveis às escolhas dos indivíduos, por

estarem relacionadas a circunstâncias fora de seu controle, não são justificadas. São, portanto,

moralmente arbitrárias, requisitando alguma forma de correção.

A distinção entre escolha e circunstância é não só familiar,mas fundamentalem ética

de primeira pessoa.[…] Não podemos planejar ou julgar nossasvidas senão pela

distinção entre aquilo sobre o que devemos assumirresponsabilidade, porque o

escolhemos, e aquilo sobre o que não devemosporque estava além de nosso controle.

(DWORKIN, 2010, p. 455)

Page 149: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

149

Em sua obra, o filósofo ouriço busca, através da síntese de duas teorias adversárias

(bem-estar social e laissez-faire), introduzir uma teoria da igualdade liberal. Segundo

Montarroyos (2013, p.90), o livro ―A virtude soberana‖ traz como solução uma releitura

liberal existencialista sobre a teoria econômica da igualdade distributiva, maximizando a

constitucionalidade no dia a dia dos indivíduos, fugindo das vicissitudes do bem-estar social e

do laissez-faire. O objetivo do autor, portanto, é o aperfeiçoamento do processo de inclusão

comunitária, apartir da criação de um ambiente ético-liberal motivador e atraente. Promove,

por conseguinte, a combinação do princípio da igualdade com o princípio da liberdade,

mediados pelo princípio da responsabilidade existencialista, público e privada, além da

inclusão de valores como democracia, fraternidade, tolerância e comunidade.

Há, portanto, no autor, uma espécie de ―dosimetria‖ entre o bem estar social da

política (máximo de intervenção) e o laissez-faire do mercado (com zero-grau de intervenção

da comunidade). (MONTARROYOS, 2013, p. 116). Por um lado, Dworkin encontra no

primeiro modelo alguns pontos que devem ser rechaçados:

O modelo do bem-estar social produziria injustiça no decorrer da metodologia

distributiva, uma vez que não deixaria livre os beneficiários para formularem seus

desejos utilitaristas, ou seja, desestimularia o desejo de maximizar o existencialismo

individual, pois as pessoas seriam enquadradas nos padrões de felicidade e de justiça

social projetados pelo distribuidor paternalista, que consideraria nessa perspectiva

que o estilo de vida de um beneficiário pode ser inferior ou superior ao de outro

cidadão, usando para isso uma métrica burocrática, tecnicista, matemática,

metafísica ou materialista, que não coincide com a filosofia existencialista-

humanista reinvidicada pelo autor Ronald Dworkin. (MONTARROYOS, 2013,

p.115-116)

Por outro lado, Dworkin critica os defensores do modelo do laissez-faire, pois os

igualitários partidários de tal corrente argumentam que o respeito ao princípio da igual

consideração e respeito estaria satisfeito quando não houvesse interferência na vida de

ninguém, a fim de que o destino das pessoas dependesse de forma exclusiva de suas próprias

habilidades, iniciativas e sortes. Nesse caso, há uma defesa da autonomia pessoal máxima

fundada no extremo da liberdade, desprezando, no entanto, a responsabilidade coletiva, a

comunidade e a igualdade formal. (MONTARROYOS, 2013, p.101)

A pretensão de Dworkin, portanto, é autor criar é uma terceira argumentação ou

alternativa epistemológica que seja capaz de entrelaçar esses dois modelos teóricos, que,

apesar da popularidade, são extremistas.

Page 150: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

150

5.2 A MOEDA DA IGUALDADE EM DWORKIN: IGUALDADE DE RECURSOS

Qual seria, então, a dimensão em que a concepção de igualdade liberal-existencialista

em Dworkin é concebida?

Como bem aponta Sen, todas as teorias políticas que passaram pelo teste do tempo

defendem (ainda que não de modo explícito) a igualdade em algum ‗espaço‘

específico (‗the space of equality‘), e isso implica necessariamente desigualdade em

outros espaços. Proponentes do igualitarismo não podem portanto simplesmente se

dizer igualitários, devem apontar em que dimensão (isto é, espaço) uma sociedade

de iguais busca a igualdade entre as pessoas, ou seja, devem indicar qual a ‗moeda

da justiça igualitária‘, na expressão de Cohen, e justificar as desigualdades que

necessariamente resultarão dessa escolha, em outros espaços.(FERRAZ, 2007,

p.246)

Para Dworkin, há dois espaços em que a igualdade pode ser concretizada: igualdade de

bem-estar e igualdade de recursos. A primeira sugere que o nível de bem-estar que cada

indivíduo alcança com a mesma quantidade de recursos materiais pode variar em virtude das

capacidades que cada um possui para convertê-los em bem-estar (capabilities para Amartya

Sen). Portanto, variando-se a capacidade de cada um na conversão dos recursos (em virtude

de enfermidades, deficiências físicas e mentais), o nível de bem-estar que os indivíduos

alcançam com a mesma quantidade dos mesmos também varia significativamente. Segundo

Ferraz (2007, p.247): ―A teoria da igualdade de bem-estar parece captar a intuição de que a

sociedade deve conferir recursos adicionais a essas pessoas para compensar as deficiências.‖

Dworkin rejeita essa primeira ―moeda de igualdade‖ em virtude de vários fatores:

indefinição de um nível máximo de compensação, haja vista que certas deficiências nunca

permitirão uma igualdade de bem-estar, por mais recursos transferidos pela sociedade; o

problema dos gostos dispendiosos; subjetividade do conceito; dificuldade de comparação dos

níveis de bem-estar entre pessoas para efeito de equalização. (FERRAZ, 2007, p.247).

Dessa forma, para o filósofo, a ‗moeda da justiça igualitária‘ deve ser os recursos com

os quais as pessoas alcançam o bem estar: a igualdade de recursos.

Não se trata, evidentemente, ao contrário do que a denominação parece sugerir, de

uma divisão igualitária estrita de recursos. Essa é a teoria da igualdade da ―velha

esquerda‖ que Dworkin repudia, pois viola a ideia central do igualitarismo liberal

(...). Além disso, ignoraria por completo a intuição de que certas pessoas, por conta

de deficiências e enfermidades, tenham direito a mais recursos para compensar seu

déficit na capacidade de atingir o bem-estar (capability), A igualdade de recursos

Page 151: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

151

requer uma distribuição sensível às escolhas que as pessoas realizam, porém

insensível às circunstâncias.Ou seja, parte-se da posição fundamental de que,

ausentes as diferenças imputáveis às escolhas das pessoas,a distribuição de recursos

em uma sociedade em princípio deve ser igual. (FERRAZ, 2007, p.247-248)

Assim como Rawls utiliza o artifício da posição original para deliberar sobre

princípios que devem reger a estrutura básica da sociedade, Dworkin, para demonstrar a

adoção da igualdade de recursos, utiliza-se de uma situação hipotética na qual os indivíduos

devem decidir, como se fosse a primeira vez, regras justas de convivência social: o leilão

hipotético.

5.3 O LEILÃO HIPOTÉTICO

Dworkin supõe a seguinte situação: um grupo de náufragos, numa ilha deserta, deve

decidir sobre a divisão dos recursos encontrados no território, respeitando o princípio da

igualdade. Ao invés de conferir uma parte igual de cada recurso existente na ilha a cada

indivíduo, o autor afirma que a forma mais igualitária de distribuição dos recursos seria a

realização de um leilão (mercado em condições ideais), em que todos os náufragos

participariam com poder paritário de aquisição (na situação hipotética, o mesmo número de

conchas), sendo cada recurso entregue a quem oferecesse o melhor lance. Ao fim, os

náufragos possuirão um conjunto de recursos diferentes uns dos outros, adequado às

preferências de cada um.

Dworkin considerou que a oferta dos produtos a serem leiloados não pode ser viciada

a fim de atender um ou outro tipo social ou étnico de pessoa. O responsável pela divisão dos

produtos disputados no leilão deve atacar dois focos distintos: a arbitrariedade e a possível

injustiça. O chamado ―envy teste‖, ou teste da cobiça, determina, finalmente, se a distribuição

pode ser considerada igualitária: ninguém pode preferir a cesta de recursos de outro ao final

do leilão. (DWORKIN, 2005, p. 82).

Assim, a aplicação desse mecanismo possibilita a manutenção do respeito ao princípio

da escolha, sensível às preferências entre as pessoas, e da responsabilidade, permitindo que

cada um arque com os custos de suas decisões. Entretanto, Dworkin (2005, p.454) ressalta o

chamado ―problema estratégico‖, ou seja, a dificuldade de atribuição das desigualdades

materiais à escolha ou à circunstância.

O desafio do igualitarismo liberal é, desse modo, encontrar ummecanismo que

permita a aplicação de sua idéia central sem a necessidadede verificar, pessoa a

Page 152: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

152

pessoa, que parte de suas riquezas materiaisé decorrente de escolhas e que parte é

decorrente de circunstâncias.Tal mecanismo deve ser capaz também de estabelecer

quecompensação é adequada quando há impossibilidade de eliminartodas as

diferenças de bem-estar decorrentes das circunstâncias,como no caso das

incapacidades físicas graves. (FERRAZ, 2007, p. 454)

Aplicar o princípio da diferença rawlsiano para solucionar o dilema seria violar o

critério escolha-circunstância, visto que não há distinção se os ocupantes da posição menos

favorecida da sociedade estão lá em virtude de circunstâncias ou escolhas. Nesse sentido,

Waldron (2010, p.22): ―(...) neither the argument for the Difference Principle nor the

Rawlsian social minimum argument (...) seems to pay any attention to the question of a

person‘s own responsibility for his or her membership in the worst-off group.‖

Não é possível, portanto, equalizar todas as desigualdades materiais atribuíveis às

circunstâncias. Todavia, é possível equalizar as oportunidades que as pessoas têm para se

proteger dos riscos de possuir menos recursos por razões circunstanciais, imaginando-se que

proteção contra esse risco, na forma de seguro, pessoas de prudência normal teriam

provavelmente adquirido se tivessem tido a oportunidade de fazê-lo em igualdade de

condições: a ideia do seguro hipotético. (DWORKIN, 2005, p.108).

Para o filósofo, o momento adequado para a satisfação do teste de cobiça, de acordo

com o princípio de igual consideração e respeito, seria ex ante: antes do impacto das

transações e da sorte. Um governo comprometido com a igualdade ex post aproximaria os

cidadãos que carecem de habilidades de mercado para o mesmo nível econômico daqueles

com maiores habilidades, e recuperaria aqueles que ficaram doentes ou sofreram

desvantagens com a posição que teriam ocupado. Por outro lado, um governo comprometido

com a igualdade ex ante, responde diferentemente a essas problemáticas: impõe que os

cidadãos respondam essas contingências na mesma posição, ou seja, que eles tenham a mesma

oportunidade de comprar seguro contra falta de talento produtivo ou má sorte. (DWORKIN,

2011, p.358).

A igualdade inicial do leilão permanece enquanto durar o acontecimento do próprio

leilão. Após o seu fim, prevalece entre os indivíduos o livre comércio, sendo a igualdade de

recursos rompida. É em virtude disso que Dworkin idealiza o seguro hipotético, a medida para

redistribuir na sociedade os recursos entre os que ganham e os que perdem no jogo desigual

do mercado. O filósofo recomenda, portanto, um modelo de impostos e benefícios na

estrutura desse mercado hipotético de seguros: o prêmio dá a medida do que deve ser

Page 153: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

153

arrecadado por meio de impostos, enquanto a cobertura é o limite que deve ser gasto com a

redistribuição na forma de benefícios. (FERRAZ, 2007, p.250).

5.4 JUSTIÇA E SAÚDE: PRINCÍPIO DO SEGURO PRUDENTE

Em Justice for Hedgehogs, Dworkin afirma, categoricamente, que as teorias de justiça

distributiva são artificiais, baseando-se em fantasias: contratos fictícios, negociações entre

pessoas com amnésia, citando como exemplos a posição original de Rawls e sua própria

hipótese de leilão hipotético numa ilha deserta. Entretanto, afirma que esse tipo de

artificialidade é inevitável caso se queira afastar a política como árbitro final da justiça. Em

virtude da complexa e profunda injustiça na economia, é difícil definir o que a justiça

demanda sem tais exercícios contrafactuais. (DWORKIN, 2011, p.352).

O autor acredita na interdependência entre teoria política e a controvérsia prática, visto

que acredita ser essencial que a filosofia política responda à política, pois só assim haveria a

probabilidade de alcançar a forma correta para ajudar a sociedade de fato.

(MONTARROYOS, 2013, p. 102). Portanto, de um lado tem-se a igualdade, valor

transcendente da comunidade política; do outro, encontra-se a realidade do cotidiano que se

perde no pragmatismo, na cobiça e no oportunismo derivados da liberdade dos governos,

pessoas, mercados.

A partir da conciliação entre essas duas dimensões, ideal e real, através da igualdade

liberal, encara a relação entre justiça e saúde, discutida no capítulo 8 do livro ―A virtude

soberana‖. A sua abordagem teórica de justiça em saúde integra a assistência médica na

competição com os outros bens escassos a serem redistribuídos, ao invés de conceder-lhe um

status moral especial, isolando a saúde e a assistência médica, como Daniels o faz. Questiona

o autor quanto se deve gastar, coletivamente, a fim de proporcionar serviços de saúde a todos

que respeitem o princípio da igualdade. (DWORKIN, 2005).

Para responder ao questionamento, há duas respostas possíveis, sendo necessário,

primeiramente, retomar a noção da igualdade de bem-estar, aplicada no contexto da saúde:

deve-se gastar o que for necessário para restabelecer a saúde das pessoas, custe o que custar?

Trata-se do que Dworkin chama de ―princípio do resgate‖, considerado pelo filósofo como

inverossímil e capaz de levar a sociedade à falência, se levado ao extremo. É composto por

duas partes: a primeira sustenta que a vida e a saúde são bens primeiros e não devem ser

sacrificados em função de outros; a segunda impede que se negue atendimento médico a

Page 154: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

154

qualquer pessoa, por uma questão de igualdade. (DWORKIN, 2005, p. 335). A assistência

médica, portanto, deveria ser distribuída de acordo com a necessidade do paciente.

Esse princípio é o adotado pelo STF (SL 47-AgR/PE) na concretização do direito à

saúde no Brasil:

―Em relação aos direitos sociais, é preciso levar em consideração que a prestação

devida pelo Estado varia de acordo com a necessidade específica de cada cidadão.

Assim, (...) no caso de um direito social como a saúde, (...) deve dispor de valores

variáveis em função das necessidades individuais de cada cidadão.‖

Críticas podem ser dirigidas ao princípio do resgate por ele não discutir quanto se deve

gastar com outros setores sociais concorrentes com a saúde. É uma ―caixa preta‖, um mistério

sobre quanto a comunidade realmente gastaria com outros serviços públicos.

(MONTARROYOS, 2013, p.106). A defesa do igualitarismo, nesses termos, deve ser

repensada cuidadosamente, pois temos hoje formas caríssimas de assistência.Por isso, a saúde

e a vida não podem mais ser discutidas sem se levar em conta os seus verdadeiros custos

econômicos.

A fim de se debater a justiça ideal, há que se buscar uma contribuição até certo ponto

do princípio do resgate. (DWORKIN, 2005). A mensagem idealista desse princípio é

importante, pois afirma que não podemos racionar a saúde usando a lógica do dinheiro.

(MONTARROYOS, 2013, p.106)

Como antítese à realização plena de tal princípio, custosa e paternalista, surgiram os

defensores da liberdade plena do mercado de assistência médica, de forma a eliminar qualquer

vantagem e subsídio para o cidadão, que deveria, nesse caso, usufruir do plano que ele viesse

a escolher: o laissez-faire. Dworkin faz ressalvas a esse posicionamento citando o exemplo

dos Estados Unidos, em que nem todos tem salário suficiente para entrar nesse mercado e

nem sabem calcular ou avaliar o valor de um tratamento médico ou os riscos de saúde

específicos. (DWORKIN, 2005).

Dessa forma, o filósofo toma proveito de uma ideia contida no cerne do laissez-faire: a

distribuição justa seria aquela em que as pessoas criam para si mediante suas escolhas

individuais. Entretanto, é fundamental para o filósofo que essas pessoas sejam bem

informadas e que, primordialmente, o sistema econômico e a distribuição da riqueza da

comunidade na qual tais escolhas são feitas sejam justos.

Assim, ao definir o princípio do seguro prudente, supõe que a distribuição de recursos

foi a mais equitativa possível. Em segundo lugar, supõe que os indivíduos têm conhecimento

Page 155: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

155

sobre toda a informação mais recente sobre o custo e os efeitos secundários dos

procedimentos médicos particulares. Por fim, supõe que ninguém, inclusive as companhias de

seguro, obteve informações disponíveis sobre a probabilidade de que um indivíduo contraia

algum tipo de enfermidade específica ou sofra um determinado tipo de acidente. (DWORKIN,

2005, p.338).

Portanto, enquanto o princípio do resgate direciona para o máximo estatal, o princípio

do seguro prudente aponta para zero-estatal, desde que, frize-se, esteja-se diante de um

contexto justo e bem ordenado, supostamente existente nesse modelo fictício.

Se é certo que a maioria das pessoas estaria dispostas a comprar certo nível de

cobertura médica em um mercado livre e justo, então, é a desigualdade de nossa sociedade a

razão pela qual muitos dos indivíduos não possuem seguros. (DWORKIN, 2005, p.342).

Assim, aplicado o princípio do seguro prudente na prática, tem-se que uma comunidade deve

gastar coletivamente em saúde a cobertura que pessoas médias da comunidade em questão, de

prudência normal, teriam contratado num mercado de seguros competitivo em igualdade de

condições.

O mecanismo do seguro hipotético justifica a redistribuição de recursos sem a

necessidade de presunções questionáveis sobre as causas das desigualdades materiais entre as

pessoas, como ocorre com o ―princípio da diferença‖ de Rawls. Caso o seguro estivesse

disponível em condições de igualdade, todos o teriam adquirido para a cobertura dos riscos de

não possuir recursos para levar uma boa vida.

Qual seria, portanto, o limite mínimo justo de redistribuição nos casos de

desigualdades materiais decorrentes de circunstâncias, em que é impossível eliminar as

diferenças sem levar a sociedade à falência? Para o filósofo ouriço, o mecanismo do seguro

não elimina as tais desigualdades, mas minimiza-as, proporcionando uma resposta realista e

justa à questão, pois torna as pessoas iguais em face do risco.

Dworkin propôs claramente que juntássemos o principio do resgate com o princípio

do seguro prudente, e, nesse momento, ao entrar no domínio da discussão

socioológica, sua proposta experimenta enormes turbulências ambientais, causando

críticas decepcionantes, como aquela apontada brilhantemente pelo professor Ferraz

e outros analistas. Conforme notamos anteriormente, a solução da igualdade de

recursos implicaria uma série de características mistas que, no final, deixariam

estranhamente uma grande faixa de pessoas em estado subótimo do ponto de vista

não só econômico, ou político, mas também no aspecto existencialista, pois,

efetivamente, muitos cidadãos não teriam recursos econômicos para maximizar as

suas preferências e suas responsabilidades existenciais no plano da saúde individual.

(MONTARROYOS, 2013, p.111)

Page 156: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

156

5.5 CRÍTICAS AO SEGURO HIPOTÉTICO

Qual seria, no modelo de seguro hipotético proposto por Dworkin, a situação daqueles

que escolhessem não adquiri-lo caso fosse disponível no mundo real? Seria moralmente

justificável negar-lhes cuidados de emergência na hipótese do risco se concretizar?

Para o filósofo, mesmo que a disponibilidade de tal seguro em condições justas no

mercado ideal seja improvável, caso ele existisse, haveria bons motivos para impor o seguro

como obrigatório, a fim de proteger tanto o indivíduo de escolhas equivocadas, quanto a

sociedade dos custos com os quais teria de arcar em decorrência dessas escolhas.

(DWORKIN, 2005, p.114-115). Entretanto, para Ferraz (2007):

Ou Dworkin admite que o ideal da igualdade não é ‗soberano‘ em todas as situações,

ou tem que aceitar a crítica de que sua teoria, levada às últimas consequências, de

fato recusaria qualquer compensação para aqueles que não tivessem adquirido o

seguro mesmo tendo a oportunidade de fazê-lo. Na primeira hipótese, que entendo

mais adequada, estaria abdicando porém de sua autodefinição como pensador-

ouriço, na famosa classificação de Isaiah Berlin. (FERRAZ, 2007, p.253)

A afimação de que o filósofo recusaria qualquer compensação àqueles que não

tivessem adquirido o seguro não se coaduna com a totalidade da teoria propugnada por

Dworkin:

Na verdade, deve ser garantido o mínimo existencial da parte do Estado; e nesse

contexto, ainda, o monitoramento de um órgão democrático especializado no tema

da saúde seria fundamental para estabelecer padrões legítimos de serviços públicos

na comunidade. Além disso, a maioria e as minorias deveriam participar na

definição de prioridades de atendimento; também a liberdade de escolha estaria

disponível para quem desejasse comprar planos complementares além do básico que

teria sido estipulado pelo Governo, via Conselho Nacional de Saúde; e esse

complemento não seria subsidiado pelo poder público. Além do mais, no dia a dia da

igualdade de recursos, seria totalmente aceitável, segundo ele, que a intervenção do

governo, às vezes, acontecesse com a intenção de garantir as circunstancias nas

quais deveriam ocorrer as escolhas individuais, ao mesmo tempo, incentivando o

cidadão a assumir a responsabilidade direta sobre o destino de sua própria vida

pessoal. (MONTARROYOS, 2013, p.111)

Dessa forma, para que a comunidade assegure a igualdade de recursos, deve oferecer o

mínimo existencial, propiciando a mesma quantidade de recursos assistenciais públicos na

base, que pode ser, ou não, maximizado pela liberdade de escolha e responsabilidade de cada

um na sociedade, uma vez que o filósofo admite a possibilidade de que aquelas pessoas

dispostas a gastar mais em atendimento especial realizem o pagamento através de um seguro

complementar.

Page 157: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

157

6 CONCLUSÃO

As lições trazidas por Jeromy Waldron são de extrema valia para o esclarecimento da

importância das teorias de justiça para a análise dos direitos socioeconômicos. A partir de sua

análise, verifica-se a insuficiência das teorias de direitos para a justificação moral desses

direitos, e no tocante a decisões sobre conflitos que envolvam outras reivindicações. Além

disso, demonstra que a urgência de tais demandas é óbvia por vivermos em um mundo real e

desigual, entretanto, os impactos trazidos por sua efetivação nas perspectivas de vida dos

indivíduos, e também da sociedade como um todo, só são considerados a partir de um mundo

ideal, abstrato.

A teoria de Rawls é importante para definir os princípios básicos de justiça que regem

a estrutura da sociedade, mas insuficiente, de forma proposital, para questões como políticas

públicas. Assim, verifica-se a importância da teoria de Daniels, ao ampliar o conceito de

oportunidades de Rawls, e assim, incluir a saúde na lista de bens primários, elaborando uma

justificativa moral plausível para a assistência médica universal. Entretanto, apesar de tentar

fornecer uma distinção, não fica claro o porquê de outras demandas não serem inclusas nessa

lista, como a alimentação, que também é distribuída desigualmente e, num contexto mais

amplo, também pode ser extremamente custosa para quem recebe salários mínimos.

Por fim, a teoria de Ronald Dworkin é a que parece melhor se adequar às exigências

da igualdade, por também dar relevante importância à responsabilidade decorrente de

escolhas livres. Através de sua teoria, é possível uma alternativa à aplicação extremada do

princípio do resgate, pois seu liberalismo existencialista não busca a satisfação das

necessidades dos indivíduos e, por conseguinte, de uma igualdade ex post, que ignora os

gostos dispendiosos, mas sim, proporciona a ideia de uma igualdade ex ante, através da

hipótese do leilão hipotético. Como não vivemos nesse mercado ideal, não existe uma

distribuição justa dos recursos, motivo pelo qual existem tantas desigualdades.

Por conseguinte, defende a hipótese do seguro hipotético no campo da saúde: a

comunidade deve gastar coletivamente em saúde a cobertura que pessoas médias da

comunidade em questão, de prudência normal, teriam contratado num mercado de seguros

competitivo em igualdade de condições, assegurando àqueles que desejarem um seguro

complementar. Garante, assim, a proteção do ideal de igualdade e da liberdade, uma posição

intermediária entre o laissez-faire e o ―welfare state‖ e do individualismo e comunitarismo.

Page 158: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

158

REFERÊNCIAS

CANOTILHO, J.J. Gomes. Metodologia ―fuzzy‖ e ―camaleões normativos‖ na problemática

actual dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: Estudos sobre direitos fundamentais.

Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p.100.

DANIELS, Norman. Justice, Health and Health Care. In: American Journal of

Bio‐Ethics.(Spring 2001), vol. 1, n. 2. Disponível em:

<http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1162/152651601300168834?url_ver=Z39.88-

2003&rfr_id=ori:rid:crossref.org&rfr_dat=cr_pub%3dpubmed#.U2rZiPldU20> Acesso em:

03 abr. 2014

_______. Just Health: Meeting health needs fairly. New York: Cambrigde University Press,

2008.

_______. ―Porque a justiça é importante para a nossa saúde.‖ Revista Idéias, IFCH –

UNICAMP, vol.01, n. 02, Campinas - SP, 2011.

DE MARIO, Camilla Gonçalves. Saúde como questão de justiça. 2013. Dissertação

(Doutorado) - Curso de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,

2013. Disponível em:

<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000905800>. Acesso em: 20 mar.

2014.

DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo:

Martins Fontes, 2005.

__________________.Justice for Hedgehogs. Cambridge, Mass.: Harvard University Press,

2011.

FERRAZ, Octávio Luiz Motta. A justiça distributiva para formigas e cigarras. Revista Novos

Estudos, São Paulo, n. 77, mar. 2007. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000100013>.

Acesso em: 22 març. 2014.

MONTARROYOS, Heraldo Elias. Observatório Constitucional Ronald Dworkin:

reconstruindo o liberalismo do livro ―A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade‖.

Universitas/JUS, Brasília, v.24, n.1, p.89-118, jan./jun. 2013. Disponível em:

<http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/jus/article/view/2182>. Acesso

em: 27 mar.2014.

NOZICK, Robert. Anarchy, State and Utopia. Oxford: Blackwell Publishers Ltd, 1999.

Page 159: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

159

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008.

____________. Justiça como Equidade. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2003.

____________. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 2005.

SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e

efetividade do Direito à Saúde na Constituição de 1988. Revista Eletrônica sobre a

Reforma do Estado (RERE), Salvador/BA, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 11,

setembro/outubro/novembro de 2007. Disponível em: <http://direitodoestado.com.br/rere.

Acesso em 25/10/2012> Acesso em: 05 abr. 2014

VITA, Alvaro de. ―Apresentação da Edição Brasileira‖. In: RAWLS, J. Uma Teoria da

Justiça. Ed. Martins Fontes, 2008b.

WALDRON, Jeremy. Socioeconomic Rights and Theories of Justice. NYU School of Law,

Public Law Research Paper, n.10-79, 2010. Disponível em:

<http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1699898>. Acesso em: 27 mar. 2014.

WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Revista Seqüência,

Florianópolis, n. 5, p. 48-57, 1982. Disponível

em:<https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17121>. Acesso em: 30 mar.

2014.

Page 160: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

160

A TRAJETÓRIA DA PSIQUIATRIA E SUA RELAÇÃO BÁSICA COM O

DIREITO

Arthur Cicupira Rodrigues de Assis1

Ana Carolina de Souza Pieretti2

Sumário: 1 Introdução. 2 A Psiquiatria e a sua Relação com o Direito ao Longo da

História. 3 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo perquirir sobre a trajetória da psiquiatria e da

sua relação básica com o Direito, especialmente no que se refere ao direito à saúde.

Por meio de um método descritivo e de uma análise histórica, busca-se compreender

as diversas etapas das interações entre a psiquiatria e o direito ao longo da evolução da

sociedade humana.

2 A PSQUIATRIA E A SUA RELAÇÃO COM O DIREITO AO LONGO DA

HISTÓRIA

A curiosidade do ser humano a respeito dos fenômenos e processos mentais que

implicavam em mudanças no comportamento das pessoas está presente desde o período antes

de Cristo (SHORTER, 1997).

A psiquiatria e a medicina, nesse tempo supracitado, possuíam um viés mágico,

fantasioso, intuitivo, em que as doenças eram vistas como consequências das possessões de

espíritos malignos ou, segundo Hipócrates (um dos ícones da medicina antiga), da relação

desequilibrada entre os quatro humores corporais (SHANSIS, 2007) – sangue (coração),

fleuma (sistema respiratório), bílis amarela (fígado) e bílis negra (baço). Os processos

psicopatológicos não se resumem apenas ao orgânico, social ou histórico clínico do indivíduo;

o aspecto psicológico possui uma fração relevante na história natural das doenças mentais, e,

portanto, o entendimento desses mecanismos recebeu teorias importantes de filósofos como

Aristóteles, Sócrates e Platão, que estudaram os juízos, o raciocínio e a memória, ideias

utilizadas até hoje em ciências como a antropologia, que possui relação interdisciplinar com a

psiquiatria.

1 Graduando em Medicina pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG.

2 Mestre em Saúde da Família, médica professora auxiliar pela Universidade Federal de Campina Grande -

UFCG.

Page 161: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

161

Com o advento do Cristianismo, a ideia de que os transtornos da mente eram

resultados predestinados da ira divina foi bastante difundida, o que dificultou a observação,

análise e compilação de casos psiquiátricos, especialmente na Idade Média (entre os séculos

V e XV), período em que o sobrenatural estava intensamente presente nas crenças das

pessoas.

A primeira abordagem mais concreta com relação aos pacientes psiquiátricos surgiu

na Europa, no século IX. Foram criados locais para assistência, reclusão e subsequente

afastamento desses indivíduos da sociedade, pois eram considerados de alta periculosidade

para os outros sujeitos – o início da institucionalização da loucura. Juntamente com os

considerados loucos estavam criminosos, desempregados e indigentes, os quais recebiam o

mesmo tratamento de isolamento e até a utilização de grilhetas e privação alimentar

(SHORTER, 1997). Essas instituições, portanto, não serviam para o tratamento dos doentes,

mas apenas para contribuírem com a ocultação da miséria social na época.

A Revolução Francesa (1789 – 1799) foi um marco para a psiquiatria. Os lemas

humanistas desse período (liberdade, igualdade e fraternidade) sensibilizaram parte da

população, que reivindicou mudanças na abordagem aos pacientes com distúrbios mentais. O

ícone desse período foi o médico francês Philippe Pinel, o primeiro a tentar sistematizar as

alterações psíquicas em entidades clínicas. Pinel considerou o doente psiquiátrico como um

alienado, não sujeito às leis, e que deveria receber um tratamento institucionalizado, mas não

caracterizado com aspectos desumanos. O enfermo deveria receber um tratamento moral,

baseado no seu isolamento social para reorganização da sua mente. A pressão da população

diante das condições dos doentes mentais, a superlotação do Hospital Geral de Paris (Hôpital

de la Salpêtrière)e as ideias de Pinel resultaram na instauração da Lei de 1838, que legitimou

– em termos administrativos e jurídicos – a psiquiatria e o manicômio, bem como a tutela

médica sobre o doente mental (DESVIAT, 1999). Além disso, o alienado já não poderia mais

ser enclausurado sem respaldo jurídico, de acordo com a Declaração dos Direitos do Homem

e do Cidadão. Nessa época, as dificuldades para impor fronteiras ou definir a interseção entre

psiquiatria e o Direito já estavam presentes. O homicida Pierre Rivière (acusado de matar a

mãe, o irmão e a irmã com golpes de foice) foi a primeira pessoa inocentada por possuir

doença mental, em 1835 (DESVIAT, 1999).

Todavia, o otimismo do movimento alienista foi logo dilacerado devido à massificação

dos hospitais psiquiátricos – cerca de quatrocentos a quinhentos pacientes para cada médico –

e à vitória do organicismo, isto é, dos danos biológicos no doente, cujo tratamento moral não

surtia o efeito esperado.

Page 162: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

162

Outro período marcante para a psiquiatria foi o pós-Segunda Guerra Mundial. O

conflito militar durou de 1939 a 1945, e após seu fim, as pessoas mais uma vez foram

sensibilizadas diante da crueldade vivida naquele período e passaram, novamente, a

reivindicar melhorias nas condições de terapias aos doentes mentais. Foi nesse contexto que

surgiram as primeiras reformas psiquiátricas (DESVIAT, 1999). Com essas primeiras

tentativas de discutir alternativas ao tratamento institucional tradicional, também foram

descobertos os medicamentos psicotrópicos e a incorporação da psicanálise e saúde pública à

psiquiatria. Como opções a uma reforma manicomial ou ao seu fim, foram discutidas: a

transformação do hospital psiquiátrico em uma instituição terapêutica (Psicoterapia

Institucional, na França; Comunidade Terapêutica, no Reino Unido) ou o fechamento do

manicômio (Psiquiatria Anti-institucional, na Itália; Desinstitucionalização, nos Estados

Unidos da América – EUA).

A Psicoterapia Institucional e a Política de Setor ocorreram na França e foram a

tentativa mais rigorosa de salvar o manicômio, inclusive com a prerrogativa de que não são os

muros do hospital que fazem dele um manicômio, mas sim, as pessoas que o compõem

(DESVIAT, 1999). A Psicoterapia Institucional, como o próprio nome já explicita, é o

tratamento psiquiátrico dentro das instituições, mas de uma forma humanizada, com forte

presença da psicanálise – método desenvolvido por Sigmund Freud, que consiste em

manobras para externalização de pensamentos represados no subconsciente para fins

psicoterapêuticos (COSTA, 2009) e da alteração das formas de relacionamento entre os

profissionais e os doentes – horizontalização do contato em detrimento da antiga

verticalização, em que o vínculo do profissional com o paciente era mecânico e ordenado,

sem flexibilização alguma. O seu fundador, Tosquelles, acreditava na aplicação de uma

verbalização dentro da instituição, que permitisse uma escuta analítica coletiva, denominada

escuta polifônica (DESVIAT, 1999) – a qual possui diversos atores divididos entre pacientes,

profissionais e voluntários com a adoção da psicanálise. Os procedimentos para a internação

do paciente deveriam ser aplicados com maleabilidade e o máximo de iniciativa médica. A

Política de Setor foi mais que parte da reforma psiquiátrica, mas uma medida para a saúde

pública da França, em que buscou dinamizar e revolucionar permanentemente o

estabelecimento psiquiátrico acompanhado de uma setorização do território e da criação de

instituições extra-hospitalares para assistência e reabilitação. Os três princípios fundamentais

da reforma psiquiátrica francesa foram: o zoneamento para facilitação da realização e

acompanhamento das alterações terapêuticas – delimitaram-se áreas com cerca de 50.000 a

100.000 habitantes; a continuidade do tratamento - uma mesma equipe, no conjunto de cada

Page 163: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

163

setor, deveria fornecer o tratamento e se encarregar do paciente, nos diferentes serviços

ofertados, desde a prevenção até a cura e reabilitação (pós-cura); o eixo da assistência

deslocou-se do hospital para o espaço extra-hospitalar. O paciente deveria ser atendido, na

medida do possível, na própria comunidade para evitar o efeito cronicizador do hospital

(DESVIAT, 1999).

Essas medidas encontraram dificuldades a partir do surgimento das especificidades de

cada doença psiquiátrica, o que promoveu uma cisão na prática do tratamento. O hospital

continuou como centro da terapia.

A Comunidade Terapêutica ocorreu no Reino Unido, iniciada pelo psiquiatra Maxwell

Jones, e foi um processo similar à reforma psiquiátrica francesa, com uma diferença

fundamental: os ingleses não adotaram a psicanálise como esteio, mas optaram por atividades

coletivas e recreações, como festas, reuniões em grupo diárias, bailes e excursões. Para

salientar a importância dessa alternativa ao manicômio, a Organização Mundial da Saúde

(OMS) tornou público um relatório, em 1953, que recomendou a mudança de todos os

hospitais psiquiátricos vigentes para comunidades terapêuticas em sua totalidade (DESVIAT,

1999). A liberdade de comunicação, análise recorrente de tudo o que acontece na instituição

(reuniões diárias dos pacientes e dos recursos humanos, psicoterapias de grupo), tendência a

destruir as relações de autoridade tradicionais em um ambiente de extrema tolerância e a

presença de toda a comunidade nas decisões administrativas do serviço são outras

características dessa importante reforma. Em 1954, houve também um avanço jurídico com

relação ao tratamento psiquiátrico no Reino Unido: a Lei da Saúde Mental, com o intuito de

proporcionar um atendimento adequado às pessoas com distúrbios mentais, sem restrições de

liberdade, a qual provocou sensível diminuição nas internações psiquiátricas (DESVIAT,

1999). Não era objetivo do governo inglês fechar os manicômios, em si, mas atribuir aos

hospitais gerais e hospitais-dia um papel mais assistencial, humanizado e coletivo ao doente

mental, além de permitir um tratamento mais local. O pilar dessa reforma seria o médico com

função semelhante ao médico de família e comunidade no Brasil, que garantiria o

atendimento longitudinal, contínuo, de um determinado paciente.

A Antipsiquiatria (surgiu na Inglaterra) foi mais um movimento alternativo ao manicômio

tradicional, mas que, didaticamente, não se enquadra no grupo das reformas psiquiátricas. Foi

uma ideologia contracultural às reformas, a qual questionava a existência da psiquiatria e da

própria doença mental. Segundo esse processo, os estados esquizoides resultariam de uma

insegurança ontológica do indivíduo, isto é, uma incapacidade de descobrir seu próprio papel

na sociedade ou o medo disfuncional de adaptar-se a esse dever (DESVIAT, 1999). Essa

Page 164: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

164

contestação foi importante no conceito da subjetividade social – como a vivência em

sociedade pode contribuir para o aparecimento de distúrbios mentais – e nas relações

institucionais e familiares.

A Psiquiatria Anti-institucional ocorreu na Itália e foi idealizada por Franco Basaglia –

médico psiquiatra em uma clínica universitária por treze anos, quando assumiu um hospício

na província de Gorizia (DESVIAT, 1999). Basaglia, a priori, transformou o manicômio em

uma comunidade terapêutica, até resolver reinserir o paciente para o local a que todos

pertencemos: a sociedade. Essa proposta resultaria na desarticulação do hospital psiquiátrico,

já que seria o início de um longo processo de desinstitucionalização do indivíduo com

distúrbios mentais. O maior propósito da atitude de Basaglia e colaboradores era extinguir a

reificação (―coisificação‖) do homem com transtornos psiquiátricos, isto é, fazer com que

esses enfermos sejam tratados como seres humanos, e não como uma classe marginal,

perigosa, à parte da sociedade. A tríade indicada por esse movimento que nega a instituição

psiquiátrica seria iniciada pela humanização do tratamento, seguida da conversão do

manicômio em comunidade terapêutica e a subsequente reinserção do indivíduo à sociedade

com todo o suporte de centros para assistência e reabilitação. A Psiquiatria Anti-institucional

inspirou um movimento denominado Psiquiatria Democrática, com o intuito de estender a

prática Basagliana a todo o país; essa atuação resultou na criação da Lei 180, de 1973 –

aprovada em 1978, que afirmava: não poderia haver novas internações psiquiátricas e tornou-

se proibida a construção de hospitais psiquiátricos na Itália; implementação do atendimento

contínuo; aboliu-se o estatuto da periculosidade social do doente mental; nos casos de

tratamento obrigatório, estabeleceu-se que um juiz deveria resguardar os direitos civis do

paciente (DESVIAT, 1999). Com a instauração da lei, houve um processo gradual de

desaparecimento dos manicômios pré-existentes; os hospícios já existentes deveriam ser

complementares aos serviços comunitários e não o inverso; a interdisciplinaridade deveria

estar presente em todo e qualquer tratamento psiquiátrico (equipe mínima com psicólogo,

assistente social, enfermeiro, técnico em enfermagem, terapeuta ocupacional, médico e

odontólogo).

Os Estados Unidos possuem uma peculiaridade negativa: país que destina a maior

porcentagem do seu Produto Interno Bruto (PIB) à população, mas que não consegue adquirir

um sistema público seguro. É preciso ter mais de 65 anos de idade ou reconhecidamente

indigente ou veterano das Forças Aramadas para possuir um atendimento médico medíocre.

Não há um sistema universal de saúde. A política de saúde pública nos EUA restringe-se a

ações em populações específicas ou proteção contra riscos ambientais (DESVIAT, 1999).

Page 165: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

165

O presidente John F. Kennedy (liderou o país de 1961 até ser assassinado em 1963)

elaborou um projeto denominado Projeto Kennedy no ano de sua morte, o qual reunia

serviços para prevenção ou diagnóstico precoce da doença mental, para a assistência e

tratamento dos indivíduos com transtornos mentais e para a reabilitação dessas pessoas. O

projeto previu a construção e capacitação de 2.000 centros para realização desses serviços,

mas apenas cerca de 600 foram fundados (DESVIAT, 1999). Muitos dos que chegaram a

funcionar, não corresponderam à altura do otimismo, pois logo constatou-se a incapacidade de

cobertura assistencial sem a presença de um sistema nacional de saúde. Ademais, a falta de

respostas técnicas para pacientes crônicos também colaborou para o insucesso desse projeto.

A Psiquiatria Preventiva de Gerald Caplan foi uma tentativa de diminuir as internações

psiquiátricas e consequentemente contribuir com a desinstitucionalização. Como o próprio

nome sugere, Caplan propôs o estudo e intervenção em populações de risco para reduzir a

frequência do aparecimento da doença (prevenção primária); o diagnóstico precoce e

tratamento adequado para diminuição da duração do acometimento (prevenção secundária) e a

capacidade estrutural e de recursos humanos para provimento da cura e de uma reabilitação

completa ao paciente, a evitar uma maior deterioração provocada pelo quadro (prevenção

terciária).

No Brasil, a reforma psiquiátrica foi iniciada no fim da década de 80, alguns anos após

as mudanças pioneiras na Europa e nos Estados Unidos. Impulsionados pelo clima da

discussão e sanção da Lei Orgânica da Saúde em 1990, que regula as ações e serviços de

saúde em todo o território nacional e estabelece os princípios, as diretrizes e os objetivos do

Sistema Único de Saúde (SUS), além de todas as denúncias referentes às condições de vida

deploráveis nos manicômios, os profissionais da saúde mental e a população se organizaram

em prol de melhorias para o tratamento psiquiátrico no país. Em 1989, entrou em tramitação

no Congresso Nacional o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado, que propõe a extinção

gradual dos manicômios e sua substituição por recursos comunitários no país e a

regulamentação dos direitos da pessoa com problemas psíquicos e da internação involuntária.

A lei só foi sancionada no ano de 2001 (Lei Federal 10.216), pelo então presidente Fernando

Henrique Cardoso (BRASIL, 2001), mas com alterações importantes em seu projeto original,

as quais resultaram em certa obscuridade no processo progressivo de extinção dos hospícios.

Em 1986, foi realizada a VIIIConferência Nacional de Saúde, indiscutivelmente um

avanço histórico na luta pelaconstrução do Sistema Único de Saúde. Em 1987, realizou-se a

IConferência Nacional de Saúde Mental, no Rio de Janeiro, cujo relatório foi referendado nos

pontos que nãocontradizem as decisões da Conferência posterior. Ainda no ano de 1987, em

Page 166: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

166

Bauru, o II EncontroNacional de Trabalhadores em Saúde Mental propôs a mudança das

premissas teóricas e éticas da assistência psiquiátrica vigente naquele momento. Em 1990,

realizou-se a Conferência de Caracas, a qual transformou-se em referência fundamental para o

processo de reforma do modelo de atenção à saúde mental que se desenvolve no país. Em

agosto de 1992, a IX Conferência Nacional de Saúde aprovou o fortalecimento da luta pela

vida, ética e municipalização da saúde, com ênfase na participação social. A II Conferência

Nacional de Saúde Mental ocorreu em Brasília, no período de 01 a 04 de dezembro de 1992 e

foi um marco para os avanços na atenção psiquiátrica comunitária, pois confirmou a união de

líderes governamentais e população em prol de profundas alterações no tratamento

psiquiátrico associadas ao gradual processo de desinstitucionalização.

Em 1993, foram estabelecidos critérios para o funcionamento dos hospitais

psiquiátricos em busca da humanização no tratamento do transtorno mental, como a proibição

das celas de isolamento e permissão da visita de familiares; obrigação da permanência de

médicos 24 horas e presença e participação de uma equipe multidisciplinar mínima. O Grupo

de Assistência Psiquiátrica Hospitalar (GAPH), criado também em 1993, possuía autonomia

para descredenciar aquelas instituições que transgredissem as normas pré-estabelecidas. Os

estados do Rio Grande do Sul, Pernambuco e Ceará foram os primeiros a criarem leis

progressistas nessa temática (DESVIAT, 1999). Alguns desses projetos legislativos

objetivaram: a mudança de leis que paradoxalmente não asseguram ou resguardam os direitos

fundamentais dos pacientes; a inversão do hospitalocentrismo; rede de recursos para atenção à

pessoa com doença mental; regulamentação das internações involuntárias; estímulo à

articulação dos programas assistenciais que não são nutridos por recursos sanitários

(cooperativas de trabalho, associações de usuários, familiares e as iniciativas de lazer).

Vale salientar que a sensibilização das autoridades e do povo foi muito mais rápida no

Brasil do que nos outros países.

Mais de cinquenta anos após o início das reformas psiquiátricas no mundo, houve o

surgimento de correntes que contestam essas mudanças devido aos resultados não terem

atingido o esperado. Essas correntes formam a chamada Contra-Reforma, que defendem a

volta do foco a um viés neuropsiquiátrico, orgânico, a separar psiquiatria de saúde mental, a

centralizar o papel do médico e relegar funções importantes de outros profissionais, como

enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais.

Desde o início das reivindicações e diálogos por melhorias no tratamento psiquiátrico,

muitos hospícios fecharam as portas, a ceder espaço para as redes alternativas comunitárias e

centros de reabilitação. Entretanto, dois motivos acarretaram um resultado muito aquém das

Page 167: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

167

expectativas dos protagonistas desses processos: a crise no seu esteio principal – o sistema

sanitário, social e comunitário, em que a rede de saúde pública de muitos locais não estava

preparada para o projeto. A intolerância e desconhecimento de grande parte da sociedade

também colaboraram para a falta de uma bilateralidade concreta entre comunidade e centros

de assistência à saúde mental. Em todos os processos de reforma, os voluntários foram muito

importantes no início, mas atualmente, muitos deles voltaram-se contra os protagonistas dos

movimentos, por não viverem os resultados otimistamente imaginados; além disso, a

psiquiatria biológica sempre se fez presente, acompanhada da evolução dos fármacos e das

promessas em torno desses medicamentos. O ensino da psiquiatria permanece, em quase todas

as escolas médicas, voltada apenas para o organicismo, à neuropsiquiatria, a esquecer toda a

relevância da vivência social com relação às manifestações da doença e prevaricar a

assistência pública à saúde mental.

3 CONCLUSÃO

A história da psiquiatria, a obscuridade da fisiopatologia e a complexidade do

diagnóstico e tratamento corroboraram com o preconceito formado há muitos anos com

relação ao doente mental e que permanece atualmente. Ter algum familiar com distúrbios

psiquiátricos é considerado motivo de vergonha por muitas famílias, que tentam ocultá-lo com

a prerrogativa de que está o protegendo – embora esteja se protegendo do devastador

preconceito da sociedade. Outro fato da sociedade moderna que exemplifica esse preconceito

são os termos pejorativos atribuídos aos doentes mentais, alguns deles, que inclusive,

culminaram com a progressiva extinção dos seus usos na medicina – as palavras imbecilidade

e idiotia eram classificações médicas utilizadas no retardo mental: a imbecilidade adequava-se

em pacientes com retardo de moderado a grave, enquanto que a idiotia era utilizada para

pacientes com retardo mental profundo (SANCHES, 2010). Diante da disseminação negativa

desses adjetivos, os médicos passaram a não mais os utilizarem.

A trajetória psiquiátrica sempre foi marcada por mais dilemas que certezas, que

resultou no surgimento de tabus e mitos históricos difíceis de serem superados. Até hoje,

algumas pessoas ainda creem na predestinação e castigo divino sobre os pacientes

psiquiátricos, influenciados pelas culturas passadas. A intensa e emaranhada atividade do

sistema nervoso central, além do seu difícil acesso para estudos in vivo contribuem para o não

aparecimento de certezas científicas e a compensação dessa incapacidade de resposta com a

apresentação de explicações místicas e sobrenaturais.

Page 168: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

168

Muitas doenças psiquiátricas já foram desvendadas, embora não de forma completa.

Hoje, algumas afecções como a doença de Parkinson (degeneração da substância negra

mesencefálica, rica em neurônios dopaminérgicos, que dificulta a inibição do corpo

neoestriado – rico em neurônios GABAérgicos e colinérgicos –, a promover, então, a

bradicinesia, instabilidade postural, hipertonia e tremores característicos da doença) e a

doença de Alzheimer (deposição de placas protéicas beta-amiloides no interstício da região

encefálica e de novelos neurofibrilares no citoplasma de neurônios, que promovem, entre

outros efeitos, uma depleção da acetilcolina, especialmente quando afetam o núcleo basal de

Meynert) tiveram boa parte de suas fisiopatologias descobertas, mas permanecem incuráveis

com um tratamento apenas estabilizador e, muitas vezes, com efeitos colaterais agravantes do

quadro. O estudo da fisiopatologia é importante para a busca pelo melhor tratamento

farmacológico, mas suas informações não são garantias de um resultado satisfatório, pois o

tratamento médico nunca pode ser pontual e voltado apenas ao orgânico.

A psiquiatria possui um diagnóstico que muitas vezes depende do olhar subjetivo do

médico, já que muitos sintomas podem ser sutis ou várias vezes omitidos pelo próprio

paciente. O histórico familiar é importante, especialmente em doenças psicóticas, como a

esquizofrenia. O diagnóstico precoce acompanhado de uma intervenção em fases iniciais ou

subclínicas tornam-se raros pela dificuldade de confirmar a patologia e da relutância do

paciente em procurar um especialista. Medidas de prevenção e promoção à saúde,

semelhantes às ações voltadas para outras afecções (doenças sexualmente transmissíveis,

hipertensão arterial sistêmica, diabetes), como palestras e panfletagem para conscientização

popular e capacitação profissional para um atendimento qualificado podem e devem ser

realizadas em todos os locais, especialmente naqueles notadamente com populações de risco –

por isso, a importância da coleta de dados estatísticos também em saúde mental.

Com relação ao Direito, a psiquiatria e a loucura encontram-se como fortes pretextos

para incapacidade, limitação ou perda da autonomia na vida de muitas pessoas (BARROS,

2009), mesmo que, orgânica ou funcionalmente, a doença não imponha essas desabilidades.

No Brasil, já em tempos de Getúlio Vargas, o intenso viés disciplinador, marginalizador, e,

assim, mascarador, embasado em uma psiquiatria violenta e sem alternativas para, aliada a

uma certa passividade ou não aprofundamento do Direito, ser uma importante ferramenta para

o controle ditatorial, ocultação da miséria e silenciamento de contra-argumentos (OLIVEIRA,

2011). Muitos dos considerados loucos em épocas de lideranças mais rígidas e anti-

democráticas eram simplesmente opositores mais convictos de ideias governamentais (muitos

deles, artistas) ou desempregados, pobres e indigentes. Até os dias atuais, o doente mental

Page 169: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

169

ainda é ligado à periculosidade e ao convívio impossível pela sociedade e até alguns

profissionais do Direito e da saúde, que julgam a internação psiquiátrica o melhor caminho –

não por ser o correto, mas por ser a escolha mais fácil. Para uma reinserção social dos loucos,

daqueles que são vistos sem razão e utilidade por não seguirem os padrões sociais, não basta a

abertura dos manicômios e a retirada de todos os pacientes de lá, mas sim, a abertura das

nossas mentes e conceitos, para a conscientização de todo o preconceito excludente que

envolve esses pacientes a fim de uma mudança não apenas estrutural do tratamento, mas

ideológica da sociedade (WICKERT, 1998).

Uma das pautas mais discutíveis que mescla o Direito com a psiquiatria é a da

internação involuntária e compulsória. Há três tipos de internação amparados pela lei

10.216/2001: voluntária (com o consentimento do indivíduo); involuntária (sem o

consentimento do indivíduo e a pedido de terceiro) e a compulsória (por determinação da

Justiça). Em todas elas, o papel do médico é imprescindível, mas a atuação dos juízes de

Direito e de terceiros – geralmente, da família – também ganham relevância, especialmente

nos casos em que há perda da autonomia ou incapacidade de discernir no paciente. Cabe a

todos os envolvidos, o conhecimento de toda a trajetória da psiquiatria e das formas

alternativas de terapêutica, para que a facilidade não se sobreponha ao certo.

É notória a evolução que o tratamento psiquiátrico conseguiu após muitas

manifestações disseminadas em diversos países, em prol de melhorias não apenas nas relações

interpessoais, mas na própria raiz da terapêutica: os manicômios. O tratamento institucional

foi pivô de vários crimes contra a espécie humana, atos de terror e marginalização em pessoas

que já se sentiam aterrorizadas e marginalizadas (VIZEU, 2005). O manicômio de Barbacena,

Minas Gerais, talvez seja o maior exemplo da malignidade institucional vivida no Brasil.

Comparado aos campos de concentração nazistas – não proporcionalmente, obviamente, mas

teratogenicamente – os pacientes também eram encaminhados para Barbacena através de

vagões de carga, passavam por um ―banho de desinfecção‖, tinham as cabeças raspadas, eram

uniformizados e confiscavam sua humanidade.

Diálogos sobre as formas que o Estado pode intervir e jurisdicionar casos psiquiátricos

devem sempre existir diante de tamanha complexidade e possibilidades, mas há a necessidade

de transformar palavras em atitudes, leis em práticas. A lei 10.216, sancionada no dia 6 de

abril de 2001, foi um avanço importante para a saúde mental no Brasil, mas não pode ser vista

como o fim de uma batalha que, pelo contrário, não tem previsão para término. Uma luta

contra a institucionalização, o preconceito e a desassistência aos portadores de distúrbios

mentais em todos os sentidos – da rede de saúde desarticulada ao profissional despreparado. A

Page 170: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

170

articulação do sistema sanitário pode ser feita a partir de estruturas intermediárias que

promovam a assistência ao paciente, como centros para realização de atividades diárias –

alimentação e higiene –, unidades de recreação para atividades de lazer, ampliação do

importante Centro de Apoio Psicossocial (CAPS) – para cuidados intensivos, semi-intensivos

ou não intensivos aos pacientes com sofrimento psíquico ou dependência química –, em

diversos locais no país, acompanhada da capacitação profissional e voluntária, e da parceria

com os programas inerentes à Estratégia Saúde da Família (ESF). O ensino das escolas de

saúde também representa uma fatia relevante nesse processo, pois muitos profissionais são

formados sem o conhecimento da trajetória psiquiátrica e de todas as experiências – positivas

ou negativas – já vivenciadas. Torna-se imprescindível a transmissão dos fatos históricos e

uma preparação não voltada apenas aos grandes laboratórios e efeitos medicamentosos – um

caminho bastante sedutor para os futuros profissionais, por ser mais fácil do que o manejo

integral (orgânico, psicológico e social). É importante um equilíbrio e ação sempre somatória

do laboratório neuro-endócrino-fisiológico, da semiologia psiquiátrica e do conhecimento

antropológico para a continuidade das reformas.

O desconhecimento das formas de tratamento em manicômios e também dos possíveis

modos mais humanizados e não excludentes dos pacientes com transtornos mentais favorece

para a passividade de grande parte da sociedade com relação a esse tema. Logo, quanto mais

produções científicas forem realizadas a respeito desses processos e mecanismos que

envolvem a psiquiatria, melhor compreendido será todo o seguimento de uma das ciências

mais complexas e fascinantes da humanidade, que permitirá uma maior aceitação e

participação popular aos processos de transição entre a psiquiatria tradicional, que exclui e

limita, e a ―nova psiquiatria‖ (VENANCIO, 1993), que reinsere e possibilita.

REFERÊNCIAS

BARROS, D. M.; SERAFIM, A. P. Parâmetros legais para a internação involuntária no

Brasil. Revista de Psiquiatria Clínica,São Paulo, v. 36, n. 4, 2009.

BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das

pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde

mental. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>.

Acesso em: 25 abr. 2014.

Page 171: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

171

COSTA, A. C. Psicanálise e saúde mental: a análise do sujeito psicótico na instituição

psiquiátrica. São Luís: EDUFMA, 2009.

DESVIAT, M. A reforma psiquiátrica. 1 ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.

OLIVEIRA, W. V. A fabricação da loucura: contracultura e antipsiquiatria. História,

Ciência, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, 2011.

SANCHES, D. R.; BERLINCK, M. T. Debilidade mental: o patinho feio da clínica

psicanalítica. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, Dez.

2010.

SHANSIS, F. Resgatando a história da psiquiatria. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do

Sul, Porto Alegre, v. 29, n. 2, mai./ago. 2007.

SHORTER, E. A History of Psychiatry: From the Era of the Asylum to the Age of

Prozac.Nova Iorque: John Wiley & Sons, 1997.

VENANCIO, A. T. A. A construção social da pessoa e a psiquiatria: do alienismo à "nova

psiquiatria". Physis:Revista de Saúde Coletiva,Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, 1993.

VIZEU, F. A. instituição psiquiátrica moderna sob a perspectiva organizacional. História,

Ciência, Saúde-Manguinhos,Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, jan./abr. 2005.

WICKERT, L. F. Loucura e direito a alteridade. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v.

18, n. 1, 1998.

Page 172: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

172

ATUAÇÃO JUDICIAL E O DIREITO À SAÚDE

JUDICIAL PERFORMANCE AND THE RIGHT TO HEALTH

Marianna Cavalcante de Aguiar1

Sumário: 1 Introdução. 2 A saúde como direito humano fundamental. 3 Os direitos

sociais. 4 A saúde na Constituição de 1988. 5 Sistema único de saúde. 6 Entraves na

concretização do direito à saúde. 7 Condutas estatais lesivas ao direito à saúde. 8

Princípio da separação dos poderes e discricionariedade administrativa. 9. Reserva

do possível e restrição orçamentária. 10 Responsabilidade estatal. 11 Atuação

judicial na concretização do direito à saúde. 12 Efeitos positivos. 13 Efeitos

negativos. 14 Atuação judicial na Paraíba. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo busca analisar os efeitos da intervenção judicial na proteção do

direito à saúde. Trata-se de tema abordado pelo Direito da Seguridade Social e pelo Direito

Constitucional, tendo em vista que o direito à saúde e a sua efetividade é um assunto bastante

discutido nos dias de hoje. O prestígio do tema se deve ao impacto das decisões judiciais no

Estado e suas finanças, bem como na sociedade em geral.

Tal direito encontra-se no grupo de direitos fundamentais de 2ª geração, os também

chamados de direitos sociais. Nossa Constituição Federal de 1988 deu destaque a esses

direitos quando os colocou em seu Título II, ―Dos Direitos e Garantias Fundamentais‖.

Essa classificação torna-se essencial a luz do art. 5º, §1º da CF que dispõe: ―as normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata‖. Entretanto, nosso

Poder Público parece não admitir ainda a força normativa da Constituição Federal, já que

muitas vezes ignora o preceito constitucional, afirmando que a norma do art. 196 da CF é

programática, ou seja, para ter efetividade depende de norma infraconstitucional.

Diante dessa situação, na qual muitas vezes as pessoas ficam à mercê da negativa do

Estado em fornecer o tratamento adequado de saúde, busca-se analisar qual o papel do

Judiciário em relação à proteção do direito à saúde e quais os efeitos das decisões judiciais

para as partes envolvidas nos processos, bem como para a sociedade e o próprio Estado.

Desse jeito, a primeira parte do trabalho se dedica a estudar os direitos fundamentais,

em especial, os da 2ª geração, no qual se enquadra o direito à saúde. Ademais, analisa os

dispositivos constitucionais que tratam do direito à saúde e discorre sobre as principais

características do Sistema Único de Saúde (SUS).

1 Graduada em Direito pela UFPB; Graduanda em Administração pelo IFPB.

Page 173: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

173

Em seguida, são abordados os principais obstáculos à efetivação do direito à saúde. Na

parte final, busca-se analisar a atuação judicial na efetivação do direito à saúde, além de expor

decisões judiciais referentes a este tema, em particular, as do Tribunal de Justiça da Paraíba.

Menciona-se também quais os efeitos positivos da interferência do Judiciário na saúde

pública, assim como os problemas decorrentes dessa intervenção. Por fim, defende-se a

relevância e utilidade desse tema, já que visa garantir o direito a uma vida digna e plena, com

base no princípio da dignidade da pessoa humana.

2 A SAÚDE COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL

A Constituição Federal de 1988 abre espaço privilegiado para os direitos humanos

fundamentais, enaltecendo dessa forma o ser humano e transformando-o no principal objetivo

do Estado. Como ensinou Kant apud Salazar e Grou2, o homem deve ser considerado um fim

em si mesmo, e é essa perspectiva que nossa Constituição abraça. Dessa maneira, em seu art.

1º coloca como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil: a dignidade da

pessoa humana, ratificando a importância dada ao ser humano por nosso ordenamento

jurídico.

O direito à saúde é considerado um direito social, classificado ao lado do direito à

educação, moradia, lazer etc. Enquanto que os direitos de 1ª geração são considerados

negativos, os de 2ª geração são denominados positivos, porque dependem diretamente de

ações do Estado para sua concretização. Assim,

[...] o que distingue os direitos sociais dos direitos de defesa é, basicamente, o seu

objeto: enquanto o objeto dos direitos de defesa é uma abstenção do Estado, ou seja,

um non facere [...]; os direitos sociais têm por objeto um atuar permanente do

Estado, ou seja, um facere, consistente numa prestação positiva de natureza

material ou fática em benefício do indivíduo, para garantir-lhe o mínimo existencial

[...]. (grifos do autor).3

É evidente que para analisar a temática da saúde, faz-se necessário estudar a dimensão

na qual esse direito é agrupado, bem como sua condição de direito fundamental e efetividade.

Lembre-se também do elo existente entre o direito à vida, a dignidade da pessoa humana e o

direito à saúde, sendo inconcebível estudar este último, sem fazer referência aos primeiros.

2 SALAZAR, Andrea Lazzarini; GROU, Karina Bozola. A defesa da saúde em juízo. São Paulo: Verbatim,

2009, p. 35. 3 CUNHA JÚNIOR, Dirleyda.Curso de direito constitucional. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 720.

Page 174: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

174

3 OS DIREITOS SOCIAIS

Os direitos sociais surgem com o objetivo maior de reduzir as desigualdades sociais,

tendo como postulados a justiça social, o princípio da solidariedade humana e o princípio da

dignidade humana.

A Revolução Industrial, em meados do século XIX, tinha como cenário um

capitalismo sem limites, no qual o Estado estava totalmente alheio às desigualdades sociais.

Nesse período, os trabalhadores sofriam grande opressão, trabalho esgotante e condições de

vida subumanas, sendo submetidos a jornadas diárias de até 16 horas e ambientes sem

nenhuma segurança ou higiene.4 Decididos a mudar essa realidade penosa, a classe operária

passou a se organizar e lutar por melhores condições. Era necessário que o Estado garantisse

outros direitos, além das liberdades públicas, nascendo assim o Estado Social.5

No Brasil, a Constituição de 1934 foi a primeira a consagrar os direitos sociais,

influenciada pela Constituição Mexicana de 1917, mas principalmente pela Constituição de

Weimar de 1919. A partir de então, todas as Constituições Brasileiras abordaram os direitos

sociais, sendo consagrados definitivamente como direitos fundamentais na Constituição de

1988.

Desde já, ressalte-se o nobre papel da nossa atual CF que garantiu formalmente a

fundamentalidade dos direitos sociais. Pode-se afirmar que ―[...] os direitos sociais são

verdadeiros direitos fundamentais, com força normativa e vinculante, que investem os seus

titulares de prerrogativas de exigir do Estado as prestações positivas indispensáveis à garantia

do mínimo existencial” (grifo do autor).6

A doutrina alemã acredita que o mínimo existencial garante que o indivíduo possa

levar uma vida de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana e com o princípio

do Estado Social de Direito. Assim, registre-se a ideia de Heinrich Schollerapud Ingo

Wolfgang Sarlet: a dignidade da pessoa humana estará assegurada ―quando for possível uma

existência que permita a plena fruição de direitos fundamentais, de modo especial, quando

seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade‖7.

4ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a história: história geral e história do Brasil. 12. ed.

São Paulo: Ática, 2003. 5 LIMA, George Marmelstein. Efetivação do direito fundamental à saúde pelo Poder Judiciário. Brasília,

2003. Disponível em: http://www.georgemlima.xpg.com.br/monografia.pdf. Acesso em: 10 ago 2013. 6CUNHA, op. cit., nota 2, p.722.

7SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais, o direito a uma vida digna (mínimo existencial) e o

direito privado: apontamentos sobre a possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares. In:

ALMEIDA FILHO, Agassiz; MELGARÉ, Plínio (orgs.). Dignidade da Pessoa Humana: fundamentos e

critérios interpretativos. Malheiros Editores, 2010, p. 389.

Page 175: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

175

Portanto, chega-se à conclusão que o mínimo existencial deve ser garantido,

independentemente de previsão constitucional, visto que esse direito deriva do próprio

princípio da dignidade da pessoa humana (sendo inconcebível uma vida digna sem recursos

mínimos para mantê-la).8

Para Luís Roberto Barroso o mínimo existencial pode ser definido como ―às condições

elementares de educação, saúde e renda que permitam, em uma determinada sociedade, o

acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate

público‖.9

Conclui-se então que o fundamento para os direitos sociais é a vida em sociedade,

além da cooperação e ajuda mútua, com a intervenção do Estado para minimizar as

desigualdades e garantir a efetividade de tais direitos, através de prestações positivas.

4 A SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Constituição da Organização Mundial da Saúde afirma que a ―saúde é um estado de

completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de

enfermidade.‖10

É, portanto, um bem fundamental.

A Constituição de 1988 foi a primeira a declarar a importância do direito à saúde,

porquanto o colocou no Título II, denominado: Dos Direitos e Garantias Fundamentais, no

qual o art. 6º declara expressamente: ―são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação

(...)‖ (grifo nosso). Além disso, vem disposto no art. 7º, incisos IV e XXII que o salário-

mínimo deve atender as necessidades básicas de uma família, inclusive a saúde e é direito do

trabalhador redução de riscos no trabalho que possam prejudicar sua saúde.

Conforme o art. 23, inciso II é competência de todos os entes federativos cuidar da

saúde. Desse artigo já podemos destacar o caráter solidário existente entre os entes, quando o

assunto é direito à saúde. Também estes possuem competência para legislar sobre a saúde,

preceito retirado do art. 24, XII c/c art. 30 I e VII.

8Idem ibidem.

9 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento

gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. 2008. Disponível em:

<http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI52582,81042-Da+falta+de+efetividade+a+judicializacao+

excessiva+Direito+a+saude>. Acesso em: 27 ago 2013. 10

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Constituição Da Organização Mundial Da Saúde. Disponível

em: <http://www.direitos humanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-

Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em: 02 jan 2014.

Page 176: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

176

Outro ponto a ser ressaltado na nossa Constituição a respeito desse tema, encontra-se

no art. 34, VII que permite a intervenção federal para assegurar ―aplicação do mínimo exigido

de receita resultante de impostos estaduais, [...] nas ações e serviços públicos de saúde‖.

O Título VIII trata da Ordem Social, a qual possui como objetivo o bem-estar e a

justiça social. O art. 194 caput traz a seguinte redação: ―a seguridade social compreende um

conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a

assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social‖ (grifo nosso).

Apenas no art. 196 da Constituição, encontra-se quatro princípios do direito à saúde. O

primeiro deles, a universalidade, quando afirma que a saúde é direito de todos. Em seguida, a

gratuidade, já que é dever do Estado garantir a proteção do direito à saúde, através de políticas

públicas. Logo após, o acesso universal e igualitário.E por fim, a integralidade, porque a

assistência dada pelo Estado deve ser integral/completa, assim, prevenção, tratamento e

recuperação fazem parte do dever do Estado com o intuito de proteger o bem fundamental, a

saúde.

O art. 197 dispõe que as ações e serviços de saúde são de relevância pública, e cabe ao

Poder Público, através de lei, regulamentar, fiscalizar e controlar as atividades relacionadas à

saúde por pessoa física ou jurídica de direito privado.

No art. 199 a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, atuando de forma

complementar ao Sistema Único de Saúde. Observa-se que o caráter da iniciativa privada

nesse caso é residual/subsidiária, ressaltando as unidades públicas de atendimento, seguidas,

apenas se necessário, da iniciativa privada. Outrossim, o gestor do SUS não possui poder

discricionário ao escolher as instituições privadas que irão complementar a atividade dos

SUS, visto que a norma constitucional afirma ter preferência as entidades filantrópicas e as

sem fins lucrativos.

Ainda sobre o mesmo artigo, o §3º veda a participação direta e até mesmo a indireta de

empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no Brasil, salvo em casos previstos na

lei.

O art. 227 determina que é dever da sociedade e do Estado garantir à criança, ao

adolescente e ao jovem, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, entre outros.

Além disso, o art. 230 determina ser dever do Estado, sociedade e família amparar as pessoas

idosas, assegurando sua dignidade, bem-estar e direito à vida.

Essas normas constitucionais apenas confirmam a importância dada pelo Constituinte

ao direito à saúde, consequentemente ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Tal

Page 177: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

177

direito não possui relevância apenas nacional, mas tem caráter supranacional, pois se trata de

direito humano fundamental.

As prestações não satisfeitas pelo Estado, faz com que seus destinatários recorram ao

Judiciário a fim de concretizar seus direitos por meio da demanda judicial, de acordo com o

art. 5º, XXXV da CF ―a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a

direito‖.

O grande desafio do Judiciário é proteger o direito à saúde e garantir sua efetividade,

obedecendo às normas constitucionais e infraconstitucionais, sem ultrapassar os limites

impostos à sua atividade jurisdicional.

5 SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

A Constituição Federal faz referência ao Sistema Único de Saúde (SUS) em seus

artigos 198 e 200, além de ser regulamentado por leis infraconstitucionais: Lei Orgânica da

Saúde nº 8080/90 – trata da promoção, proteção e recuperação da saúde, organização e

funcionamento dos serviços de saúde – e Lei nº 8142/90, trata da participação da comunidade

na gestão do SUS, bem como dos recursos financeiros nessa área.

Ao longo do tempo, os direitos sociais, dentre eles o direito à saúde, sofreram

resistência quanto à sua eficácia e efetividade. Tal problema foi uma preocupação para o

constituinte, que por sua vez, procurou dar concretude às normas de direito à saúde,

estabelecendo algumas disposições para atender esse objetivo, dentre elas, a criação do SUS.

O art. 4º da Lei n° 8080/90 traz que o SUS é composto por ―ações e serviços de saúde,

prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da

Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público[...]‖.

Então, quais são os objetivos desse sistema (SUS)? Identificar e divulgar os fatores

condicionantes e determinantes da saúde; formular políticas de saúde destinadas a promover,

nos campos econômico e social, a redução de doenças e outros agravos; assistir às pessoas por

meio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, através de ações assistenciais e

atividades preventivas11

.

Além disso, suas atribuições podem ser encontradas no art. 200 da CF e no art. 6º da

Lei Orgânica da Saúde, as quais destacamos: controle e fiscalização de procedimentos,

produtos e substâncias de interesse para a saúde; execução das ações de vigilância sanitária,

11

Art. 5º da Lei 8080/90.

Page 178: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

178

epidemiológica e as de saúde do trabalhador; ordenação da formação de recursos humanos na

área de saúde; execução de políticas de saneamento básico; vigilância nutricional e orientação

alimentar; entre outras.

Lembre-se ainda que o art. 198 caput da CF traz a seguinte redação: ―as ações e

serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem

um sistema único[...]‖ (grifo nosso). ―A regionalização, [...], é entendida como a distribuição

espacial de serviços de saúde, organizados para atender à população de uma região‖.12

Como

exemplo, o Hospital Estadual de Emergência e Trauma Senador Humberto Lucena, localizado

na cidade de João Pessoa-PB, que atende na área de traumatologia, queimados e outros

serviços de urgência e emergência a população dessa cidade e das microrregiões da Zona da

Mata e do Brejo. No caso narrado, observa-se a organização da saúde por circunscrição

territorial, sendo esta unidade de saúde referência para população das regiões já citadas.

A expressão ―hierarquizada‖não indica uma ordem funcional, apenas supõe níveis

distintos de complexidade de atenção integral à saúde, a fim de otimizar os recursos. São três

os níveis de atenção: primário, pequena complexidade; secundário, complexidade

intermediária; terciário, alta complexidade.

A descentralização com direção única em cada esfera de governo permite que cada

ente tenha um órgão responsável pela gestão da saúde. Na União, o Ministério da Saúde; nos

Estados, Distrito Federal e Municípios, as Secretarias de Saúde ou órgão equivalente. Com

relação a essa diretriz, defende-se muitas vezes o processo de municipalização, onde o

Município teria como responsabilidade gerir os serviços de saúde, mesmo em relação a

equipamentos e instituições de outros entes federados e da iniciativa privada. Pressupõe que o

Município conheça de perto a realidade da sua população, o que facilitaria o atendimento às

suas necessidades. Entretanto, cabe dizer que permanece a responsabilidade solidária de todos

os entes públicos, pois o dever de assistência à saúde é competência comum.

Outra diretriz do SUS é a assistência integral, ou seja, o sistema envolve todas as

ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde das pessoas, porém traz como

prioridade as atividades preventivas.

Por fim, o art. 198, III da CF estabelece a participação da comunidade na gestão do

SUS. A Lei nº 8142/90 regulamenta essa participação, permitindo a criação das instâncias

colegiadas: Conferência de Saúde e Conselho de Saúde, em cada esfera de governo.

12

SALAZAR e GROU, op. cit., nota 1, p.46.

Page 179: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

179

O Sistema Único de Saúde foi criado pela Constituição de 1988 com a finalidade de

assegurar o direto à saúde a todos os indivíduos, facilitando a operacionalização dos serviços

de saúde. Essa foi uma excelente proposta do Constituinte que permitiu o acesso universal e

igualitário a todos os cidadãos e dessa maneira garantiu também melhores condições de vida.

Resta saber, o SUS está cumprindo sua missão? Ademais, os governantes estão colocando em

prática políticas públicas que dão efetividade à saúde?

6 ENTRAVES NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Apesar de ser um direito fundamental constitucionalmente garantido, o direito à saúde

enfrenta alguns obstáculos para sua efetivação. Esse tópico se dedica ao estudo desses

obstáculos, trazendo exemplos de casos concretos, além de decisões judiciais e suas

construções argumentativas.

7 CONDUTAS ESTATAIS LESIVAS AO DIREITO À SAÚDE.

Assegurar o direito à saúde ao povo brasileiro foi um importante passo dado pela

nossa Constituição de 1988. No entanto, apesar de sua constitucionalização, existem ainda

diversas formas do Estado violar tal direito, e por isso a crescente judicialização da saúde, a

fim de corrigir determinados atos ou omissões do Executivo ou Legislativo que possam obstar

a concretização desse direito.

Se o Poder Público adota uma conduta que prejudique a saúde de uma coletividade, o

depósito de resíduos sólidos, por exemplo, em local inapropriado, deve o Judiciário intervir

caso seja acionado.

Assim, pode-se citar o antigo lixão do Roger – hoje já desativado – na cidade de João

Pessoa-PB como clara ofensa por parte do Poder Público ao direito à saúde. Antes de 2003, os

resíduos sólidos da Grande João Pessoa eram jogados nesse espaço de 17 hectares, onde

inclusive viviam várias famílias. Sobre os riscos à saúde nessa área, afirma o professor Gilson

Barbosa Athayde Júnior: ―detectamos uma concentração intensa de metais pesados nessa área,

como alumínio, chumbo e mercúrio. Os riscos podem provocar diversas doenças, desde

problemas neurológicos, passando pelo câncer e outros problemas de saúde‖.13

13

MAGALHÃES, Marina. Resquícios do lixão. Jornal da Paraíba.Disponível em:

<http://www.espacoecologiconoar.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=8813&Itemid=1>.

Acesso em: 25 jan 2014.

Page 180: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

180

Outrossim, o exemplo acima citado configurava uma conduta ativa do Estado,

resultando em uma violação ao direito à saúde e à vida daqueles moradores. Neste norte, o

próprio Poder Público reconheceu sua falha e determinou a cessação do depósito de resíduos

sólidos naquele local.

Além disso, o Estado pode violar o direito à saúde através da edição de normas que

dificultem o exercício desse direito ou mesmo que o protejam insuficientemente. Ocorreu isso

quando Collor decidiu bloquear as cadernetas de poupanças dos cidadãos, fazendo com que

muitos fossem ao Judiciário para conseguir a liberação dessas contas e assim utilizá-las em

tratamentos de saúde.14

Quando as violações do Poder Público ao direito à saúde são decorrentes de condutas

positivas, a resposta dada pelo Judiciário para correição destas é relativamente simples:

determina a abstenção do Estado, isto é, que ele deixe de praticar o ato que está dificultando o

exercício do direito à saúde.

Todavia, pode-se dizer que o Judiciário enfrenta maior dificuldade quando constatado

que a ofensa ao direito à saúde decorre de uma omissão estatal. A atuação judicial nesse caso

é conflitante, pois o juiz enfrenta diversos desafios para dar uma resposta satisfatória ao caso,

sem ultrapassar seus limites jurisdicionais. Assim, o Poder Judiciário exige uma prestação

positiva por parte do Estado.

Quanto à inércia estatal, destaca-se a omissão de editar normas que regulamentem o

exercício do direito à saúde. Dessa forma os entes públicos utilizam em suas defesas o

argumento de que a norma constitucional do art. 196 é programática, necessitando de

regulamentação infraconstitucional para torná-la eficaz. Porém, tal norma tem aplicação

imediata por se tratar de direito fundamental. Então, sua regulamentação apenas iria facilitar

seu emprego e adequação à sociedade, isto é, não configura assim requisito essencial para sua

aplicabilidade.

A maioria dos Tribunais decide em favor das partes que pleiteiam algum tipo de

prestação positiva em relação à saúde contra o Estado. A postura adotada pelos julgadores é

digna de aplausos, mas observa-se que muitas decisões limitam-se a afirmar a

fundamentalidade do direito à saúde e não enfrentam os obstáculos fáticos para a

concretização de tal direito. Logo, defende-se uma maior consistência nas decisões,

principalmente porque estão atreladas as finanças do Poder Público.15

14

LIMA, op. cit., nota 4, p. 55. 15

LIMA, George Marmelstein. Efetivação do direito fundamental à saúde pelo Poder Judiciário. Brasília,

2003. Disponível em: <http://www.georgemlima.xpg.com.br/monografia.pdf>. Acesso em: 10 ago 2013

Page 181: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

181

Finalmente, ressalte-se que em determinadas ocasiões em vez do Estado agir em prol

dos cidadãos, fornecendo a eles mecanismos de proteção, acaba por lesionar determinados

direitos, assim ocorre com o direito à saúde.

8 PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DISCRICIONARIEDADE

ADMINISTRATIVA

A separação de poderes e a discricionariedade administrativa aparecem muitas vezes

como argumentos contrários a atuação do Poder Judiciário em demandas judiciais que exigem

determinados comportamentos do Executivo ou do Legislativo.

Quando o indivíduo não consegue certo medicamento ou procedimento médico na

rede pública de saúde, recorre ao Judiciário para que este possa garantir seu tratamento o mais

rápido possível. Ocorre que o ente público ao fazer sua defesa no processo afirma que o Poder

Judiciário não pode intervir no âmbito de atuação do Executivo ou Legislativo, em respeito ao

princípio da separação e harmonia entre os poderes e a discricionariedade administrativa.

O princípio da separação de poderes foi consagrado em todas as Constituições

brasileiras, a começar pela do Império de 1824, que adotava uma separação quadripartida. Já a

Constituição de 1891 seguiu os ditames de Montesquieu, propondo uma divisão tríplice. A

Constituição de 1934 estabeleceu a independência entre os poderes e previu em seu art. 3º, §

2º ―o cidadão investido na função de um deles não poderá exercer a de outro‖. A Constituição

autoritária de 1937 não trouxe de forma expressa o dogma da separação de poderes. A

Constituição de 1946, de 1967 e a de 1988 estabeleceram que os Poderes Legislativo,

Executivo e Judiciário são independes e harmônicos entre si.16

Vale ressaltar, que a melhor nomenclatura a ser utilizada é a de tripartição de funções,

visto que o poder é uno e indivisível. Outrossim, cada órgão do Estado é responsável,

predominantemente, por uma função, podendo ainda exercer de forma subsidiária a função de

outro órgão. Assim, nossa Constituição de 1988 estabelece em seu art. 2º a independência e

harmonia entre os poderes, ditando um sistema de ―freios e contrapesos‖, no qual ficou

estabelecido a competência e os limites de cada poder.

Todavia, os governantes defendem a ilegalidade do controle judicial das políticas

públicas, cabendo aos administradores públicos a análise da conveniência e oportunidade de

determinada conduta. Esse argumento é construído sobre o prisma da separação e harmonia

16

CUNHA, op. cit., nota 2.

Page 182: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

182

entre os poderes. Entretanto, o Judiciário não pode deixar de apreciar atos do Executivo ou

mesmo do Legislativo que venham violar direitos fundamentais, e consequentemente nossa

Constituição.

A atuação do Poder Judiciário torna-se essencial a fim de conferir consistência aos

dispositivos constitucionais que abrigam os direitos humanos. Outrossim, age como poder

subsidiário, última alternativa para correição das falhas administrativas e legislativas

relacionadas ao direito à vida e à saúde.

A discricionariedade administrativa anda ao lado da separação de poderes, por isso são

tratadas no mesmo tópico. Os atos discricionários são aqueles que o administrador analisa a

conveniência e oportunidade de determinadas ações, estabelecendo qual a melhor forma,

tempo e local para agir. Assim, alguns autores acreditam que o aspecto político desses atos

não devem ser analisados pelo Judiciário, apenas seu aspecto legal.Contudo, o administrador

não é livre para concretizar ou não direito fundamental, a omissão não é tolerada.

Não cabe aqui o total desprezo pelas escolhas administrativas, o que se defende é a

execução de políticas públicas eficientes, com capacidade de garantir o mínimo vital para seus

indivíduos.

A separação de poderes e a discricionariedade administrativa não podem ser barreiras

à concretização dos direitos sociais. Ao contrário, a separação de poderes visa coibir o

excesso de poder nas mãos de um só órgão, fazendo com que cada poder possa fiscalizar o

outro e assim estabelecer um equilíbrio de forças. Além disso, a discricionariedade

administrativa proporciona ao administrador certa maleabilidade na tomada de decisão, já que

o ―engessamento‖ completo da atuação do Poder Público não permitiria que este se adaptasse

rapidamente as mudanças sociais. Dessa maneira, tais argumentos são trazidos pela

Constituição como instrumentos de proteção a determinados direitos, e por isso não devem ser

usados para impedir a atuação judicial frente à inércia estatal que viole o direito à saúde, ou os

demais direitos humanos.

9 RESERVA DO POSSÍVEL E RESTRIÇÃO ORÇAMENTÁRIA

O direito à saúde, por se enquadrar nos direitos prestacionais, tem sua efetividade

condicionada a ações do Estado e a uma situação econômica relevante. Daí a reserva do

Page 183: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

183

possível ser entendida como a disponibilidade de recursos econômicos para as prestações do

Estado.

O conceito de reserva do possível foi criado em meados de 1970 pela doutrina e

jurisprudência alemã, entendendo essas que a efetividade dos direitos sociais está

condicionada à real presença de recursos públicos nos cofres do Estado. Tal teoria foi

―importada‖ pelo nosso país, utilizada pelos entes públicos para justificar suas omissões em

relação à população e a garantia dos direitos sociais. Sabe-se que ao trazer teorias de outros

países para nossa realidade, deve haver ao menos uma adaptação, pois estas vêm de bases

culturais, econômicas e jurídicas totalmente diferentes das do Brasil. A Alemanha é um país

desenvolvido, onde existe um padrão mínimo vital para sua população, realidade incompatível

com a do Brasil, país em desenvolvimento.

Por conseguinte, em um país que ainda não é capaz de garantir o mínimo vital para seu

povo, privando-o muitas vezes de uma vida digna, não deve utilizar de maneira irrestrita a

reserva do possível como óbice à concretude dos direitos sociais.

A reserva do possível apresenta duas espécies: a fática e a jurídica. A fática se refere à

inexistência de fato de recursos financeiros nos cofres públicos, enquanto que a jurídica

corresponde a não autorização das despesas relacionadas à saúde no orçamento público.17

A falta de previsão orçamentária para despesas com a saúde, em meio à demanda

judicial, é um dos principais argumentos utilizados pelos entes públicos, com a finalidade de

se eximirem da responsabilidade descrita pela própria Constituição. Cabe falar que os

princípios orçamentários são diretrizes para que o Estado desempenhe uma administração

pública planejada e transparente, alocando seus recursos da melhor forma possível. Logo,

deve o Estado fazer a previsão orçamentária dos gastos com os serviços de saúde, educação,

moradia, etc.

Ocorre que nem sempre o Estado faz essa previsão orçamentária, não podendo os

indivíduos serem prejudicados pela inércia estatal, principalmente quando se trata de saúde.

Outrossim, afirma o Supremo Tribunal Federal, por meio do Min. Celso de Mello:

Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como

direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da

República (art. 5º, "caput" e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa

fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez

configurado esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador

uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à

saúde humanas.18

17

SALAZAR e GROU, op. cit., nota 1. 18

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo STF. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/ informativo414.htm>. Acesso em: 07 jan de 2014.

Page 184: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

184

Em relação à reserva do possível fática, sabe-se que não basta a mera afirmação do

ente público sem que exista qualquer comprovação da falta de recursos econômicos nos cofres

públicos. Vale salientar, o que ocorre no Brasil não é simplesmente a falta de recursos, mas o

descompromisso dos governantes e a má gestão.Em 2008, o Banco Mundial (Bird) fez um

estudo sobre o desempenho hospitalar brasileiro e concluiu que o sistema é ineficiente, gasta

mal os recursos, encarecendo assim os custos hospitalares.19

Diante dessa situação, observa-se que um ponto essencial a ser enfrentado pelo Estado

é a decisão sobre suas prioridades orçamentárias, isto é, em que investir? Lembre-se que o

direito à vida e à saúde devem ser encarados como áreas prioritárias, pois se estas não forem

inicialmente garantidas, como poderão as pessoas usufruírem dos demais direitos trazidos

pela Constituição?

Nessa direção, já houve julgados em que frente ao caso de omissão do Estado em

garantir o direito à saúde do indivíduo, o juiz a quo determinou que os gastos com

determinadas áreas fossem suspensos e aplicados prioritariamente na área de saúde.

Um exemplo a ser citado é o do juiz Marcus Vinícius Pereira Júnior da Vara Cível da

Comarca de Currais Novos-RN que bloqueou os recursos do Rio Grande do Norte destinados

à publicidade, e determinou que o dinheiro fosse usado na Saúde Pública, nesse caso a autora

da ação precisava realizar um tratamento de câncer. O magistrado ainda determinou multa

pessoal para governadora no valor de R$ 1 milhão, em caso de descumprimento da decisão –

prazo de cinco dias para determinar a data e o local do tratamento – a ser depositado no Fundo

Estadual de Saúde.20

Entretanto, os julgadores ainda divergem sobre esse tema. Observa-se abaixo parte da

decisão do Agravo de Instrumento nº 2013.017525-9, sob a relatoria do Des. Cláudio Santos

do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. Aliás, a decisão de 1º grau agravada

assemelha-se a anteriormente aqui narrada.

No que concerne à suspensão da publicidade do Governo, em cognição sumária,

vislumbro ter havido excesso na decisão combatida [...].

O Poder Judiciário não pode – por impedimento em balizas constitucionais – se

arvorar do poder-dever de melhorar a gestão dos serviços públicos essenciais,

19

BANCO Mundial reprova hospitais brasileiros por ineficiência e má gestão. O Globo. Disponível em:

<http://www.inovarh.ufba.br/noticias/121>. Acesso em: 07 jan 2014. 20

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO NORTE. Juiz suspende imediatamente todos os

serviços de propaganda/publicidade do Estado. Disponível em: <http://www.tjrn.jus.br/

comunicacao/noticias/3492-juiz-suspende-imediatamente-todos-os-servicos-de-propagandapublicidade-do-

estado>. Acesso em: 10 jan 2014.

Page 185: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

185

assumindo a administração e o exercício de atribuições alheias, mas apenas corrigir

eventuais ilegalidades ou desvios, repondo a paz social, na medida do possível.21

Por fim, o Desembargador determinou que o Secretário de Saúde Estadual, no prazo

de 15 (quinze) dias adotasse as medidas necessárias para realização da cirurgia pretendida

pela parte. Porém, revogou a suspensão de todas as propagandas pagas pelo Estado do Rio

Grande do Norte, bem como a multa pessoal cominada em caso de descumprimento.22

Ocorre que muitas vezes o Estado deixa de cumprir seu papel, e cabe ao Judiciário,

quando procurado, assumir uma postura ativa a fim de assegurar os direitos fundamentais.

10 RESPONSABILIDADE ESTATAL

Ainda usada como alegação no meio judicial, a questão da responsabilidade estatal, ou

seja, da competência dos entes federados gera confusão na concretização do direito à saúde.

A Federação(art. 1º da CF) nada mais é que a divisão do poder político por mais de

uma organização política, onde cada uma possui autonomia para se auto-organizar, auto-

administrar, e competências distintas bem definidas na Carta Magna.

Ademais, a característica principal a ser discutida nesse tópico é a repartição de

competência, cujo princípio norteador é o da predominância de interesses. Destarte, cabe a

União matérias de predominante interesse geral; aos Estados, assuntos de predominante

interesse regional; e aos Municípios, matérias de interesse local.

Aliás, competências ―são faculdades ou poderes de agir dos quais se servem as

entidades federadas para tratar de temas que lhe dizem respeito e orientados para realização

do bem comum‖23

. Ainda, se dividem em competência legislativa – capacidade de elaborar

suas próprias leis – e competência material, atribuição administrativa.

Vale acrescentar, quando determinada competência material é estipulada para todos os

entes federados, trata-se de competência comum (art. 23 da CF), a qual se aplica a

responsabilidade solidária para seu cumprimento. Já em relação às competências legislativas

simultâneas aos entes federados, essas são denominadas de concorrentes (art. 24 da CF).

O tema saúde aparece em nossa Constituição quando se faz referência às competências

materiais, mas também nas competências legislativas. O art. 23 afirma ser competência

21

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO NORTE. Agravo de instrumento n° 2013.017525-9.

Relator: Des. Cláudio Santos. Natal, 2013. Disponível em: < http://www.tjrn.jus.br/comunicacao/ noticias/4324-

decisao-determina-realizacao-de-cirurgia-e-restabelece-propaganda-do-governo>. Acesso em: 11 jan 2014. 22

Idem ibidem. 23

CUNHA, op. cit., nota 2, p.862.

Page 186: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

186

comum dos entes federativos ―cuidar da saúde e da assistência pública, da proteção e garantia

das pessoas portadoras de deficiência‖ (II); e o art. 24 dispõe que compete à União, aos

Estados e ao Distrito Federal legislar sobre ―previdência social, proteção e defesa da saúde‖

(XII).

Os comandos constitucionais são claros ao admitir à responsabilidade conjunta dos

entes federativos quando se trata da saúde. Desse jeito, o cidadão ao demandar judicialmente

poderá acionar qualquer dos entes, já que são responsáveis solidários pela prestação da saúde.

Apesar da jurisprudência pacífica a respeito da responsabilidade solidária entre os

entes federativos na promoção da saúde, a justificativa da irresponsabilidade estatal é bastante

usada na contestação dos processos judiciais sobre saúde. Destarte, os entes públicos acabam

por passar a responsabilidade uns para os outros, na tentativa de evadir-se.

Muito embora todos os entes federativos sejam responsáveis pela saúde, o sistema

nacional segue uma lógica. Enquanto a União teria suas atividades mais voltadas aos aspectos

normativos, os Estados e principalmente os Municípios seriam prioritariamente responsáveis

pelas funções de execução e implementação dos serviços de saúde. Isso ocorre devido ao

maior conhecimento obtido pelos governos locais a respeito das reais necessidades de sua

população.

À vista disso, um ente federativo pode até cobrar do outro uma compensação por

determinada prestação de saúde que ultrapasse os limites de sua esfera. No entanto, nunca

deverá alegar irresponsabilidade quando se trata de saúde.

11 ATUAÇÃO JUDICIAL NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

O processo de judicialização da saúde é a possibilidade de buscar a efetividade do

direito à saúde por meio do Poder Judiciário. Observa-se um alto número de demandas em

relação à saúde, sendo constatado que sua prioridade é muitas vezes ―esquecida‖ pelos entes

públicos. Desse modo, o acesso ao Judiciário passa a ser um caminho eficiente para a

concretização do direito à saúde.

A crescente nas demandas de saúde ocorre devido às falhas administrativas existentes

que impedem a efetivação de tal direito. Então, quando as prestações deixam de ser satisfeitas

pelo Estado, cabe ao Judiciário, quando procurado, intervir para dar efetividade aos preceitos

fundamentais da Constituição Federal. Dessa maneira,os tribunais estão conseguindo impor

uma série de obrigações ao Poder Público.

Page 187: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

187

Cabe aos três Poderes realizar da melhor forma possível o direito à saúde e à vida,

contudo é papel do Judiciário resolver os conflitos decorrentes da má aplicação dos direitos

sociais, interpretando as leis conforme as normas constitucionais.

Infelizmente, os que mais precisam do acesso ao Judiciário são os que menos o

procuram, devido à falta de consciência de seus direitos, de fé na instituição, e por fim, à falta

de recursos financeiros. Sem Judiciário não há concretização de direitos fundamentais,

ficando estabelecido o seguinte dilema: quem procura o Judiciário, não necessita tanto de sua

ajuda, enquanto que quem mais necessita não tem oportunidade de acioná-lo.24

Vale lembrar que apesar da importância que a justiça tem na concretização dos direitos

fundamentais, o excesso de judicialização torna ineficiente a melhoria das prestações sociais,

visto que atendem apenas as necessidades individuais, isto é, o Judiciário socorre quem o

procura.

Em suma, na sociedade atual, para que o direito à saúde seja efetivado exige-se a

ampla participação do legislador, administrador, juiz e cidadão para juntos desenvolverem

políticas suficientes com objetivo de preservar, manter e recuperar a saúde.

12 EFEITOS POSITIVOS

O efeito positivo da intervenção judicial em demandas envolvendo o direito à saúde é

a sua própria concretização. O caso emblemático que evidencia a importância da participação

do Judiciário na proteção do direito à saúde refere-se ao coquetel da AIDS. As políticas

públicas brasileiras ligadas ao combate e prevenção do vírus HIV são reconhecidas e

premiadas em nível internacional. Entretanto, o que muitos não sabem é que o

desenvolvimento desse programa ocorreu devido ao Poder Judiciário e a sua atuação.25

Na década de 90, os juízes de 1º grau começaram a reconhecer o direito dos portadores

do vírus HIV de receberem a medicação para tratamento da doença pelos órgãos públicos.

Após a consolidação da jurisprudência a respeito desse tema, em 1996 foi publicada a lei nº

9313 que dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos para o combate da AIDS.26

Além disso, o mesmo fundamento utilizado para a concessão do tratamento a aidéticos

está sendo usado para o tratamento de outras doenças. Dessa forma, pessoas com tuberculose,

24

LIMA, George M. Efetivação judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais. Fortaleza, 2005.

Disponível em: <http://www.georgemlima.xpg.com.br/dissertacao.pdf>. Acesso em: 10 ago 2013. 25

LIMA, George M. Efetivação judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais. Fortaleza, 2005.

Disponível em: <http://www.georgemlima.xpg.com.br/dissertacao.pdf>. Acesso em: 10 ago 2013. 26

Idem ibidem.

Page 188: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

188

malária, câncer, hipertensão, diabetes etc. quando não assistidas de forma correta pelo Poder

Público podem e devem procurar o Judiciário a fim de garantir um tratamento digno a sua

mazela.

Outrossim, caso recente ocorrido já neste ano de 2014 refere-se ao decreto de

calamidade pública na saúde dado pelo município de Natal-RN. As unidades de saúde

encontravam-se superlotadas e com poucos profissionais da área para realizar atendimento

dos pacientes, inclusive algumas foram fechadas por falta de estrutura.27

Para piorar a situação, foram suspensas cirurgias cardiológicas no único hospital do

estado que fazia atendimento às crianças. Em meio ao desespero, a Associação Amigos do

Coração da Criança pediu a intervenção do Judiciário e conseguiu uma resposta positiva a fim

de resguardar a vida das crianças cardiopatas. Assim afirmou Madson Vidal, presidente da

associação:

Os recém-nascidos que estavam dentro dos hospitais públicos, eles não estavam

conseguindo tratamento fora do Rio Grande do Norte. Então, através de medidas

judiciais, a gente tem encaminhado essas crianças para São Paulo, com todo o custo

de responsabilidade do estado.28

O que seria dessas crianças sem a atuação judicial? Certamente nem todas teriam

chances de buscar tratamento fora do estado do Rio Grande do Norte. Ademais, daqui que o

hospital voltasse a realizar as cirurgias (suspensas devido a uma dívida de mais de um milhão

de reais do município), muitas não sobreviveriam à espera.

Em razão disso, é notório que o Judiciário tornou-se a última alternativa para que

pessoas carentes e doentes pudessem fazer seu tratamento de saúde, podendo ter sua vida

prorrogada em razão deste, com qualidade, bem como assegurada a sua dignidade.

13 EFEITOS NEGATIVOS

Como visto no item anterior, um Judiciário atuante é essencial em um Estado

Democrático de Direito, pois permite que os cidadãos possam usufruir plenamente de seus

direitos garantidos constitucionalmente. Contudo, o excesso de judicialização das questões

27

DECRETO de calamidade chega ao fim, mas caos na saúde de Natal continua. Bom Dia Brasil. 2014.

Disponível em: <http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2014/01/decreto-de-calamidade-chega-ao-fim-mas-

caos-na-saude-de-natal-continua.html>. Acesso em: 04 fev 2014. 28

Idem ibidem.

Page 189: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

189

sociais e à procura desenfreada pelas soluções impostas pelo Judiciário nem sempre trazem

saldos positivos à coletividade.

Um problema enfrentado pelos juízes tem relação com o caráter de urgência dessas

decisões. A prestação muitas vezes precisa ser imediata, devido à condição que se encontra o

demandante, o que obriga o magistrado julgar em sede de liminar. A pressa se torna uma

grande inimiga da melhor decisão, inclusive porque o magistrado não possui conhecimento

técnico na área de saúde. Isso pode prejudicar o paciente ou mesmo a coletividade.

Um exemplo real refere-se às liminares concedidas por juízes e tribunais para o

tratamento da retinose pigmentar realizado em Cuba às custas do Poder Público brasileiro.

Entretanto, depois de certo tempo o Superior Tribunal de Justiça não permitiu mais que o

procedimento médico fosse realizado em Cuba, alegando: (I) não haver certeza na eficácia do

tratamento, o qual trazia inclusive riscos à visão dos pacientes; (II) e existir tratamento para

doença aqui mesmo no Brasil, o que reduzia os custos para Administração Pública.29

Note-se que caso a concessão de liminares deferindo a realização do procedimento

médico em Cuba tivesse continuado, haveria maiores prejuízos tanto para os pacientes –

devido aos riscos existentes em tratamentos experimentais – quanto para coletividade que

estaria sacrificada, devido aos altos custos arcados pelo Poder Público.

Outro problema a ser considerado é o risco da ―discriminação judicial‖, isto é, a

exclusão dos que mais precisam da intervenção judicial. Ocorre que a população de maior

poder aquisitivo é, em sua maioria, que está sendo beneficiada pelo Poder Judiciário, com o

chamado tratamento privilegiado. Dessa forma, ―[...] decisões judiciais acabam por se

transformar, involuntariamente, em veículos de uma distribuição de renda muito pouco

equitativa no âmbito da sociedade brasileira [...]‖30

.

A priori, com base no princípio da isonomia, o Judiciário deveria ter mais atenção com

os que não possuem poder econômico para realizar o tratamento médico pleiteado. Assim, o

que se quer dar ênfase é que como a prestação de saúde pública é limitada, por insuficiência

de recursos e profissionais da área, é injusto que pessoas que possam pagar perfeitamente por

um bom tratamento de saúde particular, sem interferir na subsistência de sua família, ocupe o

lugar de outra que não possui os mesmos recursos nem as mesmas oportunidades.

Outro efeito negativo da judicialização da saúde é o estabelecimento de uma falsa

crença, no qual as pessoas acreditam que a única forma de conseguir alguma prestação na área

29

LIMA, George M. Efetivação judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais. Fortaleza, 2005.

Disponível em: <http://www.georgemlima.xpg.com.br/dissertacao.pdf>. Acesso em: 10 ago 2013. 30

BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da

pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2008, p. 307.

Page 190: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

190

da saúde pública é através do Judiciário. Fica estabelecido um ciclo vicioso, onde a autoridade

pública deixa de cumprir espontaneamente seu dever, à espera da ordem do magistrado.

Ademais, o excesso de judicialização dá brecha para formação de conluios criminosos

entre laboratórios, médicos e advogados. Então, a indicação de certo medicamento no

processo pode ser apenas para favorecer financeiramente determinada indústria farmacêutica,

usando a demanda para burlar leis e procedimentos administrativos, como a licitação.

Indiretamente, estas demandas individuais fomentam um conjunto de agentes

interessados, como a indústria farmacêutica, fornecedores, distribuidores e

vendedores de medicamentos e material médico, profissionais da área da saúde, e

outros. É visivelmente comum a prescrição sazonal de determinados medicamentos,

em detrimento de outros que, contendo os mesmos princípios ativos, seriam

suficientes ao tratamento de determinadas enfermidades.31

Ainda, diversos aspectos negativos do ativismo judicial podem ser destacados, tais

como: as dificuldades operacionais para execução das ordens judiciais (licitação,

planejamento, etc.); transferência de poderes decisórios do eixo Legislativo-Executivo para o

Poder judiciário (enfraquecimento dos poderes eleitos); anulações frequentes pelo Judiciário

de ações de outros poderes (decisões políticas via tribunais); e exclusivismo moral do

Judiciário.

Ao analisar todos os aspectos apresentados, deve-se refletir: a atuação judicial no

direito à saúde traz mais vantagens ou desvantagens? A resposta não é simples, nem mesmo

única, por isso cabe ao magistrado diante do caso concreto julgar observando quais os efeitos

de determinada decisão para as partes e para coletividade, para que com prudência e clareza

possa resolver o conflito que lhe foi apresentado.

14 ATUAÇÃO JUDICIAL NA PARAÍBA

A realidade da Paraíba não diverge muito da realidade dos demais estados brasileiros,

isto é, diversos paraibanos sofrem com a má prestação do serviço público de saúde e com a

incerteza de que suas pretensões serão de fato atendidas. Dessa forma, este tópico faz uma

31

CARVALHO, Leonardo Arquimimo de; CARVALHO, Luciana Jordão da Motta Amiliato de. Riscos da

superlitigação no direito à saúde: custos sociais e soluções cooperativas. In Revista da Defensoria do Estado de

São Paulo. Vol1. 2008, p. 240. Disponível em: <

http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=3&sqi=2&ved=0CDcQFjAC

&url=http%3A%2F%2Fwww.defensoria.sp.gov.br%2Fdpesp%2Frepositorio%2F20%2Fdocumentos%2Foutros

%2FRevista%2520n%25C2%25BA%25201%2520Volume%25201.pdf&ei=C-

vKUrPGE5C_kQeTtIDACQ&usg=AFQjCNFkdj0-sjbVpg-iPUzfnSmmswltPQ>. Acesso em: 04 fev 2014.

Page 191: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

191

análise das decisões tomadas pelo Tribunal de Justiça da Paraíba nos casos em quem os

demandantes buscam a proteção do seu direito à saúde.

Na pesquisa realizada, verifica-se que nessas demandas, as partes vêm ao juízo

requerer medicamentos, realização de exames médicos; procedimentos cirúrgicos;

internações; fraldas descartáveis; suplementos alimentares, sendo que entre estes a maioria

dos processos referem-se ao requerimento de medicamentos.

Além disso, observa-se que não só o Estado da Paraíba é acionado para executar

políticas públicas na área da saúde, mas também os municípios são colocados como

legitimados passivos dessas demandas. Ocorre que nenhum ente quer de fato assumir essa

responsabilidade e dentre as principais preliminares de defesas levantadas por eles estão: a

ilegitimidade passiva ad causame o chamamento ao processo dos demais entes, sendo sempre

rejeitadas pelo Tribunal diante da responsabilidade solidária dos entes federados. Em outras

palavras, a parte pode exigir de qualquer um deles o cumprimento da prestação de saúde.

PRELIMINARES. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO.

CHAMAMENTO AO PROCESSO DA UNIÃO E DO MUNICÍPIO DE

CAMPINA GRANDE. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL PARA A

ANÁLISE DA INCLUSÃO DO ENTE FEDERAL NA DEMANDA. SERVIÇO DE

SAÚDE. DIREITO FUNDAMENTAL. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA.

IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL A TODOS OS ENTES FEDERATIVOS.

POSSIBILIDADE DE INDICAÇÃO DE QUALQUER UM DELES. REJEIÇÃO

DAS QUESTÕES PREAMBULARES. - As ações e serviços públicos de saúde

competem, de forma solidária, à União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Logo, não há que se falar em ilegitimidade passiva da Unidade da

Federação[...]. Tratando-se de responsabilidade solidária, a parte necessitada não é

obrigada a dirigir seu pleito a todos os entes da federação, podendo direcioná-lo

àquele que lhe convier. - Sendo o Estado parte legítima para figurar, sozinho, no

pólo passivo da demanda, não há que se falar no chamamento dos outros entes

federados. [...] (grifos nossos).32

Outro ponto relevante a ser mencionado referente às decisões do TJPB é a

possibilidade do ente federado, condenado a fornecer algum medicamento ou procedimento

médico à parte autora, substituir o remédio por similar (genérico) ou por outro procedimento

menos oneroso ao Estado, desde que não prejudique a saúde do (a) paciente e tenha a mesma

eficácia daquele que foi pedido na petição.

Isso já demostra que o Judiciário está preocupado com as consequências das suas

decisões no orçamento do Estado, e de forma coerente busca solucionar esse conflito sem

sobrecarregar financeiramente o legitimado passivo da demanda. Contudo, ainda é possível

32

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÌBA. Processo 00120110162227001. Relator: Des. José Ricardo Porto.

Órgão julgador: Tribunal Pleno. João Pessoa, 2013. Disponível em:

<http://jurisprudencia.tjpb.jus.br/jurisprudencia/Detalhe.aspx?id=200824&p=direito e saúde e e chamamento e

processo e união>. Acesso em: 10 fev 2014.

Page 192: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

192

identificar algumas divergências em relação à substituição dos medicamentos. Lembre-se que

em casos mais graves, devido à fragilidade do paciente, é desaconselhável a substituição dos

medicamentos ou qualquer outro procedimento. Observe-se a ementa:

AGRAVO INTERNO MANDADO DE SEGURANÇA FORNECIMENTO DE

MEDICAMENTO OBRIGAÇÃO DO PODER PÚBLICO IRRESIGNAÇÃO

DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE SUBSTITUIÇÃO DO

MEDICAMENTO PLEITEADO POR GENÉRICO OU SIMILAR QUE

PRODUZA 0 MESMO EFEITO POSSIBILIDADE PROVIMENTO PARCIAL

AO AGRAVO. _Assim, ao Estado deve ser garantida a possibilidade de

substituir o medicamento por genérico, de mesmo princípio ativo; ou por outro

que o Estado já forneça, desde que autorizado pelo médico e não comprometa o

tratamento da autora. (grifos nossos).33

Ainda, é comum nos processos o pedido, feito pelo ente público, de realização de

perícia por médico conveniado ao SUS no (a) paciente, para que determine com exatidão qual

pretensão deverá ser fornecida pelo Estado. Entretanto, esse requerimento vem sempre sendo

negado, pois o julgador acha desnecessária a perícia, já que a parte acosta aos autos laudos

médicos que comprovam sua situação. ―A declaração firmada por médico particular constitui

prova suficiente para atestar a enfermidade e o tratamento adequado para o paciente,

mostrando-se desnecessária a realização de perícia para averiguar a condição clínica da

promovente.‖34

Outrossim, devido a essa negativa o ente público recorre da decisão, alegando violação

aos princípios da ampla defesa e do devido processo legal. Porém, o Tribunal não conhece

essa violação, e afirma a autoridade do juiz a quo de julgar antecipadamente a lide quando

não há necessidade da produção de provas na audiência (art. 330 CPC), já que a parte acosta o

laudo médico à petição inicial.

Ademais, há decisões e acórdãos no TJPB que determinam o bloqueio de valores para

a realização da ordem judicial que assegura o direito à vida e à saúde do (a) demandante,

frente à desídia do Estado. Nota-se que esse tipo de ordem é dada nos casos mais graves e

mesmo assim o Poder Público permanece indiferente. Dessa forma, o julgador determina que

se oficie o Banco para que efetue o bloqueio do valor correspondente ao tratamento médico

requerido na conta do promovido, e após a confirmação do bloqueio realize a transferência

33

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÍBA. Processo 00120120003056001. Relator: Des. Saulo Henriques de

Sá e Benevides. Órgão Julgador: 2ª Seção Especializada Cível. João Pessoa, 2013. Disponível em:

<http://jurisprudencia.tjpb.jus.br/jurisprudencia/Detalhe.aspx?id=145023&p=direito e saúde e substituição e

medicamento>. Acesso em: 10 fev 2014. 34

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÍBA. Processo 00120120077050001. Relator: Des. João Alves da Silva.

Órgão julgador: Tribunal Pleno. Disponível em:

<http://jurisprudencia.tjpb.jus.br/jurisprudencia/Detalhe.aspx?id=200934&p=direito e saúde e medicamento e

perícia>. Acesso em: 10 fev 2014.

Page 193: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

193

dos valores para a conta informada pelo (a) demandante. Após o prazo estabelecido pelo

julgador, o autor (a) da demanda deve comprovar através de notas fiscais e recibos que àquele

dinheiro foi destinado ao cumprimento da decisão judicial.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONCESSÃO DE LIMINAR. REALIZAÇÃO

DE CIRURGIA PELO ESTADO DA PARAÍBA. DESCUMPRIMENTO DA

DECISÃO JUDICIAL. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS PARA A

EFETIVAÇÃO DO PROCEDIMENTO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES

DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E DESTA CORTE. MANUTENÇÃO

DA MEDIDA DE URGÊNCIA. NEGATIVA DE SEGUIMENTO À

IRRESIGNAÇÃO. [...] (grifos nossos).35

É evidente que as decisões do TJPB são semelhantes às dos demais tribunais do país,

já que sobre esse tema existem algumas questões pacificadas. Pode-se citar: a

responsabilidade solidária de todos os entes da federação (legitimidade passiva concorrente);

medicamentos fornecidos devem ter registro na ANVISA (excluindo, de início, os

experimentais); obrigação do Poder Público de implementar políticas públicas já

regulamentadas; entre outras.

Por fim, vale salientar que o apresentado nesse tópico refere-se às questões gerais,

encontradas na maior parte dos processos que envolvem o direito à saúde, por isso os

apontamentos não se esgotam aqui, sendo distintos a depender do caso concreto em análise.

CONCLUSÃO

Nosso Constituinte destacou a importância dos direitos sociais quando os posicionou

no Título II da CF que trata especificamente dos direitos fundamentais. Com tais direitos, as

normas constitucionais buscam melhorar a qualidade de vida dos cidadãos brasileiros, além de

garantir o pleno desenvolvimento humano.

Dentre os direitos sociais, destaca-se em especial o direito à saúde intimamente ligado

ao direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa humana. O constituinte se preocupou

de tal forma com o direito à saúde que criou o SUS com a intenção de dar efetividade a esse

direito. Porém, nota-se que esse sistema não está sendo capaz de suprir as necessidades da

população no que diz respeito às prestações sociais de saúde; assim, somos ―reféns‖ do

35

Idem. Processo 20020120902693002. Relator: Des. José Ricardo Porto. Órgão Julgador: Tribunal Pleno.

Disponível em: < http://jurisprudencia.tjpb.jus.br/jurisprudencia/ Detalhe.aspx?id=200801&p=direito e saúde e

bloqueio e valores e medicamentos>. Acesso em: 10 fev 2014.

Page 194: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

194

descaso dos governantes que não implementam as políticas públicas de saúde necessárias ao

bom funcionamento do SUS.

Neste cenário, no qual é possível detectar falhas do Poder Público na materialização

do direito à saúde, o Judiciário vem como Poder subsidiário garantir o cumprimento dos

preceitos constitucionais, velando assim pela supremacia de nossa Carta Magna.

O direito à saúde para ser materializado precisa vencer obstáculos, alguns destes

utilizados nas demandas judiciais como argumentos contrários a concretização desse direito.

O primeiro que podemos citar, refere-se às ações e omissões lesivas do Estado que prejudicam

a efetivação de tal direito. O Poder Público pode através de uma ação violar o direito à saúde,

intervindo o Judiciário para que determine a cessação da conduta lesiva. Contudo, encontra o

julgador maior dificuldade quando frente a uma omissão estatal precisa determinar que o

Poder Público adote alguma medida para tornar ―concreto‖ aquele direito discutido nos autos,

pois a prestação positiva requer recursos financeiros para sua realização.

Frente a esse problema, os entes federados argumentam não ser razoável a realização

de algum procedimento médico ou mesmo o fornecimento de certo medicamento, visto que a

soma de dinheiro utilizado num tratamento individual (no do demandante) poderia ajudar toda

a coletividade em outros procedimentos médicos. Além disso, alegam que deve existir

previsão orçamentária para essa nova despesa.

Ocorre que a reserva do possível deve ser cuidadosamente aplicada à realidade

brasileira, visto que não pode o Estado negar um direito fundamental ao cidadão por

considerá-lo custoso. Aliás, a meu ver, o direito à saúde deve ser garantido prioritariamente já

que não existe possibilidade do ser humano usufruir de outros direitos se perder o seus bens

mais essenciais, quais sejam, a saúde e a vida.

Outrossim, acho válido, se o sistema de saúde não está sendo perfeitamente atendido e

é mal administrado por falta de recursos financeiros, que o juiz ordene a aplicação de recursos

de outras áreas de menor importância (ex.: festas populares) para a saúde.

Já o princípio da separação de poderessurge com a intenção de equilibrar os três

poderes sendo ferramenta para assegurar a aplicação das normas constitucionais e dessa forma

garantir também a aplicação dos direitos fundamentais. Não pode tal princípio trabalhar

contra sua própria essência, qual seja a de colaborar com a concretização dos direitos

fundamentais. Ademais, a discricionariedade administrativa não pode ser um óbice à

concretização de tal direito, o Judiciário não deve ―fechar os olhos‖ para as más escolhas dos

administradores públicos.

Page 195: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

195

Observa-se ainda que nenhum ente federado invoca para si a responsabilidade de

implementar políticas públicas relacionadas à saúde. Ao contrário, quando acionados

judicialmente buscam ―empurrar‖ uns para os outros essa responsabilidade. Bem fez o

constituinte que devido à importância do tema determinou que a responsabilidade de proteger

o direito à saúde é solidária de todos os entes, não havendodesculpas para as omissões do

Poder Público.

Sabe-se que a atuação judicial traz efeitos positivos para coletividade, porém essa

intervenção não se dá de forma perfeita, trazendo também efeitos negativos. O que deve ser

feito é maximizar os efeitos positivos dessas decisões, bem como arranjar mecanismos para

anular os efeitos negativos decorrentes delas.

Dessa forma, pode-se afirmar que o efeito positivo da atuação judicial é a própria

materialização do direito à saúde, colocando o bem-estar do ser humano como principal

objetivo do Estado.

Ocorre que não há simplicidade quando nos referimos a esse tema. Inúmeros desafios

devem ser enfrentados pelos juízes, que atentos à situação escolhem a melhor maneira de se

garantir tal direito sem onerar excessivamente o Poder Público.

Assim, defende-se aqui a criação de comissões técnicas formadas por profissionais de

saúde para auxiliar a tomada de decisão do julgador, que por não ter conhecimento

especializado na área de saúde acaba, muitas vezes, se ―curvando‖ a vontade das partes e de

seus advogados sem saber se a ordem judicial proferida foi a melhor solução ao caso

concreto.

Lembre-se, o Judiciário só deve ser procurado como última alternativa para garantir

um direito fundamental, logo, acredita-se que uma parceria entre as Defensorias Públicas e as

Secretarias de Saúde reduziria ajudicialização da saúde resolvendo os conflitos

extrajudicialmente, sem reduzir, no entanto, a garantia desse direito social.

Ressalte-se também que por existir limitações financeiras para executar certas ações de

saúde, deve-se priorizar algumas – as preventivas, por exemplo – no sentido de alcançar toda

população e nos casos das prestações de saúde excessivamente onerosas, deve o juiz com

cautela determinar que a parte apresente a sua impossibilidade de arcar com o tratamento de

saúde.

Na verdade, o correto seria que o Poder Público atendesse as necessidades de todos

quando o assunto é saúde, entretanto não é o que acontece nos dias de hoje. Se o Estado

muitas vezes se furta de fornecer os mais básicos serviços de saúde a uma população,

alegando falta de recursos financeiros e de profissionais na área, o que falar então das

Page 196: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

196

prestações mais caras? Não se defende aqui a negativa da concretização do direito à saúde,

porém devido às limitações que hoje enfrentamos, deve o Estado priorizar a atenção aos mais

necessitados, àqueles que não possuem nenhuma outra alternativa ou esperança que não seja

apelar para boa vontade dos governantes. Dessa forma, busca-se aplicar a igualdade material,

isto é, igualar desigualando, fornecendo oportunidades àqueles que jamais as tiveram.

Conclui-se que a judicialização é instrumento essencial para concretização do direito à

saúde frente às omissões do Poder Público, sendo o Poder Judiciário órgão de proteção à

Constituição Federal. Em outras palavras, a intervenção do Judiciário gera externalidade

positiva na proteção do direito à saúde, tendo em vista que torna-se muitas vezes última

alternativa para revitalizar tal direito.

REFERÊNCIAS

ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a história: história geral e história do

Brasil. 12. ed. São Paulo: Ática, 2003.

BANCO Mundial reprova hospitais brasileiros por ineficiência e má gestão. O Globo.

Disponível em: <http://www.inovarh.ufba.br/noticias/121>. Acesso em: 07 jan 2014.

BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da

dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2008.

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à

saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. 2007.

Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI52582,81042-

Da+falta+de+efetividade+a+judicializacao+excessiva+Direito+a+saude>. Acesso em: 27 ago

2013.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27 ago 2013.

______. Lei Nº 8080/1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil

_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 03 jan 2014.

______. Lei nº 8142/1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil

_03/leis/l8142.htm>. Acesso em: 03 jan 2014.

CARVALHO, Leonardo Arquimimo de; CARVALHO, Luciana Jordão da Motta Amiliato de.

Riscos da superlitigação no direito à saúde: custos sociais e soluções cooperativas. In Revista

da Defensoria do Estado de São Paulo. Vol1. 2008. Disponível em: <

http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&

Page 197: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

197

esrc=s&frm=1&source=web&cd=3&sqi=2&ved=0CDcQFjAC&url=http%3A%

2F%2Fwww.defensoria.sp.gov.br%2Fdpesp%2Frepositorio%2F20%2Fdocumentos%2Foutro

s%2FRevista%2520n%25C2%25BA%25201%2520Volume%25201.pdf&ei=C-

vKUrPGE5C_kQeTtIDACQ&usg=AFQjCNFkdj0-sjbVpg-iPUzfnSmmswltPQ>. Acesso em:

04 fev 2014.

CUNHA JÚNIOR, Dirleyda.Curso de direito constitucional. 4. ed. Salvador: JusPodivm,

2010.

DECRETO de calamidade chega ao fim, mas caos na saúde de Natal continua. Bom Dia

Brasil. 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2014/01/decreto-

de-calamidade-chega-ao-fim-mas-caos-na-saude-de-natal-continua.html>. Acesso em: 04 fev

2014.

LIMA, George Marmelstein. Efetivação do direito fundamental à saúde pelo Poder

Judiciário. Brasília, 2003. Disponível em:

<http://www.georgemlima.xpg.com.br/monografia.pdf>. Acesso em: 10 ago 2013.

______. Efetivação judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais. Fortaleza, 2005.

Disponível em: <http://www.georgemlima.xpg.com.br/dissertacao.pdf>. Acesso em: 10 ago

2013.

MAGALHÃES, Marina. Resquícios do lixão. Jornal da Paraíba.Disponível em:

<http://www.espacoecologiconoar.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=8

813&Itemid=1>. Acesso em: 25 jan 2014.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Constituição Da Organização Mundial Da

Saúde. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-

Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-

mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em: 02 jan 2014.

SALAZAR, Andrea Lazzarini; GROU, Karina Bozola. A defesa da saúde em juízo. São

Paulo: Verbatim, 2009.

SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais, o direito a uma vida digna

(mínimo existencial) e o direito privado: apontamentos sobre a possível eficácia dos direitos

sociais nas relações entre particulares. In: ALMEIDA FILHO, Agassiz; MELGARÉ, Plínio

(orgs.). Dignidade da pessoa humana: fundamentos e critérios interpretativos. Malheiros

Editores, 2010.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo STF. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo /documento/informativo414.htm>. Acesso em: 07

jan 2014.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÍBA. Processo 00120110162227001. Relator: Des.

José Ricardo Porto. Órgão julgador: Tribunal Pleno. João Pessoa, 2013. Disponível

em:<http://jurisprudencia.tjpb.jus.br/jurisprudencia/Detalhe.aspx?id=200824&p=direito e

saúde e e chamamento e processo e união>. Acesso em: 10 fev 2014.

Page 198: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

198

______. Processo 00120120003056001. Relator: Des. Saulo Henriques de Sá e Benevides.

Órgão Julgador: 2ª Seção Especializada Cível. João Pessoa, 2013. Disponível em: <

http://jurisprudencia.tjpb.jus.br/jurisprudencia /Detalhe.aspx?id=145023&p=direito e saúde e

substituição e medicamento>. Acesso em: 10 fev 2014.

______. Processo 00120120077050001. Relator: Des. João Alves da Silva. Órgão julgador:

Tribunal Pleno. João Pessoa, 2013. Disponível em: <http://jurisprudencia

.tjpb.jus.br/jurisprudencia/Detalhe.aspx?id=200934&p=direito e saúde e medicamento e

perícia>. Acesso em: 10 fev 2014.

______. Processo 20020120902693002. Relator: Des. José Ricardo Porto. Órgão Julgador:

Tribunal Pleno. João Pessoa, 2013. Disponível em: < http://jurisprudencia. tjpb.jus.br/

jurisprudencia/Detalhe.aspx?id=200801&p=direito e saúde e bloqueio e valores e

medicamentos>. Acesso em: 10 fev 2014.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO NORTE. Agravo de instrumento n°

2013.017525-9. Relator: Des. Cláudio Santos. Natal, 2013. Disponível em: <

http://www.tjrn.jus.br/comunicacao/noticias/4324-decisao-determina-realizacao-de-

cirurgia-e-restabelece-propaganda-do-governo >. Acesso em: 11 jan 2014.

______. Juiz suspende imediatamente todos os serviços de propaganda/publicidade do

Estado. Disponível em: <http://www.tjrn.jus.br/ comunicacao/noticias/3492-juiz-suspende-

imediatamente-todos-os-servicos-de-propagandapublicidade-do-estado>. Acesso em: 10 jan

2014.

Page 199: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

199

CONSECUÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: ABUSIVIDADES NOS

SERVIÇOS DE SAÚDE SUPLEMENTAR E ENTRAVES NO ACESSO À

JUSTIÇA

Rafael Duarte Lins1

Sumário: 1 Introdução. 2 O direito do consumidor como paradigma. 3 Serviços

públicos. 3.1 Serviços públicos essenciais: continuidade. 4 Responsabilidade civil

dos médicos e das empresas de saúde suplementar. 5 Responsabilidade estatal

relativamente ao acesso à justiça. 6 Abusividades nos serviços de saúde suplementar.

7 Contratos de consumo. 7.1 Cláusulas abusivas. 8 A ANS e sua competência. 9

Algumas práticas abusivas nos contratos de planos de saúde. 10 Algumas cláusulas

abusivas nos contratos de planos de saúde. 11 Implicações das abusividades e

proteção do consumidor. 12 O problema da morosidade jurisdicional. 13 O problema

da assistência jurídica gratuira. 14 O uso da liminar na defesa do direito à vida e à

saúde. 15 A "indústria de liminares". Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Mesmo sob aégide da Constituição Federal de 1988, a qual reflete seus efeitos

normativos e principiológicos defronte a todas as demais normas infraconstitucionais, bem

como ainda diante da vigência do Código de Defesa do Consumidor, houvera tempos em que

os planos de saúde não eram regulados de forma cristalina e justa, perpetuando, então,

imbróglios de todas as ordens àqueles que desses serviços necessitassem.

Com o advento de legislação especial regulando a questão, a saber, a Lei nº

9.656, de 3 de junho de 1998, denominada de Lei dos Planos de Saúde, houve certos avanços,

contudo, ainda pairavam dúvidas quanto a sua aplicabilidade nos contratos anteriores a sua

publicação e vigência, o que acabou por gerais ainda mais problemas para os consumidores

desses serviços.Atualmente, alguns desses problemas são menos predominantes. Por outro

lado, restam outras adversidades pelas quais os consumidores têm de enfrentar, os quais são

abordados do decurso do presente estudo.

Nessa senda, a presente análise científica estuda as implicações jurídicas

decorrentes das práticas e cláusulas abusivas nos contratos de saúde suplementar, tais como, a

não cobertura de procedimentos considerados essenciais, a limitação ao tempo de internação

do paciente, a dificuldade da prestação eficiente do serviço em caso de urgência, dentre outros

atos que infringem os direitos básicos do consumidor.No viés especificamente constitucional,

o tema averigua os direitos fundamentais à saúde e à vidadigna diante dos problemas

enfrentados pelos consumidores de serviços de saúde suplementar.

1 Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

Page 200: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

200

Desta feita, há a necessidade de se saber em que medida e de que forma os

direitos previstos no Código de Defesa do Consumidor bem como os referidos direitos

fundamentais, expressos na nossa Constituição Federal, são atacados diante das práticas e das

cláusulas abusivas apresentadas nos serviços de saúde suplementar; e, por conseguinte,

cumpre voltar olhares para a compreensão das responsabilidades dos prestadores desses

serviços e do Estado como fiscalizador e detentor do poder de prestação jurisdicional.

Assim, a busca das principais causas e consequências das práticas abusivas e

das cláusulas abusivas nos contratos de planos de saúde é importante para se identificar os

pontos em que a legislação pode estar sendo falha, caso seja problema de ausência ou

insuficiência de norma, bem como para se definir políticas de enfrentamento desses

problemas de forma mais efetiva e numa proporção mais forte, de forma a cessar ou

minimizar os prejuízos sofridos pelos consumidores desses serviços.

Destarte, é imprescindível a apuração das causas e consequências advindas dos

problemas enfrentados pelos consumidores de planos de saúde, em razão sobremaneira da

essencialidade do serviço, sendo, o presente, um tema inteiramente de utilidade pública.

Após a presente introdução, começa-se a analisar, basicamente, os conceitos

jurídicos iniciais do Direito do Consumidor, em razão de ser a relação, entre os usuários de

planos de saúde e suas operadoras, uma relação de consumo.

Em seguida, encontram-se as hipóteses de práticas e cláusulas abusivas mais

relevantes para o estudo dos contratos de prestação de serviços de saúde suplementar, bem

como se faz a análise alguns conceitos e princípios jurídicos acerca dos contratos de consumo,

todos aplicáveis aos contratos de planos de saúde. Ademais, tem-se o estudo dos institutos

jurídicos acerca dos contratos de saúde suplementar, bem como analisa as competências da

Agência Nacional de Saúde Suplementar, traçando alguns exemplos de práticas e cláusulas

abusivas encontradas nesses tipos de contratos, tendo em vista o descumprimento das normas

constitucionais, infraconstitucionais e regulamentadoras.

Por derradeiro, analisam-se as principais questões acerca das consequências

das práticas e cláusulas abusivas apresentadas nas contratações de empresas mantenedoras de

planos de saúde, visualizando-se também a questão da judicialização da saúde e a criação de

uma indústria de requerimentos de concessão de liminares perante a Justiça, demonstrando os

percalços pelos quais o consumidor tem de passar para obter um exame ou tratamento

negados, tendo que por ainda mais em risco sua saúde e sua vida frente à morosidade

jurisdicional.

Page 201: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

201

2 O DIREITO DO CONSUMIDOR COMO PARADIGMA

As relações de consumo são constituídas por um polo denominado consumidor,

amplamente protegido pelas normas insculpidas no Código de Defesa do Consumidor (CDC),

Lei nº 8.078, de setembro de 1990, e outro denominado fornecedor, o qual pode ser produtor,

importador, comerciante, prestador de serviços, etc.

O presente trabalho aborta a referida temática por entender imprescindível o

estudo dos conceitos de Direito do Consumidor, tendo em vista que as relações entre os

usuários de planos de saúde e as empresas prestadoras de serviços de saúde suplementar são

relações de consumo.

O conceito de consumidor está basicamente previsto no caput e no parágrafo

único do artigo 2º2 da Lei 8.078/90 (CDC), e também nos artigos 17 e 29.

O Código de Defesa do Consumidor, como sua própria denominação já indica,

consiste numa conjuntura de normas protetivas daquele o qual considera hipossuficiente nas

relações de consumo regidas primordialmente por este Código.

Desta feita, o consumidor é o protagonista da Lei nº 8.078/90, a qual

proporciona inúmeros meios de defesa e assistência àquele, detentor de menor conhecimento

sobre os objetos das relações jurídicas das quais faz parte conjuntamente com o fornecedor.

Preleciona Rizzatto3 que ―apesar de algumas dificuldades, a definição de

consumidor tem grande virtude de colocar o sentido querido maior parte dos casos‖.

Imperioso notar que, muito embora não seja a melhor técnica legislativa a conceituação de

institutos jurídicos, teve êxito aquele que elaborou as definições do CDC.4

O parágrafo único do art. 2º traz o conceito de consumidor considerado como

coletividade, ao dizer, ipsis litteris, que ―equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas,

ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.‖ Neste caso,

conforme se verá adiante, este é o principal dispositivo que legitima o ajuizamento de ações

civis públicas na defesa dos consumidores.

No art. 17, tem-se que são consumidores também as vítimas de acidentes de

consumo, embora não tenham participado de forma direta na relação de consumo

2 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (1990). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/

ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica

que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a

coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.‖ 3NUNES, Luiz AntonioRizzato. Curso de direito do consumidor. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011,

p. 116. 4Idem, ibidem.

Page 202: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

202

preexistente. Assim, por exemplo, mesmo que alguma pessoa não tenhase utilizado, em

determinado momento,de um serviço de transporte público, aquele será consumidor ―por

equiparação‖, caso seja vítima de algum acidente advindo da relação de consumo entre o

fornecedor de transporte público e os demais passageiros usuários do serviço.

Por fim, concluindo a delimitaçãoda temática acerca da definição de

consumidor, o art. 29 traz à baila mais um conceito de consumidor ―por equiparação‖, mas

desta vez relacionado àquelas pessoas que são expostas às práticas comercias.

Já o conceito de fornecedor encontra-se transcrito no caput do art. 3º do

CDC.5Da leitura literal do dispositivo é possível constatar que o conceito abrange todas as

pessoas capazes, tanto físicas quanto jurídicas, além dos entes desprovidos de personalidade.6

O CDC nada mais fez do que, na constante tentativa de proteção do

consumidor, enumerar o maior número de formas pelas quais apresenta-se o fornecedor, com

o fito de não abrir brechas para que haja injusta escusa de responsabilidades e, por

conseguinte, afronta aos direitos básicos do consumidor (art. 6 do CDC).

Outra interessante e essencial constatação é a de que a denominação

―fornecedor‖ é gênero de várias espécies, tais como, comerciante, produtor, importador.7 Tal

aspecto tem a finalidade de, quando o legislador quiser que haja a responsabilização de todas

as espécies de fornecedores, utilizar a terminologia geral, e, quando não, especificará o tipo de

fornecedor responsável por determinada conduta.

O produto e o serviço são advindos do mercado de consumo. O primeiro é o

resultado deste mercado, e o segundorepresenta quaisquer atividades prestadas por ele. Na

verdade, ambos os conceitos são o objeto jurídico das relações de consumo, e podem

apresentar-se de forma conjunta.

Nesse sentido, pode-se considerar, de maneira simplória, que não há produto

sem serviço, haja vista que o produto é fruto de uma atividade humana que teve a finalidade

de produzi-lo e lança-lo no mercado.

Ou seja, o produto sempre será adquirido por fruto de um serviço, podendo este

ser a propaganda utilizada pelo fornecedor para a atração de clientela, a manutenção do

produto após a sua venda, determinado manual de uso do produto ora adquirido etc.

5 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (1990). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/

ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica,

pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade

de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou

comercialização de produtos ou prestação de serviços.‖ 6 NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 131.

7 NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 135.

Page 203: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

203

O contrário não é verdadeiro.8 Há serviços que não fornecem ao consumidor

qualquer produto, como, por exemplo, alguma palestra, consulta médica, mesmo que para

realização daquele serviço o fornecedor utilize-se de meios de produção pelos quais em outras

perspectivas sejam considerados produtos.

O conceito de produto é estampado no texto do § 1º do art. 3º do CDC, o qual

estipula que ―produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial‖. Dessa forma,

é cristalina a vontade legislativa de abarcar o maior número de tipos de produto, a fim de

assegurar o maior número de direitos ao consumidor.

Por outro lado, a conceituação de serviço é prevista no mesmo artigo, sendo

que no seu § 2º, o qual aduz o seguinte: ―serviço é qualquer atividade fornecida no mercado

de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e

securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.‖

A utilização do termo ―qualquer‖ ressalta a característica exemplificativa do

dispositivo normativo ao enumerar os serviços de natureza bancária, financeira, de crédito e

securitária.9

Sabendo-se que os serviços tanto podem ser privados como também públicos10

,

passar-se-á ao estudo destes últimos.

3 SERVIÇOS PÚBLICOS

Ao se falar de serviço como objeto das relações de consumo, necessário se faz

analisar mais especificamente os conceitos acerca da temática dos serviços públicos, haja

vista que o presente trabalho consiste no estudo das relações de consumo existentes nos

planos de saúde suplementar, e que, por isso, muitas vezes far-se-á, ao longo dele, referências

aos serviços públicos de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso,

pode-se dizer que, mesmo sendo as operadoras de planos de saúde prestadoras de serviços

tidos como privados, estes tem caráter eminentemente público.

Dessa forma, no esteio de se definir, de forma pragmática e cristalina, os

serviços prestados, direta ou indiretamente, pelo Poder Público, o notável professor Fernando

8 NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 146.

9Idem, ibidem, p. 140.

10Idem, ibidem, p. 147.

Page 204: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

204

Antônio de Vasconcelos, consegue trazer concisamente o que entende-se por serviços

públicos:

Serviço público é aquele serviço prestado pela Administração Pública. São os

serviços de saúde, educação, transporte coletivo, água, luz, esgoto, limpeza pública,

asfalto, etc. Quem controla as regras desses serviços, que são prestados para

satisfazer às necessidades das pessoas, é o governo. Os serviços públicos são

prestados pelos próprios agentes públicos ou por empresas particulares contratadas

por órgãos públicos. Ambos são obrigados a prestar serviços adequados, eficientes,

seguros e contínuos, se forem essenciais.11

Consoante o texto do parágrafo único do art. 22 do Código de Defesa do

Consumidor, ―nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste

artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na

forma prevista neste código‖. Nesse contexto, preleciona Carlos Roberto Gonçalves12

:

[...] A responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas

jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público não se limita à reparação

do dano sob a forma de indenização, como previsto na Constituição Federal (art. 37,

§ 6º), pois nas ações movidas em defesa dos interesses e direitos dos consumidores

pode já ser obtida a tutela pleiteada, determinando o juiz providências que

assegurem o resultado prático equivalente ao cumprimento da obrigação, conforme

estabelecido no art. 84 do Código de Defesa do Consumidor.

Nos dizeres de João Batista de Almeida, ―o CDC não discrimina os serviços

públicos sob tutela, quer para dizer expressamente quais estão incluídos e quais não estão, se é

que pretendeu o legislador afastar da incidência legal algum tipo de serviço público.‖13

Acerca desse tema, na doutrina, podem-se identificar duas correntes. Há quem

defenda que não são protegidos pelo CDC os serviços públicos próprios (aqueles que são

prestados diretamente pelo Estado, como a defesa nacional e a segurança pública), mas tão

somente os serviços públicos impróprios (aqueles prestados diretamente pelo Estado ou

indiretamente, por meio de concessão, permissão ou autorização). Outros afirmam que o CDC

abrange todos os serviços públicos.

Nessa senda, tem-se que existem correlações muito íntimas entre os recursos e

estruturas do sistema público de saúde, por meio do SUS, e da saúde suplementar,

sobremaneirapelo fatodestacomplementar aquele. Dessa forma, ensina Gabriel Schulman que

―a prestação da saúde no Brasil é estruturada mediante um sistema público (SUS) o qual é

11

VASCONCELOS, Fernando Antônio de; BRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. Direito do

consumidor e responsabilidade civil: perguntas & respostas. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 21. 12

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 4 v.4 ed. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 267. 13

ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor.7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 105.

Page 205: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

205

complementado pela prestação particular (saúde suplementar e clínicas e hospitais

privados).‖14

No mesmo sentido, relata Renato Azevedo Júnior que ―apesar da divisão, a

prestação é estruturada sobre o que a doutrina da seara da saúde tem denominado mix público

privado, havendo significativa presença de recursos públicos no âmbito da prestação

suplementar.‖15

Schulman, em consonância, afirma que ―igualmente, há intensos influxos

entre o Sistema Único de Saúde e o sistema de prestação privada, havendo compartilhamento

de infra-estrutura, materiais e, sob variadas formas, de recursos.‖16

Assim, conforme se pode denotar da leitura atenta do art. 3º do CDC, as

pessoas jurídicas de direito público podem ser consideradas fornecedoras, e, por conseguinte,

serem consideradas sujeito nas relações de consumo.

Além disso, são fornecedores também todos aqueles que direta ou

indiretamente prestam serviços públicos, pois o art. 22 do mesmo Diploma reza que os órgãos

públicos, por si, por suas empresas ou por qualquer outra forma de empreendimento são

obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quando essenciais, contínuos.17

No art. 22, a lei consumerista regrou especificamente os serviços públicos essenciais

e sua existência, por si só, foi de fundamental importância para impedir que os

prestadores de serviços públicos pudessem construir ―teorias‖ para tentar dizer que

não estariam submetidos às normas do CDC.18

3.1 SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS: CONTINUIDADE

No art. 22 do CDC, in fine, fala-se que o serviço público, quando essencial,

deve ser contínuo. Tal assertiva advém da vontade legislativa de assegurar ainda mais os

direitos do consumidor em momentos que sua hipossuficiência se ressalta.

A advertência que ora se faz para a parte final do dispositivo em comento,

constitui-se necessária pela mesma razão de se falar em serviço público, ou seja, pelo fato de

que a presente pesquisa detém de assuntos acerca dos contratos de planos de saúde, e que, por

14

SCHULMAN, Gabriel. Planos de Saúde: saúde e contrato na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Renovar,

2009, p. 308. 15

AZEVEDO Júnior, Renato. apudSCHULMAN, Gabriel. op cit., nota 13, p. 308. 16

SCHULMAN, Gabriel. op cit., nota 13, p. 309. 17

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (1990). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/

ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas

empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a

fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.‖ 18

NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 148.

Page 206: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

206

isso mesmo, há de fazerreferências por várias vezes, direta ou indiretamente, aos assuntos de

relacionados ao serviço de saúde prestado diretamente pelo Poder Público.

Pode-se dizer que, de certa forma, todo serviço público é essencial, e que, por

esta razão, poder-se-ia afirmar que, por conseguinte, todos gozam de condições para serem

contínuos. Todavia, na verdade, há alguns serviços que tem um caráter de urgência

exponencialmente maior, independentemente do que seja.

Nessa toada, mesmo o simples serviço de emissão de um documento pode se

revestir de essencialidade, como, p. ex., no caso da necessidade de certo documento com o

primordial fito de requerer a soltura de alguém preso ilegalmente. Assim, ―é o caso concreto,

então, nessas hipóteses, que designará a essencialidade do serviço requerido.‖19

De forma indireta, a Lei de Greve, Lei nº 7.783/89, definiu o que se entende

por serviço essencial, ao explanar as hipóteses em que os serviços e atividades são

considerados como tais. Vejamos os incisos de seu art. 10:

Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:

I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica,

gás e combustíveis;

II - assistência médica e hospitalar;

III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;

IV - funerários;

V - transporte coletivo;

VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;

VII - telecomunicações;

VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais

nucleares;

IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais;

X - controle de tráfego aéreo;

XI - compensação bancária.20

(grifo nosso)

Dessa forma, faz-se necessário compreender a importância do estudo dos

serviços públicos no anseio de proteção dos consumidores de planos de saúde privados, haja

vista, como dito, a intrínseca correlação das disciplinas de ambos os serviços, os quais mais

do que se complementam, fazem parte de um todo, fazem parte dos direitos constitucionais à

vida digna e à saúde de qualidade.

Quase inviável trazer à baila palavras mais cristalinas e esclarecedoras que as

do ilustre professor Rizzatto21

, o qual explica em breves linhas a correlação dos serviços

essenciais com os princípios constitucionais:

19

NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 152. 20

BRASIL. Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/

l7783.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. 21

NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 154.

Page 207: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

207

[...] A legislação consumerista deve obediência aos vários princípios constitucionais

que dirigem suas determinações. Entre esses princípios encontram-se os da

intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da garantia à segurança

e à vida (caput do art. 5º), que tem de ser sadia e de qualidade, em função da

garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado (caput do art. 225) e da qual

decorre o direito necessário à saúde (caput do art. 6º) etc.

Ora, vê-se aí a inteligência da lei. Não é possível garantir segurança, vida sadia, num

meio equilibrado, tudo a respeitar a dignidade humana, se os serviços públicos

essências urgentes não forem contínuos.

Nesse sentido, o respeito à característica de continuidade dos serviços públicos

assegura a efetivação dos direitos fundamentais estampados na constituição de forma singular.

Assim, os referidos direitos envolvidos, do consumidor em si e os expressamente previstos na

Constituição, estão em constante correlação, em razão, sobremaneira, da própria estrutura do

ordenamento jurídico brasileiro, onde a Carta Magna traz os parâmetros essenciais que devem

ser seguidos por todos os ramos do Direito.

4 RESPONSABILIDADE CIVIL DOS MÉDICOS E DAS EMPRESAS DE SAÚDE

SUPLEMENTAR

Tendo em vista a correlação entre a prestação dos serviços de planos de saúde

por meio das cooperativas médicas e as feitas diretamente pelo médico, por intermédio das

consultas denominadas de ―particulares‖, considera-se por bem trazer à discussão, de forma

concisa e direta, o entendimento jurídico acerca da responsabilidade civil dos profissionais

liberais bem como das empresas prestadoras de serviços de saúde suplementar.

De pronto, pode-se informar que, em relação aos profissionais liberais, a

responsabilidade civil é subjetiva, consoante se vê da leitura no § 4º do art. 14 do Código de

Defesa do Consumidor.

Como bem afirmaram Stolze e Pamplona22

, no que se refere mais

especificamente à prestação de serviços na atividade médica –um dos cernes da temática do

presente trabalho –, a concepção da responsabilidade civil subjetiva pelos danos causados na

atividade médica latu sensu já encontrava guarida no Código Civil de 1916, quando

prescrevia em seu art. 1.545 o seguinte: ―os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e

dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência e

imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento‖.

22

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade

civil. v. 3, 11 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 267.

Page 208: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

208

No entanto, se, por um lado, afirmar-se com segurança que a responsabilidade

civil do médico, em relação ao contrato prestado entre ele e seu paciente, é por meio de

apuração da sua culpabilidade (ou seja, é subjetiva), o mesmo não se pode dizer em relação

aos serviços prestados pelos hospitais e clínicas médicas ou pelas empresas de saúde

suplementar ou mantenedoras de planos de saúde e seguros de assistência à saúde, os quais

são apurados pela responsabilidade civil objetiva.23

A responsabilidade civil dos hospitais ou clínicas médicas é prevista na norma

sobre a responsabilização objetiva por ato de terceiro, insculpida no art. 932, inciso III, do

Código Civil de 2002, in verbis:

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

[...]

III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no

exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

[...]

Por outro norte, no que diz respeito aos planos de saúde, estes tem singular

regulamentação, a Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, abordada de forma mais profunda e

didáticaa posteriori.

5 RESPONSABILIDADE ESTATAL RELATIVAMENTE AO ACESSO À JUSTIÇA

Além do dever de fiscalizar a atuação das operadoras de saúde no Brasil,

através, por exemplo, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e do Poder

Judiciário, cabe ao Poder Público garantir, sobretudo, o acesso à Justiça, consagrado pelo

inciso LXXXIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, como direito essencial e de

significativa relevância para a efetividade dos demais direitos que possam ser questionados

pelo consumidor de serviços de saúde suplementar.

Nesse prisma, ―o Estado é responsável pelos danos a que, por meio de seus

agentes, der causa, bem como pelos danos que tinha o dever de evitar‖24.

Pode-se apresentar de várias formas os danos advindos do exercício da

prestação jurisdicional. Assim, tais danos podem advir da atuação dolosa ou culposa dos

agentes judiciários, de falhas impessoais do serviço ou até mesmo de condutas que, embora

23

Idem, ibidem, pp. 279 a 281. 24

BRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. Assistência jurídica: direito do consumidor e

responsabilidade do Estado, aspectos teóricos, práticos e processuais. João Pessoa: Fotograf, 2009, p. 171.

Page 209: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

209

lícitas, causem dano injusto, grave e especial, em face do princípio da igualdade dos encargos

públicos.25

Destarte, quando o Poder Público causa danos aos consumidores, em razão de

omissão, ou mesmo por atuação contrária às normas constitucionais que permitem o acesso à

Justiça por meio da assistência judiciária integral e gratuita, pode ele ser obrigado a indenizar

os referidos consumidores. Para tanto, diversos são os meios judiciais que podem se valer os

consumidores de saúde suplementar que são desprovidos de recursos financeiros para custear

qualquer assistência jurídica particular ou eventuais custas processuais.

Quanto à assistência jurídica gratuita e ao acesso à Justiça sob a ótica do

problema da morosidade jurisdicional, falar-se-á, profundamente, mais a frente.

6 ABUSIVIDADES NOS SERVIÇOS DE SAÚDE SUPLEMENTAR

As relações de consumo, muitas vezes, e principalmente as relativas às

contratações de serviços prestados pelas empresas de saúde suplementar, são cercadas de

práticas e cláusulas abusivas, as quais geram danos aos consumidores desses tipos de serviços.

Antes de adentrar, o presente trabalho, nos estudos acerca das cláusulas

abusivas advindas dos contratos firmados pelos consumidores dos serviços de saúde

suplementar, necessário se faz perpassar os olhares pelo instituto jurídico das práticas

abusivas dos fornecedores, em vista, sobremaneira, de serem estas fortes fontes de danos aos

referidos consumidores e, por outro lado, fomentadoras de empecilhos aos consumidores em

busca da efetivação de seus direitos e garantias.

Além disso, interesse é tratar primeiro das práticas abusivas antes das cláusulas

abusivas, tendo em vista poderem ser aquelas pré-contratuais, contratuais ou pós-contratuais.26

O Diploma Protetivo dispõe sobre as práticas abusivas em seu art. 39 e incisos,

localizado na Seção IV do Capitulo IV.

É importante notar que as práticas comerciais são aquelas de natureza

contratual ou não que intermedeiam o fluxo de produtos e serviços dos fornecedores aos

consumidores, ou seja, as práticas que levam ao escoamento da produção.27

Tais práticas são

25

SERRANO JÚNIOR, Odoné. apudBRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. op. cit., nota 23, p. 172. 26

NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. op .cit., nota 2, p. 588. 27

BDINE JÚNIOR, Hamid Charaf. Práticas abusivas e cláusulas abusivas. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares

da (Coord.) Responsabilidade civil: responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Saraiva, 2009,

pp. 219-263.

Page 210: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

210

consideradas ilícitas quando abusam da boa-fé do consumidor, explorando suas fraquezas de

ordem técnica ou econômica, por vezes acarretando-lhe dano moral ou material.

Pelas palavras de Antônio Herman Vasconcelos28

compreende-se que a prática

abusiva goza de presunção absoluta de ilicitude, ou seja, mesmo na hipótese onde haja

conduta abusiva que não gere dano ao consumidor, ainda sim tal comportamento fere a

legislação e deve ser rechaçado.

Tal entendimento parece acertado, pelo fato de que o ordenamento jurídico

nacional determina que, na esfera das relações privadas, nas quais se incluem as relações

consumeristas, a boa-fé impere no comportamento de todos os polos.

As práticas comerciais são identificadas temporalmente nas fases pré-

contratuais, durante o contrato, como também pós-contratualmente. Isto se deve ao caráter

intermediário a elas inerente, o que acarreta a inclusão, nesta classificação de conduta, de uma

grande variedade de atividades.

O art. 39 do CDC apresenta hall, ainda que não exaustivo, de condutas

comerciais abusivas, previstas em seus incisos. Passar-se-á a analisar em seguidaaquelas que

detêmde certa relevância para a temáticageral do estudo em tela, principalmente no âmbito

das atividades comerciais das empresas de planos de saúde.

Apesar de parecer injusta, esta disposição do CDC (inciso II do art. 39 do

CDC) carrega maiores detalhes a serem analisados. O não atendimento de demanda

consumerista como prática comercial abusiva só se consubstancia quando o fornecedor tem

em sua posse e propriedade estoque do produto, ou mesmo disponibilidade para satisfazer o

serviço.

Tal dispositivo vem, em verdade, a fixar uma isonomia entre os consumidores

solventes, posto que a forma legítima de segregação pelo fornecedor é nos casos onde o

consumidor é manifestamente ―mal pagador‖, como, por exemplo, aquele que se encontra

com nome em cadastro de inadimplentes.

A recusa do fornecedor também é legal quando este observa que o intuito do

consumidor é causar dano. Desta forma, para prevenir dano a si ou a outrem, pode o

fornecedor se negar a contratar, sendo este um motivo justo que afastaria o abuso. No entanto,

ressalte-se que para configuração dessa hipótese é imprescindível a análise do caso concreto.

28

BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos. apudBDINE JÚNIOR, HamidCharaf. op. cit., nota 26, p. 220.

Page 211: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

211

Pela utilização dos termos de forma genérica, com pouca especificação,

podemos observar prontamente que o inciso IV do art. 39 trata-se de uma cláusula geral,

técnica comum do legislador ao tentar conferir maior flexibilidade interpretativa da norma.

Dessa forma, uma cláusula geral tem o fito de conferir maior liberdade ao

Poder Jurisdicional, implicando à legislação uma característica de atualização constante pela

jurisprudência, desde que este arcabouço decisório pátrio observe o ordenamento jurídico

como um todo, o qual sempre deve servir de norte para o julgamento das lides.

Nesse diapasão, não se deve confundir, no entanto, a fraqueza e ignorância

aqui mencionadas com a hipossuficiência. Aquelas circunstâncias todo consumidor possui,

não importando classe social ou formação educacional. Já a hipossuficiência deve ser

analisada no caso concreto, consubstanciando-se como causa para alguns privilégios

processuais, como acontece na decisão judicial de concessão da inversão do ônus da prova

(art. 6º, inciso VIII, do CDC).

Já a majoração de preço injustificada (inciso X), ou seja, com base única em

conceitos econômicos, como, por exemplo, a ―mão invisível do mercado‖, que relaciona

necessidade do mercado e existência do bem necessário, também é vedada, pois fere

princípios e garantias fundamentais, em especial a solidariedade social. Para haver majoração

de preço de forma legal, esta deve ser fundamentada em motivo justo, o qual, obviamente, por

ser termo genérico,suplica pela observância no caso concreto.

No que diz respeito aos reajustes que faz menção o inciso XIII, deve-se ter em

mente o cuidado aos ditames do ordenamento jurídico quando da sua fixação. Depois de

fixado, por lei entre as partes, segue o reajuste acordado até o exaurimento contratual. Quando

o contrato for de adesão, o que já marca um desequilíbrio entre os polos contratantes, e

houver mais de um índice para reajuste, será considerado o menos oneroso para o

consumidor.

O art. 41 vem a tratar dos produtos e serviços com tabelamento ou controle de

preços, caracterizando como abusiva a atitude do fornecedor que, ignorando os limites, cobra

em demasia. Há, in casu, faculdade do consumidor em receber a diferença, ou, se assim

desejar, desfazer o negócio.

Há disposto no inciso VIII do art. 39 vedação à comercialização de produtos ou

serviços que estejam em desacordo com as normas técnicas de controle dos órgãos oficiais

competentes.

Page 212: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

212

Desta forma há, em verdade, controle Estatal sobre a produção e a prestação,

de forma a garantir produtos e serviços de qualidade, comercializados com a devida

segurança, a fim de que possam ser fornecidos à população.

Nesse desiderato, ter-se-á uma apreciação mais específica a posteriori em

relação aos serviços de saúde suplementar quando da abordagemdas atribuições normativas e

fiscalizadoras da Agência Nacional da Saúde Suplementar.

7 CONTRATOS DE CONSUMO

Os contratos nas relações de consumo são tratados sob o prisma protetivo do

Código de Defesa do Consumidor. Destarte, o art. 47 da lei consumerista estipula que ―as

cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor‖.

Nesse sentido, Gonçalves29 afirma que tal dispositivo deve ser aplicado a todos

os contratos de consumo e harmoniza-se com o espírito do CDC, que visa à proteção do

hipossuficiente, do consumidor, visto que a grande maioria das regras que ditam tais relações

advém da vontade do fornecedor.

Nessa senda, importante colacionarmos o texto do art. 46 do CDC, o qual

dispõe, ipsis litteris:

Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os

consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de

seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a

dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

O artigo 46 decorre do princípio insculpido pelo art. 4º do CDC, qual seja, o

princípio da transparência. Dessa forma, não há lógica jurídica30é obrigar o consumidor a

cumprir um contrato onde não tem teve o mínimo de oportunidade de conhecer das cláusulas,

principalmente por terem estas sido criadas unilateralmente pelo fornecedor.

Dessa forma, o art. 46 traz uma proteção ao consumidor de características

preventivas, haja vista que inibe de certa forma o fornecedor em proceder com má-fé na

elaboração do contrato de consumo.

29

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: contratos e atos unilaterais. v. 3, 8 ed. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 68. 30

NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 688.

Page 213: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

213

O ilustre professor Rizzatto Nunes31 enumera os princípios basilares dos

contratos de consumo, a fim de entender-se a forma com que tais contratos devem ser

interpretados, princípios estes corolários dos princípios constitucionais.

Assim, pode-se citar a não aplicação do princípio do pacta sunt servanda às

relações consumeristas, tendo em vista a ausência de vontade do consumidor ao aderir aos

contratos elaborados unilateralmente pelo fornecedor.

Ademais, impende entender a existência aplicação do princípio da conservação

dos contratos nas relações de consumo, sobremaneira nos contratos de planos de saúde, a fim

de se evitar prejuízos ainda maiores aos consumidores (art. 6º, V, e art. 51, § 2º, ambos do

CDC).

O princípio da boa-fé é encontrado também nas relações contratuais regidas

pelo Código Civil de 2002. Não é diferente nas relações regidas pelo Código de Defesa do

Consumidor, muito pelo contrário, é, na verdade, ainda mais presente e essencial à

consecução dos direitos básicos do polo hipossuficiente (art. 4º, III, e art. 51, IV, todos do

CDC).

O princípio da equivalência, por sua vez, visa o equilíbrio nas relações entre

consumidores e fornecedores (inciso III, in fine, do art. 4º do CDC).

Já o princípio da igualdade está estampado no art. 6ª, inciso II, in fine, do CDC,

o qual estipula que é direito básico do consumidor ―a educação e divulgação sobre o consumo

adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas

contratações‖. A igualdade prevista no CDC advém da máxima constitucional prevista no

caput do art. 5º da Carta Magna.

Ao lado do dever de informar32, concebe-se o princípio da transparência no

anseio de assegurar que o consumidor tenha condições de contratar com o mínimo de

conhecimento sobre o objeto da relação jurídica.

Talvez o mais famoso princípio seja o da vulnerabilidade e hipossuficiência do

consumidor frente ao fornecedor em suas relações de consumo, tendo em vista ser o nome

dado ao Código cristalinamente sugestivo, consoante já fora dito no presente trabalho.

31

NUNES, Luiz AntonioRizzato. op.cit., nota 2, p. 654. 32

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (1990). Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 6º São direitos

básicos do consumidor: [...] III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com

especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem

como sobre os riscos que apresentem; [...].‖

Page 214: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

214

7.1 CLÁUSULAS ABUSIVAS

Além dos exemplos de práticas abusivas acima abordados, nos serviços de

saúde suplementar são frequentes as constatações de cláusulas abusivas.

No entanto, os efeitos das cláusulas abusivas, elencadas nos incisos do art. 51

do CDC, em regra, somente são constatados efetivamente após a celebração do contrato, pois

constituem-sede aspectospotenciais e em abstrato, sobretudo em razão da imprevisibilidade

que muitas vezes norteia os contratos nas relações jurídicas ditadas pelo Direito do

Consumidor.

A análise superficial e com poucas discussões sobre o contrato, antes de

celebrado, especialmente em relação aos contratos de adesão,não noticiam nenhum problema

substancial a priori, dificultando que o consumidor possa prever quais consequências

negativas poderá enfrentar futuramente diante de determinadas condutas ou circunstâncias.

Nessa senda, a proteção contra essas cláusulas é prevista no art. 6º, inciso IV,

do Código de Defesa do Consumidor, configurando-se como um direito básico do consumidor

a vedação dessas disposições ilegais.

O código consumerista enuncia exemplos de cláusulas abusivas que podem

encontradas nos contratos de consumo, sendo o rol apresentado numerusapertus,

exemplificativo, podendo ser identificadas tais cláusulas, previstas expressamente ou não, sob

a análise subjetiva do intérprete da norma no caso real.

No entanto,impende ressaltar que,quando as cláusulas contratuais em uma

relação de consumo são tidas como abusivas, antes mesmo de serem declaradas nulas de

pleno direito, consoante determinado em norma (art. 51 do CDC), é necessária uma

interpretação sistemática do CDC para aplicaçãodo princípio da continuidade contratual, o

qual revela maior preocupação em não acarretar ainda mais prejuízos ao consumidor.

Nesse sentido, o § 2º do art. 51 do CDC preza pela minoração dos danos,

efetivos ou potenciais, causados ao consumidor vítima de um contrato com tais cláusulas.

Assim, por exemplo, nos contratos de adesão de planos de saúde, a nulidade do contrato pode

acarretar problemas de ordens ainda maiores, devendo-se assim zelar pela permanência da

vigência do contrato.

Assim como se fez anteriormente quanto às práticas abusivas, passar-se-á ao

estudo um pouco mais profundo daqueles incisos do art. 51 do CDC dos quais representem os

tipos de cláusulas abusivas mais relevantes aos contratos de consumo de serviços de saúde

suplementar.

Page 215: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

215

Seguindo esse viés, insta mencionar os ensinamentos de Gonçalves33

em

relação à cláusula contratual que exonera o fornecedor quanto aos vícios e os fatos do produto

e do serviço, objeto de estudo mais profundo posteriormente:

O art. 51, I, do Código de Defesa do Consumidor considera abusiva e, portanto, nula

a cláusula contratual que impossibilitar, exonerar ou atenuar a responsabilidade civil

do fornecedor por vícios de qualquer natureza, incluídos aqui os acidentes de

consumo e os vícios redibitórios. Não vale, portanto, ―cláusula de não indenizar‖.

Nesse diapasão, não pode admitir-se a existência nos contratos de consumo de

cláusula exonerativa sobre vícios e fatos, sob pena de sua plena nulidade.

Por outro lado, o próprio dispositivo (art. 51, I, do CDC), disciplina uma

exceção, que se consubstancia no momento em que há a mera limitação da indenização, o que

é diferente de se pregar a integral exoneração da responsabilidade civil.

Finalmente, insta reiterar que o rol estipulado no art. 51 do CDC não é

taxativo. Isso implica na possibilidade de se examinar o caso concreto e encontrar uma

cláusula abusiva que não esteja exatamente prevista, ipsis litteris, nos incisos do referido

artigo.

8 A ANS E SUA COMPETÊNCIA

A Agência Nacional de Saúde Suplementar fora criada pela Lei nº 9.961, de 28

de janeiro do ano de 2000, constituindo-a como autarquia sob o regime especial, agência

reguladora, vinculada ao Ministério da Saúde.

No parágrafo único do art. 1º da referida norma, preleciona-se que a natureza

de autarquia especial dada à ANS é caracterizada por sua autonomia administrativa,

financeira, patrimonial, gestão de recursos humanos, bem como por sua autonomia nas suas

decisões técnicas e mandato fixo de seus dirigentes.

Já em seu art. 4º, apresentam-se vários incisos, definindo a competência da

ANS, dentre os quais, citam-se alguns: propor políticas e diretrizes gerais ao Conselho

Nacional de Saúde Suplementar (Consu) para a regulação do setor de saúde suplementar (I);

elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os

fins do disposto na Lei 9.656/98, e suas excepcionalidades (III); fiscalizar as atividades das

operadoras de planos privados de assistência à saúde e zelar pelo cumprimento das normas

33

GONÇALVES, Carlos Roberto. op. cit., nota 28, p. 269.

Page 216: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

216

atinentes ao seu funcionamento (XXIII); aplicar as penalidades pelo descumprimento da Lei

no 9.656, de 1998, e de sua regulamentação (XXX); etc.

Por sua vez, o § 2º do art. 1º da Resolução Normativa nº 197, de 16 de junho de

2009, a qual instituiu Regimento Interno da Agência Nacional de Saúde Suplementar, relata

que a ANS tem por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na

assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais.

O site institucional da Agência Nacional de Saúde Suplementar na internet

relata que esta agência reguladora acompanha o cumprimento, por parte das operadoras de

planos de saúde, dos prazos máximos de atendimento para consultas, exames e cirurgias. Este

monitoramento é permanente e contínuo e a divulgação dos dados apurados é feita pela

própria ANS a cada três meses.34

9 ALGUMAS PRÁTICAS ABUSIVAS NOS CONTRATOS DE PLANOS DE

SAÚDE

Pode-se de imediato citar, sinteticamente, algumas práticas comerciais tidas

como abusivas nos serviços de saúde suplementar, principalmente encontradas após a

assinatura do contrato em questão, previstas nos incisos do art. 39.

Inicialmente, pode ser considerada prática abusiva a atitude das operadoras de

planos de saúde deprevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua

idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços

(inciso IV).

Assim, por exemplo, um idoso que vai assinar um contrato de adesão de

serviços de saúde suplementar, não pode ser levado a contratar aquilo que não é de seu

interesse, sendo abusiva a prática da empresa de se aproveitar da idade avançada e ―embutir‖

cláusulas não sabidas, indesejadas ou exageradamente desvantajosas. Nesse sentido, leciona

Cláudia Lima Marques35:

34

AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR. Planos de saúde com comercialização suspensa

para novos beneficiários e Planos de saúde com comercialização reativada. Disponível em:

<http://www.ans.gov.br/planos-de-saude-e-operadoras/contratacao-e-troca-de-plano/planos-de-saude-com-

comercializacao-suspensa>. Acesso em: 10 jan. 2014. 35

MARQUES, Cláudia Lima apud SCHMITT, Cristiano Heineck. Indenização por dano moral do

consumidor idoso no âmbito dos contratos de planos e de seguros privados de assistência à saúde. Disponível em: <http://www.ambito-

juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2219>. Acesso em 10 jan. 2014.

Page 217: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

217

Tratando-se de consumidor ―idoso‖ (assim considerado indistintamente aquele cuja

idade está acima de 60 anos) é, porém, um consumidor de vulnerabilidade

potencializada. Potencializada pela vulnerabilidade fática e técnica, pois é um leigo

frente a um especialista organizado em cadeia de fornecimento de serviços, um leigo

que necessita de forma premente dos serviços, frente à doença ou à morte iminente,

um leigo que não entende a complexa técnica atual dos contratos cativos de longa

duração denominados de ―planos‖ de serviços de assistência à saúde ou assistência

funerária.

O inciso VIII do art. 39 do CDC estipula que o descumprimento de normas

técnicas por parte dos prestadores de serviços, constitui-se como prática abusiva. Destarte,

não é diferente para as empresas mantenedoras de planos de saúde.

Por vezes, vê-se que tais empresas têm a comercialização dos seus serviços e,

consequentemente, a autorização para a contratação de novos planos suspensa36

, tendo em

vista as irregularidades no cumprimento das normas técnicas emanadas da Agência Nacional

de Saúde Suplementar, sobremaneira quanto aos prazos para marcação de consultas, exames e

cirurgias, combinado com negação de coberturas.

Pode-se citar ainda elevação injusta dos preços dos serviços (inciso X), tanto

em relação às mudanças de preços anuais como as decorrentes das mudanças de faixa etária

dos usuários; ou a aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente

estabelecido (inciso XIII).

10 ALGUMAS CLÁUSULAS ABUSIVAS NOS CONTRATOS DE PLANOS DE

SAÚDE

Conforme foi estudado mais acima, entende-se que pode se constatar

determinada cláusula abusiva sem que ela necessariamente se subsumaperfeitamente às

hipóteses descritas no rol dos incisos do art. 51 do CDC37. Dessa forma, essas cláusulas são

entendidas como abusivas por estarem em confronto, na verdade, com os princípios de defesa

do consumidor, tendo em vista que o termo ―entre outras‖, escrito no caput do referido artigo,

deixar a entender que se trata de rol não taxativo, ou numerusapertus.

36

ANS SUSPENDE 246 planos de saúde; veja a lista completa. Revista Exame. Disponível em:

<http://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/noticias/ans-suspende-246-planos-de-saude-de-26-operadoras/>. Acesso

em: 10 jan. 2014. 37

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (1990). Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 51. São nulas de

pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: [...]‖

Page 218: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

218

Nesse diapasão, um exemplo disso é o julgamento do Recurso Especial nº

668.216, o qual, em seu acórdão, foi considerada abusiva a cláusula que impedia o

consumidor-paciente de ser tratado de uma doença por métodos mais sofisticados e modernos.

Seguro saúde. Cobertura. Câncer de pulmão. Tratamento com quimioterapia.

Cláusula abusiva.

1. O plano de saúde pode estabelecer quais doenças estão sendo cobertas, mas não

que tipo de tratamento está alcançado para a respectiva cura. Se a patologia está

coberta, no caso, o câncer, é inviável vedar a quimioterapia pelo simples fato de ser

esta uma das alternativas possíveis para a cura da doença. A abusividade da cláusula

reside exatamente nesse preciso aspecto, qual seja, não pode o paciente, em razão de

cláusula limitativa, ser impedido de receber tratamento com o método mais moderno

disponível no momento em que instalada a doença coberta.

2. Recurso especial conhecido e provido.38

No mesmo sentido, há julgamento mais recente do mesmo Egrégio Superior

Tribunal de Justiça (STJ):

ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. TRATAMENTO. TÉCNICA MODERNA.

CIRURGIA. NEGATIVA DE COBERTURA. CLÁUSULA ABUSIVA.

VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA.

1. [...]

2. Tratamento experimental é aquele em que não há comprovação médica-científica

de sua eficácia, e não o procedimento que, a despeito de efetivado com a utilização

equipamentos modernos, é reconhecido pela ciência e escolhido pelo médico como o

método mais adequado à preservação da integridade física e ao completo

restabelecimento do paciente.

3. Delineado pelas instâncias de origem que o contrato celebrado entre as partes

previa a cobertura para a doença que acometia o autor, é abusiva a negativa da

operadora do plano de saúde de utilização da técnica mais moderna disponível

no hospital credenciado pelo convênio e indicada pelo médico que assiste o paciente.

Precedentes.

4. Recurso especial provido.39

(grifo nosso)

Dessa forma, é impossível negar que há inúmeras possibilidades de se constatar

as cláusulas abusivas nesses tipos de contratação, sendo necessário, para tanto, a apuração

minuciosa dos fatos no caso concreto, a fim de se verificar o cumprimento às normas

protetivas por parte dos planos de saúde ao elaborarem os contratos a serem comercializados.

Já, por outro lado, trazendo-se à baila um exemplo de subsunção direta ao rol

de cláusulas abusivas disposto nos incisos do art. 51, têm-se precedentes dos nossos tribunais

pátrios superiores no sentido de considerarem abusivas as cláusulas que limitem o tempo de

internação do paciente, inserindo-se no conceito de ―desvantagem exagerada‖ do inciso IV do

38

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, REsp 668216 SP 2004/0099909-0, 3ª Turma, Rel. Carlos Alberto

Menezes Direito, Publicação: DJe 02 abr. 2007, p. 265. 39

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, REsp 1320805 SP 2012/0086320-3, 4ª Turma, Rel. Maria Isabel

Gallotti, Publicação: DJe17 dez. 2013.

Page 219: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

219

art. 51, o qual dispõe que são nulas as cláusulas abusivas que ―estabeleçam obrigações

consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou

sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade‖. Além disso, há disciplinamento nesse

sentido na própria Lei 9.656/98, em sua art. 12, inciso II, alíneas ―a‖ e ―b‖.

O entendimento de que a cláusula limitativa do tempo de internação do

consumidor de serviços de saúde suplementar é abusivatambém é consolidado pelo Egrégio

STJ, através da Súmula 302, publicada no DJ de 22/11/2004, que aduz: ―é abusiva a cláusula

contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado‖.

11 IMPLICAÇÕES DAS ABUSIVIDADES E PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

Conforme já é cediço, os contratos firmados perante as empresas operadoras de

planos de saúde, frequentemente, são constituído por algumas ou várias cláusulas abusivas e

juntam-se às práticas comerciais abusivas.

Esses comportamentos das empresas fora dos padrões estabelecidos pelos

órgãos reguladores, e em desacordo com as normas de diversas fontes legislativas, acabam

por cercear os direitos dos consumidores desses serviços, bem como tornam-se obstáculos

para a efetivação de outros direitos.

As implicações jurídicas nada mais são do que as reiteradas afrontas aos

direitos dos consumidores, tanto aos previstos no CDC, como também aos previstos em

normas constitucionais.

Como o CDC é constituído nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso

V, da Constituição Federal e do art. 48 de suas Disposições Transitórias (art. 1º do CDC), as

afrontas às normas consumeristas, ao menos de forma indireta, também ferem direitos e

garantias constitucionais.

Os direitos fundamentais à saúde e à vida digna são diretamente atacados pelas

reiteradas práticas abusivas e pelas constantes utilizações de cláusulas abusivas nos contratos

de planos de saúde, razão pela qual deve responsabilizar-se o Estado por estas circunstâncias,

em razão de ser um seu dever prestar o serviço de saúde pública de forma eficiente.

Nesse sentido, a afronta aos princípios constitucionais pode ser vista também

quando observa-se, por exemplo, o não atendimento a norma que disciplina que os serviços

públicos essenciais, ressalte-se, prestados tanto diretamente pelo Poder Público, como

Page 220: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

220

também pelas empresas privadas prestadoras de tais serviços, conforme já estudado em linhas

anteriores, sejam contínuos.

Uma das principais implicações da abusividade nos contratos de planos de

saúde é a constituição de uma barreira para a efetivação dospróprios direitos básicos do

consumidor, insculpidos nos célebres termos do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor,

especialmente nos previstos nos incisos I (proteção da vida, saúde e segurança), VII (o acesso

aos órgãos judiciários) e VIII (a facilitação da defesa de seus direitos).

Explana-se. O consumidor de planos de saúde adere a um contrato de adesão

que é cercado de abusividades, tanto entre as suas cláusulas quanto em relação às atividades

comerciais abusivas (como visto, estas podem serpré-contratuais, contratuais ou pós-

contratuais), por exemplo, ao ocorrer recusa injustificada no atendimento de emergência. Esse

conjunto de abusividades torna o consumidor, que já é presumidamente vulnerável, ainda

mais desprotegida ou, melhor dizendo, torna seus direitos mais complicados de serem

buscados e, consequentemente, efetivados.

12 O PROBLEMA DA MOROSIDADE JURISDICIONAL

Por outro norte, as abusividades juntam-se a um imbróglio que é fato notório

perante a sociedade, qual seja, a (re)conhecida morosidade jurisdicional. Imagine-se um

cidadão que precisa urgentemente de uma cirurgia ou de um transplante ou de uma

quimioterapia, e tais procedimentos lhes são negados indevidamente.

Essa questão é de extrema relevância, de forma especial para os consumidores

de planos de saúde, os quais, também por vezes, são necessitados.

Ver-se em não poucos casos que ―as sentenças dos magistrados são proferidas

quando o interesse da parte já não é mais importante, ou até quando o autor da ação já tem

falecido‖40

.

O problema ora abordado pode ensejar até mesmo a responsabilidade civil do

Estado41

, que é o maior garantidor do pleno acesso à Justiça, a qual, acima de tudo, deve ser

muitas vezes célere para alcançar um outro princípio do cidadão, qual seja, o da eficiência dos

serviços públicos.

O consumidor ver-se então desamparado. O direito poderá até existir in

abstracto, mas a sua efetivação, a sua consecução, o seu direito in concreto está altamente

40

BRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. op. cit., nota 23, p. 137. 41

Idem, ibidem.

Page 221: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

221

comprometido, tendo em vista a barreira burocrática formada perante sua vontade de ver

preservada sua integridade física e a sua vida.

13 O PROBLEMA DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA

O imbróglio da morosidade jurisdicional junta-se ao problema da própria

assistência jurídica gratuita apresentada pelos Núcleos das Defensorias Públicas, as quais

também são conhecidas pela falta de estrutura e investimentos comprometidos com a justiça

social.

Não obstante os inegável esforços dos Defensores Públicos em cumprir suas

atribuições (art. 1º da Lei Complementar 80/9442), resta inviável sua consecução sem os

devidos investimentos públicos nesse órgão, que é essencial para a defesa dos consumidores,

sobremaneira daqueles mais necessitados.

Isso porque, conforme é cediço, a partir da Lex Mater de 1988 é que os aquelas

pessoas mais carentes de recursos financeiros passaram a estar dispensadas do pagamento das

custas processuais e a ter, de forma integral e gratuita, a prestação de serviços de assistência

jurídica.43

Assim, não há pensamento diverso daquele que entende ser a assistência

jurídica como sendo um instrumento para a execução da política nacional das relações de

consumo (art. 4º do CDC), sobremaneira em razão dos direitos básicos do consumidor

previstos no art. 6º do Diploma Protetivo, conforma já visto anteriormente. Nesse sentido, é

de bom alvitre lembrar os ensinamentos de João Batista de Almeida44

:

Cremos que o legislador, ao utilizar a expressão ―assistência jurídica‖, quis abranger

tanto a orientação jurídica prestada ao consumidor em suas consultas perante os

órgãos administrativos e até o Ministério Público, como também a assistência

judiciária propriamente dita, prevista na Lei nº1.060, de 5 de fevereiro de 1950, que

coexiste perfeitamente com as disposições do Código do Consumidor, e que

dispensa o consumidor carente do pagamento de honorários advocatícios de seu

patrono (que será ou o defensor público, onde existir, ou advogado credenciado ou

42

BRASIL. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Disponível em: <http://www.planalto.

gov.br/ccivil_03/ leis/lcp/Lcp80.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 1º A Defensoria Pública é instituição

permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do

regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em

todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos

necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal. (Redação dada

pela Lei Complementar nº 132, de 2009).‖ 43

BRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. op. cit., nota 23, p. 67. 44

ALMEIDA. João Batista. apudBRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. op. cit., nota 23, p. 121.

Page 222: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

222

nomeado pelo juiz para o mister), de honorários de perito, além de isentá-lo do

pagamento de custas processuais. No Juizado Especial Cível está expressamente

prevista assistência jurídica, se uma das partes comparecer assistida por advogado,

ou se o réu for pessoa jurídica ou firma individual (Lei nº 9.099, art. 9º).

Dessa forma, ainda mais difícil se torna a efetivação dos direitos do

consumidor, o qual se vê desamparado, principalmente quando tenta algum atendimento

médico-hospitalar, tanto em planos de saúde, quanto na rede pública de saúde, através do

Sistema Único de Saúde.

14 O USO DA LIMINAR NA DEFESA DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE

Ao se ver com seu direito fundamental à vida e à saúde, previstos na

Constituição Federal de 1988, ameaçado, por exemplo, em caso em urgência, o consumidor

poderá se valer do instituto jurídico da antecipação dos efeitos da tutela, a fim de salvaguardar

este direito que está ameaçado, para, no fim da demanda judicial, ser ele confirmado.

Preleciona sabiamente o ilustre professor e doutrinador Fredie Didier Jr.45

, em

obra conjunta com Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, que: ―[...] para que não fique

comprometida a efetividade da tutela definitiva satisfativa (padrão), percebeu-se a

necessidade de criação de mecanismos de preservação dos direitos contra os males do tempo‖.

E para se requerer tal antecipação faz-se necessário o cumprimento de alguns

pressupostos, quais sejam, a prova inequívoca que conduza a um juízo de verossimilhança

sobre as alegações (caput do art. 273, do CPC) – probabilidade das alegações – e,

cumulativamente, a reversibilidade dos efeitos do provimento (§ 2º do art. 273), que é a

possibilidade de, após a concessão da antecipação, retornar-se ao status quo ante, sem

prejuízo para a parte adversária.

Aduz ainda o autor, ao falar sobre a concessão liminar da antecipação dos

efeitos da tutela frente à suposta violação ao princípio do contraditório, o seguinte:

É bom que se ressalte que não há violação da garantia do contraditório na

concessão, justificada pelo perigo, de providências jurisdicionais antes de ouvida a

outra parte (inaudita altera parte). O contraditório, neste caso, é deslocado para o

momento posterior à concessão da providência de urgência.46

[...]

A antecipação de tutela poderá ser concedida liminarmente quando o perigo de

dano se der antes ou durante o ajuizamento da demanda. Acaso não haja risco

de ocorrência do dano antes da citação do réu, não há que se concedê-la em caráter

45

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarnos; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. v. 2., 5.

ed. Bahia: JusPodivm, 2010, p. 457. 46

Idem, ibidem, p. 479.

Page 223: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

223

liminar, pois não haverá justificativa razoável para a postergação do exercício do

contraditório por parte do demandado. Seria uma restrição ilegítima e

desproporcional ao seu direito de manifestação e defesa. Somente o perigo justifica

a restrição ao contraditório.47

(grifo nosso)

Preenchidos os pressupostos cumulativos supracitados, deve-se, de acordo com

o art. 273 do CPC, analisar se há fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação

(inciso I) ou se fica caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito

protelatório do réu (inciso II).

Dessa forma, primeiramente, deve-se proteger o direito do consumidor à vida e

à saúde, em caso de comprovada urgência e, após análise sumária, comprovada obediência

aos requisitos da concessão da medida liminar, acima expostos, atuando o Magistrado

competente em prol de deferi-la, para que, somente posteriormente, possa julgar o mérito da

referida demanda judicial, algo que, via de regra, requer mais tempo para uma análise

minuciosa do caso.

Conforme se verá adiante, o uso indiscriminado ou, melhor dizendo, exagerado

e reiterado de tal instituto jurídico é consequência da excessiva percepção, da verdadeira

proliferação de práticas e cláusulas abusivas nos contratos de prestação de serviços de saúde

suplementar.

15 A “INDÚSTRIA DE LIMINARES”

Nesse desiderato, quando negado o acesso ao direito fundamental à saúde,

sobretudo quando este se encontra também lastreado em legislação específica vigente, em

razão de práticas e cláusulas contratuais flagrantemente abusivas e incompatíveis com a boa-

fé e equidade (inciso IV, do art. 42, do CDC), outro resultado não há que a violação imediata

e direta aos significados maiores da cidadania, derrogando os fundamentos que sustentam os

alicerces republicanos, ou seja, afrontando veementemente os direitos e garantias

constitucionais.

Essa atuação ilegal dos prestadores de serviços na seara da saúde suplementar,

ou seja, das empresas mantenedoras de planos de saúde e assistência médico-hospitalar

proporciona também uma massificação das ações judiciais, bem como uma reiteração de

pedidos de concessão de liminares para realização de procedimentos médico-ambulatoriais de

urgência.

47

Idem, ibidem, p. 509.

Page 224: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

224

Destarte, pode-se constatar a formação de uma verdadeira ―indústria de

liminares‖, com o único fito de ver os direitos estipulados cristalinamente na norma de

proteção ao consumidor, realmente, efetivados.

O citado problema da morosidade jurisdicional se juntaà necessidade crescente

de busca pela proteção do consumidor perante o Poder Judiciário.

Dessa forma, abarrota-se ainda mais o sistema jurisdicional, em virtude

principalmente das práticas e cláusulas abusivas frequentemente encontradas nos contratos

firmados entre os consumidores e as empresas mantenedoras de planos de saúde e assistência

médico-hospitalar e de saúde em geral, sendo o único prejudicado o consumidor, o qual fica

refém da vontade procrastinatória dessas empresas e da dificuldade do Poder Judiciário em

respeitar de forma eficiente o princípio constitucional da celeridade processual.

Consoante se afere do acima exposto, a legislação revela certa segurança na

prestação dos serviços desta natureza, o que impede, em alguns casos, que os consumidores

restem a reboque do desrespeito e da excessiva burocratização de atividades que, por sua

natureza, pressupõe a obtenção de lucros.

No entanto, na maioria dos casos, tal burocratização dificulta, em razão de uma

pretensão preponderantemente econômico-financeira, todos os dias, o acesso à saúde e, por

conseguinte, a vida digna. Tudo isso, somado ao problema do acesso à Justiça, formam o

―papel de parede‖ da situação dos consumidores dos serviços de saúde suplementar.

CONCLUSÃO

A maior contribuição do presente estudo é a simples e fácil percepção de que o

consumidor tem colecionado entraves na consecução de seus direitos tanto na órbita

administrativa quanto na esfera judicial, sendo, sobremaneira esta última, complementando o

percalço do consumidor, detentora de imbróglios no que diz respeito à celeridade na entrega

da prestação jurisdicional, contribuindo assim, de forma exponencial, com a ineficácia de

normas regulamentadoras, consumeristas e constitucionais de proteção ao usuário de planos

de saúde.

Nessa senda, o que se constata é a afronta veemente e violenta aos direitos e

garantias constitucionalmente assegurados, aos direitos à vida e à saúde, em face dareiterada

omissão Estatal, tendo em vista a sua insuficiente e ineficiente fiscalização das empresas

privadas que prestam serviços públicos e, in casu, essenciais.

Page 225: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

225

A omissão Estatal, portanto, encontra apoio na aparente falta de interesse das

empresas de saúde suplementar em prestar seus serviços de forma exemplar e a garantir os

direitos básicos de seus usuários. Ao contrário, a constatação da repetitiva violação aos

regulamentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar e das normas emanadas do Código

de Defesa do Consumidor demonstram, basicamente,o interesse eminentemente financeiro

dessas empresas, as quais não se esforçam em demonstrar comprometimento com a vida e a

saúde de seus consumidores.

Por outro norte,a saúde pública detém estrutura de atendimento deficitária e

desorganizada, propagando uma exorbitante demora na prestação efetiva e eficiente do

serviço essencial de saúde, o qual muitas vezes é de péssima qualidade, constando-se também

frequentes afrontas aos direitos fundamentais à saúde e à vida das pessoas que têm, no

Sistema Único de Saúde, a única esperança.

Destarte, por conseguinte, aqueles que podem, se socorrem nos planos de

saúde, numa expectativa comum de melhor qualidade na prestação do serviço, haja vista que

tais planos têm características de algo ―privado‖, por obviamente serem pagos, o que

pressupõe uma preocupação maior do fornecedor em agradar seus ―clientes‖ – o que, de certa

maneira, como já dito, não acontece.

A saúde suplementar surge como uma suposta válvula de escape para haver um

descente atendimento médico-hospitalar. Mas, consoante perceptível, esse entendimento é

mera suposição. A carência, na verdade, atinge também os serviços prestados pelos planos de

saúde, os quais estão sendo reiteradamente punidos por não cumprirem normas

regulamentadoras que prezam pela saúde dos cidadãos que utilizam o referido serviço

―privado‖.

Adeplorável situação em que os serviços de saúde prestados tanto direta como

indiretamente pelo Poder Públicoenfrentam hoje é um problema advindo, sobretudo,de uma

má gestão da coisa pública, dos recursos públicos, latu sensu, desembocando na ineficiente

atuação dos serviços de saúde suplementar, os quais encontram significativa dificuldade em

cumprir as normas e regulamentos.

Essa conjuntura acaba por desrespeitar os direitos e garantias

constitucionalmente previstos aos consumidores desses tipos de serviços ―privados‖, bem

como os direitos especificados no Código de Defesa do Consumidor, na Lei dos Planos de

Saúde, e nas demais normas infraconstitucionais.

Em meio a esse contexto, no entanto, resta ao consumidor, por sua vez, se valer

de diversos meios judiciais para a consecução e efetivação dos seus direitos básicos, tanto na

Page 226: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

226

esfera judicial individual, quanto na esfera coletiva, por meio dos órgãos legitimados, como o

Ministério Público e a própria Defensoria Pública.

O que não pode haver é a acomodação dos consumidores no sentido de cobrar

junto aos órgãos legitimados a propor a Ação Civil Pública ou à agência reguladora desses

serviços, devendo-se denunciar e buscar a tomadade medidas cabíveis, a fim de sanar ou

mesmo minimizar os efeitos devastadores das práticas e cláusulas abusivas espalhados nos

contratos de serviços de saúde suplementar.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR. Planos de saúde com

comercialização suspensa para novos beneficiários e Planos de saúde com

comercialização reativada. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/planos-de-saude-e-

operadoras/contratacao-e-troca-de-plano/planos-de-saude-com-comercializacao-suspensa>.

Acesso em: 10 jan. 2014.

ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor.7. ed. rev. e atual. São

Paulo: Saraiva, 2009.

BDINE JÚNIOR, HamidCharaf. Práticas abusivas e cláusulas abusivas. In: SILVA, Regina

Beatriz Tavares da (Coord.). Responsabilidade civil: responsabilidade civil nas relações de

consumo. São Paulo: Saraiva, 2009.

Page 227: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

227

BRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. Assistência jurídica: direito do consumidor

e responsabilidade do Estado, aspectos teóricos, práticos e processuais. João Pessoa: Fotograf,

2009.

BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência

do STJ. Salvador: Juspodivm, 2007.

BRASIL. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Disponível em:

<http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/ leis/lcp/Lcp80.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

DIDIER, Fredie Jr., BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual

civil. v. 2. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2010.

ANS SUSPENDE 246 planos de saúde; veja a lista completa. Revista Exame.Disponível em:

<http://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/noticias/ans-suspende-246-planos-de-saude-de-26-

operadoras/>. Acesso em: 10 jan. 2014.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil:

responsabilidade civil. v. 3, 11 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013.

GONÇALVES, Carlos Roberto.Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 4. v., 4. ed.

São Paulo: Saraiva, 2009.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: contratos e atos unilaterais. 4. v., 8

ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

NUNES, LuizAntonio Rizzatto.Curso de direito do consumidor: com exercícios. 6. ed. São

Paulo: Saraiva, 2011.

SCHMITT, Cristiano Heineck. Indenização por dano moral do consumidor idoso no

âmbito dos contratos de planos e de seguros privados de assistência à saúde. Disponível

em: <http://www.ambito-

juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2219>. Acesso em

10 jan. 2014.

SCHULMAN, Gabriel. Planos de saúde:saúde e contrato na contemporaneidade. Rio de

Janeiro: Renovar, 2009.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, REsp 668216 SP 2004/0099909-0, 3ª Turma, Rel.

Carlos Alberto Menezes Direito, Publicação: DJe 02 abr. 2007, p. 265.

Page 228: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

228

________. REsp 1320805 SP 2012/0086320-3, 4ª Turma, Rel. Maria Isabel Gallotti,

Publicação: DJe 17 dez. 2013.

________. Súmula nº 302. É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no

tempo a internação hospitalar do segurado. Publicação: DJe 22 nov. 2004.

VASCONCELOS, Fernando Antônio de; BRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos.

Direito do consumidor e responsabilidade civil: perguntas & respostas. Rio de Janeiro:

Forense, 2008.

Page 229: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

229

CUIDADOS PALIATIVOS NA ÉGIDE DO CÓDIGO DE ÉTICA

MÉDICA

Francisco Bruno Santana da Costa

1

Gabriela Tavares de Oliveira2

Jhayme Farias Cartaxo Lopes3

Eduardo Gomes de Melo4

Sumário:1 Introdução. 2 Desenvolvimento. Considerações finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Apesar do avanço científico e técnico atual na área da saúde e do atendimento

especializado, em que se tem conseguido prolongar a vida humana em todo o mundo,

observa-se que, nos países desenvolvidos, a maioria das mortes seja precedida por uma

enfermidade ou uma condição que tornam como sensata a escolha de preparar-se para a morte

num período de tempo previsível (EMANUEL, 2013).

As neoplasias, por exemplo, têm servido de paradigma do cuidado terminal, entretanto

não é o único tipo de afecção com fase terminal reconhecida e esperada. Como a insuficiência

cardíaca, as nefropatias com insuficiência renal avançada, a síndrome da imunodeficiência

adquirida, a demência, a esclerose lateral amiotrófica, a insuficiência hepática crônica, a

doença pulmonar obstrutiva crônica e muitas outras patologias têm fases terminais

reconhecíveis (PORTO, 2011). Uma abordagem sistemática do cuidado terminal deve integrar

diversos saberes, cuidados e áreas do conhecimento multiprofissional.

O cuidado paliativo deve ser considerado ―parte integrante do cuidado global de todos

os pacientes, posto que a assistência paliativa pode minorar significativamente o sofrimento

produzido pela doença‖ (EMANUEL, 2013). Recentemente, revisões de literatura expuseram

pujantes evidências de que o cuidado paliativo pode ser maximizado por meio da coordenação

entre cuidadores, médicos e pacientes para a ideal maturação e planejamento do cuidado,

assim como equipes humanizadas e dedicadas de médicos, enfermeiros e demais

colaboradores.

O rápido aumento da expectativa de vida no último século traz consigo novas

1 Graduando em Medicina pela UFCG.

2 Graduanda em Medicina pela UFPB.

3Graduando em Medicina pela UFPB.

4 Médico Geriatra; Professor da UFPB.

Page 230: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

230

dificuldades que indivíduos, famílias e a sociedade como um todo enfrentam para atender as

necessidades de uma população envelhecida. Estes desafios agregam tanto situações mais

complicadas como tecnologias, para lidar com elas no final da vida.

O desenvolvimento de tecnologias que podem prolongar a vida sem restaurar a saúde

integral contraria o princípio hipocrático ―primum non nocere‖- primeiramente não

prejudicar- e o vigésimo segundo princípio fundamental do Código de Ética Médica (CEM)

brasileiro que reza: ―Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a

realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos

pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados‖.

Dessa maneira, evidencia-se que a inserção dos cuidados paliativos na saúde brasileira

ainda é uma realidade pouco desenvolvida. Com isso, objetivou-se, a partir de uma revisão

literária, ressaltar a inadequada utilização da ética médica no atendimento e na relação

médico-paciente-familiar nas situações em que os tratamentos farmacológicos ou de

intervenção direta à doença não são mais cabíveis. (BRUGUGNOLLI et al., 2013).

2 DESENVOLVIMENTO

Em senso estrito, paciente terminal ou sem possibilidade terapêutica, como tem sido a

nomenclatura preferencialmente adotada, nos tempos presentes, é aquele que sofre de uma

doença incurável em estágio adiantado e para o qual não há recursos médicos capazes de

alterar o prognóstico do indivíduo em curto prazo (PORTO, 2011). Não se deve confundir o

conceito de paciente em estado grave com paciente terminal. Por mais críticas que sejam as

condições de um paciente, quando existe a possibilidade de reversão do quadro clínico, as

reações psicológicas e os mecanismos psicodinâmicos do binômio médico-paciente são

diferentes dos que ocorrem quando não existe expectativa de recuperação.

De acordo com Porto (2011),a relação médico-paciente nos casos terminais costuma

ser crítica e causar perturbação emocional para o médico, fato que comprova isso é que

muitos deles têm grande dificuldade de se relacionarem com tais pacientes.

Os cuidados dedicados aos pacientes terminais remontam ao século IV da era

cristã,devido à criação de instituições de caridade e, posteriormente, de hospedarias que

aliavam hospitalidade das casas de repouso com os cuidados necessários de um hospital. Em

1967, a fundação do St. Chistopher Hospice, uma instituição criada em Londres a partir de um

novo modelo de assistência aos doentes terminais, por CicelySaunders, impulsionou a criação

do Movimento Hospice Moderno. As propostas para a criação deste modelo de instituição

Page 231: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

231

ressaltam os princípios dos Cuidados Paliativos, os quais consistem―em minorar o máximo

possível a dor e demais sintomas dos doentes e, simultaneamente, possibilitar maior

autonomia e independência dos mesmos‖ (MENEZES, 2011).

O ideário dos Cuidados Paliativos valoriza a expressão dos desejos dos doentes e de

seus familiares, ―veiculando a ideia de que o acompanhamento de uma pessoa em processo de

morte propicia um desenvolvimento pessoal‖ (BRUGUGNOLLI et al., 2013).

A partir de 1970, houve o crescimento do movimentoHospiceModernonos Estados

Unidos, devido ao encontro de CicelySaunders com a psiquiatra suíça Elizabeth Klüber-Ross

(1926-2004). Elizabeth contribuiu significativamente nesta área após conviver com centenas

de pacientes terminais (OLIVEIRA et al., 2013).

Para conferir a qualidade do cuidado paliativo e terminal, é indispensável manter a

atenção em quatro domínios gerais: sintomas físicos; sintomas psicológicos; necessidades

sociais, incluindo as relações interpessoais, a prestação de cuidados e as preocupações

financeiras; e necessidades existenciais ou espirituais-religiosas (EMANUEL, 2013).

Uma análise completa deve pesquisar e avaliar as necessidades em cada um desses

quatro domínios. Os objetivos da assistência devem ser propostos e estabelecidos em diálogos

com o paciente e/ou com os familiares, de acordo com a avaliação em cada um dos quatro

domínios. As intervenções deverão, então, serem propostas de forma a melhorar ou controlar

os sintomas e as necessidades a fim de garantir a autonomia e o bem-estar do paciente.

Neste âmbito, o novo CEM, publicado em abril de 2010, após mais de 20 anos de

vigência do Código anterior,consolida-se como um indutor de transformações no campo da

política, sem, contudo, abdicar de sua principal contribuição para a sociedade: o reforço à

autonomia do paciente (BRASIL, 2010). Ou seja, aquele que recebe atenção e cuidado passa a

ter o direito de recusar ou aceitar seu tratamento.

Tal aperfeiçoamento corrige a falha histórica – proveniente da filosofia hipocrática

desde a fundamentação da medicina - que deu ao médico um papel paternalista e autoritário

nessa relação, fazendo-o progredir em direção ao compartilhamento de informações e

opiniões– abordagem sempre preocupada em assegurar a beneficência das ações profissionais

de acordo com o interesse e o bem-estar do paciente (SIQUEIRA, 2008).

É nessa problemática que se apresenta o artigo 41 do Código de Ética Médica,

encontrado no Capítulo V, (Relação com Pacientes e Familiares), expondo que é vedado ao

médico:

Abreviar a vida do paciente, ainda que à pedido deste ou de seu representante legal.

Parágrafo único: Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer

todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou

Page 232: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

232

terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade

expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal

(RESOLUÇÃO CFM nº 1.931, 2009, p. 39).

Esses textos resultam de um pensamento ativo e voltado a quebrar barreiras até outrora

vigentes, posto que denotam repulsa ao encarniçamento terapêutico, à obstinação e à

futilidade (MENEZES, 2011). Conforme mencionado acima, o CEM efetua uma orientação

terapêutica: os cuidados paliativos. Isso, através da indicação de uma especialidade médica

voltada para moléstias crônicas incuráveis.

Diante do significativo aumento dos portadores de doenças crônicas de prognóstico

reservado, os desenvolvimentos tecnológicos observados, sobretudo, na última década,

tornaram possível prolongar a vida de pessoas doentes. Contudo, tais recursos terapêuticos

podem ser desnecessários diante de pacientes em estágio terminal de vida.

Atualmente, as Unidades de Terapia Intensiva (UTI) recebem muitos enfermos

portadores de doenças crônicas incuráveis, cujas intercorrências clínicas envolvem o uso

exacerbado de tecnologias, as quais permitem uma sustentação artificial da vida, como a

ventilação mecânica, oferecendo, desta maneira, não mais que uma condição vegetativa ao

paciente.

Em muitos casos, a incessante busca pela cura e a rejeição da morte a todo custo, por

profissionais médicos, superam os possíveis benefícios das suas ações oferecidas aos

pacientes, fato este que ilustra o modo como a morte é encarada pelos médicos: ―como

fracasso de sua atuação, fazendo com que determinadas condutas se tornem, em alguns casos,

maléficos para os enfermos‖ (HERZLICH, 1993, p.6). Tais ações vão de encontro aos

procedimentos sustentadores de vida em Cuidados Paliativos, os quais consistem ―nos

princípios éticos da beneficência, da não-maleficência, da autonomia e da justiça‖

(SIQUEIRA, 2008).

Contudo, apesar da limitação terapêutica encontrada na UTI em relação aos pacientes

em estágio terminal, as discussões que envolvem os cuidados paliativos trazem à tona grandes

conflitos bioéticos, não apenas entre os integrantes das equipes médicas e assistenciais, mas,

sobretudo, dentro das relações familiares.

A execução da filosofia dos cuidados paliativos existe há tempos no Brasil, apesar de

ser um conhecimento de pequena amplitude na classe médica brasileira. Levando em

consideração que as doenças crônico-degenerativas vêm crescendo acentuadamente no país, a

prática e o debate acerca da temática dos cuidados paliativos crescem no mesmo ritmo. Não

só por tal necessidade imposta, como também pela adoção e propagação de novos métodos e

Page 233: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

233

processos terapêuticos no campo da oncologia, o cuidado paliativo começa a se inserir nos

tratamentos das mais diversas enfermidades.

Contudo, é importante salientar que o profissional deve antes ter certeza das condições

reais do paciente e do prognóstico de sua doença a fim de optar de maneira correta pelos

cuidados paliativos, priorizando, sempre, o seu bem-estar. Diante disso, é vedado ao médico,

pelo Artigo 32 do Código de Ética Médica: ―Deixar de usar todos os meios disponíveis

dediagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos ea seu alcance, em favor do

paciente‖.

Segundo as diretrizes da OMS (Organização Mundial de Saúde),

Cuidado Paliativo é a abordagem que promove qualidade de vida de pacientes e seus

familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, através de

prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce, avaliação e

tratamento impecável da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e

espiritual. (OMS, 2002, p.).

É notável, contudo, que há consideráveis falhas nas políticas de saúde brasileira,

dificultando o acesso dos usuários aos serviços de saúde, bem como uma significativa falta de

acesso à informação tanto pelos profissionais de saúde, quanto pelos pacientes acerca do

cerne do cuidado paliativo, sendo este uma abordagem terapêutica contínua e integral,

incorporando o conceito de cuidar e não somente curar.

A OMS preconiza alguns princípios dos cuidados paliativos:

Promover o alívio da dor e de outros sintomas desagradáveis;

Não acelerar nem adiar a morte;

Afirmar a vida e considerar a morte um processo normal da vida;

Integrar os aspectos psicológicos e espirituais no cuidado ao paciente;

Oferecer um sistema de suporte que possibilite ao paciente viver tão

ativamente quanto possível até o momento de sua morte;

Ofertar suporte para auxiliar os familiares durante a doença e durante o

período do luto;

Disponibilizar abordagem multiprofissional para focar as necessidades do

paciente e dos familiares;

Melhorar a qualidade de vida e influenciar positivamente o curso da

doença;

Iniciar o mais precocemente possível o cuidado paliativo, juntamente

com outras medidas de prolongamento da vida, como quimioterapia e

radioterapia, e incluir todas as investigações necessárias para melhor

compreender e controlar situações clínicas estressantes (OMS, 2002, p.).

No artigo XXII, dos Princípios Fundamentais do Código De Ética Médica do Brasil

diz que: ―XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização

Page 234: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

234

de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob

sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.‖ Nesse trecho do Código de Ética, o

cuidado paliativo parece ser necessário somente na situação terminal e irreversível.

Tal interpretação vai de encontro ao princípio da OMS listado acima e desconsidera o

cuidado paliativo como um tratamento que pode ser realizado logo após o diagnóstico da

doença. O cuidado paliativo deve ser embutido como terapêutica juntamente com as

intervenções farmacológicas e outras medidas de prolongamento da vida logo quando se

diagnostica a enfermidade. Todavia, tal cuidado paliativo vai aumentando na medida em que a

possibilidade de cura através da intervenção da doença vai se exaurindo.

Figura 1: Evolução dos cuidados paliativos

Fonte: http://www.cve.saude.sp.gov.br/agencia/bepa70_hivaids.htm

No Brasil, a ausência de uma legislação clara e objetiva associada à insegurança dos

profissionais de saúde em decorrência da falta de informação explicam, por exemplo, a não

existência de protocolos hospitalares associados à não-ressuscitação, mesmo sendo esta uma

prática adotada com frequência, apesar de não ser formalmente registrada em prontuário. A

falta dos registros formais vai de encontro à Resolução nº 1805/2006, a qual relata que:

Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar

ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente,

garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao

sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do

paciente ou de seu representante legal (D.O.U., 2006, pg. 169).

Estudos epidemiológicos recentes na cidade de Catanduva/SP, que incluíram médicos

habilitados e inscritos no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo

Page 235: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

235

(CREMESP), objetivaram conhecer e transparecer o estado atual da prática do cuidado

paliativo, focalizando os preceitos éticos inerentes no exercício deste.

Segundo Brugugnolli, os resultados esclareceram e evidenciaram uma grande

deficiência no conhecimento sobre os deveres éticos dos médicos brasileiros. O CEM

explicita que deve haver o respeito na autonomia do paciente em decidir livremente sobre a

execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas. Baseando-se nessa definição, posta no

Código de Ética, o estudo mostrou que muitos dos médicos não mencionaram em suas

respostas o respeito necessário à autonomia do paciente, visto que não consideraram informá-

los sobre os diagnósticos e os prognósticos da sua enfermidade. Diante disso,infere-se que no

Brasil há uma estratégia familiar e cultural de esconder o diagnóstico do próprio paciente,

como uma maneira de mascarar a dor e o sofrimento que esse tipo de informação pode causar

(BRUGUGNOLLI et al., 2013).

O que torna ainda mais preocupante na análise destes dados é que 13,2% dos

entrevistados responderam a questão de maneira totalmente inadequada, corroborando a

necessidade de melhorias no âmbito educacional visando um maior debate em torno da

temática do tratamento paliativo. (BRUGUGNOLLI et al., 2013).

Por isso, a aceitação do cuidado paliativo como especialidade médica pode ser um

caminho para a melhoria do atendimento, como também proporcionar a expansão no que se

refere ao debate e a prática de tal cuidado. O Sistema Único de Saúde (SUS) ainda avança

nessa temática que se mostra cada vez mais necessária e fundamental para um atendimento

integral e de qualidade para o usuário da rede. A própria formação médica no Brasil mostra-se

precária nesse sentido, não abordando a importância do cuidado paliativo e priorizando, na

maioria das vezes, o tratamento biológico, farmacológico e ambulatorial, tendo como enfoque

principal a cura e esquecendo o processo simples e trivial do cuidar do próximo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É perceptível que os dilemas referentes aos limites e à manutenção da vida, estão em

clara evidência devido à produção contínua de aparelhos e tecnologias sofisticados e aumento

da expectativa de vida. Todavia, um aspecto é central na tomada de decisões relativas aos

processos vida – morte: os valores éticos e morais em evidência nas avaliações dos

envolvidos. Logo, no exame de cada caso, é necessário levar em consideração a complexidade

dos vieses presentes entre os atores sociais e a semântica das informações por eles produzidas

e partilhadas.

Page 236: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

236

Em suma, percebe-se que as resoluções de dilemas éticos são revestidas de verdades

transitórias e sempre devem mostrar respeito incondicional à dignidade do ser humano

enfermo. Além disso, que a aquisição de domínios para as tomadas de decisões deve ser

construída com tolerância, humildade e respeito ao pluralismo moral embutido na sociedade.

É nessa aura que se deve constituir o exercício da medicina do século XXI, sendo capaz de

responder com maior acuidade os novos e velhos dilemas que permeiam o dia-a-dia da

profissão, assegurando o paciente e transmitindo confiança ao profissional.

A adoção de medidas como a implantação da disciplina do cuidado paliativo na grade

curricular e na formação médica das universidades brasileiras é imprescindível. O seu

reconhecimento como especialidade médica também se mostra de fundamental importância

para que se alcancem melhorias concretas, não só no atendimento e na relação

médico/paciente, mas também, para que haja uma plena adesão aos preceitos éticos que o

CEM preconiza.

Portanto, a realização de uma prática médica que alie os princípios bioéticos, a

capacidade de relacionamento interpessoal com o paciente e o cultivo de qualidades humanas

essenciais – integridade, respeito e compaixão - são fundamentais para o exercício de uma

medicina de excelência onde a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de

seu representante legal, são imprescindíveis na tomada de decisões que culminam na mais

digna forma de viver os últimos dias.

Page 237: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

237

REFERÊNCIAS

BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Disponível em: <http://portal.cfm.org.br/>. Acesso

em: 05 mai. 2014.

BRUGUGNOLLI, Izabela Dias; GONSAGA, Ricardo Alessandro Teixeira; SILVA, Eduardo

Marques da. Ética e cuidados paliativos: o que os médicos sabem sobre o assunto? Revista

Bioética, [s.l.], v. 3, n. 21, p.477-485, set. 2013. Disponível

em:<http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/779/927>.

Acesso em: 26 abr. 2014.

EMANUEL, Ezekiel J. Cuidados Paliativo e Terminal. In: LONGO, Dan L; KASPER, Dennis

L; JAMESON, Larry; FAUCI, Anthony; HAUSER, Stephen; LOSCALZO, Joseph. Medicina

Interna de Harrison. 18. ed. Porto Alegre: AMGH, 2013. Cap. 9. p. 67-84.

GAUDENCIO, Debora; MESSEDER, Octavio. Dilemas sobre o fim da vida: informações

sobre a prática médica nas UTIs. Ciência & Saúde Coletiva, [s.l.], v. 1, n. 16, p.813-820, jul.

2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-

81232011000700012 >. Acesso em: 25 abr. 2014.

HERZLICH, Claudine. Os encargos da morte. Rio de Janeiro: EU RJ/IMS, 1993

HETEM, Luiz Alberto B.; AGUIAR, Rogério Wolf de. Repercussões do novo Código de

Ética Médica na prática psiquiátrica. Revista Psiquiatria Rio Grande do Sul. Porto Alegre,

v. 3, n. 32, p.67, dez. 2010. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-81082010000300001>.

Acesso em: 26 abr. 2014

KIPPER, Délio José; PIVA, Jefferson Pedro.Dilemas éticos e legais em pacientes

criticamente doentes. Jornal de Pediatria. Rio de Janeiro, 1998, 74: 261-262. Disponível

em:<http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/54345/000096577.pdf?sequence=1>.

Acesso em: 05 mai. 2014.

KUBLER-ROSS, Elizabeth. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm para

ensinar a médicos, enfermeiros, religiosos e aos seus próprios parentes. São Paulo: Martins

Fontes, 1998.

MENEZES, Rachel Aisengart. Entre normas e práticas: Tomada de decisões no processo

saúde-doença. Physis Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 4, n. 21, p.1429-1449,

Page 238: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

238

maio 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-

73312011000400014&script=sci_arttext>. Acesso em: 01 mai. 2014.

NORBERT, Elias. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

OLIVEIRA, José Ricardo de; FERREIRA, Amauri Carlos; REZENDE, Nilton Alves de.

Ensino de Bioética e Cuidados Paliativos nas Escolas Médicas do Brasil. Revista Brasileira

de Educação Médica. 285, 37 (2): 285-290, 2013. Disponível em:

<http://www.scielo.br/pdf/rbem/v37n2/17.pdf >. Acesso em: 05 mai. 2014.

PORTO, CelmoCeleno; AMARAL, Geraldo Francisco do; TEIXEIRA, Celia Maria Ferreira

da Silva. Médicos, Pacientes e Famílias: paciente terminal ou sem possibilidade terapêutica.

In: PORTO, CelmoCeleno; PORTO, Arnaldo Lemos. Exame Clínico. 7. ed. Rio de Janeiro:

Guanabara Koogan, 2011. Cap. 7. p. 168-175.

SIQUEIRA, José Eduardo. A bioética e a revisão dos códigos de conduta moral dos médicos

no Brasil. Revista Bioética, [s.l.], v. 1, n. 16, p.85-95, out. 2008. Disponível em:

<http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/pdf/artigo_completo_jose_eduardo.pdf>.

Acesso em: 27 abr. 2014.

Page 239: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

239

DA MERA PROMESSA AO EFETIVO CUMPRIMENTO DO DIREITO

FUNDAMENTAL À SAÚDE: A CRISE DE IDENTIDADE DA CONSTITUIÇÃO

INSINCERA

Paulo Fernando de Mello Franco1

João Lopes de Farias da Matta2

Tiago Musser dos Santos Braga3

Sumário: 1 Introdução. 2 Pluralismo Constitucional e o Desafio de Conferir

Amplitude ao Direito Fundamental à Saúde. 3 Modernidade Periférica e

Constituição Simbólica: o abuso do direito de Constituição. 4 Direito

Fundamental à Saúde e Compromissos Dilatórios: a crise de identidade da

Constituição insincera. 5Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Como se costuma dizer, em dupla paráfrase, nunca antes na história deste país os

direitos fundamentais foram tão levados a sério. Cada vez mais e com maior ênfase, renovam-

se as esperanças por uma sociedade verdadeiramente plural e um mundo menos desigual.

Da sinceridade dos anseios, não há quem duvide.

Todavia, o mesmo não se pode dizer em relação às promessas.

O que fazer? Abdicar da maravilhosa capacidade de ingenuamente acreditar4 ou

prescrever resiliência e propor soluções? O direito fundamental à saúde, enquanto direito

nomeadamente de todos, é, de fato, tão amplo quanto anunciado? Ou, simplesmente,

enunciação constitucional descompromissada com a realidade?

O sentimento constitucional5 e a convicção interna da bondade intrínseca da

constituição6 mostram-se, em tempos de insinceridade normativa, desacreditados e a fé

1 Pós-Graduado em Direito Público pela UCAM; Mestre em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio

de Janeiro; Pesquisador Assistente no Centro de Pesquisa em Direito e Economia – CPDE da Fundação Getúlio

Vargas – FGV; Professor convidado de Direito Civil Constitucional e Administrativo Econômico dos cursos de

Pós-Graduação em Direito da FGV no Rio de Janeiro. 2Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); Graduado em Ciências

Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ);Pós-graduado em Direito Público pela

Universidade Veiga de Almeida (UVA); Mestre em Direito na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

(UNIRIO); Auditor Fiscal do Estado do Rio de Janeiro. 3Graduado em Direito pela Universidade Candido Mendes (UCAM); Pós-graduado em Direito Tributário pelo

Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET); Mestre em Direito na Universidade Federal do Estado do Rio

de Janeiro (UNIRIO). 4"Chega de ação. Queremos promessas". BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e

constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. In Themis: Revista da

ESMEC, Fortaleza, v. 4, n. 2, p. 13-100, jul./dez. 2006. 5Cf., acerca do desenvolvimento da teoria do(s) sentimento(s) constitucional(is), bem como a definição de seus

contornos teóricos como modo de integração política, VERDÚ, Pablo Lucas. El sentimiento constitucional. Ed

Reus, Madrid. 1985.

Page 240: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

240

constitucional7, citada por José Adércio Leite Sampaio, abalada. Enfim, a efetividade se

enfraquece e, em determinadas situações, se anula8. E é justamente o desejo de corrigi-la e

amenizar o ceticismo jurídico em matéria de direito à saúde que motiva o presente trabalho.

Seguem os nossos argumentos e redarguições.

2 PLURALISMO CONSTITUCIONAL E O DESAFIO DE CONFERIR

AMPLITUDE AO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

Sabiamente aquilatado, o festejado Texto cunhado em 88, com as merecidas pirotecnias

democráticas, fez, do singular, plural e transladou o patriarcalismo e o individualismo de

outrora ao relento, aluindo-os sob a emersão dos princípios da solidariedade e da redundante –

porém necessária – dignidade da pessoa humana.

O preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, conquanto destituído

de força normativa9, é, indiscutivelmente, vetor hermenêutico condicionante à interpretação

das regras e princípios constitucionais que se lhe seguem.

Como tal, transparecendo o acervo ideológico do constituinte originário, apregoou a

construção de uma sociedade vernaculamente fraterna, pluralista e, pois,sem preconceitos,

cujo Estado Democrático que ali se instituía asseguraria o exercício dos direitos individuais e

sociais, dentre os quais decerto se destaca o direito à saúde como instrumentalização

fundamental de concretização da dignidade humana que, além de encontrar fundamento

ascético, tem assento constitucional.

6 V. VERDÚ, Pablo Lucas. A luta pelo Estado de Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007. 7A fim de aprofundar a apreciação da esperança constitucional cuja crença emana do Texto, cf. SAMPAIO, José

Adércio Leite. Democracia, constituição e realidade. In: Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais,

Belo Horizonte, n. 1, p. 741-823. 8BACELAR, Jeferson Antonio Fernandes. A lei de combate à poluição sonora de Belém: estudo de efetividade e

federalismo sob uma perspectiva histórico-jurídica. Dissertação apresentada ao programa de Mestrado da

Universidade da Amazônia – UNAMA Belém, 2009. 9“O preâmbulo (…) não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica

do constituinte. É claro que uma Constituição que consagra princípios democráticos, liberais, não poderia

conter preâmbulo que proclamasse princípios diversos. Não contém o preâmbulo, portanto, relevância jurídica.

O preâmbulo não constitui norma central da Constituição, de reprodução obrigatória na Constituição do

Estado-membro. O que acontece é que o preâmbulo contém, de regra, proclamação ou exortação no sentido dos

princípios inscritos na Carta: princípio do Estado Democrático de Direito, princípio republicano, princípio dos

direitos e garantias, etc. Esses princípios, sim, inscritos na Constituição, constituem normas centrais de

reprodução obrigatória, ou que não pode a Constituição do Estado-membro dispor de forma contrária, dado

que, reproduzidos, ou não, na Constituição estadual, incidirão na ordem local”.ADI 2.076, voto do Rel. Min.

Carlos Velloso, julgamento em 15-8-2002, Plenário, DJ de 8-8-2003.

Page 241: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

241

Imbuída deste ideal, enquanto pacto político que expressa a aludida pluralidade, a Carta

materializa forma de poder que se legitima, justamente, pela convivência e coexistência de

concepções divergentes, diversas e participativas10

.

O pluralismo preambularmente proclamado imprime,principiologicamente, a noção de

respeito à diferença e de reconhecimento às peculiaridades.E, neste contexto, insere-se o

fenômeno globalizante e põe-se à prova seus desafios universalizantes.

Como compatibilizar a lógica plural, de salvaguarda das particularidades sociais, com o

cariz expansionista da globalização? Como proteger a individualidade se, em tempos de

efervescência multitudinária, o que se apregoa é a formação comunitária una? Seria possível

assegurar, irrestritamente, a salvaguarda do direito à saúde e, por conseguinte, do mínimo

existencial na perspectiva micro se, em proporções globais, prestigia-se o todo pela parte?

O discernimento da modernidade periférica11

, à luz da qual se tem a formação novas

periferias, de espectro dilargado, não mais restritas ao âmbito interno de cada Estado-nação,

compostas, agora, por todos aqueles que escapam às elites políticas centrais, seja em razão de

destaque econômico, tecnológico e, até mesmo ideológico, responsável por justificar a

alteraçãoda configuração estrutural do mundo globalizado, cujo processo criacionalé,

consoante percucientemente ilustrado por Jessé Souza, o que se segue:

A partir de 1808 temos no Brasil um exemplo típico do que venho chamando de

processo modernizador da 'nova periferia', ou seja, sociedades que são

formadas, pelo menos enquanto sociedades complexas, precisamente pelo influxo do

crescimento – não da mera expansão do capitalismo comercial como no período

colonial, que deixa intocadas estruturas tradicionais e personalistas – do capitalismo

industrial europeu a partir da transferência de suas práticas institucionais impessoais

enquanto 'artefatos prontos', como diria Max Weber12

.

Mostra-se oportuno o alarde porque a aludida modernidade periférica, enquanto fruto da

recente intensificação globalizante, na medida em que acentua a desigualdade econômica

entre Estados-nação centrais e aqueles que, adjacentes, se encontram às suas margens, acaba

por estimular a constitucionalização simbólica13

, sobre a qual a seguir falaremos, típica de

realidades circunvizinhas, cuja faceta de resposta imediata às demandas sociais eclodidas,

10

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo e crítica do constitucionalismo na América Latina. In: Anais do IX

Simpósio Nacional de Direito Constitucional. Curitiba: Academia Brasileira de Direito Constitucional, 2010. p.

143. 11

No que pertine a modernidade periférica, v. NEVES, Marcelo. Verfassung und Positivität des Rechts in der

peripherenModerne.EinetheoretischeBetrachtung und eine Interpretation des Falls Brasilien, Berlin, 1992. 12

SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade

periférica. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003, p. 143-144. 13

A expressão constitucionalização simbólica remete à obra assim intitulada NEVES, Marcelo. A

Constitucionalização Simbólica. 3a.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

Page 242: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

242

cada vez mais urgentes e numerosas, tem como contrapartida a ausência do devido

comprometimento, por parte destas constitucionalizações, com a concretibilidadee

factibilidade das promessas irrealizáveis, também mencionadas por Pablo Lucas Verdú.

Cala-se o povo, mas não se cumprem as vontades constitucionais. Alimenta-se o

faminto, mas não se erradica a fome. Cuida-se da saúde de alguns, mas não da de todos. Será

esta simulação constitucional, quando ocorrente, suficientemente caracterizadora, a teor do

artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 178914

, do conceito de

Constituição? Será está dissimulação constitucional, além de socialmente inaceitável,

judicialmente sindicável? A sociedade contemporânea é, como dito preambularmente15

,

verdadeiramente plural ou elitizada, como sempre?Será esta a Constituição vista como

expressão viva de um povo16

? Qual a abrangência do direito fundamental à saúde por nós

desejada, como detentores do poder constituinte originário?

3 MODERNIDADE PERIFÉRICA E CONSTITUIÇÃO SIMBÓLICA: O ABUSO

DO DIREITO DE CONSTITUIÇÃO

A modernidade periférica, conforme observado por Marcelo Neves à luz da teoria

NiklasLuhmann, afeta a estruturação das expectativas normativas e, se lhe atribuindo baixo ou

nenhum grau de concretização possível, desacredita a Constituição e decepciona os

verdadeiros titulares do poder constituinte:

Tendo como referencial o modelo luhmanniano, é possível uma releitura no sentido

de afirmar que, na modernidade periférica, à hipercomplexificação social e à

superação do ―moralismo‖ fundamentador da diferenciação hierárquica não se

seguiu a construção de sistemas sociais que, embora interpenetráveis e mesmo

interferentes, construam-se autonomamente no seu topos específico. Isto nos põe

diante de uma complexidade desestruturada e desestruturante. [...]Portanto a

modernidade não se constrói positivamente, como superação da tradição através do

14

Art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789:“Qualquer sociedade em que não esteja

assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”. 15

A construtibilidadeproemial da pluralidade social pretendida encontra-se insculpida no preâmbulo da CRFB de

1988 que, a despeito da prevalência da tese de sua irrelevância jurídica, merece menção porquanto pertinente:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um

Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a

segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade

fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e

internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte

Constituição da República Federativa do Brasil”.

16 VERDÚ, Pablo Lucas. Teoría de la Constitución como ciencia cultural.Madrid: Dykinson, 1998, p. 40.

Page 243: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

243

surgimento de sistemas autônomos de ação, mas apenas negativamente, como

hipercomplexificação desagregadora do moralismo hierárquico tradicional17

.

A verborragia lacônica da Constituição, decorrente da modernidade globalizada

periférica, denota a incompatibilidade entre Texto e realidade e; a desconexão entre intenção e

ação, remetendo-se ao debate concernente à ideia de constitucionalização simbólica,

desenvolvida, com maestria, também pelo ilustríssimo constitucionalista Marcelo Neves, para

quem caracteriza-sepela percepção da discrepância entre a função hipertroficamente

simbólica e a insuficiente concretização jurídica de diplomas constitucionais18

, conjuntura

marcante da modernidade periférica.

A relevância da tese se justifica porquanto o alerta para uma constitucionalização

meramente simbólica pretende exacerbar a discussão acerca da (in)eficácia constitucional.

Mais do que isto, vislumbra ir além para, perquirindo descobrir os efeitos sociais da

função simbólica19

das emanações constitucionais normativamente ineficazes, identificar as

hipóteses em que o constituinte pretende, de fato, concretizar ulteriormente as vontades

constitucionais e; aquelas em que, porém, simplesmente estabelece compromissos dilatórios.

Vale dizer, desloca-se a análise do lócus de produção ou não de resultados para, em

corte epistemológico pretérito, vislumbrar a (in)existência de boa-fé constitucional por parte

do plantel constituinte.

A propagação insincera de regras e princípios constitucionais, a que se pode configurar,

nalguma medida, como hipótese de abuso do direito de Constituição, intenta, exclusivamente,

adiar conflitos sociais emergentes e frustrar as legítimas expectativas constitucionais que

ansiava o povo, enquanto senhorio do poder constituinte e, com isto, estabelecer

compromissos dilatórios.

O descomprometimento político postergatório e a irresponsabilidade

constitucionalizante com a concretização fático-jurídica das positivações constitucionais

incrementam, como dito anteriormente, o descrédito social e jurídicodo Texto, pois que mitiga

sua efetividade e eficácia e culmina em uma crise de identidade da Constituição sem

precedentes.

Afinal, embora se disponha a, textualmente, tudo fazer; acaba por, porque

eminentemente pródiga e necessariamente interditável, nada fazer.

17

NEVES, Marcelo. Luhmann, Habermas e o Estado de Direito. In: Lua Nova – Revista de Cultura Política, n.

37, p. 93-106, 1996. 18

NEVES, Marcelo. Op. Cit., 2011. p. 1. 19

NEVES, Marcelo. Idem. p.1.

Page 244: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

244

Diante disto, poder-se-ia arguir, à luz do cenário brasileiro de modernidade periférica,

recém atingida a maioridade constitucional, o porquê de instarem desrespeitados os objetivos

fundamentais, conforme dicção do art. 3º, I e III, de construção de uma sociedade livre, justa e

solidária, cujo mister perfaz-se na diminuição das desigualdades sociais e regionais. Há,

conquanto dificultosa, salvação?

A (des)indentificação constitucional que se instaura diante de constitucionalizações

abrangentes e irresponsáveis, a despeito das boas intenções potencialmente presentes, enseja

até mesmo o questionamento, ante a lamentável insinceridade constitucional que, há muito,

segue vigendo, quanto a verificação da (im)possiblidade de falar-se, efetivamente, em

(in)eficácia horizontal dos direitos fundamentais, uma vez que, antes de pretender sê-la

horizontal ou vertical – ou, como defendemos exaustivamente, côncava20

–, deve, primeiro,

ser eficaz, o que, não raro, é inverossímil.A Constituição brasileira ainda está longe de ser

plenamente efetiva21

.

Não há quaisquer resquícios eficaciaisperceptíveis quando, ao sairmos às ruas em um

dia chuvoso de inverno, deparamo-nos com crianças e idosos ao relento, abandonados à

margem da sociedade, agonizando de frio – majorado pela fome, a eles corriqueira. Da mesma

forma, sequer destes mesmos indícios de eficácia e efetividade da Constituição cogitamos ao

defrontarmo-nos com gravemente enfermos que amargam longas e intermináveis filas em

hospitais públicos, porquanto destituídos de possibilidade aquisitiva para custear planos de

saúde privada – e aqui, tão somente existentes porque imperito o Estado em proceder às

políticas publicas efetivas e necessárias a sua satisfação –, restritos a uma minoria dominante.

Eisquão insincera é a Constituição. Eis como, de forma alguma, poderia sê-la.

Em redarguição ao eminente desejo de candidez constitucional de concretização

materializável dos interesses socialmente relevantes que impulsionam a vontade de

Constituição e propulsionaram sua constitucionalização, surge o debate contemporâneo do

constitucionalismo na América Latina, dentre os quais se destaca, por todos, a importância da

tese prospectiva de constitucionalismo de futuro22

, aquilatada por José Roberto Dromi.

O constitucionalismo de futuro, comprometido com o dever de eficácia constitucional,

visa a tutelar a legítima expectativa constitucional, instaurada no âmago daqueles que,

20

FRANCO, Paulo Fernando de Mello. Estado de Direito ou Estado de Direitos? Evolucionismos

Constitucionais e a Nova Eficácia dos Direitos Fundamentais. Trabalho apresentado no XXIII Congresso do

Conselho Nacional de Pesquisa Pós-Graduação em Direito – CONPEDI, realizado entre os dias 30 de abril e 03

de maio de 2014, na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. 21

SARMENTO, Daniel. In: RDE Revista de Direito do Estado. Ano 1, nº 2, abr/jun 2006, p. 84-85. 22

DROMI, José Roberto. La reforma constitucional: el constitucionalismo del “por venir” In: El derecho

publico de finales de siglo: una perspectiva iberoamericana. Madrid: Fundación BBV, 1997.

Page 245: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

245

confiantes, acreditam no potencial transformador da Constituição.Para a perspectiva de futuro

do constitucionalismo, as miragens constitucionais, i.e., as proposições const

itucionais que pouco ou nada têm de eficazes, não mais se justificam.

E, é justamente no cerne do neoconstitucionalismo, em que a jurisdição constitucional

se afirma capaz de concretizar as vontades constitucionais, e; no constitucionalismo de futuro,

máxime porquanto vinculado a uma constituição verdadeiramente sincera e que preserva os

méritos dos modelos anteriores, sem ater-se, exclusivamente, a eles, que encontramos os

fundamentos necessários para desenvolver não apenas a funcionalização dos direitos

subjetivos em prol da concretização da eficácia horizontal dos direitos fundamentais23

,como

também a afirmação de sua eficácia imediata e, tendo em vista a abordagem desenvolvida no

presente trabalho acerca da globalização, uma verdadeira eficácia horizontal internacional24

,

a que se vinculam os particulares, mutuamente, ainda que a lume de Estados pluriétnicos

diversos.

Em plena era da internet, cuja intensificação é relativamente recente, cada vez mais se

colocam em discussão a tutela de direitos fundamentais internos na esfera internacional – os

quais, para fins acadêmico-doutrinários, adquirem a nomenclatura de direitos humanos – e,

por conseguinte, seus respectivos limites. Fez-se, do real, virtual e, superando Julio Verne, em

um segundo, dá-se a volta ao mundo, sem que se saia de casa e, a par desta agilidade com que

se transmitem informações – o que, aliás, é umas das facetas típicas da globalização

abrangente –, surge um sem-número de questionamentos jurídicos.

Neste aspecto sobressaem os riscos da constitucionalização simbólica e das miragens

constitucionais que lhe são peculiares. O dinamismo inerente à globalização e o interesse

público, cambiante por essência, desafiam, de maneira perene, a ordem constitucional a

adequar-se ao direito global e, sem prejuízo deste ou daquela, a concretizar ambas, o que,

salvo utopicamente, nem sempre é possível, principalmente às luzes de constituições

compromissórias – i.e., que congregam ideologias aparentemente paradoxais e porventura

divergentes em um mesmo Texto – como, por exemplo, a brasileira.

Para responder, pronta e rapidamente, às demandas sociais, o Estado se vale do que

Marcelo Neves denominou de legislação-álibi, a qual, congênere à constitucionalização

23

Cf., no que pertine à teorização da eficácia horizontal, FRANCO, Paulo Fernando de Mello Franco. A

Funcionalização dos Direitos Subjetivos como Paradigma Concretizador da Eficácia Horizontal dos Direitos

Fundamentais. Monografia de conclusão de curso apresentada em 2010 à Universidade Candido Mendes –

Centro, como requisito essencial à obtenção do grau de bacharel em Direito. 24

Como desenvolvimento da perspectiva internacional da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, cf.

FRANCO, Paulo Fernando de Mello. A Eficácia Horizontal Internacional dos Direitos Fundamentais, no prelo.

Page 246: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

246

simbólica, diante de certa insatisfação da sociedade, ainda que como modalidade de disfarce à

realidade, cria:

[...] a imagem de um Estado que responde normativamente aos problemas reais da

sociedade, embora as respectivas relações sociais não sejam realmente normatizadas

de maneira consequente conforme o respectivo texto legal. Nesse sentido, pode-se

afirmar que a legislação-álibi constitui uma forma de manipulação ou de ilusão que

imuniza o sistemapolítico contra outras alternativas, desempenhando uma função

ideológica25

.

A superação da sistemática inclusão de redarguições constitucionais lacônicas ou

megalômanas, todas irrealizáveis, remonta ao substrato teórico do constitucionalismo de

futuro e seu peculiar discurso denotativo que notadamente se sobrepõe ao conotativo de

outrora, de modo que as ilusões constitucionais, ao menos aquelas que não se compatibilizam

com os anseios constitucionais,são extirpadas da ordem constitucional.Como exemplo disto,

em que o bem-estar ficto dá assento constitucional ao bem-estar real e plenamente factível,

pode-se citar, novamente, a Constituição do Equador.

Não é a toa que, ilustrando essa nova fase do constitucionalismo, de cariz pós

neoconstitucional, que, logo a partida, a Carta equatoriana já afirma o respeito às raízes

milenares, forjadas por distintos povos, o pertencimento à natureza, vital para a existência e a

invocação das diferentes formas de religiosidade e espiritualidade, corporificando, à

Constituição, viés pluralista. A dignidade da pessoa humana é por ela tratada como, também,

dignidade das coletividades, pelo que invocaa sabedoria de todas as culturas que nos

enriquecem como sociedade, como herdeiros das lutas sociais de libertação diante de todas

as formas de dominação e colonialismo, e com um profundo compromisso com o presente e o

futuro26

.

A tutela das nacionalidades, pois, se dá em prol doalcance do bem viver,

osumakkawsay27

, citado ao longo de todos os artigos da Constituição do Equador.

25

NEVES, Op. Cit., 2011, p. 34. 26

Cf. o preâmbulo da Constituição da República do Equador: “NOSOTRAS Y NOSOTROS, el pueblo soberano

del Ecuador RECONOCIENDO nuestras raíces milenarias, forjadas por mujeres y hombres de distintos

pueblos, CELEBRANDO a la naturaleza, la Pacha Mama, de la que somos parte y que es vital para nuestra

existencia, INVOCANDO el nombre de Dios y reconociendo nuestras diversas formas de religiosidad y

espiritualidad, APELANDO a la sabiduría de todas las culturas que nos enriquecen como sociedad, COMO

HEREDEROS de las luchas sociales de liberación frente a todas las formas de dominación y colonialismo, Y

con un profundo compromiso con el presente y el futuro [...]”. 27

O sumakkawsay,ou bem viver emquíchua, uma das duas línguas indígenascujosusá-lo

agoratornaoficialjuntamente com o espanhol, é citado do início ao fim do Texto nos artigos. 14; 26; 32; 74; 83/1;

97; 250; 258; 275; 277; 278; 283; 290/2; 319 e; 387; todos do capítulo primeiro e, 8 e; 9, do capítulo segundo.

Page 247: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

247

Se de fato a vida boa será possível a todos os equatorianos ou se se trata meramente de

compromisso constitucional dilatório, só o tempo vida dirá. O fato é que, atenta para o risco

da constitucionalização simbólica de pouco ou nenhum efeito na realidade prática, o Texto

equatoriano mostrou-se sensível e, mais do que simplesmente tratar o reconhecimento

multiétnico apenas e tão somente em seu preâmbulo – como o fez a Carta brasileira de 1988 –

, bem andou a Constituição do Equador no que pertineas problemáticas culturais, sociais e

étnicas, dentre as quais se destacam as que circunscrevem a questão da correlação entre

direito fundamental à saúde e bem viver como vontade de Constituição.

4 DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE E COMPROMISSOS DILATÓRIOS: A

CRISE DE IDENTIDADE DA CONSTITUIÇÃO INSINCERA

As escolhas públicas se justificam diante da impossibilidade de cobertura universal, de

fato e não meramente de direito, que se traduz na imprescindibilidade de que sejam alocados

valores e distribuídos recursos para que se atenda ao maior número de administrados.

Em um mundo ideal, longe, infelizmente, de nossa realidade, se pudessem, os

administradores públicos fariam tudo que estivesse a seu alcance para que se garantisse a

todos, sem exceção, uma existência digna e minimamente feliz. Até mesmo o mais pessimista

dentre os pessimistas antropológicos não duvidaria disto. Todavia, em um cenário fático de

necessidades infinitas e recursos limitados, não o fazem não porque não querem, mas porque

não podem28

. Como se costuma dizer, o dinheiro não nasce em árvores29

e não há almoços

grátis. O cobertor é curto, as pernas são compridas e o frio é intenso.

É bem verdade que, ainda assim, ao menos em teoria, a conjuntura pátria, no que tange

ao direito fundamental à saúde, trilhou o caminho do êxito. Há críticas, sem dúvidas. Todavia,

há também conquistas cujos louros merecem enaltecimento. O Sistema Único de Saúde

(SUS), edificado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 como medida

densificadora da saúde como viés da seguridade social é, reconhecidamente30

, um dos maiores

sistemas públicos de saúde do mundo, máxime em virtude de sê-lo integral, universal e

gratuito – ao contrário de outros Estados em que a saúde ostenta caráter particularista e

28

V. HOLMES, Stephen and SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. W.W..

Norton, 2000. 29

GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores. Rio

de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. 30“In 1988, half of Brazil's population had no health coverage. Two decades after establishing its Unified Health

System (Sistema Único de Saúde), more than 75% of the country's estimated 190 million people rely exclusively

on it for their health care coverage”. Disponível em: <http://www.who.int/bulletin/volumes/88/9/10-

020910/en/>. Acesso em: 04/05/14.

Page 248: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

248

contributivo – pelo que, vale dizer, o acesso ao direito sanitário público se restringe àqueles

que contribuem para tanto, relegando-se os demais a, no mais das vezes, espécies de Santas

Casa31

. No entanto, como já anunciamos, há sérios, graves e atuais problemas que demandam

enfrentamento enérgico e energético, sob pena de que as projeções constitucionais, imbuídas

de pretensão construtiva, remanesçam no campo da mera conjectura e poesia utópica.

A Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde32

caminha justamente neste salutar sentido.

Assegura-se a seus destinatários que todo cidadão tenha direito a atendimento que respeite a

sua pessoa seus valores e seus direitos e; dentre outras medidas garantidoras, que todos

tenham, igualmente, direito ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer

discriminação. O direito fundamental à saúde, preconizado pela Constituição, ensimesma-se

no cumprimento destes vetores axiológicos? Ou, a fim de conferir-lhe máxima efetividade

hermenêutico-concretizadora, seria preciso qualificar a saúde enquanto posição jurídica

fundamental?

Preocupa-se, quando da concretização do direito fundamental à saúde, com a

concretização do direito fundamental à boa saúde, como especificação daquele. As

congratulações pelos louváveis avanços concernentes à construtibilidade do direito sanitário e

sua imprescindível otimização não pode significar estagnação por parte do Estado. É preciso

ir além e, mais do que perquirir a saúde constitucionalmente preconizada pelo Texto, garantir

sê-la boa. É dizer, ao náufrago, a sobrevivência; à pessoa humana, a existência digna.

Recentemente vivenciamos a implementação de polêmica política pública de

incremento dos recursos humanos médicos, através do programa ―Mais Médicos‖ do Governo

Federal, cujo espanto inicial se deve mais por desconhecimento generalizado do que por

aspectos negativos propriamente ditos33

.

De todo modo, evidencia-se que, a despeito de não terem os administradores públicos

pretéritos conseguido sanar todas as vicissitudes em matéria de saúde pública – até porque, à

boa Administração, a inquietude e perene transformação se lhe são imprescindíveis –, o

Estado desvelou-se de postura inercial e demonstrou vontade política de, tanto quanto

possível, agir – e convencer, mediante resultados.

31

Apenas a título exemplificativo, v. "Americanos sem seguro de saúde vivem um drama diário nos EUA”.

Disponível em: <oglobo.globo.com/mundo/americanos-sem-seguro-de-saude-vivem-um-drama-diario-nos-eua-

5792309>. Acesso em: 16/03/2014. 32

Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_direito_usuarios_2ed2007.pdf>. Acesso em:

04/04/14. 33

Para uma leitura crítica acerca do programa, inclusive em defesa da constitucionalidade do projeto, v.

VASCONCELOS, Douglas Borges de. Programa Mais Médicos: Exegese Constitucional da Política Pública.

Artigo apresentado no XXII Congresso Nacional do CONPEDI em Florianópolis, UFSC, 2014.

Page 249: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

249

Percebe-se, com isto, além da insuficiência da alegação de reserva do possível – a ser

substituída, pois, pelo arcabouço argumentativo da teoria da aproximação –, presente na quase

totalidade das exceções protocoladas pela Fazenda Pública demandada para fins de

cumprimento forçado dos mandamentos constitucionais sanitários, a corroboração da hipótese

por nós esposada: há graus de concretização do direito fundamental à boa Administração e,

pois, em relação de proporcionalidade direta, graus de atuação ótima, possível ou desejável do

Poder Judiciário, a depender, esta, da maior ou menor intensidade com que aquela se

desenvolva. Há, por conseguinte, níveis de concretização do direito fundamental à saúde e, até

que se instaure sinceridade constitucional que confira aos destinatários primevos das

emanações do Texto acesso verdadeiramente amplo, irrestrito e gratuito, não disporá o Estado

da qualificação de boa Administração Pública.

5 CONCLUSÃO

Eficácia, na mais ampla acepção da palavra, é o que se espera da Constituição.

É claro que é fundamental que se tenha nuances simbólicas na Constituição, como

forma de mecanismo inoculador, no âmago dos destinatários dos ditames constitucionais,

força criativa propulsora de vontade constitucional. Todavia, não a ponto de torná-la calenda

grega.

A constitucionalização simbólica, peculiar aos Estados de modernidade periférica,

deságua na constatação de que, ainda que houvesse alterações estruturais em suas

concretizações, seu processo político decisório intenta, certamente, que o mundo evolua e se

renove para que, parafraseando, em ações, a célebre citação atribuída aoPríncipe de Falconeri,

tudo continuasse do mesmo modo em que antes se encontrava.

E, como dito, não é esta a vocação de frustração das legítimas expectativas

constitucionais que dela se espera.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Christina de. A Função Social da Empresa na Sociedade Contemporânea:

Perspectivas e Prospectivas. In: Argumentum – Revista de Direito da Universidade de

Marília. vol. 3, 2003, p. 142.

Page 250: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

250

BACELAR, Jeferson Antonio Fernandes. A lei de combate à poluição sonora de Belém:

estudo de efetividade e federalismo sob uma perspectiva histórico-jurídica. Dissertação

apresentada ao programa de Mestrado da Universidade da Amazônia – UNAMA Belém,

2009.

BHABA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O

triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. In Themis: Revista da ESMEC, Fortaleza, v.

4, n. 2, p. 13-100, jul./dez. 2006.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Entre o guardião de promessas e o superego da

sociedade: limites e possibilidades da jurisdição constitucional no Brasil. In: XIMENES, Julia

Maurmann. Org. Judicialização da política e democracia. Brasília: IDP, 2014.

FARIA, José Eduardo. Democracia e governabilidade: os direitos humanos à luz da

globalização econômica. In: Direito e Globalização Econômica: implicações e perspectivas.

Coord.: José Eduardo Faria. São Paulo: Malheiros, 1998.

FINKELSTEIN, Cláudio. Integração Regional: o Processo de Formação de mercados de

Bloco, 2000.

GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo no século XX.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

FRANCO, Paulo Fernando de Mello. A Função Social das Funções Sociais na Perspectiva do

Altruísmo Eficacial dos Direitos.In Revista da Escola de Magistratura Regional Federal, v.

18, p. 193-224, 2013.

_____.Estado de Direito ou Estado de Direitos? Evolucionismos Constitucionais e a Nova

Eficácia dos Direitos Fundamentais. Análise Crítica do Recurso Especial nº 1.258.389.In:

XXIII Congresso Nacional do CONPEDI. Universidade Federal de Santa Catarina.

Florianópolis, 2014.

_____.Oportunidade e Conveniência ou Oportunismo Conveniente? Por uma Análise de

Políticas Públicas Vinculante.In: XXIII Congresso Nacional do CONPEDI,UFPB, 2014.

FURTADO, Gerardo. A distinção entre genético e hereditário. Jul., 2009. Disponível em:

<http://biologiaevolutiva.wordpress.com/2009/07/19/a-distincao-entre-genetico-e-

hereditario/>.

MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade

jurisprudencial na ―sociedade órfã‖. In: Revista Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n. 58, p.

183-202, nov. 2002, p. 186-187.

Page 251: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

251

MESQUITA, Mariana Guanabara. Trabalho apresentado no III Seminário Internacional

violência e conflitos sociais: ilegalismos e lugares morais. Grupo de Trabalho: 01 –

Cartografia dos Conflitos Sociais na América Latina. Desconstruindo o Estado-nação:

redefinição de identidades e Estado Plurinacional no Equador. Universidade Federal do

Ceará. Disponível em: <http://www.lev.ufc.br/iiiseminario/wp-

content/uploads/2013/06/DESCONSTRUINDO-O-ESTADO-NA%C3%87%C3%83O-

REDEFINI%C3%87%C3%83O-DE-IDENTIDADES-E-ESTADO-PLURINACIONAL-NO-

EQUADOR.pdf>.

NEVES, Marcelo. Verfassung und Positivität des Rechts in der

peripherenModerne.EinetheoretischeBetrachtung und eine Interpretation des Falls Brasilien,

Berlin, 1992.

_____. Luhmann, Habermas e o Estado de Direito. In: Lua Nova – Revista de Cultura

Política, n. 37, p. 93-106, 1996.

QUINTANA, Fernando. O desafio do novo milênio: universalismo e/ou particularismo ético?

In: GUERRA, Sidney (coord.). Direitos Humanos: uma abordagem interdisciplinar. Rio de

Janeiro: América Jurídica, 2003.

_____. La ONU y La exégesis de los derechos humanos. Uma discusión teórica de La

noción.Porto Alegre, SegioAntonio Fabris, 1999.

RODRIGUES, Ana Maria da Silva; OLIVEIRA, Cristina M. V. Camilo; FREITAS, Maria

Cristina Vieira de. Globalização, cultura e sociedade da informação.p. 100. Disponível em:

<http://www.ufrgs.br/laviecs/edu02022/portifolios_educacionais/t_20061_m/Leandro_Raizer/

globalizacao_e_cultura.pdf>. Acesso em: 14/12/2014.

SANTOS, Boaventura de Sousa. La reinvencióndel Estado y el Estado plurinacional. In:

OSAL, Observatorio Social de America Latina, ano VIII, no. 22, CLACSO, Buenos Aires,

2007.

SAMPAIO, José Adércio Leite. Democracia, constituição e realidade. In: Revista Latino-

Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n. 1.

SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da

modernidade periférica. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: Malheiros, 2013.

TAYLOR, Charles. The Politics of Recognition. In: GUTMANN, Amy. Multiculturalism. New

Jersey: Princeton University, 1994

Page 252: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

252

TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de direito constitucional, Org. e atual. por Maria

Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 77-78.

VASCONCELOS, Douglas Borges de. Programa mais Médicos: Exegese Constitucional da

Política Pública. Artigo apresentado no XXII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado

em Florianópolis, UFSC, 2014.

VERDÚ, Pablo Lucas. El sentimiento constitucional. Ed Reus, Madrid. 1985.

_____. A luta pelo Estado de Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

_____. Teoría de laConstitución como ciencia cultural. Madrid: Dykinson, 1998, p. 40.

WALZER, Michael. The communitarian critique of liberalism.In: Political Theory, 1990, vol.

18, nº 1..São Paulo: Martins Fontes, 2003.

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo e crítica do constitucionalismo na América Latina.

In: Anais do IXSimpósio Nacional de Direito Constitucional. Curitiba: Academia Brasileira

de Direito Constitucional, 2010.

Page 253: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

253

EUTANÁSIA: A CONJUNTURA ATUAL DIANTE DA

REGULAMENTAÇÃO PÁTRIA E UMA PROPEDÊUTICA ANÁLISE

DA EXPERIÊNCIA LEGISLATIVA ESTRANGEIRA

Ramon Olímpio de Oliveira1

Nayara Toscano de Brito Pereira2

Robson Antão de Medeiros3

Sumário: 1 Introdução. 2 Pluralidade conceitual. 3 Construção dos argumentos

favoráveis e contrários. 4 A análise da eutanásia à luz da legislação estrangeira. 5 A

análise da eutanásia no direito brasileiro. 5.1 A eutanásia à luz da constituição. 5.2

PL 125/96 e o anteprojeto do novo Código Penal. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

É de evidente percepção o fato de que a vida é um direito fundamental, natural,

inerente ao ser humano, garantido pela Constituição e abordado em vários tratados e

convenções internacionais. O direito à vida é inquestionável, indisponível e inato, cabendo ao

Estado garantir que esse direito não seja violado.

No entanto, no que tange ao direito à vida, surgem vários questionamentos que

merecem nossa atenção. Levando em consideração a autonomia que o ser humano tem sobre o

próprio corpo, poderia ele dispor desse direito? Em casos de pacientes terminais, até que

ponto o indivíduo deixa de ser detentor do direito à vida e este passa a ser o ―dever de viver‖?

Acerca da possibilidade de dispor do direito à vida, surge uma matéria bastante polêmica: a

eutanásia. Este instituto surgiu para dar fim ao sofrimento de pacientes em estado terminal,

sendo conhecida como uma forma piedosa de proporcionar a morte, mas, muitas vezes,

tratada com homicídio.

Os avanços na tecnologia e na medicina proporcionam um aumento substancial na

expectativa de vida das pessoas. No entanto, para pacientes com doenças em estado terminal,

esse aumento de expectativa pode, muitas vezes, representar apenas um prolongamento de seu

sofrimento. Levando em conta que o Estado não pode deixar de cumprir seu papel de

garantidor, estaria ele forçando um estado de distanásia e, dessa forma, ferindo a dignidade da

pessoa humana?

1 Graduado em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ; Pós-Graduando em Direito

Tributário e Processo Tributário pela Escola Superior de Advocacia Flósculo da Nóbrega – ESA/PB; Advogado. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba; Bolsista de Iniciação Científica do CNPq/;

Integrante do grupo de pesquisa Justiça & Política – JusPol. 3 Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra; Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal

do Rio Grande do Norte; Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade

Federal da Paraíba; Vice-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.

Page 254: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

254

A eutanásia é matéria geradora de diversas discussões e de várias correntes de

pensamento. A pluralidade de opiniões se dá, muitas vezes, pela dificuldade de afastar da

análise a carga ético-religiosa do indivíduo, para que esta não pese em seu entendimento e ele

se dedique a observar cada caso isoladamente. Assim, dificilmente o indivíduo conseguirá

chegar a uma conclusão lógica de forma imparcial ou sem juízo de valores.

De modo geral, o presente texto tem como escopo promover uma sucinta análise da

eutanásia, desde a abordagem que está imiscuída no contexto do panorama ético que perpassa

o tema, até a concretude vivenciada no Brasil e externamente, nos dias atuais, observando

como a legislação vem avançando nessa seara.

Tomando por base o método indutivo, visa-se a analisar, quando do estudo ainda

precípuo da grande influência bioética na discussão acerca da eutanásia, documentos trazidos

mormente em revistas on-line e códigos penais. O primeiro é a Declaration on Euthanasia,

fazendo um recorte temporal do início da década de 1980, no contexto do Vaticano, o qual na

prática ainda exerce influência nos dias hodiernos, embora seja necessário um Estado

realmente laico.

Ademais, busca-se a perfilar as características da legislação vigente na Holanda, a qual

é datada de 2001, sendo um documento muito relevante para o mundo inteiro, devido às

inovações da área. Além disso, se verá como está configurada a legislação vigente atualmente

na Bélgica, fortemente influenciada pela Holanda, a qual foi elaborada em 2002, bem como a

conjuntura do suicídio assistido suíça, que vem influenciando países outros.

Analisar-se-á, por fim, o Código Penal do Uruguai, datado de 1934, mas que ainda

vigora hoje em dia. Assim, buscou-se perceber como se apresenta a temática da eutanásia

num país mais próximo do Brasil e que acaba por influenciá-lo mais diretamente, para que,

num último momento, possa-se mostrar em que medida o Código Penal brasileiro, de 1940, se

aproxima do tema, bem como, em sede do Anteprojeto do Novo Código Penal, é abordada a

questão. Para finalizar, foi elaborada a proposta dos autores deste artigo para uma possível

previsão mais detalhada da eutanásia na legislação brasileira.

2 PLURALIDADE CONCEITUAL

Há uma grande variação de sentidos do termo eutanásia, consequência de inúmeros

equívocos, explicados em grande parte por estar sujeito a variações culturais. Não é incomum

as pessoas atribuírem à eutanásia a idéia de homicídio, suicídio influenciado ou genocídio,

como conseqüência da herança nazista, posto que o século XX trouxe uma conotação negativa

Page 255: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

255

por meio de políticas públicas do Terceiro Reich, que se utilizaram do termo para práticas

diametralmente opostas às defendidas pela boa morte.

Em consonância com a atualidade, podemos entendê-la como antecipação voluntária

da morte, perpassando por uma preocupação humanitária principalmente sobre o enfermo,

mas também com a coletividade sobre um sofrimento insuportável, através do emprego ou

abstenção de procedimentos que permitiriam o prolongamento da vida do enfermo incurável.

Há uma corrente norte-americana que defende a eutanásia, mas vai além dessa idéia

humanitária, preocupando-se com a utilidade da pessoa para a sociedade. Dessa forma,

pessoas com doenças que afetem a sua capacidade de trabalho e produção poderiam também

recorrer à eutanásia para por fim às suas vidas. A idéia defendida por essa corrente não é

muito difundida, pois poderia abrir margem para uma prática eugênica, o que de longe não é o

interesse dos defensores da boa morte.

Antes de tudo, é necessário expor a definição de eutanásia que será utilizada nessa

pesquisa, qual seja a do professor Luciano de Freitas Santoro ao dizer que ―eutanásia pode ser

entendida como o ato de privar a vida de outra pessoa acometida por uma afecção incurável,

por piedade e em seu interesse [...]‖. (SANTORO, 2010, p. 117).

O estudo sobre a eutanásia torna indispensável a compreensão dos conceitos de

suicídio assistido e diretivas antecipadas de vontade. A assistência ou auxílio ao suicídio, bem

como sua instigação e induzimento, são condutas tipificadas no Código Penal (BRASIL,

1940), em seu artigo 122, e punidas com pena de reclusão. Muitos países utilizam-se do

suicídio assistido como alternativa à eutanásia, já que no momento final caberá ao paciente

acabar ou não com a própria vida, excluindo a hipótese de homicídio, ainda que piedoso.

Diversos autores consideram a eutanásia como uma forma de suicídio assistido, já que, muitas

vezes, o paciente não realiza o procedimento sozinho porque não tem mais forças para tanto.

Sobre a eutanásia como forma de suicídio assistido, Hurbert Lepargneur fala que:

A eutanásia é também muito vizinha do suicídio (muito pouco condenado no Antigo

Testamento, se tanto), sendo no fundo um suicídio assistido. O uso preferível do

termo "eutanásia" visa a situação em que o interessado quer livremente morrer, mas

não consegue realizar seu ‗desejo amadurecido, por motivos físicos.

(LEPARGNEUR, 2009)

As diretivas antecipadas de vontade surgiram em 1991 nos Estados Unidos,

funcionando como um testamento, já que consistiam nas últimas vontades daquele que as

escreveu. Nela, o indivíduo pode declarar o que deve ser feito caso perca sua consciência e

não possa explicitar sua vontade.

Page 256: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

256

No Brasil, essas diretivas estão previstas na Resolução 1995/2012 do Conselho

Federal de Medicina. Assim como nos Estados Unidos, elas têm por objetivo expor a vontade

do paciente sobre os procedimentos a serem tomados caso não possa exprimir sua vontade.

Frise-se, no entanto, que, ao contrário do que acontece no citado país, as diretivas não podem

ir de encontro ao Código de Ética Médica. Com isso, as diretivas perdem muitas vezes seu

efeito, já que podem ensejar um desejo de eutanásia ou pedidos de assistência ao suicídio, por

exemplo, que não poderão ser atendidos pelos médicos.

Insta destacar, para que não se confunda mais a eutanásia com o homicídio, por

exemplo, que ela se baseia no ato em si e no consentimento do enfermo. Assim, temos

distinções quanto ao ato: eutanásia ativa é ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento

de paciente por fins humanitários, por exemplo com a aplicação de injeção letal; já a eutanásia

passiva é a omissão proposital de ação que poderia perpetuar a sobrevida; a seu turno, a

eutanásia de duplo efeito é a que se configura em casos em que a morte é acelerada como

consequência de ações médicas que visam ao alívio do sofrimento do paciente, tal qual a

administração de morfina pra controlar a dor, que acaba por ter como resultado a morte por

falência respiratória.

Ademais, há distinções quanto ao consentimento. Assim, vemos que:

A eutanásia voluntária é aquela onde o ato é praticado por conseqüência de um

pedido por parte do enfermo. Não menos polêmica que as demais espécies, a

eutanásia voluntária encontra diversos posicionamentos contrários a sua prática, haja

vista, que o discernimento do enfermo encontra-se alterado em decorrência do

grande sofrimento a que está exposto (CAMPOS; MEDEIROS, 2011).

Podemos concluir que a eutanásia involuntária se dá quando o ato é praticado contra a

vontade do individuo e a não voluntária ocorre quando o ato é praticado sem conhecimento da

vontade do paciente.

À luz da bioética, diferentes argumentos são construídos de acordo com as diferentes

categorias de eutanásia relativas ao ato em si, havendo quem condene a eutanásia ativa, mas

aceite a passiva ou, ainda, a de duplo efeito.

Todavia, no que se refere ao consentimento do enfermo, não há qualquer justificativa

moral para a eutanásia involuntária, pois é, de fato, um ato criminoso, na medida em que

representa um desrespeito à vontade do paciente. Contudo, há discussões acerca da eutanásia

voluntária e da não voluntária.

3 CONSTRUÇÃO DOS ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E CONTRÁRIOS

Page 257: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

257

Alguns dos argumentos mais importantes contrários à eutanásia centram-se no

princípio da sacralidade da vida e do slippery slope.

Em se tratando da dita proibição, avulta ressaltar a importância que o posicionamento da

Igreja Católica Apostólica Romana possui frente à questão, haja vista que, embora inúmeros

Estados sejam laicos, resta evidente a influência que a religião ainda exerce no tocante aos

debates sobre a relativização da vida. Diante do debate travado em várias Conferências

Episcopais, foi redigido o documento intitulado Declaration on Euthanasia, preparado pela

Sacred Congregation for the Doctrine of the Faith. Dentre outras coisas, a Sagrada

Congregação dispôs que:

Ora, é necessário declarar uma vez mais, com toda a firmeza, que nada ou ninguém

pode autorizar a que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou

embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante. E também a

ninguém é permitido requerereste gesto homicida para si ou para um outro confiado

à sua responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há

autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir. Trata-se, com

efeito, de uma violação da lei divina, de uma ofensa à dignidade da pessoa humana,

de um crime contra a vida e de um atentado contra ahumanidade (VATICANO,

1980).

Em contraposição à sacralidade da vida, há a dignidade da pessoa humana e sua

autonomia, pois, quando o ―estar vivo‖ se torna um tormento, não há que se falar no bem da

vida com fim nele próprio.

O slippery slope, ainda contrário à eutanásia, defende que não podemos abrir

concessões aparentemente inocentes em temas tão controversos, pois, desse modo,

poderíamos cair em práticas inequivocamente maléficas.

Já os argumentos a favor se alicerçam em dois principais postulados: o princípio da

qualidade de vida e o da autonomia pessoal. A vida, defendida no artigo 5° de nossa

Constituição como direito fundamental, assim como em Tratados e Convenções

Internacionais, é definida, segundo José Afonso da Silva, da seguinte maneira:

[...] integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais).

A ‗vida é intimidade conosco mesmo, saber-se e dar-se conta de si mesma, um

assistir a si mesma e um tomar posição de si mesma‘. Por isso é que ela constitui a

fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição

assegurar outros direitos fundamentais – como igualdade, a intimidade, a liberdade,

o bem-estar -, se não erigisse a vida humana num desses direitos. (SILVA, 2009, p.

66)

Page 258: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

258

Uma das questões mais delicadas em relação à qualidade de vida é determinar qual o

real significado de uma vida que vale a pena e para quem deve ser dado o direito de decidir

sobre tal significação. Com base na teoria de Kant (1989, p. 195), o ato genuinamente moral

deve ser concebido no pleno exercício do sujeito ético. Dessa forma, cabe apenas ao principal

interessado decidir sobre sua vida ou morte, já adentrando no princípio da autonomia.

A autonomia pessoal defende que a liberdade de escolha do homem que está doente

seja respeitada, ou seja, é de competência do individuo a escolha do que é importante para si,

inclusive o processo de morrer de acordo com seus interesses e valores legítimos.

O instituto da autonomia garante que o indivíduo que se encontra em estado terminal

tenha a liberdade de escolher o caminho que desejar, é a desistência do direito à vida (ainda

que indisponível diante da Constituição) para garantir a morte digna. Mesmo sendo matéria

intimamente ligada ao Direito à vida, a eutanásia, como dito anteriormente, não pode deixar

de ser citada sem a dignidade da pessoa humana, uma vez que a extensão involuntária da

expectativa de vida do indivíduo acaba por gerar uma sobrevida indigna e miserável, violando

esse princípio tão importante.

Em meio a toda a discussão, é palpável a dificuldade para uma solução jurídica justa,

pela subjetividade própria do debate, por isso é imprescindível um estudo trans-disciplinar

entre as ciências médicas, jurídicas e sociais, para chegar a uma resposta satisfatória aos

anseios da sociedade contemporânea.

4 A ANÁLISE DA EUTANÁSIA À LUZ DA LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA

Pautando-nos na discussão ética, corolário da temática da eutanásia, há que se avaliar

como se configura, em concreto, essa abreviação da vida em países outros que não o Brasil,

para que, fazendo uso desse direito comparado, tenhamos o alicerce para a compreensão de

nossa própria realidade nacional.

A nível global, tem-se versado sobre o tema nas mais diversas legislações. Todavia,

em geral, visa-se máxime a proibir, ou ao menos restringir, a prática. Para isso, é feita a

observância a critérios específicos, a depender do local.

Não obstante a proibição da eutanásia ser fortemente adotada, deve-se atentar ao fato

de que há países que permitem a exclusão de ilicitude se atendidos certos critérios no

cometimento da eutanásia e quem praticar tal conduta não será, pois, punido. Aqui, falar-se-á

da Holanda, Bélgica e Uruguai, observadas as devidas peculiaridades.

Page 259: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

259

Corriqueiramente, diz-se que a Holanda foi o primeiro país a legalizar a eutanásia, fato

ocorrido no ano de 2001, através de legislação específica, que recebeu o nome de “Wet van

12 april 2001, houdende toetsing van levensbeëindiging op verzoek en hulp bij zelfdoding en

wijziging van het Wetboek van Strafrecht en van de Wet op de lijkbezorging”. Embora a

denominação tenha uma difícil tradução para o português, percebe-se que versa sobre o

término da vida sob solicitação e suicídio assistido, bem como a alteração do Código Penal e

da Lei de Entrega do Corpo. No entanto, deve-se perceber que não há a total

descriminalização da eutanásia. Ao contrário, ela continuou sendo crime nos Países Baixos,

haja vista que o Código Penal permaneceu punindo-a. Porém, com esta inovação no

ordenamento jurídico holandês, foi inserida no artigo 293 do Código a exclusão da ilicitude

nas condutas praticadas pelos médicos que estivessem em conformidade com a referida lei,

caso contrário haveria a imputação normal.

Fortemente assentada na jurisprudência da Hoge Road, Suprema Corte da Holanda, a

referida lei sobre o término da vida traz em seu bojo reflexos de duas principais decisões da

Corte, quais sejam a NJ 1985, 106 e a NJ 1989, 391. Aquela dispõe que um médico que

pratique eutanásia pode beneficiar-se da exclusão de ilicitude do estado de necessidade e esta

versa que o fato de um médico não ter solicitado a opinião de outro para recorrer à eutanásia

não descaracteriza a exclusão de ilicitude, fazendo-se mister apenas a solicitação do paciente.

É o médico a pessoa legitimada para praticar a eutanásia nos pacientes. Segundo o

artigo 2º da Lei:

§ 1º As exigências de cuidado, mencionadas no artigo 293, § 2º, do Código Penal

determinam que o médico: a- deve ter sentido estar convencido de haver uma

solicitação voluntária e bem refletida por parte do paciente; b- deve ter sentido estar

convencido de que o paciente sofria devido a dores sem solução e insuportáveis; c-

deve ter aclarado ao paciente a situação em que ele se encontrava e sobre suas

perspectivas; d- deve ter ficado convencido junto com o paciente de não haver outra

solução razoável para o caso em que se via; e- deve ter consultado pelo menos um

outro médico independente que tenha visto o paciente e escrito um parecer sobre as

exigências de cuidado, mencionadas da alínea ―a‖ até a ―d‖; e f) deve ter executado

o término da vida ou suicídio assistido com cuidado, sob a perspectiva médica

(HOLANDA, 2001).

Ademais, há forte influência da faixa etária para a realização da eutanásia: pacientes

entre dezesseis e dezoito necessitam que seus pais ou tutores tenham feito parte da decisão.

Entre dezesseis e doze precisam que os pais ou tutores tenham concordado com a eutanásia.

Por fim, aqueles que têm dezesseis anos ou mais e não podem manifestar sua vontade

precisariam ter deixado autorização prévia.

Page 260: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

260

Com raízes ancoradas na sentença autorizadora do primeiro caso holandês (Dra.

Geertrud Postma Leeuwarden), datada de 1973, a Bélgica inicia a discussão acerca do tema,

que acaba por realmente intensificar-se apenas na década de 1990. O Parlamento da Bélgica

aprovou a Lei da Eutanásia em 16 de maio de 2002, com 86 votos favoráveis, 51 contrários e

10 abstenções, passando a vigorar a partir de 22 de setembro. Analisando-a, vê-se que o

conceito de eutanásia remete ao ato intencionado de acabar com a vida de uma pessoa a

pedido desta. Tal pedido pode ser feito diretamente ao médico ou com a manifestação

antecipada da vontade.

Deve-se atentar ao fato de que os casos de eutanásia necessitam ser notificados pelos

médicos, que, por sua vez, precisam atender a um procedimento estipulado por uma comissão

federal, que irá revisar as notificações em quatro dias úteis. Metade da citada comissão é

composta por médicos e a outra metade subdivide-se em parcelas iguais entre juristas e

representantes de organizações cidadãs de voluntariado envolvidas com a problemática de

pacientes terminais. Assim, percebe-se que tenta haver transparência e inibição às possíveis

irregularidades, embora nem sempre seja possível.

Na América na Latina, o Uruguai é um país onde, atendidas certas condições,

possibilita que uma pessoa pratique homicídio se estiver movido por piedade. Como dito, não

se trata de permitir a prática da eutanásia em quaisquer ocasiões, como se poderia pensar,

mas, ao contrário, deve haver a observância a critérios específicos.

O Código Penal de laRepública Oriental Del Uruguay, (1934, Título II, capítulo II),

dispõe que: ―Artículo 37. (Del homicidio piadoso)Los Jueces tiene la facultad de exonerar de

castigo al sujeto de antecedentes honorables, autor de un homicidio, efectuado por móviles de

piedad, mediante súplicas reiteradas de la víctima‖. Percebe-se, pois, que o juiz só terá a

prerrogativa de exonerar do castigo aquele sujeito que atende aos requisitos elencados no

supracitado artigo.

Ainda mantendo relação com o supracitado artigo, o Código prevê, em seu artigo 127,

a faculdade que o juiz tem de conceder o perdão judicial quando da ocorrência de alguns

crimes, como o homicídio piedoso. No entanto, não devemos confundir com a hipótese de

determinação ou ajuda ao suicídio, a qual engendra realmente uma punição e não há a

possibilidade de ocorrer perdão judicial. Destarte:

Artículo 315. (Determinación o ayuda al suicidio)

El que determinare a otro al suicidio o le ayudare a cometerlo, si ocurriere la muerte,

será castigado con seis meses de prisión a seis años de penitenciaría. Este máximo

puede ser sobrepujado hasta el límite de doce años, cuando el delito se cometiere

respecto de un menor de dieciocho años, o de un sujeto de inteligencia o de voluntad

Page 261: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

261

deprimidas por enfermedad mental o por el abuso del alcohol o el uso de

estupefacientes (URUGUAI, 1934).

O Reino Unido, por sua vez, adota postura diferente, não possui lei específica sobre

suicídio assistido e eutanásia, sendo estas práticas vedadas e puníveis por lei. No entanto, o

Diretor do Ministério Público do Reino Unido, Keir Starmer, publicou um documento

contendo a Política que o MP e a Procuradoria da Coroa devem adotar nos casos de suicídio

assistido e encorajamento ao suicídio. Trata-se da Policy for Prosecutors in Respect of Cases

of Encouraging or Assisting Suicide (UNITED KINGDOM, 2010).

A citada política, publicada em setembro de 2009 e revisada em fevereiro de 2010, dá

aos Promotores a autonomia de investigar e analisar os casos de suicídio assistido e

encorajamento ao suicídio, decidindo se o Estado deve ou não processar o responsável pela

morte ou pela sua indução. Casos de repercussão nacional em que o Ministério decidiu não

processar os envolvidos são publicados e atualizados a cada seis meses no site da

Procuradoria da Coroa.

Há que se falar também nas Diretrizes Avançadas de Medicina, documentos

equivalentes a pequenos testamentos contendo as orientações a serem seguidas no que diz

respeito a decisões de vida ou morte que não possam ser decididas pelo paciente. Para terem

efeito civil, devem ser elaboradas enquanto o paciente ainda tem total capacidade de

reconhecer seus atos e preencher um formulário com as instruções a serem seguidas.

As diretrizes podem apontar uma pessoa para decidir o que deverá ser feito caso o

paciente perca sua capacidade civil e esteja em caso de vida ou morte, ou pode simplesmente

conter orientações sobre como proceder, caso isso venha a acontecer. Instruções como não

proceder com ressurreição cardíaca em casos de parada, não utilização de aparelho para

sobrevivência artificial, entre outros.

O suicídio assistido, na Suíça, é prática livre, desde que comprovado motivo nobre por

parte do assistente. Não é permitida a eutanásia, mas já se permitia o suicídio assistido desde

1942, em seu Código Criminal:

Art. 115: Qualquer pessoa que, por motives egoístas, incite, instigue ou dê

assistência para que outrem cometa ou tente cometer suicídio é, se aquela pessoa

influenciada tentar ou suceder no suicídio, passível de sentença condenatória não

superior a cinco anos ou multa. (SUÍÇA, 1937)

A característica marcante da Suíça diz respeito ao fato que não é necessário ter nascido

no país para que a lei tenha efeito sobre o indivíduo, bem como não é necessária a presença de

Page 262: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

262

um médico de qualquer natureza. Qualquer que tiver acesso a medicação letal poderá entregá-

la àquele que tenha desejo de usá-la. O interessado também não precisa estar doente em

estado terminal para que a assistência seja válida.

No entanto, para que fique caracterizado o suicídio assistido, o motivo do auxílio não

pode ser motivos egoístas ou torpes, e a medicação deve ser administrada pelo interessado em

dar fim a própria vida.

Prática comum é a gravação dos suicídios assistidos para posterior investigação por

parte da polícia. Após investigação, serão apurados os motivos da assistência, que só incidirão

em processo penal caso sejam egoístas.

Há ainda a formação de grupos, não necessariamente de médicos, especializados em

prover assistência ao suicídio. A organização Dignitas, presente na Suíça, é um dos maiores e

mais conhecidos desses grupos. O bordão da organização é ―Viver com dignidade – morrer

com dignidade.‖.

Eles têm por objetivo atender aos pedidos de pessoas que estão pensando em suicídio,

orientando-as para que elas cheguem a conclusão se este é ou não o caminho que querem

seguir. Caso seja, eles acompanham o interessado até o fim.

Caso de repercussão mundial vivenciado pelo grupo foi o de Edward Downes e sua

esposa Joan Downes, que praticaram juntos o suicídio assistido na clínica do Dignitas.

Edward não estava doente em fase terminal, mas estava com sua visão e audição diminuindo

aos poucos e sua esposa tinha desenvolvido câncer no pâncreas. (THE GUARDIAN, 2009).

A Procuradoria Geral da Coroa (Reino Unido, país de origem de Edward), seguindo a

orientação publicada pelo diretor Keir Starmer, não deu início a um processo penal em face os

filhos do casal.

5 A ANÁLISE DA EUTANÁSIA NO DIREITO BRASILEIRO

Para o Direito Brasileiro, a Eutanásia se configura enquanto uma ação ilícita, sujeita a

pena por crime de homicídio, podendo, no entanto, ter sua sanção diminuída de um sexto a

um terço, segundo o art. 121, §1º do Código Penal.

No tocante à tipificação de um fato como ilícito, ou seja, como crime, se faz mister a

presença de três requisitos: i) ser o fato típico, em outras palavras, o fato deve ser previsto em

lei; ii) ilícito, por o fato se enquadrar em uma norma incriminadora; e iii) culpável, fato

reprovável pelo âmbito jurídico decorrente dos dois requisitos anteriores. É daí também o

entendimento, nos tribunais brasileiros, de que o crime em tela se enquadra na espécie de

Page 263: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

263

homicídio privilegiado, mesmo que o paciente implore pela subtração da sua própria vida

(DODGE, 1999).

Por sua vez, o entendimento dos doutrinadores do Direito Penal é largo no sentido da

aplicação da lei vigente para diminuição de pena, baseado no art. 121, §1º, do CP. Assim,

leciona com maestria o Professor Bitencourt:

(...) é o auxílio piedoso para que alguém que esteja sofrendo encontre a morte

desejada. Um intenso sentimento de piedade leva alguém bom e caridoso à violência

de suprimir a vida de um semelhante, para minorar-lhe ou abreviar-lhe um

sofrimento insuportável. Esse é um autêntico motivo de relevante valor moral que

justifica o abrandamento da pena no homicídio dito privilegiado (BITENCOURT,

2012).

No entanto, quando se discute a problematização da legalização, temos uma celeuma

doutrinária. Para Noronha (1983, p.29), ―Não há, primeiramente, direito de matar. A vida,

ainda que dolorosa ou sofredora, há de ser sempre respeitada. O homem é coisa sagrada para

outro homem, como dizia Sêneca: ‗Homo res homini sacra‘‖. Lecionando sobre o tema, o

saudoso penalista nos remete a uma reflexão sobre seu posicionamento: se faria referência a

um seguimento ideológico, social, humanitário ou ético-religioso, haja vista que, para uma

complexidade de situações, não dá mais para admitir a supressão do caso em foco por crer que

se trata de uma situação antológica e divinamente indiscutível.

Em um entendimento diferente dentro da seara jurídica atual, o saudoso doutrinador

Damásio de Jesus (2008, p. 683) dá uma solução: ―o perdão judicial é o instituto pelo qual o

juiz, não obstante comprovada a prática da infração penal pelo sujeito culpado, deixa de

aplicar a pena em face de justificadas circunstâncias‖, assim, acontecendo a Eutanásia, pode o

juiz entender pelo perdão judicial pela justificativa da típica situação em que o agente comete

o ato impelido por motivo de relevante valor social e moral. Sendo a situação do perdão

judicial prevista no art. 107, inc. IX do CP.

Em 2007 houve a publicação, por parte do Conselho Federal de Medicina, da

Resolução 1.805/06, que previa a possiblidade de limitação ou suspensão de tratamentos de

pacientes em estado terminal. Consta no citado documento que:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que

prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável,

respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal

as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma

segunda opinião médica.

Page 264: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

264

Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os

sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto

físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta

hospitalar

Resolução suspensa por decisão liminar do M. Juiz Dr. Roberto Luis Luchi Demo, nos

autos da Ação Civil Pública n. 2007.34.00.014809-3, da 14ª Vara Federal, movida pelo

Ministério Público Federal.

Apesar de sentirmos um encaminhamento da sociedade brasileira para um avanço,

também é verdade que a população é de grande número religiosa, com grande predominância

da ala católica e cada vez mais crescente na ala protestante. Em meio a esse panorama, é de

fácil constatação a influência exercida no âmbito jurídico para as orientações doutrinárias, as

interpretações legislativas e até mesmo na formação acadêmica, preparando o futuro aplicador

do Direito com certos valores que se consubstanciam mais em valores religiosos implícitos do

que científicos e sócio-históricos.

5.1 A EUTANÁSIA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO

Uma discussão propriamente jurídica, a qual não poderíamos nos furtar de aqui trazer,

diz respeito ao fato de a Eutanásia não ser permitida, de forma alguma, pelo fato de estar

prevista a proteção à vida no art. 5º de nossa Constituição Federal, o qual reza: ―Todos são

iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade (...) ‖ (BRASIL, 1988).

O argumento a ser levantado é no sentido de que o art. 5º é o que se chama de cláusula

pétrea, ou seja, faz parte de um rol da Constituição que não pode ser alterado, salvo para

ampliar o que já está garantido, nunca diminuindo. Com isso, o direito à vida, garantido pela

segunda parte do artigo, seria posto como inviolável, destarte, não havendo possibilidade de

qualquer tipo de legalização da Eutanásia ou outra situação que permita que se ponha fim à

própria vida ou à vida de outrem.

Para este tipo de entendimento, o maior bem que o sistema jurídico deve proteger é a

vida, sendo esta inviolável e só podendo ser confrontada se de outro lado estiver outra vida.

Ousamos dissentir da referida análise.Pelo fato de a ―vida‖ vir em primeiro na ordem

das palavras no artigo, não significa necessariamente que seja absolutamente a primeira

sempre. Concordamos que a vida humana deva estar em primeiro lugar entre todos os demais

bens protegidos pelo Direito, todavia não podemos nos restringir a interpretações rasas e

Page 265: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

265

simplistas. O que deve decidir necessariamente sua aplicação ou não deve ser o caso concreto

e quando este não atingir limites maiores que a própria esfera de poder do indivíduo

protagonista.

Comungamos com a corrente que defende que a liberdade de autonomia e a dignidade –

quando somados – devam estar acima do bem vida, até mesmo porque a própria liberdade

também é direito fundamental imperativo elencado na Constituição.

5.2 P.L 125/96 E O ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO PENAL

Em meados de 1996, houve o que seria o único Projeto de Lei que viria a disciplinar a

Eutanásia no Brasil.

De autoria do senador Gilvam Borges, do PMDB do Amapá, o Projeto de Lei 125/96

permitia a prática da Eutanásia frente a problemas de contorno físico e psíquico, todavia com

algumas condições, quais sejam: i) aprovação pela junta de cinco médicos, sendo pelo menos

dois deles especializados na área de transtorno do paciente; e ii) solicitação do próprio

paciente ou, em sua incapacidade, um familiar ou amigo com requerimento à Justiça e esta

aceitando.

O projeto enfrentou duras críticas, tanto de cunho conservador, quanto tecnicamente

jurídico, por se analisar como vagas suas disposições disciplinares, podendo-se citar o tempo

que o paciente teria para refletir acerca da decisão e quem seria o médico responsável pela

realização do ato.

Como era previsto até mesmo pelo autor do Projeto de Lei, "essa lei não tem nenhuma

chance de ser aprovada". O projeto foi arquivado e sem nem sequer uma perspectiva de, ao

menos, uma rediscussão sobre o caso, pois, como claramente afirmava o então Presidente da

Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, "ninguém quer discutir a eutanásia,

porque isso traz prejuízos eleitorais".

Contudo, a oportunidade surgiu, mas não de forma plena. Foi o que trouxe o anteprojeto

para o novo Código Penal Brasileiro. Nele, há uma diminuição da pena se praticada a

Eutanásia, com possibilidade de exclusão de pena frente à valoração feita pelo magistrado. Já

a Ortotanásia passaria a ser legalizada, como vemos na íntegra:

Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável

e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de

doença grave.

Pena – prisão, de dois a quatro anos.

§ 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como

a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.

Page 266: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

266

Exclusão de ilicitude

§ 2º Não hácrime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para

manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa

(BRASIL, 2012).

CONCLUSÃO

Diante da discussão de cunho ético-religioso, mas também jurídico, obtida como

resultado da pesquisa aqui trazida, traçando o perfil da legislação internacional e da

repercussão que passa a ter sobre o Brasil, pudemos ter nosso cabedal de informações sobre a

eutanásia em muito alargado.

À guisa de considerações finais, há que se destacar o atual panorama brasileiro, que

ainda precisa avançar significativamente a fim de se desvencilhar de discussões que não

promovam a real ponderação de direitos, mas uma visão unívoca que se afasta do Estado

laico.

Límpido se faz notar que: tanto a proposta de lei quanto a colocação em plenário para

ser votada e, por fim, sua aprovação, recaem num legislativo representativo que tem sua

legitimidade na tradição de um povo influenciado por doutrinas que inibem uma real reflexão.

Trazida à tona essa discussão basilar e fomentando o debate, a legislação pode ser

verdadeiramente alterada de modo benéfico e plural.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A lei relativa ao término da vida sob solicitação e

suicídio assistido e a constituição holandesa. Revista Brasileira de Direito Constitucional –

RBDC, n. 8, 2006. Disponível em: <http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-08/RBDC-08-

297-Roberto_Chacon_de_Albuquerque.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2014.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL. Anteprojeto de Código Penal. Brasília: 2012. Disponível em:

<http://www12.senado.gov.br/noticias/Arquivos/2012/06/pdf-veja-aqui-o-anteprojeto-da-

comissao-especial-de-juristas>. Acesso em: 02 mai. 2014.

Page 267: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

267

______.Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 24 abr.

2014.

______. Decreto-Lei 2.848/4., Código Penal. disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 29 abr. 2014.

______. Conselho Federal de Medicina. Resolução 1995/2012. Dispõe sobre as diretivas

antecipadas de vontade dos pacientes. Disponível em:

<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf> Acesso em: 24 abr.

2014.

______. ______. Brasília: v. 7, n. 1, 1999.

CAMPOS, Patrícia Barbosa; MEDEIROS, Guilherme Luiz. A Eutanásia e o Princípio

Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Revista Eletrônica Direito, Justiça e

Cidadania, São Roque, v. 2, n. 1, 2011. Disponível em:

<http://www.facsaoroque.br/novo/publicacoes/pdfs/patricia_drt_20111.pdf>. Acesso em: 01

mai. 2014.

DODGE, Raquel Elias Ferreira. Eutanásia: aspectos jurídicos. In: Revista Bioética, 1999.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Especial. Rio de Janeiro: Impetus, 2012.

JESUS, D. E. Direito penal: parte geral. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Rio de Janeiro: Edições 70, 1989.

LEPARGNEUR, H.. Bioética da Eutanásia Argumentos Éticos em Torno da Eutanásia,

Revista Bioética, Brasília, v.7, n.1, nov. 2009. Disponível em:

<http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/292/431>. Acesso

em: 01 mai. 2014.

LIMA NETO, Luiz Inácio de. A legalização da eutanásia no Brasil. Jus Navigandi,

Teresina, ano 8, n. 81, 22 set. 2003 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4217>.

Acesso em: 30 abr. 2014.

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1983.

LOPES, Consuelo Helena Aires de Freitas; CHAGAS, Natália Rocha; JORGE, Maria Salete

Bessa. O Princípio bioético da autonomia na perspectiva dos profissionais de saúde.

Page 268: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

268

Revista Gaúcha de Enfermagem, v. 28, n. 2, 2007. Disponível em:

<http://seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfermagem/article/view/3179/1751>. Acesso em: 30

abr. 2014.

LORDA, Pablo Simón; CANTALEJO, Inés M. Barrio. La Eutanasia en Bélgica. Revista

Española de Salud Pública, Madrid, vol. 86, n. 1, 2012. Disponível em:

<http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1135-

57272012000100002&lang=pt> Acesso em: 29 abr. 2014.

REPÚBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY. Código Penal, 1934. Disponível em:

<http://www.parlamento.gub.uy/Codigos/CodigoPenal/Cod_Pen.htm>. Acesso em: 30 abr.

2014.

SANTORO, Luciano de Freitas. Morte digna: o direito do paciente terminal. Curitiba:

Juruá, 2010.

SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 6. ed. São Paulo:

Malheiros, 2009.

SIQUEIRA-BATISTA, Rodrigo; SCHRAMM, Fermin Roland. Conversações sobre a “boa

morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2005.

Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v21n1/13.pdf>. Acesso em 25 abr. 2014.

SWITZERLAND. Swiss Criminal Code, 1937. Disponível em:

<http://www.admin.ch/ch/e/rs/3/311.0.en.pdf>. Acesso em: 01 mai. 2014.

THE GUARDIAN. British conductor dies with wife at assisted suicide clinic: 2009.

Disponível em: <http://www.theguardian.com/society/2009/jul/14/assisted-suicide-conductor-

edward-downes>. Acesso em: 01 mai. 2014.

UNITED KINGDOM. Policy for Prosecutors in Respect of Cases of Encouraging or

Assisting Suicide: 2010. Disponível em:

<http://www.cps.gov.uk/publications/prosecution/assisted_suicide_policy.html>. Acesso em:

01 mai. 2014.

VATICANO. Declaration on Euthanasia, 1980. Disponível em:

<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_198

00505_euthanasia_en.html>. Acesso em: 24 abr. 2014.

Page 269: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

269

LEI DO TRATAMENTO DO CÂNCER: ESFORÇOS E OBSTÁCULOS

PARA EFETIVAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE

Antônio Alves Pontes Trigueiro da Silva1

Manoel Pedro Alexandre Mineiro Simões e Silva2

Winicius Faray da Silva3

1 INTRODUÇÃO

A Organização Mundial de Saúde define positivamente a saúde humana como não

sendo apenas a ausência de doenças ou enfermidades, ―mas o completo bem-estar físico,

mental e social‖. Tal definição, por ser tão extensa, pode fazer-nos entender a saúde comouma

utopia, trazendo algumas consequências lógicas: partindo deste ponto de vista, a saúde seria,

simplesmente, inatingível por tal estado de bem-estar ideal ser impossível; por outro lado,

colocar a saúde como algo ideal e não-restritivo concede a liberdade para que os governos

tomem maiores medidas a fim de aprimorar a proteção às pessoas nos grandes aspectos da

vida humana: o físico, o mental e o social; isto um leque maior de possíveis medidas para tal,

também estimulando a priorização de ações políticas e sociais.

Para isso não se pode, porém, adotar uma visão pessimista de, por ser a saúde ideal,

pensá-la como impossível. Ainda que, dado o estado científico-tecnológico e socio-político

em que a humanidade se encontra, não esteja a vista no horizonte a realização da saúde

universal (considerando que seja possível), os esforços por atingi-la devem ser os mais fortes

por estar intrinsicamente relacionados à manutenção da própria vida humana, sendo o direito

à vida humana digna substantivo, uma vez que este é condição necessária para o gozo de

todos os outros direitos.

Levando em conta o objetivo da garantia do direito à saúde como básica à dignidade

humana e o alto índice de cidadãos acometidos por neoplasias malignas, bem como os altos

custos de tratamento da enfermidade, entendeu-se necessária a regulamentação de uma lei

garantidora do acesso da população ao tratamento de tão avassaladora patologia, que abala

não só os pacientes, mas também seus familiares e pessoas próximas, física, psicológica e

financeiramente.

1 Graduando em Direito pela UFPB.

2 Graduando em Direito pela UFPB.

3 Graduando em Direito pela UFPB.

Page 270: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

270

Sendo direito de todos e dever do Estado, a saúde figura como o condão de propiciar

uma vida digna ao ser humano. Originando-se da palavra latim, salus, que significa

conservação da vida, é de se estranhar que apenas agora esse bem tão extraordinário é elevado

à categoria de direito fundamental do homem.

O Direito Constitucional brasileiro já aludia sobre o direito à saúde, contudo, como

demonstra José Afonso da Silva (2012, p. 308-309), a nossa Lei Maior dava poder à União

para legislar sobre defesa e proteção da saúde. Porém, o sentido que aqui fora aplicado diz

respeito ao combate às endemias e epidemias. Era uma organização administrativa, mas não

um direito do homem.Desse modo, o presente artigo busca uma análise do direito

fundamental à saúde, dando enfoque para a Lei 12.732/12, a partir de uma análise da

legislação pertinente, jurisprudencial e doutrinária.

2 BREVE HISTÓRICO DOS DIREITOS SOCIAIS E DO DIREITO SOCIAL À

SAÚDE

A avançada legislação brasileira atual, garantidora dos direitos sociais, é precedida por

uma tradição constitucional de previsão de direitos sociais. Nas Constituições do México

(1917) e Weimar (1919), temos o berço do constitucionalismo social moderno.

O surgimento dos estados liberais modernos foram a base para a instituição dos

chamados direitos fundamentais de primeira dimensão, aqueles que exigem uma ação

negativa do Estado, a fim de evitar ingerências estatais que venham a prejudicar os

indivíduos, sendo referentes às liberdades públicas.

Da evolução social e das mudanças acarretadas pela Revolução Industrial, bem como

com a mudança do perfil do mercado de trabalho, seguiu-se um sentimento de que o

constitucionalismo clássico apresentava-se ineficiente em atender a novas demandas sociais

que requeriam a intervenção positiva do Estado. Some-se a isso o advento da União Soviética

e sua influência nas demandas das classes trabalhadoras ao redor do mundo, tivemos o abalo

do constitucionalismo liberal. Em tal sentido, afirma Herkenhoff:

A afirmação dos ―direitos sociais‖ derivou da constatação da fragilidade dos

―direitos liberais‖, quando o homem, a favor do qual se proclamam liberdades, não

satisfez ainda necessidades primárias: alimentar-se, vestir-se, morar, ter condições

de saúde, ter segurança diante da doença, da velhice, do desemprego e dos outros

percalços da vida.‖ (HERKENHOFF, 2002, p.51-52)

Page 271: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

271

Foi neste contexto que surgiram as constituições que viriam a ser o marco histórico da

ascensão do constitucionalismo social: as de Weimar e do México. Não é difícil perceber que

os direitos sociais são mais intensamente visados em épocas de mal-estar social e que, se

antes visavam apenas proteger a classe trabalhadora, seguindo uma tradição que podemos

chamar de marxista, tais direitos hoje se estendem à população no geral.

Cabe, porém, frisar que não se deve entender como ―constituição social‖ ou

―socialista‖ aquela que traz dispositivos esparsos garantidores de direitos sociais, mas aquelas

fundadas na tradição de reconhecê-los, com princípios fundantes condizentes com tal, o que

coloca estes textos constitucionais no caminho de reconhecer, através de inúmeros

dispositivos com tal índole, os direitos sociais dos indivíduos de forma sistematizada,

geralmente estando fundados nos controversos conceitos de ―justiça social‖ e de ―igualdade

material‖.

A Constituição do México de 1917, neste sentido, além dos direitos concernentes às

liberdades públicas, também trouxe a previsão de inúmeros direitos sociais, cabendo-nos

destacar aqui a previsão do direito à saúde, de incumbência da Federação e das entidades

federativas (art. 4º, § 2º). Também estabeleceu a Constituição Mexicana de 1917, através do

art. 123, as jornadas de trabalho que vigorariam no país a partir de sua promulgação, que estão

diretamente relacionadas ao bem-estar físico e mental dos trabalhadores e, portanto, à sua

saúde.

Também preocupou-se com o direito social à saúde a Constituição de Weimar, de

1919, em diversos itens. O inciso 8 do seu sétimo artigo institui que é responsabilidade do

Reich legislar sobre temas de saúde. Também o artigo 155 fixa que a distribuição e o uso da

propriedade imobiliária deve ser supervisionada pelo estado a fim de garantir ―moradia

saudável‖ às famílias alemãs, referindo-se ainda à importância da relação da propriedade

privada do solo com o plantio de gêneros alimentícios, mostrando explícita preocupação com

a alimentação saudável da população. O artigo 161, por sua vez, invoca a relação entre a

habilidade de trabalhar e a saúde dos trabalhadores, bem como a maternidade e o advento da

idade, que traz uma situação de fraqueza perante os outros, sendo dever do Estado resguardar

a população alemã contra abusos através de um sistema de seguridade social. O artigo

seguinte ainda institui a necessidade de regulação das condições de trabalho, procurando

evitar abusos que comprometam a saúde da classe laboral.

Lembrando ainda que não apenas o texto promulgado em uma Constituição é

responsável por instituir num país um sistema jurídico de cunho social, mas também as

condições jurisprudenciais e doutrinárias, ações políticas, bem como que as normas

Page 272: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

272

infraconstitucionais também podem embasar de direitos sociais, temos que diversos países

seguem atualmente a tradição da garantia dos direitos sociais em seu ordenamento jurídico,

entre eles: os já referidos México e Alemanha, Brasil, França, Portugal, Peru, Cuba, Canadá

entre diversos outros.

3DIREITO SOCIAL À SAÚDE NO BRASIL

O Direito à saúde é um dos direitos sociais listados pelo caput do art. 6º da Carta

Magna de 1988. É, portanto, um direito constitucional de todos e um dever do Estado

entendido como Poder Público amplamente. A garantia de tal direito encontra-se no artigo

196 da mesma Constituição e consiste na adoção, por parte do ente estatal, de políticas sociais

e econômicas que visam à redução do risco de doenças e de outros agravos, bem como ao

acesso universal igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde,

o que abrange não só tratamentos médicos para aqueles acometidos por doenças, mas também

a prevenção das mesmas, o que, inclusive, é vantajoso para os potenciais pacientes de

enfermidades como para o erário, dado que os gastos com prevenção de doenças são em

muito inferiores aos de tratamento das mesmas. Ainda estabelece, no mesmo sentido, o artigo

2º da Lei 8.080/90 que ―a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado

prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício‖

Ainda que o direito social fundamental à saúde não exclua o dever dos particulares de

zelar pela mesma. É, porém, dever do Estado adotar medidas que garantam a possibilidade de

que os particulares possam fazê-lo: prestar acesso a boa alimentação, moradia, saneamento

básico, bem como demais aspectos da vida cotidiana, como transporte, educação formal e

cívica, trabalho, renda; e, mais diretamente, assegurar o acesso a postos de saúde, hospitais,

programas de prevenção, medicamentos e tratamentos com a urgência e atenção que cada

doença específica requer. A infinidade de fatores dos quais depende a saúde (tanto a do

particular como a pública) mostra a vastidão e a relação deste com os demais direitos

fundamentais e com o próprio estado de desenvolvimento de uma nação, sendo o art. 3°,

através de Redação dada pela Lei 12.864 de 2013, evidência disto, quando admite:

Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a

saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia,

o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade

física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.

Page 273: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

273

As inúmeras menções ao direito à saúde na CF dão uma boa ideia de sua importância,

sendo citado nos artigos 5 º, 6 º, 7 º, 21, 22, 23, 24, 30, 127, 129, 133, 134, 170, 182, 184,

194, 195, 197, 198, 199, 200, 216, 218, 220, 225, 227 e 230.

No Brasil, a criação do Sistema Único de Saúde, o SUS, constituído pelas ―ações e

serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e

municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público‖,

segundo o art. 4º da lei 8.080/90, está diretamente relacionada ao esforço estatal de oferecer

acesso a meios de prevenção e tentativa de cura de doenças, o que inclui acesso a consultas,

exames, internações e tratamentos. Identificando as falhas do sistema, pode a população

cobrar remédios também para os problemas que o assolam. Tal forma de participação política

democrática da comunidade é o que incentiva projetos de lei como o da 12.732, que hora

estudamos, evidenciando o que é programado na Constituição e através de demais leis, mas

que ainda não foi cumprido.

O Sistema de Saúde pátrio é, portanto, universal (por ter o dever de atender a todos,

sem distinção), integral (dado que a saúde da pessoa deve ser tratada em sua totalidade,

voltando as ações tanto para os indivíduos quanto à comunidade, seja nas fases de prevenção

ou de tratamento), descentralizado e regionalizado (o que objetiva sempre ampliar o acesso ao

sistema em todo o território nacional, com gestores únicos em cada esfera governamental: seja

municipal, estadual ou federal), bem como hierarquizado (significando que questões de saúde

menos complexas são tratadas em hospitais gerais, aumentando o grau de especialização da

unidade de tratamento à medida em que cresce o grau de complexidade do problema de

saúde).

Ainda é dever da direção nacional do SUS, segundo o art. 41 da lei 8.080/90,

supervisionar as ações do Instituto Nacional do Câncer, permanecendo estas como referencial

de prestação de serviços, formação de recursos humanos e transferência de tecnologias.

Com promulgação da Constituição da República do Brasil de 1988, percebe-se

uma evolução no tratamento da vida digna do ser humana. Nesse sentido, o direito à saúde,

agora direito fundamental, presente como direito social do artigo 6, possui uma maior

prospecção, com uma formação baseada no artigo 64 da Constituição de Portugal que a deu

uma formulação universal mais precisa.

Assim, nos tópicos subsequentes, será feito uma análise do direito à saúde na

legislação brasileira antes da promulgação da Lei n° 12.732/12, além de uma explanação de

como acontece os pedidos judiciais de tratamentos de saúde, mais especificadamente no que

tange ao tratamento da neoplasia maligna.

Page 274: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

274

4 A LEGISLAÇÃO SOBRE DIREITO À SAÚDE E A TEORIA DA RESERVA DO

POSSÍVEL

O desenvolvimento do Direito Constitucional brasileiro trouxe um interessante

aparato, no que tange ao direito fundamental da saúde, constante no Título II e, também, no

que toca as disposições sobre a ordem social, no Título VIII. Ambas da Constituição da

República de 1988. Ademais, a legislação infraconstitucional sobre a temática é bastante

expressiva, com destaque para as leis que dispõe sobre a organização e benefícios do SUS, o

fornecimento de medicamentos e a lei, foco do estudo, que instituiu o tratamento de pessoas

diagnosticadas com neoplasia maligna em até 60 dias.

Após uma leitura dos arts. 196 a 200, constatamos uma norma definidora de direito

subjetivo à saúde, com titularidade universal, como também normas de caráter impositivo de

deveres e tarefas para o Estado. O artigo 196, da supracitada Lei Maior, tratou do tema, in

verbis: ―A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e

econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal

e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação‖. (BRASIL,

1988).

Ao nos depararmos dos efeitos do dispositivo constitucional trazido a lume, e

trazendo para o estudo da Lei 12.732/12, interessante questão surge: Sendo a saúde um dever

do Estado, então ele deve garanti-lo em sua plenitude ou apenas no tocante ao padrão mínimo

de prestação do serviço?

Para responder tal indagação, mesmo que de forma breve por conta dos limites

espaciais de um artigo, vamos tomar por base os doutrinadores José Afonso da Silva e Ingo

Wolfgang Sarlet, que trazem à baila uma instigante discussão do tema.

Para que o direito à saúde seja concretizado, como bem alude o art. 196 supracitado, o

Estado possui o dever de agir segundo uma vertente de natureza positiva, ou seja, segundo

Gomes Canotilho e Vital Moreira, citados por José Afonso da Silva, o cidadão tem ―direito às

medidas e prestações estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas.‖ (2012,

p. 309). Com efeito, a jurisprudência das Cortes Pós Segunda Guerra, mais precisamente o

Tribunal Constitucional Federal Alemão, já defende a obrigatoriedade da comunidade estatal

em assegurar, pelo menos, as condições mínimas para uma existência digna. O que, segundo

Ingo Wolfgang Sarlet (em artigo para o Tribunal Regional Federal da 4° Região), fincou o

statusconstitucional da garantia estatal do mínimo existencial.

Page 275: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

275

Assim, a Corte alemã, mediante interpretação sistemática e ontológica do princípio do

Estado Social de Direito, adotou a garantia das condições mínimas de uma existência digna

como integrante do referido princípio.

Desse modo e seguindo a doutrina de Ricardo Torres, o mínimo existencial consiste

em ―um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de

intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas‖ (TORRES, 1999, p.

141).

Contudo, o mínimo existencial não é usufruído boa parte da população brasileira por

conta de posições econômicas, ou seja, o Estado não tem condições de dar a elas uma vida

digna e elas, por si mesmas, não podem arcar com tais ônus.

Ao comentar sobre a garantia constitucional dos direitos sociais, José Joaquim Gomes

Canotilho assim alude:

Quais são, no fundo, os argumentos para reduzir os direitos sociais a uma garantia

constitucional platônica? Em primeiro lugar, os custos dos direitos sociais. Os

direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser garantidos a

todos os cidadãos sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os direitos sociais,

pelo contrário, pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado.

Por isso, rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível

(VorbehaltdesMoglichen) para traduzir a idéia de que os direitos só podem existir se

existir dinheiro nos cofres públicos. Um direito social sob ‗reserva dos cofres

cheios‘ equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica (CANOTILHO, 1998, p.

477).

Como bem aponta Gomes Canotilho, e trazendo para nosso estudo da Lei

12.732/12, se o Estado se utilizar da justificativa da reserva do possível para eximir-se de

cumprir funções expressar em nossa Carta Magna, transformaria o direito à saúde em um

direito relativo, pois dependeria de fatos socioeconômicos para ser concretizado.

Sobre o tema, a Ministra Ellen Gracie assim alude:

O direito a saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a

implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar

condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. (AI 734.487-

AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3-8-2010, Segunda Turma, DJE de 20-

8-2010.) Vide: RE 436.996-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-11-

2005, Segunda Turma, DJ de 3-2-2006; RE 271.286-AgR, Rel. Min.Celso de Mello,

julgamento em 12-9-2000, Segunda Turma, DJ de 24-11-2000.

Retratando, também, da obrigatoriedade do Poder Pública em prestar serviços de

saúde em sua plenitude e eficácia, com enfoque naqueles portadores do vírus HIV, o Min.

Celso de Mello assim aduz:

Page 276: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

276

O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível

assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art.

196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve

velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e

implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos

cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário

à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde – além de

qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa

consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público,

qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização

federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da

população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave

comportamento inconstitucional. A interpretação da norma programática não pode

transformá-la em promessa constitucional inconsequente. O caráter programático da

regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes

políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado

brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob

pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela

coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável

dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a

própria Lei Fundamental do Estado. (...) O reconhecimento judicial da validade

jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes,

inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/Aids, dá efetividade a preceitos

fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na

concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde

das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a

consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do

STF. (RE 271.286-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-9- 2000,

Segunda Turma, DJ de 24-11-2000.) No mesmo sentido: STA 175-AgR, Rel. Min.

Presidente Gilmar Mendes, julgamento em 17-3-2010, Plenário, DJE de 30-4-2010.

Vide: AI 734.487-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3-8-2010, Segunda

Turma, DJE de 20-8-2010

Logo, a lei infraconstitucional em estudo, representa um avanço específico que,

como será demonstrado mais a frente, já encontra seus muitos obstáculos. Entre esses

obstáculos, destacamos, antecipadamente, o contrapondo entre a dotação orçamentária para o

tratamento da doença e o disposto no art.2° da supramencionada lei, que impõe a submissão

do paciente ao Sistema Único de Saúde (SUS) em até 60 dias, o qual será detalhado mais a

frente.

Sendo um bem de extraordinária relevância para a vida humana, haja vista a

impossibilidade de vida digna sem saúde, ressaltamos que:

[...] pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa

também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno

de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação

econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas

constitucionais. (SILVA, 2012, p. 308)

5BRASIL: CONSEQUÊNCIASDA IMPLANTAÇÃO DA LEI 12.732/2012

Page 277: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

277

Em novembro de 2012, com o advento da Lei do Câncer, que dispõe acerca do

primeiro tratamento de paciente com câncer maligno comprovado e estabelece um prazo para

o início daquele, observa-se uma preocupação do Estado brasileiro em garantir o acesso aos

tratamentos necessários aos pacientes acometidos por neoplasias malignas, visando à

manutenção do bem da vida, aqui contemplado não somente de forma objetiva, mas o acesso

a uma vida digna, estando neste escopo, o acesso à saúde de qualidade, protetiva e preventiva.

Segundo o Art. 1° da Lei 12.732/12, deverá o Sistema Único de Saúde (SUS)

fornecer todos os tratamentos necessários, de forma gratuita, àqueles pacientes. Cumpre

ressaltar que em consonância com o Art. 196 da Constituição Federal, tal lei busca, também,

acesso igualitário e universal aos tratamentos e ações concernentes ao combate do câncer.

Segundo dados do Inca (Instituto Nacional do Câncer), no ano de 2014, há uma

previsão de que surgirão cerca de 576.580 novos casos (somados os valores brutos de homens

e mulheres) de habitantes acometidos por pelo câncer. Desta forma, os altos índices denotam

a importância de tal legislação, haja vista que tais métodos de tratamento - medicamentos,

intervenções, cirurgias, entre outros – apresentam custos elevados, ou seja, muitos cidadãos

ficam impossibilitados de se quer iniciar os procedimentos necessários à cura. Ainda neste

diapasão, cumpre ressaltar que há jurisprudências que responsabilizam o Estado a custear -

diretamente ou regressivamente - cidadãos que sofreram com o câncer e recorreram àquele em

busca de um aporte para que tivessem o direito à saúde assegurado, como exemplo:

AGRAVO REGIMENTAL. PROCESSUAL CIVIL. TRATAMENTO

DECORRENTE DE CÂNCER DE PELE. FORNECIMENTO DE

MEDICAMENTO. LEGITIMIDADE DO ESTADO. DIREITO À VIDA. DEVER

DO ESTADO. 1. O Estado, na qualidade de integrante do Sistema Único de Saúde -

SUS, pode ser responsabilizado pelo custeio do medicamento. O art. 198, § 1º, da

CF, dispõe que "o sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195,

com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, além de outras fontes". 2. O direito à saúde é garantido

pela Constituição, de forma individual e coletiva (art. 196 da CF). Não podendo, o

hipossuficiente, custear o medicamento necessário, sem prejuízo do próprio

sustento, bem como estando ele correndo sério risco de agravamento de sua saúde,

acertada a decisão de primeiro grau ao reconhecer presentes os requisitos de

concessão da antecipação de tutela (art. 273, CPC). Precedentes. 3. Agravo

regimental a que se nega provimento. TRF-1 - AGA: 74182 PI 0074182-

74.2009.4.01.0000, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL MARIA

ISABEL GALLOTTI RODRIGUES, Data de Julgamento: 06/08/2010, SEXTA

TURMA, Data de Publicação: e-DJF1 p.42 de 23/08/2010.

Notória se consubstancia a proteção do direito à saúde a partir da elaboração de tal

norma. Em seu Art. 2°, estipula-se que o prazo máximo para início do tratamento é de

sessenta dias contados a partir da comprovação de que o paciente é acometido pela neoplasia

Page 278: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

278

maligna. Antes da promulgação da Lei, no ano de 2009, a média para início de tratamentos

por radioterapia, por exemplo, era de 91,3 dias, conforme dados do Tribunal de Contas da

União. A mesma pesquisa revela que no Canadá – Província de Nova Escócia - a mediana

fora de 21 dias.

Destarte as diferenças socioeconômicas entre os países, cumpre evidenciar que o

Brasil ainda tem muito a caminhar em termos de tratamentos oncológicos. Deve-se destacar

que nos casos de maior complexidade do tumor e localização do paciente, o prazo para início

dos tratamentos facilmente será aumentado. Mesmo com a apresentação de dados pelo

Ministério da Saúde em 2013, cujos afirmavam que 78% dos casos em estágio inicial da

doença tinham o início do tratamento em tempo inferior a sessenta dias, deve-se destacar que

a Lei encontra certa dificuldade para ser implementada em várias regiões do país. Nos casos

dos Estados de Amapá e Roraima, se quer há o serviço de radioterapia. No Estado de Minas

Gerais, especificamente em Juiz de Fora, há registros de sobrecarga nos centros e unidades de

assistência de alta complexidade em oncologia, dificultando a cumprimento da lei. Já no

Estado da Paraíba, em abril de 2014, o Ministério Público Federal entrou com recurso no

Tribunal Regional Federal da 5° região, para que pacientes com câncer de pulmão tivessem

seus tratamentos garantidos, e que o prazo já teria sido extrapolado, em clara afronta ao que

determina a legislação supracitada. Assim, mesmo com os investimentos do Estado Brasileiro

almejando a execução de tal norma, diversas dificuldades encontradas - distância dos grandes

centros, falta de equipamentos e profissionais habilitados para manuseio destas, médicos

especializados - colocam em cheque a eficácia da Lei do Câncer.

Outra questão a ser discutida é a contida no Art.4° da Lei 12.732/2012. Segundo este,

―os Estados que apresentarem grandes espaços territoriais sem serviços especializados em

oncologia deverão produzir planos regionais de instalação deles, para superar essa situação‖.

Assim, ficaria ao encargo de cada Estado que possuam espaçamentos territoriais

consideráveis, desenvolver projetos específicos para, por meio destes, vencerem as

dificuldades encontradas, visando assim garantir maior aplicabilidade da lei. Os principais

instrumentos para tal planejamento seriam o Plano Diretor de Regionalização (PDR), Plano

Diretor de Investimento (PDI) e Programação Pactuada e Integrada da Atenção à Saúde (PPI).

Contudo, tal artigo, buscando nitidamente uma determinação de cunho geral, acaba por falhar

ao não estipular quais as formas, os projetos e os prazos para verificação da realização de tais

planos, denotando, portanto, espaço para que as instituições não apresentem em tempo hábil o

planejamento necessário para consecução dos fins da lei.

Page 279: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

279

Outro instrumento de apoio à Lei do Câncer, o SISCAN, Sistema de Informações do

Câncer, refere-se a um sistema online que busca a facilitação na troca de informações e

gerenciamento dos dados dos pacientes aos Estados e Municípios, tendo, também, a

possibilidade de acompanhamento dos quadros de cada cidadão acometido pela patologia

oncológica. Tal sistema é interligado com o Cadastramento de Usuários do SUS e cada ente

federativo fora obrigado a implementá-lo, sob pena de terem os repasses para tratamentos

oncológicos suspensos.

Contudo, tal tutela traz consigo um questionamento: qual o custo aos cofres públicos

destes tratamentos? Segundo pesquisas, entre 2008 e 2011, os gastos públicos com

tratamentos de câncer aumentaram por volta de 51,4%, superando a marca de 2,2 bilhões de

reais. Tais valores são anteriores à vigência da Lei 12.732/2013. Para o ano de 2013, a

previsão dos gastos com cirurgias oncológicas seria de 380,3 milhões de reais. Em 2012, o

custo com internações chegou à casa dos 806 milhões de reais. Segundo o INCA, em 2007, o

Brasil gastava cerca de 1,2 bilhão por ano com tratamentos oncológicos.

Tais custos não são sentidos somente no Brasil. Segundo o jornal O Estadão, o custo

do câncer se torna cada vez mais insustentável nos países de maior poder econômico. Os

valores atingem a marca de 286 bilhões de dólares por ano, sendo, a maior parte, gastos com

os custos médicos, afetando também a produtividade destes países.

Destarte os altos custos com os tratamentos, os valores mencionados anteriormente

não vêm sendo suficientes em face aos inúmeros casos encontrados no Estado Brasileiro. De

acordo com o Diretor-Geral do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, Paulo Hoff, ao ser

questionado acerca da importância da lei, apontou-se que era necessário um aumento

substancial no aporte financeiro, em termos de investimento, para que os tratamentos sejam de

fato iniciados dentro do prazo legal. Enquanto nos Estados Unidos da América se investe

19,8% do Produto Interno Bruto em saúde, no país do futebol, o Brasil, tal marca atinge o

valor impressionante de 8,7%.

A lei, que foi impulsionada pela bancada feminina da Câmara dos Deputados e

sancionada pela Presidente da República em novembro de 2012, representa um avanço

urgente e de extrema necessidade para, primeiramente, cidadãos de classe econômica baixa e

que não podiam arcar com o ônus de um tratamento adequado da rede hospitalar particular.

Tal situação levava os cidadãos, mais necessitados de recursos públicos para subsistência de

direitos básicos, a uma fila que, na maioria dos casos, não chegava a receber o tratamento

adequado e vinha a falecer. Contudo, apesar dos avanços que a referida lei apregoa, devem ser

feitas algumas considerações quanto aos obstáculos encontrados pela mesma.

Page 280: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

280

6 DEMAIS OBSTÁCULOS ENFRENTADOS PELA LEI N° 12.732/12

De acordo com o artigo 2°, da referida lei em estudo, o prazo para início do

tratamento da neoplasia maligna será de até 60 dias contados a partir do dia em que for

firmado o diagnóstico em laudo patológico ou em prazo menor. Entretanto, o Ministério da

Saúde emitiu a Portaria n° 876/13 alegando que a data começa a contar a partir do registro do

diagnóstico no prontuário do paciente. Entrando em desacordo com o que dispõe a Lei

12.732/12.

A sutil mudança representa uma diferença gigantesca para o paciente. Isso porque,

via de regra, o registro do diagnóstico do prontuário ocorre no momento da consulta com o

médico, que pode ocorrer muitos dias depois de o paciente já estar com o laudo patológico em

mãos. Até mesmo para fazer os exames, e ter em mãos o laudo patológico, pode levar

semanas, meses, quiçá anos. Então quem diria para marcar uma consulta com o médico para,

enfim, ter o registro do diagnóstico no prontuário e a partir daí começar a contar o prazo para

tratamento da neoplasia maligna.

Tal portaria é uma afronta à dignidade e um desrespeito contra o ser humano.

Nesse diapasão, a Bancada Feminina da Câmera dos Deputados efetuou um

requerimento de informações, no dia seis de março de dois mil e catorze, questionando a

portaria do Ministério da Saúde e o seu desacordo com os ditames da lei 12.732/12.

Outra dificuldade a ser enfrentada pela Lei 12.732/12, é no tocante a estrutura dos

hospitais para receber esse tratamento. Atualmente, segundo dados do Instituo Nacional do

Câncer (INCA), o Brasil dispõe de 277 hospitais, centros e institutos habilitados a realizar os

procedimentos de oncologia pela rede pública. Há, entretanto, estados em que apenas existe

um local para tratamento, são eles: Acre, Amapá, Amazonas, Roraima e Piauí.

Logo, a questão que se coloca é no tocante à situação daqueles cidadãos que não

possuem um hospital, centro ou instituição perto de sua localidade ou, ainda pior, se esses

locais de tratamento na cidade ou estados vizinhos, por exemplo, estão superlotados. Isso tudo

fazendo com que pessoas viajem milhares de quilômetros em busca de atendimento

especializado.

Segundo o Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, em entrevista para a Globo News,

em maio de 2013, afirmou que os investimentos estão sendo feitos, contudo, é mais do que

necessário uma organização estatal e municipal dos hospitais.

Page 281: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

281

Nesse tocante, o art. 4° já impõe à Administração Pública a necessidade de um plano

de instalação dos serviços especializados em oncologia. Isso, se não cumprido, incorrerá em

uma penalidade administrativa dos gestores. Entretanto, aqui defendemos uma sanção penal,

pois, mesmo tendo em vista o princípio penal da intervenção mínima, além de que o Estado

deve ser visto como ultima ratio. acreditamos que, por se tratar de direito fundamental à

saúde, deve ser colocado em primeiro plano, até mesmo em relação a dotações orçamentárias

para entretenimento, como, por exemplo, a Copa do Mundo.

Deve-se ressaltar que, tendo entrado em vigor em 22 de maio de 2013, a lei em

estudo já teve, no dia 15 do mesmo mês e ano, uma apreciação do Ministério Público Federal.

Atento ao cumprimento da lei, o ParquetFederal oficiou ao Ministério da Saúde e as

Secretárias de Saúde de todos os estados brasileiros para saber quais as providências que o

Poder Público estaria adotando para se adequar a Lei 12.732/12. Além disso, questionou a

média do prazo para obtenção do diagnóstico de neoplasia maligna no SUS, tendo em vista

que o tempo entre o aparecimento dos sintomas e o diagnóstico pode ser deveras acentuado.

7 CONTRAPONTO ENTRE ENTRETENIMENTO E OS ENTRAVES

ORÇAMENTÁRIOS PARA GASTOS COM O TRATAMENTO DA NEOPLASIA

MALIGNA

Em face de outro direito social, o lazer, o Poder Público se vale de gastos em massa

com entretenimento para a população, realizando eventos musicais expressivos, como as

festas de carnaval, e eventos esportivos, como a Copa do Mundo.

Os gastos, na grande maioria das vezes, absurdos com atrações musicais em época de

festas, mais precisamente as carnavalescas, destoa como contrassenso ao argumento da

impossibilidade de um planejamento adequado de assistência médica por conta da falta de

recursos. Ora, gasta-se milhões com shows e publicidade, mas não há receita para despesas

com a saúde?

Com efeito, o Juiz Antônio Carneiro de Paiva Júnior, titular da 4ª Vara da Fazenda

Pública de João Pessoa, e após receber uma ação civil movida pelo Ministério Público,impôs a

imediata suspensão do pagamento de qualquer despesa relativa à propaganda e publicidade oficial

da prefeitura de João Pessoa. Por conseguinte, ordenou a suspensão de pagamento de despesas

relativas a eventos festivos de qualquer natureza. Tal fato se deu em 14 de fevereiro de 2014, por

conta da não aquisição de medicamentos para os portadores de câncer.

Page 282: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

282

As pessoas acometidas pela doença estavam indo até o Judiciário requerer medidas contra

o Poder Público para que o mesmo tome providências para que eles continuem vivos. É uma

situação a qual desrespeita não só todo o ordenamento jurídico, mas, sobretudo, a moralidade

pública e a dignidade humana.

No tocante a Copa do Mundo, temos uma situação na qual os investimentos foram em

pouco mais de catorze bilhões de reais, com previsão de chegar até quase vinte e seis bilhões de

reais. Contudo, a grande pergunta está no legado que tanto investimento irá trazer para o Brasil.

É bem verdade que boa parte dos gastos foram realizados a partir de financiamentos do

BNDS, o qual há a previsão de serem pagos. Entretanto, o que se está a questionar é o momento de

realizar-se a Copa e se há, efetivamente, o real interesse público na realização da mesma.

Tomemos como exemplo o caso dos estádios. Segundo dados do portal da transparência

da Copa, gastou-se próximo a oito bilhões de reais só na criação, reformulação e reestruturação.

Ora, mesmo que em até vinte anos parte do dinheiro retorne, o recurso que de imediato se necessita

para se estruturar estados e municípios, principalmente da região Norte para que se adequem à Lei

12.732/12, é algo que não tem e lastimavelmente deixa o cidadão ―à própria sorte‖. Ademais, as

reivindicações públicas do ano de 2013 já demonstraram a reprovação do povo brasileiro em vários

aspectos, entre eles o da realização de megaeventos, como a Copa do Mundo.

CONCLUSÃO

Ao longo do estudo, destacou-se o caráter fundamental da saúde e sua correlação com a

vida digna, o qual necessita de prestações de natureza positiva para sua devida concreção.

Ademais, verificou-se que os avanços trazidos pela Lei 12.732/12 ainda encontram alguns

obstáculos para sua plena eficácia.

Com efeito, a lei inova ao impor o tratamento da doença em até 60 dias, contudo, mesmo

levando-se em consideração o disposto na lei (contagem do prazo a partir do laudo patológico) e

não o disposto na portaria ministerial (contagem do prazo a partir do diagnóstico do prontuário),

percebe-se que a dificuldade em simplesmente marcar uma consulta, é algo que pode levar dias,

semanas, meses ou mais.

Ou seja, o cidadão que já possui a doença, mas que ainda não foi de fato detectada,

incorrerá em sérios riscos de não conseguir acompanhar o tratamento, se este não for iniciado a

tempo.

Tal constatação não é uma falha da referida legislação em si, mas de todo sistema de

saúde que ainda é bastante precário em atender a demanda. Isso nos leva a questionar a atuação dos

Page 283: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

283

representantes da Administração Pública e seus desempenhos na forma de executar os gastos

públicos que, mesmo tendo os respectivos padrões legais mínimos a serem seguidos, ainda

possuem uma alta discricionariedade em investir em setores de interesse público.

Nesse escopo, o debate mencionado em tópico anterior, sobre gastos com entretenimento

e o tratamento da neoplasia maligna, nos remonta a noção de que o montante de recursos utilizados

para os referidos eventos, até mesmo os superfaturados de que se tem notícia, afrontam com o

interesse público. Ora, no tocante a Copa do Mundo, é melhor termos estádios ou um sistema de

saúde que possa atender, não só os debilitados pela patologia em estudo, mas toda e qualquer

necessidade já assegurada pela nossa Lei Maior e, por via de corolário, as outras leis

infraconstitucionais?

Essa pergunta pode ser respondida a partir de uma maior participação popular nas

tomadas de decisões, entretanto, uma reforma política se faz necessária e, desde já, os cidadãos

podem opinar e acompanhar o projeto de lei sobre o tema a partir de buscas na plataforma digital

da Câmara dos Deputados.

Apesar de tudo, a Lei 12.732/12 é uma decisão cautelosa e útil que, conforme

demonstrado, possui a atenção da Bancada Feminina da Câmera dos Deputados e do Parquet

Federal em buscar uma eficácia do dispositivo legal e, por consequência, do respaldo do direito à

saúde para todos.

REFERÊNCIAS

Custos com tratamento do câncer aumentarão oito vezes nos próximos anos e sairá sete vezes

mais caro que ações de prevenção. Disponível em:

http://www.inca.gov.br/releases/press_release_view.asp?ID=1600. Acesso em: 20/04/2014

Estimativa 2014: Incidência de Câncer no Brasil. Instituto Nacional de Câncer José Alencar

Gomes da Silva, Coordenação de Prevenção e Vigilância. Rio de Janeiro: INCA, 2014.

Disponível em: http://www.inca.gov.br/estimativa/2014/estimativa-24042014.pdf. Acesso em:

02/05/2014.

MPF recorre para assegurar tratamento de portadores de câncer na Paraíba. Dados disponíveis em:

http://www.prpb.mpf.mp.br/news/mpf-recorre-para-assegurar-tratamento-de-portadores-de-

cancer-na-paraiba. Acesso em: 10/04/2014

Page 284: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

284

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed.

Coimbra: Almedina, 1994.

DINIZ, Kelly. Juiz de Fora descumpre lei e falha na assistência de pacientes com câncer.

Tribuna de Minas, 26 de abr. de 2014. Dados disponíveis em:

http://www.tribunademinas.com.br/cidade/jf-descumpre-lei-e-falha-na-assistencia-apacientes-

com-cancer-1.1452250. Acesso em: 03/05/2014.

HERKENHOFF, João Baptista. Gênese dos direitos humanos. 2. ed. Aparecida: Santuário,

2002.

MARA, Ana Claudia. ONU: quanto se gasta com saúde no mundo por habitante e por PIB.

Disponível em: http://www.humanosdireitos.org/noticias/denuncias/619-ONU--quanto-se-

gasta-com-saude-no-mundo-por-habitante-e-por-PIB.htm. Acesso em: 03/05/2014.

MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIEIRO, Daniel. SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de

Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

MARTINS, Rodrigo. MARTINS, Miguel. Impasse Crônico. Carta Capital: 05 jan. 2014.

Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/revista/775/impasse-cronico-9053.html.

Acesso em: 20/04/2014.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35. ed. São Paulo:

Malheiros, 2012.

TORRES. Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. v. 3. Rio

de Janeiro: Renovar, 1999.

YOUNES. Riad. As filas da radioterapia. Carta Capital, 19 jan. 2014. Dados disponíveis em:

http://www.cartacapital.com.br/revista/783/as-filas-da-radioterapia-8420.html. Acesso em:

21/04/2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Brasília,

DF, 05 out. 1988. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

BRASIL. Lei Federal n° 12.732, de 22 de novembro de 2012. Dispõe sobre o primeiro

tratamento de paciente com neoplasia maligna comprovada e estabelece prazo para seu início.

Diário Oficial da União. Brasília, DF, 23 nov. 2012. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12732.htm.

Page 285: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

285

O DIREITO À SAÚDE E A QUALIDADE DOS MEDICAMENTOS

GENÉRICOS

Anaïs Eulálio Brasileiro1

Elis Lucena Formiga2

Milena Barbosa de Melo3

Sumário: 1 Introdução. 2 Declaração de Doha e o direito à saúde. 3 A produção e a

proteção de medicamentos como parte do acesso à saúde. 4 Direito aos

medicamentos de qualidade como parte da garantia do direito à saúde. Conclusão.

Referências.

1 INTRODUÇÃO

O direito à saúde integra o conceito de qualidade de vida, porque as pessoas em bom

estado de saúde não são as que recebem bons cuidados médicos, mas sim aquelas que moram

em casas salubres, comem uma comida sadia, em um meio que lhes permite dar à luz, crescer,

trabalhar e morrer.Conforme o artigo 25º da Declaração Universal de Direitos do Homem, o

acesso à saúde se torna garantia essencial para o indíviduo, como condição indispensável da

existência humana. Restando, portanto, ao poder estatal assegurar de todas as formas, o bem-

estar social.

A história demonstra que as doenças sempre afligiram o homem. Na atualidade, há,

dentre outras, a HIV/SIDA (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) e o câncer. São

doenças que desafiam a ciência, em virtude de sua complexidade e, até o momento, da

incapacidade de demonstrar resultados que favoreçam encontrar a cura de tais doenças, por

isso, os tratamentos são muitas vezes ineficazes além de extremamente onerosos.

A relação entre propriedade intelectual e saúde pública tem atraído controvérsias tanto

nos países desenvolvidos, como nos países em desenvolvimento. Todavia, insta ressaltar que a

grande problemática pode ser identificada, em grande parte, nos países em desenvolvimento,

nomeadamente aqueles situados na África, em virtude das grandes epidemias que ocorrem nos

países e que, acabam acarretando milhares de vítimas, já que os estados não possuem recursos

financeiros suficientes capazes de combater as enfermidades e ainda, a população de tão

1 Graduanda em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas.

2 Mestranda em Desenvolvimento Regional pela Universidade Estadual da Paraíba; Especialista em Processo

Civil pela UNINTER; Pós-graduanda em Direitos Fundamentais e Democracia pela UEPB. 3 Doutoranda em Direito Internacional pela Universidade de Coimbra, Portugal; Mestra em Direito Comunitário

pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Processual e em Direito Comunitário; Professora da

Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (FACISA); Orientadora

do Núcleo de Estudos de Direito Internacional e Direitos Humanos da FACISA; Consultora Jurídica.

Page 286: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

286

carente, não dispõe de recursos financeiros para suprir as necessidades que surgem com as

enfermidades.

Sendo assim, pode ser confirmado que a inovação farmacêutica é parte essencial dos

esforços para melhorar a qualidade de vida e salvar seres humanos em todo o mundo. Nesse

aspecto convém observar que o processo de produção de medicamentos envolvem elementos

importantes da economia, pois compreendem o desenvolvimento do medicamento em si e

ainda, tanto produção como a comercialização.

Discute-se incansavelmente que o acesso aos medicamentos é desrespeitado em

virtude das arbitrariedades das empresas farmacêuticas e isso ocorre justamente em virtude da

falta de políticas públicas proativas, progressivas e preventivas por partes dos Estados na área

de medicamentos. Por isso, podem ser identificados problemas mais no âmbito nacional dos

países, no que tange às políticas públicas, para atingir o anseio da coletividade, do que no

âmbito internacional, já que não existem mecanismos impositivos para o país fazer ou deixar

de fazer determinada atividade.

Nesse contexto, se desenvolveu fortemente o mercado de medicamentos genéricos no

mundo, de forma a gerar competitividade asseverada com os medicamentos de referência. O

problema dos genéricos não se resume apenas na permissão ou proibição de sua produção, vai

um pouco além, mais precisamente, no que tange à qualidade dos medicamentos, já que a

imitação de tecnologia para atender às necessidades locais é muitas vezes a base de um setor

da investigação e desenvolvimento local independente.

Atualmente tem se discutido essa questão nos medicamentos fabricados na Índia, na

China e ainda, no Brasil, quando se trata de medicamento similar. Sendo assim, os países

emergentes se destacam no mercado de medicamentos no mundo, mas, contudo, existem

indícios sobre má qualidade dos medicamentos colocados no mercado. Com o intuito de

reduzir os custos dos medicamentos e, consequentemente, o valor final (preço trabalho pelas

empresas para o acesso pelo consumidor), as empresas acabam por investir pouco, de forma a

não aplicar boas práticas de fabricação de genéricos, já que irá substituir por ingredientes mais

baratos.

Desta maneira, emerge a situação-problema: A fabricação de medicamentos genéricos

em países da periferia global é um obstáculo para o direito à saúde? Tendo em vista a

problemática apresentada, este trabalho tem como objetivo geral: Analisar se a fabricação dos

medicamentos genéricos é um obstáculo para o direito à saúde e, como objetivos específicos:

Identificar se os medicamentos genéricos são obstáculos para o direito à saúde; Verificar se há

existência de casos de medicamentos de má-qualidade no cenário internacional e Averiguar o

Page 287: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

287

posicionamento das organizações internacionais acerca da entrada de medicamentos sem

qualidade no mercado.

Deste modo, a pesquisa que se encaminha tem como pano de fundo doutrina no

campo do Direito Internacional do Desenvolvimento, base de dados e os documentos das

entidades que compõem o sistema onusiano e demais associações vinculados ao tema, a

exemplo do OMS, OMPI, OMC, notícias jornalísticas, bem como a Declaração Universal dos

Direitos Humanos, Acordo TRIPS OMC, Declaração de Doha sobre acesso à saúde.

2 DECLARAÇÃO DE DOHA E O DIREITO À SAÚDE

Segundo Duarte (1994), o direito à saúde integra o conceito de qualidade de vida,

porque as pessoas em bom estado de saúde não são as que recebem bons cuidados médicos,

mas sim aquelas que moram em casas salubres, comem uma comida sadia, em um meio que

lhes permite dar à luz, crescer, trabalhar e morrer.

Sendo assim, saúde de qualidade é uma meta que os países, em escala global e ainda,

no âmbito do desenvolvimento sustentável, desejam alcançar.Um alto nível de saúde constitui

um elemento fundamental para o bem-estar, pois, como defendem Machado e Raposo (2010),

é a partir da boa saúde que os indivíduos têm condições de efetivar os demais direitos

humanos, nomedamente, habitação, nutrição, dignidade, educação.

De maneira geral, os aspectos da saúde nos países desenvolvidos são bem melhores do

que nos países em desenvolvimento. Analisando os dados sobre as causas da mortalidade,

obervou-se que as causas de desnutrição concorrem com as doenças infecciosas, como por

exemplo: a tubercolose, AIDS/HIV e malária.

Dessa maneira, pode ser observado que o direito à saúde reveste características de

enquadramento nos direitos humanos, que remontam à própria carta das Nações Unidas,

nomeadamente em seus artigos 55º e 56º e ainda, na Declaração Universal de Direitos do

Homem, estabelecendo critérios de bem-estar social, respeito aos direitos humanos, progresso

econômico, social, enfatizando, portanto, nos elementos de direito à saúde. Nesse sentido,

Jónatas Machado e Vera Lúcia Raposo (2010) observam que:

―No rescaldo da II Guerra Mundial, e da miséria humana que dela resultou, as

sementes do direito à saúde foram lançadas na Carta das Nações Unidas, com a sua

ênfase, inscrita nos artigos 55º e 56º, no bem estar dos povos, no respeito pelos

direitos humanos, no progreso econòmico e social e na reoslução de problemas

econômicos e sociais, incluindo a saúde. Ele foi desde o início consagrado na

Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo 25º, integrando a matriz

Page 288: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

288

originária do direito internacional dos direitos humanos no século XX‖ (Machado e

Raposo 2010. P. 11)

Conforme o artigo 25º da Declaração Universal de Direitos do Homem, o acesso à

saúde se torna garantia essencial para o indíviduo, como condição essencial da existência

humana digna. Restando, portanto, ao poder estatal assegurar de todas as formas, o bem-estar

social. Nessa mesma linha de proteção à saúde identifica-se o Pacto de Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais, mais especificamente em seu artigo 12º as seguintes diretrizes:

―Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de

gozar do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir. 2. As medidas

que os Estados Partes no presente Pacto tomarem com vista a assegurar o pleno

exercício deste direito deverão compreender as medidas necessárias para assegurar:

a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o são

desenvolvimento da criança; b) O melhoramento de todos os aspectos de higiene do

meio ambiente e da higiene industrial; c) A profilaxia, tratamento e controlo das

doenças epidémicas, endémicas, profissionais e outras; d) A criação de condições

próprias a assegurar a todas as pessoas serviços médicos e ajuda médica em caso de

doença‖. No cenário internacional dispomos de outros instrumentos normativos que

se preocupam com o direito à saúde, nomeadamente: Convenção para eliminação de

todas as formas de discriminação Racial de 1965, Convenção de Discriminação

contra as Mulheres de 1979, Convenção dos Direitos da Criança de 1989, Protocolo

Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos no domínio dos Direitos

Econômicos, Sociais e Cultutrais de 1988.como instrumento internacional que se

preocupa com o direito à saúde‖.

Nesse aspecto, torna-se interessante observar que, no momento em que se amplia o

conceito de direito à saúde, estão sendo esclarecidos alguns aspectos essenciais do direito ao

desenvolvimento, já que se observa que saúde pública também faz parte do setor de interesse

do Estado, por se tratar de Direitos Humanos (CARVALHO, 2011). Dessa maneira. Winslow

observa que:

A ciência e a arte de prevenir as enfermidades, prolongar a vida e promover a saúde

e a eficiência, mediante o esforço organizado da comunidade, para a) saneamento do

meio ambiente; b) controle das doenças transmissíveis; c) educação dos indivíduos

na higiene pessoal; d) organização dos serviços médicos e de enfermagem para o

diagnóstico precoce e o tratamento preventivo de enfermidades; e) desenvolvimento

de um mecanismo social que assegure a cada um nível de vida adequado para a

conservação da saúde, organizando estes benefícios de tal modo que cada cidadão se

encontre em condições de gozar de seu direito natural à saúde e à longevidade.

(WINSLOW apud ACOSTA, R.T.K 1993 p 7-8)

A história demonstra que as doenças sempre afligiram o homem. Na atualidade, há,

dentre outras, a HIV/SIDA (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) e o câncer. São

doenças que desafiam a ciência, em virtude de sua complexidade e, até o momento, da

Page 289: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

289

incapacidade de demonstrar resultados que favoreçam encontrar a cura de tais doenças, por

isso, os tratamentos são muitas vezes ineficazes além de extremamente onerosos.

A característica internacional do Direito à saúde é possível quando se visualiza o

elemento extraterritorial que contamina o indivíduo, ou seja, quando o indivíduo ultrapassa as

fronteiras de seu território, levando consigo o risco de pandemia, que gera consequentemente,

a preocupação por partes das organizções internacionais em conter esse problema, para que

não saia do controle.

Nesse aspecto se identifica a relação da saúde com o direito sustentável, pois o papel

precípuo do desenvolvimento sustentável é melhorar a qualidade de vida da população sem,

no entanto, aumentar o uso dos recursos ambientais. No entanto, para que essa ligação ocorra

é necessário que haja ação equilibrada para o crescimento econômico dos recursos naturais,

do meio ambiente e o desenvolvimento social, de forma que se não há renovação para o

caminho do desenvolvimento, logo não será possível falar em desenvolvimento sustentável

(WHO, 2001).

A questão em comum que gera afinidade entre propriedade intelectual e saúde pública,

vem sendo discutidas não apenas nos países desenvolvidos, como também nos países em

desenvolvimento. Nos países da África, especificamente, a grande problemática pode ser

identificada em virtude das grandes epidemias que ocorrem, afetando milhares de vítimas.

Não existem recursos suficientes para combater esta situação e, a população não dispõe

também de condições para suprir as necessidades que surgem com as enfermidades.

Nessa perspectiva Dutfield observa que:

High-profile pandemics likes HIV/AIDS understandable attract considerable

attention.Millions of peple have died of this terrible diseade-2.6 million in 2003 and

2,8 million in 2005, of which sub-saharan Africa contributed 1.9 million and 2,0

million respectively (DUTFIELD, 2008, P. 312).

Diante desse contexto, o direito à saúde corresponde não apenas ao atendimento

médico e hospitalar (mão de obra humana especializada), mas também o acesso a

medicamentos, por isso deve ser aprimorado de acordo com o desenvolvimento social,

tecnológico e científico.

Os medicamentos constituem um dos instrumentos mais eficazes do arsenal

terapêutico disponível para prevenir, curar ou atenuar diversas enfermidades. Por tudo isso

representa um elemento bastante importante da política sanitária e administrativa. São hoje

considerados produtos de primeira necessidade, pois transcendem os direitos civis para

alcançar o patamar da coisa pública (MARQUES, 2013).

Page 290: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

290

Nesse sentido, o acesso a medicamentos corresponde a um dos elementos para a

completude do direito à saúde e como tal deve ser respeitado e colocado à disposição da

sociedade, principalmente de modo preventivo, evitando-se, desta forma, problemas de difícil

ou prolongada solução (CARVALHO, 2011).

Por isso, pode-se afirmar que o direito ao acesso a medicamentos difere dos demais

direitos relacionados à saúde, pois nesse, envolve interesses públicos e privados, já que se

trata de uma concessão de serviço que deve ser feita pela administração pública, pois é

enquadrada como elemento legal fundamental para o indivíduo e para que sua função de

mantenedor das necessidades da população seja alcançada e ainda, na seara privada, envolver-

se-ão nomeadamente, pesquisa, investimento e desenvolvimento na fabricação de produtos

farmacêuticos.

Sendo assim, pode ser confirmado que a inovação farmacêutica é parte essencial dos

esforços para melhorar a qualidade de vida e salvar seres humanos em todo o mundo. Essa

inovação não só beneficia os doentes, como também previne novas doenças. Além disso, é

muito importante para o sistema de saúde de um país, por trazer soluções para diferentes

problemas de saúde pública. Consequentemente, permite uma utilização mais eficiente dos

recursos, resultando em enormes economias para o setor (MARQUES, 2013).

3 A PRODUÇÃO E A PROTEÇÃO DE MEDICAMENTOS COMO PARTE DO

ACESSO À SAÚDE

O processo de produção de medicamentos envolve aspectos extremamente importantes

da economia, pois compreendem o desenvolvimento do medicamento em si e ainda, produção

e comercialização do medicamento. Nessa perspectiva Huveneers observa que:

Le développement comporte d´abord la phase de la recherché thérapeutique: la

synthèse de nouvelles molécules, c`esta-à-dire la production d´une substance ou

d´une composition chimique à l´échelle du laboratoire. La synthèse est suivie d´une

analyse de la pureté et de la stabilité des nouvelles molécules, puis de leur screening,

c´est-à-dire de l´étude de leur comportement à l´aide de tests pharmacologiques et

biologiques.Au niveau de la production, il faut distinguer la production du principe

actif de sa mise eu forme galénique. Le stade du lancement et la commercialisation

sont la promotion auprès du corps medical par les equips de délégués médicaux des

firmes pharmaceutiques.Ces activités de promotion sont fort coúteuses.

(HUVENEERS, 2000. P. 17-18)

Diante do exposto, as questões relacionadas com a entrada de medicamentos no

mercado se tornam bem complexas, em virtude dos interesses que surgem na relação:

Page 291: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

291

empresa-estado-indivíduo. Há quem defenda a irrelevância da proteção patentária dos

medicamentos no âmbito do direito ao desenvolvimento, visto que os custos de investimentos

são altos, situação que reduz o acesso aos medicamentos.Nessesentido, observa-se o

estabelecidoporKrishna:

Patents are irrelevant for the development of the products needed to address the

diseases prevailing in developing nations…. The extension of pharmaceutical patent

protection to developing nations, mandated by TRIPS Agreement, can do very little

to prompt the development of such products, while it generates costs in terms of

reduced access to the outputs of innovation.(Krishna, 2006, p.10)

Todavia, as questões relacionadas com o acesso aos medicamentos são agravadas pela

presença dos laboratórios farmacêuticos, pois, de certa forma, acabam monopolizando as

atividades de produção dos medicamentos e por isso, as empresas farmacêuticas são

constantemente criticadas, já que o foco acaba se voltando mais para acumulação de capital e

menos para as questões humanitárias.

As críticas que giram em torno das patentes de medicamentos estão baseadas numa

política excludente, pois haverá indisponibilidade dos fármacos de maneira equitativa (países

desenvolvidos e países em desenvolvimento). Dessa maneira, resta analisar se existe uma

forma de conciliar o apelo do bem estar da sociedade com a idéia geral de propriedade.

A situação da patente de medicamentos se torna mais complexa quando alargamos o

campo de visualização para o cenário internacional, pois se encontram em jogo, os interesses

distintos de países diversos. Assim, como forma de consolidar as questões referentes às

patentes de maneira uniforme no cenário internacional, alguns acordos e tratados foram

estabelecidos entre vários países com o intuito tanto de facilitar os processos de

patenteabilidade no âmbito interno de cada país, quanto de reestabeleceras políticas e relações

internacionais entre os países.

O acordo TRIPS, segundo Carvalho (2011), representa uma proteção mínima e que

por isso deve ser complementada por atividades desenvolvidas pelos Estados-membros, pois

deve existir a contrapartida do estado para a consecução das necessidades essenciais da

população através do princípio da progressividade. Nesse sentido, Carvalho observa que:

Reitere-se a importância da compreensão e da atuação voltadas para a realização de

políticas públicas que proporcionem desenvolvimento progressivo e sustentável, por

meio do respeito ao direito humano e fundamental que é o acesso a medicamentos,

mesmo porque as maiores necessidades e gastos orçamentários, referentes à política

sanitária, relacionam-se ao fornecimento de medicamentos. (CARVALHO, 2011, p.45)

Page 292: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

292

Portanto, os estados-membros irão utilizar as flexibilidades disponibilizadas no

cenário jurídico internacional, mas deverão cumprir com uma contrapartida, ou seja, deverão

contribuir com atividades positivas por parte do Estado.

É importante levar em consideração que os Estados, em especial, os em vias de

desenvolvimento não detém conhecimento técnico-científico suficiente para iniciar um

processo de produção de medicamentos, situação que prejudica o país no tocante ao acesso à

saúde através ao acesso de medicamentos. Dessa maneira, a única alternativa viável para a

consecução dos objetivos do Estado de direito é recorrer a alternativas oferecidas pela a

ordem jurídica internacional, que irão sedimentar o sistema de cooperação internacional, em

especial, as licenças compulsórias.

Pela própria essência, as patentes exigem um reembolso financeiro para que exista o

retorno devido sobre os valores pecuniários investidos nas descobertas dos medicamentos.

Nesse sentido, os medicamentos estão no patamar mais alto das discussões sobre propriedade

intelectual e desenvolvimento, no âmbito internacional. Os preços trabalhados pelas empresas

farmacêuticas chegam de certa forma a serem abusivas e, em virtude da necessidade da

própria população, existe a necessidade da interrupção desse monopólio, para que ocorra a

socialização desse medicamento.

Nesse sentido, Correa observa a problemática da necessidade ao acesso aos

medicamentos por parte da população, em diversificadas regiões do mundo:

With more than 30 million people living with HIV, most of them in the poorest

regions of the world, the need toaddress the problem of access to patented medicines

has emerged as a global priority. While it is true, as argued by the pharmaceutical

industry, that other factors such as infrastructure and professional support play an

important role in determining access to drugs, it is also true that the prices resulting

from the existence of patents ultimately determine how many will die from AIDS

and other diseases in the years to come.(CORREA, 2005, p57)

A crise da AIDS/SIDA, em todo mundo, trouxe essa necessidade de bloqueio das

atividades das empresas de medicamentos e começou a ser discutido sobre a real necessidade

de existir proteção jurídica aos produtos farmacêuticos, visto que a população, independente

da sua localização geográfica, necessita de medicamentos para sobrevivência e que, a patente

iria apenas limitar esse acesso. Nesse contexto sobre as estatísticas da incidência do HIV no

mundo, observa-se que:

―More than 35 million people now live with HIV/AIDS; 3.3 million of them are

under the age of 15; In 2012, an estimated 2.3 million people were newly infected

with HIV; 260,000 were under the age of 15; Every day nearly 6,300 people contract

Page 293: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

293

HIV—nearly 262 every hour; In 2012, 1.6 million people died from AIDS; 210,000

of them were under the age of 15; Since the beginning of the epidemic, more than 75

million people have contracted HIV and nearly 36 million have died of HIV-related

causes‖ (AMFAR FOUNDATION, 2013)

Diante desse panorama de combate à AIDS/SIDA, o Brasil foi o precursor, quando se

utilizou da edição de uma legislação interna para comercializar o medicamento Efavirenz -

antirretroviral produzido pelo Laboratório Merck Sharp &Dohme, detentor da patente, usado

no combate ao vírus SIDA/AIDS.

Com a incorporação do acordo TRIPS no ordenamento jurídico brasileiro, o Brasil

passou a conceder patentes para medicamentos e, com isso, não foi mais possível fabricar os

medicamentos genéricos sem o pagamento dos royalties aos titulares das patentes, situação

que sobrecarregou os cofres públicos brasileiros. Sendo assim, tendo por base o interesse

coletivo e a emergência no que tange a população portadora do HIV/SIDA, o Brasil decidiu

requerer a licença compulsória com base no interesse público e ainda, no abuso de poder

econômico Berg (2007).

Contudo, apenas com a ameaça do pedido de licença compulsória houve redução em

64% do valor do medicamento de referência, pois a empresa em pauta sabia que o Brasil

dispunha de tecnologia suficiente para produzir medicamentos genéricos. Posteriormente, a

empresa de medicamentos voltou a operar o produto com altos preços, de forma que o Brasil

anunciou a intenção de comprar os medicamentos destinados ao combate da enfermidade, no

formato genérico, da Índia. Apesar de ter havido contraproposta da empresa interessada, para

uma redução de 30%, o Brasil observou que não atendia aos interesses públicos do país.

Dessa forma a partir do decreto 6108 foi anunciada a permissão do instrumento

jurídico e, desde então o país iniciou o processo de importação paralela da empresa de

medicamentos genéricos, situada na Índia e os royalties do grupo Merck, em relação a

importação do produto similar indiano, ficou em 1,5% do valor do medicamento na Índia.

No mês de março do ano de 2012, a Índia concedeu a primeira licença compulsória

para um medicamento produzido pela Natco Pharma, visto que no sistema jurídico Indiano

permitia solicitar licenças compulsórias independentemente do controle patentário.

(BECKETT; POUNTNEY 2013).

Importa ressaltar ainda que, apesar de outros fatores existirem para a dificuldade de

acesso aos medicamentos por países em desenvolvimento e com menor desenvolvimento

relativo, o preço dos medicamentos se torna a pedra angular do problema. Nessesentido

Bergobservaque:

Page 294: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

294

For example, at the time that a year‘s supply of a combination of AIDS drugs cost

more than $10,000 in the United States under patent, Indian generic producers

offered a similar combination for around $300. Although other factors have

contributed to the unavailability of essential medicines, for some medicines prices

have clearly been part of the problem.(BERG, 2013)

O desafio central desse problema foi tentar conciliar os interesses econômicos e o

direito fundamental à saúde, pois existe um vínculo direto com os custos da pesquisa e

desenvolvimento e as perspectivas de mercado. Assim, sendo o medicamento um bem

essencial, de saúde pública, deve-se, portanto, ser tratado com prioridade e, assim, estabelecer

políticas que garantem o acesso aos medicamentos para a população (HERINGER 2007).

Diante do exposto, a princípio pode ser observado um conflito de direitos

fundamentais, nomeadamente o direito à propriedade e o direito à saúde, representado pelo

acesso aos medicamentos. Todavia, ao estabelecer uma equação entre os dois elementos

jurídicos, logo se verificam as vantagens e desvantagens que surgem com a licença

compulsória, que segundo André Ramos seria uma valoração comparativa dos direitos em

conflito:

consiste na valoração comparativa entre, de um lado, as vantagens de uma medida e,

de outro, o sacrifício exigido a um direito fundamental. A análise do custo e

benefício tem que ser feita para evitar medidas desequilibradas, que geram mais

transtornos aos titulares dos direitos restringidos que benefício geral‖. (RAMOS

2005, p.19)

E ainda, em relação ao equilíbrio entre os direitos, o mesmo autor pontua que:

Resta a análise da proporcionalidade entre a restrição de um direito (meio) e o

benefício de outro (finalidade), utilizando-se os três elementos do juízo de

proporcionalidade (idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).

Logo, na colisão entre direitos, deve-se impedir que um direito seja sacrificado

inutilmente, além do necessário ou de forma desequilibrada. (RAMOS, 2005, p.47)

Sendo assim, ao verificar os quesitos da proporcionalidade, pode ser observado que o

acesso à medicamentos, se enquadra na questão da coletividade, ou seja, da necessidade de

uma parcela da população que não dispõe de recursos financeiros suficientes para adquirir

determinados medicamentos, identificando-se, portanto a relevância social do direito.

Em contrapartida, o direito de propriedade inerente a patente farmacêutica, está

voltado para uma questão individual, excluindo, portanto, uma grande parcela da população,

já que os benefícios serão restritos a uma pequena parcela. Por isso, ao estabelecer essa

balança, em busca do equilíbrio dos interesses, se verifica que, o direito à saúde se torna, de

Page 295: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

295

fato, um elemento de destaque, pois não deve ter condicionante e por isso, mesmo sendo uma

norma programática na maioria das constituições, ainda deve ter prioridade em detrimento de

outros direitos elencados nas constituições dos países.

Observa-se também, que o próprio acordo TRIPS estabelece em seu texto a

possibilidade de utilização de medidas diversas (incluindo a licença compulsória) para que o

País possa promover a saúde pública através do acesso à medicamentos. E, apesar da

Declaração de Doha estabelecer questões sobre o Direito à saúde, não houve em seu texto, a

colocação clarificada da possibilidade de se utilizar das licenças compulsórias para que o país

pudesse promover a saúde pública.

A Declaração de Doha afirmou apenas, que os países signatários cumprissem as

determinações expostas no Acordo TRIPS, situação que gerou um enrijecimento das normas

protetivas das patentes de medicamentos, dificultando assim, o estabelecimento de um

mercado de consumo tanto interno, como em âmbito internacional. Assim, em 2003, o

conselho ministerial da OMC aprova a exportação de medicamentos através da utilização da

licença compulsória, para os países mais necessitados, ou seja, aqueles países que possuem

graves problemas de saúde pública.

É conveniente ressaltar ainda que o acesso aos medicamentos, como parte do direito à

saúde, exige qualidade na prestação de bens e serviços destinados à consecução do direito à

saúde. Dessa forma, não é apenas o direito de gozar de uma vida saudável, mas engloba

também, o direito a gozar de um alto padrão nos cuidados de saúde e, por isso, deve haver um

forte controle por parte dos países, no que tange a liberalização da entrada de medicamentos

genéricos e similares no mercado, quando da utilização da licença obrigatória.

Contudo, a falta de proteção de patentes adequada reduzir-se-á numa estrutura de

incentivos desfavorável à investigação e desenvolvimento de medicamentos tecnologicamente

mais avançados, com perdas significativas para a saúde pública nacional e global. Tanto mais

quanto é certo que o desenvolvimento de resistência aos antibióticos por parte de muitos vírus

exige um esforço continuado de investigação, que só uma proteção patentária adequada

consegue garantir (CANOTILHOet al. 2008).

4 DIREITO AOS MEDICAMENTOS DE QUALIDADE COMO PARTE DA

GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE

Page 296: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

296

No âmbito do acesso à medicamentos de qualidade, Jónatas Machado e Vera Lúcia

Raposo (2010) observam que a acessibilidade dos medicamentos pode causar um conflito

entre duas dimensões do acesso à saúde, pois uma privilegia a acessibilidade dos

medicamentos, ao passo que outra coloca a ênfase na investigação e no desenvolvimento de

novos medicamentos e na garantia da respectiva qualidade, segurança e eficácia, em ordem a

fazer face às carências e emergências sanitárias à escala global.E, sem a entrada no mercado

de novos medicamentos, existirá uma grande dificuldade de suprir as deficiências que

surgirão com inexistência de produtos farmacêuticos adequados.

Por isso, as autoridades sanitárias responsáveis pela entrada de medicamentos no

mercado têm uma grande responsabilidade na fiscalização de maneira adequada, dos

medicamentos, para que não se enquadre num dos elementos de violação do direito à saúde

nomeadamente, os medicamentos sem qualidade. Nesse sentido, pode ser afirmado que, de

fato, o Estado tem o dever de fiscalizar os medicamentos que serão introduzidos no mercado

Dessa maneira, a proliferação de medicamentos sem qualidade, no mundo, constitui

um problema de saúde pública internacional, das maiores proporções, por isso a grande

importância dos órgãos fiscalizadores para permissão de entrada de medicamentos no país

(MACHADO; RAPOSO, 2010).

Convém observar ainda que, apesar de emergencial, a licença compulsória não pode

ser utilizada de maneira arbitrária, pois o princípio da livre iniciativa e ainda, da propriedade

ficarão sem sentido. Nessaperspectiva, BERG observaque:

The defenders of intellectual property rights— both corporations benefiting from

patents and copyrights and governments of the IP-generating developed nations,

especially the United States—counter that strong IP protection benefits developing

nations and the poor. In the words of a U.S. State Department undersecretary, strong

IP protection ―will not only encourage innovation, it will provide the level of

confidence in an economy needed to attract foreign investment and spur technology

transfer.‖ These arguments were among the justifications presented in the 1990s for

including intellectual property in general international trade agreements for the first

time.(BERG, 2007, p28.)

Assim, o país deve buscar mecanismos de efetivação do direito à saúde e à vida,

através de instrumentos consistentes de motivação da pesquisa e do desenvolvimento, pois

caso contrário, o ônus da ineficiência do estado recairá, apenas, para as empresas privadas

produtoras de medicamentos. Nesse sentido Roberta Remédio Marques, observa que:

A rigidez desse controle corresponde à importância do em que está em jogo, que é a

saúde pública e a saúde individual de cada cidadão. Assim, só depois

de superar esse rigoroso exame, no qual é verificado se as propriedades do produto

Page 297: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

297

ou do processo não possuem nenhum efeito nocivo ao ser humano e que de fato são

eficazes para o objetivo a que se propõe, poderá ser lançado o medicamento no

mercado. (MARQUES, 2013, p.57)

Observa-se ainda que, o monopólio temporário inerente à concessão de uma patente,

nada mais é do que o obstáculo que a população enfrenta para ter acesso aos medicamentos,

que até então lhe é desconhecido.

Reconhece-se que a proteção da propriedade intelectual e industrial desempenha uma

importante função social, na medida em que propicia o desenvolvimento intelectual, cultural e

científico dos Estados. No domínio da indústria farmacêutica, essa proteção é condição

essencial a promoção sustentada da saúde pública (MARQUES, 2013).

Como elucidado anteriormente, nos últimos anos têm existido problemas que

envolvem as patentes farmacêuticas, nomeadamente a diminuição de incentivos para inovação

na área, em virtude da vulnerabilidade à imitação do sistema. Nesse sentido, Roberta Remédio

Marques observa que grande parte dos medicamentos atuais lançados no mercado contém

poucos elementos inovadores,situação que não colabora com o desenvolvimento social, já que

não acompanha o padrão evolutivo da sociedade, nomeadamente o surgimento de

enfermidades.

A necessidade de uma maior inovação farmacêutica é inegável e a melhoria da saúde

(pública e individual) em termos mundiais depende dessa inovação. Ela está ligada às

necessidades de saúde pública em constante evolução e associada a fenômenos globais.

Portanto, seu objetivo é a continuidade da inovação dos medicamentos, propiciando maiores

benefícios para a humanidade. Esse processo de inovação, no entanto, é muito complexo,

demorado e frágil, por natureza. Por essa razão, são reduzidas as hipóteses de èxito na tarefa

de colocar um novo medicamento no mercado. Além disso, o processo é muito dispendioso,

fato que restringe o número de entidades capacitadas, técnica e financeiramente, para a busca

exitosa de uma nova molécula (MARQUES, 2013).

A falta de incentivo para investigação nas inovações farmacêuticas para combate das

enfermidades é percebida não apenas nos antirretrovirais, mas também nos medicamentos

para combate e controle da malária, tuberculose, dentre

outros.NessaperspectivaGanslandt(2005) observaque:

―the problem, however, is that developing new drugs typically involves substantial

investments in R&D. The average cost to develop a new pharmaceutical drug is

approximately U$300 million; in some cases, it is substantially higher.These costs

are mainly fixed and sunk once the drug is developed‖. (GANSLANDT et. al,

2005, p.214)

Page 298: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

298

Essa questão decorre justamente da frágil proteção que os fármacos dispõem em vários

países, em especial aqueles em desenvolvimento. Nesse sentido Mattias Ganslandt, observa

que:

HIV/ ADIS is not the only disease plagues poor nations; malaria tubercolosis, and

other maladies are equally lethal and debilitating. Indeed, HIV/AIDS is unusual in

that strong incentives for pharmaceutical companies to develop treatments for

sufferers in high-income economies have resulted in medicines that effectively

permit patients to function well years before onset of the disease. Overwhelmingly

poor and cannot afford medicines in sufficient quantities to cover R/D costs. The

problem is accentuated by weak patent protection in potential markets, further

reducing the willingness of pharmaceutical enterprises to develop new drugs and

vaccines.(GANSLANDT 2005p.34)

Em países desenvolvidos, a indústria relacionada com a Propriedade Intelectual,

caracterizada hoje como bem de alto valor agregado, vem crescendo continuamente em ritmo

mais acelerado do que qualquer outro segmento da economia. É um reflexo do novo ciclo de

evolução das indústrias embasado no dinamismo tecnológico que tem como matéria-prima

para os meios de produção, o conhecimento, elemento dependente da criatividade.

O Brasil dentre outros países em vias de desenvolvimento enfrentam a dificuldade de

se situar no mercado internacional de fármacos em virtude do frágil sistema de produção

ainda existente, pois apesar de possuir incentivo de tecnologia na área, não é o suficiente para

concorrer diretamente com a produção de alto nível dos medicamentos originários dos países

desenvolvidos.

Todavia, os países em vias de desenvolvimento apesar de não alcançarem o patamar

dos desenvolvidos, na produção de fármacos originais, conseguiram desenvolver um alto

padrão de qualidade para produção de fármacos na modalidade genérica, assim, conseguem

abastecer o mercado interno de medicamentos com custo menor, com produção nacional de

produtos genéricos, utilizando, portanto, a mesma fórmula medicamentosa do original.

Diante do exposto, torna-se importante observar que as flexibilidades advindas do

Acordo TRIPS e enaltecidas pela Declaração de Doha, podem não ser colocadas em atividade

em virtude das dificuldades, de ordem organizacional, enfrentadas pelos países em

desenvolvimento. Sendo assim, mesmo tendo sido reunido os requisitos essenciais para o

estabelecimento de determinadas flexibilidades, os países não terão condições de executá-

las.NessaperspectivaMatthews (2011) observaque:

The use of compulsory licensing provisions and other TRIPS flexibilities is also

problematic the procedural requirements for implementing the appropriate national

legal provisions are complex and burdensome, particularly for developing and least-

Page 299: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

299

developed countries that lack the necessary technical and legal expertise and

administrative capacity.(MATTHEWS, 2011 p. 423)

Observa-se ainda que, além das dificuldades de estrutura enfretada pelos países em

desenvolvimento, existem os acordos bilaterais e regionais, como veremos à seguir, que

podem incluir medidas restritivas que venham dificultar o desenvolvimento de técnicas

essenciais para a produção ou reprodução de medicamentos (MATTHEWS, 2011).

Em virtude das dificuldades enfrentadas pelos países em desenvolvimento no que

tange à implementação das flexibilidades do Acordo TRIPS, as Organizações Internacionais

tornaram-se, como se verá à seguir, um forte suporte para identificar as soluções viáveis nas

negociações ocorridas entre os países (MATTHEWS, 2011).

O debate sobre exceções e limitações no campo de patentes, especialmente o

licenciamento compulsório, tem focalizado, desde há muito, a área da saúde pública e o

acesso a medicamentos no mundo em desenvolvimento. A alteração do Acordo TRIPS

decidida em 2005, com relação a licenciamento compulsório para exportação na área

farmacêutica, é um resultado desse debate.

O debate também se refere à discussão se o sistema de patentes, com suas atuais

verificações e equilíbrios embutidos, permanece um sistema adequadamente equilibrado, o

que é de extrema importância, pois vai existir oferecimento de incentivos para

desenvolvimento técnico e crescimento econômico.

Esse processo de competição através do fortalecimento do comércio dos países em

desenvolvimento faz parte da condição natural do sistema comercial internacional. Importa

ressaltar ainda que, no que tange ao sistema de propriedade intelectual, a economia dos países

em desenvolvimento estão vivenciando um período de transição de substancial importância,

pois partem do pressuposto em que não dispõem de tecnologia suficiente para desenvolver

suas pesquisas e por isso, acabam dependendo do conhecimento e ainda, da tecnologia de

países desenvolvidos. Nesse sentido, torna-se de fundamental importância a existência dos

genéricos, pois será a partir de uma tecnologia já existe que se desenvolverá uma tecnologia

mais avançada. Sendoassim, Gibbons observaque:

History teaches that uncompensated intellectual property transfers (piracy) as a

developmental policy may have much to commend it because uncompensated

transfers may mark an attempt to return to the well-worn paths that led to past

successful economic development. Many now-developed nations passed through

this stage of taking and exploiting uncompensated transfers of intellectual property.

(GIBBONS, 2011, p87)

Page 300: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

300

A discussão tem agora se alargado para outras áreas. Exemplos são as discussões na

Convenção Básica das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) sobre

propriedade intelectual referente à tecnologia ―verde‖, a decisão na Comissão Permanente

sobre Direito Patentário, da WIPO, para estudar a área de exceções e limitações no sistema de

patentes, e a Conferência da WIPO realizada em 13-14 de julho de 2009, sobre propriedade

intelectual e política pública.

Nesse sentido, para o adequado equilíbrio entre os direitos dos indivíduos e os direitos

dos detentores das patentes de objetos frutos de maior necessidade humana, podem ser

adotadas medidas de proteção aos direitos de indivíduos que necessitem de forma urgente a

utilização de tais medicamentos, todavia, não podendo, portanto, tais medidas serem abusivas,

ou seja, é de extrema importância que exista coerência e limites nas medidas que forem sendo

tomadas.

Assim, uma análise ponderada entre os direitos de propriedade intelectual e o acesso à

saúde pública se faz necessária, pois existe a necessidade de proteção patentária na indústria

farmacêutica e ainda, a implementação de políticas públicas de preços diferenciados para a

aquisição de medicamentos essenciais, nos países desenvolvidos e os em vias de

desenvolvimento social.

O fato é que os medicamentos estão se constituindo em simples mercadorias e a saúde

uma extensão do mercado nas quais as curas e os tratamentos para as doenças que afligem as

comunidades mundiais carentes só ficarão a disposição de maneira excludente, isto é, para

aqueles que dispuserem de um poder de compra suficiente para suportá-los (Plaza 2008)

Atualmente tem sido discutida a questão dos medicamentos fabricados na Índia, China

e ainda, no Brasil quando se trata de medicamento similar. Sendo assim, os países emergentes

se destacam no mercado de medicamentos no mundo, mas, contudo, existem indícios sobre

má qualidade dos medicamentos colocados no mercado.

Com o intuito de reduzir os custos dos medicamentos e, consequentemente, o valor

final (preço trabalho pelas empresas para o acesso pelo consumidor), as empresas acabam por

investir pouco de forma a não aplicar boas práticas de fabricação de genéricos, já que irá

substituir por ingredientes mais baratos.

Sendo assim, os produtos de baixa qualidade podem decorrer de várias questões,

nomeadamente, falta de conhecimento, prática de fabricação falha, infra-estrutura

insuficiente, conter toxinas, ingredientes ativos e ingredientes incorretos. Outra questão

importante se refere aos órgãos fiscalizadores para a entrada de medicamentos no mercado,

Page 301: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

301

que muitas vezes, não são tão rigorosos e acabam facilitando a entrada de produtos

farmacêuticos sem qualidade.

As consequências da entrada dos medicamentos sem qualidade no mercado são graves,

quais sejam: não tratamento da doeça, tanto pelo remédio não fazer efeito ou ainda, por

desenvolver uma resistência do organismo ao medicamento ingerido, pode gerar ainda,

desconfiança no sistema de saúde, alergias e intoxicações. Nessesentido, observa-se que:

When patients receive a counterfeit medicines, they are subjected to multiple risks.

They often suffer more than just an inconvenience; as they become victims of fraud

medicines and are all put at risk of adverse effects from unprescribed medicines or

substandard ingredients. Additionally, patients may lose confidence in health care

professionals including their physician and pharmacist, and potentially modern

medicine or the pharmaceutical industry in general. Counterfeit or substandard (poor

quality) drugs pose threats to society; not only to the individual in terms of the

health side effects experienced, but also to the public in terms of trade relations,

economic implications, and the effects on global pandemics. It is vital for suppliers,

providers, and patients to be aware of current trends in counterfeiting in order to best

prepare for encounters with suspicious products. (SE, NSIMBA 2008, p4.)

Por isso, não é o simples acesso ao medicamento que irá construir a ideia de

igualdade, mas também, a qualidade desse medicamento que está sendo disponibilizado ao

público. Assim, o acesso ao medicamento estará condicionado à sua qualidade, pois se o

paciente tiver acesso a um medicamento sem qualidade, logo o seu direito à saúde será

automaticamente violado.

Nesse sentido, as políticas de fiscalização utilizadas atualmente pelos países em

desenvolvimento no que tange à permissividade da entrada de medicamentos sem qualidade

no mercado, são bem preocupantes. O problema não é necessariamente a cópia do

medicamento, mas tão-somente os critérios de fiscalização para conceder a permissão de

entrada de medicamentos no mercado. Nesse sentido Jónatas Machado e Vera Lúcia Raposo

observam que:

Uma política permissiva relativamente a medicamentos similares e contrafeitos por

razões unicamente relacionadas com o baixo preço e acessibilidade dos

medicamentos pode revelar-se desastrosa para a saúde pública, colocando numa

posição especial de risco e vulnerabilidade aqueles pacientes com menos capacidade

para pagar. (MACHADO; RAPOSO 2010, p70.)

Diante do presente contexto, a globalização se torna um fenômeno preocupante no

cenário internacional, pois as flexibilidades decorrentes dos acordos bilaterais impulsionam a

comercialização de medicamentos, podendo, inclusive, facilitar a distribuição de

Page 302: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

302

medicamentos sem a devida qualidade nos países menos desenvolvidos (MACHADO;

RAPOSO, 2010).

Um exemplo bastante recente do problema é o medicamento contra Malária

consumido por pessoas que estão localizadas na África Subsaariana e ainda, no Sudoeste

Asiático em que foi constatada certa resistência ao medicamento artemisinina, mais

especificamente na fronteira do Camboja com a Tailândia. Estudos foram realizados e

constatou-se um forte número de medicamentos sem qualidade, com vícios de falsificação.

Dessa maneira, Nayyar (2012) observa que:

―Of 1437 samples of drugs in five classes from seven countries in southeast Asia,

497 (35%) failed chemical analysis, 423 (46%) of 919 failed packaging analysis, and

450 (36%) of 1260 were classified as falsified. In 21 surveys of drugs from six

classes from 21 countries in sub-Saharan Africa, 796 (35%) of 2297 failed chemical

analysis, 28 (36%) of 77 failed packaging analysis, and 79 (20%) of 389 were

classified as falsified. Data were insufficient to identify the frequency of substandard

(products resulting from poor manufacturing) antimalarial drugs, and packaging

analysis data were scarce‖ (NAYYAR et al. 2012, p.288-496)

Dessa maneira, colocar o direito de propriedade intelectual à margem da sociedade

para enaltecer, por exemplo, o direito à saúde através do acesso a medicamentos pode gerar

problemas graves, já que as políticas sanitárias destinadas à fiscalização das empresas de

fármacos podem não ser tão confiáveis. Incorrendo, portanto, na entrada de fármacos sem

qualidade e ainda, no desestímulo para a pesquisa de novos medicamentos e que gera,

portanto, elementos que indicam o retrocesso social.

Sendo assim os países em desenvolvimento devem envidar esforços para controlar a

entrada de medicamentos sem qualidade no mercado, tanto através do estabelecimento de

bons laboratórios, que tenham o compromisso de produzir medicamentos de qualidade como

também através do compromisso das agências sanitárias responsáveis pelo monitoramento ou

a verificação de controle de qualidade de todos os produtos farmacêuticos fabricados

localmente e os importados (entrada) ou doados aos países para se certificar de que eles se

encontram o conjunto ou normas internacionais ou nacionais estabelecidas.

Diante desse contexto, apreende-se mais uma vez, que é responsabilidade própria do

Estado a consecução do bem estar-social e, atitudes de controle para a entrada de

medicamentos no mercado através de métodos de certificação que garantam a qualidade do

fármaco se tornam de substancial importância. Não pode ser considerado atitudes que

bloqueiam a meramente a entrada de genéricos no mercado, mas tão-somente, a entrada de

Page 303: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

303

medicamentos sem qualidade, para que não incorra na negação dos direitos fundamentais, ou

seja, o direito de acesso à saúde, de vida com dignidade.

CONCLUSÃO

À vista de tudo quanto foi exposto, tem-se que o presente estudo partiu da premissa

de que o alto nível de saúde constitui um elemento fundamental para o bem-estar, uma vez

que se pode concluir que é à partir da boa saúde que os indivíduos têm condições de efetivar

os demais direitos humanos, nomedamente, habitação, nutrição, dignidade, educação.

Assim, considerando ser a inovação farmacêutica parte essencial dos esforços para

melhorar a qualidade de vida e salvar vidas, observou-se que, com o intuito de ingressar na

concorrência, muitas empresas de medicamentos genéricos, acabam por produzir fármacos

com substâncias de baixa qualidade. Situação que viola diretamente o direito à saúde. E, por

isso, a proliferação de medicamentos sem qualidade, no mundo, constitui um problema de

saúde pública internacional.

Diante do exposto e relacionando com o que foi exposto no texto, observa-se que a

fabricação de medicamentos genéricos nos países da periferia gobal é um problema real, poisa

falta de cuidado na elaboração do medicamento ocasionará acesso à medicamentos sem

qualidade por países menos favorecidos.

Sabe-se que o desafio central desta problemática é tentar conciliar os interesses

econômicos e o direito fundamental à saúde, pois existe um vínculo direto com os custos da

pesquisa e desenvolvimento e as perspectivas de mercado. Trata-se não apenas do direito de

gozar de uma vida saudável, mas também, o direito a gozar de um alto padrão nos cuidados de

saúde e, por isso, deve haver um forte controle por parte dos países, no que tange a

autorização da entrada de medicamentos genéricos e similares no mercado.

Com efeito, a falta de proteção de patentes adequada reduzir-se-á numa estrutura de

incentivos desfavoráveis à investigação e desenvolvimento de medicamentos

tecnologicamente mais avançados, com perdas significativas para a saúde pública nacional e

global. Certo é que a proliferação de medicamentos sem qualidade, no mundo, constitui, sim,

um problema de saúde pública internacional, das maiores proporções, por isso a grande

importância dos órgãos fiscalizadores para permissão de entrada de medicamentos no país.

Sendo assim, conclui-se que os países em desenvolvimento, principalmente, devem

envidar esforços para controlar a entrada de medicamentos sem qualidade no mercado, tanto

através do estabelecimento de bons laboratórios, como também através do compromisso das

Page 304: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

304

agências sanitárias responsáveis pelo monitoramento ou a verificação de controle de

qualidade de todos os produtos farmacêuticos fabricados localmente e os importados ou

doados, uma vez que não é o simples acesso ao medicamento que irá construir a ideia de

igualdade, mas principalmente, a qualidade que está sendo disponibilizado ao público.

REFERÊNCIAS

AMFAR. The Foundation for AIDS Research.Statistics: Worldwide. Disponível em:

http://www.amfar.org/about-hiv-and-aids/facts-and-stats/statistics--worldwide/.

BECKETT, Nick; POUNTNEY, David. Pharmaceutical Compulsory Licenses in Emerging

Markets: Necessity or Threat?. In: Bloomberg. BNA.World Intellectual Property Report.

Honduras to Pursue WTO DisouteAgainst Australian Tobacco Plain Packaging Rules.

Volume 27, Number 10. October 2013

BERG, Thomas C. Intellectual Property and the Preferential Option for The Poor. 5 Journal of

Catholic Social Thought. Legal Studies Research Paper No. 07-06. University of St. Thomas

School of Law.Forthcoming, 2007. . Disponível em: http://papers.ssrn.com/abstract=966681.

BRASIL. Ministério das Relações Exteriores do Brasil. TRIPS e Saúde Pública - Decisão do

Conselho-Geral da OMC. 2005. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-

imprensa/notas-a-imprensa/2005/07/trips-e-saude-publica-decisao-do-conselho-geral-

da.Acesso em 19 de Fevereiro de 2014.

CANOTILHO, J. J.Gomes, MACHADO, Jónatas, colab. Vera Lúcia Raposo. A questão da

constitucionalidade das patentes pipeline à luz da constituição federal brasileira de 1988.

Editora Almedina. Coimbra. 2008.

CARVALHO, Patrícia Luciane de. O Direito Internacional Da Propriedade Intelectual: A

Relação Da Patente Farmacêutica Com O Acesso A Medicamentos. 2011. Atlas.

CORREA, Carlos M. Trips Agreement and access to drugs in developing countries. In: SUR-

International Journal of Human Rights.Number 3. Year 2. 2005.

DELGADO, José. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 11.183-PR. Publicação

em 04 de setembro de 2000.

Page 305: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

305

DUARTE, Francisco Carlos. Qualidade de vida: a função social do estado. Revista da

Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n.41, jun./1994.

DUTFIELD, Graham; SUTHERSANEN, Uma.Global Intellectual Property Law.Edward

Elgar. Cheltenham, UK. Northampton, MA, USA. 2008.

FIGUEIREDO, Luciano Lima. A função social das patentes de medicamentos. Salvador:

Podivm, 2009.

FLORES, Nilton César; Álvarez Lima, Simone Las Licencias Obligatorias y elAcceso a los

Medicamentos Esenciales para la Vida Propiedad Intelectual, vol. X, núm. 14, enero-

diciembre, 2011, pp. 109-126.Revista Propiedad Intelectual. ISSN:1316-1164. Mérida-

Venezuela. Año X. Nº 14 enero-diciembre 2011.

GANSLANDT, Mattias; MASKUS, Keith E.; WONG, Eina V. Developing and distributing

essential medicines to poor countries: the defend proposal. In: Intellectual property and

development. Lessons from recent economic research. Editors Cartens Fink- Keith

E.Maskus.Acopublication of the World Bank and Oxford University Press.2005.

GIBBONS, Llewellyn Joseph. Do as i say (not as i did): putative intellectual property lessons

for emerging economies from the not so long past of the developed nations. SMU Law

Review. 64 SMU L. Rev. 923. Summer 2011.

HERINGER, strid. Patentes Farmacêuticas: propriedade Industrial no contexto industrial.

Editora Juruá. 2007. Curitiba. Página 67.

HUVENEERS, Christian. Structures et evolution des industries pharmaceutiques‖.In: Revue

Internationale de Droit Economique. Numérospecial: Brevetspharmaceutiques,

innovationsetSanté Publique. 2000.

KRISHNA, Ravi Srinivas. Trips, access to medicines and developing nations: towards an

open source solution. Indian institute of management bangalore.november 2006; CORREA,

Carlos and POTHISIRI, Pakdee. CIPIH Report P 224 WHO (www.who.int) (2006).

MACHADO, Jonatas E.;RAPOSO, Vera Lúcia. Direito à saúde e qualidade dos

medicamentos. Editora Almedina- Coimbra. 2010.

MARQUES, J.P. Remédio. Licenças (Voluntárias e obrigatórias) de direitos de propriedade

industrial.Editora Almedina. Coimbra. 2008.

Page 306: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

306

MARQUES, Roberta Silva Melo Fernandes Remédio. Patente Farmacêutica e Medicamento

Genérico: A Tensão Jurídica entre o Direito Exclusivo e a Livre Utilização. EditoraJuruá.

Curitiba. 2013.

MATTHEWS, Duncan.TRIPS Flexibilities and Access to Medicines in Developing

Countries: the problem with technical assistance and Free Trade Agreements. European

Intellectual Property Review, 28 (11):420-427.

MATTHEWS, Duncan. Intellectual Property Human Rights and Development.The role of

NGOs and Social Movements. Cheltenham.UK.2011.Página 26-39.

MERGES, Robert P. Justifying Intellectual Property.Harvard University Press. Cambridge,

Massachusetts. London, England.2011

NAYYAR, Gaurvika M L; BREMAN, Joel G, NEWTON, Paul N, HERRINGTON, James.

Poor-quality antimalarial drugs in southeast Asia and sub-Saharan Africa. Lancet Infect Dis

2012; 12: 488–96. Nunn A et al. 2007. Evolution of antiretroviral drug costs in Brazil in the

context of free and universal access to AIDS treatment.PLoS Med 4(11). Disponível em:

http://medicine.plosjournals.org/perlserv/?request=getdocument&doi=10.1371/journal.pmed.

0040305&ct=1.

PLAZA, Charlene Maria Coradini de Ávila.in: Proteção patentária e inovação nas indústrias

farmacêuticas: os mecanismos do evergreening e as alternativas do fair follower. Trabalho

publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF

nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

RAMOS, André de Carvalho. (2005). Teoria geral dos direitos humanos na ordem

internacional. São Paulo: Renovar, pp. 140-1.

SE, Nsimba. Problems associated with substandard and counterfeit drugs in developing

countries: a review article on global implications of counterfeit drugs in the era of

antiretroviral (ARVs) drugs in a free market economy. In: East Afr J Public Health. 2008

Dec;5(3):205-10

WHO. Investing in health research and development: report of the ad hoc committee on health

research relating to future intervention options, Geneva: WHO, 1996.

WHO.Health in the Context of Sustainable Development: Background Document for the

WHO Meeting ―Making Health Central to Sustainable Development‖, Oslo, Norway, 29

November-1 December 2001.

Page 307: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

307

WINSLOW apud ACOSTA, R.T.K. Aspectos de laoperacionalización de la política de

saluddel estado de Santa Catarina (Brasil), a nível de DSP (Departamento Autônomo de

Salude Pùblica(. Dissertação de Mestrado. Santiago: Universidade do Chile, 1983.

Page 308: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

308

O DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO SUPORTE AO

DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: O EXEMPLO DA INDÚSTRIA

FARMACÊUTICA

João Ademar de Andrade Lima1

Januária Costa dos Santos Lima2

Daniel Barbosa da Silva3

Sumário: 1 Introdução. 2 Direito Fundamental à saúde e políticas públicas

brasileiras. 3 Promoção à saúde, avanços tecnológicos e crise eventual. Conclusões.

Referências.

1 INTRODUÇÃO

A saúde, conceituada de várias formas ao longo do tempo, com os mais diversos

significados, abrangidos nos mais diferentes sentidos, é-se definida pela Organização Mundial

de Saúde (OMS) não apenas como a ausência de doenças, mas como um estado de completo

bem-estar físico, mental e social. Logo, um conceito extremamente amplo que se reflete em

muitas questões éticas e jurídicas, uma vez ser meta de alcance a todo o mundo, assim

refletindo diretamente na vida de todos os seres humanos do planeta, com resultado em

melhorias da qualidade de vida.

No Brasil o Direito à saúde – doravante, sempre, com D maiúsculo – está expresso na

Constituição Federal, em seu artigo 196, que, ipsi litteris, diz ser, a saúde, ―direito de todos e

dever do Estado‖, fulcrado mediante políticas sociais e econômicas com vistas à redução do

risco de doença e de outros agravos, bem como através do acesso universal e igualitário às

ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação.

Abstrai-se, de então, a própria acepção de um direito amplo, que visa tanto a redução

dos riscos como também o tratamento da doença em si, para cuja assunção fora instituído o

1 Doutorando em Ciência da Propriedade Intelectual pela Universidade Federal de Sergipe e emCiências da

Educação pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Portugal);Membro colaborador de equipe de

investigação (investigador doutorando) do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto (Portugal);Idealizador

e líder do Grupo de Estudos em Sociologia da Propriedade Intelectual, GESPI (UFCG-UEPB-CESED-FPA).

Professor da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do CESED, em Campina Grande/PB. 2Graduada em Farmácia, com habilitação em Análises Clínicas pela Universidade Estadual da Paraíba (2005) e

habilitação em Farmácia Industrial pela Universidade Federal da Paraíba (2008); Graduada em Direito pela

Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do CESED (2014);Especialista em Manipulação Magistral Alopática

pelo Instituto Racine (2006) e em Farmacologia e Dispensação Farmacêutica pela Faculdade Cathedral (2010). 3Graduando em Odontologia pela Universidade Estadual da Paraíba e em Direito pela Faculdade de Ciências

Sociais Aplicadas do CESED; Pesquisador na linha ―Biotecnologia e Propriedade Intelectual‖ do Grupo de

Biomateriais, CERTBIO (UAEMa/UFCG).

Page 309: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

309

Sistema Único de Saúde (SUS), sendo o direito, assim, uma importante ferramenta no que diz

respeito ao processo que cria e regulamenta ―o estado são‖ no Brasil.

Entretanto, tal não se resume à participação do direito no que diz respeito à saúde lato

sensu, uma vez que, para se alcançar esse objetivo, isto é, a saúde, em si, para cada pessoa,

respeitando as suas individualidades e necessidades, são necessárias ferramentas jurídicas que

incluem normativas relacionadas a medicamentos, insumos, produtos médico-hospitalares,

certificações e técnicas especificas, majoritariamente tuteladas pelo Direito de Propriedade

Intelectual, ao salvaguardar que o desenvolvimento de tais produtos pertençam aos seus

determinados desenvolvedores, condição sine qua non para instigar a produção de

determinados produtos, uma vez que a quase totalidade dos(as) inventos/inovações na área

surge como resultado do investimento do capital privado, que busca garantia necessária como

contrapartida, haja vista que o retorno financeiro é vital até mesmo para o investimento no

desenvolvimento de outros produtos.

A estrutura patentária – e a propriedade intelectual como um todo – exerce papel

importante na composição de ações que visem ao desenvolvimento sócio-econômico

de uma região, sobretudo pela garantia e tranqüilidade dada ao seu detentor, já que

ela também é vista como um instrumento de controle de mercados e uma forma de

reduzir as incertezas dos inovadores, pesquisadores, centros de pesquisa, indústrias

etc. que dela se valem. Isto se reverte, pois, em benefícios para a sociedade, daí a sua

influência e importância nos ramos empresarial e técnico-científico, especialmente

por se entender a competitividade e o desenvolvimento sócio-econômico dos países,

das regiões, dos setores e das empresas como fatores bases para inovação,

conhecimento e aprendizado. (LIMA, 2009, p. 1)

Acerca desta questão, expõe Cláudia Inês Chamas (2001, p. 144) que ―o célere

processo de internacionalização das economias amplifica a importância desses fatores,

tornando-os elementos centrais para a conquista da capacitação tecnológica.‖.

Com uma efetiva proteção de seus direitos o empresário se vê encorajado a fazer

investimentos em pesquisas para a invenção de novos produtos e de novos processos

de fabricação, bem como de projetar sua marca como garantia de qualidade de seus

produtos e serviços. A comunidade científica, com a garantia de que os resultados de

seus esforços em pesquisa e desenvolvimento contarão com efetiva proteção,

também sentir-se-á estimulada a empreender todo seu conhecimento e direcionar

seus estudos para a invenção de novos produtos e de novos processos destinados ao

setor produtivo. (BARBOSA, 1996, p. 12)

Data séculos, os países investiam nessas pesquisas, buscando a cura de seus doentes e,

assim, uma melhor qualidade de vida para seus habitantes. Contudo, iniciada nova política

Page 310: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

310

pelos norte-americanos, embasados no neoliberalismo, essas grandes pesquisas passaram de

ser custeadas, em sua grande maioria, por particulares – uma característica global atualmente.

Essas empresas são detentoras de grandes capitais de investimentos, e que investem pesados

em Pesquisa & Desenvolvimento (P&D), buscando, dentre os resultados, invenções/inovações

que possam ser efetivas no tratamento – e, até, extinção – de doenças.

Estima-se que a indústria farmacêutica chega a investir cerca de US$ 1,000,000,000.00

(um bilhão de dólares norte-americanos) para desenvolver um medicamento. Assim, são

necessários elementos que possam garantir o retorno de tal aplicação, bem como que

permitam novos investimentos em novas pesquisas.

Essa tutela, ou seja, esse direito garantido aos inventores por seus inventos, se

processa através, mormente, do instituto das patentes, peça central – seguramente a mais

importante – no que tange à garantia econômica e, notadamente, à segurança jurídica de quem

desempenha P&D, uma vez que é necessário a chancela estatal da garantia de propriedade

para que, ao inventor/inovador, sejam salvaguardados todos os direitos sobre a sua

invenção/inovação, já que – como frisado alhures – a área da saúde necessita de maneira

muito explicita desse ramo do direito, sobretudo na contemporaneidade, locus de avanços das

ciências biomédicas e da própria tecnologia médico-hospitalar no trato ao desenvolvimento de

novas maquinas, processos e procedimentos que visam a atingir a finalidade de prover

combate às diversas doenças físicas e psíquicas que mazelam o hodierno meio social.

Hipócrates, no século V a.C., disse: ―Que seu remédio seja seu alimento e que seu

alimento seja seu remédio‖ – Ti to fármakó sas eínai to fagi tó sas kai to fagi tó sas eínai to

fármakó sou. Pensa-se numa saúde de maneira complexa e não ligada a ditames ou

parâmetros fixos, uma vez que o emprego do uso de medicamento foi feito de maneira

absolutamente generalista, mas que finalisticamente foi utilizado como tudo aquilo que é

capaz de gerar saúde para o ser humano, sendo, pois, meios, métodos e artífices humanos

criados pelo homem ou naturais da terra, mas que produzam ou resultem em qualidade de

vida, uma vez que os instrumentos rupestres por si só, representado por objetos in natura da

própria natureza e a figura de um médico, ou mesmo curandeiro, não seriam capazes de gerar

ou, mesmo, manter o atual momento da saúde, definido, num novo instante evolutivo, pelo

desenvolvimento tecnológico correlato.

Assim, importante ressaltar a figura do medicamento como forma de promoção e

busca da saúde, uma vez que possui características singulares no que diz respeito ao

tratamento da doença e restabelecimento da saúde do indivíduo.

Page 311: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

311

2 DIREITO FUNDAMENTAL A SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS

O Direito à saúde é um direito fundamental esculpido, no nosso ordenamento pátrio,

na própria Constituição Federal, em seu artigo 196, para o qual, sob a sua tutela, incluem-se

desde o tratamento, em si, da doença, até as ações referentes à prevenção e, mais, todos os

recursos necessários ao alcance desse fim, sejam estes, medicamentos, recursos humanos ou

materiais, bem como quaisquer outros elementos que por acaso venham a ser necessários.

No que diz respeito aos direitos referentes à saúde, na carta maior, estes estão

dispostos entre os artigos 196, já citado anteriormente, e 200, compondo o Título VIII, Da

Ordem Social, e pautam além da relação direitos e deveres correlatos, a forma de

hierarquização, e composição do Sistema Único de Saúde (SUS) e, propriamente dito, suas

atribuições. Antes, ao embasamento constitucional, a garantia do Direito à saúde no Brasil

encontra-se expresso no artigo 6º da lei magna de 1988, cujo rol elenca os chamados Direitos

Sociais, quais sejam: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social,

proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

Cumpre ressaltar ainda o fato de que, com o objetivo de cumprir esse dever do Estado

em oferecer saúde aos seus residentes como garantia feita constitucionalmente, foi

promulgada, em 19 de setembro de 1990, a Lei n.º 8.080, criando oficialmente o SUS,

retomando conceito equivalente textual e conceitualmente àquele estabelecido dois anos

antes, qual seja:

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover

as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

§1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de

políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros

agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e

igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

§2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da

sociedade.

Assim, não somente prescreve o dever do Estado em garantir a saúde lato sensu, mas

também a insere, de acordo com seu caput, como um direito fundamental.

De acordo com André da Silva Ordacgy (s.d.), a saúde se encontra entre os bens

intangíveis mais preciosos do ser humano, a si reputando-se, pois, a dignidade de receber a

tutela protetiva estatal, porque se consubstancia em característica indissociável do Direito à

Page 312: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

312

vida. Segundo o autor, ―[...] a atenção à saúde constitui um direito de todo cidadão e um dever

do Estado, devendo estar plenamente integrada às políticas públicas governamentais.‖.

Logo, sendo considerado propriamente como um desdobramento do principio da

dignidade da pessoa humana, principio fundante e extremamente necessário ao

desenvolvimento de todo e qualquer ser humano, assim como qualquer garantia fundamental,

a saúde deve ser abraçada como um bem máximo a ser protegido e tutelado pelo Estado,

comportando-se não somente a um direito individual, mas também um direito coletivo, haja

vista que os danos à coletividade podem inferir em danos a todos aqueles que, com esta,

convivam.

Ao discorrer tematicamente acerca do objeto deste referido Direito, a própria

Organização Mundial de Saúde (OMS), estabelece ser ela, a saúde, um estado de completo

bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades, de modo

que tal conceito deve ser alcançado em todo mundo, incluindo notadamente o Brasil, um de

seus signatários, de modo a instruí-lo como um fim ao qual esse Direito resguardado em base

constitucional deveria alcançar.

Outrossim, ainda na Lei n.º 8.080/1990, tem-se, no rol do artigo 7°, algumas bases

normativas que são entendidas como os princípios do SUS, e incluem, primordialmente, os

postulados da integralidade, universalidade e igualdade, refletindo-se, assim, diretamente na

forma de abordagem e tratamento, o que resulta no fato de que a pessoa deve ser observada

em sua totalidade, de maneira holística, ou seja, não se restringindo à cura de determinada

doença mas, sim, ao estabelecimento da saúde do individuo de maneira abstrata, levando-se

em consideração não somente a doença facilmente perceptível, mas também qualquer outro

estado, a exemplo da condição mental e social do individuo que poderia desencadear em

determinada doença. Cumpre-se, assim, o que se enseja a OMS.

A pergunta que se coloca a todos que analisam a dimensão prestacional (ou positiva)

do direito à saúde, em última análise, diz com a possibilidade do titular desse direito

(em principio qualquer pessoa), com base nas normas constitucionais que lhe

asseguram esse direito, exigir do poder público (e eventualmente de um particular)

algum prestação material, tal como um tratamento médico determinado, um exame

laboratorial, uma internação hospitalar, uma cirurgia, fornecimento de

medicamentos, enfim, qualquer serviço ou beneficio ligado à saúde. (SARLET,

2007, p. 11-12)

Para o autor, o Direito à saúde é também, além de tudo, um direito a prestações, que

deverá ser, igualmente, outorgado à máxima eficácia e efetividade. Assim, de maneira

Page 313: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

313

preliminar, convém observar, à base do texto acima transcrito e às normas em comento, que

não há limitações ao Estado para o alcance do fim da saúde, ou seja, pode incluir tratamentos

médicos, exames laboratoriais, medicamentos, entre outros.

Entretanto, por vezes ocorre o que se costuma chamar de judicialização da saúde, no

qual, pelo alto custo de determinados tratamentos – incluindo medicamentos –, o cidadão

precisa recorrer ao judiciário para que o Estado cumpra com essa respectiva obrigação.

Acerca da questão, promulga-se, pelo Ministério da Saúde, a Portaria n.º 3.916, de 30

de outubro de 1998, que aprova a Política Nacional de Medicamentos (PNM), como propósito

garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade desses produtos, a promoção do uso

racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais.

Neste norte, possui como principais diretrizes o estabelecimento da relação de

medicamentos essenciais, a reorientação da assistência farmacêutica, além do estímulo à

produção de medicamentos, bem como a sua regulamentação sanitária.

Em discurso junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o presidente do Supremo

Tribunal Federal (STF), Joaquim Benedito Barbosa Gomes (2013) assevera que: ―[...] num

cenário de limitações orçamentárias, não se pode impor ao Estado a concessão ilimitada de

todo e qualquer tratamento ou medicamento‖, e acrescenta, entretanto, que ―essa circunstância

não pode ser apresentada como cláusula geral de isenção ao cumprimento das normas

constitucionais e, principalmente, à concretização do direito fundamental à saúde.‖.

Assim, desde já é possível observar, na visão de ministro da corte máxima deste país,

fulcro jusfilosófico no sentido de justificar o fato de que as dotações orçamentárias não

podem ser utilizadas para justificar a falta de acesso a tratamentos medicamentosos no Brasil,

de modo que custo dito elevado não deve ser utilizado como forma de mitigar a aquisição de

determinado tratamento terapêutico, não sendo, entretanto, ilimitado.

O cidadão não pode ficar desamparado, mormente quando se trata de um direito

fundamental que é a saúde, ainda que se trate de enfermidade de alta complexidade

e/ou de alto custo. No entanto, deve-se entender também que a medicina, aliada à

tecnologia, possui medidas/tratamentos/medicamentos infindáveis e que é necessário

uma lógica razoável na efetivação desta integralidade sob pena ser autofágica. Em

outras palavras: quando se garante a integralidade infinita, sem qualquer

razoabilidade a um indivíduo, inevitavelmente estará sendo violada a integralidade

de outro indivíduo. E isto ocorre não só porque os recursos são escassos, mas

também porque as medidas são inúmeras. (DAVIES, 2013, p. 6-7).

Page 314: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

314

Há de se defender, em remate, ainda o fato de serem eleitas as prioridades frente à

execução de tais direitos; circunstâncias conceituais dadas à digressão quanto ao construto ora

em tela.

3 PROMOÇÃO À SAÚDE, AVANÇOS TECNOLÓGICOS E CRISE EVENTUAL

Os meios de promoção à saúde dos brasileiros sofreram uma série de transformações

ao longo dos anos. Hoje, o Brasil tem um conceito de modelo assistencial à saúde bastante

elogiado, embora, do ponto de vista prático, sofra com uma aplicação ainda precária.

Segundo Aluísio Gomes da Silva Júnior e Carla Almeida Alves (2007), o modelo de

assistência é uma forma de organização e articulação entre recursos físicos, tecnológicos e

humanos disponíveis para enfrentar e resolver os problemas de saúde de uma coletividade.

Em observância a esta perspectiva, o Brasil instituiu alguns modelos de assistência à

saúde ao longo de sua história. Inicialmente, foram organizadas campanhas promovidas pelos

sanitaristas e guardas sanitários, a fim de combater as epidemias que assolavam o Brasil no

início do século XXI, como a febre amarela, a varíola e a peste.

Na década de 1920, com o incremento da industrialização no país e o crescimento da

massa de trabalhadores urbanos, começaram as reivindicações por políticas

previdenciárias e por assistência à saúde. Os trabalhadores organizaram, junto às

suas empresas, as Caixas de Aposentadoria e Pensão (Caps), regulamentadas pelo

Estado em 1923. (SILVA JÚNIOR e ALVES, 2007, p. 28).

A história da assistência médica à saúde no Brasil sempre esteve ligada à previdência

social, muito embora os cuidados com a saúde sejam anteriores a ela. Eloisa Israel de Macedo

(2010) lembra que, quando de sua criação, na década de 1930, o sistema público de

previdência social deu origem aos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), visando

prestar assistência social e à saúde aos trabalhadores contribuintes.

Acerca da presente questão, alude Renilson Rehem de Souza:

O INPS foi o resultado da fusão dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (os

denominados IAPs) de diferentes categorias profissionais organizadas (bancários,

comerciários, industriários, dentre outros), que posteriormente foi desdobrado em

Instituto de Administração da Previdência Social (IAPAS), Instituto Nacional de

Previdência Social (INPS) e Instituto Nacional de Assistência Médica da

Previdência Social (INAMPS). Este último tinha a responsabilidade de prestar

assistência à saúde de seus associados, o que justificava a construção de grandes

Page 315: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

315

unidades de atendimento ambulatorial e hospitalar, como também da contratação de

serviços privados nos grandes centros urbanos, onde estava a maioria dos seus

beneficiários (SOUZA, 2003, p. 11).

Dessa forma, instaurou-se um modelo de medicina voltado para a assistência à doença

em seus aspectos individuais e biológicos, centrado no hospital, nas especialidades médicas e

no uso intensivo de tecnologia. ―Esta concepção estruturou a assistência médica

previdenciária na década de 1940, expandindo-se na década de 1950, orientando também a

organização dos hospitais estaduais e universitários.‖ (SILVA JUNIOR e ALVES, 2007, p.

28-29).

Na década de 1960, a III Conferência Nacional de Saúde propôs a municipalização da

assistência à saúde no Brasil, mas foi interrompida pela Revolução de 1964 e o período da

Ditadura Militar. Daí em diante, lembra ainda Renilson Rehem de Souza (2003), a assistência

médica previdenciária passou por diversas fases, até entrar em crise no final da década de

1970, dando possibilidade à expansão do movimento da Reforma Sanitária no Brasil.

Em meados da década de 1980 o movimento da Reforma Sanitária cresceu, ganhando

força e representatividade através da participação de profissionais da saúde, usuários, políticos

e lideranças populares que entraram na luta por um sistema reestruturado. O ponto alto do

movimento aconteceu em 1986 durante a VIII Conferência Nacional de Saúde em Brasília,

onde grande parte das ideias discutidas foi incorporada na Constituição de 1988, a fim de criar

um sistema de saúde universal e igualitário.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, foi dado o primeiro passo em

direção a esse sistema universal e igualitário. Deste marco e de outros dispositivos

constitucionais, deu-se início ao delineamento de um novo modelo de assistência à saúde no

Brasil, culminado na Lei n.º 8.080/1990 – a Lei Orgânica da Saúde – alhures comentada, que

instituiu o SUS, a partir de então ligado ao Ministério da Saúde, e não mais ao Ministério da

Previdência, como ocorria com o então Instituto Nacional de Assistência Médica da

Previdência Social (INAMPS).

O modelo de assistência que antecedeu o SUS era centralizado na esfera Federal e,

como bem lembra Giselle Nori Barros (2006), além de estar ligado à previdência social,

praticava apenas ações curativas, sem se preocupar com ações de promoção e prevenção da

saúde. Ao contrário do que existia, o SUS foi criado sustentado pelos princípios da

universalidade, integralidade e participação social, bem como, tornou-se responsabilidade de

todas as unidades da federação, não só da União.

Page 316: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

316

Dentre o conjunto de ações prestadas pelo SUS, devidamente expressas no artigo 4º da

Lei n.º 8.080/1990, estão a pesquisa e a produção de medicamentos, que – expõe, ainda, a

jurista em referência – também se expressam através do artigo 6º, da mesma lei, quando

determina que a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, também faz parte do

campo de atuação do SUS, bem como a formulação de uma política de medicamentos.

Historiciza Lucíola Santos Rabello (2006) que, inicialmente, a promoção à saúde foi

implantada em países tidos como desenvolvidos: Canadá, Estados Unidos, Reino Unido,

Austrália, Nova Zelândia, Bélgica, dentre outros. Somente na última década do século XX é

que os demais países começaram a ter implantada a promoção à saúde. Nessa década de 1990,

também, a indústria farmacêutica no Brasil passou por mudanças específicas em seu ambiente

regulatório, com destaque para as promulgações das Leis n.º 9.279, de 14 de maio de 1996 –

que substituiu a Lei n.º 5.772, de 21 de dezembro de 1971, antigo ―Código de Propriedade

Industrial‖ – e n.º 9.787, de 10 de fevereiro de 1999 – Lei do Medicamento Genérico –

induzindo a uma reorientação das estratégias tecnológicas da indústria farmacêutica nacional,

com evidente intensificação no esforço em dinamizar as atividades de P&D no país.

No Brasil, o reconhecimento dos direitos dos inventores teve início com o Alvará de

28 de abril de 1809, por ação de D. João VI, que, àqueles, permitia a exclusividade pela

exploração por 14 anos de suas invenções, ―sendo muito conveniente que os inventores e

introductores de alguma nova machina, e invenção nas artes, gozem do privilegio exclusivo

além do direito que possam ter ao favor pecuniario [...].‖ (Sic).

Várias normas legais regulando as patentes foram posteriormente promulgadas no

Brasil (1830, 1875, 1882, 1887, 1904, 1923). Uma lei de 1945 previa que as

invenções que tinham como objeto os produtos alimentícios, os produtos e matérias

conseguidas por processos químicos, bem como os medicamentos, que até então

mantinham os direitos de privilégio cedidos como na época da Corte, tiveram tal

privilégio excluído. (SILVA, 2008, p. 4335).

O então o Código Brasileiro de Propriedade Industrial – Decreto-Lei n.º 1.005, de 21

de Outubro de 1969 –, no seu artigo 8º, alínea c, retirou integralmente qualquer possibilidade

de proteção patentária para alimentos e também para os processos e produtos farmacêuticos.

Essa situação, lembra José Carlos Loureiro da Silva (2008), permaneceu inalterada por quase

30 anos.

Para Eduardo Muniz Pereira Urias, citado por SANTOS e PINHO, (2012), o não

reconhecimento de patentes e a permissão da cópia tinham como objetivos declarados reduzir

custos e incentivar a P&D no setor farmacêutico. No entanto, a indústria nacional, apesar dos

Page 317: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

317

menores custos com o licenciamento de tecnologia, não chegou a intensificar os investimentos

nessa perspectiva – sequer na pesquisa ou quiçá no desenvolvimento – mas especializando-se

na cópia de medicamentos de marca, oriundos do estrangeiro.

―Durante o período em que as patentes farmacêuticas não eram reconhecidas,

proliferaram no Brasil os similares, medicamentos geralmente fornecidos por empresas

nacionais que propõem a mesma ação da droga por preço inferior.‖ (URIAS, 2006, apud

SANTOS e PINHO, 2012, p. 412).

Ademais, quando as patentes não eram reconhecidas no Brasil, houve a proliferação

dos medicamentos chamados ―similares‖, com o mesmo princípio ativo do medicamento de

marca, mas produzidos por empresas nacionais e a preços inferiores.

Com as mudanças advindas da reforma de 1996, a legislação patentária passou a

representar um marco para a indústria farmacêutica brasileira, bem como para a melhoria da

assistência à saúde, sobretudo porque retirou, da prática, o mercado da ―cópia‖ e fez com que

a indústria passasse a investir mais em seus produtos, tal qual ocorrido com a chamada ―Lei

dos Genéricos‖ – Lei n.º 9.787, de 10 de fevereiro de 1999 –, que passou a exigir testes de

bioequivalência e biodisponibilidade para os medicamentos daquela característica, fazendo

com que tais produtos tivessem maior credibilidade.

Do ponto de vista das políticas de saúde, os medicamentos genéricos têm sido uma

fonte importante para o acesso da população às drogas necessárias ao tratamento de suas

doenças, bem como contribuiu para a redução de custos na aquisição de drogas pelos

governos Federal, Estadual e Municipal.

Do ponto de vista da política industrial,

[...] o segmento de genéricos está representando uma possibilidade de revitalização

da indústria local, beneficiando um conjunto de empresas públicas e privadas de

menor porte que estão tendo oportunidade de efetuar esforços de desenvolvimento

tecnológico e de articulação com o aparato local de [Ciência & Tecnologia] C&T, ao

mesmo tempo que induzem o aumento da competitividade do setor, exercendo uma

pressão competitiva sobre as empresas líderes no sentido da redução de preços e de

margens de lucro. (GADELHA; QUENTAL e FIALHO, 2003, p. 54).

Há de se ressaltar, porém, que, como mostram Angelo da Cunha Pinto e Eliezer Jesus

de Lacerda Barreiro (2013), apesar de facilitar o acesso dos brasileiros aos medicamentos e

incentivar e fortalecer as indústrias a produzirem medicamentos genéricos no Brasil, os

Page 318: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

318

princípios ativos utilizados como matéria-prima ainda são importados, em sua grande maioria,

da China e da Índia, aumentando ainda mais o déficit na balança comercial brasileira no setor.

Para os autores, em 2010, 21 (vinte e uma) novas entidades químicas foram aprovadas

pela agência regulatória norte-americana, quatro a menos que em 2009, exemplificando uma

caracterizada queda progressiva no número de fármacos inovadores nos últimos 10 anos. No

Brasil, apenas dois fármacos foram efetivamente desenvolvidos.

O relatório do National Science Board (NSB) – órgão dirigente da Fundação Nacional

de Ciências dos Estados Unidos da América – aponta, em 2014, outros setores nos quais os

EUA estão perdendo terreno para economias em desenvolvimento, como investimentos em

fontes de energia renováveis, novos combustíveis e pesquisas em biomedicina. Alguns temem

inclusive a evasão de cérebros.

Pesquisa da American Society for Biochemistryand Molecular Biology, reportada por

Annie Lowrey (2014), revelou que um em cada cinco pesquisadores considera deixar o país

em busca de melhores oportunidades na carreira, os quais 85% afirmam que os cortes nos

investimentos em P&D permitiram que os competidores globais alcançassem e até mesmo

suplantassem os EUA em pesquisa científica.

Circunstância presente, como se depreende, quer nas nações ditas mais desenvolvidas,

que em países emergentes, como o Brasil, cuja reversibilidade se denota possível por

estratégia não diferente que a do rearranjo da própria base cultural acerca do

(des)conhecimento político-social da matéria.

Não basta retrucar a inércia circundante aos muitos atores das atividades cientificas

e tecnológicas de nosso país se, ao contrário, não se gerar uma hábil cultura de

resguardo e respeito aos bens intangíveis, abarcados pelas Leis Autorais e

Industriais, tão comumente pouco valorizadas, quando não – literalmente –

descumpridas.[...]

Assim sendo, não é suficiente conhecer a legislação e uma ou outra regra de

estratégia empresarial se não se assume tal cultura.

É entender e, principalmente, aceitar que a Propriedade Intelectual não é um simples

acessório do desenvolvimento econômico-social, mas um dos instrumentos

principais e indispensáveis de seu progresso. (LIMA, 2006, p. 117-118).

Uma estrutura político-organizacional que vise à assunção deste postulado, tornando-o

factível, se processa, ao menos a princípio, com uma atuação consciente e estrategicamente

bem elaborada pela figura do que se convencionou chamar Gestor da Propriedade Intelectual.

Segundo Cássia Rita Pereira da Veiga, Claudimar Pereira da Veiga, Janssen Maia Del

Corso e Anderson Catapan (2013), tão importante quanto um novo medicamento para a

Page 319: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

319

indústria farmacêutica, é a gestão da inovação e do direito de Propriedade Intelectual dos

produtos vigentes. Para organizações que operam em condições de alta competição global e

rápidos avanços tecnológicos, como é o caso da indústria farmacêutica, o gerenciamento das

inovações é um ponto crucial para a sua permanência no mercado. Para prolongar a

lucratividade, as indústrias lançam mão de alguns posicionamentos estratégicos, como por

exemplo: garantir novas indicações terapêuticas para o produto, lançar a própria versão

genérica do medicamento além de tentar aumentar o portfólio de novos produtos através de

processos de fusões e aquisições. Nesse contexto, ―após a obtenção de uma patente, um

número consecutivo de patentes para novas combinações, usos, formulações, processos de

produção ou moléculas são também solicitadas ao órgão regulatório‖ (VEIGA et al., 2013).

Para o futuro legislativo na área de Propriedade Industrial, essas e outras discussões já

se encontram engatilhadas e o Brasil, de forma proativa, já questiona, pondera e prevê

circunstâncias delas acerca, denotando boas perspectivas – diga-se, de ressalva, vanguardistas

– aptas a responder, de forma equânime e justa, às necessidades do mercado em face e em

razão às de direito.

Na perspectiva da saúde pública, a concessão patentária deve seguir um padrão

ainda mais estrito, de forma a apenas promover as inovações genuínas e prevenir a

apropriação injustificada de matérias que apenas contribuem para limitar a

concorrência e o acesso a medicamentos existentes. Por isso, é importante que

apenas as patentes que de fato cumpram todos os requisitos e critérios previstos na

Lei, segundo as políticas públicas estabelecidas em âmbito nacional, sejam

concedidas. (LIMA, 2013, p. 120)

Tais recentes discussões ganharam novo corpo, sobretudo a partir de março de 2011,

com aprovação, pelo Conselho de Altos Estudos e Avaliação Tecnológica, da Câmara dos

Deputados, de estudo intitulado ―Revisão da Lei de Patentes: inovação em prol da

competitividade nacional‖, cujo resultado culminou no Projeto de Lei n.º 5402/2013 que,

dentre outros temas, busca encerrar as discussões em torno da concessão de patentes para

produtos e/ou processos farmacêuticos de polimórficos e de segundo uso, além da anuência

prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em face do Instituto Nacional

da Propriedade Industrial (INPI).

Jaqueline Mendes Soares, Marilena Cordeiro Dias Villela Correa e Liane Elizabeth

Caldeira Lage (2010) – citando GIRON, D.; GOLDBRONN, CH., MUTZ, M.; PFEFFER, S.;

PIECHON, PH.; SCHWAB, PH.. Solid-state characterizations of pharmaceutical hydrates.

In: Journal of Thermal Analysis and Calorimetry, v.68, p. 453-465, 2002 –, definem o termo

Page 320: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

320

polimorfismo como a existência de alterações no arranjo cristalino de uma substância sem

que, nela, contudo, se observe modificação na estrutura das moléculas (conformação

molecular e espacial). As propriedades químicas das diferentes formas cristalinas de uma

substância são idênticas, reforça as autoras, não ocorrendo o mesmo com suas propriedades

físicas e físico-químicas, a exemplo do ponto de fusão, da condutividade, do volume, da

densidade, da viscosidade, da cor, do índice de refração, da solubilidade, da higroscopicidade,

da estabilidade e do perfil de dissolução.

Os polimórficos obedecem, pois, a propriedades intrínsecas das moléculas, não

podendo ser admitidos como uma invenção, por não advirem da engenhosidade humana, mas

tão só serem considerados como uma descoberta que, como tal, não é patenteável.

Caso menos consensual na nova doutrina, e em diferentes legislações, diz respeito às

patentes de segundo uso, que nada mais são que uma modalidade de duplicação de direitos,

enquadrando-se na chamada ―evergreening‖, ou seja, prática inapropriada, indefinida e ilegal

de extensão de prazos de vigência de privilégio patentário.

O primeiro uso médico é definido como um novo uso, como medicamento, de um

produto já conhecido, mas não utilizado no âmbito medicinal. O segundo uso

médico (que pode incluir um terceiro, quarto ou quinto uso, e assim por diante)

constitui uma nova aplicação terapêutica de um composto já conhecido e que já

possui uma finalidade terapêutica.

Patentes de segundo uso médico, ou terapêutico, buscam a proteção de um novo

usomédico, ou terapêutico, de um composto já conhecido com aplicação no campo

médico.

São enquadrados nessa categoria:

1. Nova aplicação terapêutica para um medicamento já registrado;

2. Nova aplicação terapêutica de um composto em formulação, apresentação

edosagens diferentes daquelas do medicamento registrado; e

3. Nova aplicação terapêutica de compostos com atividade biológica conhecida,mas

que não chegaram ao mercado ou não foram considerados promissorespara a

primeira indicação terapêutica. (LIMA, 2013, p. 128-129)

Quanto à anuência da ANVISA aos pedidos de patente para produtos e/ou processos

farmacêuticos, o que poderia parecer, à primeira vista, uma quebra de competência do INPI

ou até – para os mais críticos – um enfraquecimento da própria estrutura patentária nacional,

é, na verdade, uma importante medida de proteção à saúde pública e está plenamente de

acordo às regras internacionais sobre Propriedade Industrial.

Page 321: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

321

Ademais, especificadamente na área farmacêutica, esta é uma prática já vigente,

primeiramente por força da Medida Provisória n.º 2.105-15, de 26 de janeiro 2001, depois por

meio da própria Lei de Propriedade Industrial, alterada pela Lei n.º 10.196, de 14 de fevereiro

de 2001. Entretanto, vários questionamentos foram suscitados acerca do papel da ANVISA no

exercício da anuência prévia, enfraquecendo esse instituto de proteção à saúde pública e

desenvolvimento do país, sendo, pois, necessário reposicionamento legal acerca da matéria.

Para rematar, transcreve-se, a seguir, proposta de acréscimos normativos à Lei n.º

9.279, de 14 de maio de 1996, advindos do PL n.º 5402/2013.

Para a proposta, à questão polimórfica e de segundo uso, adita-se os incisos X e XI ao

artigo 10º:

Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade:[...]

X – qualquer nova propriedade ou novo uso de uma substância conhecida, ou o mero

uso de um processo conhecido, a menos que esse processo conhecido resulte em um

novo produto;

XI – novas formas de substâncias conhecidas, que não resultem no aprimoramento

da eficácia conhecida da substância.

Parágrafo único. Para os fins deste Artigo, sais, ésteres, éteres,

polimorfos,metabólitos, forma pura, o tamanho das partículas, isômeros, misturas de

isômeros,complexos, combinações e outros derivados de substância conhecida

devem serconsiderados como sendo a mesma substância, a menos que

difiramsignificativamente em propriedades no que diz respeito a eficácia.

À anuência prévia da ANVISA, insere-se o artigo 229-C, com a seguinte redação:

Art. 229-C. A concessão de patentes para produtos e processos

farmacêuticosdependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância

Sanitária – Anvisa,que deverá examinar o objeto do pedido de patente à luz da saúde

pública.

§1º Considera-se que o pedido de patente será contrário à saúde pública,

conformeregulamento, quando:

I – oproduto ou o processo farmacêutico contido no pedido de patente

apresentarrisco à saúde; ou

II – opedido de patente de produto ou de processo farmacêutico for de interesse para

as políticas de medicamentos ou de assistência farmacêutica no âmbito doSistema

Único de Saúde – SUS e não atender aos requisitos de patenteabilidade edemais

critérios estabelecidos por esta lei.

Page 322: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

322

§2º Concluído o exame da prévia anuência e publicado o resultado, a

Anvisadevolverá o pedido ao INPI, que procederá ao exame técnico do pedido

anuído earquivará definitivamente o pedido não anuído.

CONCLUSÕES

É o instituto das patentes um alicerce fundamental do Direito à saúde?

Guilherme José Pereira (2011) lembra, em seu estudo, que as patentes de produtos

farmacêuticos, ao contrário do posicionamento de muitas pessoas, trazem muitos benefícios,

afora as características capitalistas herdadas da nossa cultura. Apesar do tempo de 20 anos de

exclusividade para exploração do produto patenteado concedido pela lei, na prática esse

tempo fica reduzido à metade, visto que da data do protocolo do pedido, um produto

farmacêutico leva em média 10 anos até chegar ao mercado, daí sendo explorado por 10 anos.

No que tange ao período de exclusividade de exploração do produto, não se constitui um

monopólio, visto que o medicamento irá concorrer com tantos outros já existentes no

mercado.

Mas as patentes, e a Propriedade Intelectual como um todo, não se findam no exposto;

ademais, apresentam importância fundamental para o setor industrial moderno, não apenas

por se valerem como uma verdadeira mercadoria – dada a própria natureza jurídica de

Propriedade –, vendável, envolvendo diversos aspectos econômicos, jurídicos e sociais, como

também por servirem de base de pesquisa tecnológica em Bancos de Patentes.

Os documentos de patente se constituem no único sistema de informação

precipuamente configurado para finalidade de armazenar conhecimentos

tecnológicos, isto é, destinados à produção de mercadorias. Enquanto a maioria dos

sistemas de informação tem metodologia adaptável às informações de caracteres

diversos, em geral provenientes de campos científicos, culturais e humanísticos, a

informação patentária tem sua base em documentos cuja finalidade é, desde as suas

origens, a de divulgar informação técnico-produtiva. (MACEDO e BARBOSA,

2000, p. 57)

Eis, então, uma das respostas à chamada função social da Propriedade Intelectual,

notadamente aos agentes científicos, tecnológicos e inovativos, em que pese o sistema

patentário de ceder, ao titular, um monopólio temporário de Direito Industrial e receber, como

contraprestação, a divulgação do segredo industrial do produto, com a consequente inserção

deste ao Estado da Arte.

Page 323: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

323

Graças ao grande volume de informação presente no sistema patentário – sem se

incluir, no bojo, todos os demais itens abarcados e protegidos pela Propriedade

Intelectual como um todo, não contemplados pelos Bancos de Patentes – extrai-se,

como vantagens à comunidade científica e tecnológica: 1. a facilidade no

levantamento do estado da técnica em várias áreas do conhecimento; 2. o acesso

imediato aos mais recentes pedidos de patente; 3. o mapeamento das áreas já

congestionadas (ou saturadas) por pedidos de privilégio patentário; 4. a catalogação

de patentes por inventores ou proprietários; e 5. a catalogação de patentes já

expiradas ou prestes a expirar. (LIMA, 2006, p. 5)

Apropriadamente, lembra Roberto Castelo Branco Coelho de Souza (2005, p. 1067)

que o não aproveitamento dessa faculdade dada pelo sistema de patentes, é submetê-lo, de

forma injustificável, apenas às atividades de registro; e, limitar-se às atividades de registro é

condenar o país a pagar caro por uma informação já disponível em uma instituição pública.

Por fim, arremata: ―quando os recursos para as atividades de C&T são reconhecidamente

insuficientes, chega a ser malvada essa limitação.‖.

Nesse diapasão, afirma Carolina Dias Ferreira (2008/2009, p. 18-19) que, a indústria

farmacêutica é o setor que mais investe em inovação, visto que, anualmente, despende

elevadas quantias na criação de novos medicamentos. Por isso, o sistema de patentes é por

demais importante para este área econômica, pois lhe garante que terceiros não explorem

indiscriminadamente suas invenções/inovações. Igualmente, a salvaguarda patentária

promove entre as indústrias farmacêuticas a concorrência e inovação na busca por novas

terapêuticas e suas melhorias incrementais. Tudo isso provoca estímulo à continuação das

pesquisas científicas e contribui para o desenvolvimento social, econômico e tecnológico de

um país.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Maria de Fátima de Oliveira. ABC da propriedade industrial. 2.ed. Rio de

Janeiro, RJ: CNI/Dampi, 1996.

BARROS, Giselle Nori. O dever do estado no fornecimento de medicamentos. São Paulo,

SP: Programa de Pós-Graduação em Direito/PUC-SP, 2006. (Dissertação)

Page 324: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

324

BRASIL. Alvará de 28 de abril de 1809. Isenta de direitos ás materias primas do uso das

fabricas e concede ontros favores aos fabricantes e da navegação Nacional. Brasília, DF:

Coleção de Leis do Império do Brasil – 1809, p. 45, vol.1.

________. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,

DF: Senado, 05 out. 1988.

________. Decreto-Lei n.º 1.005, de 21 de outubro de 1969. Código da Propriedade

Industrial. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 out. 1969, Seção 1, p. 1.

________. Lei n.º 5.772, de 21 de dezembro de 1971. Institui o Código da Propriedade

Industrial e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 dez. 1971. Seção

1, p. 10897.

________. Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a

promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços

correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1990.

Seção 1, p. 8055.

________. Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à

propriedade industrial. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 maio. 1996. Seção 1, p. 8353

________. Lei n.º 9.787, de 10 de fevereiro de 1999. Altera a Lei no 6.360, de 23 de

setembro de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária, estabelece o medicamento genérico,

dispõe sobre a utilização de nomes genéricos em produtos farmacêuticos e dá outras

providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 fev. 1999. Seção 1, p. 1.

________. Lei n.º 10.196, de 14 de fevereiro de 2001. Altera e acresce dispositivos à Lei n°

9.279, de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade

industrial, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 fev. 2001. Seção

1, p. 4.

________. Medida Provisória n.º 2.105-15, de 26 de Janeiro de 2001. Altera e acresce

dispositivos à Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações relativos

à propriedade industrial, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27

jan. 2001. Seção 1, p. 12.

________. Ministério da Saúde. Portaria n.º 3.916, de 30 de outubro de 1998. Aprova a

política nacional de medicamentos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 nov. 1998.

Seção 1, p. 18.

Page 325: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

325

________. Projeto de Lei n.º 5402 de 2013. Altera a Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996,

para revogar o parágrafo único de seu art. 40, alterar seus arts. 10, 13, 14, 31, 195 e 229-C, e

acrescentar os arts. 31-A e 43-B; e altera a Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, para alterar

seu art. 7º. Câmara dos Deputados, Coordenação de Comissões Permanentes, Brasília, DF, p.

3630.

CHAMAS, Claudia Inês. Proteção e exploração econômica da propriedade intelectual em

universidades e instituições de pesquisa. Rio de Janeiro, RJ: Programa de Pós-Graduação

em Engenharia de Produção/COPPE/UFRJ, 2001. (Tese)

DAVIES, Ana Carolina Izidório. Limites constitucionais do direito à saúde; reserva do

possível X mínimo existencial. in: XXXIX Congresso Nacional de Procuradores do Estado.

Porto de Galinhas, PE, 15 out. 2013. Disponível em: <http://www.apesp. org.br/comunicados/

images/tese_ana_carolina_davies2013.pdf> Acesso em 25 abr. 2014.

FERREIRA, Carolina Dias. O problema do acesso a medicamentos protegidos por patente

em países em desenvolvimento; projecto aplicativo. Lisboa, LB: Pós-Graduação em

Economia e Gestão da Propriedade Industrial/ISEG/ULISBOA, 2008/2009. (Monografia)

GADELHA, Carlos Augusto Grabois; QUENTAL, Cristiane; FIALHO, Beatriz de Castro.

Saúde e inovação; uma abordagem sistêmica das indústrias da saúde. in: Cadernos de Saúde

Pública. v.19, n.1. Rio de Janeiro, RJ, 2003. p. 47-59.

GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Seminário sobre direito à saúde: discurso de abertura.

Brasília, DF, Auditório do Tribunal Superior do Trabalho, 03 jun. 2013.

LIMA, João Ademar de Andrade. Bases teóricas para gestão da propriedade intelectual.

Campina Grande: EDUFCG, 2006.

________. Breves recortes teóricos sobre propriedade intelectual no entorno dos

recursos naturais. In: Revista Jus Navigandi. n.2013. Teresina, PI, 2009. Disponível em:

<http://jus.com.br/artigos/12166/breves-recortes-teoricos-sobre-propriedade-intelectual-no-

entorno-dos-recursos-naturais> Acesso em 28 abr. 2014.

________. Digressões sobre propriedade intelectual como agente de desenvolvimento,

inovação e estratégia. In: Revista Dataveni@ – UEPB. n.93. Campina Grande, PB, 2006.

Disponível em: <http://www.datavenia.net/artigos/digressoessobrepropriedadeintelectual

comoagentedesenvolvimentoinovacaoeestrategia.html> Acesso em 28 abr. 2014.

Page 326: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

326

LIMA, Newton (Relator). A revisão da lei de patentes; inovação em prol da competitividade

nacional. Brasília, Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados/Edições

Câmara, 2013.

LOWREY, Annie. U.S. dominance in science faces Asian challenge. In: The New York

Times. Nova York, NY, 13 fev. 2014. p. B4.

MACEDO, Eloisa Israel de. A importância da análise técnica para a tomada de decisão

do fornecimento de medicamentos pela via judicial. Sorocaba, SP: Programa de Pós-

Graduação em Ciências Farmacêuticas/UNISO, 2010. (Dissertação)

MACEDO, Maria Fernandes Gonçalves; BARBOSA, A. L. Figueira. Patentes, pesquisa &

desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000.

ORDACGY, André da Silva. A tutela de direito de saúde como um direito fundamental

do cidadão. Disponível em: <http://www.dpu.gov.br/pdf/artigos/artigo_saude_andre.pdf>

Acesso em 24 abr. 2014.

PEREIRA, Guilherme José. As patentes farmacêuticas e o acesso a medicamentos. Rio de

Janeiro, RJ: Pós-Graduação em Direito da Concorrência e Propriedade Intelectual/UCAM,

2011. (Monografia)

PINTO, Angelo da Cunha; BARREIRO, Eliezer Jesus de Lacerda. Desafios da indústria

farmacêutica brasileira. In: Revista Química Nova. v.36, n.10. São Paulo, SP, 2013. p.

1557-1560.

RABELLO, Lucíola Santos. Promoção da saúde: desafio ou adaptação?; a construção

social do conceito, de Alma-Ata aos dias atuais, no Brasil e no Canadá. Brasília, DF:

Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre as Américas/UNB, 2006. (Tese)

SANTOS, Maria Clara Bottino Gonçalves; PINHO, Marcelo. Estratégias tecnológicas em

transformação; um estudo da indústria farmacêutica brasileira. in: Revista Gestão e

Produção. v.19, n.2. São Carlos, SP, 2012. p. 405-418.

SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e

efetividade do direito à saúde na constituição de 1988. in: RERE – Revista Eletrônica

Sobre a Reforma do Estado. n.11. Salvador, BA, 2007. Disponível em: <http://www.

direitodoestado.com/revista/RERE-11-SETEMBRO-2007-INGOSARLET.pdf>Acesso em 28

abr. 2014.

Page 327: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

327

SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; ALVES, Carla Almeida. Modelos assistenciais em

saúde: desafios e perspectivas. in: MOROSINI, Márcia Valéria G. C.; CORBO, Anamaria

D‘Andrea (Orgs.). Modelos de atenção e a saúde da família. Rio de Janeiro, RJ:

EPSJV/Fiocruz, 2007. p. 27-42.

SILVA, José Carlos Loureiro da. Direito de acesso aos medicamentos no Brasil face à

tutela jurídica das patentes farmacêuticas. in: Anais do XVII Congresso Nacional do

CONPEDI, Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Salvador, BA, 2008.

p. 4315-4329.

SOARES, Jaqueline Mendes; CORREA, Marilena Cordeiro Dias Villela; LAGE, Liane

Elizabeth Caldeira. Patentes de Formas Polimórficas na Área de Fármacos no Brasil e o

Impacto na Saúde Pública. In: RECIIS – Revista Eletrônica d e Comunicação, Informação

& Inovação em Saúde. v.4, n.2, p. 43-52. Rio de Janeiro, RJ, 2010. Disponível em:

<http://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/viewArticle/331/573> Acesso em

03 mai. 2014.

SOUZA, Renilson Rehem de. O sistema público de saúde brasileiro. Brasília, DF: Editora

MS, 2003.

SOUZA, Roberto Castelo Branco Coelho de. Propriedade intelectual: temas estratégicos. In:

Revista Parcerias Estratégicas. n.20. Brasília, 2005. p. 1053-1068.

VEIGA, Cássia Rita Pereira da; VEIGA Claudimar Pereira da; DEL CORSO, Janssen Maia;

CATAPAN, Anderson. Estratégias de gestão da inovação na indústria farmacêutica

detentora de propriedade intelectual.in: Anais do X Congresso Internacional de

Administração, ADMpg 2013. Ponta Grossa, PR, 2013.

Page 328: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

328

O ESPORTE NO PROCESSO DE RESSOCIALIZAÇÃO NO SISTEMA

PENITENCIÁRIO: POSSIBILIDADES, LIMITES E DESAFIOS

Adílio Moreira de Moraes

1

Berla Moreira de Moraes2

Márcia Maria Mont‘Alverne Barros3

Sumário: 1 Introdução. 2 Caminhos da pesquisa e procedimentos. 3 Análise e

discussão dos resultados. 3.1 Atividade física no presídio. 3.2 Conhecimento sobre

regras e fundamentos das modalidades esportivas. 3.3 Comportamento durante a

prática de uma atividade física regular. 3.4 Comportamento social dentro do

presídio. 3.5 Aprendizagem para além de muros. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A abordagem do tema ressocialização, na perspectiva dos direitos humanos, tem como

função trazer para a discussão atual o redimensionamento da política prisional e o grau de sua

efetividade na redução dos danos sociais.

O respeito aos Direitos Humanos é primordial no processo de ressocialização,

considerando que aspessoas presas estão não somente privadas de sua liberdade de ir e vir,

mas têmcerceadas diversas outras liberdades. Faz-se necessário que o Estado garanta a

integridade física, mental e social, dentre outras necessárias para sobrevivência e convivência

saudável e produtiva de tais indivíduos sob custódia.

A garantia do exercício desses direitos tem seu amparo na ConstituiçãoFederal

Brasileira de 1988: ―a dignidade da pessoa humana é fundamento do EstadoDemocrático de

Direito‖. A garantia de expandir-se enquanto ser humano deve ser almejado, mesmo e

principalmente porque, este sujeito está impedido de conviver em sociedade, ou seja, está em

desvantagem social. O cumprimento da pena pelo preso repercute na privação de liberdade, o

que não possibilita em totalidade, esta expansão humana:―pode-se refletir e decidir sobre que

vida se quer viver, masnão se pode exercitar, senão dentro do micro-cosmo social do cárcere,

essa vidaque se quer viver com outros, a convivência, parte integrante da experiênciahumana‖

(BRASIL, 2011c, p. 30).

Assim, mesmo sendo garantida a dignidade humana enquanto em privação de

liberdade, o cárcere é, por sua natureza, violador de Direitos Humanos. Para Manzanos Bilbao

(2007, p. 135-155):

1 Mestre em Ciências da Educação pela Universidade de San Carlos (Assunción).

2Mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará. (UECE)

3 Doutora em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará. (UECE).

Page 329: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

329

―O cárcere é incapaz de garantir os direitos legalmente estabelecidos, de fazer

possível a segurança jurídica das pessoas encarceradas (...). Isto é o que gera violência

e tensão entre as pessoas presas, e entre estas e o pessoal que trabalha nas prisões.

Cria frustração, desesperança, desespero, desejos de vingança, recurso à evasão por

meio das drogas, ou seja, definitivamente um clima conflituoso, corrompido e

violento no cárcere‖.

Um dos fatores que corroboram com a violação dos direitos humanos do apenado é a

superlotação dos presídios. De acordo com os dados coletados, em 2011,o Brasil tinha um

número de presos 66% superior à sua capacidade de abrigá-los, apresentando um déficit de

194.650 vagas (BRASIL, 2011a, p. 1). Atualmente a população carcerária brasileira gira em

torno de mais de 574.027 presos abrigados em 1.482 estabelecimentos cadastrados entre

penitenciárias. Desses, 537.790 encontram-se submetidos ao Sistema Penitenciário

e 36.237 estão encarcerados nas Delegacias de Polícia. No país, tem-se um total

de 317.733 vagas nas Secretarias de Administração Penitenciária registrando, portanto

um déficit de vagas na ordem de 256.294. Percebe-se um aumento de 4,66% (24.292 presos)

na população carcerária brasileira, já que em dezembro de 2012 havia registro de cerca de

549.735presos. (BRASIL, 2013, p. 1).

Importante ressaltar que, em 2011, dos 515.448 presos confinados em 1.971

estabelecimentos penais espalhados em todo o território nacional, quase a totalidade (93,4%)

eramdo sexo masculino e apenas 6,6% eram do sexo feminino. O total de mulheres

encarceradas que era de 35.039 presas em dezembro de 2012, alcançou o número de 36.135

em junho de 2013, tal número indica o aumento do envolvimento de mulheres no mundo do

crime, especialmente ligado a tráfico de drogas(BRASIL, 2013, p. 1).

Outro aspecto a ser considerado é a baixa escolaridade da população carcerária do

Brasil, por volta de 236.519 (45%) informaram ter o ensino fundamental incompleto,

enquanto que 64.879 completaram o ensino fundamental. Apenas 41.311 frequentaram os

bancos escolares até a conclusão do ensino médio e apenas 2.153 (0,02%) representa a

quantidade de presos que informaram haver completado o ensino superior (BRASIL, 2013, p.

1).Este se configura um forte indicador de uma relação muito próxima entre nível cultural e

criminalidade, já que a baixa escolaridade também está relacionada com problemas sociais.

Diante do contingente populacional de aproximadamente 574.027 apenados, há apenas

119.517 presos envolvidos em atividades laborais, 24.662 em trabalho externo e 94.855 em

trabalho intramuros, enquanto que 58.750 estão envolvidos em atividades educacionais

(BRASIL, 2013, p. 1), o que pode predizer que a maior parte dos presos estádesvinculada de

ocupações significativas, ou seja, estão ociosos e sem perspectivas para sua recuperação.

Page 330: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

330

Questiona-se assim, que possibilidades reais de recuperação os condenados podem

obter pela simples privação da liberdade? Que tipo de ressocialização atingirão os internos

que permanecerem em prisões superlotadas, sem condições mínimas de higiene, onde há

predominância da ociosidade ou de engajamento em atividades pouco significativas ou

nocivas? Destaca-se, ainda, o fato de condenados de diferentes graus de periculosidade

conviver entre os considerados perigosos e irrecuperáveis, passando por verdadeira escola de

especialização criminal, elevando seu potencial ofensivo e antissocial, permitido por essa

convivência. O resultado não poderia ser outro senão a explosão em forma de rebeliões,

destruição e morte entre presos. Diante de tantas questões, convém indagar se a

ressocialização no sistema penitenciário tenciona a ser considerada uma estratégia falida?

Salienta-se que a ressocialização do indivíduo objetiva promover e incentivar a

reintegração do apenado ao convívio social, durante e após o período de cumprimento da

pena. Trata-se de um processo de reabertura da vida em sociedade.

Para tal fim, aressocialização pode ser implantada de diversos modos, visualizadas

mediante realização trabalho, do estudo e do ensino religioso, porém, nessapesquisa buscou-

se estudá-la por meio do esporte. Buscar no esporte a ressocialização de pessoas que

cometeram crimes é uma tentativa desafiadora. Com a prática de esportes, o preso passa a se

preocupar mais com a saúde e conhece os limites e regras ensinados através da prática dos

esportes coletivos como o futebol, basquete, voleibol, futsal e handebol.

A prática esportiva encontra-se amparada pelo artigo 83 da Lei 7.210 de 11 de julho

de 1984, denominada Lei de Execução Penal, que diz: ―O estabelecimento penal conforme a

sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar

assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva‖. Desta maneira, a atividade

física torna-se um instrumento transformador em ações diárias, objetivando o bem estar e a

melhoria da qualidade de vida do praticante (BRASIL, 1984, p. 17).

Destaca-se aqui, que o presente estudo não pretende solucionar a crise do sistema

penitenciário brasileiro, e sim analisar, através de iniciativas e de discussões, se existe a

possibilidade de contribuir com o processo de ressocialização do apenado através do esporte,

no sentido de avaliar os desafios do ensino e do desenvolvimento dos sistemas, fundamentos e

regras esportivas no processo de ressocialização de detentos que cumprem pena em sistema

penitenciário de segurança máxima.

2 CAMINHOS DA PESQUISA E PROCEDIMENTOS

Page 331: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

331

Trata-se de uma pesquisa-ação com abordagem qualitativa. Segundo Thiollent (2008,

p. 16), pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e

realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e

no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou problema estão

envolvidos de modo cooperativo e participativo.

O método qualitativo permite desvelar processos sociais, ainda pouco conhecidos,

referentes a grupos particulares. Propicia a construção de novas abordagens, revisão e criação

de novos conceitos e categorias durante a investigação. Caracteriza-se pela empiria e

sistematização progressiva de conhecimento até a compreensão da lógica interna do grupo ou

do processo em estudo. Por isso, é também utilizado para elaboração de novas hipóteses,

construção de indicadores qualitativos, variáveis e tipologias (MINAYO, 2010).

Na opção por este tipo de estudo foi sedimentada a finalidade de propiciar aos

presidiários perceberem-se e atuarem no desenvolvimento das atividades esportivas.

Constitui, assim, a alternativa de investigação que visa à inclusão social dos internos, como

agentes ativos e participativos das ações coletivas e beneficiários dos resultados.

A pesquisa foi desenvolvida nos pátios de vivências coletivas e no campo de futebolda

Penitenciaria Industrial Regional (PIRES), localizada no município de Sobral-CE, que fica a

230 km da capital Fortaleza. Trata-se de uma instituição pública coordenada pelo governo do

Estado do Ceará. Foi construída em 1999, tendo capacidade para acolher até 500 reclusos do

sexo masculino, condenados a regime de segurança máxima.

A amostra da pesquisa foi composta de 20 internos que cumpria pena, os quais foram

selecionados aleatoriamente, de acordo com a participação nas atividades. O tamanho da

amostra foi definido pela técnica de saturação teórica.

Segundo Fontanella(2008, p. 1), o fechamento amostral por saturação teórica é

operacionalmente definido como a suspensão de inclusão de novos participantes quando os

dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, redundância ou repetição,

não sendo considerado relevante persistir na coleta de dados.

Os critérios de inclusão foram: a participação regular nas atividades esportivas

desenvolvidas nesta instituição e a aceitação em participar da pesquisa. Foram excluídos do

estudo os detentos que tiveram sua liberdade programada para um período inferior aseis

meses do início desta pesquisa, uma vez que não teriam tempo suficiente para participar de

todos os momentos; aqueles que não participaram do período de aprendizagem da prática,

compreendendo uma assiduidade inferior a 75% e os que se recusaram participar deste estudo.

Page 332: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

332

Considerando os aspectos éticos, inicialmente, o projeto foi apresentado à Direção da

Penitenciária quando foi solicitada autorização formal para realização da pesquisa.

Posteriormente, o projeto de pesquisa foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa da

Universidade Estadual Vale do Acaraú e aprovado sob Parecer nº 0080.0.0.39.000-10.

Os participantes do estudo foram esclarecidos no que concerne ao Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido. Em concordância com a participação na pesquisa,

assinaram os documentos, assim, os princípios éticos foram atendidos, conforme preconiza a

Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 2013,

p. 3).

A coleta do material empírico respeitou os princípios éticos que norteiam o trabalho

científico, guardando o anonimato e o sigilo no respeitante à autoria das respostas dos

entrevistados. Foi assegurado aos participantes da pesquisa o direito de desistirem da

participação da pesquisa a qualquer momento. Garantiu-se, também, o anonimato, bem como

o retorno dos resultados da pesquisa.

O pesquisador, inicialmente explicou aos detentos o objetivo do estudo e o passo a

passo da intervenção para ressocialização pelo esporte, bem como,a importância da

colaboração de cada participante na fase de planejamento, que consistia da coleta dos dados.

O instrumento utilizado para a coleta dos dados foi uma entrevista semiestruturada que

reproduziu as quatro perguntas realizadas na fase de planejamento para viabilizar além de

uma descrição das informações encontradas, uma comparação, que permitiu identificar o que

mudou nos discursos dos internos após a prática das atividades propostas.

As entrevistas semiestruturadas apresentam estrutura flexível, consistindo em questões

objetivas que definem a área a ser explorada, pelo menos inicialmente, e a partir da qual o

entrevistador ou a pessoa entrevistada pode divergir, a fim de prosseguir com ideia ou

resposta em maiores detalhes (POPE; MAYS, 2009).

Esta pesquisa foi desenvolvida no período julho de 2010 a dezembro de 2011. A coleta

dos dados ocorreu no período entre julho a agosto de 2010.

No concernente as etapas da intervenção, estas foram desenvolvidas da seguinte

forma:levantamento de informações sobre o conhecimento de regras e fundamentos das

práticas esportivas por parte dos presidiários e a percepção do seu comportamento social

dentro do presídio e durante a atividade física.

Osdados apreendidos foram analisados e organizados a partir da técnica de

categorização dos discursos e respaldados com literatura pertinente.

Page 333: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

333

A categorização é um processo do tipo estruturalista que comporta duas etapas: o

inventário, que é o ato de isolar os elementos, e a classificação, que é a divisão de forma

organizada dos elementos da mensagem. Em síntese podemos ordenar as ideias e os fatos

segundo as semelhanças (LEOPARDI, 2002).

Após a realização das entrevistas e categorização dos resultados na fase de

planejamento, pode-se idealizar como poderia ser direcionada a fase de implantação da ação

com base nos objetivos propostos.

A intervenção foi realizada em dois momentos, sendo estes, divididos em duas

sessões: uma teórica e outra prática. Na parte teórica foram apresentados aos detentos os

fundamentos, sistemas, técnicas e táticas de jogo, assim como, a elaboração conjunta dos

regulamentos internos que deveriam nortear a prática das atividades.

Na parte prática, foram realizados treinamentos e competições através de festivais

esportivos. Nasáreas de vivências, dentro dos pavilhões, as aulas foram divididas por dias e

por esportes coletivos, com uma modalidade duas vezes por semana, cada aula com duração

de uma hora, sendo trabalhado em um dia a teoria e no outro a prática. Desta forma, todos os

pavilhões eram contemplados, em virtude do sistema de rodízio adotado.

Os encontros ocorreram cinco vezes por semana de 07h00minàs 11h00min da manhã.

Os esportes coletivos de quadra trabalhados nesta pesquisa foram: futebol, futsal, voleibol,

basquetebol e handebol. As práticas esportivas aconteciam dentro das áreas de vivências dos

pavilhões e em cada espaço destes adaptávamos a modalidade a ser trabalhada no dia.

A prática do futebol acontecia em um espaço atrás do pátio de eventos, no qual foi

―construído‖ um campo de futebol com dimensão de 65 metros de comprimento por 38

metros de largura pelos internos. O espaço foi planeado por eles de enxada e posteriormente a

terra foi peneirada para tornar o campo mais macio com vistas a não acarretar lesões. As

traves foram adquiridas através de ofícios encaminhados para escolas públicas estaduais e a

cal, para a demarcação do campo, foi cedida pela direção do presídio.

As bolas utilizadas nas competições foram obtidas através de doações. Como estas já

haviam sido utilizadas anteriormente, chegavam ao presídio geralmente furadas e

necessitando de reparos. Como inicialmente só havia dois internos capazes de realizar estes

reparos e por haver um grande número de doações, promoveu-se, paralelamente, uma oficina

de capacitação para conserto de bola, na qual participaram 28 internos. Com isso conseguiu-se

atingir o número de bolas necessárias para a realização dos treinamentos e eventos esportivos.

Ao final da capacitação, foi possível cadastrar 20 internos para o conserto de bolas dentro do

presídio.

Page 334: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

334

Os treinamentos eram diários e as competições aconteciam de 15 em 15 dias. O

esporte mais praticado foi o futsal dentro das vivências e o futebol no campo. Para todos os

esportes foram ensinados os fundamentos da modalidade e as regras do jogo. A disciplina

durante as competições era seguida criteriosamente pelo corpo de segurança da unidade,

sendo assim, o interno que discordasse da marcação e não aceitasse a punição da regra, era

afastado das atividades e colocado à disposição para julgamento pela comissão de disciplina

dos jogos, que era formada pelo corpo técnico da unidade composto por: educador físico,

psicólogo e assistente social.

3 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A fase de avaliação ocorreu após a realização das etapas de repasse de conhecimentos

teóricos e implantação das competições. Seu objetivo consistiu em compreender como as

ações esportivas influenciaram o processo de ressocialização dos internos.

A apresentação dos resultados desta fase está disposta em cinco categorias. As quatro

primeiras foram semelhantes às encontradas na fase de planejamento o que permitiu, além da

descrição, uma comparação dos discursos apreendidos. Já a quinta e última categoria, que

trata da aprendizagem para além dos muros, foi exclusiva da fase de avaliação uma vez que se

referia às percepções dos entrevistados após a implantação da ação proposta.

3.1ATIVIDADE FÍSICA NO PRESÍDIO

Nesta categoria constou-se a quebra da árdua rotina imposta pelo sistema, com a

realização da prática de atividade física regular. Nos momentos de práticas esportivas, os

detentos esqueceram por alguns instantes dos problemas, divertiram-se, criaram gosto pelo

esporte e valorizaram a competição,conforme podemos verificar nas falas a seguir:

Eu não vejo a hora de começar os campeonatos, eu fico me dedicando nos treinos

(E19).

Tô gostando mais de jogar (E8).

É o que tem de bom nesse inferno (E10).

Além do exposto, pode-se extrair também que a dedicação a estas práticas

acompanhou o detento para além dos momentos de sua realização, ficando o indivíduo

envolvido tanto nos momentos que antecederam as competições quanto nos posteriores,

Page 335: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

335

quando os mesmos relembravam estas experiências para movimentarem as rodas de conversa

nas vivências.

Neste sentido Proniet al. (2002, p. 21), chamam a atenção para o fato de que as

reações emocionais têm um papel central no esporte e no lazer, pois desempenham funções

desrotinizadoras. As rotinas, por sua vez, corporificam práticas cotidianas seguras, neste

sentido, as práticas de lazer podem trazer riscos controlados e processos de ruptura das

mesmas.

Neste contexto identificaram-se os seguintes discursos:

É muito divertido e alegra a gente esses campeonatos feitos pelo professor (E6).

É massa além de distrair a gente, ainda fica tirando uma onda com os caras (E11).

Segundo Scaglia, Medeiros e Sadi (2006, p. 2), a competição não se inicia apenas

quando o árbitro apita para começar, ou encerra quando termina o jogo, mas desde a

preparação do evento marcando o sentido de congraçamento e responsabilidade, passando por

uma série de manifestações de relações sociais e culturais, garantindo a participação ativa e

motivando a todos, em seu desenvolvimento.

Assim, o jogo, ao mesmo tempo, é lúdico e sério, e talvez,neste cenário, se encontre

uma das suas mais valiosas virtudes. Assim sendo, o jogo apresenta inúmeras outras

características paradoxais, tais como ordem, desordem, tensão, movimento, mudança,

solenidade, ritmo e entusiasmo (LEONARDO et al, 2009, p. 238).

Além da promoção de diversão identificada anteriormente, evidenciou-se também um

discurso isolado que apontou para o fato de que as participações nas atividades esportivas

iriam propiciar a remissão da pena. Em poucas palavras, o discurso abordou o seguinte:

Bom, e tem benefício e redução de pena (E5).

Vale lembrar que este sistema de redução é atualmente restrito para o trabalho no qual

o preso recebe para cada três dias trabalhados, a diminuição de um dia na sua pena, além de

um salário pelo serviço realizado, como o que acontece, por exemplo, na oficina de confecção

de botas e artesanato.

Porém, é importante destacar, que a Lei de Execução Penal não excluiu expressamente

a possibilidade da remição da pena peloesporte. Concorda-se com os argumentos de Gomes

(2008, p. 8), quando a mesma observa que:

Page 336: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

336

―O esporte é, igualmente, um direito do preso (artigo 40, VI, LEP) eainda,

considerando a finalidade maior da execução da pena que é recuperar e reintegrar o

preso à sociedade, além do fato de que a ocupação do preso sempre foi o anseio da

comunidade, reconhecer o direito à remição pelo esporte é engrenar um sistema que

se encontra totalmente emperrado‖.

Levanta-se aqui um questionamento: se o engajamento dos detentos em práticas

esportivas, como o futebol, o vôlei, handebol, dentre outras, como possibilidade de remição

da pena pode ser uma estratégia que favoreça tanto a recuperação como o retorno à sociedade,

porque não há um maior investimento do governo e de empresas para este fim? Se há

investimento em esporte nas escolas e em outras instituições, porque não no sistema

penitenciário?Se o ponto de tensão for jurídico, parece não haver impedimento legal, visto

quea remição pelo esporte poderia ser reconhecida por existir dispositivo legal semelhante

disposto em lei, que aborda a remição pelo trabalho. Agora, sendo o ponto de tensão as

políticas públicas de atenção ao apenado, acredita-se que estas devem ser revistas e

aprimoradas para realmente promover o bom retornoà sociedade, o cidadão que cometeu

crime.

3.2 CONHECIMENTO SOBRE REGRAS E FUNDAMENTOS DAS MODALIDADES

ESPORTIVAS

Com a rotina dos treinamentos e competições, os internos começaram a compreender

melhor os significados de regras e fundamentos esportivos. Para alguns, estes momentos

significaram o aprimoramento de conhecimento, já para outros uma descoberta acompanhada

de aprendizado.

Fiquei mais conhecendo após as aulas do professor (E18).

Conheci mais as regras do jogo, nos campeonatos e nos treinos (E6).

Conheci mais, tô mais sabido (E13).

A disciplina proporcionada pelas regras serve para que o jogo seja conduzido com

igualdade e justiça para ambas as partes, porém nem sempre é reconhecida como algo

favorável no decorrer da disputa. Como se pode verificar na fala a seguir, o fato de ter que se

adequar a estas determinações é entendido como um fator desencorajador, pois torna esta

atividade de lazer mais difícil e complicada.

Quando a gente joga com campeonato tem muitas regras e nada pode, isso às vezes

atrapalha a gente curtir (E15).

No treinamento esportivo, a técnica de ensino mais utilizada é a chamada progressão

de fundamento, que consiste em exercícios para aperfeiçoar a fundamentação técnica e tática,

Page 337: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

337

partindo-se sempre do mais simples para o mais complexo. Feitos esses exercícios, o

professor ou técnico deve trabalhar com o esporte na sua totalidade de regras.

Nos esportes a participação, o conhecimento das regras pode ser observado nos

processos detomada de decisão que implicam na utilização de uma técnica determinada, após

umaanálise tática, onde, durante um jogo os processos de tomada de decisão são conduzidos

pelos jogadores sob sua própria responsabilidade e, nessa situação, refletem sua capacidade

tática individual, a qual se apoia na correta percepção da realidade objetiva (SAMULSKI,

2002).

O trato pedagógico dado pela educação física pode promover uma apropriação mais

crítica do esporte, vale dizer, uma relação do indivíduo com o esporte que o permita situar

socialmente essa prática, como condição para o exercício da cidadania neste âmbito da vida e

da cultura (BRACHT, 2001, p. 16).

3.3 COMPORTAMENTO DURANTE A PRÁTICA DE UMA ATIVIDADE FÍSICA

REGULAR

Concorda-se com Melo (2007, p. 7), quando afirma que não se pode compreender o

esporte, de forma linear, como um remédio para a recuperação do preso ou a garantia de que

este não retornará a cometer infrações. Porém, com a disciplina gerada através da prática

esportiva propiciada pela intervenção desta pesquisa, pode-se verificar nos discursos dos

internos uma melhora em relação às suas atitudes, beneficiando sua conduta nas atividades e

modificando conceitos e comportamentos.

Ficou melhor, pois conheci as regras (E4)

Bom, fico tranquilo e aprendo algo mais (E16)

Elias e Dunning (1986) indicam que, à medida que o processo civilizador avança, as

práticas esportivas e de lazer tornavam-se também mais controladas, menos violentas e mais

regradas. Neste sentido, esporte e civilização são processos encapsulados. Corroborando com

a ideia anterior, Melo (2007, p. 9), aponta que o lazer, enquanto instrumento educacionalpode

ser uma poderosa arma para construirmos uma nova sociedade.

Assim, o esporte, em seu caráter lúdico ou não, ―permite a confraternização, a

comunicação, a espontaneidade, a liberdade corporal, o envolvimento ativo do homem como

ser total‖ (GOMES, 2008, p. 7).

Nota-se que a competitividade se mostrou presente nos discursos após a realização dos

campeonatos, onde o caráter de normalidade e tranquilidade relatado anteriormente cedeu

Page 338: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

338

espaço para concepções dialógicas de vencedores e perdedores. Houve alguns discursos que

expressaram esta necessidade de superação e sede de vitória intrínseca a toda disputa como

evidenciado a seguir:

É sempre procurando a vitória (E3).

Sou raçudo dentro de campo e não gosto de perder o jogo (E6).

Para que os detentos pudessem prosseguir nas competições, os mesmos deveriam

demonstrar respeito às regras do jogo. Assim, apesar da rivalidade gerada pela competição os

internos tiveram que aprender a lidar com este tipo de emoção e superar as dificuldades em

prol de sua permanência nas atividades. Não se deve identificar a busca pela vitória como

algo ruim, pois a superação de limites e a necessidade de conquistas é algo que permeia o

comportamento dos seres humanos.

Segundo Neumann (2003), a falta de atividade física torna o caráter dos sujeitos

condenados sombrios, dando possibilidade maior para a prática do mal e para um ambiente

social mais pessimista e cauteloso. No entanto, os detentos deveriam sim se esforçar para

alcançar a vitória, mas para tal deveriam seguir rigorosamente todos os parâmetros legais

(dentro das regras do jogo), para conquistarem seus objetivos.

3.4 COMPORTAMENTO SOCIAL DENTRO DO PRESÍDIO

Com a rotina de treino e jogos, identificaram-sealguns aspectos positivos referentes à

melhoria do comportamento e relacionamento. O esporte traz naturalmente uma identificação

do praticante e a competição determina os parâmetros para a rivalidade esportiva.

Os discursos a seguir evidenciaram este posicionamento:

Ficou ótimo, pois nós nos reconhecemos dentro do esporte (E4).

Os cara são limpeza quando tão jogando bola (E2).

Melhorou, pois conhecemos mais pessoas e a rivalidade é só no campo de jogo (E15).

Segundo Melo (2007, p. 8), conceber uma proposta de lazer como uma possibilidade

de humanização e sensibilização, poderá auxiliar o desencadeamento de iniciativas e reflexões

por parte do preso sobre sua realidade, tanto na prisão quanto na sociedade como um todo,

ponderando sobre sua reinserção na sociedade.

De acordo com Neumann (2003), com a inclusão da prática esportiva como: futebol,

voleibol, basquetebol e atletismo, os internos dispõem de mais uma opção de

atividadesaudável para sua saúde, e com isso, o estado disciplinador dá um passo importante

Page 339: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

339

para cumprimento de sua função de recuperação dos sujeitos que não se enquadram nas regras

da sociedade.

A atividade esportiva apresenta também uma possibilidade de inclusão social não

somente dos detentos que participaram diretamente da competição, mas também destes com a

equipe técnica envolvida. Varella (1999) identificou através de sua experiência no presídio

Carandiru que as partidas nem sempre são tão tranquilas, daí a necessidade dos responsáveis

pela organização e pela arbitragem gozarem de prestígio e "moral" para serem respeitados

pelos outros presos (MELO, 2007, p. 6).

De acordo com Pires (1998, p. 28), no mundo do esporte, aprende-se que a vitória do

outro não deve ser questionada; que a fixação rígida de regras é necessária para mediar às

relações de disputa, a fim de evitar excessos, mesmo que isso sirva também para garantir

privilégios, que a autoridade hierárquica deve ser obedecida, ainda que se não se concorde

com seus atos. Estas lições, se bem aprendidas, garantirão um relacionamento harmonioso do

cidadão no seu grupo social, conformado diante das injustas diferenças, crente de que o ―bem

sempre vence!‖.

3.5 APRENDIZAGEM PARA ALÉM DOS MUROS

Identificou-se através dos discursos que o esporte conseguiu envolver os praticantes,

instigando novos interesses, motivando-os a movimentar seus corpos, estimular suas mentes e

estreitar os laços para convivência saudável. Relacionado a isso, tivemos as falas dos

entrevistados que após a realização da ação desta pesquisa relataram a aprendizagem de

alguns ensinamentos, como o respeito às regras e às pessoas, o culto ao estilo de vida

saudável e a necessidade de uma boa convivência social.

Cuidar do corpo e praticar esportes (E1).

Aprendemos a respeitar regras do jogo e melhorar o convívio com os outros (E3).

Esse negócio de esporte faz o cara abrir os pensamentos e nada de violência (E13).

Diante disso, podem-se inferir conquistas em direção à ressocialização através do

esporte, um processo tão almejado dentro de um sistema prisional. De acordo com Melo

(2007, p. 6), as manifestações culturais como estratégia central e/ou de grande relevância no

processo de intervenção, considerando que invariavelmente as atividades de esporte são

culturais e que um programa de esporte deveria sempre ser desenvolvido, tendo em vista a

dupla dimensão educativa do esporte (educar pelo e para o esporte). Nesse sentido, é possível

Page 340: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

340

pensar que as manifestações culturais possam ser de grande eficácia para melhorar a

qualidade de vida dos detentos.

A tentativa de fazer com que os internos aproveitem o tempo em que passarão

afastados do seu convívio em sociedade, por determinação do poder judiciário, se justifica

pelo fato que em um dado momento estarão novamente em liberdade e deverão ter mudado

conceitos e atitudes para que não retornem a descumprir as leis. A prática de atividades físicas

e esportivas neste contexto tem o objetivo primordial, não de distraí-los, mas sim de reeducá-

los para a necessidade de seguirem as regras impostas pela sociedade e em conformidade com

a Lei.

Ensinou muitas coisas boas. Pois a sociedade não deu o apoio como o esporte

proporcionou dentro do presídio (E17).

Alguns espaços de aprendizagem das regras sociais e da obediência a elas são

privilegiados como forma de preparação do cidadão para sua inserção passiva na sociedade.

Ao lado da própria família, da escola e dos meios de comunicação de massa, o esporte é um

centro de excelênciapara essa “educação‖ (PIRES, 1998, p. 28).

Com o conhecimento de regras e fundamentos, abrem-se novas perspectivas e olhares

até então obscurecidos pelo sentimento egoísta de colocar suas necessidades e perspectivas

acima de tudo e de todos, inclusive da lei. Esta prerrogativa de respeito ao próximo deve ser

estimulada para que a busca pela vitória seja constantemente almejada, porém respeitando-se

os limites, com o entendimento de que o alcance de um dever acabar onde começa o limite do

outro.

É uma oportunidade que temos que aproveitar bem para as nossas vidas (E9).

A atividade física não só exige um esforço compensador das energias gastas como

também é um derivativo para o pensamento, o qual, naturalmente, se prende aos jogos do

campeonato dos diferentes desportes, aos lances mais sensacionais de determinadas provas, a

melhor forma de composição de equipes, dentre outras. As qualidades morais e sociais

indispensáveis a todo o indivíduo que vive em sociedade são desenvolvidas na prática da

educação física (NUNES FILHO, 2002).

Considerando esses aspectos, Gomes (2008, p. 2) ressalta que:

―A recuperação pode, sim, ser alcançada pela via da conscientização moral através de

uma "reeducação", nascida da prática de esporte regular e consequente convívio

pacífico. Esse novo estado de consciência é que dará ao preso a oportunidade de

reformular sua visão da sociedade. E não há meio mais eficaz de elevar alguém que

pela educação formal, pelo trabalho ou pelo esporte‖.

Page 341: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

341

A utilização de um modelo de competição que envolva a possibilidade de maximizar

os aspectos positivos e minimizar os efeitos negativos, poderá se constituir numa proposta

interessante na busca do resgate de valores essências à vida em sociedade que podem ser

trabalhados nessa perspectiva.

CONCLUSÃO

São muitos os desafios a serem enfrentados para promoção de uma recuperação

efetiva dos apenados durante o cumprimento da pena: a superlotação dos presídios, poucas

oportunidades de acesso a ocupações significativas e produtivas como o trabalho, educação, o

esporte, dentre outras.

Verificou-se neste estudo, que o esporte pode ser uma ferramenta no processo de

recuperação dos presos, pois suas regras, fundamentos, sistemas táticos e técnicos quando

aplicados em esportes como futsal, futebol, voleibol, handebol e basquetebol apresentam

resultados positivos na socialização. Observou-se que a prática esportiva tem funcionado

adequadamenteno presídio e correspondido às expectativas referentes ao objetivo de

contribuir na ressocialização dos presos.

Neste contexto, a realização de atividades físicas pode contribuir de maneira efetiva

para que eles consigam conciliar e se adequar às regras e normas vigentes durante e após o

cumprimento da pena. Porém, as possibilidades vão de encontro aos limites da

ressocialização do preso pelo esporte: penitenciárias lotadas, espaços inadequados ou

insuficientes para a prática da atividade física, pouco investimento no esporte, ausência ou

restrição de profissional de educação física, devidamente habilitado, para condução de

programas de atividade física e desporte.

Diante das possibilidades, dos limites e dos desafios da ressocialização dos apenados

pelo esporte, acredita-se que pesquisas como esta,possa sensibilizar o Estado, gestores de

penitenciárias, profissionais, o Sistema Judiciário, bem como a sociedade, no sentido de que,

a utilização do esporte como ferramenta integrante de um processo devidamente planejado e

executado, vise tanto orientar e ajudar na ressocialização dos indivíduos que foram privados

de sua liberdade, tornando o tempo de cumprimento da sentença condenatória, um momento

de real aprendizado e quiçá, aproveitá-la também como forma de redução da pena.

REFERÊNCIAS

Page 342: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

342

BRACHT, V. Esporte na escola e esporte de rendimento. Revista Movimento, Porto

Alegre, ano VI, n. 12, p 14 – 19, 2001.

BRASIL. Ministério da Justiça.DepartamentoPenitenciárioNacional, ConselhoNacional de

PolíticaCriminal e Penitenciária. Sistema prisional. Dados consolidados da população

carcerária do Ceará. 2011. Disponível em:

<http://portal.mj.gov.br/data/pages/mjd574e9ceitemidc37b2ae94c6840068b1624d28407509c

ptbrnn.htm>. Acesso em: 31 de maio de 2012.

________. Ministério da Justiça.DepartamentoPenitenciárioNacional, ConselhoNacional de

PolíticaCriminal e Penitenciária. Sistema prisional. Dados consolidados da população

carcerária do Ceará. 2013. Disponível em:

<http://portal.mj.gov.br/data/pages/mjd574e9ceitemidc37b2ae94c6840068b1624d28407509c

ptbrnn.htm>. Acesso em: 02 de abril de 2014.

________. Ministério da Justiça.DepartamentoPenitenciárioNacional, Diretoria do Sistema

Penitenciário Federal. Projeto BRA 05/038. Modernização do Sistema Penitenciário Nacional.

Manual de Tratamento Penitenciário Integrado para o Sistema Penitenciário Federal:

gestão compartilhada e individual da pena. 2011. Disponível em:

<http://portal.mj.gov.br/data/pages/mjd574e9ceitemidc37b2ae94c6840068b1624d28407509c

ptbrnn.htm>. Acesso em: 31 de maio de 2012.

_________. Presidência da República Casa. Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei de

Execução Penal – LEP. Lei nº 7.210, de julho de 1984. Disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm . Acesso em: 10 de julho 2012.

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa –

Resolução 466/12. Disponível em:

<http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2013/06_jun_14_publicada_resolucao.html>.

Acesso em 09 de jul. 2013.

ELIAS, N.; DUNNING, E. A Busca da excitação. Lisboa: Difel, 2002.

FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R.Amostragem por saturação em

pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad. Saúde Pública, Rio de

Janeiro, vol. 24, n. 1, p. 17-27, jan, 2008.

GOMES, A. Z. J. S. Remição da pena pelo esporte. 2008. Disponível em:

<http://www.iuspedia.com.br>. Acesso em: 12 de março 2011.

Page 343: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

343

LEONARDO, L.; SCAGLIA, A. J.; REVERDITO, R. S. O ensino dos esportes coletivos:

metodologia pautada na família dos jogos. Motriz, Rio Claro, v. 15 n. 2 p. 236-246,

abr./jun. 2009.

LEOPARDI, M. T. Metodologia da Pesquisa na Saúde. 1 ed. Santa Maria: Ed. Palloti, 2002.

MANZANOS BILBAO, C. Violência, Salud y Drogas enPrisión. In CEREZO

DOMÍNGUEZ, A. I. (Coord.); GARCÍA ESPAÑA, E. (Coord.). La prisiónenEspaña: uma

Perspectiva Criminológica. Granada: Comares, 2007. p. 135/155.

MELO. Lazer, esporte e presidiários: algumas reflexões. Revista Digital. Buenos Aires,

ano 11, n. 106, mar. 2007. Disponível em: <http://www.efdeportes.com>. Acesso em: 12 de

abril de 2011.

MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed.

São Paulo: Hucitec, 2010.

NÉUMANN, T. Relatório de 1949 da Casa de Correção. Porto Alegre: Secretaria de Estado

dos Negócios do Interior/Repartição Central de Polícia. 2003.

NUNES FILHO. Relatório de 1932 da Casa de Correção do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro. Secretaria de Estado dos Negócios do Interior/repartição Central de Polícia. 2002.

PIRES, G. L. Breve introdução ao estudo dos processos de apropriação social do

fenômeno esporte. Rev. da Educação Física/UEM vol. 9, n. 1, p. 25-34, 1998.

POPE, C.; MAYS, N. (Org.).Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. 3ª ed. Porto Alegre:

Artmed, 2009.

PRONI, M. W.; LUCENA, R. F. (orgs.). Esporte: história e sociedade. Campinas – SP:

Autores Associados, 2002.

SAMULSKI, D. M. Psicologia do esporte: manual para educação física, psicologia e

fisioterapia. São Paulo: Manole, 2002.

SCAGLIA, A. J.; MEDEIROS, M.; SADI, R. S. Competições Pedagógicas e Festivais

Esportivos: questões pertinentes ao treinamento esportivo. Revista Virtual EFArtigos,

Natal/RN, v. 3, n. 23, abril, 2006. Disponível em: <http://efartigos.atspace.org/

esportes/artigo68.html>. Acesso em: 10 de novembro de 2009.

Page 344: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

344

THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. 16 ed. São Paulo: Cortez, 2008.

VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. Companhia das Letras, São Paulo, 1999.

Page 345: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

345

OS GRAUS DE VINCULAÇÃO NA ATUAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE DISTRIBUIÇÃO DE

MEDICAMENTOS

Mônia Aparecida de Araújo Paiva1

Davi Augusto Santana de Lelis2

Sumário: 1Introdução. 2 O Direito à Saúde no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

2.1Normas constitucionais referentes ao direito à saúde. 2.2 Normas

infraconstitucionais. 3 Discricionariedade Administrativa. 4 Discricionariedade e

Controle Jurisdicional das Políticas Públicas de Medicamentos. 5 Conclusão.

Referências.

1 INTRODUÇÃO

O direito à saúde está previsto nos artigos 6º, 196 a 200 da Constituição da República

Federativa do Brasil – CRFB. Trata-se de um Direito Humano Fundamental, a ser assegurado

pelo Estado mediante políticas sociais e econômicas que possibilitem o acesso universal e

igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Para que tais políticas sejam elaboradas e executadas, o legislador e o administrador

público fazem uso da chamada discricionariedade, entendida como a margem de atuação que

conferida aos agentes públicos para a conformação e aplicação da lei no caso concreto.

Entretanto, devem, ao mesmo tempo, se ater às condições que garantam de fato o acesso dos

indivíduos aos serviços de saúde, bem como observar as diretrizes estabelecidas pelas normas

e princípios constitucionais. Assim, dentro dos parâmetros estabelecidos pela norma

constitucional, deve o agente público optar por aquelas políticas públicas que mais atendam

ao disposto na norma de forma genérica.

Acreditava-se que no exercício dessa competência, legislador e administrador estariam

apenas vinculados à lei em sentido estrito, ou seja, somente poderiam fazer o que estivesse

previsto na lei. ―Fora da lei não há salvação‖, diriam alguns. Entretanto, com a emergência da

chamada teoria da juridicidade, que orienta toda a aplicação do direito público na atualidade,

foi preciso uma releitura da margem de atuação desses agentes, que não se encontram mais

atrelados somente à lei, mas ao ordenamento jurídico como um todo, passando, inclusive, pela

observância aos princípios constitucionais.

1Graduada em Direito pela Universidade Federal de Viçosa/MG

2 Professor Assistente de Direito Administrativo da Universidade Federal de Viçosa/MG;Advogado;Especialista

em Direito Público pela ANAMAGES-MG; Mestre em extensão rural pela Universidade Federal de Viçosa;

Doutorando em Direito Público na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Page 346: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

346

Diante disso, a possibilidade de controle jurisdicional dos atos administrativos vem

sendo revista e ampliada, ao mesmo tempo em que cresce a insatisfação com os outros

Poderes do Estado, que por vezes vêm descumprindo seu papel constitucional, em diversos

campos. No caso dos órgãos do Poder Público, não são raras as vezes em que se identificam

omissões ou demora na elaboração de políticas públicas e na sua execução.

Assim, buscam-se identificar neste artigo a margem de atuação conferida pela

Constituição Federal ao legislador e ao administrador na edição de leis, políticas públicas e

atos administrativos referentes ao direito à saúde e o grau de vinculação desses agentes a estas

normas, conforme a releitura feita pela doutrina sobre a discricionariedade administrativa,

bem como a legitimidade do controle jurisdicional de tais atos.

Além dessa introdução e da conclusão este trabalho está dividido em mais três seções:

na segunda discute-se o direito à saúde no ordenamento jurídico brasileiro, partindo-se das

normas de eficácia imediata da constituição até a regulamentação infraconstitucional. Na

terceira seção apresentação a evolução dos conceitos de vinculação e discricionariedade para

um conceito de graus de vinculação à juridicidade. Na quarta seção apresenta-se a

possibilidade de controle jurisdicional das políticas públicas de medicamento à luz das teorias

aduzidas.

2 O DIREITO À SAÚDE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

2.1 Normas constitucionais referentes ao direito à saúde

A atual previsão constitucional do direito à saúde teve origem nas discussões ocorridas

na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Naquele momento, ficou evidente que a

reforma3no sistema não se restringia apenas aos aspectos administrativo e financeiro, sendo

necessária uma transformação mais profunda, com a ampliação do próprio conceito de saúde

e das suas formas de proteção. Ressaltou-se também a necessidade de fortalecimento e

expansão do sistema público de saúde, sendo sugerido, inclusive, a total destinação dos

recursos públicos apenas para o setor público de saúde, suspendendo-se o financiamento da

rede privada de saúde (BRASIL, 2013).

3 A reforma no sistema de saúde brasileiro era almejada devido a diversos problemas, notadamente pelo fato de

que o sistema até então existente era restrito apenas aos trabalhadores urbanos com carteira assinada, de forma

que a maioria da população ficava excluída do direito à saúde (BARROSO, 2013).

Page 347: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

347

Percebe-se, assim, que a proposta do sistema de saúde privilegiava a chamada

―medicina socializada‖ – na qual o financiamento é predominantemente público, advindo da

arrecadação de impostos –, modelo originalmente adotado pelo sistema de saúde britânico, o

National Health Service – NHS. No entanto, a implementação do projeto previsto no relatório

da conferência deu-se ―em um contexto em que a disputa ideológica favoreceu amplamente o

projeto neoliberal, reorganizando as relações entre Estado e sociedade em bases distintas

daquelas pressupostas pelos formuladores do SUS‖ (BORGES et al, 2012, p. 58).

Com o advento da CRFB, em 1988, dentre os direitos sociais consagrados no artigo 6º

do texto constitucional, foi previsto o direito à saúde e, mais à frente, dentro do Título VIII,

que cuida ―Da ordem social‖, nos artigos 196 a 200, as diretrizes a serem observadas na

criação e implementação do novo sistema público de saúde4.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a

segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência

aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas

sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e

ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e

recuperação.

A norma insculpida no artigo 6º da Carta Magna, ao prever os direitos sociais,

conforme mencionado, trata de direitos fundamentais, pelo que possui aplicabilidade

imediata, conforme artigo 5º, §1º5. Por outro lado, a previsão do artigo 196, para a maioria da

doutrina, apresenta uma norma de natureza programática.

Diante disso, observa-se que a própria previsão do direito à saúde na CRFB foi fruto

da tentativa de buscar o equilíbrio entre as forças políticas participantes da Assembleia

Constituinte, já que se previu, de um lado, uma norma instituidora de direitos humanos

fundamentais, cuja aplicabilidade não está condicionada à atividade legislativa ou

administrativa, e, de outro, as condições de efetividade do mesmo direito ficaram a cargo da

implementação de políticas sociais e econômicas a serem elaboradas pelo Poder Público, já

que a previsão foi feita por meio de uma norma programática, além de ter sido possibilitada a

participação do mercado privado na execução das ações e serviços de saúde, com nítida

influência de ideias liberais (SILVA, 1998). Dessa forma, como resolver o impasse que se

4 É importante salientar que a normatização do direito à saúde no ordenamento brasileiro não se esgota na

previsão constitucional, há normatização infraconstitucional, como a Lei nº 8.080/1990 e seus decretos e

portarias regulamentadores, que, no momento oportuno, serão objeto de análise no presente trabalho. 5 ―Art, 5º,§ 1º: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.‖ (BRASIL,

2014a)

Page 348: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

348

apresenta já no texto constitucional acerca da eficácia das normas que regulam o direito à

saúde?

É cediço as normas programáticas6 traçam ―linhas diretoras, pelas quais se hão de

orientar os Poderes Públicos‖ (SILVA, 1998, p. 137). Entretanto, não se limitam apenas a

dirigir a atuação do Estado, mas, embora sejam de eficácia limitada7, possuem caráter

imperativo e vinculativo, como toda e qualquer norma constitucional. Daí deriva de que tais

normas origina um vínculo para o legislador derivado, que somente pode exercer sua

competência dentro dos limites estabelecidos pela norma.

Questão controvertida é saber se as normas programáticas concedem vantagens

concretas aos indivíduos, ou seja, se criam ―situações subjetivas positivas ou de vantagem‖

(CRISAFULLI, 1952 apud SILVA, 1998, p. 174). Para o constitucionalista, que defende a

juridicidade nas normas programáticas, estas regulam juridicamente certos interesses, que

podem ser simples interesse, simples expectativa, interesse legítimo e direito subjetivo8. A

partir da explanação do autor acerca do art. 205, que trata do direito à educação9, é possível

concluir que o art. 196, que discorre sobre o direito à saúde, tutela interesse legítimo, ou seja,

―fundamenta sua invocação para embasar solução de dissídios em favor de seus

beneficiários‖, ou seja, pode servir de base para proteger o indivíduo contra a violação do

direito nela previsto.

Pelo exposto, como o Estado se colocou na posição de garantidor do direito à saúde,

por meio da elaboração de políticas públicas eficazes, caso não cumpra seu papel, a norma do

art. 196 poderá servir como fundamento para exigir que o Estado adote as providências

cabíveis para a efetivação do texto constitucional.

Neste ponto, as lições de Canotilho são bastante claras, ao estabelecer que as

prestações possuem duas faces: uma objetiva, que seria o objeto da pretensão dos particulares;

6 A classificação das normas constitucionais que será adotada no presente trabalho é apresentada pelo

constitucionalista José Afonso da Silva, em sua obra Aplicabilidade das normas constitucionais, na qual

defende o caráter vinculativo e imperativo das normas programáticas. 7 Silva (1998) entende que as normas constitucionais podem ser e eficácia plena, quando se aplicam sozinhas;

contida, quando atuam de pronto, mas podem ser reduzidas pelo legislador infraconstitucional; limitada,

quando dependem da atuação do legislador infraconstitucional para terem eficácia. 8 Em breve síntese, as normas de simples interesse não ―conferem aos beneficiários desse interesse o poder de

exigir sua satisfação‖; as normas que tutelam interesse legítimo ―encontram-se no limiar da plena eficácia‖, e

as normas que produzem direito subjetivo ―considerado este como a possibilidade de exigir ora uma abstenção,

ora uma prestação, ora um agir que crie, modifique ou extinga relações jurídicas‖ (SILVA, 1998, p. 176-177).

As normas de simples expectativas não são definidas pelo autor. 9 O autor, em determinado ponto de sua obra, é claro ao dizer que os artigos 196 e 205 não tratam de normas

programáticas, ao estatuir que, caso não sejam satisfeitas, ―não se trata de programaticidade, mas de

desrespeito ao direito, de descumprimento da norma‖. Entretanto, mais à frente, inclui o artigo 205 entre os

exemplos de normas programáticas. Assim, tendo em vista a grande semelhança entre as redações dos artigos,

a contradição do autor e a posição majoritária da doutrina, foi possível concluir que o artigo 196 também trata

de uma norma de natureza programática e tutela interesse legítimo.

Page 349: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

349

e outra subjetiva, que seria o dever concretamente imposto ao legislador ou ao administrador.

Como a pretensão em sua dimensão objetiva não pode ser exigida de imediato, pelo fato de a

norma não conter um direito subjetivo, emerge da norma do art. 196 a dimensão subjetiva da

prestação, qual seja, a possibilidade de exigir o cumprimento do dever nela previsto

(CANOTILHO, ano apud SILVA, 1998).

Ademais, para o autor português, o reconhecimento de um direito subjetivo, que é

feito por nossa Constituição no art. 6º, difere do mandamento constitucional que determina a

criação de condições materiais necessárias para a efetivação desse direito. A conclusão do

autor é elucidativa:

Ainda aqui a caracterização material de um direito fundamental não tolera esta

inversão de planos: os direitos à educação, saúde e assistência não deixam de ser

direitos subjetivos pelo facto de não serem criadas as condições materiais e

institucionais à fruição desses direitos. (CANOTILHO, 1983 apud SILVA, 1998, p.

152)

Sob o ponto de vista legislativo, a Constituição estabeleceu que a competência para

legislar sobre a proteção e a defesa da saúde é concorrente (art. 23), ou seja, cabe à União a

elaboração de normas gerais, e aos Estados-membros e Municípios suplementar a legislação

federal.

No que tange à competência administrativa, aqui incluída a criação e execução das

políticas públicas, a Carta Magna atribui competência comum aos entes federativos, o que

significa que os três entes são responsáveis pela elaboração das políticas públicas na área da

saúde.A ideia de competência comum impõe a cooperação entre os entes, de forma que a

prestação estatal seja organizada de forma que o interesse público seja melhor observado.

Diante das disposições constitucionais, em síntese, é possível afirmar que o direito à

saúde é um direito fundamental, de exigibilidade imediata, mas a sua efetivação depende da

observância de uma norma programática, embora esta, é bom que se ressalte, possua

aplicabilidade, no sentido de que pode tutelar interesse de qualquer indivíduo que se sinta

prejudicado pela sua não observância, abrindo-se a estea possibilidade de exigir o

cumprimento da obrigação nela imposta. Ademais, a competência para formulação das

políticas que irão garantir o acesso da população aos meios que concretizem tal direito é

comum entre os entes, de forma que a responsabilidade recai sobre as três esferas de governo.

Cumpre, portanto, analisar a atuação do legislador derivado e do administrador no que

tange à efetivação das políticas públicas referentes ao direito à saúde, a fim de que seja

possível concluir se a norma constitucional está sendo ou não cumprida.

Page 350: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

350

2.2 Normas infraconstitucionais

Conforme apresentado, a CRFB previu que a saúde é ―direito de todos e dever do

Estado‖ (BRASIL, 2014a). Por outro lado, a este incumbe a formulação de políticas públicas

capazes de garantir o acesso aos serviços de saúde.Para a elaboração de tais políticas o

legislador constituinte também estabeleceu algumas diretrizes, que constam no art. 19810,

quais sejam, a descentralização, o atendimento integral e a participação popular.

Seguindo a orientação constitucional, em 19 de setembro de 1990 foi publicada a Lei

nº 8.080, que ―dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a

organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências‖.

Conhecida como a Lei Orgânica da Saúde, por ter instituído o sistema público de saúde

brasileiro – o Sistema Único de Saúde11 (SUS) –, a legislação estrutura a prestação de serviços

de saúde no país, fixando os princípios e diretrizes, dispondo ―sobre as condições para a

promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços

correspondentes e dá outras providências‖ (BRASIL, 2014c). Dessa forma, esta lei, de

aplicação nacional, regula todas as ações e serviços de saúde, executados pelo Poder Público

ou pelo setor privado.

Dentre as ações do Sistema Único de Saúde (SUS), está a formulação da Política

Nacional de Medicamentos (PNM), instrumentalizada pela Portaria nº 3.916, de 30 de outubro

de 1998, aprovada pelo Ministério da Saúde, portanto, já no âmbito dos atos administrativos.

A PNM ―observa e fortalece os princípios e diretrizes constitucionais e legalmente

estabelecidos, além das diretrizes básicas, as prioridades a serem conferidas na sua

implementação‖ (BRASIL,2014d), e as responsabilidades dos gestores do SUS em todas as

esferas de governo.Por fim, a Lei nº 8.080/1990 foi regulamentada pelo Decreto nº 7.508, de

28 de junho de 2011, o qual apresenta a organização, o planejamento e assistência à saúde.

Destarte, esse é o quadro normativo que será objeto de análise, ou seja, a partir do qual

será verificado o grau de vinculação do administrador na concretização do acesso da

população aos medicamentos de que necessita e, em última análise, na consecução do

interesse público.

10

―Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e

constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com

direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades

preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade.‖ (BRASIL, 2014a) 11

Conforme o art. 4º, caput e §2º da lei, o SUS é formado pelo conjunto de ações e serviços de saúde, prestados

por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das

fundações mantidas pelo Poder Público, sendo que a iniciativa privada pode participar de forma complementar.

Page 351: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

351

3 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

No Estado de Direito, a atuação dos agentes estatais está vinculada aos ditames legais.

Pelo princípio da legalidade, no âmbito do direito público, em linhas gerais, o agente somente

poderá agir quando a lei o permitir. Assim, a lei em sentido amplo cria o quadro normativo

dentro do qual é lícito àquele que manifestará a vontade estatal exercer a sua competência.

Entretanto, a liberdade de atuação pode ser mais ou menos ampla, a depender da

margem concedida pela norma. Esta liberdade de que dispõe o Estado é classicamente

denominada de discricionariedade. Por outro lado, quando não há espaço para que se opte por

uma ou outra conduta, diz-se que há vinculação.

A vinculação ocorre

quando a norma a ser cumprida já predetermina e de modo completo qual o único

possível comportamento que o administrador estará obrigado a tomar perante casos

concretos cuja compostura esteja descrita, pela lei, em termos que não ensejam

dúvida alguma quanto ao seu objetivo reconhecimento. (BANDEIRA DE MELLO,

2012, p. 9) (grifos no original)

Por outro lado, a discricionariedade ―é a prerrogativa concedida aos agentes

administrativos de elegerem, entre várias condutas possíveis, a que traduz maior conveniência

e oportunidade para o interesse público‖ (CARVALHO FILHO, 2011, p. 46). O autor trata a

discricionariedade como um poder da Administração, posição que é criticável, pois

atualmente entende-se que os poderes da Administração são instrumentais em relação ao

dever de perseguir o interesse público, sendo que este aspecto do dever deve prevalecer sobre

o aspecto do poder (BANDEIRA DE MELLO, 2012).

Para Bandeira de Mello (2011, p.432), a discricionariedade pode ser definida como

a margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra

o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso

concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos

consagrados no sistema legal.

Ainda de acordo com a teoria clássica pode-se apontar Di Pietro (2012), que afirma

haver discricionariedade quando: a) a lei expressamente confere esse poder ao administrador,

b) a lei é insuficiente para permitir a atuação do administrador, c) lei prevê a competência mas

não estabelece a conduta e; d) lei usa conceitos indeterminados. Em relação a política pública,

o uso da discricionariedade deveria ser pautado pela reserva do possível, do mínimo

Page 352: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

352

existencial e da previsão constitucional. Não havendo para o Judiciário nenhuma

possibilidade de interferência na zona discricionária do Executivo.

Em sentido semelhante, Morais (2004) entende que a discricionariedade administrativa

pode ocorrer: a) por uma concepção negativa (formal), quando o administrador pode agir por

ausência de previsão legal; b) por uma concepção positiva (material), quando o administrador

pode agir por um critério valorativo em prol do interesse público; c) por uma concepção

eclética, quando há valoração em prol do interesse público com margem de atuação legal.

Historicamente haveria impossibilidade de controle do poder judiciário, mas este já é

admitido nos ordenamentos legais.

Conforme se verifica, a noção clássica de discricionariedade traz em si a ideia de livre

espaço de decisão, segundo critérios subjetivos do administrador, tais como os de

conveniência e oportunidade. Ou seja, a norma delineia o contorno dentro do qual o

administrador poderá exercer a sua competência, mas dentro dessa margem de escolha, a

opção do administrador é livre, já que todas as alternativas previamente abertas pela norma

são igualmente válidas perante o ordenamento. Essa é a posição da doutrina clássica.

Entretanto, o que se verifica no atual estágio de evolução do direito é que essa rígida

separação entre vinculação e discricionariedade, segundo os critérios apresentados, não mais

pode subsistir em nosso ordenamento. O direito administrativo vem ganhando novos

contornos, deixando de ser um direito a favor do administrador para ser efetivamente um

instrumento de proteção ao administrado.

Dentre essas transformações, emerge o chamado princípio da juridicidade

administrativa, advindo da importância assumida pelos princípios constitucionais, aos quais

está a Administração Pública vinculada, conforme se extrai das lições de Gustavo Binenbojm

(2014, p.38):

Toda a sistemática dos poderes e deveres da Administração Pública passa a ser

traçada a partir dos lineamentos constitucionais pertinentes, com especial ênfase no

sistema de direitos fundamentais e nas normas estruturantes do regime democrático,

à vista de sua posição axiológica central e fundante no contexto do Estado

democrático de direito. A filtragem constitucional do direito administrativo ocorrerá,

assim, pela superação do dogma da onipotência da lei administrativa e sua

substituição por referências diretas a princípios expressa ou implicitamente

consagrados no ordenamento constitucional. (grifos no original)

A juridicidade administrativa é, portanto, a vinculação da Administração Pública ao

ordenamento jurídico como um todo, emergindo daí que toda a atividade administrativa deve

Page 353: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

353

estar atrelada não só à lei em sentido estrito, mas também aos princípios que estejam

implícitos ou explícitos no ordenamento.

Destarte, a rígida dicotomia entre vinculação e discricionariedade perde o sentido, pois

o livre espaço que possuía o administrador, segundo a doutrina clássica, agora se encontra não

somente balizado pela norma legal, como também a própria escolha deve ser orientada pela

obediência à juridicidade.

A discricionariedade, assim, deixa de ser um livre espaço de decisão, para ser um

―espaço carecedor de legitimação‖, ou seja, não um campo de escolhas segundo critérios de

conveniência e oportunidade, mas ―de fundamentação dos atos e políticas públicas adotados,

dentro dos parâmetros jurídicos estabelecidos pela Constituição e pela lei‖ (BINENBOJM,

2014, p.39).

Diante disso, a divisão entre discricionariedade e vinculação cede lugar para que

existam diferentes graus de vinculação à juridicidade. Por consequência, os atos

administrativos passam a ser classificados de acordo com esse grau de vinculação, conforme

uma escala decrescente conforme estejam mais ou menos vinculados à norma. Esta é a

chamada teoria dos graus de vinculação à juridicidade (BINENBOJM, 2014).

Os atos administrativos vinculados por regras são os que possuem o mais alto grau de

vinculação à juridicidade12

. Por conterem a descrição do fato e a correspondente conduta a ser

adotada, uma vez verificada esta correspondência, incumbe ao administrador agir conforme

prescrito. O administrador, no entanto, poderá deixar de observar o comportamento descrito

caso ele vá de encontro à finalidade da norma, conforme análise concreta13.

Em segundo lugar, há os atos vinculados por conceitos jurídicos indeterminados14, que

exigem do administrado certa valoração para que o seu alcance seja determinado. A

12

Regras, para Humberto Ávila, são normas imediatamente descritivas, cuja aplicação exige a avaliação da

correspondência entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. A

avaliação da correspondência, lembra o autor, deve ser centrada na finalidade da norma ou nos princípios que

lhes são axiologicamente sobrejacentes (ÁVILA, 2008). 13

Um exemplo extraído da doutrina ilustra esta possibilidade: ―Este seria o caso, e.g., de alguém que tenha

ultrapassado um semáforo defeituoso, que ficava permanentemente com a luz vermelha acesa, após verificar

que o semáforo da rua oposta encontrava-se também na posição ‗pare‘. Na espécie, a conduta do motorista não

violou a finalidade da regra (evitar colisões em cruzamentos), nem o princípio a ela imediatamente superior

(segurança no trânsito, incolumidade física das pessoas)‖. (BINENBOJM, 2014, p. 244) 14

A Doutrina pátria ainda diverge sobre os conceitos jurídicos indeterminados, ―são noções vagas, fluidas ou

imprecisas, que não possuem um único significado de caráter prévio e absoluto, mas, ao contrário, situam-se

entre uma zona de certeza positiva e uma zona de certeza negativa conceitual‖ (CARVALHO, 2008, p. 408).

Para Morais (2004), os conceitos indeterminados podem ser: a) vinculados, quando comportam apenas uma

solução já prevista na lei; b) não vinculado discricionário, quando a relação com a norma aberta permite uma

criatividade axiológica para a integração da norma; c) não vinculado e não discricionário, quando é um mero

juízo de prospecção. Para Di Pietro (2012) no Brasil os conceitos jurídicos indeterminados tornam-se

determinados mediante a interpretação do agente, em se tratando de conceitos técnicos a Administração

Pública pode se tornar vinculada à terminação tecnocrata.

Page 354: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

354

investigação da vinculação do administrador, neste caso, passa pela delimitação de que existe

uma zona de certeza positiva, uma zona de certeza negativa e uma zona de penumbra. A zona

de certeza positiva é aquela na qual não há dúvida acerca da expressão utilizada na norma; na

zona de certeza negativa estão uma série de situações que não estão contempladas no alcance

da norma. Por outro lado, na zona de penumbra a apreciação do administrador é maior, já que

foram utilizadas expressões que criam uma margem de dúvida acerva de seu alcance.

Por fim, existem os atos vinculados diretamente por princípios, correspondentes ao

que hoje conhecemos como atos discricionários. Nesse caso, à vista dos princípios que

norteiam o ordenamento, o administrador optará pela conduta que melhor atende à finalidade

da norma em aplicação. Essa espécie de ato possui o menor grau de vinculação.

4 DISCRICIONARIEDADE E CONTROLE JURISDICIONAL DAS POLÍTICAS

PÚBLICAS DE MEDICAMENTOS

Ante a nova concepção acerca da atuação da Administração Pública por meio de seus

atos, admitindo-se a existência não mais de um livre espaço de apreciação, mas de uma

atuação vinculada em maior ou menor grau à juridicidade, necessário que seja feita uma

releitura da possiblidade de controle jurisdicional dos atos administrativos15

.

A princípio, a possiblidade de controle é inversamente proporcional à vinculação do

ato à juridicidade, ou seja, quanto maior o grau de vinculação menor o grau de

controlabilidade (BINENBOJM, 2014).

Ademais, a teoria dos graus de vinculação à juridicidade defende que o controle não

deve ser estático, mas estabelecido de acordo com critérios que levem em consideração não só

a estrutura dos enunciados normativos, como também a distribuição de competências, a

estrutura orgânica, dentre outros (KRELL, 2004 apud BINENBOJM, 2014).

Historicamente, para a instituição das políticas públicas, os agentes incumbidos de tal

mister lançaram mão da chamada discricionariedade. Aliás, o campo das políticas públicas é,

por excelência, o que permite a concretização da liberdade de atuação conferida ao

administrador (FERREIRA, 2014).

Diante da releitura da discricionariedade, rectius, dos graus de vinculação à

juridicidade, e tendo em vista o fato de a política pública ser instituída pelo legislador e pelo

15

É cediço que diversas são as formas de controle externo da Administração Pública, como o controle levado à

efeito pelo Poder Legislativo e o controle popular. No entanto, será objeto de abordagem somente o controle

realizado pelo Poder Judiciário.

Page 355: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

355

administrador, é possível deduzir que estes não mais devem obedecer aos critérios que melhor

lhes convier, em um juízo de valoração livre, mas que estão vinculados a toda uma estrutura

de normas e princípios que deverão orientar suas escolhas.

No caso específico do direito à saúde, a análise dos graus de vinculação surge a partir

da previsão por meio de norma programática, conforme já apresentado. Assim, para

concretizar o mandamento constitucional, o legislador está adstrito primeiramente à

Constituição como um todo e às diretrizes estabelecidas no tocante ao direito à saúde.Dessa

forma, o art. 196 estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado, que deve ser

garantida por meio de políticas que visem ao acesso universal e igualitário às ações e

serviços.

Destarte, neste ponto encontra-se a primeira amostra da vinculação de todas as

medidas subsequentes, sejam elas legislativas ou administrativas. As ações em saúde, aqui

incluídas aquelas que permitam o acesso a medicamentos à população, estão obrigadas a

concretizar o acesso universal e igualitário aos serviços. Qualquer norma que venha a

desrespeitar ou obstaculizar o acesso nos termos estabelecidos será inconstitucional, após

análise segundo a proporcionalidade e a ponderação entre princípios e direitos fundamentais.

Prosseguindo na análise da legislação em assistência farmacêutica, a Lei nº

8.080/1.990, que estrutura o SUS, em seu art. 7º reforça os princípios da universalidade e da

igualdade, constitucionalmente previstos. A lei foi além, estabelecendo em seu art. 2º que

incumbe ao Estado prover as condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde.

A lei supramencionada foi regulamentada por inúmeras portarias, sendo a que mais

interessa ao presente estudo é a Portaria nº 3.916/1.998, que estabelece a Política Nacional de

Medicamentos, que representa a base de toda a política pública de distribuição de

medicamentos no país. Tal norma se encontra no âmbito de competência da Administração

Pública, uma vez que tal ato foi editado pelo Ministério da Saúde; verifica-se que houve

reforço na integralidade e universalidade da cobertura da assistência, ao prever que ―o modelo

de assistência farmacêutica será reorientado de modo a que não se restrinja à aquisição e à

distribuição de medicamentos‖ (BRASIL, 2014d).

A portaria também apresenta diversos aspectos técnicos que devem ser levados em

consideração no momento da elaboração e concretização da assistência farmacêutica, tais

como critérios epidemiológicos, disponibilidade de recursos financeiros, custo benefício e

custo efetividade da aquisição e distribuição dos produtos em relação à demanda

populacional, etc.

Page 356: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

356

É interessante ressaltar que o administrador estabeleceu critérios técnicos de forma a

racionalizar a seleção e distribuição de medicamentos. Entretanto, não se pode perder de vista

que a política pública de saúde como um todo deve obedecer tanto aos princípios

constitucionalmente previstos para a área da saúde quanto os direitos fundamentais, servindo

estes como norte na atuação de todo os agentes estatais. Os critérios técnicos estabelecidos

devem ser prestar a otimizar a garantia do acesso universal e igualitário, efetivando assim uma

política pública de qualidade, não a restringir o acesso da população.

Assim, em que pese o caráter técnico da seleção dos medicamentos e execução da

assistência farmacêutica, o que reduz o campo da análise jurisdicional, uma vez que o

administrador é quem detém a experiência necessária e o contato direto com as demandas dos

administrados, esse aspecto técnico-funcional não pode se sobrepor nem deixar de observar os

ditames constitucionais e legais já estabelecidos.

No ano de 2011, foi editado pela chefe do Poder Executivo federal um decreto

(Decreto nº 7.508), o qual talvez traga a norma que mais vincula o administrador e, por

consequência, afastaria a possibilidade de controle por parte do Poder Judiciário. Da leitura do

art. 28, abaixo transcrito, é possível perceber que não restou alternativa ao agente público:

diante do pleito de um indivíduo, desde que preenchidos os requisitos, a Administração

Pública estaria obrigada a fornecer o medicamento pleiteado.

Art. 28. O acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe,

cumulativamente:

I - estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS;

II - ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular

de suas funções no SUS;

III - estar a prescrição em conformidade com a RENAME e os Protocolos Clínicos e

Diretrizes Terapêuticas ou com a relação específica complementar estadual, distrital

ou municipal de medicamentos; e

IV - ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do

SUS. (BRASIL, 2014b)

No entanto, se for feita uma análise segundo as diretrizes estabelecidas pela CRFB e

demais leis que regulamentam o direito à saúde, pode-se apontar que o dispositivo está eivado

de inconstitucionalidade. Ora, não é concebível que um sistema de saúde que almeja ser

igualitário e universal restrinja o acesso aos medicamentos apenas a pacientes que estejam em

tratamento pelo SUS. A própria Lei nº 8.080/1.990 afirma que a iniciativa privada participa de

forma complementar ao SUS.

Assim, se um indivíduo, em tratamento com um médico particular, não vinculado a

qualquer ação promovida ou financiada com recurso do SUS, com uma prescrição de um

Page 357: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

357

medicamento feita por este médico apresenta sua pretensão ao administrador, este deve negar

o pedido, tendo em vista que tal indivíduo não está assistido pelos serviços do SUS? Embora

haja defesa desta ideia, o SUS não é um plano de saúde ao qual as pessoas optam por se filiar

ou não; é um sistema de saúde financiado por todos e ao qual todos devem ter acesso, sem

distinção.

Afora o caso específico desse artigo, cuja inadequação deve ser resolvida em sede de

controle de constitucionalidade, as demais normas em análise que norteiam a elaboração de

toda a política pública de saúde trazem em seu bojo ora princípios, ora conceitos que ganham

sentido diante de um caso concreto.

De acordo com a teoria dos graus de vinculação, os atos vinculados a princípios, sejam

estes constitucionais ou infraconstitucionais, são os que admitem o controle jurisdicional mais

amplo. Verifica-se, então, que as políticas públicas encontram-se em sintonia com as

diretrizes estabelecidas constitucionalmente, salvo o artigo acima impugnado, uma vez que

buscam garantir o acesso universal e igualitário, visando a concretização do direito à saúde da

forma mais plena possível. Esta é a leitura das normas.

Realizando um confronto dessas normas com a teoria dos graus de vinculação, pode-se

inferir que aquelas trazem em seu conteúdo conceitos vagos. O que representa a acesso

universal e igualitário à saúde? O que seriam condições indispensáveis ao pleno exercício do

direito à saúde? Entende-se que tais condições de acesso e de pleno exercício serão

alcançadas mediante exercício interpretativo do aplicador, no caso, o administrador, tendo

sempre em mente os princípios jurídicos, as finalidades e o contexto das normas a serem

aplicadas.

Nota-se nessa acepção a possibilidade de controle que era reconhecida por Bandeira de

Mello (2012) quando da causa, motivo, legalidade e motivação do ato16. E mais, caberia ao

judiciário à missão de verificar se o administrador se manteve dentro do campo da legalidade,

atual jurisdicionariedade. Um passo adiante está Faria (2011), ao entender ser possível o

controle do mérito do ato administrativo pelo judiciário. Na doutrina pátria não se encontra

dissidência quanto à possibilidade de controle da discricionariedade (FARIA, 2011, p. 214),

mas o controle sobre o mérito foi sistematizado de modo que o controle sobre os motivos, a

16

Havendo vício em algum desses elementos há nulidade do ato administrativo. Desse modo pode-se dizer que

para Bandeira de Mello (2012), é a nulidade do ato, que não perfaz um interesse público, que permite o controle

judicial.

Page 358: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

358

proporcionalidade, a finalidade e capacidade importam em verdadeiro mérito do ato

administrativo17.

No caso de pleito de um medicamento de alta complexidade, por exemplo, que não

está contemplado nas listas nacionais, estaduais ou municipais, qual deve ser a postura da

administração, diante da indeterminação dos conceitos? A tendência é que seja negado,

principalmente sob o argumento de que o medicamento não se encontra na lista oficial de

medicamentos, mas,perante de todo o corpo de normas e princípios orientadores da

administração em suas políticas de saúde, é possível que seja exercido um controle nesse

caso, determinando que a administração cumpra com sua obrigação de proporcionar os meios

para o pleno exercício do direito à saúde.

Desse modo, o juiz, ao ser provocado a se manifestar em uma demanda de

medicamentos, pode analisar a possibilidade de controle a partir da análise das zonas de

certezas positiva e negativa. Assim, a negativa de fornecimento de um medicamento

certamente não se encontra abarcada pelo conceito de integralidade, termo insculpido nas

diversas normas das políticas públicas. Por outro lado, o fornecimento atenderia à finalidade e

alcance da norma que prevê a integralidade. Com base nesse primeiro exame, depreende-se

que o controle jurisdicional será amplo, uma vez que é possível delimitar, sem qualquer

dúvida, a correta utilização do termo.

Em síntese, diante dos conceitos indeterminados contidos nas normas que orientam a

assistência farmacêutica, a análise deve ser feita com base na investigação se tais conceitos

estão situados em uma zona de certeza positiva ou em uma zona de certeza negativa, ou,

ainda, se se encontram em uma zona de penumbra, quando não for possível a afirmação de

que estão compreendidos pelos conceitos apresentados. Neste último caso, a possibilidade de

controle pelo juiz será reduzida, mas não eliminada, tendo em vista que o controle ainda pode

ser efetivado por meio dos princípios.

17

Em 1948, o acórdão proferido por Seabra Fagundes na apelação nº. 1422 em mandado de segurança do

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte marcou, segundo Faria (2011, p.238), o primeiro controle de mérito

de ato administrativo. Na ação a Empresa de Transporte Potiguar questionou ato praticado pelo Inspetor de

Trânsito do Estado do Rio Grande do Norte que determinava horários de saída de ônibus na cidade de São José

de Mipibu com destino a capital do estado que não atendiam aos interesses dos diversos moradores. Segundo o

doutrinador a segurança no caso só foi concedida porque o Tribunal exerceu controle sobre o mérito do ato

administrativo. Não se trata de um caso de saúde, entretanto, a importância do julgado fez chegar ao Poder

Judiciário atual a possibilidade de, se provocado, exercer amplo controle sobre os atos administrativos que não

respaldem interesse público.

Page 359: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

359

5 CONCLUSÃO

Após a exposição sistemática do tema, foi possível constatar que, nos termos da

CRFB, o Estado se colocou na posição de garantidordo direito à saúde, e, caso não cumpra

seu papel, a norma do art. 196 serve de fundamento para exigir que o estado adote

providências para a efetivação do texto constitucional, já que desse dispositivo emerge a

possibilidade de exigir o cumprimento da obrigação estatal dele imposta.

Ressaltou-se também que, de acordo com o princípio da legalidade, a atuação

administrativa e legislativa, responsável por elaborar e efetivar as políticas públicas de saúde,

deve ser exercida dentro dos ditames legais. Dentro dos contornos estabelecidos pela lei, é

lícito ao agente público exercer sua competência, escolhendo a melhor conduta de acordo com

critérios de conveniência e oportunidade. Essa liberdade de atuação é chamada pela doutrina

clássica de discricionariedade.

Entretanto, como visto, o direito administrativo vem ganhando novos contornos,

principalmente a partir do desenvolvimento da teoria dos princípios, vinculando o

administrador à juridicidade. A partir de então, a rígida dicotomia entre vinculação e

discricionariedade perde o sentido, pois o livre espaço que possuía o administrador, segundo a

doutrina clássica, agora se encontra não somente balizado pela norma legal, como também a

própria escolha deve ser orientada pela obediência à juridicidade.A divisão entre vinculação e

discricionariedade dá lugar à constatação de que existem diferentes graus de vinculação à

juridicidade, ou seja, pode haver a vinculação a regras, a conceitos jurídicos indeterminados

ou a princípios.

No que tange ao direito à saúde, foi visto que as normas analisadas se apresentam para

o aplicador por meio de conceitos indeterminados, cujo sentido será desvendado após

confronto com a realidade fática. Dessa forma, cabe ao elaborador e executor das políticas

públicas observar tais conceitos, revelando e concretizando seu sentido no momento do

exercício de sua competência, tendo sempre em mira os princípios orientadores da atuação

estatal.

Conforme visto, caso seja provocado, o juiz deve analisar o comportamento do

administrador verificando se a escolha por este feita encontra-se no campo de certeza positiva

do conceito indeterminado, ou seja, a escolha é alcançada pelo sentido da norma. Neste caso,

não há que falar em controle, pois a finalidade da norma foi observada. Caso contrário, a

conduta esteja situada na zona de certeza negativa, já que é flagrante que a aplicação do

conceito jamais daria ensejo àquele comportamento em análise, o controle do ato pelo Poder

Page 360: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

360

Judiciário será plenamente cabível, tendo em vista a não observância do enunciado normativo.

Por fim, caso a conduta se encontre na zona de penumbra, sobre a qual paira dúvida se a

conduta se ajusta à hipótese normativa, o controle jurisdicional ainda assim não estará

afastado; poderá ser exercido limitado à averiguação de o fato estar ou não em conformidade

com os princípios constitucionais e infraconstitucionais.

Acredita-se que a partir dessa análise ponderada possa se efetivar um controle

jurisdicional legítimo, capaz de garantir a todos, de fato, um direito à saúde pleno, sem que

isso acarrete em desequilíbrio entre os Poderes estatais.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.

8.ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo:

Malheiros, 2011.

______. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,

fornecimento de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial.Disponível em:

<http://www.marceloabelha.com.br/aluno/Artigo%20sobre%20controle%20judicial%20de%2

0politicas%20publicas%20de%20leitura%20obrigatoria%20para%20a%20turma%20de%20d

ireito%20ambiental%20-

%20Luis%20Roberto%20Barroso%20(Da%20falta%20de%20efetividade%20a%20judicializ

acao%20efetiva).pdf >. Acesso em: 21 out. 2013.

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais,

democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

BORGES et al. Anatomia da privatização neoliberal do SUS: o papel das organizações

sociais. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.

BRASIL. 8ª Conferência Nacional de Sáude. 1986. Relatório Final. Disponível em:

<http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/8_CNS_Relatorio%20Final.pdf.> Acesso em:

15 mar. 2013.

______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: em 26 jan.

2014a.

______. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/D7508.htm>. Acesso em:

26 jan. 2014b.

Page 361: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

361

______. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1.990. Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 17 jan. 2014c.

______. Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1.998. Disponível em

<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/1998/prt3916_30_10_1998.html>. Acesso em:

17 jan. 2014d.

CARVALHO, Raquel de Melo Urbano. Curso de direito administrativo: parte geral,

intervenção do estado e estrutura da administração. Salvador: JusPODIVM, 2008.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Discricionariedade Administrativa na Constituição de

1988. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.

MORAIS, Germana de Oliveira, Controle Jurisdicional da Administração Pública. 2ª. ed.

São Paulo: Dialética, 2004.

FARIA, Edimur Ferreira de, Controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Belo

Horizonte: Fórum, 2011.

FERREIRA, Ruan Espíndola. Políticas públicas e limites ao poder discricionário: análise da

STA-AgR 175. Publica Direito. Disponível em

<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=fe7ecc4de28b2c83>. Acesso em 21 jan.

2014.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo:

Malheiros, 1998.

Page 362: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

362

REFLEXÕES ACERCA DA VIOLÊNCIA CONTRA A PESSOA IDOSA:

A REALIDADE ENTRE OS ASPECTOS ÉTICOS E LEGAIS

Rebeka Souto Brandão Pereira

1

GrasielaPiuvezam2

Sumário: 1 Introdução. 2 Do crime silencioso e das questões éticas. 2.1 Panorama

da violência contra a pessoa idosa. 2.2 Leis de proteção ao idoso e a realidade de sua

aplicabilidade. 2.3 Aspectos filosóficos da origem da violência contra o idoso. 2.4

Conflitos ético-sociais acerca da velhice e suas consequências. 3 Conclusão.

Referências.

1 INTRODUÇÃO

A violência contra o idoso pode ser considerada silenciosa e em constante crescimento

dentre a população idosa. Nessa perspectiva há que se ter um panorama geral, dos institutos

que protegem a dignidade da pessoa idosa com a efetiva postura positiva do Estado.

Segundo estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011), o

cenário de crescimento demográfico do Brasil concernente aos idosos brasileiros, é bastante

pertinente, pois, de acordo com o Censo de 2010, a população total do nosso país alcança o

patamar de 190 milhões de pessoas, sendo que 22 milhões são idosos. Neste sentido, o IBGE

fez uma projeção em relação ao crescimento populacional da pessoa idosa, segundo a qual,

em 2050, a população brasileira alcançará 238 milhões de habitantes, dos quais 52 milhões

terão atingido mais de 60 anos de idade.

Constata-se a possibilidade de existir uma imagem sociocultural negativa do idoso

repleta de estereótipos e preconceitos, diferentemente do que ocorre nas sociedades orientais,

onde há a valorização do idoso e a perspectiva de um novo papel social. Essa visão da velhice,

que destaca a incapacidade funcional e social do indivíduo, colocando tal grupo vulnerável

em uma condição de fardo para os seus familiares e/ou cuidadores, entende-se que essa é uma

das principais razões para a prática da violência contra essa faixa etária.

A violência é caracterizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como

qualquer ato único ou repetitivo, e até mesmo a omissão, que cause dano, sofrimento ou

angústia, praticado dentro ou fora do ambiente doméstico, por algum membro da família ou

outra pessoa que exerça algum tipo de poder sobre o idoso. São identificados sete tipos de

maus-tratos contra a pessoa idosa, a partir de um consenso internacional envolvendo a OMS e

1Graduanda do 8° Período do Curso de Direito da UNI-RN. Especialista em Direto Penal pela Faculdade

Internacional Signorelli. Estagiária Concursada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. E-mail:

[email protected] 2 Professora Doutora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte (UFRN).E-mail: [email protected]

Page 363: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

363

a Rede Internacional de Prevenção contra Maus Tratos em Idosos: os maus-tratos físicos, os

maus-tratos psicológicos, a negligência, a autonegligência, o abandono, o abuso financeiro e o

abuso sexual (WHO, 2002).

Desse modo, percebe-se que a violência não se restringe apenas a agressão física,

identificada por lesões corpóreas, mas também por danos sociais, morais e psicológicos, que

provocam sofrimento desnecessário, lesão ou dor, violação dos direitos humanos e redução da

qualidade de vida. Todos esses acontecimentos influem diretamente no medo da represália, da

quebra dos laços familiares, da perda de autonomia e do local onde reside, fazendo a vítima

não buscar ajuda nas medidas legais, no suporte social, com a ocorrência da violência,

favorecendo a manutenção da agressão(SANCHES, LEBRÃO e DUARTE, 2008).

O presente trabalho teve como finalidade promover uma reflexão acerca da questão do

envelhecimento humano e as formas de violência contra idosos tecendo considerações a partir

do Código Penal e do Estatuto do Idoso, bem como das principais doutrinas que dissertam

sobre o objeto em questão.

2 DO CRIME SILENCIOSO E DAS QUESTÕES ÉTICAS

2.1 Panorama da violência contra a pessoa idosa

A velhice é uma realidade fática e de múltiplas faces, nas quais envolve aspectos

biológicos, psicológicos, econômicos, sociais, culturais e existenciais. Para um grande número

de brasileiros, envelhecer representa perdas, como por exemplo, da juventude, da vitalidade

que outrora teve; Sem falar nas perdas mais palpáveis, como a perda do trabalho, dos amigos

e parentes, da saúde, da autonomia, da segurança.

Quando ocorre a preponderância da estigmatização de uma pessoa idosa, terminamos

por posicioná-la à margem da sociedade e da cultura, desrespeitando os princípios basilares da

igualdade, do respeito e da dignidade da pessoa humana, contribuindo para uma diminuição

na valoração do idoso.

Portanto, esse desrespeito, em virtude da diminuição da valoração da pessoa idosa no

âmbito social, contribui para aviolência intrafamiliar, ou seja, no âmbito residencial, que é um

fato que se agrava nos dias atuais. Neste sentido, o envelhecimento da população requer

intervenções eficazes no âmbito das políticas sociais e no âmbito jurídico, com o intuito de

Page 364: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

364

que contemple as novas demandas e necessidades dos idosos de hoje e dos que o serão

amanhã.

São identificados sete tipos de maus-tratos contra a pessoa idosa, a partir de um

consenso internacional envolvendo a OMS e a Rede Internacional de Prevenção contra Maus

Tratos em Idosos: os maus-tratos físicos, os maus-tratos psicológicos, a negligência, a

autonegligência, o abandono, o abuso financeiro e o abuso sexual (WHO, 2002).

Desse modo, percebe-se que a violência não se restringe apenas a agressão física,

identificada por lesões corpóreas, mas também por danos sociais, morais e psicológicos, que

provocam sofrimento desnecessário, lesão ou dor, violação dos direitos humanos e redução da

qualidade de vida. Todos esses acontecimentos influem diretamente no medo da represália, da

quebra dos laços familiares, da perda de autonomia e do local onde reside, fazendo a vítima

não buscar ajuda nas medidas legais, no suporte social, com a ocorrência da violência,

favorecendo a manutenção da agressão.

Percebe-se que as agressões contra a pessoa idosa se contextualizam através de

múltiplos aspectos que se classificam em violência social e familiar, sendo essa última, uma

das maiores agravantes sob o ponto de vista de alguns pesquisadores. Posto que a violência

doméstica é praticada no meio familiar, em regra, por parentes, curadores ou por cuidadores

do idoso, enquanto que a violência social é identificada pelas ações de discriminações e

preconceitos por parte da sociedade ou de instituições privadas ou públicas.

"As relações de troca e a ajuda mútua entre pais e filhos são o principal fator que

tem assegurado, ao longo da história, a sobrevivência nas idades mais avançadas.

Nesse último século, no entanto, as funções familiares nos países mais

desenvolvidos foram sendo gradativamente substituídas pelo setor público,

reduzindo o papel central da família como suporte básico aos idosos. Esse não é o

caso, porém, da maioria dos países menos desenvolvidos onde, devido às

deficiências do setor público, particularmente nas áreas de Saúde Publica e

Seguridade Social, a família (em especial os filhos adultos) continua representando

fonte primordial de assistência para parcela significativa da população idosa."

(SAAD, 2004).

De um modo geral, os abusos familiares contra o idoso são mais preocupantes, tendo

em vista que é na família que a pessoa idosa encontra laços fraternais, o seu habitat, a sua

história, uma segurança como forma de proteção humana. O idoso se sente protegido por

permanecer sobre a companhia daqueles parentes que ele ajudou a evoluir sua geração, são

rostos conhecidos que representam a continuidade de sua existência.

Vale salientar, conforme a Carta Magna, que a família é a base da sociedade, o que

implica que se existe violência social é porque já se presume existir a violência no âmbito

Page 365: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

365

doméstico, no cerne do habitat do idoso, e nesse sentido, afirma MINAYO (2005) que a

natureza das violências que a população idosa sofre coincide com a violência social que a

sociedade brasileira vivencia e produz nas suas relações e introjeta na sua cultura.

Ainda, conforme as reflexões de SOUZA (2004) a violência doméstica ou intrafamiliar

é aquela que toda e qualquer ação ou omissão que restringe a dignidade, o respeito, a

liberdade, a integridade física e psicológica e o pleno desenvolvimento por parte de um

membro familiar. E o sujeito ativo do crime é aquele que pratica essa agressão podendo ser

um sujeito da família, como parente ou pessoa que exerce a função parental sem haver laços

sanguíneos, tal como o cuidador de idosos.

A violência intrafamiliar é um grave problema, posto que, ocorre atualmente, em

vários países, sem distinções de classe, raças, religiões, etnias, culturas entre outros.

Tornando-se um fenômeno complexo, por não existir um consenso entre estudiosos da área a

respeito de como surgiu essa violência. Alguns autores apontam ser referente a questões

socioeconômicas e culturais, e outros acreditam ser por conta da impaciência quanto à questão

da saúde frágil dos idosos e outras.

Contudo, sabe-se que em geral, os casos de violência ocorrem no ambiente doméstico,

entretanto, encontram-se ocorrências em Instituições de Longa Permanência de Idosos (ILPI)

e na vida social. Circunstâncias como essas podem ser desencadeadas devido a fatores

estressantes, de exaustão física e emocional decorrentes dos cuidados prestados ao idoso com

doenças crônicas e incapacidades funcionais, que terminam por sobrecarregar o

familiar/cuidador.

Outras razões são a dependência financeira dos pais idosos com seus filhos, ou vice-

versa, e o abuso de drogas, álcool somados a um ambiente familiar com pouca interação e

afeição e com histórico de agressividade.

Então, para tornar tal fenômeno mais visível e notificável, as equipes de saúde da

Estratégia Saúde da Família (ESF) podem colaborar fortemente para esse fim, uma vez que a

prática multiprofissional inserida no cotidiano, nos costumes e nos problemas das famílias

atendidas facilita a identificação da violência ocorrida no ambiente intrafamiliar e a realização

de processos educativos e de assistência ao idoso, a fim de atuar na prevenção e no tratamento

dos males exercidos contra os idosos.

Conforme afirma CASTRO (2013), a construção social referente à questão da

violência na velhice revela uma problemática antiga que vem se tornando cada vez mais grave

e comum, constituindo um problema social que atravessa gerações e que, portanto, exige

atenção profissional das mais diferentes áreas. No entanto, observa-se que há uma grande

Page 366: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

366

fragilidade na implantação das políticas públicas de proteção ao idoso, que preconizam a

atenção integral e interdisciplinar entre as diferentes áreas de atuação, tais como: ação social,

saúde, direitos humanos, educação e esportes.

A articulação intersetorial com as mais diversas áreas para atenção ao idoso é uma

ação preconizada pela Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI) e também por

autores que discutem a atenção às pessoas em situação de violência.

Seguindo esse prisma de abordagem, é importante também destacar a necessidade de

políticas públicas eficazes para a prevenção e a assistência à vítima de violência. Dentre os

documentos legais relacionados à temática, destacam-se: a Lei 8.842/94 regulamentada pelo

Decreto 1.948/96 que cria a Política Nacional do Idoso (PNI) e pelo Decreto 4.227 de 13 de

maio de 2002 que cria o Conselho Nacional dos Direitos dos Idosos, a Lei 10.741/03 que cria

o Estatuto do Idoso e a Portaria 2.528/06 que aprova a Política Nacional de Saúde da Pessoa

Idosa (PNSPI).

Assim, pode-se observar que embora essa questão esteja bem fundamentada, há uma

grande disparidade entre a teoria e a prática observada no cotidiano. Por isso, é necessário

investigar e analisar os entraves à aplicabilidade das ações de proteção ao idoso, visando à

dissolução desses problemas e, consequentemente, à maior eficácia das políticas públicas

existentes.

Posto que, o crime de maus-tratos contra a pessoa idosa representa uma grave violação

de seus direitos como cidadãos, demonstrando um retrocesso da evolução jurídico-social no

que concerne às afirmações dos direitos humanos, posto que, as mudanças ocorrem

constantemente no Brasil e no mundo. Apontando a violência doméstica para o rol das que

mais contrariam tais princípios humanísticos, os quais resguardam e tutelam o idoso.

2.2 Leis de proteção ao idoso e a realidade de sua aplicabilidade

Segundo a Declaração dos Direitos Humanos (ONU, 1948) ―Todas as pessoas nascem

livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em

relação umas às outras com espírito de fraternidade‖. Nos 30 artigos da Declaração Universal

dos Direitos Humanos, encontra-se o repúdio a toda e qualquer forma de exploração,

desigualdade e discriminação, seja de sexo, de idade, de raça, de nacionalidade, de religião, de

opinião política, de origem social etc. Apontando, de forma clara e incisiva, todos os direitos

inerentes à pessoa.

Page 367: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

367

No Brasil, o Estatuto do Idoso assegura direitos para as pessoas com idade igual ou

acima de 60 anos. Determina que os idosos gozem de todos os direitos inerentes ao ser

humano e garante proteção, facilidades e privilégios condizentes com a idade, como por

exemplo, prioridade no atendimento e facilidade de acesso aos meios e recursos necessários à

existência. Segundo o artigo 3º3 do dispositivo:

―É obrigação da família, da comunidade, da sociedade em geral e Poder Público

assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde,

à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à

liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.‖

(BRASIL, 2004)

Nesta perspectiva, existe a previsão legal no Estatuto do Idoso do amparo da pessoa

idosa pela família, pela sociedade e pelo Estado, assegurando-lhe a efetiva participação na

comunidade e preservando sua dignidade, seu bem-estar e o direito à vida.

Tal fato consiste na inclusão do idoso, processo este que resguardar o direito dele de

pertencer e participar das atividades sociais, no que concerne em falar e ser ouvido. Significa

poder usufruir dos bens socialmente produzidos, sejam eles materiais (moradia, comida,

remédios etc.) ou culturais (educação e lazer). Ser cidadão supõe participar ativamente da

sociedade.

E como coibição da violação deste dispositivo, segundo o artigo 6º, do mesmo

Estatuto afirma que: ―Todo cidadão tem o dever de comunicar à autoridade competente

qualquer forma de violação a esta Lei que tenha testemunhado ou que tenha conhecimento.‖

Posto que, as restrições socialmente impostas aos idosos podem acarretar a perda de

autonomia para decidir e escolher o que é melhor para si, estigmatizando e desvalorizando o

idoso, condenando-o ao abandono e ao isolamento para exercer a cidadania o indivíduo

precisa de autonomia e independência.

A autonomia consiste na capacidade de decidir, ao passo que e a independência é a

capacidade de realizar algo por seus próprios meios, sendo estes os princípios que muitos

idosos precisam conquistar novamente.

São considerados indicadores de saúde e também identificam idosos com

envelhecimento bem ou mal sucedido. Assim, a sociedade deve ajudar a promover e preservar

a autonomia e a independência dos idosos e deixar de considerá-los cidadãos de ―segunda

classe‖. 3BRASIL. Estatuto do idoso: lei federal nº 10.741, de 01 de outubro de 2003. Brasília, DF: Secretaria

Especial dos Direitos Humanos, 2004.

Page 368: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

368

Contudo, mesmo diante da incapacidade do idoso para exercer atos de cidadania, a

Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), assim como a Constituição

Federal do Brasil (BRASIL, 1988), tem como o ideal maior a formação e manutenção de uma

sociedade justa e fraterna, pluralista e sem preconceitos de qualquer espécie; de uma

sociedade fundada na harmonia social e no compromisso com a solução pacífica de problemas

sociais, conflitos e contradições.

A Constituição Federal (BRASIL, 1988) reafirma, em seu artigo 1°, que a República

Brasileira tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os

valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. O que deveria obstar

tais tipos de violência, sob a preponderância de atos ensejadores de coibir os agressores.

A carta magna vai além, em seu artigo 304, ela estabelece como objetivos:

"Construir uma sociedade livre, justa e solidária: Garantir o desenvolvimento

nacional; Erradicar a pobreza e a marginalização; Reduzir as desigualdades sociais e

regionais; Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e

quaisquer outras formas de discriminação.‖.

Contudo, fica a questão, de que será que tais dispositivos constitucionais são

respeitados, e quais os mecanismos jurídicos e éticos que deveriam ser adotados para uma

efetiva coibição de agressão contra a pessoa idosa, conforme explana a doutrinadora Flavia

Piovesan ―Que possamos celebrar (...) o início de uma cultura de respeito à cidadania, capaz

de implementar, de forma plena e ampla, a absoluta prevalência à dignidade humana.‖

Ao analisarmos este fato, constatamos um grande hiato que separa a realidade dos

princípios constitucionais e da Declaração Universal dos Direitos Humanos é, ainda, bastante

grande, e dessa maneira podemos concluir que tais dispositivos jurídicos encontram-se no

plano do ideal, do dever ser.

A realidade da sociedade brasileira tem como principal reflexo a desigualdade, na qual

os direitos valem para alguns, mas não para a maior parte dos brasileiros. Além dos milhões

de brasileiros que vivem abaixo da chamada ―linha de pobreza‖, outros tantos milhões

experimentam as mais adversas condições de trabalho, saúde, alimentação, educação,

transporte, habitação etc.

A Organização das Nações Unidas (ONU) mostra ainda, que o Brasil aparece com o

terceiro pior índice de desigualdade no mundo e, em se tratando da diferença e distanciamento

4 BRASIL. Constituição Federal. 1988

Page 369: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

369

entre ricos e pobres, fica atrás no ranking apenas de países muito menores e menos ricos,

como Haiti, Madagascar, Camarões, Tailândia e África do Sul (ONU, 2011).

E tem como as principais causas de tanta desproporcionalidade social, é a falta de

acesso à educação de qualidade, de uma política fiscal injusta, de baixos salários e da

dificuldade da população em desfrutar de serviços básicos oferecidos pelo Estado, como

saúde, transporte público e saneamento básico (ONU, 2011).

Mesmo com a Constituição Federal e de diversos códigos e estatutos, os quais

asseguram o acesso à educação, moradia, saúde, segurança pública, além de autonomias

econômicas e ideológicas, a realidade que se vê ainda é distante do que se vislumbra no

direito do cidadão brasileiro quando se trata à erradicação da desigualdade social neste país,

em constante crescimento econômico e político.

2.3 Aspectos filosóficos da origem da violência contra o idoso

Neste contexto, entende-se que a vida contemporânea se caracteriza pelo progresso

científico e tecnológico, através de novos meios de comunicação, dos avanços dos meios de

transporte, novas formas de arquitetura, assim como em outros campos do conhecimento.

Esses avanços desempenharam um papel central no processo de mudanças no contexto

político-econômico, e, sobretudo, no âmbito cultural.

Evidenciam-se então, essas mudanças sociais através da multiplicidade de novos

estilos de vida e de socialização, o que explicita um novo olhar para a realidade atual das

sociedades, a diversidade em sua essência torna-se uma característica da sociedade brasileira.

É, traduzida em diferenças de raças, de culturas, de classe, de sexo ou de gênero, de religião,

de idade, dentre outras.

Nesta perspectiva, viver em sociedade é conviver com situações que propõem ao

homem oportunidades de lidar com questões éticas, morais e religiosas as quais servem de

base para a orientação normativa do individuo no seio social.

Observa-se que é na medida em que majora a consciência social dos direitos

individuais, sociais, coletivos e políticos, ressaltam-se inúmeras formas de tentar introduzir o

exercício da cidadania, conscientizando e problematizando o problema da violência contra os

idosos.

Por isso, afirma LOPES (2005), a luta pelo direito de reconhecimento é uma disputa

pelo reconhecimento da dignidade da pessoa aviltada ou ofendida pela maioria; contudo, não

é uma luta pelo convencimento da maioria quanto ao valor de uma minoria, mas uma luta pelo

Page 370: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

370

pluralismo. Não se trata de dar a cada ser humano que pertence àquele grupo estigmatizado a

oportunidade de simplesmente se desfazer do estigma, e sim de desestigmatizar todo o grupo,

demonstrando que o estigma está fundado em preconceitos e discriminações inaceitáveis na

sociedade.

Logo, permanece como ideal a ser brevemente atingido o princípio da igualdade, isto

porque ainda existem enormes desigualdades, preconceitos e discriminações. Seja no âmbito

das diferenças de sexo, orientação sexual, cor da pele e quanto à idade, o que atinge neste

caso, a pessoa idosa.

O desrespeito, por vezes, nasce das diferenças, e essas dessemelhanças, caracterizam-

se por ser a essência de uma sociedade em virtude da própria dialética social. Contudo, o

direito à diferença pode ser um fator de relevância no que condiz aos direitos inerentes ao ser

humano, a sociedade utiliza das diferenças para usurpar direitos em virtude da intolerância.

Portanto, o reconhecimento das diferenças poderia ser o remédio para fazer valer o direito da

diferença, em que neutralizaria a valoração negativa identitária do indivíduo (LOPES, 2005).

O sociólogo HONNETH (2003) traça uma estrutura das relações sociais de

reconhecimento, em que o mesmo contêm três formas de relações: as primárias (guiadas pelo

amor), as jurídicas (pautadas pelo direito) e na comunidade de valores (firmadas na

solidariedade). A primeira relação tem abarca com a autoconfiança do sujeito, por se

relacionar com questões de natureza emotiva e de dedicação com outrem, a segunda envolve

autorrespeito, pois se trata de questões de respeito mútuo e às leis humanas, assim como

envolve a cognição, e por fim a terceira relação que tem a ver com a autoestima, por tratar-se

de estima social.

O autor associa três formas de desrespeito: 1) Maus tratos e violação, as quais afetam a

integridade física e psíquica dos sujeitos, portanto, a autoconfiança; 2) Privação de direitos e

exclusão, em que promove a negação de direitos, e implica na destruição da possibilidade do

autorrespeito, ao passo que impõe ao sujeito o sentimento de subalternidade, 3) Degradação e

ofensa, na qual abarca a referência negativa ao valor de certos indivíduos e grupos, o que

causa dano à autoestima.

Essas formas de desrespeito e degradação impedem a possibilidade de autorrealização

realização do indivíduo em sua totalidade. A subalternização e a humilhação ameaçam as

identidades, e desta forma, tornam-se as molas propulsoras para a formação das lutas pelo

reconhecimento, o que é importante para o progresso moral do sujeito e da sociedade em

geral, em virtude da concepção ensejada por HONNETH (2003) de boa vida, na qual é a

Page 371: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

371

eticidade formal fundada no amor, no direito e na solidariedade, que apenas é construída

através da interação social.

A formação da luta pelo reconhecimento, ou seja, o conflito é inerente tanto à

formação da intersubjetividade como aos próprios sujeitos. E, versa sobre uma luta de aspecto

moral (impulsos morais, e não mais de autoconservação), visto que a organização da

sociedade é pautada por obrigações intersubjetivas, ou seja, a reciprocidade do

reconhecimento identitário gera ―uma pressão intrassocial para o estabelecimento prático e

político das instituições garantidoras de liberdade.‖ (HONNETH, 2003).

Na analítica do poder em FOUCAULT (1979) não há apenas o predomínio dos

impulsos morais, mas sim a racionalidade das relações de poder, logo ―o poder é guerra,

guerra prolongada por outros meios‖. Sendo assim, o poder é luta, disputa, relações de forças

estratégia, em que o objetivo é obter vantagens e benefícios. E luta há que se articular em

extensa rede de poderes que atravessam a sociedade. Sendo assim, Foucault entende que a

base das relações de poder seria o confronto através de lutas das forças sociais em uma

dialética constante.

FRASER (2003) apresenta uma nova conotação para a filosofia política do

reconhecimento, ao fornecer uma fórmula sucinta quando se referiu a transição do

pensamento político de redistribuição para o reconhecimento da dignidade pessoal de todos os

indivíduos.

Segundo a mesma autora, reconhecimento de minorias não é uma questão ética, mas

sim moral, logo não implica à busca pessoal pela autorrealização, mas as leis humanas, as

quais organizam as instituições públicas; Então, o desenho institucional só será justo na

medida em que todos os segmentos da sociedade, sejam eles de grupos majoritários ou de

grupos minoritários, tenham a possibilidade de participar de maneira igualitária na formulação

dessas regras. Conclui-se, portanto a ligação de paridade participativa e a produção de justiça

social.

FRASER (2007) explicita que seu modelo moral de reconhecimento não invalida as

reivindicações de justiça econômica. Assim, estabelece que para que seja possível criar um

regime de paridade participativa é necessário tanto que certas condições objetivas, quanto

certas condições intersubjetivas, sejam satisfeitas.

As condições objetivas são aquelas que excluem níveis de dependência econômica e

desigualdade que impeçam a igualdade de participação. Ao passo que as subjetivas exigem o

mútuo respeito e a garanta a oportunidade igual para que cada qual alcance a estima social.

Page 372: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

372

Torna-se oportuno ressaltar que ambas são necessárias para a paridade de participação, pois a

satisfação de apenas uma delas – reflete a autora que, não é suficiente.

Desse modo, a sociedade e as leis propiciam a oportunidade para que os sujeitos

estejam em um processo contínuo de autorreconhecimento, tanto no âmbito das capacidades

como nas potencialidades, neste sentido é previsível o surgimento de constantes lutas sociais

de reconhecimento dando início à nova fase de reconhecimento social o que possibilita ao

indivíduo a apreensão de novas dimensões de sua própria identidade.

E o reconhecimento social do idoso se reflete através do desaparecimento do

preconceito e discriminação, logo, da discriminação, desenvolvendo ações contrárias à

segregação. O que já enseja os preceitos constitucionais e da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, e este fato não podemos atribuir apenas ao Estado a responsabilidade pelas

discriminações e desigualdades. Se ao Estado cabe parte da responsabilidade, à Sociedade

Civil – com suas diferentes e diversas formas de organização e mobilização – cabe,

igualmente, o papel de transformar em realidade o que, por enquanto, são desejos, ideais e

aspirações.

2.4 Conflitos ético-sociais acerca da velhice e suas consequências

A questão das violências sofridas pelas pessoas idosas é uma preocupação atual, pois a

cada dia, nasce uma nova vítima de todos os tipos de violências possíveis, e é nesta ótica, o

idoso sendo este mais vulnerável e, portanto mais frágil, acaba por se tornar vítima de um

crime silencioso, tendo em vista os diversos abusos psicológicos e físicos.

Para MINAYO (2005), a violência acometida aos idosos trata-se de um fenômeno de

notificações recente no mundo e no Brasil, posto que a vitimização desse grupo é decorrente

de um problema sócio cultural de raízes profundas e antigas, e suas manifestações são

facilmente reconhecidas desde as mais antigas estatísticas elaboradas.

Ressalta, ainda a autora, que no momento histórico, a quantidade crescente de idosos

oferece um clima de publicização e de politização das informações sobre maus-tratos de que

são vítimas tornando este problema uma prioridade na pauta de questões sociais, o que

comprova este fato foi que em 1975 os abusos de idosos foram publicados em revistas

científicas na Inglaterra, e tornou-se visível no Brasil na década de 90, marcando um avanço

no âmbito da consciência social do País.

Trata-se de um crime silencioso, posto que, seus ofendidos dependem genuinamente

dos ―cuidados‖ de seu agressor, e nesta perspectiva, na eminência de uma relação de

Page 373: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

373

dependência, acabam por se sentir intimidados, ou envergonhados de denunciá-los acabando

por silenciar diante da justiça.

O silêncio perante as autoridades policiais, e conseqüentemente, diante da justiça

torna-se uma situação que agrava a identificação de tais crimes, posto que, segundo policiais

especializados na proteção da pessoa idosa, em situação de diligência, afirmam que na

maioria das denúncias anônimas quando investigados in loco, nada restava constatado,

ficando apenas uma denúncia anônima infrutífera.

Resta patente que diante de crimes com tanta peculiaridade, deve-se ter uma nova

abordagem investigativa, pois esta categoria de crimes representa um retrocesso da evolução

social quanto às afirmações dos direitos humanos, pois as mudanças ocorrem constantemente no

país e no mundo, além de grave desrespeito dos direitos do homem, demonstrando assim. Nesta

perspectiva, a violência doméstica é o exemplo mais significativo de violação dos princípios

protetivos da pessoa idosa prevista no ordenamento jurídico internacional e brasileiro.

Ao passo que, no que concerne à área da saúde, estes crimes se denominam de

violências que se categorizam em violência física, na qual o uso da força física para ferir,

provocar dor, incapacidade ou morte ou para compelir o idoso a fazer o que não deseja;

Do mesmo modo ocorre a violência psicológica, onde as agressões verbais ou gestuais

com o objetivo de aterrorizar, humilhar, restringir a liberdade ou isolar o idoso do convívio

social;

A violência sexual, nos quais os atos ou jogos sexuais de caráter homo ou

heterorrelacional que utilizam pessoas idosas visando obter excitação, relação sexual ou

práticas eróticas por meio de aliciamento, violência física ou ameaças;

Nesse aspecto, Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS, 1990) define violência

como sendo a utilização da força física ou da coação psíquica e moral por um indivíduo ou

grupo, gerando destruição, dano, limitação ou negação de qualquer dos direitos estabelecidos

das pessoas ou dos grupos vitimados.

Contudo uma das principais formas de violência contra a pessoa idosa é a violência

financeira e econômica, onde a exploração imprópria, ilegal ou não, consentida dos bens

financeiros e patrimoniais do idoso; A negligência: recusa ou omissão de cuidados devidos ao

idoso, por parte de responsáveis familiares ou institucionais; Assim como o Abandono, no

qual a ausência ou deserção dos responsáveis governamentais, institucionais ou familiares de

prestarem socorro a um idoso que necessite de proteção.

Page 374: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

374

Sem olvidar que, em decorrência de todas as formas de violências destacadas acima,

pode ocorrer a autonegligência, em que a conduta da pessoa idosa ameaça sua própria saúde

ou segurança por meio da recusa de prover a si mesmo de cuidados necessários.

Segundo MINAYO (2003), a violência familiar contra idosos é um problema de

caráter nacional e internacional, pois, pesquisas feitas em várias partes do mundo revelam que

cerca de 2/3 dos agressores são filhos e cônjuges. E que as agressões mais relevantes são

exteriorizadas através dos abusos e negligências, nas quais se perpetuam por choques de

gerações, por problemas de espaço físico e por dificuldade financeiras que costumam somar a

um imaginário social que estigmatiza a velhice como uma ―decadência‖ e os idosos como o

―passado‖ e ―descartáveis‖.

No Brasil, está-se convivendo com a primeira geração a ter seus direitos reconhecidos

pela Política Nacional do Idoso, instituída pela Lei n° 8.842, de 1994. Mas só com a

aprovação do Estatuto do Idoso, em 2003, passou a ocorrer maior conscientização por parte

da sociedade quanto à observação desse específico amparo legal.

Com Estatuto, o Ministério Público Estadual passou a atuar na defesa dos direitos dos

idosos relacionado com o direito à vida, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à saúde, a

alimentos, educação, cultura, esporte, lazer, profissionalização, ao trabalho, à assistência

social, à habitação, ao transporte, ou assegurados ao idoso, promovendo as medidas judiciais

ou extrajudiciais cabíveis.

Existe previsão normativa na Constituição Federal5, em seu artigo 144 no qual aduziu:

―a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é

exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do

patrimônio‖. Corroborando com a Carta Magna, o Estatuto do Idoso em seu Art. 4º,

ensina que ―nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência,

discriminação, violência, crueldade ou opressão‖.

Ainda no mesmo instituto jurídico, os parágrafos §§1º e 2º, mostram que ―é dever de

todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso‖, assim como ―as obrigações

previstas nesta Lei não excluem da prevenção outras decorrentes dos princípios por ela

adotados‖.

São os responsáveis por esta situação, o Estado, por falta de uma postura mais próxima

e acessível ao idoso, assim como a sociedade adulta e jovem, que em regra, discriminam e

asilam os idosos, dentro de suas próprias residências ou bem afora dela. Outros abandonam

5 BRASIL. Constituição Federal. 1988.

Page 375: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

375

seus entes velhos em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI), e jamais voltam

para saber de suas vidas.

Assim como, segundo o texto de uma Ação Civil Pública, a qual trabalha em Defesa

das Pessoas Portadoras de Deficiência e Idosos, afirmou que ―é prioritário a preferência na

formulação e na execução de políticas sociais públicas específicas, bem como na destinação

privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção ao idoso‖6.

Por se tratar de um crime silencioso, e corroborando com um cenário de grande

crescimento da população idosa, deve-se buscar um panorama dos institutos que protegem a

dignidade da pessoa idosa agregado a efetiva postura positiva do Estado.

Os crimes previstos no Código Penal Brasileiro são os crimes sexuais, contra a pessoa

e os contra o patrimônio. Condutas tipificadas por abusos sexuais, apropriação indébita,

abandono de incapaz, dentre outros.

Torna-se importante discorrer acerca da ética e da aplicabilidade da lei, diante de casos

de suspeição de violência contra a pessoa idosa, existem denúncias que quando investigadas,

nada fica comprovado, tornando as diligências infrutíferas diante da não constatação de crime

pelos policiais. A ausência de sinais e sintomas em decorrência deste crime específico, não

assegura a inexistência de violência contra idosos, mas existem alguns indicadores que

servem de guia quando se suspeita de uma dessas situações. Assim, de acordo com

GUCCIONE (2000):

―(…) os indicadores físicos mais comuns nesses casos são perda de peso,

desnutrição ou desidratação sem uma patologia de base que justifique marcas,

hematomas, queimaduras, lacerações, úlcera de pressão, ferimentos; palidez, face

abatida, olheiras, evidência de descuido e má higiene da pele, vestuário inadequado,

sujo, inapropriado para a estação, ausência ou estado ruim de conservação de

próteses; evidência de administração incorreta de medicamentos; evidência de

traumas ou relatos de acidentes inexplicáveis.‖

Continua o autor a relatar que, após ter sofrido episódios de violência, o idoso pode

demonstrar passividade, resignação, tristeza, desesperança, falta de defesa, ansiedade,

agitação, medo, exacerbação de quadro depressivo, relatos contraditórios, receio de falar

livremente, relutância em manter qualquer tipo de contato verbal ou físico com o cuidador,

busca ou mudança frequente de profissionais e/ou centros de atenção médica.

GUCCIONE (2000) ainda afirma que:

6AÇÃO CIVIL PÚBLICA impetrada em 2008 pela 30ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE

NATAL.

Page 376: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

376

―Existem ainda os indicadores sexuais, que se constituem em conduta sexual

incompatível com a personalidade prévia, comportamento diferente e inapropriado

diante da presença de certas pessoas (comportamento exibicionista, comentários fora

de lugar), conduta agressiva, isolamento, autoagressão, presença de sinais e

sintomas, tais como infecções recorrentes, dor, hematomas, sangramento na região

anal e genital, dificuldade para a marcha e dor abdominal sem causa aparente,

vestuário íntimo rasgado ou manchado de sangue.‖

Entretanto, torna-se importante dissertar acerca das questões da ética, posto que,

supostamente é pela ética que se acredita na não existência da violência contra o idoso, por se

tratar de parentes os agentes ativos do crime.

A ética aristotélica foi concebida de modo sistemático, no Livro I da obra Ética a

Nicômacoo filósofo grego analisa o agir humano, na qual constata que toda prática é realizada

tendo em vista um fim. Logo, a finalidade da medicina é a saúde, da economia é a riqueza, é

pacífico que os fins seriam os bens. Contudo, estes bens não possuem fins em si mesmos, isto

é, não são bens autossuficientes, mas intermediários para a Felicidade, este sim entendido

como o sumo bem.

Para Aristóteles os indivíduos divergem sobre aquilo que seria a Felicidade, pois se

para alguns ela está ligada à riqueza, para outros está à honra e assim por diante. Entretanto,

não existem divergências quanto ao fato de ela ser o bem supremo. A ética aristotélica

converge para uma metafísica, uma vez que pressupõe a Felicidade, como bem absoluto. O

conceito de Eudaimonia várias vezes na obra surge em conotação divina, revelando que o

indivíduo que vive de modo habitualconforme a prática das virtudes aproxima-se da melhor

condição humana, da perfeição.

A virtude, considerado o bem supremo, em sentido helênico são todos termos que

certamente retomam a concepção de Ser, que na obra Metafísica Aristóteles articulará no

conceito de Primeiro Princípio, neste óbice, o homem virtuoso possuía a felicidade, e,

portanto da perfeição e da sua condição divina.

Este projeto elevado de ética, que fielmente a longa tradição grega da Paideia,

persistirá durante vários séculos, influenciando a ética medieval e moderna. O ser humano é

visto filosoficamente em uma de suas características essenciais justamente a tendência a viver

em sociedade, àquilo que Aristóteles denominou animal político. Para o pensamento grego

em geral, não somente Aristóteles, o homem só possui sentido quando cidadão, isto é, quando

imerso na polis.

Assim, para HEGEL (2010) ―A eticidade é o plano objetivo, no qual onde as leis

derivadas dos costumes reconhecidos em uma comunidade são positivadas e vinculam a ação

de todos os indivíduos, portanto, é de caráter objetiva, possuindo o poder de coerção.‖. A

Page 377: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

377

grande contribuição hegeliana a esta problemática é que se trata apenas de uma aparente

separação, apenas conceitual.

A objetividade da eticidade não é exterior e opressora contra os sujeitos, pois os

costumes apenas se tornam leis quando devidamente reconhecidos socialmente pelo povo.

Logo, os costumes são as práticas que nascem da subjetividade dos indivíduos, mas que se

expandem em uma dimensão intersubjetiva por meio do reconhecimento ético, em uma

fenomenologia descrita habilmente por Hegel na obra Fenomenologia do Espírito.

Neste contesto, assim como o estigma da velhice, o costume está sempre condicionado

a uma prática coletiva, logo, para existir, necessita que seja um comportamento praticado

habitualmente por muitas pessoas em uma comunidade. O movimento nasce da interioridade

de um sujeito, que é reconhecido por outro, e nesse processo toma forma histórica e por fim

consolida-se juridicamente na forma de lei.

Portanto, a compreensão hegeliana é bastante existencial, tratando a ética com

fundamento no indivíduo em harmonia com a comunidade, e materializa-se historicamente

através dos costumes, práticas sociais coletivas que são institucionalizados como leis.

Na concepção de REALE(2002):

―O direito é uma experiência cultural, um modo existencial utilizado pelo homem

para transformar a Natureza em mundo humano, em Cultura. A norma jurídica é

essencialmente cultural. Uma norma sempre decorre de fatos concretos que a

justificam.‖

Para uma coletividade entender que estes fatos são tão essenciais a ponto de

precisarem ser regulamentados é porque eles representam algum valor, isto é, algum bem que

deve ser protegido juridicamente. Toda norma jurídica possui em seu conteúdo um valor. E

todos os valores decorrem, em última instância, de um valor-fonte: a dignidade da pessoa

humana, afirmou REALE (2002) nas obras Direito como Experiência e Experiência e

Cultura.

É nesta perspectiva que continua o autor defendendo a sua concepção do Direito, no

qual se trata de uma construção com bases tanto transcendentais como empíricas. Demonstra-

se, então, como age a dinâmica da ética, que acaba por abarcar e substanciar a dinâmica

jurídica.

Logo, compreende-se que a ética estabelece critérios para o agir individual em

consonância com o bem comum. Sendo, somente possível no plano existencial, tendo em

vista as características históricas de tempo e espaço. Ademais, esta se vincula originariamente

Page 378: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

378

à ideia de bem, mesmo que o seu conceito não seja uno, ainda pode ser muito bem sintetizada

na clássica definição aristotélica da Felicidade, em grego, é entendida por Eudaimonia.

Portanto, a ética busca delimitar critérios que possibilitam ao homem viver bem e

aproximar-se da felicidade, e este caminho passa pela dimensão intersubjetiva, momento em

que se constituem os costumes que por sua vez reproduzirão a vontade coletiva de

determinado grupo. E é desta forma que em um mundo moderno, toda a dinâmica ética

alcança uma dimensão global, posto que, existe uma multiplicidade de costumes e concepções

éticas, que ultrapassam fronteiras e constituem-se verdadeiras práticas sociais globais.

Neste sentido, o critério ético torna-se importante para a implementação e aplicação de

um direito transnacional, que é a questão da Declaração dos Direitos do Homem (ONU,

1948), no qual tutela a questão da dignidade da pessoa humana, o que ajuda na (re)formulação

do sistema jurídico local, no qual refletiria valores e costumes globais na aplicação e

efetivação da norma jurídica.

3 CONCLUSÃO

Finalmente, a partir de uma análise conjunta da cláusula pétrea que trata dos direitos e

garantias individuais, agregada com o art. 230, CF/88 no qual considera que a família, a

sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação

na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida;A

violência contra o idoso é prova da não efetivação deste preceito constitucional, visto que o

abandono, a violência física e financeira não contraria apenas estes institutos constitucionais,

mas também o Estatuto do Idoso.

A violação destes direitos ocorre não só por ação de quem ampara os idosos, mas

também pela omissão do Estado, no qual deixa de fiscalizar e punir tais agressores. A questão

da fiscalização se torna um ponto delicado, posto que se nota que não há uma preparação

especializada das policias, sejam civis ou militares, para que estabeleçam uma efetiva

constatação de tal crime. Isso por se tratar de crimes que ocorrem, geralmente, no âmbito

intrafamiliar, nos quais as vítimas silenciam pela tradição de que seus filhos lhes

resguardariam uma boa velhice.

Nesta perspectiva, acredita-se que a falta de efetividade da aplicação das normas

jurídicas ocorre também na esfera da concepção do que é ética, pois nota-se que a ética está

ligada também com questões tradicionalistas da sociedade, o que não deveria acontecer, pois

o correto seria ser definida pelos valores reconhecidos e defendidos mundialmente

Page 379: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

379

REFERENCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: Editora da UnB, 2001.

FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?São Paulo: Edições 70, 2007.

FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos

conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.

GUCCIONE, Andrew. A.Fisioterapia geriátrica. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,

2000.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito.São

Paulo: Loyola, 2010.

HONNETH, Axel. Redistribution as recognition: a response to Nancy Fraser. In: FRASER,

Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or Recognitio. Londres-Nova York: Verso, 2003.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores

Sociodemográficos.Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/home/ >.

Acesso em: 20 dez 2013.

LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito ao reconhecimento para gays e lésbicas.Sur, Rev.

int. direitos human., São Paulo , v. 2, n. 2, p p. 64-95, jun./ago., 2005.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Violência Contra Idosos: O Avesso de Respeito à

Experiência e à Sabedoria. 2ªed. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2005.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.

UNITED NATIONS.The Millennium Development Goals Report.Washington, DC: UN,

2011 Disponível em: <http://www.un.org/millenniumgoals/11_MDG%20Report_EN.pdf>.

Acesso em: 10 abril 2014.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE; ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA

SAÚDE. Las condiciones de saluden lãs Americas.Washington, DC: OPAS/OMS, 1990.

REALE, Miguel. Direito como Experiência: introdução à epistemologia jurídica. 2. ed.

São Paulo: Saraiva, 2002.

SAAD, Paulo Murad. Transferência de apoio intergeracional no Brasil e na América Latina.

In: CAMARANO, Ana Amélia (Org.). Os novos idosos brasileiros: muito além dos 60? Rio

de Janeiro: Ipea, 2004.

SANCHES, Ana Paula R. Amadio; LEBRAO, Maria Lúcia; DUARTE, Yeda Aparecida de

Oliveira. Violência contra idosos: uma questão nova?Saúde soc., São Paulo, v. 17, n.

3, Sept., 2008.

Page 380: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

380

SOUZA. A. S. et al. Fatores de risco de maus-tratos ao idoso na relação idoso/cuidador em

convivência familiar. Textos sobre envelhecimento, Rio de Janeiro, v.7, n. 2, 2004.

WORLD HEALTH ORGANIZATION; INTERNATIONAL NETWORK FOR THE

PREVENTION OF ELDER ABUSE. Missing voices: views of older persons on elder

abuse. Geneva, WHO, 2002.

Page 381: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

381

REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O TESTAMENTO VITAL

Cinthia Caroline Luiz do Nascimento

1

Sumário: 1 Introdução. 2 O princípio da dignidade humana como pressuposto ao

direito a morte digna. 3 Definição de testamento vital. 4 Breve histórico sobre

testamento vital. 5 testamento vital e sua expansão no mundo. 5.1 Estados Unidos.

5.2 Espanha. 5.3 Alemanha. 5.4 Portugal. 5.5 Argentina. 6 Do cabimento do

testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro. 7 A Resolução 1.995/2012 do

conselho federal de medicina. 8 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A morte é talvez uma das realidades mais difíceis de suportar, apesar de fazer parte do

ciclo natural da vida de todos os seresexistentes. O fato é que algumas pessoas atravessam

processos extremamente dolorosos até passar por ela. Nessaera de avanços tecnológicos,

especialmente na área da medicina, são criados com frequência medicamentos e

aparelhosamplamente eficazes e capazes de prolongar a vida, contudo, em se tratando de

paciente terminal estes tipos de terapêuticas acabam por prolongar tambémoseusofrimento.

É visto atualmente que o uso de algumas terapias e métodos medicinais está alargando

a tortura desses enfermos, uma vez que estes assim são mantidos devido ao uso dos aparelhos

que os preservam ―vivos‖, dessa maneira, ao tentar salvar acabam por retirar a dignidade

desses indivíduos que estão em estado deplorável de vida (SILVA e GOMES, 2012).

O princípio da autonomia humana tem ganhado força nosordenamentosjurídicos,ese

consubstancia por meio do consentimento informado e expresso das escolhas do paciente, por

exemplo. Nos últimos anos, a observação a este princípio trouxe para o paciente

odireitodeserinformado, escolher qual tratamento deseja receber e atémesmopermitir ou não

procedimentos ou terapiasprocrastinatórias, propostas pelos médicos(CAMPOS et al, 2012).

A proximidade com a morte é considerada, sem dúvida, um dos momentos mais

difíceis para a maioria das pessoas, por isso falar nesse tema sempre geracertoembaraço, uma

vez que as opiniões são divididas entre grupos que são a favor e outros que são contra as

práticas de tratamentos que prolonguem a vida de doentes com quadro irreversível.

Estaanálise trazconflitosentrevários princípios e garantias constitucionais como o da liberdade

de autodeterminação e o do direito à vida, defendendo a ideia de que este é um bem

indisponível (PICCINI et al, 2012), assim como o da dignidade da pessoa humana e até a

proibição de tratamento desumano (DADALTO, 2013).

1 Graduada em Direito pelo UNIPÊ.

Page 382: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

382

Com recursos terapêuticos cada vez mais avançados o tempo de vida de pessoas em

fase terminal tem crescido consideravelmente, entretanto pensar em prolongamento da vida

sem pensar na possibilidade de tê-la com qualidade é no mínimo uma atitude insensata.Tal

afirmação gera um questionamento, será que agindo dessa forma os pacientes estarão sendo

submetidos um tipo de tortura consentida? (DADALTO, 2013)

Em assim sendo, foi criado um meio para tentar, solucionar ou amenizar, essas

questões. Hoje existe um documento chamado de testamento vital que na visão de

Furtado(2013) é um documento feito por pessoa, enquanto capaz, onde irá determinar como

quer ser tratado em caso de tornar-se incapaz de declarar sua vontade. Conforme Nunes

(2012), o testamento vital tem o ―objetivo de permitir a uma pessoa, devidamente esclarecida,

recusar determinado tipo de tratamentos que no seu quadro de valores são claramente

inaceitáveis”. Permitir que uma pessoa escolha como queira passar seus últimos dias é uma

atitude de respeito à sua vida, ao corpo e ao desenvolvimento da personalidade, um direito

que a todos é garantido.

2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANACOMO PRESSUPOSTO AO

DIREITO A MORTE DIGNA

O direito à vida é o primeiro de todos os direitos garantido a qualquer pessoa. É

obrigação do Estado defendê-la e garanti-la com dignidadeaos cidadãos, assim, a busca pelo

direito a uma vida digna é o combustível que movimenta a humanidade e toda a máquina

judiciária.

O princípio da dignidade da pessoa humana está consubstanciado na Constituição da

República Federativa do Brasil em seu artigo 1º e se configura como um de seus fundamentos

(CF/88). Entretanto, esse princípio não era conhecido nas primeiras civilizações. Por exemplo,

para Aristóteles, o homem era um animal político, que pertencia ao Estado e se concretizava

por meio do exercício da cidadania. Naquela época, não se tinha conhecimento aprofundado

sobre a personalidade, tanto que é uma época ausente de vocábulo que a defina, posto que o

termo ―persona‖ provém do latim. (SANTOS, 1998)

A palavra dignidade também deriva do latim dignitas, e se traduz como sendo tudo o

que é digno de respeito, estima. A definição da dignidade da pessoa humana para os Antigos

(de 4.000 a.C. a 3.500 a.C.) era algo meritocrático, ou seja, referia-se ao dinheiro, título de

nobreza, inteligência, entre outros. Para os gregos o que diferenciava os homens dos demais

animais era a aptidão de raciocínio pela utilização de um dialeto próprio, por isso tinha-se a

Page 383: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

383

exigência do respeito aos homens, devido tal capacidade (AGRA, 2008, p. 109). Com o passar

dos anos foi-se observando que o homem é um ser que possui direitos específicos e que seus

interesses individuais não podem ser confundidos com os interesses do Estado. Assim, houve

uma transição do direito no âmbito estatal para o âmbito individual, com finalidade de

harmonizar liberdade e autoridade. (REALE, Miguel - Questões de Direito Público, p. 4). Tal

individualização dos direitos do homem veio com o Cristianismo, onde aqueleé tido como

uma criação à imagem e semelhança de Deus, daí então a dignidade passou a ser vista como

merecimento de cada pessoa independente de qualidades.

Contudo, somente após a Segunda Guerra Mundial, que a dignidade passou a ser uma

das maiores preocupações no Ocidente, tornando a fazer parte de vários documentos

internacionais, Constituições, leis e jurisprudências. (BARROSO, 2012)

Mas, para o direito qual o real significado da dignidade da pessoa humana? Na

concepção de Agra (2008, p. 110):

A dignidade da pessoa humana representa um complexo de direitos que são

inerentes à espécie humana, sem eles o homem se transformaria em coisa, res. São

direitos como a vida, lazer, saúde, educação, trabalho e cultura que devem ser

propiciados pelo Estado e, para isso, pagamos tamanha carga tributária. Esses

direitos servem para densificar e fortalecer os direitos da pessoa humana,

configurando-se como centro fundante da ordem jurídica.

Seguindo essa linha de pensamento, tem-se que a dignidade da pessoa humana é,

atualmente, base para todos os ordenamentos jurídicos, onde nenhuma norma vindoura possa

vir a ter o poder de por abaixo sua essência. Destarte, o homem é apontado como o centro de

todo ordenamento jurídico, sendo ele a base para toda interpretação das leis.

O respeito pela vontade de cada pessoafaz parte desse direito tão indisponível que é o

direito à vida dignaehonraressa vontade é mais do queuma atitude de consideração a

ela.Quando a vontade do indivíduo diz respeito aosseusúltimos momentos de vida também o

princípio da dignidade da pessoa humana se faz presente. Não há nada mais humano do que

deixar que a pessoa doente viva os dias finais à sua maneira. Desta forma, tem-se que o direito

a uma morte digna é uma consequência da obediência a este princípio fundamental.

Devido o grande avanço tecnológico na área da medicina, esta vem desafiando

gradativamente a vida tentando prolongá-la com o uso de tratamentos muitas vezes inúteis, o

que causa certo desconforto quanto à ética e a dignidade dos pacientes.(HENRINGER, 2012)

É de grande valia bem escolher os meios terapêuticos num momento em que já não há

possibilidade de cura, uma vez que pode acarretar na potencialização da agonia do paciente. A

Page 384: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

384

importância em se ter zelo ao sofrimento humano no momento da morte é crucial, pois

envolve o aspecto físico, social, cultural como também espiritual. Talvez seja essa a grande

contenda enfrentada pelos profissionais dessa área ao se tentar obter um equilíbrio entre a

ciência e a realidade humana ante a fragilidade do começo e término da vida. (PESSINI, 2006

– EM HENRINGER, 2012)

O ato de morrer é uma realidade de todos, porém não se pode escolher quando, onde e

como morrer. Desta forma não é fácil defender o direito a boa morte, quando esta não é bem

aceita. Porém, a medicina avançada é capaz de tornar o processo de morrer em um momento

mais longo e árduo, muitas vezes sem necessidade, indo contra as regras da natureza. É nesse

momento que o paciente tem que ter autonomia de escolher seus tratamentos para que sua

morte venha naturalmente, evitando sofrimento desnecessário. Portanto é imprescindível o

direito a morte digna é pressuposto da dignidade da pessoa humana e assim como ela é um

direito garantido a todos.(BARROSO, 2012)

O testamento vital vem como um meio de por em prática essa autonomia da vontade,

pois, é nele que a pessoa absolutamente capaz poderá deixar registrada a sua vontade quanto a

tratamentos que queira ou não receber caso fique inconsciente e incapaz de tomar decisões. E

é sobre esta temática que este trabalho passará a versar.

3 DEFINIÇÃO DE TESTAMENTO VITAL

Tempos atrás, a decisão sobre como um paciente em fase de terminalidade devia ser

tratado cabia exclusivamente ao médico. Antes se tinha a figura do médico de família, que em

sua maioria eram pessoas ligadas aos familiares do paciente, assim, era costume associar ao

médico a tarefa de decidir o que era melhor para ele e com isso acabava tendo certa

autoridade para impor sua decisão (SILVA E GOMES, 2012).

Com o passar dos anos houveuma expansão de avanços tecnológicos e o exaustivo uso

dessas tecnologias rebuscadas contribuiu drasticamente para a desumanização da prestação de

serviços de saúde. Isso está bem demonstrado através do uso desconforme de tratamentos sem

fundamentos em doentes terminais, o que se conhece por distanásia(NUNES, 2012).

Entretanto,a vida como um todo passou a ser mais respeitada com o advento do princípio da

dignidade da pessoa humana, exposto na Constituição Federalde 1988, o que acarretou o

desejo de se levar em consideração a opinião, o desejo do indivíduo doente.

Como dito anteriormente, os avanços na medicina trouxeram alguns benefícios para os

tratamentos de pacientes em fase terminal, pois os fazem ter mais tempo de vida, porém

Page 385: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

385

muitas vezes sem qualidade. É a partir desses questionamentos que surge a ideia do

―Testamento Vital‖, conforme entendimento de Sanches, et al(2008).

Na visão deDadalto (2013b),testamento vital é um documento escrito por indivíduo

que, em pleno gozo de suas capacidades mentais, deseja expressar antecipadamente sua

vontade sobre os tipos de tratamento que queira ou não receber caso seja impossibilitado de

manifestá-la, ante uma fase terminal de doença incurável.

Testamento, no direito civil,é um negócio jurídicounilateral,personalíssimo, gratuito,

solene, revogável,com efeito pós morte,em que um indivíduo dispõe total ou parcialmente de

seu patrimônio e onde virá a determinar diligências de cunho pessoal e/ou familiar(DINIZ, p.

1309, 2009) . De acordo com Tartuce:

O testamento representa em sede de Direito das Sucessões, a principal forma de

expressão e exercício da autonomia privada, como típico instituto mortis causa.

Além de construir o cerne da modalidade sucessão testamentária, por ato de última

vontade, o testamento também é via adequada para outras manifestações da

liberdade pessoal.

Tais características também alcançam o chamado testamento vital, entretanto,

divergem no efeito pós-morte, pois este tipo de documento tem efeito quando seu outorgante

ainda está vivo, mas com a capacidade de raciocínio prejudicada devido uma doença terminal,

ou seja, incapaz de tomar decisões por si próprio. É também dispensada a solenidade, nestes

casos. Por esta razão, tem-se que o termo testamento vital não é o mais apropriado

(DADALTO, 2013). O uso da expressão ―testamento vital‖ se deu em virtudeda tradução de

―living will‖, termo utilizado inicialmente por LuisKutner, que deu margem a várias traduções

como ―testamento de vida‖, ―testamento em vida‖, ―testamento biológico‖, ―testamento de

paciente‖, ou ainda, ―cláusulas testamentárias sobre a vida‖ (NUNES, 2012).

Portanto, chamar de testamento vital um documento que tem plena validade enquanto

há vida no paciente, é algo contraditório, posto que o testamento, instituto do direito civil,

possui eficácia quando de sua morte. Desta forma, a terminologia ―Diretivas Antecipadas de

Vontade‖(DAV‘s) tem sido melhor acolhido pelos juristas. (PROVIN, 2013).

4 BREVE HISTÓRICO SOBRE TESTAMENTO VITAL

Page 386: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

386

O testamento vital surgiu nos Estados Unidos como ―living will‖, aproximadamente

em 1967 e foi proposto inicialmente pela Sociedade Americana para a Eutanásia, onde seria

um documento pelo qual as pessoas pudessem manifestar sua vontade com relação a

tratamentos médicos inúteis utilizados para preservação da sua vida, quando em estado

terminal (FERNANDES, 2012)

Em 1969, na cidade de Chicago (EUA), o advogado LuisKutner, elaborou pela

primeira vez um modelo de documento onde um indivíduo poderia pedir que fossem cessados

os tratamentos que lhe mantinha vivo, em caso de estado vegetativo sem possibilidade de cura

(PICCINI, 2011). Tal documento tinha a finalidade de reduzir as desavenças entre os

pacientes terminais, seus familiares e os médicos, enfermeiros e toda a equipe que estava

trabalhando em prol da manutenção daquela vida(NILMAR, 2013). Para o advogado

LuisKutner, o testamento vital tinha além de outras finalidades, garantir ao paciente terminal

o direito de morrer com dignidade, respeitando sua vontade, mesmo que estivesse incapaz de

dar seu consentimento. (CAMPOS, 2012)

Ainda em 1976 na Califórnia (EUA), foi editada a primeiraleisobre morte natural que

vigeu até 1991 quando foi publicada a lei federal de autodeterminação do paciente - Patient

Self-DeterminationAct(PSDA)-(PACHECO,2006)onde o testamento vital passou a ser válido

juridicamente, uma vez que levou em consideração a vontade do paciente, até mesmo para

rejeitar tratamento médico (FERNANDES, 2012).

Assim, o testamento vital foi se propagando pelo mundo, inclusive na Europa, onde

ganhou bastante força, pois a maioria dos países que o adotaram e já legislaram a seu respeito

fazem parte deste continente.

5 TESTAMENTO VITAL E SUA EXPANSÃO NO MUNDO

Como visto no tópico anterior o testamento vital surgiu e foi disseminado pelos

Estados Unidos, porém logo ganhou espaço em diversos lugares. Vários países já possuem

uma legislação específica acerca do testamento vital, segue o rol desses países: Alemanha,

Argentina, Áustria, Bélgica, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Hungria, Inglaterra,

México, Porto Rico, Portugal, União Europeia e Uruguai (DADALTO ON LINE,

2013).Nesse item será feita uma abordagem sobre alguns desses países, não sendo possível

falar sobre todos, devido a brevidade deste trabalho.

Page 387: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

387

5.1 ESTADOS UNIDOS

Não será profundamente discutido pelo fato de ter sido um tema explanado

anteriormente, entretanto, como este país foi o nascedouro do testamento vital, vê-se a

extrema importância em demonstrar sua experiência no assunto.

Como dito anteriormente, o testamento vital surgiu nos EUA, no final da década de

60. A eutanásia já era bastante discutida naquele país e foi a partir da Sociedade Americana

para a Eutanásia que houve a primeira proposta de testamento vital, mais precisamente em

1967, cuja finalidade era que nesse documento uma pessoa pudesse expressar

antecipadamente sua vontade a respeito da interrupção de intervenções médicas de

manutenção da vida. Logo após, foi criado o primeiro modelo de testamento vital, pelo

advogado LuisKutner, como já dito em outra oportunidade. Ocorre que a questão do respeito

à vontade do paciente foi ganhando força gradativamente devido a alguns fatos que foram

surgindoem que houve a necessidade da tomada de decisão pela manutenção ou não da vida

por meio de aparelhos.

Em 1976houve o caso da Karen Ann Quinlan, uma jovem de apenas vinte e dois anos

que entrou em coma irreversível e que havia dito aos seus pais o desejo de não ser mantida

viva por aparelhos. Ocorre que o pedido da paciente não pôde ser atendidopelos médicos por

questões morais e éticas, sendo o caso levado ao Poder Judiciário.Apenasem segunda

instância, a justiça americana determinou ao hospital que fossem desligados os aparelhos que

a mantinham viva. No mesmo ano, foi criada na Califórnia, a primeira lei que reconhecia

juridicamente o testamento vitale a partir de então vários outros estados norte-americanos

também trataram de regulamentar o chamado ―living will‖ (PENALVA, 2008) .

Relata Penalva (2008) que em 1983, Nancy Cruzam, vítima de um acidente ficou em

coma irreversível e permanente. Seus pais, também pediram o desligamento dos aparelhos e o

caso chegou até a Suprema Corte dos estados Unidos, que concederam a eles tal direito. Este

caso foi o estopim para uma comoção social que levou a aprovação da lei da

autodeterminação do paciente (Patient Self-DeterminationAct), a primeira lei de âmbito

federal que reconheceu a autodeterminação do paciente.

Foi com a criação desta lei federal que o testamento vital ganhou forças nos EUA

influenciando mais da metade de seus estados-membro que passarama obter legislação própria

sobre “living will”. Vale aqui ressaltar que, neste país, cada estado tem sua autonomia

legislativa, devido seu processo de formação (LEÃO, 2012).

Page 388: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

388

5.2 ESPANHA

O testamento vital na Espanha é conhecido por ―instrucciones previas” e teve início

nesse país em 1986 a partir de uma iniciativa da Associancion Pro Derecho a Morrir que

elaborou o primeiro modelo do documento em solo espanhol. Entretanto, apenas no ano de

2000 é que o testamento vital foi validado juridicamente no país, quando da vigência da

Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, também conhecido por Convênio

de Oviedo. (VALADARES LEÃO, 2013).Destaconvenção, foram signatários os estados

membros do Conselho da Europa, mas não em sua totalidade, pois dos 47 países que fazem

parte deste conselho somente 35 assinaram a convenção e 29 a ratificaram, entre eles

Espanha, Portugal e Suíça. (PENALVA, 2008).

Como a Espanha é dividida entre várias comunidades, estas elaboraram suas próprias

leis relativas às instrucciones previas, devido à autonomia legislativa que possuem. LEÃO

(2013) detalha que as leis de cada comunidade possuem especificidades, como por exemplo, o

fato de não serem todas as comunidades que utilizam do termo instrucciones previas, algumas

delas permitem que o testamento vital seja feito por pessoa menor de idade e na maior parte

das comunidades as instruccionesprevias podem tratar ainda sobre a doação de órgãos e o

destino do corpo, após o falecimento do indivíduo.

Contudo, mesmo com as leis de cada comunidade espanhola foi criada uma lei de

esfera nacional, na tentativa de unificar a legislação em todo o país. A primeira lei federal

sobre testamento vital, na Espanha, foi a Lei 41/2002 de 14 de novembro, chamada de lei da

autonomia dos doentes, que teve como base para sua criaçãoa importância dos direitos dos

pacientes e da relação médico-paciente, a Convenção de Oviedo e a declaração dos Direitos

Humanos. Esta lei incentivou melhores condições para a infraestrutura dos hospitais, assim

como deu uma atenção especial para importância da humanização dos serviços de saúde

respeitando a dignidade dos pacientes. Dispõe ainda sobre os direitos e obrigações dos

profissionais de saúde, para que estes possam exercer suas funções de maneira tal que

garantam o bem-estar dos pacientes. (CASTRO NETO, 2012)

Fato interessante é que a lei espanhola teve a preocupação de que o testamento feito

em uma determinada localidade pudesse ser reconhecido nas demais. Para que isso

acontecesse era necessário que fosse criado uma espécie de Registro Nacional de todas as

instruccionesprevias existente, pois cada comunidade tem sua autonomia legislativa e o não

reconhecimento poderia trazer complicações (LEÃO, 2012). Entretanto, no ano de 2007

houve a publicação do Real Decreto 124/2007, que cria o Registro Nacional de Instruções

Page 389: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

389

Prévias com banco de dados de cada pessoa que se dispôs a fazer o testamento vital. O

Registro Nacional dá oportunidade às pessoas que residam nas províncias em que não existe

legislação especifica sobre o tema, de fazerem seu testamento vital e apresenta-lo ao órgão

supracitado, para garantir-lhe o direito a sua autonomia (PENALVA, 2008).

Na prática, o testamento vital espanhol, deve ser escrito e o reconhecimento do mesmo

pode ser feito em cartório, no Registro Nacional ou ainda perante algum servidor da

Administração Pública, pois possuem munuspúblico, podendo ainda ser feito na presença de

três testemunhas. Poderá ainda ser revogado a qualquer momento pelo próprio testador,

enquanto capaz, e ser nomeado um representante para que, na impossibilidade do outorgante,

este tome as decisões cabíveis (PENALVA, 2008).

Ante o exposto, vê-se que as instrucciones prévias estão bastante desenvolvidas na

Espanha, porém ainda não é uma ideia comum a toda população, uma vez que existem

divergências de pensamento quanto ao procurador e a atividade do Registro Nacional

(PENALVA, 2008)

5.3 ALEMANHA

Na Alemanha o testamento vital foi regulamentado em 2009, assim a vontade dos

pacientes passou a ser respeitada, uma vez que tenha deixado essa vontade manifestamente

escrita em documento. A legislação alemã não fugiu de todo as regras gerais do testamento

vital, pois de acordo com ela, o indivíduo absolutamente capaz poderá escolher os tipos de

tratamentos que irá receber ou não caso tenha sua capacidade prejudicada em virtude de

doença ou traumatismos que o deixe impossibilitado de tomar decisões, desde que tenha

expressado sua vontade antecipadamente (LEÃO, 2012).

Conforme a legislação alemã será permitido ao paciente que seja nomeado uma

espécie de procurador, alguém de sua inteira com fiança que irá ditar as regras sobre o

seguimento do tratamento de acordo com a manifestação expressa e antecipada do testador.

Porém, se por ventura o testamento vital não se encaixar no estágio da doença ou se não

houver retificação escrita por parte do paciente, as regras passarão a ser ditadas pela equipe

dos médicos em conjunto com a família e em não havendo consenso será levado ao Judiciário

para que dê a última palavra. (LEÃO, 2012).

Por fim, tem-se que o testamento vital alemão é considerado constitucional, uma vez

que leva em conta o princípio da autodeterminação e confere ao indivíduo doente o direito ao

respeito a sua vontade, até mesmo no momento mais frágil da vida de qualquer ser humano

Page 390: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

390

que é a proximidade com a morte. Vencendo, portanto, aos embates de cunho ético e religioso

levantados no parlamento quando a lei ainda estava em discussão. (LEÃO, 2012).

5.4 PORTUGAL

Portugal, mesmo sendo um país europeu, onde a temática do Testamento Vital estava

sendo bastante discutida, levou certo tempo para regularizá-lo em seu território.Mesmo tendo

sido um dos países que ratificaram a Convenção de Oviedo (Espanha) que ocorrera em 2001,

em 2006 foi lançado um projeto de lei por parte da Associação Portuguesa de Bioética

(DADALTO, 2013a) e apenas em 2012 é que este país publicou uma lei específica sobre o

testamento vital. De toda forma, a ratificação da convenção foi um passo imprescindível para

que viesse a existir uma discussão acerca da importância de se legislar sobre o tema.

Conforme, Castro (2012), Portugal já possuía uma base jurídica amplamente favorável

para a provação do testamento vital, pois sua Constituição, no art. 25 garante o direito à

integridade pessoal, afirmando ser um direito inviolável assim como o art. 26 determina o

direito ao livre desenvolvimento da personalidade, assegura ainda a dignidade da pessoa

humana e identidade genética em seu artigo terceiro. O que seria um alicerce para os

pensamentos fundadores da ideologia do testamento vital, em suas palavras ―respeitar a

vontade do indivíduo quando este se encontrar incapaz de manifestar o seu consentimento ou

dissentimento relativamente a um qualquer procedimento clínico‖.

As ―directivas antecipadas‖, como é conhecido o testamento vital em Portugal, foram

regulamentadas através da Lei 26/2012 de 17 de julho. De acordo com esta lei, a diretiva

antecipada só poderá ser elaborada frente a um notário, assim como frente a um funcionário

do Registro Nacional do Testamento Vital, órgão até então inexistente, no país. Entretanto,

algumas autoridades ainda veem pontos a serem esclarecidos pelo legislador, principalmente

no que concerne a vontade expressa do autor. (LEÃO, 2012).

5.5 ARGENTINA

Neste país, também já existe legislação específica sobre as diretivas antecipadas das

quais o testamento vital faz parte. De acordo com Dadalto (2013a) a primeira lei vigente na

Argentina foi promulgada na província de Rio Negro, lei 4.263 de 19 de dezembro de 2007.

Entretanto o país deu maior relevância às diretivas antecipadas quando em 2009 promulgou

Page 391: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

391

uma lei federal (Lei 26.529) que versa sobre os direitos do paciente, onde em seu artigo 11

defende o direito do paciente expressar sua vontade através das diretivas antecipada.

6 DO CABIMENTO DO TESTAMENTO VITAL NO ORDENAMENTO

JURÍDICO BRASILEIRO

Para fazer esta análise, é preciso verificar se o testamento vital vai de encontro ou não

aos princípios norteadores do ordenamento jurídico brasileiro. Este estudo nos leva a fazer

certos questionamentos: deixar ir naturalmente uma vida que já não possui meios de voltar a

ser como antes é um ato contrário ao direito à vida ou é uma atitude de respeito ao ser humano

que está em pleno gozo do sofrimento? Manter a vida de uma pessoa, por meios de aparelhos,

fazendo prolongar sua agonia, é um meio de manter a vida a todo custo ou é uma atitude de

tortura para com o indivíduo enfermo?

Para responder a essas questões se faz necessário saber quais são os bens jurídicos

protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro que estão relacionados às diretivas

antecipadas de vontade, das quais o testamento vital faz parte. Sendo este documento o meio

pelo qual uma pessoa declara antecipadamente sua vontade acerca do seguimento de um

tratamento médico, em fase de terminalidade de vida, fica claro que os bens jurídicos

tutelados são a vida e a morte, ambos amplamente amparados pelo direito brasileiro. Existe,

atualmente, um hábito de centralizar nas mãos do médico a decisão sobre a vida de doentes

terminais. Nas palavras de Bussinguer e Barcellos (2013):

(...) o paternalismo do profissional reduz o indivíduo doente a um paciente que deve

aguardar, resignada e submissamente, que deliberações acerca de sua vida sejam

tomadas por outros sem que ele possa se manifestar ou decidir autonomamente

como quer ser tratado ou que tipo de práticas de intervenção está disposto a aceitar.

Ainda de acordo com esses autores, ante essa problemática, é salutar que se crie um

novo paradigma jurídico sobre vida e morte, pois a vida é tratada como um direito absoluto,

esquecendo que a morte também tem sua vez na própria vida, pois faz parte de seu processo

natural.

Isso faz com que médicos tentem a todo custo prolongar a vida de pessoas sem

perspectivas de melhora, definitivamente para utilizar-se das novas tecnologias, como se o ser

humano fosse apenas um meio de por em prática seus novos experimentos e técnicas.

Os pacientes terminais se encontram em circunstâncias tais em que mais do que nunca

– pois é a única certeza de todas as pessoas – a morte se faz presente. Nesses casos não existe

Page 392: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

392

qualquer possibilidade de recuperação, sendo a morte a única ―saída‖ para aquele indivíduo

que apenas espera por ela. Portanto, sendo a vida um direito constitucionalmente garantido, a

decisão pela sua manutenção ou não por meios artificiais é um respeito à própria

vida(BUSSINGUER e BARCELLOS, 2013).

No Brasil, ainda não uma existe legislação específica sobre o testamento vital, todavia,

não é possível dizer que este instituto seja incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro

vez que, em uma breve análise de suas normas constitucionais e infraconstitucionais,

encontra-se suporte para a sua regulamentação. A Constituição Federal de 1988 traz alguns

dos princípios que abraçam as diretivas antecipadas, como o da Dignidade da Pessoa Humana,

expresso em seu artigo 1º, como um dos fundamentos da República brasileira, o princípio da

Autonomia – que não está expresso diretamente na Constituição, mas subtendido - e a

proibição de tratamento desumano. (DADALTO, 2013b)

Para Luciana Dadalto (2013b), tais princípios são suficientes para que o testamento

vital possa ser aceito no direito brasileiro, pois sua finalidade é garantir às pessoas o exercício

da sua autonomia ao escolher, antecipadamente, sobre futuros tratamentos fúteis em caso de

quadro irreversível. Afirma ainda esta autora que o acolhimento, pelo ordenamento brasileiro,

às diretivas antecipadas de vontade é uma demonstração clara do pleno exercício do direito

constitucional à liberdade e quepara isso é extremamente necessário que este direito seja

exercido da forma mais autêntica possível, sem protecionismos por parte dos médicos, da

família do paciente e até mesmo do governo.

Encontra-se amparo legal para a legalização do testamento vital no Código Civil

Brasileiro, em seu artigo 15, que determina que nenhuma pessoa será ―constrangida ao

submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica‖, portanto, o

testamento vital é uma confirmação prática deste preceito, pois garante ao paciente terminal a

não submissão a tratamentos extraordinários quando a cura não é mais possível, evitando o

prolongamento do seu sofrimento. (DADALTO, 2013b)

Então, de acordo com a Constituição brasileira é possível sim que o testamento vital

seja de fato regulamentado, pois o ordenamento jurídico pátrio tem a vida como maior bem

jurídico tutelado e como um de seus fundamentos e princípios norteadores de toda legislação

a dignidade da pessoa humana. Um indivíduo mantido vivo por meio de aparelhos sem

qualquer possibilidade de melhora está longe de viver uma vida digna e é o Estado quem tem

que assegurar este direito. Conforme entendimento de Abreu (2013), ―um governo que negue

o direito de decisão sobre a vida e a morte é totalitário, por mais livre que deixe os cidadãos

para fazerem outras escolhas menos relevantes”, portanto, sendo o Brasil um estado

Page 393: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

393

democrático de direito a negativa pelo exercício da autonomia privada do paciente

configurada no testamento vital é uma pura contradição a seu regime de governo. Destarte,

prezar pela dignidade é uma exigência à democracia, pois uma Constituição que impeça a

liberdade de consciência é autoritária, por tal motivo é que o direito de decidir sobre a vida e a

morte deve ser constitucionalizado (ABREU, 2013)

Fato é que a vida é o bem mais precioso e indisponível que se tem, mas ter uma vida

sem dignidade é um contrassenso.Esta afirmação é deveras compatível para o caso dos

pacientes terminais mantidos por aparelhos, pois estes estão vivos, mas, no sentido estrito da

palavra, uma vez que “essas pessoas não gozam da vida em sua plenitude, não podendo

afirmar sequer a existência de vida digna, pois encontram-se privados de sua liberdade e do

exercício de muitos de seus direitos”. . (MAGALHÃES, 2011)

7 A RESOLUÇÃO 1.995/2012 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

Em que pese a importância da autonomia privada do paciente diante de uma situação

terminalidade, até a presente data não se tem uma regulamentação no ordenamento jurídico

brasileiro referente à declaração prévia do paciente terminal, mas comumente conhecida por

―testamento vital‖.(LEÃO, 2013) Entretanto, o Conselho Federal de Medicina editou uma

resolução em 31 de agosto de 2012, (resolução 1.995) que trata das diretivas antecipadas de

vontade, sendo esta a primeira regulamentação existente no Brasil acerca deste tema.

(DADALTO, 2013a)

Esta resolução veio trazer a definição do que sejam as diretivas antecipadas de vontade

como ―o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre

cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de

expressar, livre e autonomamente, sua vontade‖ (RESOLUÇÃO 1.995 CFM).

A despeito de que esta resolução não possua força de lei vale ressaltar, todavia, que

encontra amparo no direito brasileiro, pois o testamento vital apenas põe em prática a

ortotanásia, técnica regulamentada pelo CFM através do Novo Código de Ética publicado em

2010 e reconhecida pelo Judiciário como constitucional, no julgamento a ação civil pública

2.007.34.00.014809-3, ao contrário da eutanásia que é considerada como crime, no Brasil.

(DADALTO, 2013a)

Fato é que esta regulamentação trouxe para os médicos um pouco de alívio para

tomada de decisões, posto que a vontade do paciente poderá estar expressa e ele não terá que

se responsabilizar ética e juridicamente por tal ato. Assim como poderá proporcionar conforto

Page 394: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

394

para os parentes que não estejam satisfeitos em ver seu ente mantido por aparelhos. Para

tanto, o médico deverá registrar os desejos do paciente em seu prontuário e estes irão

prevalecer sobre opiniões de médicos, familiares e qualquer outra pessoa, desde que estejam

de acordo com o Código de Ética Médica, conforme preceitua o art 2º da regulamentação “As

diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico,

inclusive sobre os desejos dos familiares‖(RESOLUÇÃO 1.995 CFM).

O regulamento 1.995/2012 trouxe também a possibilidade de ser nomeado um

representante para o paciente, onde o médico deverá levar em consideração as informações

passadas por ele (Art. 2º, §1º,RESOLUÇÃO 1.995 CFM), mas poderá deixar de acatá-las se

por ventura estiverem em desacordo com o Código de Ética Médica, como dito em outra

oportunidade. (Art. 2º, §2º, RESOLUÇÃO 1.995 CFM).

A resolução 1.995/2012 do CFM previu para os casos em que não haja deliberação por

parte do paciente, ausência de representante, ou ate mesmo na ausência de acordo entre estes,

a obrigação do médico levar o caso para o Comitê de Bioética do hospital, para o Comitê de

Ética do hospital ou até o Conselho Regional ou até mesmo Federal de Medicina. (Art. 2º,

§5º, RESOLUÇÃO 1.995 CFM).

Contudo, existem muitos questionamentos com relação a eficácia jurídica da

Resolução CFM 1.995/2012. Isso por uma razão muito simples, a resolução não tem força de

lei fora do âmbito da classe médica, não podendo ela vincular decisões judiciais. O fato de as

diretivas antecipadas terem sido previstas nesta regulamentação não quer dizer que passaram

a ser aceitas no ordenamento jurídico brasileiro. O papel da resolução, portanto, foi de

verdadeiramente reconhecer a autonomia do paciente em aceitar ou rejeitar tratamentos

extraordinários, ou seja, que não mais oferecem qualquer benesse ante uma fase de

terminalidade de vida, apenas prolongam a dor e o sofrimento dessas pessoas. (DADALTO,

2013a)

Atualmente, existe um projeto de lei do Senado Federal (PLS nº 524/2009) que versa

sobre os direitos da pessoa em fase terminal de doença, proposto pelo senador Gerson Camata

(PMDB/ES) e confeccionado pela Comissão de Bioética da CNBB (Conferência Nacional dos

Bispos do Brasil). Contudo, tal projeto encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça

(CCJ), onde aguarda a designação de relator. Passará ainda pela Comissão de Direitos

Humanos e Legislação Participativa (CDH) e por fim a Comissão de Assuntos Sociais (CAS).

(LEÃO, 2013)

Page 395: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

395

Ante o exposto, vê-se a necessidade de edição de lei no Brasil para que se possa

garantir aos cidadãos a autonomia privada de suas vontades com relação ao fim de suas vidas.

De acordo com Godinho (2010):

(...) o testamento vital não somente deve encontrar espaço no ordenamento

brasileiro, como urge reconhecer sua validade por meio de lei, o que consagra o

direito à autodeterminação da pessoa quanto aos meios de tratamento médico a que

pretenda ou não se submeter.

A regulamentação do testamento vital é uma garantia a plenitude de direitos

personalíssimos tão enraizados no ordenamento jurídico brasileiro, para tanto é de total

importância a sua regulamentação, conforme relata Miguel Reale Júnior (ONLINE, 2013):

Para permanecer dono do próprio corpo mesmo inconsciente, sem riscos de conflitos éticos no

exercício da medicina ou perante o Ministério Público, é de todo conveniente que a matéria

seja objeto de lei, e não apenas de resolução do CFM, elaborando-se anteprojeto em discussão

com médicos, juristas e especialistas em bioética.

8 CONCLUSÃO

Diante dos avanços tecnológicos e dos mais diversos casos de pacientes em fase

terminal mantidos há anos por aparelhos, vê-se cada vez mais a necessidade de

regulamentação de lei específica acerca testamento vital.

O reconhecimento da vontade do paciente é garantia de respeito ao princípio basilar de

todo ordenamento jurídico não apenas o brasileiro que é o da dignidade da pessoa humana.

Estar vivendo de maneira artificial, sem qualquer perspectiva de recuperação é, sem

questionamentos, um prolongamento do sofrimento. Tanto daquele que está no leito como de

familiares que acompanham a sua via crucis.

Viver é um direito e não um dever, a partir do momento que o indivíduo está impedido

de realizar quaisquer atos da vida civil ou mesmo viver as rotinas de seu dia a dia, sem

qualquer chance de um dia voltar a ser o que um dia fora, não se pode dizer que esta em uma

vida digna. Impedir de viver sua própria morte, quando esta, mais do que nunca é a única

certeza que se tem é uma violação sim asua dignidade.

REFERENCIAS

Page 396: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

396

Sánchez AV, Villalba SF, Romero PMG, Barragán SG, Rufino Delgado MT, Garcia MTM.

Documento de voluntadesanticipadas: opinión de losprofesionalessanitarios de Atención

Primaria. Semergen. 2008;35:111-4.

Cortes JCG. Responsabilidad Medica y Consentimiento Informado. RevMedUruguay.

1999;15(1):5-12

Ribeiro DC. Autonomia e Consentimento Informado. In: Ribeiro DC, organizador. A

RelacaoMedico-Paciente: velhas barreiras, novas fronteiras. Sao Paulo: Centro Universitario

São Camilo; 2010. p. 197-229

Lens V. Natural Death Acts. EncyclopediaofDeathandDying [acesso 13 Dez 2011].Disponivel

em: <http://www.deathreference.com/>.

BOMTEMPO, T.V. Diretivas antecipadas: instrumento que assegura a vontadede morrer

dignamente. Revista de Bioética y Derecho, n 26, p. 22-30, 2012

DADALTO,L.Reflexos jurídicos da Resolução CFM 1.995/12.Revbioét(Impr.) v. 21, n.1, p.

106-12, 2013ª

DADALTO, L. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário

falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal)Revista de Bioética y

Derecho, n. 28, p. 61-71, 2013b

Penalva, L. D.Declaração prévia de vontade do paciente terminal.Dissertação (Mestrado) –

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.Programa de Pós-Graduação em

Direito.Belo Horizonte, 2009

GODINHO, A. M.. O testamento vital e o ordenamento brasileiro. Disponível em

http://lexmitior.blogspot.com/2010/06/testamento-vital-e-o-ordenamento.html. Acesso em

28abr 2014

BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Constituição da República Federativa do

Brasil. Brasília, Imprensa Nacional, Diário Oficial da União, 12 de outubro de 1988.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui

%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 02 nov. 2011.

_______. Resolução CFM n.º 1.805, de 09 de novembro de 2006. Dispõe sobre a ortotanásia e

estabelece os procedimentos para sua prática. In: CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA.

Resoluções. Brasília. Disponível em:

<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2006/1805_2006.htm>. Acesso em: 20

mar. 2012.

SALGADO, F.C.A.P. O direito de morrer dignamente: o testamento vital no direito brasileiro

Page 397: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

397

S.F. LEÃO. TESTAMENTO VITAL:uma alternativa do Direito para uma morte digna.

Dissertação - Programa de Pós-Graduação em Direito, Relações Internacionais e

Desenvolvimento da Pontifícia UniversidadeCatólica de Goiás. Goiânia, 2012

Castro Neto, A.I.D. A Evolução Legislativa do Testamento Vital. Dissertação, Instituto de

Ciências Biomédicas de AbelSalazar da Universidade do Porto, 2012

PROVIN, A.F.; GARCIA, D. S.S.. Diretivas antecipadas de vontade e oprincípio da

dignidade da pessoa humana na hora da morte. Revista Eletrônica Direito e

Política,Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí,

v.8, n.3, 3ºquadrimestre de 2013. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica - ISSN

1980-7791.

SILVA, M.I.F.; GOMES,F.B.Possibilidade de inclusão do testamento

Vital no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Eletrônica de Direito do Centro

Universitário Newton Paiva. nº 18, 2012.

Page 398: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

398

SUICÍDIO ASSISTIDO E A COLISÃO DE DIREITOS

FUNDAMENTAIS: DIREITO À VIDA VERSUS DIGNIDADE DA

PESSOA HUMANA

Ingrid Coderceira Costa

1

Lorena Daniely Lima de Castro2

Sumário: 1 Introdução. 2 Suicídio assistido. 3 A legalização do suicídio assistido na

Suíça. 4 Suicídio assistido e a colisão de direitos fundamentais no ordenamento

jurídico brasileiro. 5 Conflito entre normas constitucionais no suicídio assistido:

dignidade da pessoa humana versus direito à vida. 6 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

No plano constitucional, a discussão acerca do suicídio assistido é uma das mais

controversas e complexas da contemporaneidade. O debate sobre o tema é muito importante,

considerando que o estudo do Biodireito pátrio é recente, sendo necessário para a renovação

da ordem jurídica e a sua adequação aos novos anseios sociais. O dualismo de opiniões

envolvendo o tema associa-se ao fato de haver inúmeras questões conflitantes, não apenas

éticas e bioéticas, como, outrossim, de natureza religiosa, jurídica e política.

A problemática enfrentada refere-se ao direito fundamental que deve prevalecer no

caso de doenças degenerativas que causem incapacidade física ou mental de caráter

irreversível, quando da colisão entre o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa

humana, ambos protegidos pela Constituição Federal. Há os que defendem a prevalência do

direito à vida, considerando-o bem indisponível, devendo preponderar até mesmo em face da

dignidade da pessoa humana. No entanto, há autores que defendem o direito a uma morte

digna, segundo o qual, dadas certas circunstâncias, qualquer pessoa possui o direito de dispor

da própria vida.

Para chegar a um resultado juridicamente adequado, utiliza-se os princípios de

interpretação e aplicação de normas constitucionais, prevalecendo, neste caso específico, o

cânone da proporcionalidade.

1Graduada em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba; Servidora pública do Município de João Pessoa,

com atuação em demandas judiciais sobre a saúde. 2 Graduada em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba.

Page 399: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

399

2 SUICÍDIO ASSISTIDO

A palavra suicídio tem origem latina e significa ―assassinato de si mesmo‖. O suicídio

assistido3consiste no ato intencional de tirar a própria vida com auxílio de outra pessoa. A

assistência ao suicídio pode ser feita por atos, como a prescrição de doses excessivamente

altas de medicação ou de maneira passiva, por meio de incentivo, compactuando com a

intenção da outra pessoa de morrer.

No entanto, independente do tipo de suicídio, todas são ações executadas pela própria

pessoa e não por um terceiro4. Ele pode ser executado pelos pacientes terminais acometidos

por doenças degenerativas, de acordo com a sua vontade, auxiliados e orientados por um

terceiro. Entende-se por doenças degenerativas aquelas que produzem alteração estrutural no

funcionamento de uma célula, de um tecido ou de um órgão, e são assim denominadas porque

provocam a degeneração de todo o organismo. Por serem patologias não passíveis de cura,

ocasionalmente a morte pode aparecer como solução, frente ao sofrimento causado por elas.

Surge então um importante questionamento: seria esta uma vida que vale a pena ser

vivida? Em seus diálogos, Platão lembra a afirmação de Sócrates de que ―o que vale não é o

viver, mas o viver bem‖5. Para este filósofo, uma vida que não vale a pena ser vividanão deve

ser protelada numa luta cruel contra a morte.

No caso em apreço, utiliza-se a assistência ao suicídio como uma maneira de

promover uma morte digna ante o sofrimento insuportável e a inutilidade do tratamento.

Trata-se de fato típico que conta com a colaboração de um terceiro. Este pode atuar

ativamente, empregando, por exemplo, recursos farmacológicos (prescrição de doses altas de

medicação, indicações de uso etc.), ou passivamente, deixando de evitar o resultado

mencionado pelo tipo.

Na Antiguidade, a prática em questão não era condenada, sendo até mesmo corriqueiro

o fato de se ajudar alguém a ter uma ―boa morte‖, pois a maioria dos médicos relutava em

tratar casos de doenças para as quais não havia cura conhecida, deixando para os pacientes

3José Roberto Goldim conceitua o suicídio assistido: ―O suicídio assistido é quando a pessoa não consegue

concretizar sozinha sua intenção de morrer. A assistência ao suicídio de outra pessoa pode ser feita por atos,

como a prescrição de doses excessivamente altas de medicação e da indicação de seu uso, ou ainda, de forma

passiva, por meio de persuasão ou de encorajamento. Em ambas as situações, alguém contribuiu para a morte de

outra, por compactuar com a sua intenção de morrer. Independente do tipo de suicídio, todas são ações

executadas pela própria pessoa e não por um terceiro‖ GOLDIM, José Roberto. Suicídio Assistido. Disponível

em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/suicass.htm>. Acesso em: 16 abr. 2014. 4 O suicídio assistido diferencia-se da eutanásia por ser o próprio enfermo que realiza o ato, embora necessite

ajuda para realizá-lo, e no caso da eutanásia, o pedido é feito para que alguém execute a ação que levará a morte. 5DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 340.

Page 400: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

400

terminais poucas alternativas, além da opção pelo suicídio. Este era considerado pela grande

maioria dos filósofos de Grécia e Roma como a solução mais apropriada e racional para por

fim a diversos males. Conforme afirma Maria Helena Diniz6:

Entre os povos primitivos, era admitido o direito de matar doentes e velhos,

mediante rituais desumanos. O povo espartano, por exemplo, arremessava idosos e

recém-nascidos deformados do alto do Monte Taijeto. (...) Os guardas judeus tinham

o hábito de oferecer aos crucificados o vinho da morte ou vinho Moriam. (...) Os

brâmames eliminavam recém-nascidos defeituosos, por considerá-los imprestáveis

aos interesses comunitários. Na Índia, lançavam no Ganges os incuráveis. (...) Os

celtas matavam crianças disformes, velhos inválidos e doentes incuráveis.

A morte assistida começou a sofrer rejeição apenas com o advento do cristianismo e

do judaísmo, religiões que preconizaram o repúdio a qualquer tipo de morte que não seja a

morte natural. Um grande defensor dessa idéia foi Santo Agostinho, que, em ―A Cidade de

Deus‖, afirmou que o suicídio era simplesmente outra forma de homicídio, e que, portanto,

também era inadmissível.

No decorrer dos séculos XVIII e XIX, surgiram significativas mudanças na maneira de

pensar da sociedade, tendência que, inspirada no humanismo, projetou-se de forma acentuada

na postura médica. A partir desse momento, a conduta médica, ancorada por critérios de

caráter ético, sofre profunda transformação. O profissional deve estar a serviço do seu

paciente até o ultimo momento, evitando, postergando ou fazendo com que sua morte ocorra

do modo mais ameno possível.

Nesse aspecto, o Conselho Federal de Medicina impõe certos princípios éticos que

devem ser seguidos pelo médico, não podendo este, v. g., tomar decisões próprias quanto ao

destino dos seus pacientes. O Código de Ética Médica7, no art. 25 (Capítulo IV, que trata dos

direitos humanos), pune o médico que:

[...] deixar de denunciar a prática de tortura ou de procedimentos degradantes,

desumanos ou cruéis, que praticar esses procedimentos, bem como aquele que for

conivente com quem as realize ou que forneça meios, instrumentos, substâncias ou

conhecimentos que as facilitem.

Já no capítulo V, que versa sobre a relação com pacientes e familiares, oart. 41 veda ao

médico ―abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.‖

6DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 386.

7Código de Ética Médica. Disponível em: http: <//www.portalmedico.org.br/novocodigo/legislacao.asp.>.

Acesso em: 18 abr. 2014.

Page 401: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

401

Sendo assim, de acordo com os princípios éticos que informam o exercício da Medicina, é

inadmissível que o médico coadune com a prática do suicídio assistido.

3 A LEGALIZAÇÃO DO SUICÍDIO ASSISTIDO NA SUÍÇA

A Suíça é referência entre os países8 que legalizaram a prática do suicídio assistido.

Sua legislação é flexível quanto a este ato. Há limitação apenas quanto à pessoa que venha a

prestar o auxílio, não podendo esta ter nenhum interesse pessoal na morte do paciente ou ser

seu herdeiro direto. O procedimento pode ser realizado sem a participação de um médico e

não há necessidade de que a pessoa que deseja morrer esteja em fase terminal. No país,

existem cinco associações especializadas na prática do suicídio assistido; as mais famosas

dentre elas são a Dignitas e a Exit9, sendo a primeira a única que oferece auxílio ao suicídio de

estrangeiros. Estas clínicas possuem critérios para a admissão de pacientes que desejam

suicidar-se. É necessário que o pedido de assistência seja permanente e reiterado durante

algum tempo. Além disso, a doença que acomete o paciente deve ser incurável, com morte

previsível e provocar sofrimentos físicos e psicológicos.

Após uma decisão segura e precisa por parte do paciente, este receberá a assistência

personalizada de um acompanhante voluntário, que deverá fazer um estudo prévio do caso e

verificar se ele preenche os requisitos previstos em lei. Ao chegar o momento marcado para a

morte, é oferecida ao paciente a solução letal, que ele deve ingerir com suas próprias forças,

requisito essencial para que se configure um suicídio assistido e que o difere da eutanásia.

Todo o procedimento é registrado para que a filmagem seja mostrada às autoridades suíças,

assegurando que a pessoa estava em estado de total consciência, agiu segundo a sua vontade

livre e espontânea e que, portanto, não houve crime.

A permissão para o suicídio assistido na Suíça acabou por dar início ao que se chama

de ―turismo suicida‖ ou ―turismo da morte‖, atraindo pessoas de outras localidades para

realizar o suicídio nesse país. As associações que atuam nesta prática possuem um grande

corpo de membros, em sua maioria alemães, suíços e britânicos, além de cidadãos de outros

países da Europa. Em maio deste ano, foi realizado um referendo no cantão de Zurique, com

efeitos na Suíça inteira, no qual se colocou em votação o aumento na rigidez da lei suíça sobre

a matéria. A grande maioria da população optou por manter uma legislação liberal.

8Holanda, Bélgica, Suíça e o Estado norte-americano de Oregon são exemplos de países e estados que já

autorizam o suicídio assistido através de medicamentos. 9 Disponível em: < http://www.exitinternational.net/page/Switzerland>. Acesso em: 18 abr. 2014.

Page 402: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

402

Contrastando com a realidade suíça, na maioria dos países ocidentais, incluindo o

Brasil, a assistência ao suicídio não é uma prática legalizada. Tal proibição é baseada em

fatores jurídicos, políticos religiosos e morais, que o consideram como uma interrupção do

ciclo natural da existência e uma afronta ao direito à vida elencado na Constituição Federal10

.

A discussão no âmbito jurídico brasileiro acerca desse tema é relativamente recente, assim

como todos os casos polêmicos que envolvem o Biodireito.

4 SUICÍDIO ASSISTIDO E A COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO

ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O surgimento do Estado Constitucional contemporâneo acarretou em mudanças

significativas no que diz respeito às discussões sobre o direito e a sociedade. A ideia de defesa

da soberania estatal, de certo modo, foi deixada de lado para dar origem à defesa da

Constituição e da sua força normativa (Konrad Hesse), o que pressupõe, entre outros fatores, a

criação de garantias constitucionais11 capazes de assegurar a aplicação e a estabilidade da

Carta Magna.

No constitucionalismo contemporâneo, o início do reconhecimento e afirmação dos

direitos fundamentais teve como marco a Declaration of Human Rights12pela Assembléia

Geral das Nações Unidas, elaborada após a Segunda Grande Guerra Mundial, mais

especificamente em 10 de dezembro de 1948, em um cenário de expressivas transformações

políticas e sociais.

10

O direito à vida é protegido pela Constituição Federal e pelo Código Penal, que prevê pena para o suicídio

assistido quando, no seu art. 122, versa: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que

o faça: pena de dois a seis anos de reclusão”. A pena é duplicada se o crime for praticado por motivo egoístico,

se a vítima é menor ou se tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência. O bem jurídico

protegido no dispositivo em questão é a vida humana, haja vista que no ordenamento jurídico pátrio não se fala

em direito à morte. 11

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª Ed. Coimbra: Almedina,

1998, p. 879. 12

―A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento marco na história dos direitos

humanos. Elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo,

a Declaração foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948,

através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os

povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos.Desde sua adoção,

em 1948, a DUDH foi traduzida em mais de 360 idiomas – o documento mais traduzido do mundo – e inspirou

as constituições de muitos Estados e democracias recentes. A DUDH, em conjunto com o Pacto Internacional

dos Direitos Civis e Políticos e seus dois Protocolos Opcionais (sobre procedimento de queixa e sobre pena de

morte) e com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e seu Protocolo Opcional,

formam a chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos.‖ A Declaração Universal dos Direitos

Humanos. Disponível em: <http://www.dudh.org.br/declaracao/>. Acesso em: 20 abr. 2014.

Page 403: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

403

Os chamados direitos de primeira geração13

fortaleceram a idéia de limitação e

controle do poder do próprio Estado e de suas respectivas autoridades constituídas, além de

consagrar os princípios básicos da igualdade perante a lei e da legalidade como regentes da

atuação estatal. Os direitos de segunda geração14

, por sua vez, conferem ao Estado a

incumbência de proporcionar um mínimo igualitário e de bem-estar social para a população.

Tal perspectiva foi aceita e adotada pela grande maioria das democracias ocidentais.

Os direitos fundamentais devem servir de preâmbulo para um Estado Democrático de

Direito, criando as condições necessárias para assegurar uma vida em liberdade e a dignidade

humana. Influem, outrossim, em todo o direito, não apenas quando têm como objeto de

proteção as relações jurídicas dos cidadãos com os poderes públicos, mas também quando

regulam as relações jurídicas entre os particulares (eficácia horizontal dos direitos

fundamentais).15

A Carta Magna de 1988 sedimenta uma fase de reconhecida efetividade de extenso rol

de direitos e garantias fundamentais, ao tutelar em seu texto os princípios norteadores dos

direitos humanos, de primeira à quarta geração. O ordenamentonão confere qualquer tipo de

privilégio normativo ou prevalência de um direito fundamental sobre o outro. Contudo, em

razão do suporte fático, no âmbito jurisprudencial alguns desses direitos terminam por

prevalecer quando da elaboração da decisão jurídica. Essa tendência se manifesta

principalmente perante o princípio da dignidade da pessoa humana.

Apesar do exposto anteriormente, e tendo em vista a pluralidade social e cultural

existente nos dias atuais, é inevitável que haja colisão entre direitos fundamentais. Nesse

sentido, afirma-se que há colisão entre direitos fundamentais quando dois enunciados

normativos parecem incidir sobre o mesmo caso ou quando se identifica conflito decorrente

do exercício de direitos individuais por diferentes titulares16. Em algumas situações, os

conflitos existentes entre direitos individuas são apenas aparentes, em virtude de algum dos

13

Segundo Bobbio, os direitos de primeira geração são direitos que reservam ao indivíduo uma esfera de

liberdade "em relação ao" Estado. Nesta mesma dimensão, porém no que concerne aos direitos políticos, Bobbio

afirma serem direitos que concedem uma liberdade "no" Estado, pois permitiram uma participação mais ampla,

generalizada e freqüente dos membros da comunidade no poder político. (BOBBIO, Norberto. A era dos

direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 16). 14

―Os direitos da segunda geração são os sociais, culturais e econômicos. Derivados do princípio da igualdade,

surgiram com o Estado social e são vistos como direitos da coletividade. São direitos que exigem determinadas

prestações por parte do Estado, o que ocasionalmente gerou dúvidas acerca de sua aplicabilidade imediata, pois

nem sempre o organismo estatal possui meios suficientes para cumpri-los. (PFAFFENSELLER,Michelli. Teoria

dos direitos fundamentais. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_85/artigos/MichelliPfaffenseller_rev85.htm>. Acesso em: 20

abr. 2014). 12

Entende-se por eficácia horizontal dos direitos fundamentais a incidência e aplicação dos direitos fundamentais

no âmbito das relações privadas. 16

MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 341.

Page 404: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

404

pólos não ter efetiva proteção no ordenamento constitucional como direito fundamental. O

verdadeiro conflito é analisado quando um dos direitos envolvidos atinge de maneira direta o

âmbito de proteção do outro direito, prevalecendo, neste caso, a norma constitucional passível

de menor restrição.

No que concerne à colisão aparente entre direitos e garantias fundamentais, discorre J.

J. Gomes Canotilho que a superfluidade de normas constitucionais pode ser considerada como

um fator predominante no sentido de desencadear tais colisões, havendo então a necessidade

de uma ponderação e balanceamento de tais bens. A análise é feita a partir dos direitos

protegidos juridicamente que estão envolvidos no conflito, com o intuito de encontrar uma

norma de decisão baseada no caso concreto. Nessa ponderação, segundo o constitucionalista

português, há predominância de um determinado direito juridicamente protegido, em face do

equilíbrio e ordenamento dos bens conflitantes, aspectos que devem ser levados em

consideração como indispensáveis na análise de cada caso em particular. Tais critérios de

ordenação visam obter soluções justas para o conflito entre princípios17.

Por outro lado, Canotilho defende que as ideias de ponderação (Abwügung) ou de

balanceamento (balancing)18 surgem sempre que haja a necessidade de encontrar o direito

para resolver os casos de tensão entre bens juridicamente protegidos. Nesse sentido, os

tribunais fazem uso de princípios norteadores da interpretação e aplicação de normas

constitucionais em busca de soluções viáveis para assegurar a proteção e dos direitos

fundamentais conflitantes.

Um dos princípios utilizados é o da concordância prática ou da harmonização19,

considerado como pressuposto essencial para a resolução da colisão entre direitos

fundamentais. É utilizado para estabelecer o alcance e os limites dos bens protegidos pela

Carta Magna, para que todos tenham a sua porção correta de eficácia, sem a prevalência de

um interesse sobre o outro. A combinação de bens jurídicos conflitantes tem como intuito

evitar inteiro sacrifício de uns em relação aos outros. É indispensável que haja um ponto de

convergência entre eles, na medida em que um determinado direito deva ceder em face do

outro, ocorrendo a partir dessa ponderação uma verdadeira harmonização.

17

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª Ed. Coimbra: Almedina,

1998. 18

Ibidem, p. 1236 e 1237. 19

―O objetivo da aplicação desse princípio será proporcionar ao intérprete que este faça uma análise dos bens,

interesses ou valores que estão em conflito e estabelece os limites e a abrangência de cada um deles, de maneira

coordenada e consentânea com o texto constitucional, sem que nenhum seja sacrificado em proveito de outro.

Vale dizer, o intérprete fará uma harmonização desses interesses.‖ (SILVA, Enio Moraes da. Princípios e

critérios de interpretação constitucional na solução dos conflitos de competências em matéria ambiental.

Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/teses/Enio%20Moraes.htm>. Acesso em: 23 abr. 2014).

Page 405: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

405

O princípio considerado como o mais apropriado para a solução dos conflitos entre

normas fundamentais é o da proporcionalidade20

, apesar de não estar expresso de forma

explícita na Constituição Federal. Seu intuito é promover uma distribuição adequada e

ponderada entre bens jurídicos, resguardando os direitos fundamentais colidentes, na busca de

uma solução jurídica razoável, concedendo ao caso concreto uma aplicação coerente das

normas constitucionais, preservando os direitos e garantias constitucionais.

Segundo o autor Steinmetz21,

Para a realização da ponderação de bens requer-se o atendimento de alguns

pressupostos básicos: a colisão de direitos fundamentais e bens constitucionalmente

protegidos, na qual a realização ou otimização de um implica a afetação, a restrição

ou até mesmo a não-realização do outro, a inexistência de uma hierarquia abstrata

entre direitos em colisão, isto é, a impossibilidade de construção de uma regra de

prevalência definitiva.

Nesse sentido, verifica-se a importância relativa dos direitos envolvidos, através da

aferição de valores, ressalvando outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos,

obstando as dispensáveis restrições imoderadas de direitos fundamentais, constituindo-se

como sendo o princípio norteador para a resolução do conflito normativo no caso do suicídio

assistido.

5. CONFLITO ENTRE NORMAS CONSTITUCIONAIS NO SUICÍDIO ASSISTIDO:

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA VERSUS DIREITO À VIDA

O princípio da dignidade da pessoa humana é dotado de amplitude conceitual, não se

restringindo unicamente à proteção dos direitos individuais do homem, alcançando também

todo o rol de direitos, liberdades e garantias. Na verdade,

O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da

pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um

direito individual protetivo, seja em relação ao próprio estado, seja em relação aos

demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de

tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela

exigência do indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a

Constituição federal exige que lhe respeitem a própria.22

20

O princípio da proporcionalidade ordena que a relação entre o fim que se busca e o meio utilizado deva ser

proporcional, não-excessiva. Deve haver uma relação adequada entre eles 21

STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e principio da proporcionalidade. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 142-143. 22

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.

50-51.

Page 406: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

406

Ademais, seria inconcebível alienar ou renunciar a um valor inerente ao ser humano,

de acordo com o aspecto intrínseco. Nesse aspecto, José Afonso da Silva23

conceitua a

dignidade como:

[...] atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana, único ser que compreende

um valor intrínseco superior a qualquer preço, que não admite substituição

equivalente. Assim a dignidade entranha e se confunde na própria natureza do ser

humano.

Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet24 afirma que:

[...] a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e

inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não

pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de

determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a

dignidade.

Sendo assim, a Constituição de 1988 considera a dignidade da pessoa humana como

fundamento dos demais dispositivos normativos, funcionando como condutor no que tange à

efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Podemos afirmar, com isso, que a dignidade

da pessoa humana é princípio de elevada importância em um Estado Democrático de Direito,

servindo de guia no que se refere à interpretação constitucional.

Nessa linha, Ernst Benda25 considera que:

Em qualquer caso, o Estado é juridicamente obrigado a preservar a dignidade

humana e a protegê-la no marco de suas possibilidades. As competências do Estado

resultam limitadas, na medida em que com o mandato de respeito à dignidade se

estabelece uma barreira absoluta em relação à toda a ação do Estado. Respeito e

proteção da dignidade são diretrizes vinculantes para toda a atividade do Estado.

Concernente ao direito à vida, a Constituição brasileira lhe confere dupla concepção..

Nesse sentido, temos uma primeira vertente, que dispõe sobre o direito de continuar vivo, e

uma segunda, que abrange a necessidade de se ter uma vida digna, concepção que pode estar

23

SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. SILVA,

Carlos Medeiros; Caio Tácito. Revista de direito administrativo. Periódicos, Vol. 212. Fundação Getúlio Vargas.

Rio de Janeiro: Renovar, abril/junho 1998, p. 91. 24

SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão

jurídico-constitucional necessária e possível. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões da Dignidade.

Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. trad. Ingo Wolfgang Sarlet, Pedro Scherer de Mello

Aleixo, Rita Dostal Zanini. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 17 - 18. 25

BENDA, Ernst. Dignidade humana y derechos de la personalidad. In: Manual de Derecho Constitucional. 2

ed. Madrid: Marcial Pons, 2001, p. 235.

Page 407: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

407

relacionada com a idéia de subsistência ou com as condições existenciais necessárias para a

vida do indivíduo. Sendo assim,

O direito à vida é o direito legítimo de defender a própria existência e de existir com

dignidade, a salvo de qualquer violação, tortura ou tratamento desumano ou

degradante. Envolve o direito à preservação dos atributos físico-psíquicos

(elementos materiais) e espirituais-morais ( elementos imateriais) da pessoa humana,

sendo, por isso mesmo, o mais fundamental de todos os direitos, condição sine qua

non para o exercício dos demais.26

O direito à vida é considerado pelo ordenamento jurídico brasileiro como sendo um

bem absoluto, bem jurídico indisponível, não sendo passível de renúncia mesmo em casos

extremos. Nesse caso, pode haver conflitos entre o direito à vida e a dignidade da pessoa

humana quando sua segunda concepção não for observada, ou seja, quando não houver

efetivamente ―vida digna‖. Embora não exista um direito absoluto e incondicionado de viver,

ninguém pode ser desprovido da própria vida contra sua vontade. No entanto, não se pode

falar num direito à morte decorrente do direito à vida, sendo esta uma real inversão do sentido

do preceito constitucional. O Estado garantista preserva a vida acima de qualquer outro

interesse, considerando-o bem jurídico indisponível. Uma possível disponibilidade do bem

jurídico ―vida‖ traria repercussões em diversos setores, não constituindo apenas um problema

jurídico ou moral, mas também religioso.

É evidente a relação existente entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana.

Ambos são bens jurídicos fundamentais constitucionalmente protegidos. Entretanto, eles

entram em choque sempre que se cogita a eliminação de uma vida não digna, como

normalmente ocorre com as hipóteses de suicídio assistido. A partir daí, surgem diversos

posicionamentos.

No suicídio assistido, em caso de doenças degenerativas incuráveis, observa-se um

conflito entre o direito à vida e um possível direito à morte digna. De acordo com o

ordenamento jurídico brasileiro, este conflito é resolvido com a prevalência do direito à vida,

não existindo sequer a possibilidade de se defender um direito à morte digna. Segundo a

concepção dominante na doutrina, fundada nos preceitos constitucionais, não pode haver

qualquer tipo de interrupção artificial do processo natural da vida humana, ainda que para pôr

termo ao sofrimento e agonia do indivíduo. As exceções à indisponibilidade da vida existentes

26

CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 675.

Page 408: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

408

no ordenamento jurídico restringem-se ao aborto, quando plenamente justificado, em caso não

haver meios de se salvar a vida da gestante ou em caso de gravidez decorrente de estupro27.

Há que defendem a importância do reconhecimento e garantia da dignidade da pessoa

humana em todas as etapas da vida humana, sendo incluído neste caso o direito à morte digna.

Tratar-se-ia do direito de viver os instantes finais com dignidade, evitando-se dor intolerável e

sofrimento, verdadeiros atentados à dignidade humana. Em caso de ser adotada esta postura, a

morte digna eliminaria a dimensão material-normativa do tipo, pois a morte, em tal

circunstância, não seria reprovável, não se enquadrando no crime de suicídio assistido. Tal

argumento fundamenta-se no fato de que o bem jurídico vida deve ser ponderado em face de

outros valores constitucionais igualmente básicos, como o da dignidade da pessoa humana

(art.1º, III, da CF), a liberdade de autodeterminação (art. 5º) podendo ser, portanto,

constitucionalmente admissível e permitido no Brasil sua relativização.

Um importante setor doutrinário defende, em contraposição ao anteriormente exposto,

a prevalência do direito à vida sobre todos os outros, inclusive sobre a dignidade da pessoa

humana. Nesse sentido, o direito à vida deve ser tutelado de maneira absoluta, não admitindo

qualquer tipo de restrição, mesmo que diante de conflitos com outros princípios fundamentais.

Seguindo esta linha de raciocínio, Maria Helena Diniz afirma que não se pode fazer

prevalecer o direito à morte digna em detrimento do direito à vida, mesmo que a doença

apresentada pelo paciente, que queira adotar tal método, seja incurável, fazendo com que este

sofra dores insuportáveis, pois:

a) a incurabilidade é prognóstico e como tal falível é, e além disso, a qualquer

momento pode surgir um novo e eficaz meio terapêutico ou uma nova técnica de

cura(...); b) a medicina já possui poderosos meios para vencer a dor física ou

neurológica(...); e c) o conceito de inutilidade de tratamento é muito ambíguo.28

27

De acordo com o art. 128 do Código Penal Brasileiro: “Não se pune o Aborto praticado por médico:

Aborto Necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no Caso de Gravidez Resultante de Estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o Aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de

seu representante legal.‖ 28

DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 345.

Page 409: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

409

As posturas acima mencionadas revelam a complexidade do tema, principalmente em

face de uma possível justificativa no âmbito jurídico-penal para o suicídio assistido, que

resultaria na sua não aplicação diante de casos concretos. Tal postura apenas poderia ser

defendida tendo-se em vista a vertente que defende o direito à vida digna, englobando neste o

direito à uma morte digna.

6 CONCLUSÃO

A discussão acerca do suicídio assistido é de grande importância no âmbito jurídico

nacional e internacional, pois abarca um dos principais paradigmas axiológico-jurídicos da

sociedade atual: o conflito normativo entre dignidade da pessoa humana e a proteção do

direito à vida.

A Constituição brasileira de 1988 estabelece princípios fundamentais relacionados à

pessoa, dentre os quais se encontra aquele que protege a sua dignidade, bem como a

inviolabilidade da vida. Ambos estão completamente conectados, havendo profunda

dependência entre eles. Toda a legislação infraconstitucional vigente no país deve estar em

concordância com os preceitos constitucionais, e o Código Penal não foge a esta regra quando

protege a vida através dos mais variados tipos penais.

Os que defendem a interrupção da vida através do suicídio assistido partem da idéia de

que não pode haver dignidade numa vida repleta de limites, cercada por uma rotina de

medicações e tratamentos que parecem inúteis (e que, às vezes, o são). Nesse sentido,

afirmam que a postura mais sensata seria proporcionar a esta pessoa que vive em condições

―indignas‖ ao menos o direito a uma ―morte digna‖.

No entanto, esta discussão acabará esbarrando na imprecisão conceitual do que seria

dignidade. Seria, então, correto defender a idéia de que não existe dignidade nos casos onde o

paciente necessita de atenção especial ou que deverá enfrentar dificuldades para superar (sem

qualquer garantia de sucesso) a sua enfermidade? Uma resposta afirmativa para este

questionamento levaria à seguinte conclusão: uma doença que apresenta limitações desde o

ponto de vista da Medicina para a sua cura e que, além disso, torna degradante e angustiante a

vida de determinada pessoa, não permite a concretização da dignidade humana.

A questão é de extrema complexidade, pois se verifica a existência de impedimentos

estruturais para uma possível legalização do suicídio assistido no Brasil. Ainda prevalece uma

vertente tradicionalista no que se refere a este tipo de reestruturação legislativa pelas

dificuldades ético-jurídicas apresentadas pelo tema. Contudo, as dificuldades que giram em

Page 410: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

410

torno da concretização de direitos fundamentais são notáveis até mesmo naqueles casos

menos polêmicos.

REFERÊNCIAS

BARZOTTO, Luiz Fernando. Pessoa e reconhecimento – uma análise estrutural da dignidade

da pessoa humana. In: Dignidade da Pessoa Humana – Fundamentos e Critérios

Interpretativos. São Paulo: Malheiros, 2010.

BENDA, Ernst. Dignidade humana y derechos de la personalidad. In: Manual de Derecho

Constitucional. 2ª Ed. Madrid: Marcial Pons, 2001.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª Ed.

Coimbra: Almedina, 1998.

________. Estudos sobre direitos fundamentais. 2 ed. Coimbra: Coimbra, 2008.

Código de Ética Médica. Disponível em: http:

<//www.portalmedico.org.br/novocodigo/legislacao.asp.>. Acesso em: 18 abr. 2014.

CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 5ª Ed. Salvador: Juspodivm,

2011.

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:

<http://www.dudh.org.br/declaracao/>. Acesso em: 20 abr. 2014.

DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

GOLDIM, José Roberto. Suicídio Assistido. Disponível em:

<http://www.ufrgs.br/bioetica/suicass.htm>. Acesso em: 16 abr. 2014

GONÇALVES, Rogério Magnus Varela. A dignidade da pessoa humana e o direito à vida. In:

Dignidade da Pessoa Humana – Fundamentos e Critérios Interpretativos. São Paulo:

Malheiros, 2010.

KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

KLOEPFER, Michael. Vida e dignidade da pessoa humana. In: Dimensões da Dignidade -

Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2005.

MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. 3ª Ed. São Paulo:

Saraiva, 2008.

Page 411: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

411

MIRANDA, F. C. Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. 3ª Ed. Rio de

Janeiro: Borsoi, tomo VII, 1971.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral. 8ª Ed. São Paulo:

Atlas, 2010.

________. Direito Constitucional. 27ª Ed. São Paulo: Atlas, 2011.

PFAFFENSELLER,Michelli. Teoria dos direitos fundamentais. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_85/artigos/MichelliPfaffenseller_rev85.ht

m>. Acesso em: 20 abr. 2014

SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo

uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: SARLET, Ingo

Wolfgang (org.), Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito

Constitucional. trad. Ingo Wolfgang Sarlet, Pedro Scherer de Mello Aleixo, Rita Dostal

Zanini. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

______________________. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na

Constituição Federal de 1988. 5ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

SILVA, Enio Moraes da. Princípios e critérios de interpretação constitucional na solução

dos conflitos de competências em matéria ambiental. Disponível em:

<http://www.pge.sp.gov.br/teses/Enio%20Moraes.htm>. Acesso em: 23 abr. 2014

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª Ed. São Paulo:

Malheiros, 1998.

_____________________ A dignidade da pessoa humana como valor supremo da

democracia. SILVA, Carlos Medeiros; Caio Tácito. Revista de direito administrativo.

Periódicos, Vol. 212. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: Renovar, abril/junho 1998.

STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e principio da

proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

Page 412: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

412

FERTILIZAÇÃO IN VITRO: UMA ANÁLISE DO PROCEDIMENTO À

LUZ DA JURISPRUDÊNCIA RECENTE DAS CORTES

INTERAMERICANA E EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS

Ana Cláudia Ruy Cardia1

Sumário: Introdução. 1 A justicialização dos direitos humanos na ordem

internacional os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos. 2 O sistema

interamericano de proteção aos direitos humanos. 2.1 Histórico de surgimento: a

convenção americana de direitos humanos. 2.2 A comissão interamericana de

direitos humanos e a corte interamericana de direitos humanos. 3 O sistema europeu

de proteção aos direitos humanos. 3.1 Histórico. 3.2 A convenção europeia de

direitos humanos. 3.3 A corte europeia de direitos humanos. 4 A fertilização in vitro

à luz da jurisprudência das cortes interamericana e europeia de direitos humanos. 4.1

Fertilização in vitro: breves considerações. 4.2 O procedimento na corte

interamericana de direitos humanos: análise da sentença proferida no

casoartaviamurillo e outros v. costa rica. 4.3 O entendimento da corte europeia de

direitos humanos no caso s.h. e outros v. áustria. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A proteção dos direitos humanos na sociedade internacional pós-moderna é marcada

pelajusticiabilidadedesta categoria de direitos, com a criação e a expansão das Cortes

internacionais e regionais de direitos humanos, estabelecidas com a finalidade de garantir que

eventuais violações aos direitos dos indivíduos cometidas pelos Estados se perpetuem e deem

ensejo a uma situação de impunidade e de descaso para com os indivíduos e a humanidade

como um todo. Nas últimas décadas foram estabelecidas cortes de direitos humanos

temporárias (ou ad hoc) e permanentes, todas elas sob a égide de convenções internacionais

que comprovam a expansão quantitativa e qualitativa do Direito InternacionalPúblico na pós-

modernidade. As Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos e a Corte Africana

de Direitos Humanos e dos Povos representam, neste cenário, as principais expoentes do

sistema regional de proteção aos direitos humanos, atuando de forma subsidiáriaao sistema

judicial dos Estados, ou seja, agindo quando estes não forem capazes de garantir a efetiva

proteção dos indivíduos nos mais diversos planos.

Concomitantemente à expansão do Direito Internacional Público e do Direito

Internacional dos Direitos Humanos, verificou-se na sociedade internacional o exponencial

1 Advogada. Mestranda em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo (PUC-SP). Especializada em Direito Internacional Público e Direito Internacional dos

Direitos Humanos pela Universidade de Copenhague, Dinamarca. Membro do Alumni da Academia de Direito

Internacional da Haia, Holanda. Coordenadora do grupo de Cortes Regionais de Direitos Humanos no Núcleo de

Estudos e Pesquisa em Tribunais e Cortes Internacionais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

(NETI-USP). Membro do Comitê de FeminismandInternational Law da International Law Association (ILA).

Page 413: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

413

avanço da tecnologia, materializada com a criação de novas possibilidades, disponíveis aos

indivíduos em praticamente todos os contextos sociais. No campo da medicina, mais

especificamente, restou verificada a expansão mais significativa, seja no combate às doenças

mais graves que acometeram a humanidade nos últimos séculos, seja nas atividades

desempenhadas pela engenharia genética. Neste último caso, é de grande importância para a

sociedade internacional e para a humanidade a reprodução assistida, que garantiu a

possibilidade de casais, impedidos naturalmente de conceber seus filhos, de conceberem sua

prole mediante a realização de, dentre outros, do procedimento da fertilização in vitro.

Não obstante as questões morais e religiosas que referido tema possa suscitar na

sociedade internacional, que não serão objeto do presente trabalho, há, também perante o

Direito Internacional Público, grandes questionamentos a respeito de referida prática, todos

eles fundamentados nas premissas estabelecidas pelo Direito Internacional dos Direitos

Humanos. Este será, assim, o objeto do presente trabalho, qual seja, o de analisar o

posicionamento das cortes regionais de direitos humanos no que tange à temática da

fertilização in vitro.

Dessa maneira, será estudada no presente trabalho a evolução da justicialização dos

direitos humanos na Ordem Internacional, sendo analisada a recente jurisprudência produzida

no âmbito das Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos sobre a temática da

fertilização in vitro. Referido corte metodológico se deu em razão de a temática tratada não

ter sido objeto de julgamento perante a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos.

Serão estudados, assim, os casos: ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica2, cuja sentença

proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos data do final do ano de 2012; e S.H.

e Outros v. Áustria3, decidido pela Corte Europeia de Direitos Humanos em 2011.

Para se alcançar o objetivo proposto, a metodologia adotada no presente estudo será a

da pesquisa histórico-bibliográfica, sendo, ainda, utilizado o método indutivo para o alcance

das principais conclusões4.O método indutivo será utilizado quando da análise dos Sistemas

Regionais de Proteção como consequência direta da expansão horizontal e vertical do Direito

Internacional Público e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao passo que o

2 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica.

Série C, nº 257. Sentença de 28 de novembro de 2012. Disponível em:

<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_ing.pdf>. Acesso em: 15 out. 2014. 3 CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Caso S.H. e Outros v. Áustria. Sentença de 03 de

novembro de 2011. Disponível em:

<http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/Pages/search.aspx#{"fulltext":["S.H. andOthers v.

Austria"],"sort":["respondentAscending"],"itemid":["001-107325"]}>. Acesso em: 15 out. 2014. 4 BITTAR, Eduardo C. B. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática da monografia para os cursos de

direito. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Page 414: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

414

método dedutivo será empregado quando da análise concreta da jurisprudência das Cortes

Interamericana e Europeia de Direitos Humanos nos casos supramencionados.

1 A JUSTICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA ORDEM

INTERNACIONAL E OS SISTEMAS REGIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS

HUMANOS

O Direito Internacional dos Direitos Humanos5, ramo do Direito Internacional Público,

remonta ao final da primeira metade do século XX, mais especificamente ao final da Segunda

Guerra Mundial. Instituído a partir de 19456, com a criação da ONU, e consolidado a partir de

19487, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (―DUDH‖)

8, referido ramo do

Direito Internacional materializou a ideia de que o indivíduo deve ser o objetivo principal das

preocupações internacionais e contribuiu para reforçar a expansão subjetiva e normativa do

Direito Internacional Público.

Resultam da concepção de que os direitos humanos devem ser objeto de proteção não

apenas pelos Estados, mas também pela comunidade internacional, duas consequências

importantes, quais sejam: a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado; e a

transformação do cidadão à condição de sujeito de direito pela Ordem Internacional.

5 Para referências mais aprofundadas sobre o Direito Internacional dos Direitos Humanos, ver, dentre outros,

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013;

GOODMAN, Ryan. International human rights: text and materials. The successor to International Human

Rights in context: Law, Politics and Morals. Oxford: Oxford University Press, 2013; PIOVESAN, Flávia.

Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010; RAMOS, André

de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado.

A proteção internacional dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Sindicato dos Bancos do Estado do Rio de

Janeiro, 1988; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Co-existence and co-ordination of mechanisms of

international protection of human rights.RecueildesCours de l’Académie de DroitInternational, t. 202, p. 12-

435, 1987., p. 12-435, 1987. No presente trabalho, utilizar-se-á o termo ―direitos humanos‖ como equivalente ao

termo ―Direito Internacional dos Direitos Humanos‖. 6 Há, no entanto, autores que denominam outros instrumentos normativos como precursores dos tratados de

direitos humanos como vistos em sua configuração atual, como a Declaração Inglesa de 1689, a Declaração de

Independência dos Estados Unidos, de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ou

mesmo o estabelecimento da Organização Internacional do Trabalho e da Liga das Nações, desde 1919. 7 É nesse período que se insere o contexto histórico-jurídico da elevação dos sujeitos à categoria de sujeitos de

Direito Internacional Público e do rompimento da lógica dos Tratados de Westfália, em que a coordenação dos

Estados-nações independentes e da justaposição de soberanias absolutas levava à exclusão dos indivíduos e dos

grupos sociais como sujeitos de direitos. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O direito internacional em

um mundo em transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 1.051; 1.075. 8 A Declaração Universal de Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da

Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 e estabelece os padrões mínimos de proteção

dos Direitos Humanos, que devem ser obedecidos e incentivados pelos Estados. Contudo, apesar de sua extrema

importância para o Direito Internacional dos Direitos Humanos, suas disposições não são de cumprimento

obrigatório por parte dos Estados que a adotam.

Page 415: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

415

A partir desse ideal, verifica-sea evolução do processo dejusticialização dos direitos

humanos internacionalmente enunciados, que teve como marco inicial a criação do Tribunal

de Nuremberg e dos Tribunais ad hoc9, culminando com o estabelecimento das cortes

regionais de direitos humanos, sendo hoje complementado com oTribunal Penal

Internacional10

.

O processo de justicialização dos direitos humanos é verificado não apenas no sistema

universal de proteção aos direitos humanos, formado pelo conjunto da DUDH com o Pacto

Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (―PIDCDP‖) 11

(e seus respectivos Protocolos

Facultativos12

), o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

(―PIDESC‖) 13

(juntamente com seu Protocolo Facultativo14

), com seus respectivos Comitês,

e todas as Convenções do sistema onusiano15

. Verifica-se, também, processo semelhante nos

sistemas regionais de proteção, em que as Cortes regionais de direitos humanos têm assumido

extraordinária relevância, comoespeciallocuspara a proteção de referidos direitos16

.

Os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, assim como o sistema global,

encontram-se à disposição de todos aqueles que, no âmbito doméstico, não tiveram a devida

proteção de seus direitos, sendo amparados se os Estados dos quais são nacionais forem

membros de tais sistemas e tiverem reconhecido a competência de suas respectivas Cortes.

Deve-se, ainda, atentar para a complementaridade dos sistemas global e regional, fortalecendo

o ideal de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado dos

Estados17

.

9 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 341; 344.

10 O Estatuto do Tribunal Penal Internacional foi aprovado em 17 de julho de 1998, na Conferência de Roma,

tendo entrado em vigor em 1º de julho de 2002. 11

Adotado pela Resolução nº 2.200- A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de

1966, tendo sua entrada em vigor datada de 23 de março de 1976. 12

O primeiro Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos entrou em vigor em

1976, e o Segundo Protocolo Facultativo, em 11 de julho de 1991. O primeiro estabeleceu, dentre outras

questões relevantes, o direito de petição individual, ao passo que o segundo trouxe como referência a vedação à

pena de morte. 13

Adotado pela Resolução nº 2.200- A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de

1966, tendo sua entrada em vigor datada de 03 de janeiro de 1976 14

Aprovado em dezembro de 2008, traz disposições sobre o direito de petição individual. 15

PIOVESAN, Flávia (Coord.). Código de direito internacional dos direitos humanos anotado. São Paulo:

DPJ, 2008, pp. 3;420. 16

BRANT, Leonardo Nemer Caldeira. O Brasil e os novos desafios do direito internacional. Rio de Janeiro:

Forense, 2004, p. 301. 17

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas

regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 12

Page 416: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

416

São conhecidos, na atualidade, três sistemas regionais de proteção aos direitos

humanos18

, quais sejam: o Sistema Europeu, o Sistema Interamericano e o Sistema Africano.

Os três sistemas são integrantes de sistemas regionais com atribuição mais ampla do que

apenas a proteção aos direitos humanos: o Sistema Europeu tem suas origens no Conselho da

Europa, o Sistema Interamericano, na Organização dos Estados Americanos (―OEA‖)19

, e o

Sistema Africano, na União Africana.. Assim como no sistema global, os tratados que

compõem os sistemas regionais de direitos humanos programam normas que são válidas

apenas para os Estados que adotarem tais sistemas, além de criarem um aparelho de

monitoramento capaz de assegurar o cumprimento dessas normas nos Estados que os

adotaram. Os sistemas Interamericano e Africano contam com Comissões de Direitos

Humanos, que avaliam e encaminham as petições às Cortes Interamericana e Africana de

Direitos Humanos. A Comissão Europeia de Direitos Humanos deixou de existir com sua

fusão à Corte Europeia de Direitos Humanos, em novembro de 1998, com vistas à maior

justicialização do Sistema Europeu20

.

Dentre as vantagens trazidas pelos sistemas regionais de proteção aos direitos

humanos, deve-se mencionar que os valores regionais, culturais, jurídicos, políticos e

econômicos são considerados no momento da elaboração dos dispositivos legais de cada

sistema. Além disso, é permitida, também, a adoção de mecanismos de cumprimento que se

coadunem melhor com as condições locais do que as do sistema global21

. A maior aceitação,

pelos Estados-parte de referidos sistemas,das decisões nele tomadas, bem como a maior

pressão feita pelos outros Estados-parte para que haja o efetivo cumprimento das decisões,

graças à sua proximidade geográficapermitem que a efetividade das decisões seja mais

facilmente alcançada.

Os três sistemas mencionados apresentam semelhanças e diferenças que os

caracterizam. No entanto, sua importância será tratada no tocante à força que tais sistemas

representam na defesa dos direitos humanos, o que será feito mediante a análise de suas

18

Deve-se mencionar, ainda, a existência de um sistema árabe (dentro do âmbito da Liga dos Estados Árabes,

criada em 1945) bem como a proposta de criação de um sistema regional asiático (que conta com a Carta

Asiática de Direitos Humanos, criada em 1997). Como ambos ainda apresentam pequena relevância no cenário

internacional, não contando com decisões paradigmas para a proteção dos direitos das Mulheres, o presente

trabalho não abordará tais sistemas, atendo-se, apenas, aos Sistemas Africano, Europeu e Interamericano de

proteção aos Direitos Humanos. 19

HEYNS, Christof. PADILLA, David. PADILLA, Leo. Comparação esquemática dos sistemas regionais de

direitos humanos: uma atualização. Revista internacional de direitos humanos: SUR, São Paulo, v. 3, n. 4, p.

161-162, 1 sem. 2006. Disponível em: <http://www.surjournal.org>. Acesso em: 14 out. 2014. 20

PIOVESAN, 2006, p. 50. 21

HEYNS, Christof. PADILLA, David. PADILLA, Leo. Comparação esquemática dos sistemas regionais de

direitos humanos: uma atualização. Revista internacional de direitos humanos: SUR, São Paulo, v. 3, n. 4, p.

161-162, 1 sem. 2006. Disponível em: <http://www.surjournal.org>. Acesso em: 14 out. 2014.

Page 417: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

417

principais características e da jurisprudência de suas respectivas Cortes. A Corte Africana de

Direitos Humanos, por ainda não contar com uma jurisprudência consolidada natemática da

fertilização in vitro, não será objeto de análise no presente trabalho, sendo estudados apenas o

histórico de criação, as principais características e a jurisprudência das Cortes Interamericana

e Europeia de Direitos Humanos com relação a referido tema.

É neste contexto de internacionalização dos direitos humanos - ou de humanização do

Direito Internacional22

-, que serão estudados os sistemas regionais de proteção aos direitos

humanos, notadamente os sistemas Interamericano e Europeu de proteção, como se verá a

seguir.

2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Tendo sido verificadas as principais semelhanças e diferenças entre os sistemas global e

regional de proteção aos direitos humanos, dentro de um contexto de humanização do Direito

Internacional e de justicialização dos direitos humanos, faz-se necessário o estudo dos dois

principais sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, quais sejam, o Sistema

Interamericano e o Sistema Europeu. Dada sua importância regional para o presente trabalho,

apesar de ter surgido em momento posterior ao Sistema Europeu, será analisado

primeiramente o Sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos.

2.1 HISTÓRICO DE SURGIMENTO: A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS

HUMANOS

As bases para a análise do Sistema Interamericano de Direitos Humanos encontram-se

na Convenção Americana de Direitos Humanos (―Convenção Americana‖), também

conhecida como Pacto de San José da Costa Rica.Aprovada na Conferência de San José da

Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, a Convenção Americana entrou em vigor apenas na

década seguinte, em 18 de julho de 1978, época marcada pelos regimes ditatoriais e pela

transição aos regimes democráticos na América Latina23

. No entanto, apesar do paradoxo que

marcou o surgimento desse sistema, é possível verificar, na atualidade, a consolidação das

22

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A humanização do direito internacional. Belo Horizonte: Del Rey,

2006, p. 111. 23

RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

pp. 201; 204.

Page 418: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

418

diretrizes estabelecidas no momento de sua criação. Seu estabelecimento teve, ainda,

inspiração no Sistema Europeu de Direitos Humanos, que será estudado em seguida.

Os direitos assegurados pela Convenção Americana constituem-se como uma

reprodução substancial dos direitos constantes do PIDCP, de 1966. O Protocolo Adicional à

Convenção Americana, referente aos direitos econômicos, sociais e culturais, também

conhecido como Protocolo de San Salvador, foi adotado em 199824

.O maior trunfo da

Convenção Americana é o de enunciar a necessidade de os Estados que ela ratificarem de

alcançarem, progressivamente, a plena realização dos direitos nela previstos, seja por meio da

criação de leis especiais para tais fins, seja por meio de outras medidas consideradas

apropriadas. Há, dessa forma, o estímulo à obrigação dos Estados-parte à Convenção de

respeitarem o exercício de todos os direitos e liberdades previstos sem qualquer

discriminação.

A Convenção estabelece ainda um mecanismo de monitoramento das possíveis

violações, pelos Estados-parte, dos direitos nela enunciados, quais sejam: a Comissão

Interamericana de Direitos Humanos (―CIDH‖) e a Corte Interamericana de Direitos

Humanos (―Corte Interamericana‖), ambas integrantes do chamado Sistema Interamericano

de Direitos Humanos, e que serão estudadas a seguir.

2.2 A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A CORTE

INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A CIDH tem suas bases na Resolução VII, do 5º Encontro de Consulta de Ministros de

Relações Exteriores, realizado em 1959, no Chile, e passou a fazer parte do Sistema

Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos após a criação da Convenção Americana.

Sua principal atribuição é a observância e a proteção dos direitos humanos na América. Sua

competência alcança todos os Estados-parte da Convenção Americana em relação aos direitos

humanos nela consagrados, e todos os Estados-membros da OEA no tocante aos direitos

consagrados na Declaração Americana de 194825

.

Composta por sete membros de alta autoridade moral e reconhecido saber em matéria

de direitos humanos, nacionais dos Estados-membros da OEA, a CIDH tem por funções

24

Assinado em San Salvador, El Salvador, em 17 de novembro de 1988, no Décimo Oitavo Período Ordinário de

Sessões da Assembleia Geral da OEA. 25

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva,

2010, p. 258.

Page 419: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

419

principais: o recebimento, a análise e a investigação de petições individuais26

que tragam

alegações sobre violações aos direitos humanos, além da remessa de casos à jurisdição da

Corte Interamericana; a realização de visitas in loco aos Estados que eventualmente estejam

violando direitos previstos na Convenção Americana e na Declaração Americana; a

publicação de estudos sobre temas específicos de interesse dos Estados-membros da OEA; a

criação de recomendações aos Estados-membros da OEA referentes à adoção de medidas

capazes de contribuir com a promoção e garantia dos direitos humanos, bem como a

solicitação aos governos dos Estados-membros de informações relativas às medidas por eles

adotadas para garantir a eficácia da Convenção Americana; a solicitação de concessão de

medidas cautelares e opiniões consultivas à Corte Interamericana, sendo as primeiras

concedidas em caso de gravidade e urgência, e as segundas, analisadas quando houver

dúvidas a respeito da interpretação da Convenção Americana27

.

Dessa forma, é possível concluir que a CIDH não apresenta mera função receptora das

petições endereçadas à Corte Interamericana, exercendo muitas vezes competência exclusiva

para decidir sobre determinadas questões, e atuando, no entender de alguns autores, como

primeira instância jurisdicional28

. Além disso, a CIDH e a Corte Interamericana apresentam

funções complementares, em completa harmonização do Sistema Interamericano.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, é o órgão judicial

autônomo pertencente ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. Com

sede na cidade de San José, na Costa Rica, referido tribunalpossui competência contenciosa e

consultiva para analisar os casos a que lhe são submetidos29

. Seu estabelecimento também

remete à instituição do Pacto de San José da Costa Rica.

Nos termos do artigo 4º de seu Estatuto, a Corte Interamericana deverá ser composta

por sete juízes nacionais dos Estados-membros da OEA. Seus idiomas oficiais são os mesmos

daquela Organização, quais sejam: o espanhol, o português, o inglês e o francês. Apenas os

Estados que reconheceram sua jurisdição podem se valer de suas atribuições. Dos 25 Estados

que ratificaram a Convenção Americana, apenas 21 países a reconheceram: Argentina,

Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Haiti,

Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname,

Trinidad e Tobago e Uruguai. A Venezuela, que havia reconhecido a jurisdição da Corte

26

Comunicações encaminhadas por indivíduos, grupos de indivíduos ou ONG‘s. 27

Disponível em: <http://www.oas.org/es/cidh/>. Acessoem: 15 out. 2014. 28

FAÚNDEZ, Ledesma Héctor. El sistema interamericano de protección de los derechos humanos: aspectos

institucionales y procesales. 2ª ed. San José: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 1999, p. 182. 29

Art. 2º do Estatuto da Corte Interamericana. Disponível em:

<http://www.corteidh.or.cr/index.php/en/about-us/estatuto>. Acesso em 14 out. 2014.

Page 420: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

420

Interamericana, denunciou à Convenção Americana em 2012, de forma que a jurisdição de

referida Corte apenas alcançará as violações aos Direitos Humanos ocorridas naquele Estado

até setembro de 201330

.

A competência consultiva da Corte Interamericana está relacionada à interpretação,

por aquele órgão, dos dispositivos elencados na Convenção Americana e nos tratados

concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados Americanos31

, após eventual

questionamento feito pela CIDH ou pelos Estados-membros da OEA32

. A Corte ainda é

competente para realizar o ―controle da convencionalidade das leis‖, opinando sobre a

compatibilidade de preceitos da legislação doméstica em face dos instrumentos

internacionais33

.

No tocante à competência contenciosa da Corte Interamericana, consoante o artigo 61

da Convenção Americana, somente os Estados-membros e a CIDH podem submeter um caso

à sua apreciação, estando presentes os requisitos do esgotamento dos recursos internos e da

inexistência de litispendência internacional, uma vez que a Corte Interamericana não se presta

ao reexame do mérito das decisões proferidas pelos Tribunais internos. O artigo 23 do

Regulamento da Corte Interamericana admite ainda a participação das vítimas como

peticionárias apenas após a admissão da demanda34

. Com este último mecanismo, permite-se

que os Estados violadores de direitos humanos sejam política e moralmente condenados.

As sentenças proferidas pela Corte Interamericana são definitivas e inapeláveis,

devendo ser imediatamente aplicadas pelos Estados condenados por violações aos direitos

humanos previstos na Convenção Americana. Uma vez reconhecida a violação à Convenção,

30

A este respeito, ver: <http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2013/064.asp>. Acesso em 15 out.

2014. 31

PIOVESAN, 2010, p. 266. 32

Ainda, nos termos do capítulo X da Carta da OEA, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires (aprovado em

1967), além da CIDH, os seguintes órgãos serão competentes para realizar consultas à Corte Interamericana: a

Assembleia Geral da OEA, a Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, os Conselhos; a

Comissão Jurídica Interamericana; a Secretaria-Geral; as Conferências Especializadas; e os Organismos

Especializados. 33

PIOVESAN, 2010, p. 267. BOGDANDY, Arminvon. PIOVESAN, Flávia. ANTONIAZZI, Mariela Morales

(Coord.). Direitos humanos, democracia e integração jurídica: emergência de um novo direito público. Rio de

Janeiro: Elsevier, 2013, pp. 557;800. 34

A respeito da participação das vítimas no procedimento contencioso, válidas serão as palavras de Antônio

Augusto Cançado Trindade; ―É da própria essência do contencioso internacional dos direitos humanos o

contraditório entre as vítimas de violações e os Estados demandados. Tal locusstandi é a consequência lógica, no

plano processual, de um sistema de proteção que consagra direitos individuais no plano internacional, porquanto

não é razoável conceber direitos sem a capacidade processual de vindica-los. Ademais, o livre direitos de

expressão das supostas vítimas é elemento integrante do próprio devido processo legal, nos planos tanto nacional

quanto internacional.‖, in BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu. ARAÚJO, Nadia de (Org.). Os direitos

humanos e o direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 19.

Page 421: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

421

a Corte determinará a adoção de medidas necessárias à restauração do direito violado, bem

como a condenação ao pagamento de justa indenização às vítimas.

A jurisprudência da Corte Interamericana é ainda recente, mas tem se consolidado na

proteção aos direitos humanos violados pelos Estados cujas instituições nacionais tenham sido

falhas ou omissas. Suas decisões são importantes marcos para A proteção da dignidade

humana, sendo imprescindível, portanto, sua análise no que tange à temática da fertilização in

vitro, sendo analisado, neste contexto, o caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica.

3 O SISTEMA EUROPEU DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Uma vez estudadas as principais características do Sistema Interamericano de Proteção

aos Direitos Humanos, passa-se ao estudo do sistema que inaugurou a efetiva e permanente

justicialização dos direitos humanos na Ordem Internacional, a saber, o Sistema Europeu de

Proteção aos Direitos Humanos.

3.1 HISTÓRICO

Diversamente do Sistema Interamericano de proteção aos Direitos Humanos, surgido

em um período marcado por ditaduras militares em países como Chile, Brasil e Argentina, o

Sistema Europeu de Proteção aos Direitos Humanos teve por inspiração a intensa busca pela

democracia e pela proteção efetiva dos direitos humanos. O processo de reintegração

europeia, desenvolvido logo após o final da Segunda Guerra Mundial, foi marcado pela

cooperação entre os países da Europa Ocidental na retomada de regimes democráticos e na

proteção aos direitos humanos. Foi nesse contexto que teve origem o Sistema Europeu, cuja

homogeneidade de princípios o distingue dos demais. Sua instituição influenciou,como visto,

a criação e desenvolvimento do Sistema Interamericano.

Foi ainda com base em tal homogeneidade que se tornou possível a consolidação dos

direitos humanos na Europa, traduzida por meio da Convenção e da Corte Europeia de

Direitos Humanos, que serão estudadas a seguir.

3.2 A CONVENÇÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS

Page 422: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

422

Instituída pelo Conselho da Europa35

, a Convenção Europeia de Direitos Humanos

(―Convenção Europeia‖) foi adotada em 04 de novembro de 1950, entrando em vigor em 03

de setembro de 1953. Marca-se, principalmente, pelos princípios da solidariedade e da

subsidiariedade, fundamentando-se no consenso sobre padrões internacionaisde direitos

humanos. Em outras palavras, baseia-se emstandards protetivos mínimos, de forma que as

questões de direitos humanos protegidas por um Estado-parte da Convenção Europeia podem

ser contestadas por petições individuais ou comunicações estatais perante a instituição que a

compõe36

.

A adoção de Protocolos à Convenção Europeia corrobora sua evolução ao longo dos

anos, em que foram consagrados direitos subjetivos, tais como o direito à educação, a

proibição à pena de morte, o direito de igualdade entre os cônjuges e o direito a não-

discriminação37

.O Protocolo que merece destaque no âmbito do Sistema Europeu é o

Protocolo nº 11, que entrou em vigor em 1º de novembro de 1998. Por meio de referido

Protocolo, a justicialização do Sistema Europeu restou fortalecida, com a substituição da

Comissão e da Corte Europeias, originariamente previstas na Convenção Europeia38

, por uma

Corte permanente (―Corte Europeia‖), competente para realizar o juízo de admissibilidade e

de mérito dos casos que lhes são submetidos e com jurisdição prevista por uma cláusula

obrigatória com aplicação automática39

.Ainda, por meio do Protocolo nº 11, consagrou-se o

direito de petição de Estados, particulares, ONGs ou mesmo grupo de pessoas, que, consoante

a disposição dos artigos 33 e 34 da nova redação da Convenção Europeia, passaram a ter

pleno locusstandi e jus standiperante a Corte Europeia, tornando-o diferente dos demais

sistemas regionais de proteção aos direitos humanos.

3.3 A CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS

Conforme mencionado anteriormente, a Corte Europeia de Direitos Humanos teve seu

marco inicial em 1º de novembro de 1988, após a adoção do Protocolo nº 11. Com a adoção

do Protocolo nº 11houve a unificaçãodas funções de admissibilidade e de mérito dos casos

35

Instituído em 05 de maio de 1949, é o órgão composto pelos Ministros da Justiça dos países dele integrantes. 36

PIOVESAN, 2006, p. 66. 37

Respectivamente, Protocolos nº 2, 13, 7 e 12. 38

Cumpre ainda observar que o Protocolo nº 11 extinguiu a função do Comitê de Ministros (órgão diplomático

formado pelos Ministros de Relações Exteriores dos Estados-membros do Conselho da Europa) de avaliar a

existência de supostas violações aos direitos previstos na Convenção submetidos à Comissão e não à antiga

Corte. 39

PIOVESAN, 2006, pp. 72; 73.

Page 423: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

423

submetidos à Corte Europeia, em um significativo avanço ainda não alcançado pelos demais

sistemas regionais.

A Corte Europeia conta com um número de juízes equivalente ao número de Estados-

partes, e seu mandato deve ser de seis anos. Devem os juízes, ainda, assim como no Sistema

Interamericano, contar com elevada responsabilidade moral, e obedecer aos idiomas oficiais

daquela Corte, quais sejam, o inglês e o francês.

Assim como na Corte Interamericana, a competência da Corte Europeia é consultiva e

contenciosa. Nos termos do artigo 47 da Convenção Europeia, cumpre àreferido tribunal

formular opiniões consultivas sobre questões jurídicas atinentes à interpretação da Convenção

e de seus respectivos Protocolos. No entanto, um ponto que a difere da Corte Interamericana

encontra-se no fato de que aquela Corte é competente para discutir qualquer questão referente

à interpretação dos dispositivos da CIDH, ao passo que a Convenção Europeia restringe o

alcance das questões passíveis de análise por meio de sua competência consultiva40

. Por essa

razão, poucas são as opiniões consultivas emitidas pela Corte Europeia.

Com relação à competência contenciosa, o artigo 34 da Convenção Europeia consagra

o locusstandi dos indivíduos, individualmente e em grupo, e das ONGs, que têm acesso direto

perante a Corte Europeia41

.Os requisitos de admissibilidade dos casos a ela submetidos

encontram-se delimitados no artigo 35 da Convenção, quais sejam: o esgotamento das vias

jurídicas internas; o respeito ao prazo de seis meses, contados da data em que fora proferida a

decisão definitiva de mérito no âmbito interno; a determinação do sujeito que submete a

demanda à Corte Europeia; a inexistência de litispendência internacional; a compatibilidade

com os princípios e enunciados previstos na Convenção Europeia e em seus Protocolos; e a

inexistência de caráter abusivo ou falta de fundamentação trazida pelo pedido. A Corte

Europeia, diferentemente da Corte Interamericana, não é competente para determinar a

40

Em outras palavras, o parágrafo 2º do artigo 47 da Convenção Europeia restringe as consultas feitas à Corte

Europeia, de forma que não podem ser discutidas questões referentes ao conteúdo ou ao alcance dos direitos e

liberdades enunciados na Convenção e em seus Protocolos, ou mesmo a qualquer outra questão que a Corte ou o

Comitê de Ministros possa levar em consideração em decorrência de sua competência. PIOVESAN, Flávia.

Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu,

interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 75. 41

Interessante, nesse caso, notar que a consequência direta do avanço trazido pelo Protocolo nº 11 (que garantiu

o acesso direto dos indivíduos à Corte Europeia por meio do direito de petição) foi o considerável aumento das

demandas submetidas àquele órgão de proteção aos direitos humanos na Europa. A fim de minimizar os efeitos

desse aumento vertiginoso, entrou em vigor, em 1º de junho de 2010, o Protocolo nº 14, que tem por objetivo

aumentar a eficiência da Corte Europeia, permitindo sua concentração maior em casos que demandem

importantes questões de direitos humanos. Referido Protocolo foi paradigmático para o Sistema Europeu de

Proteção aos Direitos Humanos. Contudo, persistem as questões envolvendo o grande acúmulo de casos na Corte

Europeia de Direitos Humanos.

Page 424: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

424

adoção de medidas provisórias, haja vista a inexistência de dispositivo na Convenção

Europeia nesse sentido.

As decisões proferidas pela Corte Europeia revestem-se de natureza declaratória,

vinculando juridicamente as partes integrantes dos conflitos a ela submetidos. Além disso,

tem referidas sentenças autoridade de coisa julgada, de forma que seu não cumprimento, por

parte dos Estados-partes, traz como consequência a aplicação de sanções. A sanção mais

gravosa que se tem conhecimento é aquela trazida nos artigos 3º e 8º do Estatuto do Conselho

da Europa, a saber, a ameaça de expulsão do Conselho.

Finalmente, considerando-se novamente a evolução trazida pelo Protocolo nº 11, que

aboliu a existência da Comissão Europeia, serão apenas considerados apenas os casos

contenciosos julgados no âmbito da nova Corte Europeia, sendo dada especial atenção, no

caso da fertilização in vitro, ao Caso S.H. e Outros v. Áustria.

4 A FERTILIZAÇÃO IN VITRO À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DAS CORTES

INTERAMERICANA E EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS

Fez-se necessário até o presente momento o estudo sobre as principais características dos

sistemas regionais de proteção aos direitos humanos existentes na Ordem Internacional. Uma

vez conhecido seu modus operandi, é possível compreendercom maior rigor de detalhes a

jurisprudência emanada de cada um dos dois sistemas, em especial em temas sociais ainda

considerados polêmicos, como, no caso do presente trabalho, a realização do procedimento da

fertilização in vitro por casais que não tenham, por alguma razão, a possibilidade de conceber

naturalmente sua prole.

Para ilustrar o status de referida discussão nos dois sistemas então estudados, serão

analisadas as sentenças proferidas em dois casos, a saber: Caso ArtaviaMurillo e Outros v.

Costa Rica, decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2012, e Caso S. H. e

Outros v. Áustria, cuja decisão foi proferida pela Corte Europeia de Direitos Humanos em

2011. Contudo, antes de se entrar no mérito das decisões proferidas por ambos os tribunais, é

de rigor a realização um breve estudo sobre o procedimento de fertilização in vitro. É o que se

verá a seguir.

4.1 FERTILIZAÇÃO IN VITRO: BREVES CONSIDERAÇÕES

As origens do procedimento da fertilização in vitro remontam à segunda metade do século

XX, mais precisamente ao ano de 1978, quando, na Inglaterra, foi anunciado o nascimento do

Page 425: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

425

primeiro bebê concebido fora do útero materno. A partir de então, mais de cinco milhões de

crianças foram concebidas por meio de referido procedimento42

.

A fertilização in vitro constitui-se como uma das técnicas reconhecidas de reprodução

assistida43

, em que os óvulos da mulher são removidos de seus ovários, sendo fertilizados por

espermatozoides em um procedimento laboratorial. Uma vez fertilizados, os agora embriões

são reimplantados no útero feminino, ocorrendo, então, a normal gestação da mulher. O

procedimento total da fertilização in vitro dura aproximadamente cinco dias44

.

Por ser um procedimento que cause um potencial risco tanto para a saúde da mulher

quanto para a criança, de grande relevância social, uma vez que atinge os direitos familiares

como um todo (direito à maternidade e à paternidade) – sem contar as questões éticas, morais

e religiosas que circundam essa prática - e de alto custo para as indústrias médica e

farmacêutica, o procedimento da fertilização in vitro é altamente regulamentado pelos Estados

da sociedade internacional. Sua prática é permitida em alguns Estados e neles regulamentada,

como, por exemplo, Chile, Guatemala e México, e expressamente proibida em outros, como,

por exemplo, na Costa Rica, cuja regulamentação e polêmica a este respeito serão estudadas

com maior rigor de detalhes no item que se segue.

4.2 O PROCEDIMENTO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS:

ANÁLISE DA SENTENÇA PROFERIDA NO CASO ARTAVIAMURILLO E OUTROS

V. COSTA RICA

O Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Ricafoi julgado pela Corte Interamericana de

Direitos Humanos em 28 de novembro de 2012, e se constitui como um caso paradigmático

no âmbito do Sistema Interamericano em relação à temática da reprodução assistida.

No caso em questão, as vítimas, nacionais da Costa Rica, questionaram a violação de seus

direitos garantidos na Convenção Americana de Direitos Humanos ante a proibição expressa,

pela Câmara Constitucional da Suprema Corte daquele Estado, de realização da fertilização in

42

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica.

Série C, nº 257. Sentença de 28 de novembro de 2012. Disponível em:

<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_ing.pdf>. Acessoem: 15 out. 2014.Parágrafo 66. 43

―Assisted reproductive techniques or procedures are a group of different medical tratments used to help

infertile individuals and couples achieve pregnancy; they include “the manipulation of both ovocytes and

spermatozoids, or embryos […] for the establishment of a pregnancy.” The techniques include in vitro

fertilization, embryo transfer, gamete intratubal transfer, zygote intratube transfer, intratubal embryo transfer,

cryopreservation of ovocytes and embryos, oocyte donation and embryo donation and surrogate motherhood.

Assisted reproduction techniques do not include assisted or artificial insemination‖. Idem. Parágrafo 63. 44

Idem. Parágrafos 63-65.

Page 426: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

426

vitro. Foram alegadas violações aos seguintes artigos da Convenção Americana de Direitos

Humanos: artigo 1º que estabelece a obrigação dos Estados de proteger os direitos humanos;

artigo 4(1), referente ao direito à vida; 11(2), referente à integridade pessoal na vida privada e

familiar, 17(2), sobre a proteção da família e possibilidade de formação de uma família, e 24,

que trata da igualdade perante a lei.

Após todos os pedidos preliminares feitos pela Costa Rica terem sido rejeitados pela Corte

Interamericana, foram consideradas as questões de mérito. Com relação ao direito à vida

privada e familiar, a Corte Interamericana entendeu que, além de referido direito em sua

acepção tradicional, qual seja, a de garantia do papel central da família na vida dos

indivíduos, bem como de possibilidade de se formar uma família, referido direito também está

relacionado à autonomia reprodutiva e ao direito ao acesso aos meios tecnológicos oriundos

da medicina que sejam necessários para o exercício deste direito. A este respeito, é feita

também menção ao artigo 16(e) da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Contra a Mulher, que garante às mulheres a liberdade de escolha na formação

de sua prole, bem como o acesso à informação necessária a este propósito45

.A este respeito, a

Corte Interamericana traz como premissa a interpretação evolutiva das disposições de direitos

humanos insculpidas na Convenção Americana, trazendo também como referência a

Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluindo que, apesar de a fertilização in

vitro não ter sido prevista na Convenção Americana no momento da elaboração de seu artigo

4(1), é seu dever o de interpretar referido instrumento à luz da evolução da sociedade

internacional. Dessa maneira, faz uma extensa análise sobre quando se deve considerar o

início da vida para o artigo 4(1) da Convenção Americana, concluindo que este ocorre a partir

do momento em que o embrião é implantado no útero materno. Com essa interpretação, a

Corte Interamericana decide que não houve violação ao artigo 4 da Convenção Americana de

Direitos Humanos.

Quanto à proporcionalidade da proibição, pelo Estado da Costa Rica, ao procedimento da

fertilização in vitro, a Corte Interamericana concluiu pela existência de uma rica normativa

internacional que não permite que aquele Estado tenha qualquer margem de apreciação no

momento de estabelecer uma norma restritiva de direitos às famílias costa-riquenhas. Neste

sentido, considera que foram violados os artigos 5(1), referente à integridade pessoal,7,

referente o direito à liberdade pessoal, 11(2), referente à integridade pessoal na vida privada e

45

A respeito dos direitos reprodutivos da mulher, ver FERRAZ, Carolina Valença (Coord.). Manual dos

direitos da mulher. São Paulo: Saraiva, 2013. PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo:

Saraiva, 2010. PIOVESAN, Flávia (Coord.). Direitos humanos. 4. reimp. Curitiba: Juruá, 2011.

Page 427: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

427

familiar, e 17(2), concernente à proteção à família, todos em relação ao artigo 1 da Convenção

Americana de Direitos Humanos, devendo a Costa Rica reparar as vítimas de referido caso,

bem como a estabelecer as medidas necessárias para garantir a anulação de referida proibição,

disponibilizando a fertilização in vitro como um dos tratamentos disponíveis para infertilidade

e educando os funcionários do Poder Judiciário daquele Estado para uma perspectiva não-

discriminatória no que diz respeito aos direitos reprodutivos.

Não obstante os votos dissidentes e concorrentes que se seguiram a tal decisão, é possível

concluir que a atuação da Corte Interamericana no Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa

Rica representa um potencial avanço à proteção dos direitos reprodutivos e ao direito à vida

privada e familiar no continente americano.

4.3 O ENTENDIMENTO DA CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO

S.H. E OUTROS V. ÁUSTRIA

No Caso S.H. e Outros v. Áustria, decidido pela Grande Câmara (Grand Chamber) da

Corte Europeia de Direitos Humanos em 03 de novembro de 2011, dois casais de

nacionalidade austríaca questionaram a norma interna daquele Estado sobre reprodução

artificial, que proibiua doação de óvulos e esperma para a realização do procedimento da

fertilização in vitro. Foram, dessa maneira, alegadas violações ao artigo 8º da Convenção

Europeia, referente ao respeito pela vida privada e familiar, bem como a violação de referido

artigo em conjunto com o artigo 14 da mesma Convenção, este último artigo atinente a não

discriminação46

. A alegação de violação ao artigo 8º da Convenção Europeiafoi feita em razão

de os casais, impossibilitados de conceberem seus filhos por meios naturais, terem

considerado violado seu direito a plena vida familiarcom a proibição da legislação austríaca.

Em defesa da legislação adotada pela Áustria, a Alemanha e a Itália submeteram suas

considerações47

. A Alemanha, no caso, justificou suas considerações com base na proteção

aos direitos das crianças concebidas mediante o método da fertilização in vitro, afirmando

46

O artigo 14 da Convenção Europeia, emendado pelo Protocolo nº 12, é um princípio autônomo, mas que

apresenta caráter subsidiário nos julgados da Corte Europeia, sendo sempre analisado em conjunto com os

demais artigos de referida Convenção. A referência a não discriminação é maior em casos da Corte Europeia de

Justiça, que tem por objetivo garantir a aplicação da legislação da União Europeia em todos os Estados-

membros. 47

CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Caso S.H. e Outros v. Áustria. Sentença de 03 de

novembro de 2011. Disponível em:

<http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/Pages/search.aspx#{"fulltext":["S.H. andOthers v.

Austria"],"sort":["respondentAscending"],"itemid":["001-107325"]}>. Acesso em: 15 out. 2014. Parágrafos 69-

73.

Page 428: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

428

possuir legislação idêntica à austríaca. A Itália, por sua vez, afirmou que o direito à medicina

assistida para a reprodução entre casais não se insere no escopo do artigo 8º da Convenção

Europeia, alegando ainda que, uma vez que referido tema não é revestido de amplo consenso

entre os Estados europeus, é deixada aos Estados-membros da Convenção Europeia uma

ampla margem de apreciação, no sentido, portanto, de que cabe aos Estados que sãoparte no

Sistema Europeu estabelecerem a regulação que melhor lhes convier na temática da

reprodução assistida. Por fim, a Itália concluiu que este é um ramo da medicina que ainda

pode provocar graves riscos à vida das mulheres e das crianças, razão pela qual a proibição,

pela Áustria, se fazia justificada. A margem de apreciação foi também levantada pelo

European Centre for Law and Justice48

.

Também intervindo como terceiros no caso em referência, as organizações Hera Onlus e

SOS InfertilitàOnlus alegaram que a infertilidade deveria ser considerada uma questão de

saúde humana. Dessa maneira, deveria haver maior permissão quanto à reprodução assistida,

devendo ser este o consenso no continente europeu. Não obstante, no entender das

organizações, a proibição aos casais inférteis de recorrerem à fertilização in vitro para

conceber sua prole poderia levá-los a praticar o chamado ―turismo de fertilidade‖, em que

casais nacionais de Estados que proíbem práticas de reprodução assistida buscam conceber

seus filhos em Estados com regulamentação ausente ou liberal neste sentido, pagando altos

valores para a realização de tal prática49

.

Em sua decisão a Grande Câmara da Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que o

conceito de vida privada delimitado no artigo 8º da Convenção Europeia deve ser interpretado

de forma ampla, abarcando, dentre outros direitos, o direito à vida sexual. Amparando-se nas

decisões proferidas em casos decididos anteriormente, a Corte Europeia decidiu pela

aplicabilidade do artigo 8º da Convenção Europeia aos casais que buscam a medicina assistida

para reprodução, o que inclui o procedimento de fertilização in vitro50

. Contudo, os juízes de

referida Corte decidiram que esta questão, dada sua repercussão ética e moral diantedo rápido

desenvolvimento tecnológico, deve estar sujeita a uma ampla margem de apreciação51

pelos

Estados que ratificaram a Convenção Europeia de direitos humanos, decidindo, portanto, que

a norma austríaca que proibia a prática de reprodução assistida almejada pelos autores não

violou o artigo 8º da Convenção Europeia, tampouco o artigo 14.

48

Idem. Parágrafos 75-76. 49

Idem. Parágrafos 74-75. 50

Idem. Parágrafos 80-82. 51

Sobre a teoria da margem de apreciação, ver BOGDANDY, Arminvon. PIOVESAN, Flávia. ANTONIAZZI,

Mariela Morales (Coord.). Direitos humanos, democracia e integração jurídica: emergência de um novo

direito público. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, pp. 507-520.

Page 429: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

429

Em opinião separada, o juiz Vincent A. de Gaetano considerou quea decisão da Corte não

significou uma negação dos direitos fundamentais dos casais que buscavam a realização do

procedimento da fertilização in vitro, mas sim um reconhecimento positivo e um avanço na

proteção irrestrita aos direitos humanos independentemente dos avanços da medicina e de

eventuais questões éticas e morais que tais avanços possam representar.

No que diz respeito à aplicação da margem de apreciação pela Corte Europeia no presente

caso, a conclusão ventilada no presente trabalho é a de que o grau de discricionariedade

atribuído à Áustria para regulamentar a questão referente à reprodução assistida foi

extremamente amplo, de modo que a decisão daquela Corte não foi capaz de representar, em

pleno século XXI, um avanço na interpretação de referido tema, deixando uma lacuna muito

grande em uma eventual interpretação evolutiva dos direitos humanos ante o avanço da

medicina e das técnicas de reprodução assistida, e enfraquecendo o espírito contra majoritário

do sistema internacional de proteção aos direitos humanos52

.

CONCLUSÃO

No contexto de humanização do Direito Internacional Público e de justicialização do

Direito Internacional dos Direitos Humanos, que contaram com amplo desenvolvimento e

cruciais avanços nas últimas seis décadas, verificou-se o surgimento e a consolidação dos

sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, e, em especial, das cortes regionais de

direitos humanos.

Dada a importância de sua jurisprudência para o estudo do Direito Internacional

Público, optou-se no presente trabalho por estudar as principais características das Cortes

Interamericana e Europeia de Direitos Humanos. A efetividade das decisões proferidas em

ambas as cortes permite a afirmação de que tais sistemas contribuem para uma crescente

evolução da interpretação dos direitos humanos ao redor do globo, beneficiando a

humanidade como um todo. Isso se verifica, em especial, em temas de grande impacto social,

como o tema que inspirou a realização do presente trabalho, a saber, o da possibilidade de

52

Há quem critique, contudo, a utilização da teoria da margem de apreciação pela Corte Europeia de Direitos

Humanos, afirmando que em sua aplicação em casos envolvendo direitos das minorias, em que se concentram

temas religiosos, ocorre uma verdadeira denegação da justiça internacional, que tornaria impune algumas

tradições majoritárias nacionais. A esse respeito, ver RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de

direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 170.

Page 430: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

430

realização do procedimento de fertilização in vitro por casais impedidos de conceber seus

filhos naturalmente.

Após o estudo sobre os sistemas regionais de proteção Interamericano e Europeu, com

as principais distinções a eles atribuídas, passou-se ao estudo concreto da produção

jurisprudencial de ambos os sistemas no que tange ao procedimento da fertilização in vitro.

Os casos paradigmáticos e mais recentes decididos nas duas cortes regionais, quais sejam,

Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica, decidido pela Corte Interamericana de Direitos

Humanos em 2012, e o Caso S.H. e Outros v. Áustria, cuja decisão data do ano de 2011,

refletemde forma clara qual o posicionamento das instituições existentes nos Estados de

ambos os continentes com relação à referida temática. Ainda, denota-se, em conformidade

com as decisões estudadas, que, no caso da fertilização in vitro, a Corte Interamericana de

Direitos Humanos na decisão do Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Ricamostrou-se mais

evoluída que a Corte Europeia de Direitos Humanos, não apenas na profundidade com que a

temática foi tratada, mas também na relevância das referências feitas ao próprio Sistema

Europeu e ao sistema global de proteção aos direitos humanos em questões atinentes aos

direitos reprodutivos das mulheres e ao direito à vida privada e familiar.No caso da decisão

proferida no âmbito da Corte Europeia de Direitos Humanos, foi possível concluir que, mais

uma vez, aquela Corte se valeu da aplicação da teoria da margem de apreciação para se

escusar de decidir positivamente a respeito de um tema tão importante para a sociedade

internacional, ou mesmo de discuti-lo com a profundidade que lhe é intrínseca.

Dessa maneira, é possível concluir que a proteção aos direitos humanos deve

acompanhar o avanço da sociedade internacional como um todo, não sendo possível que as

cortes regionais de direitos humanos não assumam uma verdadeira postura

contramajoritáriacom vistas a garantir a efetiva proteção dos direitos humanos,

consubstanciada, no caso, nos direitos reprodutivos e familiares de um lado, e a

responsabilidade que deve advir dos avanços da tecnologia, de outro.

REFERÊNCIAS

BITTAR, Eduardo C. B. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática da monografia

para os cursos de direito. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Page 431: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

431

BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu. ARAÚJO, Nadia de (Org.). Os direitos humanos e

o direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

BOGDANDY, Armin von. PIOVESAN, Flávia. ANTONIAZZI, Mariela Morales (Coord.).

Direitos humanos, democracia e integração jurídica: emergência de um novo direito

público. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.

BRANT, Leonardo Nemer Caldeira. O Brasil e os novos desafios do direito internacional.

Rio de Janeiro: Forense, 2004.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.8 ed. São

Paulo: Saraiva, 2013.

CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. CasoS.H. e Outros v. Áustria.Sentença

de 03 de novembro de 2011. Disponível

em:<http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/Pages/search.aspx#{"fulltext":["S.H. and Others v.

Austria"],"sort":["respondent Ascending"],"itemid":["001-107325"]}>. Acesso em: 15 out.

2014.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CasoArtaviaMurillo e Outros

v. Costa Rica. Série C, nº 257. Sentença de 28 de novembro de 2012. Disponível em:

<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_ing.pdf>. Acessoem: 15out. 2014.

FAÚNDEZ, Ledesma Héctor. El sistema interamericano de protección de los derechos

humanos: aspectos institucionales y procesales. 2ª ed. San José: Instituto Interamericano de

Derechos Humanos, 1999.

GOODMAN, Ryan. International human rights: text and materials. The successor to

International Human Rights in context: Law, Politics and Morals. Oxford: Oxford University

Press, 2013.

HEYNS, Christof. PADILLA, David. PADILLA, Leo. Comparação esquemática dos sistemas

regionais de direitos humanos: uma atualização. Revista internacional de direitos humanos:

SUR, São Paulo, v. 3, n. 4, p. 161-162, 1 sem. 2006. Disponível em:

<http://www.surjournal.org>. Acesso em: 14 out. 2014.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11. ed. São

Paulo: Saraiva, 2010.

______. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010.

Page 432: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

432

______. Direitos humanos e justiça internacional:um estudo comparativo dos sistemas

regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006.

PIOVESAN, Flávia (Coord.). Direitos humanos. 4. reimp. Curitiba: Juruá, 2011.

______. Código de direito internacional dos direitos humanos anotado. São Paulo: DPJ,

2008.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014.

______. Processo internacional de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A humanização do direito internacional. Belo

Horizonte: Del Rey, 2006.

______. O direito internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro:

Renovar, 2002.

______. A proteção internacional dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Sindicato dos

Bancos do Estado do Rio de Janeiro, 1988.

______. Co-existence and co-ordination of mechanisms of international protection of human

rights.Recueil des Cours de l’Académie de Droit International, t. 202, p. 12-435, 1987.

Page 433: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

433

O DESAFIO DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE COMO

UM DIREITO HUMANO: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS

OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS E A RESPONSABILIDADE DOS

DEMAIS ATORES INTERNACIONAIS PARA COM A SUA

EFETIVAÇÃO

Lucília Napoleão Barros1

1 INTRODUÇÃO: A HISTORICIDADE DA PROTEÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Antes do Século XVIII, o tratamento de doenças era predominantemente realizado por

entidades privadas, como, por exemplo, igrejas e instituições de caridade. Instituições estatais

só intervinham em casos de epidemias ou doenças pandêmicas. Mesmo assim, basicamente

atuavam no sentido de determinar quarentenas e estruturar esforços destinados ao

fornecimento de saneamento básico adequado nas grandes cidades. Com o advento da

Revolução Industrial e as péssimas condições de trabalho que se estabeleceram em função da

produção em massa, aumentaram o número de epidemias e outros graves problemas de

saúde2, o que fez com que a conscientização a cerca da importância da saúde pública também

crescesse consideravelmente.3

Em outras palavras, a necessidade de contenção das epidemias e outros graves

problemas de saúde, tornou evidente a urgência de se constituir, no âmbito das políticas

públicas, medidas de saúde destinada à melhoria das condições de vida no espaço urbano.4

No entanto, conforme bem esclarece, Patrícia Luciane, a preocupação com a busca de

solução para as doenças graves que se alastravam, contagiando vasto contingente de pessoas,

tinha origem econômica, tendo em vista a queda de produção gerada pelo grande número de

afastamentos e falecimentos.5

1 Mestre em Ciências Jurídico-Políticas e doutoranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da

Universidade de Coimbra, Portugal. 2OMS. Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud. Ginebra, 1958, p.3

3 Sobre o aumento da preocupação com a saúde pública ver: HESTERMEYER, H. (2007). Human Rights and

the WTO: the Case of Patents and Access to Medicines. New York: Oxford, p.83; BEIGBEDER, Y., NASHAT,

M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998). The World Health Organization (Vol. 4). Netherlands: Martinus

Nijhoff, p. 1. 4 Em mesma linha, ver: TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law.

Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 10 5 CARVALHO, P. L. (2007). Patentes Farmecêuticas e Acesso a Medicamentos. São Paulo: Atlas, p. 15.

Page 434: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

434

Sendo assim, é possível afirmar que os movimentos de saúde pública tiveram suas

raízes na Inglaterra, como desencadeamento das circunstâncias geradas pela Revolução

Industrial.6

Na segunda metade do Século XIX, foram dados os primeiros passos na direção do

estabelecimento de uma organização internacional de saúde. Diante da ampliação das relações

comerciais e da melhoria das condições de transporte, emergiu a necessidade de coordenação

de políticas destinadas à prevenção das doenças transmissíveis no plano internacional.

Em 1851 foi realizada em Paris, a primeira Conferência Sanitária Internacional. A

conferência teve, como maior propósito, não a melhoria das condições globais de saúde mas,

sim, a proteção dos Estados Europeus contra doenças estrangeiras, dentre as quais

destacavam-se, naquela época: a cólera, a peste e a febre-amarela.7

Nas décadas seguintes, sucessivas conferências sobre questões relacionadas com os

cuidados de saúde, a prevenção de doenças e o saneamento básico foram realizadas. Nesse

contexto caracterizado pela coordenação de esforços, numa tentativa de solucionar problemas

comuns, surgiram as primeiras organizações internacionais.

Em 1902 foi criada a Pan-American Sanitary Bureau – PASB.8 No ano seguinte, a 11ª

Conferência Sanitária Internacional destacou-se das anteriores por fornecer novos

esclarecimentos sobre a transmissão das doenças supra mencionadas, contribuindo para que

medidas mais eficazes pudessem ser tomadas e também porque resultou na decisão de se

proceder à criação de um escritório internacional de saúde (Office International d‟Hygiène

Publique – OIHP)

O OIHP foi fundado quatro anos depois, em 1907com a assinatura do Acordo de

Roma pelos delegados dos seguintes Estados: Bélgica, Brasil, Egito, Espanha, Estados Unidos

da América, França, Grã-Bretanha, Itália, Países Baixos, Portugal, Rússia e Suíça.9 Todavia,

em 22 de Julho de 1946 o OIHP foi dissolvido e seu serviço epidemiológico foi, oficialmente

transferido para a Comissão Interina da OMS no dia 1º de Janeiro de 1947.10

6 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen,

Oxford: Intersentia – HART, p. 10; LOUGHLIN, K., & BERRIDGE, V. (2002). Global Health Governance:

Historical Dimensions of Governance. Geneva: World Health Organization, p. 7. 7 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen,

Oxford: Intersentia – HART, p. 12; BEIGBEDER, Y., NASHAT, M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998).

The World Health Organization (Vol. 4). Netherlands: Martinus Nijhoff, p. 1. 8Trata-se da primeira agência internacional de saúde. Posteriormente, a PASB transformou-se na Organização

Pan-Americana da Saúde – OPAS. Constitui hoje um organismo especializado do Sistema Interamericano e

funciona como um escritório regional para as Américas, vinculado à OMS. 9OMS. Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud. Ginebra, 1958, p. 16.

10Informação obtida dos ―Archives of the Office International d'Hygiène Publique (OIHP)‖, disponível no site da

OMS: http://www.who.int/archives/fonds_collections/bytitle/fonds_1/en/.

Page 435: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

435

A emergência das primeiras organizações internacionais de saúde constitui parte e ao

mesmo tempo fruto de um movimento complexo e muito mais amplo de esforços para

estabelecer uma cooperação internacional, que já vinha se desenvolvendo ao longo do Século

XIX. 11

Paulatinamente foi se consolidando a consciência de que os Estados são responsáveis

pela saúde de sua população. E assim, conforme os desenvolvimentos precedentes

demonstraram, foram sendo estabelecidas as bases necessárias para o reconhecimento do

direito à saúde como um direito humano em níveis nacional, regional e internacional.12

Cumpre mencionar que, no âmbito do processo de criação das Nações Unidas, o

projeto inicial de sua Carta constitutiva, elaborado na conferência de São Francisco, em 1945,

não fazia nenhuma referência específica ao termo ―saúde‖.13

No entanto, as delegações do

Brasil e da China apresentaram memorando propondo a convocação de uma conferência

encarregada de estabelecer a criação de uma organização sanitária internacional.14

A proposta dessas duas delegações foi aceita por unanimidade. Assim, o termo

―saúde‖ foi incluído no texto da carta da ONU, nos artigos 13.º, 55.º, 56.ºe 62.º.15

Em

Fevereiro do ano seguinte (1946), foi estabelecido pelo Conselho Econômico e Social das

Nações Unidas um Comitê Técnico Preparatório com a tarefa de definir a agenda da

Conferência Internacional de Saúde em Nova York, e de elaborar um projeto de Constituição

para a criação da Organização Mundial de Saúde. No dia 22 de Julho de 1946 foi aprovada a

Constituição da OMS e, em seguida, foi designada uma Comissão Provisória para realizar as

atividades essenciais relativas a questões de saúde pública, até que a criação da nova

organização fosse consolidada.16

11

LOUGHLIN, K., & BERRIDGE, V. (2002). Global Health Governance: Historical Dimensions of Governance.

Geneva: World Health Organization, p. 8. 12

Nesse sentido, TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen,

Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 14. Para mais detalhes sobre a origem histórica da proteção da saúde

veja: WHO. (1947). Development and Constitution of the WHO. Chronicle of the World Health Organization ,

1, pp. 1-196; e, OMS. Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud. Ginebra, 1958; e,

BEIGBEDER, Y., NASHAT, M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998). The World Health Organization (Vol.

4). Netherlands: Martinus Nijhoff. 13

BEIGBEDER, Y., NASHAT, M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998). The World Health Organization

(Vol. 4). Netherlands: Martinus Nijhoff, p.9. 14

Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud. Ginebra, 1958, p. 38; BURCI, G. L., &

VIGNES, C.-H. (2004). World Health Organization. Netherlands: Kluwer Law International, p. 15. 15

BEIGBEDER, Y., NASHAT, M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998). The World Health Organization

(Vol. 4). Netherlands: Martinus Nijhoff, p.9; Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud.

Ginebra, 1958, p. 38. TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law.

Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 28. 16

GRAD, F. P. (2002). The Preamble of the Constitution of the World Health Organization. Bulletin of the

World Health Organization, 80 (12),p. 981.

Page 436: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

436

De acordo com o Preâmbulo da Constituição da OMS a saúde passou a ser definida

como ―um estado de completo bem-estar físico, mental e social‖. Desde então conceito de

saúde deixou de estar exclusivamente relacionado com (in)existência de doenças.

Logo depois, o direito à saúde foi novamente mencionado no artigo 25.º da Declaração

Universal dos Direitos Humanos de 1948 e, no artigo 12.º do Pacto Internacional sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de1966.

Posteriormente, o direito à saúde foi sendo incorporado nos diversos instrumentos de

direitos humanosinternacionais e regionaissubsequentes, os quais abordaram-no de distintas

formas. Alguns destes instrumentos são dotados de aplicação geral, outros, no entanto,

referem-se a grupos específicos como, por exemplo, mulheres, crianças e trabalhadores

migrantes.17

No plano internacional, para além dos dispositivos supra citados18

, o direito à saúde

encontra-se previsto no artigo 5.º, alínea “e” inciso (iv) da Convenção Internacional Sobre a

Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965; artigo 11.º 1) alínea “f” e

no artigo 12.º da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação

Contra as Mulheres de 1979; no artigo 24.º da Convenção sobre os Direitos da Criança de

1989; nos artigos 28.º, 43.º “e” e 45.º alínea “c” A Convenção Internacional sobre a Proteção

dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias de 1990; e,

no artigo 25.º da Convenção sobre os direitos das Pessoas com Deficiência.19

No plano regional, o direito à saúde encontra-se reconhecido no artigo 11.º da Carta

Social Européia de 1961 revista em 1996; no artigo 16.º da Carta Africana de Direitos

Humanos e dos Povos de 1981; e, no artigo 10.º do Protocolo Adicional à Convenção

Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,

de 1988.20

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 e a Convenção Européia

para aPromoção dos Direitos Humanose das Liberdades Fundamentaisde1950 também

contêm disposições relacionadas com a saúde, tais como o direito à vida, a proibição da

17

OHCHR, The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 9. Em determinadas ocasiões, as disposições destinadas

aos grupos específicos conferem proteção mais eficaz que as disposições de aplicação geral, presentes no artigo

25.º da DUDH e no artigo 12.º do PIDESC. Nesse sentido, TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as

Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 62. 18

Artigos 25.º da DUDH e 12.º do PIDESC. 19

OHCHR. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 10. 20

Todas as três organizações de direitos humanos incorporaram o direito à saúde nos seus instrumentos

normativos. No entanto, conforme bem observado por Brigit Toebes, resta saber se características de cada região

foram incluídas nos respectivos textos normativos. TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right

in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 73.

Page 437: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

437

tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes e o direito à vida privada e

familiar.21

Contudo, concordamos com Jónatas Machado e Vera Lúcia Raposo quando afirmam

que:

―[a]s formulações adotadas nesses instrumentos normativos são ainda demasiado

vagas e indeterminadas, fornecendo padrões ainda pouco precisos para a avaliação

da atuação estadual. Torna-se, por isso, necessário ir mais longe para dar substância

ao direito humano em presença‖.22

2 NECESSIDADE DE UMA DELIMITAÇÃO MAIS PRECISA DO CONCEITO DE

DIREITO À SAÚDE

Conforme vimos anteriormente, o direito à saúde encontra-se incorporado em diversos

instrumentos internacionais, regionais e nacionais. No entanto, muitos afirmam que a

abrangência do seu significado dificulta o estabelecimento preciso das obrigações às quais dá

ensejo, comprometendo sua efetiva realização.

Desde sua primeira codificação, o direito à saúde foi concebido num formato

abrangente, de modo a incluir diversos aspectos relacionados com a saúde, inclusive, o direito

a um padrão de vida adequado para uma vida saudável. 23

O direito à saúde, de acordo com o Preâmbulo da Constituição da OMS, é definido

como um ―estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na

ausência de doença ou de enfermidade.‖ O referido texto destaca que ―gozar do melhor estado

de saúde possível de se atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano,

sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social‖;

esclarece que ―a extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos,

psicológicos e afins é essencial para atingir esse grau mais elevado de saúde‖; e, ainda

assevera que ―os Governos são responsáveis pela saúde de seus povos e, portanto, devem

adotar as medidas sanitárias e sociais que se revelarem adequadas‖.24

Como já se poderia prever, a conceituação de saúde proposta pela OMS não foi imune

a críticas. Para além de destacarem sua falta de operatividade, muitos críticos alegavam que

21

OHCHR. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 10 22

MACHADO, J. E., & RAPOSO, V. L. (2010). Direito à Saúde e Qualidade dos Medicamentos. São Paulo:

Almedina, p.13. 23

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p. 18. 24

Preâmbulo da Constituição de 1946 da Organização Mundial da Saúde (OMS) – a qual nos referiremos como ―

Constituição da OMS‖ daqui por diante.

Page 438: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

438

sua definição corresponderia à de felicidade e, que um estado de ―completo bem-estar‖ seria

praticamente impossível de ser alcançado.25

A amplitude do conceito de saúde, conforme definido na Constituição da OMS, gera

uma angústia compreensível nos sanitaristas que vêem seu trabalho atrelado a um objeto tão

vasto. Por outro lado, Sueli Dallari pondera que ―qualquer redução na definição desse objeto

o deformará irremediavelmente‖.26

Ao nosso ver, não se trata de reduzir o conteúdo abrangido pelo direito à saúde mas

sim de identificar e interpretar seus elementos, a fim de alcançar uma noção mais precisa do

seu significado e da extensão das obrigações às quais dá ensejo.

No intuito de promover maior esclarecimento sobre a amplitude do direito à saúde, o

Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais adotou, em 2000, o Comentário Geral

14, sobre o ―direito ao melhor estado de saúde atingível‖ assegurado no artigo 12.º do

PIDESC.27

De acordo com o entendimento exteriorizado pelo Comitê no referido Comentário, a

saúde constitui um direito humano fundamental. Trata-se de um direito indispensável à

realização de outros direitos humanos como, por exemplo, o direito à vida, à dignidade

humana, à alimentação, ao alojamento, ao trabalho, à educação, à igualdade, à não

discriminação, ao acesso à informação, às liberdades de associação, reunião e

movimento.28

Jónatas Machado e Vera Lúcia Raposo argumentam que:

―[e]ste entendimento amplo e relacional do direito à saúde afigura-se de grande

relevo, na medida em que pressupõe uma relação complexa entre o direito à saúde e

outras variáveis importantes associadas à pobreza e ao subdesenvolvimento.‖29

No artigo12.º 1) do PIDESC os Estados Partes reconhecem o direito que toda pessoa

tem de desfrutar do ―melhor estado de saúde física e mental possível de atingir‖. Tal

entendimento não se restringe apenas ao direito aos cuidados de saúde. Conforme destacado

pelo Comitê, a redação do artigo 12.º 2) do Pacto demonstra o reconhecimento de que o

direito à saúde abrange uma série de fatores socioeconômicos que viabilizam as condições

necessárias ao gozo de uma vida saudável e, que este direito estende-se aos fatores

25

DALLARI, S. G. (1988). O Direito à Saúde. Revista de Saúde Pública, p58. 26

DALLARI, S. G. (1988). O Direito à Saúde. Revista de Saúde Pública, p59. 27

General Comment No. 14 (2000) - The right to the highest attainable standard of health (article 12 of the

International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights). 28

General Comment No. 14 (2000) paras. 1e 3. 29

MACHADO, J. E., & RAPOSO, V. L. (2010). Direito à Saúde e Qualidade dos Medicamentos. São Paulo:

Almedina, p.15.

Page 439: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

439

determinantes básicos da saúde como alimentação, nutrição, alojamento, o acesso à água

limpa e potável e condições sanitárias adequadas, condições salubres de trabalho e um meio

ambiente sadio.30

Contudo, o direito à saúde não deve ser entendido como direito a ―ser saldável‖. Não

se pode esperar que o Estado garanta proteção aos seus cidadãos contra todas as possíveis

causas de enfermidade ou incapacidade. Ou seja, o Estado não pode ser responsabilizado

pelas condições adversas decorrentes, por exemplo, de doenças genéticas, da susceptibilidade

individual ou do exercício do livre arbítrio dos indivíduos que voluntariamente assumem

riscos desnecessários, incluindo a adoção de estilos de vida pouco saudáveis. Do mesmo

modo, o direito à saúde não deve constituir um direito ilimitado a receber cuidados médicos

para toda e qualquer doença ou deficiência que possa ocorrer. Em vez disso, o direito à saúde

deve ser interpretado como um direito ao gozo de uma variedade de instalações e condições

necessárias à realização e manutenção de uma boa saúde, cuja promoção configura

responsabilidade do Estado.31

De acordo com o Comitê, os Estados têm a obrigação de adotar com prioridade,

medidas destinadas à prevenção, ao tratamento e controle de doenças epidêmicas e

endêmicas.32

Outra relevante contribuição para maior clarificação da natureza do direito a saúde e

de como o mesmo poderá ser alcançado, consiste na criação do mandato do Special

Rapporteur on the right of everyone to the highest attainable standard of physical and mental

health, em 2002, pela OMS juntamente com a Comissão de Direitos Humanos (hoje,

Conselho de Direitos Humanos).

3 DIREITO À SAÚDE COMO UM DIREITO HUMANO

Enquanto as necessidades estão relacionadas com o ―ter‖, os direitos estão associados

ao ―ser‖. Ao distinguir os ―direitos‖ das ―necessidades‖, Vivek Neelakantan argumenta que o

direito constitui uma prerrogativa do indivíduo passível de execução por um tribunal de

justiça e implica uma obrigação aos governos de garanti-lo; a necessidade, por sua vez,

constitui reflexo das aspirações do povo e não gera, necessariamente, obrigações aos governos

30

General Comment No. 14 (2000) para. 4. 31

General Comment No. 14 (2000) paras. 8 e 9; ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual.

London: Commonwealth Medical Trust, p. 17. 32

General Comment No. 14 (2000) para. 44, c).

Page 440: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

440

relativas à sua satisfação. Para Vivek, o desenvolvimento dos direitos humanos e sua

realização refletem a existência de um comprometimento fundamental com a proteção do

bem-estar e da dignidade dos indivíduos de todas as sociedades do globo.33

Segundo observam, Jónatas Machado e Vera Lúcia Raposo, os direito humanos

―constituem hoje o coração do direito internacional…fornecem um fundamento de

legitimidade e um padrão de conformação do direito internacional.‖34

Partindo-se do princípio de que todos os indivíduos são titulares de direitos humanos,

a adoção de uma abordagem de direitos humanos para o direito à saúde certamente

potencializaria sua força normativa.

A caracterização do direito à saúde como um direito humano faz com que as

necessidades básicas de saúde sejam reenquadradas de modo a integrarem ao conteúdo do

direito à saúde tornando-se portanto, pertencentes ao rol dos direitos humanos.35

Tomemos como exemplo, a questão da imunização infantil. Se a imunização infantil

for entendida a partir de uma perspectiva de direitos humanos, deixa de ser apenas uma

exigência médica ou uma medida preventiva de saúde pública para tornar-se um direito de

toda criança e um dever governamental. A concessão de vacinas não poderá ser vista como

uma ação de ―caridade‖ mas sim, como uma obrigação cujo cumprimento escapa da

discricionariedade do governo. Consequentemente, o governo deverá garantir que todas as

crianças tenham acesso às vacinas adequadas. Assim, um programa de imunização do

governo não poderá ser negociado ou afastado devido a restrições financeiras ou em função

de outras prioridades.36

O direito a ter saúde e permanecer saudável, se interpretado à luz dos direitos

humanos, representa, não apenas uma questão de natureza médica, técnica e econômica, mas

também, uma questão de justiça social e de imposição de obrigações concretas aos governos

dos Estados.37

O entendimento do direito à saúde como direito humano gera, portanto, impacto direto

na determinação das prioridades dos Estados no que diz respeito à aplicação dos seus

33

NEELAKANTAN, V. (2006). Tracing Human Rights In Health. Mumbai: CEHAT, p. 11. 34

MACHADO, J. E., & RAPOSO, V. L. (2010). Direito à Saúde e Qualidade dos Medicamentos. São Paulo:

Almedina, p. 5. 35

Em sentido semelhante, confira: MEIER, B. M., & MORI, L. M. (2005). The Highest Attainable Standard:

Advancing a Collective Human Right . Columbia Human Rights Law Review , 37, p. 125.

36

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, pp. 21-22..

37 ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p.

21. Para mais detalhes sobre a relevância da adoção de uma abordagem de justiça social para o direito à

saúde ver também: NEELAKANTAN, V. (2006). Tracing Human Rights In Health. Mumbai: CEHAT, p.

41.

Page 441: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

441

recursos. Assim, ao estabelecerem suas políticas públicas, os governos são forçados a

considerar a realização dos direitos humanos no âmbito do desenvolvimento de suas políticas

públicas.38

Compartilhamos, portanto, do entendimento exteriorizado por Judith Asher, segundo o

qual, o direito à saúde deve ser interpretado como um direito universal, fundamentado na

dignidade e integridade de todos os indivíduos. Sendo assim, a adoção de uma perspectiva de

direitos humanos para o direito à saúde implica na compreensão de que indivíduos e grupos

possuem um rol definido e inegociável de direitos relacionados com a saúde, o que torna os

governos juridicamente responsáveis por assegurar que esses direitos sejam efetivamente

desfrutados por seus cidadãos.39

4 OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS RESULTANTES DO DIREITO À SAÚDE

Como vimos anteriormente, o direito à saúdeencontra-se positivado nos diversos

tratadosinternacionais de direitos humanos. No entanto, as disposições destes tratados,

nãoespecificam com detalhes suficientesas obrigaçõesque impõem aos governos.40

No Comentário Geral 3, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

esclarece que os Estados têm a obrigação fundamental de assegurar a satisfação em níveis

mínimos essenciais referentes a cada um dos direitos estabelecidos pelo Pacto.41

No âmbito de suas obrigações fundamentais relativas ao direito à saúde, os Estados

têm um dever imediato de garantir um padrão mínimo de cuidados básicos de saúde a todos

os setores de sua população, independentemente de suas respectivas situações econômicas.42

Considerando que a promoção de um padrão mínimo de saúde, em certa medida, é

dependente de recurso econômico, os Estados devem adotar políticas de saúde que priorizem

assegurar:

38

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p. 21;

HUNT, P., & BACKMAN, G. (2008). Health Systems and the Right to the Highest Attainable Standard of

Health. Health and Human Rights , 10, 1, p. 81. 39

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust, p.

29. 40

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust, p.

29. 41

CESCR General Comment 3, The nature of States parties obligations (Art. 2, par.1) (Fifth session, 1990),

contained in document E/1991/23, para. 10. 42

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NOGs. London: Commonwealth Medical Trust, p.

50.

Page 442: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

442

direito de acesso equitativo às instalações, bens e serviços de saúde sem

discriminação, especialmente em relação aos grupos mais vulneráveis ou

marginalizados;

acesso à alimentação mínima essencial, nutricionalmente adequada e segura;

acesso ao abrigo, à moradia, ao saneamento básico e, ao suprimento adequado de

água potável; e,

a provisão de medicamentos essenciais.43

Em outras palavras, o núcleo essencial de obrigações relativas ao direito à saúde, nos

termos em que é assegurado no artigo 12.º do PIDESC, requer que os Estados administrem

seus recursos disponíveis de modo a investir na adoção de medidas de saúde pública que

priorizem a extensão equitativa dos cuidados básicos e dos serviços preventivos de saúde.

Nesse contexto, os Estados encontram-se, também obrigados, a tomar medidas destinadas à

correção das desigualdades e desequilíbrios existentes na distribuição dos seus recursos, para

melhorar as condições de acesso a saúde pelas classes menos favorecidas da sociedade.44

Voltamos a destacar que o direito à saúde não deve ser entendido como direito a ser

saldável. Assim, não se pode esperar que o Estado garanta proteção aos seus cidadãos contra

todas as possíveis causas de enfermidade ou incapacidade. Ou seja, o Estado não pode ser

responsabilizado por condições adversas decorrentes, por exemplo, de doenças genéticas, da

susceptibilidade individual ou do exercício do livre arbítrio dos indivíduos que

voluntariamente assumem riscos desnecessários, incluindo a adoção de estilos de vida pouco

saudáveis. Do mesmo modo, o direito à saúde não deve constituir um direito ilimitado a

receber cuidados médicos para toda e qualquer doença ou deficiência que possa ocorrer. Em

vez disso, o direito à saúde deve ser interpretado como um direito ao gozo de uma variedade

de instalações e condições necessárias à realização e manutenção de uma boa saúde, cuja

promoção configura responsabilidade do Estado.45

Assim, depreende-se que manutenção da

saúde deve ser reconhecida pelos Estados como um importante pré-requisito da dignidade

humana.46

43

WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 25 44

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NOGs. London: Commonwealth Medical Trust, p.

51. 45

General Comment No. 14 (2000) paras. 8 e 9; ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual.

London: Commonwealth Medical Trust, p. 17. 46

TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen,

Oxford: Intersentia – HART, p. 350.

Page 443: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

443

Cumpre mencionar que os Estados serão sempre os responsáveis diretos pela proteção

e promoção dos direitos humanos definidos nos tratados e demais convenções de que fizerem

parte.47

Algumas obrigações definidas nesses instrumentos podem ser realizadas de forma

progressiva, tendo em conta as realidades econômicas e o estágio de desenvolvimento de cada

Estado. Outras, por sua vez, são de efeito imediato, e impõem aos Estados o dever de um

assegurar um padrão mínimo de cuidados essenciais de saúde.

4.1 OBRIGAÇÕES DE REALIZAÇÃO PROGRESSIVA

Nem todos osaspectos dosdireitos estabelecidos pelo Pactopodem ser realizados

imediatamente. Entretanto, os Estado devem demonstrar, no mínimo, que dentro dos recursos

disponíveis, estão tomando todas as medidas possíveis para melhor proteger e promoveros

direitosdecorrentes do Pacto.48

Nesse sentido, o artigo 2.º 1) determina que cada Estado Parte do Pacto deve

comprometer-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e

cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de

seus recursos disponíveis, que visem a atingir progressivamente, por todos os meios

apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em

particular, a adoção de medidas legislativas.

Em muitos casos torna-se indispensável a adoção de uma legislação adequada para

garantir a exequibilidade desses direitos. Contudo, a elaboração de leis, por si só, não

constitui uma resposta suficiente às obrigações do PIDESC. Para garantir a fruição

generalizada e satisfatória dos direitos econômicos, sociais e culturais, é preciso que os

Estados também adotem as medidas administrativas, judiciais, políticas, econômicas, sociais e

educacionais que se fizerem necessárias.49

47

WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 22. 48

WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 23. 49

UN. ( 2005). Economic, Social and Cultural Rights Handbook for National Human Rights Institutions. New

York and Geneva: UNITED NATIONS, p. 9. Veja, também: UN. (1987). The Limburg Princliples on the

Implementation of the International Convenat on Economic, Social and Cultural Rights. UN doc.

E/CN.4/1987/17, Annex, paras. 16-18.

Page 444: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

444

Uma leitura do artigo 2.º 1) em conjunto com o artigo 12.º 1) do PIDESC permite

concluir que os Estado encontram-se subordinados à obrigação de realizar o direito à saúde

‗progressivamente, até o máximo deseus recursos disponíveis e, pelos meios adequados‘.50

A forma como esta obrigação encontra-se redigida, abre margem para que os Estados

encontrem subterfúgios para escaparem de sua responsabilidade. Nesse sentido, Brigit Toebes

adverte que em relação à frase ‗até o máximo de seus recursos disponíveis‘, concede aos

governos a possibilidade de escusarem-se de cumprir com suas obrigações sob alegação de

insuficiência de recursos. Já o termo ‗atingir progressivamente‘ sugere aos Estados a idéia de

que eles podem ir adiando o cumprimento de suas ad infinitum.51

Mas o verdadeiro sentido do artigo 2.º 1) determina que os Estados comecem,

imediatamente, a tomar as medidas necessárias para assegurar a realização dos direitos do

Pacto. Esse entendimento já havia sido exteriorizado em 1987, pelos Princípios de

Limburg52

e, posteriormente confirmado pelo Comentário Geral 14, ao afirmar que o PIDESC

―impõe claramenteum dever aos Estados detomartodas as medidas necessáriaspara

garantirque todos tenham acessoaos bens e serviços de saúde, para que eles possamdesfrutar,

assim que possível, o mais alto nível possível de saúdefísica e mental‖.53

Para tanto, a Comissão dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sublinhou que os

Estados devem estabelecer um a estratégia nacional para assegurar a todos, a fruição do

direito à saúde. Recomendou que no âmbito de suas estratégias os Estados definissem os

objetivos a serem alcançados, bem como indicadores e valores de referência.54

O estabelecimento de um sistema apropriado de indicadores e parâmetros de referência

é fundamental para que se possa verificar se um Estado está aperfeiçoando ou não seu sistema

de saúde e realizando, progressivamente o direito ao mais elevado nível de saúde possível.55

Além disso, os indicadoresdevemser desagregados de modo que o Estado possa verificar, com

maior clareza e precisão, o alcance de sua atuação em cada área.

50

TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen,

Oxford: Intersentia – HART, p. 294. 51

TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen,

Oxford: Intersentia – HART, p. 294. 52

―All States parties have an obligation to begin immediately to take steps towards full realization of the rights

contained in the Covenant.‖ UN. (1987). The Limburg Princliples on the Implementation of the International

Convenat on Economic, Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, para 16. 53

CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 53. 54

Confira: WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 24. 55

Ver: UNHRC. Report of the Special Rapporteur on the Right of Everyone to the Enjoyment of the Highest

Attainable Standard of Physical and Mental Health. Paul Hunt, UN Doc. A/HRC/4/28 (17 January 2007), para.

91.

Page 445: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

445

Contudo, a recolha desses dados desagregados constitui um enorme desafio para

aqueles Estados que, em razão de sua capacidade limitada, não possuem as condições

necessárias para coletarem dados desagregados confiáveis.56

Outro aspecto relevante sobre a desagregação dos dados, tendo em conta a

preocupação com as minorias sociais, diz respeito ao fato de que a condição de

vulnerabilidade e a existência de discriminação são contextuais. Assim, enquanto determinado

grupo pode ser especialmente vulnerável em um contexto, pode não ser em outro. Ou seja,

num contexto nacional particular, pode haver a necessidade de se dar prioridade à coleta de

certos dados desagregados, ao invés de outros.57

Importa mencionar que a obrigação de realizar progressivamente o direito à saúde,

impõe aos Estados o dever de administrar seus recursos disponíveis com extrema eficácia.58

4.2 OBRIGAÇÕES DE EFEITO IMEDIATO

Ao mesmo tempo que o PIDESC prevê a realização progressiva de determinadas

obrigações, reconhecendo a existência de limitações quanto aos recursos disponíveis, também

impõe aos Estados Partes obrigações de efeito imediato.59

As obrigações de efeito imediato aplicam-se a todos os Estados, independentemente de

condições adversas como, por exemplo, insuficiência extrema recursos econômicos. Em

outras palavras, a situação econômica de um Estado não pode impedir o cumprimento

imediato de suas obrigações fundamentais.60

Tratando-se das obrigações de caráter imediato, cumpre destacar os artigos 2.º 2) e 3.º

do PIDESC, por constituírem constituem cláusulas de não discriminação. Lidos juntamente

com o artigo 12.º mesmo Pacto, determinam que o direito à saúde deve ser exercido por todos,

sem discriminação de raça, cor, sexo, idade, língua, religião, opinião política ou de outra

natureza, origem nacional, status social, condição econômica, nascimento ou qualquer outra

56

Commission on Human Rights.Report of the Special Rapporteur on the Right of Everyone to the Enjoyment of

the Highest Attainable Standard of Physical and Mental Health. Paul Hunt, UN Doc. E/CN.4/2006/48 (3 March

2006), para. 49 b). 57

Commission on Human Rights.Report of the Special Rapporteur on the Right of Everyone to the Enjoyment of

the Highest Attainable Standard of Physical and Mental Health. Paul Hunt, UN Doc. E/CN.4/2006/48 (3 March

2006), para. 49 b). 58

Nesse sentido, UN. (1987). The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on

Economic, Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, paras. 23-24. 59

CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 30. 60

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p. 23.

Page 446: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

446

situação.61

Trata-se de uma lista não exaustiva. Ou seja, a proibição de discriminação refere-se

a toda e qualquer área que prejudique o exercício do direito à saúde.62

Muitas das medidas destinadas a eliminar a discriminaçãono âmbito da saúde, podem

ser executadas com poucos recursos, como, por exemplo,através da adoção, modificação ou

revogaçãodelegislaçãoouda realização de campanhas informativas. Sendo assim, mesmo em

tempos deseveras restrições de recursos, os membros mais vulneráveis da sociedade devem

ser protegidos pela adoção deprogramas de saúde que possam ser viabilizados a um custo

relativamente baixo.63

No Comentário Geral 14 o Comitê adverte que a alocação inadequada dos recursos de

saúde pode conduzir à discriminação, ainda que não seja evidente. E recomenda, portanto, que

os Estados priorizem a aplicação de seus recursos em cuidados de saúde primários e

preventivos que beneficiem a maior da população ao invés de investir em serviços curativos

de saúde caros que favoreçam desproporcionalmente uma parcela pequena e privilegiada da

população.64

Também encontra-se incluído no rol de obrigações imediatas de um Estado, o dever de

garantir a participação de seus cidadãos nos processos de tomada de decisões que afetam sua

saúde e seu bem-estar.65

4.3 OBRIGAÇÃO DE RESPEITAR, PROTEGER E REALIZAR

As obrigações dos Estados relativas aos direitos humanos são, geralmente,

classificadas em obrigações de respeitar, de proteger e de realizar. A implementação dessas

obrigações pode requerer dos Estados uma atuação ora positiva, ora negativa, ou ambas ao

mesmo tempo.

A obrigação de respeitar tem sido classificada pela doutrina como uma obrigação de

natureza negativa, enquanto as obrigações de proteger e de realizar são entendidas como

obrigações de natureza positiva.

No que diz respeito ao direito à saúde, a obrigação de respeitar proíbe os Estado de

elaborarem leis, desenvolverem programas ou estabelecerem políticas de governo que, direta

61

Em mesma linha, TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law.

Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 296. 62

UN. ( 2005). Economic, Social and Cultural Rights Handbook for National Human Rights Institutions. New

York and Geneva: UNITED NATIONS, p. 13. 63

CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 18. 64

CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 19. 65

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p. 23.

Page 447: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

447

ou indiretamente possam resultar em danos corporais, a morbidade desnecessária,e da

mortalidadeevitável.66

A obrigação de respeitar o direito à saúde requer que os governos se abstenham de

tomar qualquer medida que possa limitar ou impedir o acesso à saúde por todas as pessoas,

sem discriminação. De acordo com o Comentário Geral 14, os Estados devem se privar de

todos os atos que venham obstruir o acesso preventivo, curativo ou paliativo aos cuidados e

serviços de saúde pelos diversos setores da população, inclusive, presos ou detidos, os

requerentes de asilo, imigrantes ilegais e demais minorias sociais.67

Em mesma linha, Brigit

Toebes ressalta que os Estados não podem impedir o acesso aos serviços de saúde

disponíveis.68

Cumpre mencionar que, além de não poderem adotar políticas discriminatórias de

saúde, os Estados encontram-se obrigados a absterem-se de: impedir a realização de práticas

preventivas e curativas tradicionais; de comercializar medicamentos inseguros; da aplicação

de tratamentos médicos coercivos (a não ser em caráter excepcional69

, para o tratamento de

doença mental ou para prevenção e controle de doenças transmissíveis).70

A obrigação de respeitar apresenta tanto uma dimensão associada à liberdade quanto

uma dimensão social. Relativamente à liberdade, a obrigação de respeitar traduz-se no dever

de respeitar a integridade do indivíduo. A dimensão social, entretanto, corresponde a

possibilidade de livre utilização das condições subjacentes à saúde, dentre as quais,

destacamos o acesso às instalações e serviços de saúde disponíveis; à água potável e ao

saneamento básico.71

Brigit Toebes atenta para o fato de que a obrigação de respeitar o acesso igualitário

aos cuidados de saúde encontra-se intimamente relacionada com a terceira obrigação de

realizar, mais especificamente, com o dever de ‗assegurar‘ o acesso aos cuidados de saúde.72

Nesse sentido a autora argumenta que:

66

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NOGs. London: Commonwealth Medical Trust, p.

35.

67 CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 34.

68 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law.Antwerpen, Groningen,

Oxford: Intersentia – HART, p. 316. 69

Segundo o Comentário Geral 14, esses casos excepcionais devem ser sujeitos a condições

específicas e restritivas, respeitando as melhores práticas e normas internacionais aplicáveis. 70

CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4,

para. 34. 71

TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen,

Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 313. 72

TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen,

Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 316.

Page 448: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

448

Conforme mencionado anteriormente, a obrigação de proteger, ao contrário da

obrigação de respeitar, demanda uma atuação positiva do Estado. Assim, a obrigação de

proteger, implica na adoção pelos Estados de medidas destinadas a impedir que terceiros

comprometam a realização dos direitos humanos.

No âmbito da saúde, a obrigação de proteger envolve a adoção de legislação e outras

medidas que visem garantir o acesso igualitário aos serviços e cuidados de saúde prestados

por terceiros. Em outras palavras, os Estados devem impedir que a privatização do sector da

saúde constitua uma ameaça à disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade

desses serviços. Para tanto, os Estados devem fiscalizar a comercialização de equipamentos

médicos e de medicamentos realizadas pelo setor privado.73

Em outras palavras, cabe aos Estados o dever de zelar para que a prestação de

cuidados de saúde e de outros serviços por atores não-estatais seja realizada em conformidade

com o sistema normativo dos direitos humanos.74

Os Estados devem proteger seus cidadãos contra informações inadequadas ou

equivocadas relativamente aos serviços e cuidados de saúde fornecidos pelo setor privado. No

que diz respeito ao acesso a medicamentos, por exemplo, os Estados encontram-se

subordinados à obrigação de controlar a atividade das companhias farmacêuticas, proibindo a

venda ou publicidade de medicamentos com efeitos colaterais nocivos à saúde.75

A diferença entre a obrigação de proteger e a obrigação de realizar refere-se ao fato de

que a obrigação de proteger envolve uma terceira parte, perante a qual os indivíduos devem

ser protegidos pelo Estado. Segundo Brigit Toebes, o envolvimento de terceiros na prestação

de serviços relacionados com a realização da saúde, poderia dar ensejo à concepção de que a

obrigação de proteger reveste-se de maior juridicidade que a obrigação de realizar,

geralmente caracterizada por sua natureza programática. Todavia, a autora ressalta a

dificuldade de se determinar se uma terceira parte é responsável ou se é o Estado que carrega

a responsabilidade final.76

73

CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4,

para. 35. 74

WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 26. 75

TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen,

Oxford: Intersentia – HART, p. 329. 76

TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen,

Oxford: Intersentia – HART, p. 327.

Page 449: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

449

5 LIMITAÇÕES AO DIREITO À SAÚDE

O artigo 4.º do PIDESC dispõe sobre as condições e, até que ponto os direitos

assegurados no Pacto podem ser limitados pelos Estados. Sua leitura associada ao artigo 12.º

do mesmo Pacto permitem concluir que os Estados só poderão submeter o direito à saúde às

limitações previstas em lei, de maneira compatível com a natureza deste direito e,

exclusivamente com o propósito de favorecer o bem-estar geral numa sociedade democrática.

Consoante com a interpretação do artigo 4.º realizada pelos Princípios de Limburgo, o

uso da expressão ‗compatível com a natureza desse direito‘ significa que a limitação não deve

ser interpretada ou aplicada de forma a pôr em risco a essência do direito á saúde.77

Já a permissão para estabelecer limitações ao direito à saúde como propósito de

favorecer o ‗bem-estar geral‘ é considerada por Brigit Toebes, confusa e potencialmente

perigosa.78

No entanto, de acordo com os Princípios de Limburgo, o artigo 4.º destina-se,

principalmente, à proteção dos direitos dos indivíduos e não à concessão de autorização para

os Estados imporem limitações aos direitos previstos no Pacto. Dessa forma, não pode ser

usado como base para a introdução de restrições a direitos que afetem a sobrevivência ou a

subsistência do indivíduo, nem que ameacem sua integridade física.79

As restrições legais relativas ao direito à saúde, além de ser consistentes com o

PIDESC, devem ser claras e acessíveis a todos.80

Nesse sentido, pode-se afirmar que o artigo 5.º do PIDESC proíbe a imposição de

limitações arbitrárias ou injustificadas81

ao direito à saúde, quando determina que um Estado

não pode impor limitações às liberdades e garantias asseguradas no Pacto mais amplas do que

as que nele encontram-se previstas.

77

UN. (1987). The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic,

Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, para. 56. Veja também: COOMANS, F. (2007).

Application of the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights in the Framework of

International Organisations,. In A. v. BOGDANDY, R. WOLFRUM, & . E. PHILIPP, Max Planck Yearbook of

United Nations Law (Vol. 11). Netherlands: Brill, p. 385. 78

TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen,

Oxford: Intersentia – HART, p. 298. 79

UN. (1987). The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic,

Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, paras. 46-47. No mesmo sentido, ver: CESCR

General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 28. 80

The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic, Social and

Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, para. 50 81

The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic, Social and

Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, para. 49.

Page 450: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

450

6 RESPONSABILIDADE DE OUTROS ATORES À LUZ DA OBRIGAÇÃO DOS

ESTADOS PARA COM A PROTEÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Muito embora os governos possuam a obrigação primária de respeitar, proteger e

realizar o direito à saúde, também é esperado que outros atores não só respeitem mas também

cooperem para a promoção da saúde.

Muito embora o estudo proposto foca-se na análise das obrigações dos Estados para

com a realização do direito à saúde, não de pode deixar de mencionar que há um bom tempo

vem sendo tecido um debate sobre em que medida os atores não-governamentais como, por

exemplo, os indivíduos, as organizações intergovernamentais e as não-governamentais

(ONGs), os profissionais de saúde, e as empresas são responsáveis pela promoção e proteção

dos direitos humanos.82

Quando os tratados de Direitos Humanos como o PIDESC, por exemplo, foram

elaborados, a saúde pública era reconhecida como responsabilidade primária dos Estados, os

quais, naquela altura, eram os protagonistas do direito internacional. 83

Com o advento da globalização econômica, tanto o poder quanto o papel do Estado

transformaram-se significativamente. Os governos de muitos Estados alteraram suas funções

de modo a incluir a participação de atores não-estatais na gestão e prestação dos serviços de

saúde.84

Neste contexto, as políticas de saúde de muitos dos Estados em desenvolvimento vem se

tornando extremamente vulneráveis às influências do mercado internacional e cada vez mais

dependentes de investimentos externos, empréstimos e assistência ao desenvolvimento.

Diante da ampliação do papel do setor privado e, consequentemente, do seu poder econômico

e influência política no cenário internacional85

, faz-se necessária uma reformulação dos

sistemas normativos nacionais e internacionais com o propósito de regulamentar

adequadamente o exercício da atividade privada para assegurar que a mesma não constitua um

obstáculo à realização do direito à saúde.

82

OHCHR-WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 28. 83

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust, p.

64. Em mesma linha August Reinisch afirma que: ―we are now witnessing a clear departure from this purely

state-centred approach.‖ REINISCH, A. (2005). The Changing International Legal Framework for Dealing with

Non-State Actors. In P. ALSTON, Non-State Actors and Human Rights (pp. 37-89). New York: Oxford, p.79. 84

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust, p.

64. No mesmo sentido PETERS, A. (2011). Membership in the Global constitutional Community. In J.

KLABBERS, A. PETERS, & G. ULFSTEIN, The Constitutionalization of the International Law (pp. 153-262).

Great Britain: Oxford, p. 248. 85

PETERS, A. (2011). Membership in the Global constitutional Community. In J. KLABBERS, A. PETERS, &

G. ULFSTEIN, The Constitutionalization of the International Law (pp. 153-262). Great Britain: Oxford, p. 243.

Page 451: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

451

A obrigação de proteger a saúde das pessoas que vivem em seu território impõe aos Estados o

dever de assegurar que terceiros não violem o direito à saúde. Para tanto, seus respectivos

governos devem adotar legislações e outras medidas que garantam a igualdade de acesso aos

cuidados de saúde prestados pelo setor privado.86

A redução da influência e poder dos Estados demanda um engajamento maior da

sociedade civil, especialmente das organizações não-governamentais, tanto para fiscalizar o

cumprimento do direito à saúde pelos Estados, como também, para pressionar os governos a

garantir que tal direito seja devidamente respeitado pelo setor privado.87

As organizações não-governamentais exercem uma função importante de

monitoramento da realização do direito à saúde, e dos demais direitos humanos. Por esta

razão, é fundamental que as obrigações referentes a esses direitos sejam definidas com

bastante clareza para servirem como ponto de referência para as organizações não-

governamentais avaliarem seu cumprimento.88

Cumpre mencionar que a ausência de mecanismos adequados de responsabilização

relativamente ao cumprimento do direito à saúde, tem sido um dos maiores desafios

enfrentados pelas ONGs. Considerando que o setor privado e demais atores não-

governamentais vêm assumindo uma série de funções que antes eram exclusivas dos Estados,

nada mais coerente que também sejam responsabilizados pelas consequências negativas que

suas atividades acarretarem para o direito à saúde.89

Para Steven Ratner, um sistema no qualo Estado constitui o único de obrigações

jurídicas internacionaispode nãoser suficiente para protegeros direitos humanos.90

August

Reinisch, por sua vez, argumenta que um sistema de responsabilidade destinado aos atores

não-governamentais poderia ser implementado tanto no plano internacional quanto no plano

nacional.91

No entanto, é preciso deixar claro que, embora os Estados possam delegar algumas de

suas funções a entidades não-governamentais, não podem, de forma alguma, ilibarem-se das

86

OHCHR-WHO. The Right to Health.Fact Sheet Nº 31, p. 28. 87

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs.London: Commonwealth Medical Trust, p.

65. Sobre a importância das Organizações Não-Governamentais confira: PETERS, A. (2011). Membership in the

Global constitutional Community. In J. KLABBERS, A. PETERS, & G. ULFSTEIN, The Constitutionalization

of the International Law (pp. 153-262). Great Britain: Oxford, p. 219 88

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust, p.

29 89

No mesmo sentido, ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London:

Commonwealth Medical Trust, p. 67 90

RATNER, S. R. (2001). Corporations and Human Rights: A Theory of Legal Responsibility. Yale Law

Journal, 111, p. 461. 91

REINISCH, A. (2005). The Changing International Legal Framework for Dealing with Non-State Actors. In P.

ALSTON, Non-State Actors and Human Rights (pp. 37-89). New York: Oxford, p. 78.

Page 452: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

452

responsabilidades que lhes são próprias, na tentativa de transferi-las para terceiros.92

O Estado

continua sendo, portanto, o destinatário direto das obrigações para com a promoção e proteção

dos direitos humanos.

CONCLUSÃO

Como vimos anteriormente, o direito à saúdeencontra-se positivado nos diversos

tratadosinternacionais de direitos humanos. No entanto, as disposições destes tratados,

nãoespecificam com detalhes suficientesas obrigaçõesque impõem aos governos.

A adoção de uma perspectiva de direitos humanos para o direito à saúde implica na

compreensão de que indivíduos e grupos possuem um rol definido e inegociável de direitos

relacionados com a saúde, o que torna os governos juridicamente responsáveis por assegurar

que esses direitos sejam efetivamente desfrutados por seus cidadãos.

No âmbito de suas obrigações fundamentais relativas ao direito à saúde, os Estados

têm um dever imediato de garantir um padrão mínimo de cuidados básicos de saúde a todos

os setores de sua população, independentemente de suas respectivas situações econômicas.

Em outras palavras, é preciso investir em políticas preventivas de saúde, voltadas para

a criação de melhores condições de higiene, alimentação, lazer e trabalho, tanto quanto em

assegurar uma infraestrutura de atendimento curativo condizente com as necessidades da

população. Para isso, são necessários mais hospitais, postos de saúde, ambulatórios,

atendimentos de urgência, equipamentos e aparelhagens adequadas, leitos, profissionais

qualificados.

É imprescindível que se criem condições para que as classes menos favorecidas

também tenham melhores condições de acesso aos cuidados de saúde.

O entendimento do direito à saúde como direito humano gera impacto direto na

determinação das prioridades dos Estados no que diz respeito à aplicação dos seus recursos.

Ao estabelecerem suas políticas públicas, os governos encontram-se vinculados a levarem em

conta as suas obrigações para com a realização dos direitos humanos.

A verdadeira efetivação do direito à saúde constitui um grande desafio. Diante de uma

realidade profundamente marcada pela má distribuição de renda, péssimas condições de

emprego, moradia, alimentação, saneamento básico e transportes públicos, a garantia da saúde

92

Em sentido semelhante, REINISCH, A. (2005). The Changing International Legal Framework for Dealing with

Non-State Actors. In P. ALSTON, Non-State Actors and Human Rights (pp. 37-89). New York: Oxford, p. 82.

Page 453: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

453

deve vir acompanhada não só de boas políticas públicas de saúde, mas também de ações

destinadas à promoção de justiça e de maior igualdade socia

REFERÊNCIAS

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth

Medical Trust.

BEIGBEDER, Y., NASHAT, M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998). The World Health

Organization (Vol. 4). Netherlands: Martinus Nijhoff.

BURCI, G. L., & VIGNES, C.-H. (2004). World Health Organization.Netherlands: Kluwer

Law International.

CARVALHO, P. L. (2007). Patentes Farmecêuticas e Acesso a Medicamentos.São Paulo:

Atlas.

COOMANS, F. (2007). Application of the International Covenant on Economic, Social and

Cultural Rights in the Framework of International Organisations,. In A. v. BOGDANDY, R.

WOLFRUM, & . E. PHILIPP, Max Planck Yearbook of United Nations Law (Vol. 11, pp.

359-390). Netherlands: Brill.

GRAD, F. P. (2002). The Preamble of the Constitution of the World Health Organization.

Bulletin of the World Health Organization, 80 (12), pp. 981-984.

HESTERMEYER, H. (2007). Human Rights and the WTO: the Case of Patents and Access to

Medicines.New York: Oxford.

MACHADO, J. E., & RAPOSO, V. L. (2010). Direito à Saúde e Qualidade dos

Medicamentos.São Paulo: Almedina.

MEIER, B. M., & MORI, L. M. (2005). The Highest Attainable Standard: Advancing a

Collective Human Right . Columbia Human Rights Law Review, 37, pp. 101-147.

NEELAKANTAN, V. (2006). Tracing Human Rights In Health. Mumbai: CEHAT.

OHCHR-WHO. The Right to Health.Fact Sheet Nº 31.

OMS. Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud.Ginebra, 1958.

PETERS, A. (2011). Membership in the Global constitutional Community. In J. KLABBERS,

A. PETERS, & G. ULFSTEIN, The Constitutionalization of the International Law (pp. 153-

262). Great Britain: Oxford.

RATNER, S. R. (2001). Corporations and Human Rights: A Theory of Legal Responsibility.

Yale Law Journal, 111, pp. 443-545.

REINISCH, A. (2005). The Changing International Legal Framework for Dealing with Non-

State Actors. In P. ALSTON, Non-State Actors and Human Rights (pp. 37-89). New York:

Oxford.

Page 454: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

454

TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law.

Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia - HART.

UN. ( 2005). Economic, Social and Cultural Rights Handbook for National Human Rights

Institutions. New York and Geneva: UNITED NATIONS

UN. (1987). The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on

Economic, Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex.

UNHRC. Report of the Special Rapporteur on the Right of Everyone to the Enjoyment of the

Highest Attainable Standard of Physical and Mental Health. Paul Hunt, UN Doc.

A/HRC/4/28 (17 January 2007).

WHO. (1947). Development and Constitution of the WHO. Chronicle of the World Health

Organization, 1, pp. 1-196.

Page 455: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

455

A OBRIGAÇÃO DE MEIOS E RESULTADO NA MEDICINA: UMA

OPORTUNIDADE DE QUESTIONAMENTO

André Fonseca Guerra1

Sumário: 1 Introdução. 2 A Obrigação de Meios e Resultado na Medicina: uma

oportunidade de questionamento. 2.1 Origem da Classificação. 2.2 Conceito. 2.3

Critérios de distinção. 2.4 Críticas. 2.5 Consequência. 3. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A doutrina e jurisprudência brasileira, habitualmente, não apresentam muitas

novidades em relação ao tema por nós proposto. Costumeiramente, encontramos discursos

repetitivos e pouco aprofundados.

Exemplo disso é a assunção da obrigação do Cirurgião plástico estético como de

resultados; independente de qualquer condição. Tais concepções são arriscadas e, no cenário

atual, não merecem prosperar. Obviamente, alguns autores defendem posicionamentos

diferenciados e travam uma querela em face daqueles juristas que insistem em replicar

opiniões rasas sobre a questão.

O debate merece certo aprofundamento, todavia, o objetivo do presente artigo é

oferecer a oportunidade de questionar as obrigações de meios e resultado. É certo que a

utilização da bipartição não está isenta de problemas, como alguns juristas insistem em deixar

transparecer. Nesse sentido será demonstrado algumas dessas dificuldades, não sem antes

tocar nos aspectos preliminares do tema, como a origem da classificação, o conceito e os

critérios de distinção.

2 A OBRIGAÇÃO DE MEIOS E RESULTADO NA MEDICINA: UMA

OPORTUNIDADE DE QUESTIONAMENTO

Imperioso, antes de tudo, destacar o conceito de obrigação. Para Monteiro é ―a relação

jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa

1 Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra e pós-graduado pelo Centro de Direito

Biomédico da Faculdade de Direito de Coimbra

Page 456: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

456

prestação pessoal e econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo,

garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio‖2.

2.1 ORIGEM DA CLASSIFICAÇÃO

É possível classificar as obrigações em relação ao seu objeto ou conteúdo em

obrigações de meio ou de resultado. Todavia, qual a gênese dessa classificação?

Habitualmente os autores atribuem essa divisão ao autor francês Demogue. Eles estão

parcialmente corretos. Isso porque o Direito Romano já se utilizava de uma divisão

semelhante.

Os jurisconsultos romanos conseguiam visualizar uma distinção no conteúdo da

obrigação do devedor. De um lado havia as promessas determinadas, quando o devedor

prometia um resultado que se não fosse atingido geraria responsabilização, a menos que

restasse comprovada a interferência de uma causa estranha. De outro lado, algumas

obrigações exigiam apenas um esforço constante e sincero. O devedor, nesse último caso, não

se vinculava ao resultado específico, tão somente ao seu modo de atuação. Somente caberia a

responsabilização se houvesse a comprovação de uma atuação não diligente3.

Já no século XIX, ao comentar o projeto do BGB, Bernhöft dividiu as obrigações de

forma análoga, contudo não as batizou, ficando a cargo de Fischer, passado alguns anos,

denominá-las de obrigações subjetivas e obrigações objetivas4.

Apenas nas primeiras décadas do século XX, Demogue criaria a divisão das

obrigações em meios e resultado, de maneira semelhante ao pensamento romano, de Bernhöft

e Fischer, sendo efetivamente o autor francês o primeiro a utilizar essa nomenclatura para

tentar resolver as necessidades do seu tempo, no caso a expansão dos transportes e o

consequente aumento de acidentes5.

Essa summa divisio, proposta por Demogue deveria substituir o regime da

responsabilidade contratual e extracontratual para efeito de distribuição do ônus da prova (na

2 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das obrigações, Volume IV. 22 ed. São

Paulo: Saraiva, 1988, p. 8. Outro bom conceito consta no artigo 397.º do Código Civil português ―o vínculo

jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação‖. 3 O autor se refere a alguns contratos especialmente lesivos ao credor, particularmente aqueles em que uma parte

entregava coisa certa à outra que deveria restituí-la em dada altura. RIBEIRO, Ricardo Lucas. Obrigações de

Meios e Obrigações de Resultado. Coimbra: Wolters Kluwer sob a marca Coimbra Editora, 2010, p. 25-26. 4 Idem, Ibidem, p. 27.

5 GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Responsabilidade Médica – As obrigações de meio e resultado: avaliação, uso

e adequação. 1ª Ed., 2ª tiragem. Curitiba: Juruá, 2002, p. 143.

Page 457: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

457

primeira presume-se a culpa, na última prova-se). Na visão do autor, ora o devedor promete

determinado resultado, caso em que, não cumprindo, a sua culpa é presumida; ora promete

apenas adotar medidas ou empregar esforços para a obtenção de um resultado, caso em que,

não cumprindo, tem o credor o ônus de provar a sua culpa6.

A tese de Demogue cumpriria uma função útil ao conciliar os artigos 1137.º e o 1147.º

do Código de Napoleão. Segundo Ferreira de Almeida7, no primeiro artigo, a ausência de

culpa exclui a responsabilidade do devedor e seria o credor quem teria o ônus de comprovar a

existência de culpa. Já em relação ao art. 1147, o devedor só se exoneraria ao provar uma

causa estranha ou um fato exterior que tenha impedido o sucesso da prestação. As obrigações

de meios e de resultado explicariam perfeitamente as duas disposições.

Esse ponto de vista estendia a eficácia da distinção à esfera extracontratual. No âmbito

delitual, as obrigações de meios seriam os deveres de atuação prudente que evitassem lesões a

terceiros e as obrigações de resultado como o dever de não causar danos com coisas ou

animais de sua propriedade a outrem8.

A extensão da divisão à natureza extracontratual é controvertida. Tal situação se

explica pelo fato de que o dever geral de abstenção extrapola o conceito técnico de obrigação,

não sendo imposta indistintamente a todos os indivíduos. Assim, não se poderia falar em

obrigações pré-existentes no domínio extracontratual; elas só nasceriam após a violação

danosa de um bem jurídico9. Mas o que definiria uma obrigação como de meio ou de

resultado?

2.2 CONCEITO

Obrigações de meios seriam aquelas que têm como objeto apenas o emprego de todos

os meios necessários ou possíveis para alcançar o resultado pretendido pelo credor, sem que o

devedor garanta esse resultado10

. A obrigação de meios obriga o profissional a uma atuação

6 RIBEIRO, Ricardo Lucas. Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado. Coimbra: Wolters Kluwer sob a

marca Coimbra Editora, 2010, p. 28. 7 Cfr. OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto. Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde. In:

Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 127-256, p. 198-199. 8 Idem, ibidem, p. 42-43.

9 Idem, ibidem, p. 43.

10 Sobre o tema: Ricardo Lucas, cit., p. 91, MATIELO, Frabricio Zamprogna. Responsabilidade civil do médico.

Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998, p. 53, BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil Médica,

Odontológica, Hospitalar. Vários autores. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 102 e GIOSTRI, Hildegard Taggesell.

Erro médico: à luz da jurisprudência comentada. 2ª Ed., 6ª reimp. Curitiba: Juruá, 2009, p. 75; RIBEIRO,

Ricardo Lucas, cit.

Page 458: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

458

conforme os parâmetros da técnica e ética da sua ciência. Ele deve se comprometer a utilizar

todos os meios possíveis para atingir o resultado, devendo ser zeloso e diligente11

.

Por diligência podemos entender a observância às normas técnicas que culmina numa

prestação tecnicamente perfeita, atenciosa e de acordo com a boa-fé, mesmo que o melhor

resultado não seja atingido12

.

Sabendo que há desvinculação do devedor com o resultado pretendido pelo credor, só

haveria descumprimento na hipótese de o profissional não adotar, culposamente, a conduta

média exigida para aquela situação concreta que ocasione um dano13

.

A definição da obrigação de meios é basicamente a mesma para os doutrinadores,

assim como o conceito da obrigação de resultado. Se não, vejamos:

As obrigações de resultado14

tem como meta a obtenção de um resultado

predeterminado, que se não alcançado, pode gerar a responsabilidade do devedor. A não

consecução do resultado presume a culpa e a relação de causalidade entre o atuar do devedor

e o resultado danoso15

. Somente não haveria o dever de indenizar no caso da prova de

ocorrência de uma excludente de responsabilidade, como o caso fortuito, a força maior, a

culpa de terceiro ou a culpa exclusiva da vítima16

.

Devemos frisar que a obrigação de resultado não equivale à responsabilidade objetiva.

Na responsabilidade do profissional liberal, a culpa é requisito essencial. Porém, os limites de

ambos os institutos podem ser nebulosos. Le Tourneau17

afirma que a culpa estará sempre

subjacente na obrigação de resultado: ela consistiria da impossibilidade de executar o

prometido.

Em relação às obrigações de resultado, a conduta e a diligência do devedor não são

levadas em consideração para análise da responsabilidade18

: o importante é o próprio

resultado compactuado. Sempre que este não for atingido, a obrigação pode ser considerada

descumprida.

11

MATIELO, Frabricio Zamprogna, cit., p. 53. 12

GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Erro médico, cit., p. 143. 13

Idem, ibidem, p. 143. 14

Idem, ibidem, p. 144. BITTAR, Carlos Alberto, cit., p. 102. RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 91. 15

GARCÍA GARNICA, María del Carmen. La responsabilidad civil en el ámbito de la medicina asistencial. In:

La responsabilidad Civil por daños causados por servicios defectuosos – Daños a la salud y seguridad de las

personas. Director: ORTI VALLEJO, Antonio. Coordinadora: GARCÍA GARNICA, María del Carmen.

Navarra: Editorial Aranzadi, 2006, p. 217. 16

A culpa exclusiva da vítima somente pode ser utilizada como excludente se o devedor não tem a obrigação de

guarda e proteção, como nas situações de pacientes internos em instituições psiquiátricas. Corroborando na tese

da prova das excludentes como único mecanismo do devedor em livrar-se da responsabilização. GALÁN

CORTÉS, Julio César, cit., p. 178-179. 17

LE TOURNEAU, Philippe. La responsabilité civile. Paris: Dalloz, 1982, p. 409-410. 18

GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Erro médico, cit., p. 144.

Page 459: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

459

É importante ressaltar que o não cumprimento da obrigação, ou seja, a

desconformidade do resultado pretendido pelo credor caracteriza o elemento da ilicitude. Já

na obrigação de meios, a ilicitude está na violação dos deveres objetivos de cuidado,

acabando por aumentar a dificuldade probatória do credor. Explica-se: se na obrigação de

resultado o credor deve demonstrar que o resultado obtido diverge daquele compactuado, na

obrigação de meios, ele deverá provar que o devedor atuou de forma a atentar contra o dever

objetivo de cuidado, comprovando sempre a culpa do lesante19

.

Para contornar essa dificuldade probatória, que atinge o credor na obrigação de meios,

pode ser utilizada a prova de primeira aparência, instituto que permite um juízo de

probabilidade baseada na prática científica e nas máximas da experiência20

. Mesmo que não

sirva como juízo de certeza, esse mecanismo poderá ser empregado para as situações em que

o credor não consiga comprovar o nexo de causalidade de forma satisfatória; apesar de a

situação concreta indicar que o dano causado não poderia advir de outra causa que não a

conduta do devedor21

.

Embora não seja o nosso foco, devemos esclarecer que ao lado das obrigações de

meios e resultado, pairam as obrigações de garantia22

, que apesar de não terem sido previstas

por Demogue, merecem destaque. Essa obrigação acaba sendo ainda mais gravosa ao devedor

do que a obrigação de resultado. Uma vez que não alcançado o resultado, o devedor será

responsabilizado mesmo que uma causa estranha tenha tornado a prestação impossível23

.

2.3 CRITÉRIOS DE DISTINÇÃO

Não obstante seja clara a distinção entre as obrigações de meios e de resultado,

faticamente, na análise do caso concreto, haverá casos extremamente nebulosos que

impedirão a opção por uma ou outra classificação à primeira vista. Na prática, a importância

da distinção é: determinar o objeto exato da obrigação assumida pelo devedor e de estabelecer

19

RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 118-130. 20

Destacamos que essa é apenas uma das alternativas que poderiam ser utilizadas. 21

A Anscheinsbewis do direito germânico ou a res ipsa loquitur da common law. Idem, Ibidem, p. 130. 22

A obrigação de garantia teria como objeto a proteção da integridade física do paciente, servindo como

instrumento para garantir ressarcimento à vítima nos casos em que seja difícil demonstrar a culpa do

profissional, ou naqueles em que não tenha havido culpa. A obrigação de garantia teria finalidade de não lesar a

integridade do paciente e estaria conectada, particularmente, ao mau funcionamento dos aparelhos médicos.

ROMERO COLOMA, Aurelia María, cit., p. 83-84. 23

Idem, ibidem, p. 23, nota 14.

Page 460: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

460

a carga probatória24

. Mas a doutrina possui algumas ferramentas que pretendem auxiliar na

identificação da obrigação compactuada.

O principal critério adotado pelos juristas para tal diferenciação é a álea25

,

caracterizada como os riscos capazes de atingir o contrato. Todos os fatos eventuais que

influenciariam o resultado e que não dependeriam da vontade das partes.

Para os irmãos Mazeaud, na falta de outras circunstâncias que permitam descobrir a

vontade das partes, deve-se atentar para a presença de álea. Quando for identificada, deve

supor-se que a obrigação assumida fora de meios, uma vez não ser presumível o

comprometimento do devedor a um resultado que ele sabe ser aleatório. Já, se o resultado não

for aleatório, pode estimar-se que o devedor se comprometeu a atingir o resultado

determinado26

.

Para Demogue, uma obrigação de resultado não poderia depender de uma álea, com

isso, a princípio, um contrato médico por ter como objeto o corpo humano não poderia gerar

obrigação de resultado27

.

Por sua vez, Jamarillo estabelece importante consideração. Se não podemos

desconsiderar a álea terapêutica, tampouco poderíamos lhe dar um efeito excludente de

antemão. Sua presença é intrínseca a área médica, mas não poderíamos sacrificar a categoria

das obrigações de resultado por esse fato. Isso sem mencionar a dificuldade na diferenciação

de uma álea normal da que não é; o que coloca mais um ponto de questionamento sobre até

onde, na atualidade, é possível considerar a medicina como aleatória, em todos os casos e no

mesmo grau estabelecido no último século28

.

Existem outros critérios29

de distinção. Entre eles o da intensidade da participação do

lesado na realização da prestação debitória. Quando o devedor tem um importante papel ativo

no resultado, a obrigação será de meios. Como na prestação médica o paciente tem um papel,

24

GALÁN CORTÉS, Julio César. Responsabilidad médica. In: La responsabilidad civil profesional. Cuadernos

de Derecho Judicial VII. Director: Álvarez Sánchez, José Ignacio. Madrid: Consejo General del Poder Judicial,

2003, p. 178. 25

Nesse sentido o acórdão da Relação do Porto 3233/05.0TJPRT.P1 publicado em 05/03/2013, disponível em

www.dgsi.pt. 26

MAZEAUD, Henri, Léon e Jean/Chabas, François. Leçons de Droit Civil. Obligations – théorie générale. T.

II, V. 1. 9.ª Ed. Paris: Éditions Montchrestien, 1998, p. 15-16. 27

Separando as obrigações de acordo com a aleatoriedade do resultado final, OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto,

cit. p.189. 28

JARAMILLO J., Carlos Ignacio. La responsabilidad…, cit., p. 328. 29

Para Ricardo Ribeiro, os fatores que o levam a entender a obrigação como de meios são: a aleatoriedade do

resultado, o papel ativo ou a participação do credor na execução da obrigação e a menor fiabilidade das técnicas

e instrumentos são fatores que nos levam a pensar em obrigações de meios. RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 80.

Page 461: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

461

majoritariamente passivo – ou seja, a resposta orgânica do seu corpo – a obrigação, se

utilizarmos esse critério, seria de resultado, e sabemos que, em princípio será de meios30

.

No ponto de vista de Starck, outro critério que poderia ser utilizado é o da incidência

da prestação do devedor na integridade corporal do credor. Se o contrato afeta a integridade

física, a obrigação seria de resultado, de modo a proteger de forma mais eficaz o credor. Se

não afeta, a obrigação seria de meios, visto que o contrato teria natureza puramente

econômica ou moral31

.

Do mesmo modo do critério anterior, o de Starck, colocaria a prestação médica sempre

como uma obrigação de resultado, ao contrário do posicionamento da maioria da doutrina.

Independente dos critérios utilizados32

, ―excepcionalmente, atividades que denotam

uma obrigação de meio podem se converter em uma obrigação de resultado, a depender da

forma como se deu a pactuação com o consumidor dos serviços médicos‖33

.

2.4. CRÍTICAS

A classificação proposta por Demogue é de simples entendimento e percepção para os

juristas. Tal fato, todavia, não a ilide de críticas.

Boa parte das considerações atinge a denominação escolhida pelo autor. Para alguns

críticos, o termo obrigação de meios ou de resultado não possui um sentido apropriado. Essa

preocupação seria justificável pelo fato de todas as obrigações buscarem um resultado, seja

uma obrigação de meios seja a de resultado propriamente dita.

Para outros autores, todas as obrigações também seriam de meios, uma vez que

sempre requerem uma atuação diligente para a obtenção do interesse do credor, ou seja, o

resultado final34

.

Visando resolver esses impasses, os irmãos Mazeaud propõem a modificação da

denominação. As obrigações de meios passariam a ser chamadas de ―obrigações gerais de

30

Critério apresentado, por Philippe Le Tourneau e Loic Cadiet. PEDRO, Rute Teixeira. A Responsabilidade

Civil do Médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado. Coimbra: Coimbra

Editora, 2008, p. 93, nota 222. O papel ativo do paciente que resulta diretamente na não obtenção do resultado

poderá servir como excludente da responsabilidade na modalidade de culpa exclusiva da vítima. 31

RIBEIRO, Ricardo Lucas, p. 61. 32

Na Itália, PRINCIGALLI, afirma que a distinção dependeria das circunstâncias do contrato. A doutrina e os

Tribunais recorrem aos critérios da: intenção das partes; a economia geral do contrato; ou a existência de um

contrato de seguro. PRINCIGALLI, Annamaria. La responsabilità del Medico. Bari : Editore Jovene Napoli,

1983, p. 43. 33

GAGLIANO, Pablo Stolze e FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil, volume III:

responsabilidade civil. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 211. 34

Idem, ibidem, p. 33-34, nota 43.

Page 462: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

462

prudência e diligência‖, que comprometem o devedor apenas a uma forma adequada de

atuação; as obrigações de resultado deveriam ser denominadas de ―obrigações determinadas‖,

já que buscam um resultado predeterminado35

.

A proposta de Mazeaud tampouco fica isenta de críticas. Na Itália, Mengoni observa

que as obrigações, de forma geral, têm objeto determinado ou, no mínimo, determinável. E no

que diz respeito a ―obrigação geral de prudência e diligência‖, objeta, primeiramente, a

questão do termo ―geral‖ indicar a imposição de um dever a uma generalidade de sujeitos e

não a uma ou mais pessoas determinadas, o que deixaria de fora a responsabilidade contratual,

resultante, por definição, da violação de direitos relativos. Soma-se a isso o fato da diligência

ser um modo de atuação, uma medida do conteúdo de um concreto dever de prestação e não

apenas um comportamento36

. O autor acaba por classificar as obrigações em ―obrigações de

resultado‖, seguindo Demogue, e ―obrigações de (simples) comportamento‖, tendo boa

aceitação na doutrina italiana37

.

Na Espanha, existem muitas divergências terminológicas. Muitos se utilizam da

classificação demoguiana, mas outros adotam a expressão ―obrigações de atividade‖ para se

referir à obrigação de meios, não faltando, ainda, quem utilize a uma terminologia híbrida38

.

E há certa razão para criticar a nomenclatura. Toda obrigação busca satisfazer um

interesse do credor, mas, segundo Ricardo Ribeiro, devemos distinguir o interesse final ou

primário do credor do interesse instrumental ou de 2.º grau. As obrigações de meios

satisfazem esse interesse de 2.º grau, já as de resultado, deverão atingir o interesse final. A

distinção entre obrigações de meios e de resultado é, única e exclusivamente, o resultado

final, mas os resultados instrumentais são meios idôneos a produção do resultado final, assim

cada espécie de obrigação buscaria um resultado específico39

.

Toda obrigação requer uma atuação zelosa do devedor para atingir a finalidade do

contrato. Porém, no caso de uma obrigação de meios, a diligência é abarcada pelo conceito de

culpa, enquanto nas obrigações de resultado, reconduz-se ao conceito de ilicitude40

.

Vázquez Barros ainda defende que todo cirurgião, indefectivelmente, suportará ambas

as obrigações: a de meios, ou seja, a de proporcionar os cuidados sanitários mínimos e

35

MAZEAUD et MAZEAUD. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile. 4ª Ed. Paris: Sirey, 1947,

v.1, p. 110. 36

RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 29-30. 37

Idem, ibidem, p. 30. 38

Idem, ibidem, p. 30. 39

Idem, ibidem, p. 33. 40

Idem, ibidem, p. 34.

Page 463: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

463

indispensáveis; e a de resultado, qual seja: de assegurar que não causará nenhum dano à

integridade do paciente41

.

Podemos concluir que, apesar de ambas as obrigações buscarem um resultado e

exigirem uma conduta diligente, o conteúdo das duas modalidades é distinto, tornando-se

plausível adotar a denominação de Demogue sem grandes dificuldades.

Existe, entretanto, outra gama de críticas. De acordo com Jean Bellissent, a divisão

seria ―esclerosante‖, na medida em que pretende ordenar de maneira rígida as obrigações em

um dos grupos pré-definidos; ―empobrecedora‖ porque não atenderia a totalidade das

obrigações que poderiam surgir da autonomia privada e liberdade contratual, além de

―míope‖, visto que propõe uma qualificação pré-concebida que não é satisfatória42

.

Em Portugal, uma crítica contundente é feita por Ferreira Almeida. Na perspectiva do

autor, o ordenamento lusitano prevê apenas os regimes contratual e extracontratual. Assim, a

divisão de Demogue, acaba por perturbar a presunção de culpa do devedor plasmada no art.

799.º, n.º 1 e, consequentemente, acaba por ser fonte de confusões e imprecisões que

pretenderia evitar43

. A perturbação atingiria inclusive a qualificação do contrato médico

como de prestação de serviços, visto que a legislação portuguesa indica a necessidade de uma

das partes se obrigar a proporcionar a outra um resultado determinado44

.

Os problemas não afetam somente o sistema jurídico português. Princigallirevela que

na Itália, a proposta demoguiana é defendida por parte da doutrina e aceita pela

jurisprudência, sobretudo, no tema da responsabilidade médica. Há doutrinadores, todavia,

que consideram a bipartição nociva por supor uma categorização dogmática desnecessária.

Assim, esses juristas negam validade à bipartição, defendendo a unidade do conceito de

obrigação45

. Na Espanha, no mesmo sentido italiano, é possível encontrar doutrinadores

afirmando que a bipartição não ocasiona mais do que confusão46

.

Mesmo controvertido, é certo que, nas obrigações de fazer, sempre será possível

distinguir os casos em que o fim-resultado se incorpora à prestação47

daqueles outros em que

41

VÁZQUEZ BARROS, Sergio. Responsabilidad civil de los médicos – doctrina, legislación básica,

jurisprudencia, formularios y bibliografía. Valencia: Tirant lo Blanch, 2009, p. 346. 42

RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 36. 43

Idem, ibidem, p. 36 e OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, cit. p.198. 44

Idem, ibidem, p. 205. 45

PRINCIGALLI, Annamaria, cit., p. 37, nota 34. e p. 44. 46

ROMERO COLOMA, Aurelia María, cit., p. 84. 47

O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) prevê a summa diviso no artigo

5.4 relativo aos contratos comerciais internacionais. O n.º1 dispõe: ―quando a obrigação de uma parte implicar o

dever de atingir um resultado determinado, essa parte está obrigada a atingir esse resultado‖; já o n.º 2: ―quando

a obrigação de uma parte implicar o dever de empregar toda a diligência necessária na realização de uma certa

atividade, essa parte esta obrigada a empregar toda a diligência que seria usada por uma pessoa razoável da

Page 464: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

464

não se incorpora48

. Sinde Monteiro apoia a divisão, mas adverte ao jurista que a utilize com

cautela. A opção por uma ou outra natureza obrigacional deve resultar da interpretação da lei

ou do contrato, concebendo-se situações que possam não se adaptar a tais figurinos49

.

O Brasil parece ainda estar na fase de plena aceitação da bipartição pela doutrina e

jurisprudência. Ainda será preciso percorrer um longo caminho até alcançarmos a maturidade

para criticar a classificação e propor alternativas condizentes com nossa realidade jurídica.

2.5 CONSEQUÊNCIA

Uma vez que apresentamos a conceituação e algumas críticas, falta-nos explicitar as

consequências da opção por uma ou outra obrigação de maneira fundamentada.

De modo geral, entende-se que a obrigação médica é de meios, ou seja, o médico

deverá utilizar todos os mecanismos disponibilizados pela Ciência Médica a fim de aproveitar

todas as probabilidades que o paciente tem de alcançar uma melhora da sua saúde, além de

que, o profissional, deverá abster-se de quaisquer atos que diminuam essas possibilidades50

.

Esse entendimento acaba aumentando a dificuldade probatória do paciente51

. De

acordo com o pensamento clássico, para gerar responsabilização na obrigação de meios, o

credor deverá comprovar a culpa do devedor. Em tal hipótese, o paciente deverá provar que o

médico atuou de forma negligente, imprudente ou imperita, que a atuação foi susceptível de

produzir o dano alegado52

.

Para Rute Teixeira, o ônus da prova a cargo do paciente, acaba sendo um escudo

protetor do profissional porque, praticamente, determina o insucesso da demanda por não

haver a presunção de culpa. Presunção essa que recai sobre a generalidade dos devedores

inadimplentes.

Assim, vigorará uma presunção de diligência do médico a qual o paciente deverá

destruir, no caso de uma obrigação de meios53

. Se a situação for de uma obrigação de

mesma condição colocada na mesma situação‖. Tal posicionamento demonstra que a divisão demoguiana não

perdeu força com o passar das décadas e depois de numerosas críticas, cfr. OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, cit.

p. 201. 48

JARAMILLO J., Carlos Ignacio. La responsabilidad…, cit., p. 345. 49

MONTEIRO, Sinde. Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de novembro de 1996. In:

Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 132.º, 1999-2000, p. 93. 50

PEDRO, Rute Teixeira, ibidem, p. 82. 51

Nesse sentido o acórdão da Relação do Porto 3233/05.0TJPRT.P1 publicado em 05/03/2013, disponível em

www.dgsi.pt. 52

OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, cit. p. 229. 53

Nesse sentido, Idem, ibidem, p. 105.

Page 465: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

465

resultado haverá uma presunção de culpa do profissional sempre que o resultado

predeterminado não for atingido.

Como visto, as consequências são opostas. Quando tratar-se de uma obrigação de

resultado, o regime adotado será equivalente ao contratual. Entendendo como sendo de meios,

o regime será o extracontratual, devendo a culpa de o devedor ser provada.

Novamente devemos ressaltar a aparente inadequação da divisão de Demogue para o

ordenamento brasileiro. Se a natureza do negócio jurídico que rege a relação médico-paciente

é contratual, por que utilizar as regras do regime extracontratual para as obrigações de meios?

Muitos autores se debruçam sobre essa problemática. Embora não entre na divisão

demoguiana, Teixeira de Sousa argui que o paciente sempre deverá provar a culpa do médico.

Para o jurista, a existência de um contrato não acrescenta nenhum dever específico que já não

estivesse previsto nos deveres gerais do profissional, pelo que não deveria atribuir-se

relevância ao ônus da prova, e sua inversão, pelo simples fato de uma celebração de contrato

entre os dois sujeitos. Nessa visão, será aplicado o regime do ônus da prova previsto pela

responsabilidade extracontratual, onde o doente deverá provar a culpa do médico54

.

No entanto, não se vê base jurídica para aplicar a presunção de culpa pela violação da

responsabilidade na obrigação de resultado e não às obrigações de meios se ambas deveriam

ser regradas pelo regime contratual55

. Nesse sentido apresentamos outra posição doutrinária,

segunda a qual o regime contratual deverá ser aplicado integralmente, incluindo a presunção

de culpa do devedor, nele prevista – às situações de incumprimento das obrigações de

meios56

.

Para Henrique Gaspar o fundamento da responsabilidade médica é, essencialmente, o

cumprimento defeituoso da obrigação. E para esses casos, o paciente deverá comprovar o

defeito no cumprimento, ficando a cargo do médico a comprovação da falta de culpa57

.

Mesmo utilizando o regime contratual para ambas as espécies de obrigação ainda seria

possível vislumbrar uma diferença entre a presunção de culpa em uma e outra. Segundo

Ricardo Ribeiro, nas obrigações de resultado a presunção abrangeria a ilicitude e o nexo de

causalidade entre o fato ilícito e o dano. Nesse caso, o médico terá o ônus:

de provar o cumprimento da obrigação, ou então de provar que o não cumprimento

não é ilícito ou que o não cumprimento ilícito não procede de culpa sua, ou

54

SOUSA, Miguel Teixeira de. Sobre o ónus da prova nas acções de responsabilidade civil médica. Direito da

Saúde e Bioética. Lisboa, 1996, p. 113-114. 55

RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 118. 56

PEDRO, Rute Teixeira, ibidem, p. 105. 57

GASPAR, António Silva Henriques. A responsabilidade civil do médico. CJ, ano III, T. 1, 1978, p. 344-345.

Page 466: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

466

finalmente, que não há uma relação de causalidade entre o não cumprimento ilícito e

culposo e os danos sofridos pelo credor58

.

Nas obrigações de meios a presunção de culpa seria mantida, devendo o devedor provar que

não atuou com culpa e agiu com cuidado e atenção. Enquanto a presunção de culpa nas obrigações de

resultado abarcam a ilicitude e o nexo causal, nas obrigações de meios ela se reduz a censurabilidade

pessoal da conduta do devedor59

.

Para Ricardo Ribeiro, a natureza da obrigação influencia ―a repartição do ónus da prova, mas

não do ónus da prova da culpa, antes do ónus da prova de outros elementos da responsabilidade‖60

.

Podemos concluir que ao aceitar a obrigação do profissional da saúde como de resultado, o

paciente deverá provar o incumprimento do contrato, devendo o médico comprovar, ou que o

resultado foi atingido ou que uma causa alheia impediu que o objetivo fosse alcançado, como a força

maior, a culpa de terceiro ou a culpa exclusiva do paciente. Como consequência direta, o paciente

conseguiria responsabilizar o médico de maneira mais fácil, porque ele, normalmente, é a parte

hipossuficiente da relação, carecendo de recursos financeiros e técnicos para buscar seu direito de

maneira eficaz. Além do mais, o acesso à prova documental, principalmente do processo clínico é

mais simples para o médico. Mas, essa facilidade poderia fazer com que o preço dos serviços médicos

aumentasse, uma vez que abarcariam os riscos da responsabilização facilitada e os custos de um

possível seguro capaz de proteger o patrimônio do profissional.

Mas se entendermos que a obrigação do médico é de meios, como a doutrina clássica entende,

estaríamos dificultando a responsabilização do médico, bem como aplicando as regras do regime da

responsabilidade extracontratual, uma vez que o devedor deveria comprovar a culpa do profissional,

não havendo a presunção. Para satisfazer o regime contratual, devemos nos utilizar dos ensinamentos

discutidos supra e defendidos pela doutrina mais recente.

3 CONCLUSÃO

Ao longo da exposição buscamos introduzir a divisão demoguiana de forma mais detalhada,

revelando a origem histórica, o conceito de obrigação de meios e a de resultado, bem como os critérios

de distinção entre ambas.

58

RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 123-124. 59

Idem, ibidem, p. 130. Pinto Oliveira aduz que a presunção de culpa do art. 799.º seria aplicável às obrigações

de meios, mas o alcance da presunção seria diversa. Na obrigação de resultado o art. 799.º se combinaria com o

critério de tipicidade/ilicitude no resultado, exonerando o credor do ônus de provar a omissão de cuidado; na de

meios, ele se relacionaria com um critério de tipicidade/ilicitude referido à conduta, não exonerando o credor do

ônus de demonstrar a omissão da mais elevada medida de cuidado exterior. Nas obrigações de resultado, a

inobservância do cuidado ou diligencia constituiria o critério de culpa, enquanto nas obrigações de meios, ela

constituiria o critério de ilicitude. OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, cit. p.187-188 e 245. 60

Idem, ibidem, p. 118.

Page 467: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

467

Abordamos tais questões somente para alcançar o ponto primordial do presente artigo: as

inconsistências da classificação de Demogue. Pelo limite natural do trabalho optamos por explicitar as

críticas e as consequências da opção por uma ou outra obrigação no Direito da Medicina.

Que o leitor aproveite essas linhas iniciais como ponto de partida para o aprofundamento no

estudo do Direito da Medicina bem como para questionar tudo que já foi escrito sobre o tema.

REFERÊNCIAS

BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil Médica, Odontológica, Hospitalar. Vários

autores. São Paulo: Saraiva, 1991.

GAGLIANO, Pablo Stolze e FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil, volume

III: responsabilidade civil. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

GALÁN CORTÉS, Julio César. Responsabilidad médica. In: La responsabilidad civil

profesional. Cuadernos de Derecho Judicial VII. Director: Álvarez Sánchez, José Ignacio.

Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2003.

GARCÍA GARNICA, María del Carmen. La responsabilidad civil en el ámbito de la

medicina asistencial. In: La responsabilidad Civil por daños causados por servicios

defectuosos – Daños a la salud y seguridad de las personas. Director: ORTI VALLEJO,

Antonio. Coordinadora: GARCÍA GARNICA, María del Carmen. Navarra: Editorial

Aranzadi, 2006.

GASPAR, António Silva Henriques. A responsabilidade civil do médico. CJ, ano III, T. 1,

1978.

GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Responsabilidade Médica – As obrigações de meio e

resultado: avaliação, uso e adequação. 1ª Ed., 2ª tiragem. Curitiba: Juruá, 2002.

___________ Erro médico: à luz da jurisprudência comentada. 2ª Ed., 6ª reimp. Curitiba:

Juruá, 2009.

JARAMILLO J., Carlos Ignacio. La responsabilidad civil médica – la relación médico-

paciente. 2ª Ed. Bogotá: Grupo Editorial Ibáñez, 2011.

MATIELO, Frabricio Zamprogna. Responsabilidade civil do médico. Porto Alegre: Sagra

Luzzatto, 1998.

MAZEAUD et MAZEAUD. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile. 4ª Ed.

Paris: Sirey, 1947, v.1.

Page 468: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

468

MAZEAUD, Henri, Léon e Jean/Chabas, François. Leçons de Droit Civil. Obligations –

théorie générale. T. II, V. 1. 9.ª Ed. Paris: Éditions Montchrestien, 1998.

MONTEIRO, Sinde. Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de

novembro de 1996. In: Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 132.º, 1999-2000

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das obrigações. 22 ed.

São Paulo: Saraiva, 1988, v.4.

OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto. Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde.

In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

PEDRO, Rute Teixeira. A Responsabilidade Civil do Médico – Reflexões sobre a noção da

perda de chance e a tutela do doente lesado. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.

PRINCIGALLI, Annamaria. La responsabilità del Medico. Bari : Editore Jovene Napoli,

1983.

RIBEIRO, Ricardo Lucas. Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado. Coimbra:

Wolters Kluwer sob a marca Coimbra Editora, 2010.

ROMERO COLOMA, Aurelia María. La medicina ante los derechos del paciente. Madrid:

Editorial Montecorvo, 2002.

SOUSA, Miguel Teixeira de. Sobre o ónus da prova nas acções de responsabilidade civil

médica. Direito da Saúde e Bioética. Lisboa, 1996.

VÁZQUEZ BARROS, Sergio. Responsabilidad civil de los médicos – doctrina, legislación

básica, jurisprudencia, formularios y bibliografía. Valencia: Tirant lo Blanch, 2009.

Page 469: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

469

A LEGALIZAÇÃO DA MACONHA PARA FINS MEDICINAIS SOB O

OLHAR DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO

Edeurlan Albino Duarte1

Rossana Tavares de Almeida2

Sumário: 1 Introdução. 2 Legalização da Cannabis em seu Contexto Histórico: uma

interpretação racista da norma jurídica. 3 Conhecendo Morfologicamente a

Maconha. 4 Os Benefícios da Cannabis Sativa. 5 Contraindicações da Maconha. 6 A

Lei de Drogas no Brasil Hoje. 7 O Problema da Norma Penal em Branco da Lei 11.

343/2006 e a Portaria 344 da ANVISA. 8 O Olhar da Bioética e do Biodireito na

Legalização da Maconha. 9 Direitos Fundamentais: direito à saúde. 10 A

Legalização da Cannabis em Outros Países 11. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A ciência vive em constante mutação, pois novas tecnologias surgem com o intuito

maior de contribuir para o bem-estar do ser humano, como a evolução dos estudos científicos

da Cannabis Sativa, uma das substâncias ilícitas mais utilizada e mais produzida no planeta,

sendo cultivada em praticamente todos os países (ALVES, 2012, p.91). Essa planta é

extremamente importante para o tratamento de várias doenças, porém, sua utilização é barrada

pela legislação brasileira, mostrando-se contra os avanços da ciência. Percebe-se que esta

atitude não envolve questões da bioética ou do biodireito, mas sim, questões morais.

De forma ampla, este artigo tem como objetivo informar acerca dos efeitos benéficos

da Cannabis Sativa com fins terapêuticos, tendo em vista a falta de informação sobre do tema,

aspirando principalmente defender a legalização da maconha para fins medicinais, não

referindo-se à discussão sobre o uso recreativo, pois não é com este intuito que propomos a

legalização da maconha.

A relevância de estudar esse tema deve-se a sua repercussão nos últimos anos,

principalmente agora, com a legalização do país vizinho o Uruguai e da macha da maconha,

como também a mudança da Legislação Brasileira, no que tange às drogas, com a nova Lei Nº

11. 343/2006. Além disso, o avanço de vários estudos científicos que vem pesquisando o uso

da maconha para tratamentos de doenças.

Para o enriquecimento deste artigo usaremos o trabalho de Luiz André Barreto e o de

Mônica Mourinho, como fonte de conhecimento sobre os aspectos morfológicos da maconha

e seus efeitos no organismo humano. Também serão abordadas as ideias de Edison Namba e

1 Graduando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.

2 Graduando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.

Page 470: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

470

Regina Loureiro, que contribuirá para compreendermos o conceito e a função do biodireito e a

bioética entre outros trabalhos.

Primeiramente discutiremos sobre o contexto histórico da maconha, fazendo menção

desde a Idade da Pedra até chegar no contexto americano e brasileiro hoje, com a finalidade

de conhecermos como esse tema era tratado na época, e o que mudouno decorrer dos anos.

Posteriormente, será apresentada a morfologia da maconha, bem como seus compostos

orgânicos e quais são seus efeitos no organismo humano. Também será abordada a Lei 11.

343/06, que legisla sobre as drogas, e os problemas decorrentes dela. Além disso, trataremos

do tema sobre a perspectiva do biodireito, da bioética, dos direitos fundamentais,

principalmente do direito à saúde; ainda serão expostos os países nos quais a maconha já é

legalizada.

2 LEGALIZAÇÃO DA CANNABIS EM SEU CONTEXTO HISTÓRICO: UMA

INTERPRETAÇÃO RACISTA DA NORMA JURÍDICA

A Cannabis é cultivada pelo homem desde a Idade da Pedra, utilizada para a

fabricação de utensílios domésticos, de modo a facilitar suas atividades, servindo de matéria

prima para a confecção de cordas, tecelagem rudimentar e redes de pesca (OLIVEIRA, 2011,

p. 24). A importância do cultivo da Cannabis, no contexto citado, vai além do uso de

confeccionar, pois a maconha também era usada como uma forma de interação entre o homem

e o sobrenatural. Conforme Oliveira cita Ribeiro:

Assim, em algum momento longínquo do passado, mais do que uma fonte de fibras,

alimentos e óleo, variedades da Cannabis ricas em resina (maconha) provavelmente

passaram a ser usadas para atingir a comunhão com o mundo sobrenatural (2011,

p.24).

Barreto (2002, p.1) elenca, desde a antiguidade até a época medieval, que a Cannabis

já era utilizada para fins medicinais. A primeira farmacopeia, de que se tem conhecimento, foi

datada em 375 a.c., na China, pelo lavrador ShenNung. O autor enfatiza que nesta época o uso

da semente de cânhamo tinha fins terapêuticos e alimentícios.

Não obstante, na Grécia, no século III a.C.,Dioscorides, influenciado por Hipócrates,

começou uma pesquisa com plantas, entre elas a Cannabis Sativa3, a qual afirmou ser bastante

útil para a vida humana, reconhecendo a importância das fibras, como também o valor

medicinal da planta (BARRETO, 2002, p.02).

3Nome adotado por Carl Linnaeus em 1753.

Page 471: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

471

Muitos autores, como Oliveira (2011), Barros e Peres (2011), relacionam a proibição

da maconha com a questão preconceituosa e racista. Isto porque apesar da maconha ser

consumida há muitos anos, em diversas partes do mundo, somente no começo do século XX é

que a planta chega aos EUA, trazida pelos imigrantes mexicanos, que usavam a maconha para

aguentar a dura jornada de trabalho. Nesta perspectiva, a população branca dos EUA criou

uma lenda baseada em pilares preconceituosos, em que a maconha gerava uma energia sobre-

humana para os trabalhadores mexicanos e transformava-os em assassinos sanguinários

(OLIVEIRA, 2011, p. 26).

Para a solidificação do aspecto racista, em relação àCannabis, Oliveira (2011, p.27)

traz um caso ocorrido nos EUA, em que um mexicano diabolicamente influenciado pela erva,

teria atacado um cidadão branco americano, a partir deste fato.O Texas, onde o fato ocorreu,

aprovou a lei proibindo a posse da maconha. Vejamos o argumento de Robinson (1999, p. 91

apud OLIVEIRA, 2011, p.27):

[...] a Cannabis Sativa foi proibida nos Estados Unidos por razões ligadas ao racismo

e economia quanto à moralidade. Uma associação arbitrária que vinculava a

―loucura da maconha‖ com mexicanos, afro-americanos, jazz e violência havia sido

adotada por doutrinadores, cujos temores e fantasias eram alimentados pela mídia.

A partir desta citação, percebemos que a proibição da maconha nos EUA está

intrinsicamente relacionada com o racismo, pois não havia nenhum estudo científico sobre o

efeito da Cannabis, para o embasamento de tal lei, sendo uma forma de subjugar o outro, não

respeitando a alteridade.

Ainda no contexto estadunidense, a maconha se populariza e deixando de ser

marginalizada, quando é consumida por várias classes sociais, mais uma vez evidenciando a

questão preconceituosa que envolve a legalização da maconha, pois quando a erva era

utilizada por imigrantes e hippies, relacionavam a atitudes diabólicase ao ócio, mas quando

houve a ascensão do uso da maconha para classes médias e altas o discurso mudou. A mídia

também influenciou, pois em 1972 John Lennon faz uma música em homenagem a um jovem

que lutava a favor da legalização da maconha. Em meados dos anos 70, ela, a Cannabis, se

populariza através do cinema e da TV (OLIVEIRA, 2011, p. 33).

Já no Brasil, o costume de fumar maconha foi trazido pelos escravos africanos,

posteriormente se espalhou entre as populações rurais e indígenas (OLIVEIRA, 2011, p. 50).

No período de 1809, com a criação da Guarda Real, começou a polícia dos costumes,

repreendendo festas com cachaça, música afro-brasileira e, consequentemente o uso da

Page 472: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

472

maconha (BARROS e PERES, 2011). Ainda, segundo as autoras, o hábito de fumar maconha

foi marginalizado, no Brasil, através da psiquiatria lombrosiana, que pregava a ideia de

algumas raças serem imanente criminosas, bem como o negro, ligando os atos destes a crimes,

englobando o ato de fumar maconha.

O Código Penal, em 1890 e a ―Seção de Entorpecentes Tóxicos e Mistificação‖, cria

uma forma de reprimir a manifestação da cultura africana. Além disso, a criminalização da

maconha foi influenciada pelo discurso médico, pois conforme o psiquiatra Rodrigues Dória

(1857-1958) citado por BARROS e PERES:

[...] é possível que o indivíduo já propenso ao crime, pelo efeito exercido pela droga,

privado de inibições e de controle normal, com o juízo deformado, leve à prática

seus projetos criminosos. (...) entre nós a planta é usada, como fumo ou infusão, e

entra na composição de certas beberagens, empregadas pelos ―feiticeiros‖, em geral

pretos africanos, ou velhos caboclos. Nos candomblés - festas religiosas dos

africanos, ou dos pretos crioulos, deles descendentes, e que lhe herdam os costumes

e a fé – é empregada para produzir alucinações e exercitar os movimentos nas

danças selvagens dessas reuniões barulhentas (Herman e Pessoa Jr, 1986) (2011).

Percebemos que tal ―ciência‖ é carregada de racismo, pois considera o negro um ser

naturalmente criminoso, e todas as práticas exercidas por eles, consequentemente serão

rotuladas injustamente como ilícitas, assim o uso da maconha, que divergentemente da visão

do branco, não é um uso esporádico, mas é carregado de significados e simbolismo religioso.

Gilberto Freyre afirma ser a maconha um elemento cultural de resistência à desafricanização.

A legalização da maconha, como pôde ser visto, camuflou-se em argumentos médicos

construídos em solo de areia, pois não era baseado em pesquisas verdadeiramente científicas,

mas sim, alicerçadas em racismo e preconceito, com o intuito de inibir as manifestações

culturais africanas, na tentativa de um controle social.Observemos a citação de Mendes:

Há um dado em sua criminalização (da maconha) histórico que transcende o

discurso médico. Trata-se do caráter explicitamente racista do seu processo de

criminalização, quando foi associada a uma perversão própria dos descendentes dos

africanos que teriam trazido tal doença pra a sociedade civilizada. (MAGALHÃES,

1994, p.107) (2011, p.50).

Ao enxergarmos a legalização da maconha pelo viés cultural, em que as relações entre

a cultura que olha e a cultura que é olhada, não se estabelece de uma única forma

(TUTIKIAN, 2006, p. 13). Por intermédio da teoria de Daniel Henri Paoeaux (1989),

podemos afirmar, que as relações culturais entre os americanos e os mexicanos e dos

Page 473: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

473

portugueses (residentes no Brasil, no século XIX)4 eram de fobia

5, na qual a cultura nacional

de origem considera-se superior à superior à estrangeira e tende a refratá-la. Esta ideia é

confirmada a partir dos argumentos expostos anteriormente.

3 CONHECENDO MORFOLOGICAMENTE A MACONHA

Derivada da palavra grega Kannabis (traduzida ―proveitosa‖), a Cannabis Sativa,

nome científico da maconha, dado na segunda metade do século XVII, tem sua origem na

Ásia Central. Atualmente sabe-se que essa planta possui mais de 60 compostos orgânicos,

denominados de canabinóides (MOURINHO, 2013, p. 02). Segundo a autora, nos últimos

quarenta anos foram identificados como constituintes principais da Cannabis, o delta9-

Tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD).

A planta da Cannabis Sativa apresenta um dimorfismo sexual, da qual a planta

masculina se obtém a fibra para confecção de tecido e corda, em que a produção de fibras é

inversamente proporcional à produção de THC, ou seja, não serve para a produção de

cigarros. Diferentemente, a planta feminina, produz mais resina, que detém o complexo ativo

THC, sendo este utilizado para fins diferentes da planta masculina (BARRETO, 2002, P. 06).

Além disso, a partir do tronco central da planta é extraído um óleo com teor elevado de THC,

que produzirá o haxixe.

4 OS BENEFÍCIOS DA CANNABIS SATIVA

Conforme mencionamos anteriormente, existem os compostos orgânicos na maconha,

podendo ser psicoativos ou não, denominados de canabinóides. Elenca Barretos (2002, p.16),

o THC é o canabinóide mais conhecido, por causa de suas propriedades psicoativas, tendo o

potencial terapêutico mais explorado, contribuindo para o controle psicomotor (relaxamento)

e como analgésico leve, enquanto o CBD, alivia a náusea e a dor e no aumento de apetite.

Sendo ambos compostos, os únicos canabinóides testados em humanos, para algumas doenças

como esclerose múltipla, dor neuropática, esquizofrenia, mania bipolar, distúrbio de

ansiedade social, insônia e epilepsia (MOURINHO, 2013, p. 03).

4 Momento em que a Coroa portuguesa fugiu das tropas napoleônicas, em novembro de 1807 (BARROS

& PERES, 2011). 5Este termo é empregado como uma das três formas que o autor caracteriza as relações entre as culturas.

Page 474: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

474

Mourinho (2013, p.10), alerta para o uso da Cannabis, pois esta deve ser usada como

terapia complementar, principalmente nos tratamentos de doentes em cuidados paliativos, que

surge como uma tentativa de prevenir o sofrimento, pois sua utilização, como terapia

complementar, age na redução de alguns sintomas em doentes com cancro ou esclerose

múltipla, principalmente na espasticidade. Como a autora elenca, há uma necessidade de

maiores estudos em relação a Cannabis como terapia.

Conforme os estudos apresentados pela autora, no que tange ao uso da Cannabis

Sativa quanto ao impacto a nível de estrutura cerebral é pequeno, mas em relação ao nível das

funções sensitivas cerebrais há alterações sutis associadas há anos de uso regular.

Além de discutir sobre os benefícios da Cannabis na perspectiva de cuidados

paliativos, a autora crítica, a questão da ilegalidade do consumo da planta:

Apesar das evidências que o consumo terapêutico da Cannabis pode melhorar a

sintomatologia e consequentemente a qualidade de vida de determinados grupos de

doentes, continua, a existir a questão da ilegalidade do consumo desta droga, sendo

o seu uso uma atividade criminosa punida por lei, a questão de ser uma substância

que gera preconceito pela sua comercialização, e o estigma que ela ainda instiga na

nossa sociedade (MOURINHO 2013, 2013, p.03).

Ainda existem os canabinóides sintetizados, produzidos a partir dos constituintes da

Cannabis Sativa, para o uso terapêutico, comercializado em vários países, como Reino Unido

e Estados Unidos (MOURINHO 2013, 2013, p.03).

Além disso, a autora analisa sete estudos clínicos que avaliam os efeitos terapêuticos

da Cannabis e canabinóides no controle sintomático em pessoas com cancro, ou doença

neurológica degenerativa, aparecendo como terapia complementar. Vale salientar, que os

artigos estudados datam de 2008 a 2012. Dos sete artigos, cinco obtiveram resultados

positivos do uso da Cannabis ou canabinoídes, como terapia complementar em doentes com

caso paliativo.

Diante dos aspectos positivos do uso da maconha, Barreto (2002, 0.17) menciona que

a planta é regida clinicamente para tratar pacientes com câncer, em alguns países. Conforme

elenca o mesmo autor, o uso da Cannabis contribui para a regulamentação do aparelho

gastrintestinal, além de diminuir náuseas, também possui efeito anestésico após o uso oral,

pois suaviza a dor em pacientes de câncer pós-quimioterapia. O autor, ainda, afirma que o

efeito da Cannabis é relativo:

Há de lembrar que os efeitos esperados dependem do conjunto

consumidor/meio/qualidade e quantidade da droga a ser administrada. Assim, o que

Page 475: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

475

pode ser anestésico para um indivíduo, pode não surtir efeito algum num segundo

caso (BRAGG et al. 1988) (2002, p.17).

5 CONTRAINDICAÇÕES DA MACONHA

Em comparação a outras drogas lícitas, as consequências de pequenos níveis de THC

assemelham-se ao do álcool, diminuindo suavemente as funções do sistema nervoso central,

já em grandes quantidade o THC pode acarretar euforia por meios parecidos coma morfina

(BARRETO, 2002, p.17).

Quando se fala em drogas, as pessoas pensam de acordo com o senso comum, em algo

totalmente maléfico à saúde, principalmente no que se refere à maconha, porém, os efeitos

ocasionados pelo uso da planta envolve vários fatores.

Quando se trata de C. Sativa e seus efeitos tem-se que considerar algumas

peculiaridades que influenciam de forma significativa. Deve-se levar em conta o grau de THC

(qualidade de maconha consumida), a química corporal do indivíduo que consome bem como

sua receptividade psicológica, condições socioambientais do usuário, personalidade e

estabilidade emocional, forma como consome (se fumada ou ingerida) (SANTOS 1997). Por

fim, os efeitos da C. Sativa são ―particularmente função de uma pessoa particular, em

condições particulares, num momento particular‖ (...) (BARRETO, 2002, p.18).

Como podemos observar, o uso da C. Sativa, para fins medicinais, assim como

qualquer outra droga lícita (remédios) irá depender do organismo de cada paciente e dos

fatores em que estes estão inseridos. Dessa forma, a utilização da maconha como tratamento

pode ser prescrito para um indivíduo e outro não, mesmo ambos possuindo a mesma doença.

O grande problema do uso da maconha diz respeito ao seu uso abusivo: ―Altas doses

de THC podem causar ansiedade, que podem vir a desencadear ou agravar um quadro

psicótico, numa personalidade que tende a este quadro‖ (BARRETO, 2002, p.18). Quando o

uso abusivo da maconha torna-se um hábito pode ocasionar a perda da consciência, e este

hábito em poucos intervalos de tempo, associado a grandes quantidades, acelera os batimentos

dobrando a pulsação, afetando o coração.

Ao lermos as literaturas que elencam sobre os efeitos negativos, quanto ao uso da

maconha, sempre enfatiza a questão do seu uso abusivo, principalmente quando associada a

outra droga, por este motivo há uma maior dificuldade para exprimir com exatidão os efeitos

do uso da maconha:

Page 476: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

476

O uso da Cannabis em associação com outras drogas pode vir a acentuar alguns

efeitos tanto destas como daquela. Em associação com o álcool, por exemplo, ambas

têm seus efeitos salientados. Em associação com a cafeína presente em refrigerantes

ou café, os efeitos sedativos e indução ao sono da Cannabis são suprimidos, gerando

até casos de insônia (BARRETO, 2002, p. 22).

A Associação Brasileira de Psiquiatria. Sociedade Brasileira de Cardiologia discerne

sobre a relação do uso da maconha com o tabaco: ―Apesar da fumaça da maconha apresentar

uma composição química muito parecida com o tabaco, exceto a nicotina,presente no tabaco e

os cerca de 60 canabinóides presentes na Cannabis, os efeitos do consumo da Cannabis

diferem do tabaco (2012, p.18).‖

O consumo de Cannabis está associado a um maior risco de sintomas respiratórios

como tose e expectoração, mas os estudos não conseguiram evidenciar declínio da função

pulmonar ou obstrução ao fluxo aéreo, como ocorre com o consumo do tabaco (2012, p.18).

O artigo ―Abuso e Dependência de Maconha‖ traz inúmeras questões que envolvem o

uso da maconha, bem como suas consequências negativas. O artigo utilizou como método a

revisão de diversos artigos, em que cada dado retirado destes obteve um grau de

recomendação e força de evidência que vai de A a D. Percebe-se que os argumentos negativos

em torno do uso da Cannabis são geralmente classificados pela letra D, que significa ―opinião

desprovida de avaliação crítica, baseada em consensos, estudos fisiológicos ou modelos de

animais‖.

Em relação à tolerância e à toxidade da Cannabis, Barreto discorre:

A tolerância da Cannabis é dita uma ―tolerância reversa‖ (Anderson 1980),

justificada pela permanência do THC no sangue do indivíduo por muito tempo, e sua

progressiva eliminação, restaurando os níveis normais de tolerância.

(...)a Cannabis não é tóxica, pelo menos no que diz respeito ao homem. A baixa

toxidade do THC fica evidenciada quando se leva em conta o uso da erva por

milhões de pessoas, hoje e no mundo todo, e jamais se registrou casos de morte ou

quadros clínicos de overdose por intoxicação por Cannabis (2002, p.25).

6 A LEI DE DROGAS NO BRASIL HOJE

Não podemos negar a evolução no ordenamento jurídico brasileiro em relação à Lei Nº

11. 343/06 que diferente das antigas Leis de Drogas (Lei Nº 6.368/76 e a Lei Nº 10. 409/02),

pois distingue o usuário do traficante, porém não contempla o volume máximo da droga a ser

classificada como uso pessoal. Dessa forma, percebemos uma mudança na ótica do legislador,

utilizando não somente do aspecto penalista como também o sociológico. Vejamos a

afirmação de Araújo (2013):

Page 477: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

477

Com o advento do novo diploma legal, o legislador demostrou maior preocupação

com o aspecto sociológico do tema, percebeu-se que o problema não era apenas de

Direito Penal: envolvia assistência social, economia,critérios criminológicos,

políticas públicas e uma série de fatores que contribuem para disseminação, em todo

território nacional, de substâncias entorpecentes.

Ao que se refere às mudanças introduzidas pela Lei Nº 11. 343/2006 com as Leis Nº 6.

368/76 e Nº 10.409/02, houve mudanças de grande relevância, como a supressão da restrição

da liberdade para os usuários, advertindo, considerando o processo de ressocialização do

usuário uma medida educativa, com a participação de programa ou curso educativo, que vai

do art. 20 ao 26 da respectiva lei.

Além disso, no art. 28, houve o acréscimo dos temos ―transportar‖ e ―tiver em

depósito‖, também ocorreu o aumento da pena in abstrato prevista para o crime, elevando-se o

mínimo de 3 (três) para 5 (cinco) e mantendo-se o máximo em 15 (quinze) anos, e o aumento

da pena de multa, passando de 50 (cinquenta) para 500 (quinhentos) dias-multas e o máximo

de 360 (trezentos e sessenta) para 1.500 (mil e quinhentos) dias-multas. Ainda houve a

tipificação de novas condutas (financiar, colaborar e conduzir) previstas na Lei Nº 11.

343/2006, transcritos nos artigos subsequentes:

Art. 36. Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33,

caput e § 1. º, e 34 desta lei;

Art. 37. Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação

destinados à prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34

desta lei;

Art. 39. Conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a

dano potencial a incolumidade de outrem;

7 O PROBLEMA DA NORMA PENAL EM BRANCO DA LEI 11. 343/2006 E A

PORTARIA 344 DA ANVISA

Na Lei 11. 343/2006 adota a norma penal em branco, que é normalmente adotada pelo

direito brasileiro. Dessa forma, não são definidas, pela lei citada, as substâncias que estão a

cargo de sua tutela. Esta responsabilidade fica a cargo da Agência Nacional de Vigilância

Sanitária (ANVISA), através da portaria 344.

Neste caso, a norma penal em branco é examinada enfocando seu sentido estrito, pois

a sanção é estabelecida pela Lei 11. 343/06, enquanto a norma complementadoraencontra-se

na portaria 344, assim, diz restrito, porque os órgãos que regulam o mesmo objeto são

diferentes, estando a sanção no âmbito legislativo e a matéria de proibição prescrita pela

autarquia.

Page 478: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

478

Para a Cannabis ser legalizada seria necessário que a ANVISA retirasse do seu

dispositivo a maconha da portaria 344, pois para a inclusão da maconha no rol de drogas

ilícitas não houve nenhuma fundamentação científica, tendo em vistas os vários estudos que

comprovam a eficácia dos canabinóides e de seus sintéticos. Em consonância a esta

problemática Mendes assevera:

(...) faz necessário o controle judicial do ato administrativo da ANVISA que insere o

THC no referido rol, tendo em vista que ―a validade do ato estará condicionada à

existência dos fatos pela Administração como pressuposto fático-jurídico para sua

prática, bem como à juridicidade de tal escolha‖ (BINENBOJM, 2008, p.2006).

Portanto, pela natureza técnica das agências reguladoras, a mera existência de

tratados internacionais não justifica o ato administrativo, devendo haver uma

fundamentação técnica. (2011, p.54).

Em relação aos aspectos negativos na maconha a ANVISA deveria compará-los aos de

outras drogas lícitas e normalmente comercializadas, pois como já foi mostrado neste artigo o

uso da Cannabis pode ser menos prejudicial que o tabaco. Observemos esta questão a partir

dos argumentos de Mendes:

(...) respeitando o Estado de Direito, a administração não pode ser arbitrária em seus

atos, adentrando ao âmbito científico não bastaria a ANVISA mencionar os danos

gerados pela cannabis, teria de enfrentar a questão de confrontar tais males como de

substâncias que ela permite, como o álcool e o tabaco, do contrário, sem tal

confrontamento, permaneceria a repressão cultural materializada na proibição de

uma substância menos nociva enquanto outras mais danosas, por razões políticas e

não técnicas, são permitidas (2011, p.55).

8 O OLHAR DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO NA LEGALIZAÇÃO DA MACONHA

A primeira vez que utilizou-se a palavra bioética, foi no século XX, nas obras

Bioethics: Bridge tothe Future, EnglewoodCliffs/New York: Prentice-Hall, 1971, de Van

Ressealaer Potter (NAMBA, 2009, p.08). Pra este autor, os avanços da ciência opreocupava,

por esta razão, apresentou um ―novo conhecimento‖, que instigasse as pessoas a refletirem

sobre as consequências positivas ou negativas dos avanços da ciência sobre a vida

(JUNQUEIRA, 2011, p.08). Loureiro citando Leo Pessini, define a bioética: ―É o ramo da

ciência que estuda como as descobertas científicas devem ser utilizadas com o respeito ao

princípio da dignidade da pessoa humana (2009, p.03).‖

Em relação ao princípios da bioética temos o do benefício/não malefício:

Benefício significa ―fazer o bem‖, e não malefício significa ―evitar o mal‖. Desse

modo, sempre que o profissional propuser um tratamento a um paciente, ele deverá

Page 479: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

479

reconhecer a dignidade do paciente e considerá-lo em sua totalidade (todas as

dimensões do ser humano devem ser consideradas: física, psicológica, social,

espiritual), visando oferecer o melhor tratamento ao seu paciente, tanto no que diz

respeito à técnica quanto no que se refere ao reconhecimento das necessidades (...)

do paciente (JUNQUEIRA, 2011, p.18).

Através da ótica da bioética, a aceitação da C. Sativa para fins medicinais, insere-se no

princípio referido no parágrafo anterior, a legalização da maconha é uma opção plausível, pois

como foi discutido no início deste artigo, o uso da Cannabis, em alguns pacientes mostrou-se

benéfico no tratamento de algumas doenças, claro que como qualquer outro remédio, deve ter

acompanhamento médico.

Em relação a essa problemática, um caso teve grande repercussão na mídia, o da

menina de quatro anos de idade, que sofre de encefalopatia epilética infantil precoce tipo 2.

Através de um tratamento com um medicamento à base de Canabidiol (CBD), derivado da

maconha, houve a diminuição na quantidade de convulsões por dia, proporcionando uma

maior qualidade de vida para a criança.

O juiz federal César Bandeira Apolinário, da Terceira Vara Federal do Distrito

Federal, liberou o medicamento, através de uma decisão liminar, determinando que a

ANVISA entregasse à família o medicamento derivado da maconha, para que a menina

continuasse o tratamento. Ao deferir tal decisão, o juiz Apolinário utilizou-se de um dos

princípios da bioética, o de justiça, englobando o conceito de equidade que representa a ideia

de dar à pessoa aquilo que lhe é devido, segundo suas necessidade, confirmando o conceito de

que as pessoas são diferentes, em vários aspectos, principalmente em suas necessidades

(JUNQUEIRA, 2011, p.20).

O biodireito e a bioética estão intrinsecamente ligados, como afirma Namba (2009,

p.14) citando José Alfredo de Oliveira Baracho:

O biodireito é estritamente conexo com à bioética, ocupando-se da formulação das

regras jurídicas em relação à problemática emergente do processo técnico-científico

da biomedicina. O biodireito questiona sobre os limites jurídicos da licitude da

intervenção técnico-científica possível.

Diante disso, vemos a omissão do direito quanto às pesquisas feitas com a maconha,

que generaliza seus efeitos nocivos, faltando uma fundamentação técnica, pois como qualquer

tratamento feito por meio de drogas lícitas irá ter efeitos colaterais, ou seja, os argumentos

utilizados para a proibição da maconha, não são os mesmos usados para as drogas lícitas,

como o álcool e o tabaco, que possui um grau de nocividade maior do que a maconha

Page 480: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

480

(MENDES, 2011, p. 53), mostrando que o discurso da proibição é meramente mais

moralizador e cultural do que científico.

9 DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIREITO À SAÚDE

Os Direitos Fundamentais podem ser traduzidos por ―direito que tem força jurídica

constitucional‖, isto porque baseado na fundamentalidade formal, o direito só se caracteriza

como fundamental se for garantido por normas que possuam a força jurídica própria da

supremacia constitucional, também manifesta a liberdade individual, presente nos textos

constitucionais:

Direitos Fundamentais são direitos públicos-subjetivos de pessoas (física ou

jurídica), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter

normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do

poder estatal em face da liberdade individual (DIMOULIS E MARTINS, 2012, p.

40).

Sendo um direito social fundamental, o direito à saúde está previsto no art. 196 da

Constituição Federal:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas públicas

sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e

ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e

recuperação.

Destarte, o art. 6º da nossa Carta Magma ao englobar o direito à saúde como um

direito social, corroborou para identificarmos como um direito fundamental do indivíduo.

Diante disto a Declaração Universal do homem, acordado em 1948 e do Pacto Internacional

de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1976, delibera que: ―Os Estados Partes no

presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa ao desfrute do mais alto nível possível

de saúde física e mental‖ (DIMOULIES E MARTINS, 2012, p.34).

A Organização mundial de Saúde, em sua carta de princípios, de abril de 1948, define

saúde como o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas

ausência de enfermidade (ALVES, 2012, p. 99).

Se cabe ao Estado garantir a saúde de todos, bem como reduzir os agravos de algumas

doenças e culminar maneiras de recuperação da saúde do cidadão, por que não legalizar uma

droga que pode ser o diferencial no tratamento de algumas doenças?

Page 481: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

481

10 A LEGALIZAÇÃO DA CANNABIS EM OUTROS PAÍSES

Alguns países como Holanda, Espanha, Estados Unidos, Canadá e Israel liberam a

produção, o cultivo e o consumo, deixando claro que cada país possui restrições de acordo

com a realidade de sua nação. Esses últimos países, legalizaram a maconha para fins

medicinais, tendo programas legais para o cultivo.

Em relação aos Estados Unidos vale salientar que a Agência de Saúde Oficial

Americana (FDA) não valida o consumo da maconha ou de seus sintéticos para fins

terapêuticos, sendo alguns estados que liberam através de seus governos autônomos.

A novidade é a inclusão do país sul-americano, o Uruguai, entre os países que

legalizam a maconha, pois recentemente o pais aprovou um projeto de lei que regula avenda

de maconha, configurando-se como o único país a controlar a venda para os consumidores.

Vale ressaltar que em nenhum país a Cannabis é totalmente legalizada.

O intuito de demostrar países que já regularizaram a maconha não é o de imitarmos

suas políticas, mas sim de estudarmos seus resultados (em relação à legalização da maconha)

e nos espelharmos para encontramos a melhor solução, no que tange à saúde pública, levando

em consideração o biodireito e a bioética.

11. CONCLUSÃO

Neste trabalho abordamos a ideia da legalização da maconha no Brasil com fins

medicinais, ou seja, referimos ao uso da Cannabis como medicamento e não recreação.

Apesar de muitos conservadores afirmarem que o uso dessa planta possui efeitos colaterais,

este argumento não é válido, pois como qualquer outro medicamento existe uma contra

indicação. Dessa forma, concluímos que a maconha pode sim, contribuir de forma

significativa para o desenvolvimento de tratamentos de doença, e que sua legalização não tem

respaldo científico.

Assim, afirmamos que o objetivo proposto foi alcançado, proporcionando informações

e conhecimento científico acerca da maconha, mostrando relevância do tema, que envolve o

discurso médico-jurídico, caracterizando como uma questão a ser mais profundamente

discutida pelo biodireito e pela bioética.

Uma das alternativas para a problemática da legalização da maconha com fins

medicinais seria a criação Agência Brasileira da Cannabis, que permita seu uso clínico e

Page 482: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

482

medicinal, ideia já bastante discutida por cientistas, como Dr. Elisaldo Luiz de Araújo Carlin,

um dos pioneiros do estudo da maconha no Brasil.

Este trabalho foi importante para o aprofundamento e compreensão tanto do

conhecimento científico da maconha, quanto os assuntos em que o biodireito e a bioética

tutelam, também a evolução do ordenamento jurídico na Lei de Drogas e a problemática da

norma penal em branco, fazendo-nos refletir sobre nosso ordenamento jurídico e a sua relação

com os acontecimentos sociais.

REFERÊNCIAS

ALVARENGA, Carlos Leonardo Costa; GOMES, Nathália Christina Caputo. A

descriminalização ou legalização das drogas? Uma breve análise com base nos princípios

filosóficos dos ultilitarismo e o princípio da intervenção mínima. Jornal Eletrônico. Ano V

–Edição I –Maio 2013.

ALVES, Adriana da Fontoura. A Inconstitucionalidade da Descriminalização da Maconha

na República Federativa do Brasil. Revista Direito Público –IDP. Ano IX –Nº51 – Maio-

Jun 2013.

ARAÚJO, Luiz Felipe. Principais mudanças pela Lei nº 11.343/2006: uma análise

comparativa. Jus Navegandi, Teresina, ano19, n. 3885, 19 fev. 2014. Disponível em:

http://jus. com. br/artigos/26744. Acesso em: 18 abr. 2014.

__________. Associação Brasileira de Psiquiatria. Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Abuso e Dependência de Maconha. 2012. Associação Médica Brasileira e Conselho Federal

de Medicina.

BARRETO, Luiz André A. S. A maconha (Cannabis Sativa) e seu valor terapêutico. 2002.

37f. Monografia apresentada à Faculdade de Ciências da Saúde do Centro Universitário de

Brasília como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Licenciado em Ciências

Biológicas. Brasília – 2002.

BARROS, André; PERES, Marta. Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas

escravocratas. Revista Periferia. 2011. Volume III, número 2. Disponível em: http://www.e-

publicacoes.uerj.br/index.php/periferia/article/view/3953/2742. Acesso: 17/04/2014.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,

DF: Senado 1988.

DIMOULIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais/ DimitriDimoulis, Leonardo

Martins. -4 ed. Ver., Atual. – São Paulo: Atlas, 2012.

GOMES, Karina. Uso medicinal da maconha no Brasil esbarra na legislação. Disponível

em: http://www.dw.de/uso-medicinal-da-maconha-no-brasil-esbarra-na-

legisla%C3%A7%C3%A3o/a-17450145. Acesso: 20/04/2014.

Page 483: Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

483

JUNQUEIRA, Cilene Rennó. Bioética: conceito, fundamentação e princípios. In: RAMOS,

D.L.P. Bioética e ética profissional. Rio de Janeiro: Granabara-Koogan, 2011, p. 01-23.

LOPES, Adriana Dias. Maconha faz mal sim. Maconha. As novas descobertas cortam o

barato de quem acha que ela não faz mal. Editora Abril- edição 2293- Ano 45 – nº 44.

p.96-104. 2012. Disponível em: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acesso:

20/04/2014.

LOUREIRO, Claudia Regina de Oliveira Magalhães da Silva. Introdução ao Biodireito. –

Atual. Até a decisão do STF –ADI 3510 – São Paulo: Saraiva, 2009.

MARCOLIN, Neldsom; ZORZETTO, Ricardo. ElisaldoCarlini: O uso medicinal da

maconha. Edição 168 - Fevereiro de 2010. Disponível em:

http://revistapesquisa.fapesp.br/2010/02/28/elisaldo-carlini-o-uso-medicinal-da-maconha/.

Acesso: 17/04/2014.

MENDES, Brahwlio Soares de Moura Ribeiro. Inovações científico-tecnológicas e o vício

em ideias: a inconstitucionalidade da inserção do THC na Portaria n. 344 da ANVISA.

ALETHES- UFJF, 2011 –nº 3 –Ano 2. Disponível em:

http://periodicoalethes.com.br/media/pdf/3/inovacoes-cientifico-tecnologicas-e-o-vicio-em-

ideias-a-inconstitucionalidade-da-insercao-do-thc-na-portaria-344-da-anvisa.pdf. Acesso:

04/05/2014.

MOURINHO, Mónica. “Cannabis e canabinóides: uma terapia complementar no

controlo sintomático de doentes, em cuidados paliativos”. Disponível em:

http://www.chbalgarvio.min-saude.pt/NR/rdonlyres/B85D81E0-0C79-426E-9930-

6CED2DFD0F7E/25351/Artigo_Cannabis_Canabinoides.pdf. Acesso em: 24/04/2014.

NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de Bioética e Biodireito/ Edison TetsuzoNamba. São

Paulo: ATLAS, 2009.

OLIVEIRA, Eduardo Menezes de. Legalização da maconha. Liberdade e consciência.

2011. 60f. Trabalho de Conclusão apresentado ao Curso de Graduação em Direito da

Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2011.