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Artigos

A Constituição e a Realidade SocialCristiane Vieira de Mello................................................................................................................ 5

Algumas Considerações sobre o Nome EmpresarialCarla Cristina Vecchi........................................................................................................................ 16

A Necessidade de uma Teoria da Justiça Substantiva comoComplemento à Teoria do Direito PositivoDenis de Castro Halis........................................................................................................................ 21

Aspectos da Terceirização e o Direito do TrabalhoJosé Ribeiro de Campos..................................................... ............................................................. 34

Banco de DadosSergio Martins RstonPatrícia Mariano Quevedo................................................................................................................. 44

Breves Anotações sobre os Crimes FalimentaresVander Ferreira de Andrade............................................................................................................. 55

Direito das Sucessões Brasileiro – Disposições Gerais e Sucessão LegítimaGiselda Maria Fernandes Novaes Hironaka...................................................................................... 61

Guarda Compartilhada: Só Depende de NósDébora Brandão............................................................................................................................... 75

Historiografia Jurídica: Pausânias e a Miragem HelênicaArnaldo Moraes Godoy..................................................................................................................... 83

O Estado Moderno Atual e sua CriseCarlos João Eduardo Senger............................................................................................................. 88

Poluição: Considerações Ambientais e JurídicasAntônio Silveira Ribeiros dos SantosRenata de Freitas Martins.................................................................................................................. 97

Princípios Democráticos na ConstituiçãoAntonio Celso Baeta Minhoto.......................................................................................................... 103

Poder Cautelar Genérico JurisdiccionalEduardo M. Martinez Alvarez......................................................................................................... 113

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D ireito E x p e d i e n t eRevista IMES Direito - Uma publicação do Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul

Ano II – n. 5julho/dezembro 2002

Diretor da MantenedoraMarco Antonio Santos Silva

Vice-Diretor da MantenedoraMarcos Sidnei Bassi

ReitorLaércio Baptista da Silva

Pró-Reitor de GraduaçãoCarlos Alberto Macedo

Pró-Reitor de Pós-Graduação e PesquisaRené Henrique Licht

Pró-Reitor Comunitário e de ExtensãoJoaquim Celso Freire Silva

ProduçãoPró-Reitoria Comunitária e de Extensão

Coordenadoria de Comunicação

Coordenador EditorialJosé Maria Trepat Cases

Conselho EditorialÁlvaro Villaça Azevedo

Armador Paes de AlmeidaCândido Rangel Dinamarco

Francisco Léo MunariGiselda Maria Novaes Hironaka

Nelson MannrichRui Geraldo Camargo Viana

Teresa Ancona LopesVicente Grecco Filho

Conselho TécnicoProfessores do Curso de Direito

Coordenador do Cursode Direito

José Maria Trepat Cases

Jornalista ResponsávelRoberto Elísio dos Santos

MTb 15637

Produção EditorialRosemeire Carlos Pinto

Produção e Impressão GráficaHM Indústria Gráfica e Editora Ltda.

Tiragem: 1.500 exemplares

Revista IMES DireitoAv. Goiás, 3.400

São Caetano do Sul - SP - BrasilTel.: (11) 4239-3259Fax: (11) 4239-3216

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A CONSTITUIÇÃO E A REALIDADE SOCIAL

Cristiane Vieira de MelloEspecialista em Direito Civil pela FMU.

Mestra em Direito Processual pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.Doutoranda em Direito do Estado – área de concentração Direito Constitucional

pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.Procuradora do Município de Diadema.

Professora de Processo Civil, Prática Civil e Processo Penal no Centro Universitário deSão Caetano do Sul – IMES.

No presente trabalho objetivamos traçar noçõesbásicas sobre o Constitucionalismo.Avaliamos questões polêmicas tais como, rigidezconstitucional e a escrituração da Lei Maior; PoderConstituinte: natureza Jurídica, espécies, titularidadee legitimidade para, ao final, refletirmos sobre averdadeira eficácia da Norma Constitucional Brasileirano tocante à Governabilidade.

Palavras-chave: Constituição brasileira, realidadesocial, constitucionalismo, governabilidade.

This present work has the aim of outlining fundamentalconcepts about the constitutionalism. Polemic issuessuch as the Constitutional Rigor and the developmentof the Major Law; Constituent Power: juridical nature,species, ownership and legitimacy were evaluated.In conclusion, we reflected about the truthful validity ofthe Brazilian Constitutional Rule in concerning toGovernability.

Keywords: brazilian constitution, social reality,constitutionalism, governability.

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INTRODUÇÃOA proposta deste estudo é destacar a importância

da Constituição enquanto Lei Maior que rege o EstadoModerno, organizando-o em busca do Bem Comum.

Em um primeiro momento, em exposiçãoabreviada, a questão do Constitucionalismo, movimentohistórico de repercussão política, social e principalmentejurídica, que estabelece um verdadeiro marco para o perfildos Estados constitucionais nos moldes atuais e de novasperspectivas para o cidadão.

Outra questão a ser abordada é a conceituaçãodo objeto maior de nosso estudo: a Constituição.

Enfrentaremos também matéria atinente àConstituição antes mesmo de sua formação: o PoderConstituinte, suas espécies, atributos e legitimação.

Concluindo o nosso estudo, avaliaremos generica-mente a eficácia do documento constitucional.

Da análise ora proposta, constataremos, teorica-mente, se o estatuto jurídico do fenômeno político,1

instrumento de e da democracia, imprescindível naorganização do Estado e decorrente do consenso social,expressa efetivamente as convicções e as necessidadescomuns, compartidas pelos cidadãos e a sociedade.

CAPÍTULO IDO CONSTITUCIONALISMO

Muitas vezes o estudioso da Constituição fica presoà atualidade ao teor do documento moderno e, em suaapreciação, não se atém a todo o processo históricoevolutivo que o ensejou.

Chamamos a esse processo dinâmico que nos auxi-lia no entendimento do Direito Constitucional GeralModerno de Constitucionalismo.

O Constitucionalismo apresenta traços marcantes,uma vez que busca limitar o exercício do poder absolutodos dominantes por meio de um sistema fixo de regras,consagra os direitos e as garantias dos subordinados,como nos descreve Karl Loewenstein.2

Ao pensarmos em Constitucionalismo, rapida-mente a França emerge de nossa lembrança estudantil,mas é indispensável colocar em foco o estudo de KarlLoewenstein3 sobre o assunto.

1 J. J. Canotilho. Direito constitucional.2 Teoría de la Constitución – Traducción y estudio sobre la obra por Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ariel.3 Idem.4 Curso de direito constitucional, 8 ed. São Paulo: Saraiva, 1979.5 Teoría de La constitución, cit.6 Princípios de direito constitucional geral. Origens e caracteres do moderno constitucionalismo. Trad. Maria Helena Diniz.

São Paulo: RT, 1977.

Esclarece que o povo hebreu foi o primeiro apraticar o Constitucionalismo por meio do regimeteocrático. Acresce revelando-nos que para os hebreus“... el dominador, lejos de ostentar un poder absoluto yarbitrario, estaba limitado por la ley del Señor, que sometíaigualmente a gobernantes y gobernados” (g.n.).

Vale, neste momento, recordar uma passagem daobra de Manoel Gonçalves Ferreira Filho4 sobre os gregos,segundo exemplo de povo a praticar o Constitucionalismo,na concepção do citado Karl Loewenstein.

Para o cientista jurídico nacional, “... na Grécia eem Roma as leis de conteúdo constitucional não sedistinguiam formalmente das demais e se manifestavamsobretudo nos costumes, alternando-se pelos órgãoslegislativos ordinários ou pela invenção individual”.(Licurgo, Solon)

Apesar de não haver distinção entre as leisconstitucionais e ordinárias na Grécia, no entender deManoel Ferreira Filho, Karl Loewenstein5 destaca que osgregos criaram, no passado remoto, um regime políticoabsolutamente constitucional.

No seu entender, “esta nación excepcionalmentedotada, alcanzó casi de un solo paso el tipo más avanzadode gobierno constitucional: la democracia constitucional.La democracia directa de las cidades-Estado griegas en elsiglo V es el único ejemplo conocido de un sistema políticocon plena identidad entre gobernantes y gobernados, en cualel poder político está igualmente distribuído entre todos losciudadanos activos, tomando parte en el todos por igual...todas las instituciones políticas de los griegos reflejan serprofunda aversión a todo tipo de poder concentrado yarbitrário, y su devoción casi fanática por los princípiosdel Estado de derecho de un orden (eunomía) reguladodemocrática y constitucionalmente, así como por laigualdad y la justicia igualitária (isonomía)”. (g. n.)

De conseguinte, impõe-se à conclusão de que oConstitucionalismo possui raízes bastante antigas,fincadas no tempo e no histórico das civilizações.

Cumpre consignar também os ensinamentos deSanti Romano6 sobre a origem do Constitucionalismomoderno. Constata o estudioso que o movimentoconstitucionalista há séculos vigorava na Inglaterra.

Dinâmica de relevo político, social e jurídico, oConstitucionalismo apresenta-se de forma escalonada

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nas estruturas sociais, ora sob versão clássica, oramoderna. Mesmo o Constitucionalismo modernoapresenta-se na sociedade assim classificado, como, porexemplo, o da França, cujo florescimento só ocorreu noséculo XVIII, apesar da tentativa de adoção de seusinstitutos fundamentais durante o século XVI, resultandoinfrutífera diante das tendências filosóficas e políticas quevigoram na época. Esse assunto será melhor evidenciadoposteriormente.

Com a Revolução Francesa, aflora e amadurecena França o Constitucionalismo, embora já tivesse sido,enquanto dinâmica social, objeto de prática de outrospovos em tempos passados.

Importa não deslembrar o caminho trilhado peloConstitucionalismo Moderno entre os continenteseuropeu e americano.

Inicialmente encontramos as noções básicas sobrealguns dos institutos fundamentais do Constitucio-nalismo na Inglaterra.

Reitera-se aqui a observação já feita sobre o DireitoInglês, não escrito, costumeiro, antigo e famoso, muitorespeitado por sua lenta e progressiva evolução. Principalveículo das características do Constitucionalismo, suasbases transmigraram de seu país de origem por meio dasconquistas e das colonizações próprias da época. Aimitação legislativa também foi o processo utilizado pelospaíses colonizados que se moldaram no exemplo inglês.

A estrutura inglesa passou a orientar a estruturaçãodo ordenamento maior de outros Estados ou por eles foiplenamente adotada, a exemplo dos Estados Unidosda América que, com adaptações, conceberam eestabeleceram o seu próprio ordenamento.

Apresenta a legislação inglesa princípiosinovadores e estruturais de uma vida digna para a classedominante e dos dominados. Talvez, por esse motivo,Jorge III refere-se à Constituição Inglesa como “a maisperfeita das criações humanas”. 7 Outros doutrinadoresainda demonstram a sua admiração para com oordenamento inglês e a ele se referem como “um mistériosagrado da ciência governamental”.8

Encontra-se propagação das idéias inglesas emtextos importantes como a Constituição Americana de1787, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem edo Cidadão, de 1789, e em alguns Estados não europeus.

Historicamente temos que, durante o século XVI,os monarquistas franceses pretenderam imitar o modeloconstitucional inglês. Tal intento restou vão diante da

7 Idem.8 Idem.9 Princípios de Direito Constitucional Geral, cit.10 Constituição da República Federativa do Brasil.

difusão das idéias de Bodin na defesa da monarquiaabsoluta, justamente o ponto de contraposição àestrutura que se buscava difundir.

Somente no século XVIII, o ConstitucionalismoInglês passou a ser objeto de novo estudo por parte dosfranceses e a obra de Montesquieu, L’espirit des lois(1748), em muito contribuiu para a eclosão e imitaçãodas instituições inglesas na França.

Não só o ordenamento inglês foi fonte deinspiração para os franceses, que também se pautaramno modelo jurídico norte-americano.

Durante a fase colonial, os Estados Unidospossuíam ordenações que eram verdadeiras cópias desua metrópole. Com o advento da independência dacolônia, o povo americano resolveu adotar sua próprialegislação, com afinidades significativas com a que antesvigia, decorrência do Direito Inglês.

Em maio de 1776, o Congresso da Filadélfiapropôs a elaboração de Constituições próprias,momento em que foram redigidas as primeiras cartasconstitucionais, “uma ordenação simplificada queconserva os caracteres fundamentais, não obstanteprofundas modificações e adaptações da língua inglesa,que, ao contrário, (...), estava dispersa numa infinidadede textos e documentos acumulados pelos séculos e,ainda mais, nas tradições e costumes”.9

Indiscutível que as premissas do direitoconstitucional inglês se propagaram para outrocontinente, o americano, que as ampliou e adaptou.Repetem-se fundamentos básicos que, melhorados,retornam ao continente de origem, o europeu, eclodindoda França para o mundo.

Resumindo as considerações anteriores everificando sua existência em nosso modelo nacional,temos que a autolimitação do regime absoluto por partedos soberanos é idéia utópica. O Constitucionalismoemerge justamente para limitar o poder absoluto e naconsagração dos direitos das garantias individuais,elementos essenciais em qualquer documento estruturaldos Estados modernos.

O Estado brasileiro é Constitucional. Vive sob aégide de uma Constituição e, inegavelmente, em nossodiploma maior encontramos a limitação do poder,através da tripartição de suas funções encontradas noart. 2°, que dispõe, in verbis: “São Poderes da União,independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, oExecutivo e o Judiciário”.10

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Em nosso ponto de vista, também encontramoslimitados os poderes dos dominantes no parágrafoúnico de nosso Texto Maior, quando expressa que“todo poder emana do povo, que exerce por meio derepresentantes eleitos ou diretamente, nos termos destaConstituição”. (g. n.)

É de notar, em face do artigo acima transcrito,que a “lei constitucional” ao tempo estrutura, organizae limita os poderes dos soberanos. Mostra-se, portanto,como garantia da garantia.

Ao definir as competências dos poderes legislativo,executivo e judiciário, a Constituição também estádelimitando os poderes dos dominantes e sagrando osdireitos dos cidadãos, bem como suas garantias. Esteúltimo tópico, insistimos, é extremamente relevante,senão mais que o primeiro, para traçar o perfil de umEstado Constitucional.

O art. 5° de nossa Constituição protege os Direitose as Garantias Fundamentais dos cidadãos brasileiros.

Ainda a respeito do assunto, impende notar que deoutros artigos incertos na Carta Magna decorrem,implícita ou explicitamente, garantias para os cidadãos quedevem ser respeitadas por todos, sem qualquer distinção, eque significam limitações para os detentores do poder.

Cristalino, pois, o respeito do Estado Brasileiro aoConstitucionalismo que, por meio da colonização e daimitação, adotou os traços marcantes do movimento emestudo.

CAPÍTULO IIA CONSTITUIÇÃO ESCRITA ERÍGIDA E O CONSTITUCIONALISMO

Não se pode confundir o Constitucionalismo comas constituições escritas, modelo.

Não há como reduzir o Constitucionalismo àescrituração do Texto Constitucional.

Os traços tipificadores do Constitucionalismo,como já deixamos claro no capítulo anterior, fundam-se na separação dos poderes e na definição dos direitos edas garantias fundamentais dos cidadãos.

DA CONSTITUIÇÃO ESCRITAA documentação do Texto Maior produz

ilusoriamente a impressão de estabilidade da legislação.Tal procedimento, que consiste em resumir em cartas

ou estatutos fundamentais o Direito Constitucional,surgiu na América do Norte e na França.

Está em pauta o sentido da terminologia jurídicautilizada para compreender o que deve ser tido porconstituição escrita e não escrita.

Na linha de José Afonso da Silva,11

“considera-se escrita à constituição, quandocodificada e sistematizada num texto único, elaboradoreflexivamente de um jato por um órgão constituinte,encerrado todas as normas tidas como fundamentaissobre a estruturação do Estado, a organização dospoderes constituídos, seu modo de exercício e limitesde atuação, os direitos fundamentais (políticosfundamentais, coletivos, econômicos e sociais). Nãoescrita, ao contrário, é a constituição cujas normas nãoconstam de um documento único e solene, mas sebaseia principalmente nos costumes, na jurisprudênciae em convenções e em textos constitucionais esparsos,como é a Constituição inglesa”.

De conseguinte, impõe-se a conclusão: aconstituição inglesa, consuetudinária, composta portextos esparsos, portanto não escrita, não afastou oConstitucionalismo, pelo contrário. Há que reconhecero berço do Constitucionalismo moderno no DireitoInglês, fonte de uma estrutura estatal modelo, veículode movimento que hoje é adotado pela maioria dosestados modernos. Não parece, ante do exposto, que asistematização do ordenamento jurídico que estruturao Estado em um único texto seja sinônimo deConstitucionalismo.

É importante lembrar o posicionamento de SantiRomano12 sobre o assunto:

“A Inglaterra, embora Cromwell dela tivessetido a idéia, nunca teve uma constituição escrita, salvoalguns textos fragmentários nos quais estãoconsagrados seus princípios basilares; entretanto,quando a ordenação inglesa foi transplantada paraoutros lugares, no sentido e nos limites que serãomencionados, prevaleceu por exemplo, na Américado Norte e na França, o sistema de redigir o direitoconstitucional, resumindo-o em cartas ou estatutosfundamentais. Sistema este que apresenta muitasvantagens e desvantagens. Tais cartas ou estatutospretendem ser concisos, mas completas codificações dasconstituições de cada um dos Estados; porém, um examemesmo superficial demonstra que esta não tem sido

11 Curso de direito constitucional positivo, cit.12 Princípios de direito constitucional geral, cit.

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e não pode ter sido uma ingênua ilusão, a qual, mal seesvai, e causa de críticas que acabam por dirigir-se nãosó ao texto do qual a constituição deveria resultar, mastambém a própria substância da constituição, o que,certamente, não contribui para a sua estabilidade. Pelocontrário, na concepção que inspirou as primeirascartas constitucionais, estas eram consideradas comosolenes contratos estipulados entre os componentesda sociedade política ou entre o príncipe de um lado eo povo do outro, quase como uma renovação dooriginal e do mítico contrato social, do qual se teriadessumido um caráter sagrado e de intangibilidade.Com a queda do dogma do Estado de natureza e com adissipação das teorias contratualistas, revigorando oprincípio da unidade orgânica do Estado, asconstituições escritas não são hoje consideradas senãocomo uma categoria de leis, ainda que tenham o mesmocaráter e, às vezes, eficácia diversa e maior do que a dasleis ordinárias. Assim mesmo, sobreveio a opiniãomuito difundida de que, principalmente, emconsideração de sua intangibilidade, proclamava porcerto a sua imodificabilidade e perpetuidade. Pouco apouco, o princípio das constituições rígidas foi-seatenuando, na teoria e na prática, e não é indubitável quetal princípio possa preservar uma constituição dastendências reformadoras e mesmo revolucionárias. Caem,igualmente, muitas outras ilusões. Como aquela quepretende que uma carta, redigida de modo claro e breve,pudesse difundir entre os cidadãos o conhecimento eo amor por seus direitos e deveres como uma espéciede catecismo civil colocados à mão de todos.

O caráter consuetudinário do direito públicoinglês e a multiplicidade de seus documentos escritosbeneficia a sua estabilidade, opondo aos inovadores eaos revolucionários uma resistência longa e continuadade trincheiras; o direito constitucional escrito, pelocontrário, apresenta-se como um fácil e próximo alvoaos seus adversários, quase um convite e um concursoperpétuo a quem souber escrever uma melhor. Comefeito, diferentemente de uma Constituição que temdado lugar a uma longa história, que não se podepensar em cancelar ou refazer de uma só vez, umaconstituição escrita auxilia a difundir a idéia utópica eperigosa de que uma constituição possa compilar-se emum dia, uma hora, e que seja, por isso, fácil de sersubstituída por outra que surgiu na mente de um felizmomento de capricho.

Seja como for, o sistema de constituição escrita,ainda que sejam modificadas as suas bases doutrinárias,não observantes seus defeitos e desvantagens, continua aser seguido e aparece, indissoluvelmente, ligado à forma

do constitucionalismo hodierno, em contraposição ao fatode que as constituições precedentes eram todas, salvoalgumas exceções particulares, prevalentementeconsuetudinárias. Nem poderia ser diversamente:as constituições que trazem na sua origem ummovimento político mais ou menos revolucionáriodevem ser elaboradas por uma assembléia ou porqualquer outro órgão constituído, devem necessaria-mente assumir aquela forma”.

Está claro, pois, que a escrituração de umaConstituição nada assegurada, uma vez que os exercentesdo poder podem simplesmente ignorar o seu conteúdo,de forma a observá-la como mera folha de papel, semqualquer aplicabilidade.

DA CONSTITUIÇÃO RÍGIDAJosé Afonso da Silva13 nos ensina o que devemos

entender por constituição rígida:

“rígida é a constituição somente alterávelmediante processos, solenidades e exigências formaisespeciais, diferentes e mais difíceis que os de formaçãodas leis ordinárias ou complementares. Ao contrário,a constituição é flexível quando pode ser livrementemodificada pelo legislador segundo o mesmo processode elaboração das leis ordinárias. Na verdade, a próprialei ordinária contrastante muda o texto constitucional.Semi-rígida é a constituição que contém uma parterígida e outra flexível, como fora a Constituição doImpério do Brasil, à vista de seu art. 178.

A estabilidade das constituições não deve serabsoluta, não pode significar imutabilidade. Não háconstituição imutável diante da realidade socialcambiante, pois não é ela apenas um instrumento deordem, mas deverá sê-lo, também, de progresso social.Deve-se assegurar certa estabilidade constitucional,certa permanência e durabilidade das instituições,mas sem prejuízo da constante, tanto quanto possível,perfeita adaptação das constituições às exigências doprogresso, da evolução e do bem-estar social. A rigidezrelativa constitui técnica capaz de atender a ambas asexigências, permitindo emendas, reformas e revisões,para adaptar as normas constitucionais às novasnecessidades sociais, impondo processo especial emais difícil para essas modificações formais que oadmitido para a alteração da legislação ordinária(Meirelles Teixeira, Lições Apostiladas).

Cumpre, finalmente, não confundir oconceito de constituição rígida com o de constituição

13 Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 41.

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escrita, nem o de constituição flexível com o deconstituição histórica. Tem havido exemplos deconstituições escritas flexíveis, embora o maiscomum é que sejam rígidas. As constituiçõeshistóricas são juridicamente flexíveis, pois podemser modificadas pelo legislador ordinário, mas,normalmente, são política e socialmente rígidas.Raramente são modificadas”.

Conforme a doutrina que acabamos de transcre-ver, não há vínculo algum entre a idéia de Constituciona-lismo e a de constituição rígida, mero procedimentoescolhido pelo poder constituinte na elaboração dotexto maior ligado à possibilidade de alteração do textoconstitucional.

É preciso observar o exemplo da própria consti-tuição inglesa, costumeira, e, conforme já observamos,modelo vetor dos institutos consagrados pelo Constitu-cionalismo moderno.

Passemos agora a nos preocupar com o conceitode Constituição, objeto maior de nossa atenção.

CAPÍTULO IIIDA CONSTITUIÇÃO

O polêmico conceito de Constituição foi-nosimposto, conforme vimos, pela Revolução Burguesa.

Cumpre-nos analisar o termo Constituição.Em uma rápida consulta ao dicionário,14

verificamos que o vocábulo Constituição pode ter váriossignificados. Nesse sentido:

“1) Ato ou efeito de constituir. 2) Modo porque se constitui uma casa, um ser vivo, um grupo depessoas; organização. 3) Lei fundamental num Estado,que contém norma sobre a formação dos poderespúblicos, direitos e deveres dos cidadãos, etc..., cartaconstitucional”.

José Afonso da Silva15 preleciona em sua obra sera constituição um vocábulo análogo, pois todas as idéiasque decorrem desta palavra demonstram “o modo deser de alguma coisa e, por extensão, de organizaçãointerna de seres e entidades”. Nesse momento conclui oautor que “todo Estado tem constituição que é o simplesmodo de ser do Estado”.

14 Minidicionário Aurélio.15 Curso de direito constitucional positivo, cit.16 Curso de direito constitucional, cit.17 Manual de direito constitucional, 1996.18 Escritos de direito constitucional.

Considerada Lei Fundamental do Estado, sob a óticado estudioso e cientista jurídico, a Constituição é o “sistemade normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula aforma do Estado, a forma de seu governo, o modo deaquisição e exercício do poder, o estabelecimento de seusórgãos e os limites de sua ação. Em síntese, a constituiçãoorganiza os elementos constitutivos do Estado”.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho entende que aconstituição pode ser observada sob um ponto de vistagenérico e, no sentido geral, é a “organização de algumacoisa”.

Ressalta o mestre que a acepção conferida aotermo “não pertence apenas ao vocabulário do DireitoPúblico ... é ... termo que se aplica a todo grupo, a todasociedade, a todo Estado. Designa a natureza peculiarde cada Estado, aquilo que faz este ser o que é; concluindoque nunca haverá Estado sem constituição”.

Ocorre que, a par do conceito geral, ManoelGonçalves Ferreira Filho16 destaca a existência de umconceito jurídico de Constituição “freqüentemente usadopara designar a organização jurídica fundamental ...”organização que, no diapasão de Kelsen, é o “conjunto denormas positivas que regem a produção do direito, obrado poder”.

Para Jorge Miranda,17 a Constituição pode serestudada por ângulos em sentidos diversos. Em sentidoformal é um “complexo de normas formalmentequalificadas de constitucionais e revestidas de força superiora de quaisquer outras normas”, o que vale dizer um sistemanormativo merecedor de relativa autonomia; acarretauma consideração hierárquica ou estruturada da ordemjurídica, ainda quando dela não se reterem todas asconseqüências. Em sentido material, a Constituição,conceituada pelo mesmo autor, é “o estatuto do Estado,seja este qual for, seja qual for o tipo constitucional deEstado”. É neutro esse conceito que apresenta o autor.

Konrad Hesse18 observa a constituição como “oordenamento jurídico fundamental da comunidade”que fixa os princípios que direcionam e formam aunidade política e que devem assumir as tarefas doEstado, limitando assim, a ordem de vida estatal, baseem que se assenta. Documento composto de normasdirigidas à conduta humana, que assegura a estabilidadeda vida em sociedade e em constante mutação por servirà comunidade.

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Para Eduardo Garcia Enterria, “la Constitución esuna norma jurídica y no cualquiera, sino la primera entretodas, lex superior, aquella que sienta los valores supremosde un ordenamiento y que desde esa supremacía es capazde exigir cuentas de erigirse en el parámetro de validez detodas las demás normas jurídicas del sistema”.

Celso Bastos19 verifica a palavra Constituição comotermo equívoco e não análogo, da mesma forma quealguns autores aqui citados. Observa o Professor ser ovocábulo “constituição de difícil conceituação. É umtermo equívoco, que se presta a diversos significados.Conforme se faça variar a sua abrangência, para abarcareste ou aquele campo da realidade, assim tambémvariará a área de estudo do Direito Constitucional”.

Resultam do exposto anteriormente as váriasacepções propostas pelo cientista:

1. A Constituição pode ser observada num sentidoatécnico muito amplo, equivalendo à “maneira de serde qualquer coisa, sua particular estrutura”. Nessaacepção, todo e qualquer ente tem sua própriaconstituição. Fala-se, assim, da constituição de umacadeira, um planeta, do homem.

2. Sob o ponto de vista material, a Constituição é obser-vada através das “forças políticas, econômicas, ideo-lógicas etc. que conformam a realidade social de umdeterminado Estado, configurando a sua particularmaneira de ser”.

3. A constituição, em sentido substancial, é estudadacomo um “complexo de normas, regras ou princípiosque objetivam a estruturação do Estado, a organizaçãode seus órgãos supremos e a definição de suascompetências. ... É um complexo de normas jurídicasfundamentais, escritas ou não, capazes de traçar linhasmestras de um dado ordenamento jurídico”.

4. Constituição em sentido formal é “um conjunto denormas legislativas que se distingue, das não-constitucionais em razão de serem produzidas por umprocesso legislativo mais dificultoso, vale dizer, umprocesso formativo mais árduo e mais solene”.

Como pudemos perceber, várias são as formas dedelimitar o contorno do documento maior que rege umEstado.

19 Curso de direito constitucional.20 Nelson Saldanha. O poder constituinte. São Paulo: RT, 1986.21 Idem.22 Sahid Maluf. Teoría de la constitución, p. 86. apud José Britto da Cunha. Reformas constitucionais limites do poder constituinte

derivado In: Boletim Informativo da Escola Judicial. Brasília, v. 1, n. 3, 1999.23 Konrad Hesse.

À guisa de ilustração, entendemos que os autoresobservam a Constituição como se fosse um prisma de cristal,uma única peça composta por vários lados e ângulos. Acada conceito elaborado corresponde um ângulo de visãodiferente e, por conseqüência, uma cor, móvel das váriasacepções sobre uma mesma terminologia. No entanto, seeste prisma for observado como um todo, haverá sempre opredomínio da mesma razão.

Forçoso é concluir que a Constituição é uma leique se destaca das demais pelo seu conteúdo. É a LeiMaior de um Estado.

A Constituição é a lei de maior relevo, vistofuncionar como elemento vetor de toda a estruturaEstatal. Composta por princípios e regras jurídicas quedeterminam o modo de ser da instituição que organiza,dispõe quanto ao seu governo, modo de aquisição eexercício do poder, estabelecimento de seus órgãos elimites de sua ação. É uma carta que organiza os elementosdo Estado, bem como os seus objetivos, fundamentos devalidade de todas as demais legislações que vão compor apirâmide jurídica idealizada por Kelsen.

Passemos agora a analisar o poder que funda estedocumento de vital teor a ponto de organizar umEstado: o Poder Constituinte.

CAPÍTULO IVDO PODER CONSTITUINTE

O Poder Constituinte “só se faz notar depois queagiu”,20 é ponto de partida para a criação de uma novaordem jurídica visto estabelecer a Constituição.

Trata-se na verdade de um “poder-para-ação”,21

força, potência, pressuposto fundamental de um novoEstado.

Aparece o Poder Constituinte como expressão deum momento e modernamente exerce uma função desoberania nacional, já que tem o condão de “construir ereconstruir ou reformular a ordem jurídica estatal”.22

Na verdade, o Poder Constituinte “cria o poderpolítico que dará ao ordenamento o seu direito positivo,é um poder criador do poder”.23

Essa capacidade de conferir organização eestruturar inicialmente, originariamente uma ordemjurídica faz com que aproximemos a idéia de Poder

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24 O poder constituinte, cit.24 Idem.26 Poder constituinte e direito adquirido (algumas anotações elementares).27 Uma visão atualizada do Poder Constituinte.28 Apud Pedro Salvetti Neto. Curso de ciência política.

Constituinte da norma fundamental (Constituição) queprojeta a história e as necessidades de uma comunidade,passado, presente e futuro.

O Poder Constituinte pode ser analisado pordiversos focos. Sociologicamente apresenta-se o PoderConstituinte como um poder social que juridicamentesó se faz notar após a sua realização, isso porque funda aConstituição.

Trata-se, na verdade, de uma potência criadora,pressuposto fundamental em um regime constitucionalpor criar a lei maior do Estado.

É interessante notar os ensinamentos de NelsonSaldanha24 sobre o assunto:

“são as Constituições o ponto de referênciamais alto, e a ação ‘constituinte’ o nisus formativus porexcelência das estruturas jurídicas atuais”.

O Poder Constituinte é função da soberanianacional, repete-se, e aparece como sendo a expressãode um momento que cria o poder político e confere aoordenamento o seu direito positivo.

Ainda no diapasão de Nelson Saldanha,25 é o PoderConstituinte “um poder criador do poder”, que aparececom capacidade de organizar conscientemente, passo apasso, a vida de um país.

Implica o Poder Constituinte a participação dohomem em uma liberdade histórica de conquista dafelicidade e bem-estar.

Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho,26 o “PoderConstituinte traduz a autodeterminação, portanto aliberdade de cada povo (ou nação, como queria Sieyès,o que não é exatamente a mesma coisa) ...” O pai dadoutrina do Poder Constituinte que pela primeira vezfoi exposta no seu livro Qu’est-ce que le tiers état?Sutilmente propunha à nação, sugerindo duas idéias:a de que cada comunidade nacional é que deveria ser a“matéria” do Estado que a Constituição conformaria;a de que o interesse da comunidade, vista como umaentidade distinta das gerações que passam, é que deveriaprevalecer”.

O professor Jorge Reinaldo Vanossi,27 ao serentrevistado pelos professores Celso Ribeiro Bastos eGastão Alves de Toledo sobre a manutenção da noçãode Poder Constituinte, elaborada na época da RevoluçãoFrancesa a partir de Sieyès, respondeu sobre a existência

de elementos perduráveis que mantêm a sua total vigênciae outros que requerem um enfoque mais atualizado,acrescenta ainda que “a noção de Poder Constituinteaparece como algo absolutamente necessário para podercompreender-se o tema da distribuição do Poder”, sendoa Constituição manifestação concreta, produto ouresultado dos atos fundacionais do Poder Constituinte.

No conceito de Carl Schimitt,28 Poder Constituinteé “vontade política. É vontade com força e autoridade”capaz de organizar o Estado pela primeira vez ou alterara ordem constitucional anterior que não se prende emtendências ideológicas, princípios inspiradores ouregimes políticos, mas é a aptidão capaz de adotarconcreta decisão de conjunto sobre modo e forma daprópria existência política”.

Em resumo, temos sobre o conceito do PoderConstituinte a mesma opinião já apresentada sobre oconceito de Constituição. Até mesmo por tratar-se dematéria atinente à ciência jurídica, do mundo do deve-ser, muitos conceitos são elaborados de forma a delimitaro contorno do que possamos entender sobre o PoderConstituinte, contudo, a razão fundamental orientadorada análise dos estudiosos é sempre a mesma.

NATUREZA JURÍDICA DO PODERCONSTITUINTE

Uma questão que se impõe e que desencadeiapolêmica é a natureza do Poder Constituinte. Trata-sede um poder de fato que se impõe ou de um poder dedireito que deriva de regra anterior ao Estado novo quebusca organizar?

Duas são as correntes que tratam do assunto:A primeira doutrina entende ser o Poder Consti-

tuinte um poder de fato e que detém autoridade suficientepara ser observado e aceito pela comunidade.

Os doutrinadores que seguem a corrente acimamencionada se inspiram no Positivismo. Entendem quehaverá sempre uma ruptura na atuação deste poder,dado que o Poder Constituinte funda a si próprio e nãoadmite a existência de direito anterior do positivo quelimite a organização da vida estatal.

A Segunda corrente pauta-se na existência de umdireito limitador da atividade do Poder ConstituinteOriginário. Esse direito anterior, pré-existente ao Direito

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Positivo, é o Direito Natural, superior ao direito estatalque consagra a liberdade do homem, portanto um poderde direito e não de fato.

ESPÉCIES E CARACTERÍSTICASDO PODER CONSTITUINTE

Quando pensamos Poder Constituinte, duasfiguras conhecidas vêm à mente:

1. O Poder Constituinte originário, que possui os atribu-tos próprios: é inicial, pois não se funda em outropoder; é base de ordem jurídica, constituinte origi-nário do qual derivam os demais poderes; é autônomo,visto não estar subordinado a qualquer outro poder;é incondicionado, por não estar atado à observânciade qualquer condição ou forma prefixada para quepossa manifestar a sua vontade.

Cumpre-nos questionar o ilimitado o PoderConstituinte originário.

Para responder a tal questão, devemos observar seum poder anterior tem o condão de delimitar ocampo de atuação do Poder Constituinte Originário.

A resposta é afirmativa para os positivistas, masnegativa para os jusnaturalistas.

Para os positivistas não há limites no campo de suaatuação, pois o Poder Constituinte Originário tudopode, inaugura uma nova ordem jurídica sem estaratado a conceitos preconcebidos.

Por outro lado, as jusnaturalistas discordamterminantemente da doutrina anteriormenteapresentada porque nos figura como respaldo paraos positivistas. Os jusnaturalistas encontram oslimites de sua atuação no Direito Natural, principalparâmetro de atuação do Poder ConstituinteOriginário.

2. A outra figura que nos vem à mente é a do PoderConstituinte Derivado, terminologia rechaçadadoutrinariamente, tendo em vista que o PoderReformador não é originário, dele apenas deriva.

Esta posição se coordena perfeitamente com aexplicação de Nélson Saldanha, anteriormenteapresentada: o Poder Constituinte originário é umpoder criador do poder (o instituído).

O Poder instituído (García Pelayo) tem porcaracterística a derivação, conforme já mencionado:decorre de outro poder. É subordinado, poishierarquicamente encontra-se abaixo do PoderConstituinte Originário e é condicionado, visto que

só pode agir no que diz respeito à matéria e formapreviamente estipuladas pelo Poder ConstituinteOriginário.

Resta-nos agora questionar se há limitação paraatuação do Poder Constituinte Constituído (GeorgesBudian) pelo direito positivo.

A conclusão a que chegamos é que há limitações,sim, para o agir do Poder Instituído. Afinal, se oPoder Constituído recebe sua competência do PoderConstituinte Originário, não pode de forma algumaultrapassá-la, sob pena de quebrar a estrutura soberanaque destaca o poder inicial, autônomo, incondicionadoe, para alguns, ilimitado.

Sobre o assunto em pauta, consideram ilimitadoo Poder Constituinte Derivado, ou melhor, Instituído:Duguit, Joseph Barthélemy, Laferrière, Duverger, Vedel,por entenderem que o poder derivado é o poderOriginário que subsiste no tempo e, se dispõe decompetência para declarar regras, pode mudá-las.

Já autores como Schimitt, Burdeau, HariouRecnaséns Siches, Pinto Ferreira, entre outros, compar-tilham a idéia de que, se o poder instituído é criação doPoder Constituinte Originário, deve ficar restrito aospoderes e competências por ele estipuladas, nãopodendo ultrapassar tais limites.

DA TITULARIDADE DO PODERCONSTITUINTE

Outra questão relevante, que se impõe, está ligadaà titularidade dos poderes que estamos estudando.

Conforme já vimos, através de estudos transcritosneste trabalho, realizado por Manoel GonçalvesFerreira Filho, para Sieryès, o titular do PoderConstituinte é a nação. Tal postura, com o tempo, foisendo modificada por meio da dinâmica social.Atualmente, entende-se que o titular do PoderConstituinte Originário é o povo.

A Constituição Federal Brasileira em, seu art. 1°,dispõe que:

Art. 1° (...)Parágrafo único: Todo o poder emana do povo,

que o exerce por meio de representantes eleitos oudiretamente, nos termos desta Constituição.

Ressalte-se que nem sempre o titular do poder équem detém o seu exercício. No modelo brasileiro, opovo pode exercitar o poder diretamente ou por meiode seus representantes eleitos. Neste último caso, quemexercita o poder o figura não na titularidade, mas exerce

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a atividade destacada para o Poder ConstituinteOriginário, é um grupo que exaure a sua atividade coma edição da Constituição.

DA LEGITIMIDADE DO PODERCONSTITUINTE

Quanto à legitimidade do Poder Constituinte,deparamo-nos com outra matéria controversa nadoutrina e no tempo.

Lembramo-nos de que a legitimidade do PoderConstituinte decorre da própria soberania, supremopoder do Estado.

Pautada no consenso, a legitimidade do poder estána conformidade com a opinião pública dominante.Reside, portanto, a legitimidade no consenso, no assenti-mento das decisões de poder que passarão a reger todo onovo Estado por parte dos titulares deste mesmo poder,elemento que lhe confere estabilidade jurídica.

No entanto, uma ressalva deve ser feita no presentetópico. Não há que confundir legitimidade com legalidade.

A legalidade significa haver plena consonância comas leis postas, vigentes. Contudo, as leis vigorantes, emdeterminado espaço e tempo, podem ser ilegítimas pornão derivarem do consenso, gerando do meio organizadoinstabilidade, pois muito embora tenha sido observada alegalidade, a conduta em sua ratio é ilegítima.

Compete-nos agora passar a avaliar a eficácia dasnormas constitucionais, avaliando genericamente odesenvolvimento de nosso Estado em sua governabilidade.

A EFICÁCIA DAS NORMASCONSTITUCIONAIS BRASILEIRASNO TOCANTE À GOVERNABILIDADE

Por derradeiro, cumpre avaliar se a ConstituiçãoBrasileira atende às necessidades gerais de sua sociedade,se contém uma legislação eficaz.

Convém desde logo acentuar que a doutrinanacional não poupa elogios à Constituição Federal de1988, conhecida por Constituição-Cidadã.

No entanto, como explicar a crise política ejurídica que assola o nosso País?

Parece generalizada a tendência ao desrespeito à lei.Seria o caso de questionar todo o processo evolutivo

do Direito Constitucional Geral Moderno pautado noConstitucionalismo que aqui expusemos, de questionaras garantias e os direitos consagrados e preservados doscidadãos, de questionar tripartição das funções do podere se tais processos ainda se aplicam à nossa sociedade.

Sabemos que a sociedade evolui, que dentro deuma dinâmica social os processos políticos e jurídicostambém progridem. Os conceitos elaborados no séculoXVIII não mais vigoram na forma em que foramdesenvolvidos. Alguns pontos subsistem imodificados,contudo, a Constituição de 88, produto da atividade dePoder Constituinte Originário, vem sendo totalmenteretalhada pela atividade do Poder Instituído, que nemsempre observa as limitações impostas por sua próprianatureza e muitas vezes exorbita de forma a ferir esseselementos básicos do Constitucionalismo.

Isso acontece em um Estado tido por “provisório”,onde a atividade do Poder Executivo ultrapassa os limitesdo equilíbrio. Medidas provisórias, forma de exceçãona criação das normas jurídicas, são editadas e reeditadasde forma a aniquilar a atividade do Poder cuja funçãotípica consiste na criação de leis.

A adoção de emendas que acabam por ferir certosdireitos e garantias dos cidadãos também afeta a estruturado Estado em suas raízes. Conforme já dissemos, seguimosa corrente em que o Poder Instituído tem sua atuaçãodelimitada na forma e na matéria pelo Poder ConstituinteOriginário.

Tal situação nos leva a crer que a ingovernabilidadedo País decorre não da falta de legitimidade do poder,alicerçado que está no voto direto e dentro da legalidade.

Questionamos a organização das escolhas dopoder, a racionalização de sua atividade bem como aobservância das prioridades.

Não criticamos aqui a atividade do Poder Consti-tuinte Originário, que, “constituído” para a criação daConstituição Federal de 1988, cumpriu a missão a quefora destinado.

Na forma anteriormente exposta, a Constituintede 1988, juridicamente exerceu o poder de ação. Ocorreuque a nossa Constituição nem sequer foi aplicada naíntegra, uma vez que inacabada carece de legislaçãoinfraconstitucional que a viabilize. Logo foi objeto derevisão.

Revisão, convém lembrar, que sequer terminou.Não bastasse a revisão de uma estrutura inacabada

ou, vista por outro ponto, ainda em construção, a LeiMaior vem sendo objeto de inúmeras modificaçõesestruturais por meio de emendas constitucionais.

Surge, na verdade, em nosso sistema organizadoem crise de governabilidade e não de legitimidade.

O Poder Constituinte foi legítimo, mas, no fundo,apesar do consenso conferido pelos titulares do poderàqueles que o exercitaram, questionamos se a Constituiçãofuncionou exatamente como um instrumento de

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canalização, filtragem e seleção das necessidades sociaisem busca do bem comum. É esse seu papel. Se o fez, nãopode demonstrar prática à sua eficácia, porque inaplicada,de tal forma a não alcançar e efetivar seus objetivos.

Somos forçados a concluir que não há no nossosistema plena identificação das escolhas da socie-dade com o seu modelo político, o que nos leva àingovernabilidade.

O problema que expomos não reside no fato deser analítica a nossa Constituição. Acreditamos que odocumento maior de nosso Estado, em sua forma,apenas retrata a falta de síntese de nosso povo.

O grande número de preceitos inseridos nodocumento constitucional não nos atrapalha. O que, naverdade, nos afeta é sua inoperância, ou o incentivo àinobservância, ou, ainda pior, a constante e indiscriminadamodificação dos preceitos, sem permitir a assimilação porparte dos cientistas do Direito, seus operadores, ou dopróprio cidadão. Tal retrato tende a gerar instabilidadesocial, econômica e jurídica, o que leva à ingoverna-

bilidade por falta de racionalização e priorização dasestruturas básicas a organizar, ou pela atividade desinte-gradora do Poder Reformador, que não observa naíntegra os seus limites.

Cremos, assim, constatar em nosso sistema ainadequação das decisões da escolha do poder, e portanto,uma crise que impede e prejudica o desenvolvimentoharmônico e total de um documento até então consi-derado em nossa história constitucional o melhor e o maiscompleto de todos.

Qual seria a solução?O problema de nosso estudo não reside na

necessidade de nova ruptura estrutural ou de revisãoperiódica (o que seria ótimo, se prevista expressamenteno texto constitucional após sua efetiva aplicação eseleção dos ineficazes) ou ainda de inserção de maisemendas em nossa Carta Constitucional.

A solução, a nosso ver, reside em permitir aaplicação texto na forma como foi editado para, entãosim, após a eleição dos problemas, modificá-lo.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ONOME EMPRESARIAL

R E S U M O A B S T R A C T

Carla Cristina VecchiEspecialista em Direito Tributário.

Mestranda em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.Professora do IMES, da Universidade Metodista de São Paulo e da UniABC.

“Nesses dias, Jesus foi para a montanhaa fim de rezar. E passou a noite toda em oração a Deus.

Ao amanhecer, chamou seus discípulos, e escolheudoze dentre eles, aos quais

deu o nome de apóstolos...”Lc 6, 12-13

O escopo do presente trabalho é realizar uma breveanálise da legislação que disciplina o nome empresarial.

Palavras-chave: nome empresarial, pessoa jurídica,pessoa física, empresas, direito empresarial, NovoCódigo Civil Brasileiro, Constituição Brasileira.

The proposal of this paper is to make a short analysisof legislation responsible for co-ordinating the companyname.

Keywords: enterprise name, legal entity, natural person,companies, enterprise right, New Brazilian Civil Code,Brazilian Constitution.

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INTRODUÇÃOUm dos assuntos mais calorosos em rodas de

amigos é aquele que se refere ao nome. Também não épara menos, fala-se, ao falar do nome, exatamente dapartícula identificativa da pessoa, que a acompanharápor toda a vida e até mesmo depois de sua morte.E fala-se muito da troca do nome, dos nomes esdrú-xulos, dos nomes que identificam tanto homens comomulheres, dos homônimos.

Entretanto, sabemos que o nome não se prestaapenas a identificar o ser humano, ou seja, a pessoa físicanatural, aquela que provém da mulher, mas tambémpodemos falar do nome que identifica a pessoacomerciante, seja ela física ou jurídica. Cumpre-nosassinalar que, com a entrada em vigor do Novo CódigoCivil Brasileiro, adentramos definitivamente na Teoriada Empresa, correspondente à terceira fase de nossoDireito Comercial que impõe-nos a utilização de umnovo vocabulário, aquele que se refere ao empresáriomercantil e não mais ao comerciante. MaximilianusCláudio Américo Führer ensina que:

“A terceira fase, ainda em elaboração, corres-ponde ao Direito Empresarial (conceito subjetivomoderno). De acordo com a nova tendência, aatividade negocial não se caracteriza mais pela práticade atos de comércio (interposição habitual na troca,com o fim de lucro), mas pelo exercício profissionalde qualquer atividade econômica organizada, excetoa atividade intelectual, para a produção ou acirculação de bens ou serviços”. (Führer, 2001:12)

Assim, ao examinarmos as questões que se referemao nome, falaremos da partícula que identifica a pessoaconsiderada empresario (g. n.) e não mais a pessoacomerciante. Neste texto, portanto, adotaremos aterminologia própria da Teoria da Empresa com todasas suas implicações e conseqüências. Fábio Ulhôa Coelhoaponta que empresário é:

“... definido na lei como o profissionalexercente de ‘atividade econômica organizada para aprodução ou a circulação de bens ou de serviços’ (CC/2002, art. 966). Destacam-se da definição as noçõesde profissionalismo, atividade econômica organizadae produção ou circulação de bens ou serviços”.(Coelho, 2002:11)

Neste diapasão, já que o empresário poderá serpessoa física ou jurídica e, já que abordaremos asquestões relativas ao nome empresarial, pretendemosdiscutir o nome empresarial do empresário individual eo nome empresarial da sociedade empresária.

Obviamente não é nossa pretensão esgotar oassunto, mas colaborar com algumas considerações,próprias de um texto desta natureza. Para tanto, apósesta introdução, examinaremos as questões conceituais,as espécies, o nome empresarial do empresário individuale da sociedade empresária, o registro e as alterações quantoao nome. Debrucemo-nos sobre o tema.

QUESTÕES CONCEITUAISVimos que tanto o empresário individual como a

sociedade empresária adotarão um nome. Mas comodefini-lo?

Para Dilson Dória, nome empresarial é “o adotadopela pessoa física ou jurídica para o exercício do comércioe por cujo meio se identifica”. (Dória, 1981: 89)

Já Ricardo Negrão cita o Decreto n. 916, de 24/10/1890, em que “definiu-se firma ou razão comercial comosendo ‘o nome sob o qual o comerciante ou sociedadeexerce o comércio e assina-se nos atos a ele referentes’”.(Negrão, 1999:191)

O Professor Fábio Ulhôa Coelho assinala que:

“O empresário, seja pessoa física ou jurídica,tem um nome empresarial, que é aquele com que seapresenta nas relações de fundo econômico. Quandose trata de empresário individual, o nome empresarialpode não coincidir com o civil; e, mesmo quandocoincidentes, têm o nome civil e o empresarialnaturezas diversas. Com efeito, enquanto o nome civilestá ligado à personalidade do seu titular, sendodiscutível seu caráter patrimonial, em relação aonome empresarial, a sua natureza de elementointegrativo do estabelecimento empresarial afastaquaisquer dúvidas quanto à sua natureza patrimonial.A pessoa jurídica empresária, por sua vez, não temoutro nome além do empresarial”. (Coelho, 2002:73)

Logo, concluímos que a primordial função donome é identificar e apresentar o empresário, seja eleindividual ou uma sociedade, nas diversas relações emque estará inserido no âmbito econômico e empresarial.

Vale a pena lembrar que, conforme já o dissemos,o nome identifica o empresário e, portanto, não podejamais ser confundido com outros elementosidentificadores da empresa, como a marca, o título deestabelecimento e, recentemente, com o advento doscomputadores e da Internet, do nome de domínio. Éclaro que todos estes institutos “tipicamente comerciais”(Negrão, 1999: 191) possuem tutela jurídica própria,entretanto são inconfundíveis com o nome comercial. ÉRicardo Negrão quem estabelece a distinção:

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“... o nome é atributo da personalidade, atravésdo qual o comerciante exerce o comércio; a marca ésinal distintivo de um produto ou de um serviço;título de estabelecimento é a designação de um objetode direito, o estabelecimento empresarial e insígnia éum sinal, emblema, formado por figuras, desenhos,símbolos, conjugados ou não à expressõesnominativas, usado para distinguir externamente oestabelecimento empresarial. A insígnia e o título deestabelecimento têm idêntica destinação: designar oestabelecimento do empresário, contudo, distinguem-se pela forma: a insígnia tem forma emblemática e otítulo, nominativa”. (Negrão, 1999:191)

É o ilustre Professor Fábio que acrescenta: “... onome de domínio identifica a página na rede mundialde computadores ...”. (Coelho, 2002:73)

ESPÉCIES DE NOMEEMPRESARIAL

Tendo abordado o conceito de nome empresarial,cumpre-nos agora examinar as modalidades existentesno direito brasileiro, a saber, firma individual, firmasocial e denominação. É a lei que determina que modali-dade é aplicável a cada caso.

A firma e a denominação diferem principalmenteem relação à sua estrutura, ou seja, os elementoslingüísticos que comporão o nome. Explica-se: a firmasempre deverá ser composta pelo nome civil docomerciante ou dos sócios que integram a sociedade, um,alguns ou todos os nomes. Já em relação à denominação,deverá ser composta por qualquer expressão à escolhados interessados, podendo até ser composta por nomescivis, sem que signifique que estes fazem parte da empresa.Geralmente, quando isto ocorre, busca-se homenagear ofundador ou uma pessoa que tenha contribuído para oêxito da empreitada.

Além desta distinção, os autores costumamressaltar uma outra que refere-se à função do nome.Ocorre que a firma, além de nome, também constitui-sena assinatura do empresário, enquanto que adenominação funciona exclusivamente como nome.Neste sentido ensina Führer:

“Uma última observação: a firma ou razãosocial é não só o nome, mas também a assinatura dasociedade. Assim, o José Pereira, sócio-gerente daempresa acima mencionada, ao emitir um cheque,lançará nele a assinatura coletiva (Gonçalves, Pereira& Cia.) e não a sua assinatura individual”. (Führer,2001:38)

E também o Professor Fábio Ulhôa Coelho:

“... quanto à função, os nomes empresariais sediferenciam na medida em que a firma, além deidentidade do empresário, é também a sua assinatura,ao passo que a denominação é exclusivamenteelemento de identificação do exercente da atividadeempresarial, não prestando a outra função”. (Coelho,2002:75)

Acontece que, na prática, raramente presenciamostal hipótese, ou seja, que o empresário assine tal qual afirma individual ou social no âmbito negocial. Explica oProfessor Fábio que:

“... pelas diferenças funcionais entre a firma e adenominação, é que os contratos sociais de sociedadesempresárias que adotam firma devem ter campopróprio para que o representante ou representanteslegais assinem o nome empresarial. Geralmente, ao péda última página do instrumento, sob o título ‘firmapor quem de direito’, é que eles lançam a assinaturaque usarão no exercício dos poderes de representação.E geralmente fazem uso da mesma assinatura que têmpara os atos da vida civil, o que, embora, a rigor, nãocorresponda à prescrição legal, vem sendo sedimentadohá tempos pelo costume”. (Coelho, 2002:76)

O NOME EMPRESARIAL DOEMPRESÁRIO INDIVIDUAL E DECADA TIPO DE SOCIEDADEEMPRESÁRIA

Conforme já tivemos a oportunidade de assinalar,as diversas modalidades de nome empresarial serãoaplicadas conforme a lei. Logo, de acordo com o caso,seja o empresário individual ou qualquer tipo desociedade empresária, deve-se verificar a prescrição legalpara a adequação do nome.

Cabe ao empresário individual a utilizaçãosomente da firma individual, que deverá ser compostapor seu nome civil. É facultado ao empresário individualabreviar nomes e agregar detalhamentos quanto aoramo de atividade que desempenha.

Em relação às sociedades empresáriais há, hoje,sete tipos societários diferentes, quatro deles reguladosno Código Comercial, dois na Lei n. 6.404/76 e um noDecreto n. 3.708/19. É óbvio que o novo Código Civilalterará um pouco este panorama, mas em razão dapouca utilização de alguns tipos, iremos nos fixar nosdois mais importantes no Direito Societário atual: a

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Sociedade Anônima e a Sociedade por Quotas deResponsabilidade Limitada. Confirma esta nossaposição a lição do Professor Lange:

“Não existe no Brasil, nenhuma sociedademercantil, que não possa se adequar a um destes doistipos societários clássicos: sociedade por quotas deresponsabilidade limitada e sociedade anônima. Oempresário nacional está bem consciente disto, tantoque, no total de 3.872.498 sociedades mercantiscriadas desde 1985 até 2001 no Brasil, logo em 17anos, 3.850.850, representando 99,44% são deresponsabilidade limitada e 17.795, representando0,46% são sociedades anônimas, perfazendo um totalde 99,90% do universo brasileiro das sociedadesmercantis”. (Lange, 2002:4)

A sociedade limitada poderá utilizar-se tanto dafirma social como da denominação. Reza o novo CódigoCivil:

Art. 1.158.Art. 1.158.Art. 1.158.Art. 1.158.Art. 1.158.

Pode a sociedade limitada adotar firma oudenominação, integradas pela palavra final “limitada”ou a sua abreviatura.

§ 1o A firma será composta com o nome deum ou mais sócios, desde que pessoas físicas, de modoindicativo da relação social.

§ 2o A denominação deve designar o objetoda sociedade, sendo permitido nela figurar o nomede um ou mais sócios.

§ 3o A omissão da palavra “limitada”determina a responsabilidade solidária e ilimitada dosadministradores que assim empregarem a firma ou adenominação da sociedade.

Notamos que em relação ao Decreto n. 3.708/19muito pouco se alterou. Acerca da inclusão da palavralimitada ao final do nome empresarial, o Novo CódigoCivil, no caput do art. 1.158, diz da palavra limitada oua sua abreviatura. Constitui necessária providência namedida em que alguns doutrinadores questionavam avalidade do nome que adotava o termo abreviado jáque o Decreto n. 3.708 apenas cita o termo por extensoe não menciona a possibilidade de abreviar-se. Tambémo Decreto diz que “... devendo a denominação, quandopossível, dar a conhecer o objetivo da sociedade”. ONovo Código Civil determina que a denominação deve(g. n.) designar o objeto da sociedade.

A sociedade anônima, quanto ao nome, vem tratadano art. 1.160 do novo Código Civil que determina:

Art. 1.160.Art. 1.160.Art. 1.160.Art. 1.160.Art. 1.160.

A sociedade anônima opera sob denominaçãodesignativa do objeto social, integrada pelas expressões“sociedade anônima” ou “companhia”, por extenso ouabreviadamente.

Parágrafo único. Pode constar da denominaçãoo nome do fundador, acionista, ou pessoa que hajaconcorrido para o bom êxito da formação da empresa.

Já a Lei n. 6.404/76, em seu art. 3° especifica melhora questão do nome na sociedade anônima já que fala daforma como devem ser usados os termos SociedadeAnônima e Companhia e também acerca da possibilidadeda existência de denominações idênticas ou semelhantesa de companhia já existente, o que assistirá à parteprejudicada o direito de requerer a modificação, por viaadministrativa ou em juízo, e demandar as perdas e danosresultantes. Neste ponto é que o legislador ressaltou oprincípio da novidade:

“Pelo princípio da novidade, não poderãocoexistir, na mesma unidade federativa (estado-membro), dois nomes empresariais semelhantes ouidênticos. Se a firma ou a razão social que se pretendeadotar for idêntica ou semelhante à outra já registrada,deverá ser modificada e aditada de designaçãodistintiva”. (Fazzio, 2000:93)

O art. 34 da Lei n. 8.934/94 determina que o nomeempresarial obedecerá aos princípios da veracidade eda novidade.

REGISTRO DO NOMEEMPRESARIAL

A proteção ao nome empresarial decorre doarquivamento dos atos constitutivos de firma individuale de sociedades, ou de suas alterações, na Junta Comercialda unidade federativa respectiva. É o que reza o art. 33da Lei n. 8.934/94, a Lei de Registro das EmpresasMercantis e Atividades Afins.

O grande mestre Rubens Requião ensina que:

“Com a publicação da Lei n. 8.934/94, por outrolado, e quanto ao que diz respeito ao registro do nomecomercial ou nome empresarial, ou, ainda, nome deempresa, prevaleceu o sistema do Decreto n. 916, de24 de outubro de 1890, que sujeitava o registro dasfirmas ou razões sociais às Juntas Comerciais, nasrespectivas sedes. A Lei n. 8.934/94 inclui nasatribuições do Registro Público de Empresas Mercantise Atividades Afins o registro do nome empresarial, suasalterações e seu sistema de proteção e extinção (arts.33, 34, 35, III, 59, 60, § 1°)”. (Requião, 1998:198)

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Na realidade, o direito pretende tutelar duasordens de interesses do empresário quando estabelece aimpossibilidade de dois empresários explorarematividade econômica sob o mesmo ou semelhante nome.Em primeiro lugar quer preservar a sua clientela, quepode ficar prejudicada em razão de confusões no âmbitoempresarial quando determinado cliente poderia serinduzido ao erro pensando estar comerciando com ume, na realidade, fazia negócios com outro de nome igualou semelhante. E, posteriormente, quer proteger oempresário de eventuais problemas com a concessão decrédito, já que também poderia vir a ser confundidocom outros de nome semelhante ou igual, mas comgraves problemas creditícios.

“O titular de um nome empresarial tem odireito à exclusividade de uso, podendo impedir queoutro comerciante utilize nome empresarial idênticoou semelhante, que possa provocar confusão nocomércio. Assim, em caso de identidade ousemelhança de nomes empresariais, o comercianteque anteriormente haja feito uso dele terá direito deobrigar o outro a acrescer ao seu nome distintivossuficientes, alterando-o totalmente, inclusive, se nãohouver outra forma de distingui-los com segurança.É o que decorre dos arts. 35, V, da LRE e 3° § 2°, daLSA”. (Coelho, 2002:71)

ALTERAÇÕES DO NOMEEMPRESARIAL

Ao contrário do nome civil, o nome empresarialpode e em alguns casos deve ser alterado.

É óbvio que, caso o empresário opte pela alteraçãodo nome, alguns requisitos devem ser observados como,por exemplo, a vontade dos contratantes, no caso deuma sociedade empresária, e as regras de formação donome empresarial.

Mas, como dissemos, haverá hipóteses em que oempresário será obrigado a alterar seu nome empresarialsob pena de sofrer as conseqüências jurídicas pertinentes.É o caso, por exemplo, da transformação, em que asociedade passa de um tipo societário para outro sem

que para tanto haja a dissolução societária. Já queocorreria a mudança de tipo societário, também haveriaa mudança da regra de composição do nome, portanto,obrigatoriamente deveria ser alterado.

CONSIDERAÇÕES FINAISNosso objetivo com este trabalho não foi esgotar

o assunto, nem mesmo tínhamos a pretensão de esmiuçaro tema, mas colaborar, didaticamente, com algumasinformações acerca das questões que envolvem o nomeempresarial.

Abordamos sucintamente os conceitos de nomeempresarial, que para o ilustre Professor Dilson Dória é “oadotado pela pessoa física ou jurídica para o exercício docomércio e por cujo meio se identifica”. (Dória, 1981:89)

Procuramos elucidar as espécies de nomeempresarial e qual delas aplicar-se-iam ao empresárioindividual e aos dois tipos societários que propusemo-nos a examinar, a Sociedade Anônima e a Sociedade porQuotas de Responsabilidade Limitada.

Seguindo a disposição constitucional quedetermina:

Art. 5°Art. 5°Art. 5°Art. 5°Art. 5°

Todos são iguais perante a lei, sem distinção dequalquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aosestrangeiros residentes no País a inviolabilidade dodireito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e àpropriedade, nos termos seguintes:

XXIX – a lei assegurará aos autores de inventosindustriais privilégio temporário para sua utilização,bem como proteção às criações industriais, à proprie-dade das marcas, aos nomes de empresas e a outrossignos distintivos, tendo em vista o interesse social eo desenvolvimento tecnológico e econômico do País.

Buscamos esclarecer as questões que envolviam onome quanto ao registro, à proteção e à possibilidade eobrigação de alteração.

Esperamos ter atingido nossos objetivos,conscientes da importância do nome para o empresárionos dias de hoje.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COELHO, F. U. Manual de direito comercial. 13. ed. rev., atual. e ampl.São Paulo: Saraiva, 2002.

DÓRIA, D. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1981.

FAZZIO JÚNIOR, W. Manual de direito comercial. São Paulo: Atlas, 2000.

FÜHRER, M. C. A. Resumo de direito comercial. São Paulo: Malheiros, 2001.

LANGE, D. F. O direito de empresas no novo Código Civil. Disponívelem: <www.contalex-ms.com.br>. Acesso em: 18 dez. 2002.

NEGRÃO, R. Manual de direito comercial. São Paulo: Bookseller, 1999.

REQUIÃO, R. Curso de direito comercial. 23. ed. atual. São Paulo: Saraiva,1998. v. 1

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A NECESSIDADE DE UMA TEORIADA JUSTIÇA SUBSTANTIVA

COMO COMPLEMENTO À TEORIADO DIREITO POSITIVO

R E S U M O A B S T R A C T

Denis de Castro HalisProfessor de Sociologia Jurídica da Faculdade Nacional de Direito/FND – UFRJ.

Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais – Programa de Pós-Graduação em Sociologia eDireito/PPGSD – Universidade Federal Fluminense/UFF.

Pós-graduado em Filosofia Contemporânea – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.Bacharel em Ciências Sociais pela UERJ.

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela FND/UFRJ.

Após a apresentação de casos controversos escolhidos,pretende-se perceber possíveis razões entre o divórcioda dimensão legal com a de uma teoria da justiçasubstantiva qualquer. São agregadas idéias de auto-res clássicos que deram suporte à produção dasconcepções mais estritamente analítico formais noentendimento e aplicação do direito. Posteriormente,são vistas algumas das conseqüências oriundas des-sas concepções, particularmente, na confluência entrea forma de ensino predominante e as práticasexemplificadas nos casos escolhidos. Ao final, idéiasde Aristóteles são apropriadas numa abordagem quediscute as funções próprias dos juízes.

PALAVRAS-CHAVE: teoria da justiça substantiva,práticas juridiciais formalistas, direito constitucional,Código de Processo Civil, Constituição Brasileira.

After the presentation of chosen controversial cases,it is sought to perceive possible reasons between thedivorce of the legal dimension with that of any theoryof substantive justice. Ideas from classical authors,that suggest the production of the more formalconceptions in the understanding and application thelaw, are aggregated. Afterwards, some consequencesof that are seen, particularly, is the confluencebetween the major form of learning and the practicesexemplified in the chosen cases. By the end,Aristotle’s ideas are taken in an approach thatdiscuss the proper judicial functions.

KEYWORDS: theory of substantive justice, conventionaljuridical practices, Constitutional Law, Civil ProcessCode, Brazilian Constitution.

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I – INTRODUÇÃOMuitos trabalhos do campo não dogmático do

direito criticam as práticas jurídicas chamadaspositivistas, dogmáticas, formalistas e ritualísticas. Muitasdelas, advindas ou não de prescrições legais, estariam emgrande dessintonia com a realidade social nacional ou,ao menos, estariam desencontradas dos interesses ecarências de uma significativa parcela da população, ouseja, a parte mais prejudicada na distribuição dosbenefícios sociais. Essas práticas tendem a ser apresentadascomo as predominantes no Brasil, em que prevalece odireito codificado.1

A primeira etapa deste trabalho consiste naseleção e exposição de julgados e declarações recentes dejuízes e outros profissionais do direito, com um grandepotencial analítico, tendo em vista as discussões eincertezas que geraram. Trata-se de casos com granderepercussão nas esferas acadêmica, profissional e leiga.Esses casos selecionados servem de alicerce para oargumento de que, de fato, existem mais práticasjurídicas formalistas do que se poderia desejar. E, semdiscutir, se elas predominam ou não no cenário nacional,pretende-se perceber, a partir desses casos, possíveisrazões entre o divórcio da dimensão legal com adimensão de uma teoria de justiça qualquer quando dafabricação de sentenças pelos magistrados.

Após a apresentação dos casos, tenta-se agregaralguns elementos teóricos, de autores clássicos, que deramsuporte à construção das concepções mais estritamenteanalítico-formais no entendimento e aplicação do direito.Essas concepções se utilizam, amplamente, das noções deobjetividade, neutralidade e imparcialidade.

Não se pretende analisar exaustivamente nenhumdos casos. Também não há pretensão de neste limitadotrabalho propor coisa alguma que seja definitiva. O quese quer mostrar, em primeiro lugar, é a confirmação, aomenos parcial, do que dizem os autores do chamadocampo não dogmático do direito. No momento subse-qüente, trabalha-se com algumas das conseqüênciasoriundas das concepções escolhidas dos autores clássicos,particularmente na confluência entre a forma de ensinopredominante e as práticas exemplificadas nos casosescolhidos.

1 Tais práticas tendem a ser reforçadas pelos ensinamentos dos manuais de direito (os de introdução, em especial) que privilegiam afunção do direito como mantenedor da ordem, como se esta fosse, em termos aristotélicos, um bem primário, ou seja, que tivesseum valor intrínseco, final e auto-suficiente (Aristóteles, 1996). Muitas vezes, o direito é visto, então, como sendo a ordem socialestatuída. Seguindo uma operação lógica, isso equivale a dizer que, se a ordem social vigente é extremamente opressora para umaexpressiva parcela da população, a ordem jurídica garante e legaliza essa opressão.

2 TV Globo.3 TV Globo.

Na última etapa, certas idéias de Aristóteles sobrea “natureza dos homens” e sobre a eqüidade sãoapropriadas numa abordagem que discute as funçõespróprias dos juízes.

II – CASOS(1) No programa “Linha Direta-Justiça”,2 de 08/05/2003,

foi apresentado o caso “Van-Lou”, em que um casal –uma estudante e um engenheiro – visando a “apagaro passado” de relações sexuais da estudante, planejoue executou seus dois ex-namorados. Apesar de tercometido dois assassinatos, foi aplicada à estudantea pena de um só dos crimes, pois foi aceita a tese dadefesa de que se tratou de um “crime continuado”. Apromotora do caso declarou no programa que,como aplicadora do direito, concordava com oresultado, no entanto, “enquanto serpensante” aquiloera revoltante.

(2) Hamilton dos Santos, tratorista, morador de umbairro periférico de Salvador, recusou-se a derrubarduas casas habitadas (inclusive por crianças) e deveresponder criminalmente por descumprimento deordem judicial. O juiz considerou, sob o pretextoda garantia legal da propriedade, que tais casas foramirregularmente construídas. O tratorista pensou:“poderia estar acontecendo comigo”. Pressionadopor voz de prisão dada pelo oficial de justiça e porpoliciais militares, acabou passando mal. Noconfronto entre sua sensibilidade e a coação, venceua primeira. “Se tivesse derrubado as casas e deixadoaqueles pobres ao relento, o que seria deles e daminha consciência? ”. (Jornal do Brasil, 03/05/2003)

(3) Outra ocorrência, verdadeiramente significativa,cuja defensável incoerência veio a ser nacionalmenteconhecida através de sua divulgação no programaFantástico3 (04/05/2003), é a do “pai” de uma meninacuja paternidade foi declarada judicialmente, apesarde negada por um exame científico de DNA. Omagistrado competente desconsiderou o resultadodo teste. Recorreu, para tanto, aos princípiosprocessuais legais da “livre apreciação das provas”e do “livre convencimento” (art. 131 do CPC). Essa

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decisão foi vista como acertada por outro juiz,também de vara de família, que declarou para orepórter do programa: “O DNA auxilia sim, desdeque não existam outras provas que são muito maisfortes do que o DNA não no método da certeza, masno sentido de uma história de vida”. Um provávelerro no teste, segundo especialistas, só pode ocorreruma vez em 100 milhões. O “declarado pai” perdeunas três instâncias de julgamento, sendo que oSuperior Tribunal de Justiça concluiu não ter havidoerro no processo.

(4) Em recente decisão, um juiz do Tribunal Regionaldo Trabalho de Minas Gerais fez declarações quefundamentaram acórdão repudiado pela Asso-ciação Nacional dos Procuradores do Trabalho. Afundamentação do juiz fez referências a umanarrativa bíblica – a “Arca de Noé”– para reformara sentença de primeira instância, negando direitose um pedido de indenização por danos morais a umtrabalhador rural.

Disse o juiz:

“A mera circunstância de ter sido transportadoo reclamante no meio rural, em camionete boiadeira,dotada de gaiola protetora para o transporte deanimais, não ofende a dignidade humana, nem afetaa sua segurança, como pretende a r. sentença recorrida.Poder-se-ia questionar no âmbito administrativo umamera infração das normas de trânsito do Código deTrânsito Brasileiro quanto a transporte inadequadode passageiros em carroceria de veículo de transportede cargas, o que não é da competência da Justiça doTrabalho. Mas se o veículo é seguro para o transportede gado também o é para o transporte do ser humano,não constando do relato bíblico que Noé tenharebaixado a sua dignidade como pessoa humana ecomo emissário de Deus para salvar as espéciesanimais, com elas coabitando a sua Arca em meiosemelhante ou pior do que o descrito na petição inicial(em meio a fezes de suínos e de bovinos)”. (Proc. RO484/03 TRT, public. 25/03/2003)

(5) O autor John French comenta em seu livro4 as práticasdos tribunais trabalhistas que, em 1960, negavampetições de crianças ou mulheres que não haviamrecebido os salários devidos pelos patrões. Os juízesargumentavam que esses trabalhos haviam sidorealizados em horários ou sob condições vedadas pelaCLT. Aproveitando-se desse entendimento então

4 FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Perseu Abramo, 2001.(Coleção História do Povo Brasileiro).

vigente, os empregadores tiravam vantagem dessasproibições legais e recusavam-se a pagar os saláriosacordados. Os juízes trabalhistas alegavam que setratava de “trabalho ilícito” e que não deviam,portanto, nem mesmo conhecer dessas questões.(French, 2001, p. 22). Desse modo, os tribunaistrabalhistas, em todos os níveis, se omitiam na defesados interesses dos trabalhadores.

III – DIVÓRCIO ENTRE DIREITO EJUSTIÇA: A HERMENÊUTICAORTODOXA

Apesar de todas as diferenças entre os casosrelatados, há algo de transversal que pode ser destacado.Todas as ocorrências revelam uma certa aparência deformalidade, ou uma lógica abstrata que parece terimpedido os personagens de verem quão absurdas, faceaos resultados, foram suas declarações ou suas decisões.Claro que é possível sustentar que todas tiveram uma certalógica e um grau de coerência. Mas o grau de coerência eo formato de raciocínio lógico é que parecem ser possíveisde se problematizar.

Quais são os fatores que podem ter ingressado nosprocessos de formulação das decisões que levaram essaspessoas a se conduzir de uma forma e não de outra,também lógica e juridicamente viável? Por que o juizbaiano não enfatizou direitos constitucionais relativosà proteção da família pelo Estado, da proteção dacriança, do direito social de moradia e bem-estar, aoinvés do direito à propriedade? Como uma promotorade justiça pode confessar afastar a dimensão pensanteda inteligência da operadora do direito?

Claro está que este limitado trabalho não chegaráa nenhuma conclusão definitiva sobre tais fatores. O queora se pretende é verificar certos argumentos de teóricosclássicos que puderam dar suporte a um tipo deconcepção, de forma de conhecimento, e de prática dodireito – todos entrelaçados – que virtualmente encerrouesforços variados, por parte de muitos teóricos e práticos,de se incrementar uma teoria de justiça que pudessecomplementar uma teoria do direito positivo.

Na busca por uniformidade, previsibilidade,objetividade e segurança, doutrinadores de diversosmatizes foram construindo um relato que considerou opensamento mais metafísico em oposição ao pensamentocientífico. A filosofia e a teoria do direito foram tendoseus papéis reduzidos a uma teoria geral do direito,

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preocupada tão somente em buscar conhecer e descrever,de forma válida, o direito positivo e suas questõesestruturais do tipo unidade, coerência e completude dosordenamentos jurídicos.

O direito positivo estatal passou a ser o núcleoreferencial do direito moderno, baseado num paradigmapositivista de ciência. Logo, os chamados “positivistasjurídicos” defendem, basicamente, o modelo clássico doDireito positivo ocidental, produzido pelas fontes formaisestatais e fundado em diretrizes liberal-individualistas. Adogmática se tornou uma técnica de apoio e controle daatividade jurisprudencial, que acabou por afastar umaparcela dos magistrados de questionamentos acerca dosfundamentos éticos do direito positivo, quando de suaaplicação.

A tensão entre critérios formais e critérios mate-riais, tanto na criação quanto na aplicação de regras, foibem exposta por Max Weber5 (1864-1920), que distinguiuo “Direito formal” do “Direito material”. Demonstrandoa recorrente tensão entre essas duas tendências, Weberassociou o primeiro tipo – Direito formal – ao conjuntodo sistema do direito “puro”, onde todas as normasobedecem unicamente à lógica jurídica, sem consideraçõesalheias a essa lógica. O Direito material, ao contrário,consideraria os elementos “extrajurídicos”,6 referindo-seno curso de seus julgamentos aos valores políticos, éticos,econômicos ou religiosos. Dessa diferenciação decorremduas concepções de Justiça. A primeira restrita às regrasda ordem jurídica e da lógica do sistema, enquanto asegunda leva em conta a situação concreta, as intençõesdos indivíduos e as condições gerais de sua existência.

Em certos casos, como no do juiz do TRT/MG, uma“base ética” foi usada, mas para dar suporte a uma crençaparticular. Isto é, não se adotou nenhuma teoria da justiçarefinada, com referenciais e critérios materiais definidosque pudessem dar uma consistência maior à decisão,evitando uma fácil rejeição e o questionamento da mesma.

A seguir serão destacadas certas passagens deautores que, se acredita, terem tido influente parte naconstrução do relato acima mencionado.

III. 1 Montesquieu (1689-1755)Os manuais de direito nacionais citam, de forma

recorrente, a doutrina da separação de poderes, ou defunções do poder do Estado, cujo maior sistematizadorfoi Montesquieu.

Na obra Do Espírito das Leis há três passagens querevelam, em especial, uma característica marcante da

5 WEBER, Max. Economia e sociedade. vol. 2: cap. VII. Brasília: UnB, 1999.6 Melhor seria a adoção do termo “extralegais”, para que o termo “jurídico” não seja tornado, necessariamente, equivalente ao termo “legal”.

forma de pensar de Montesquieu referente à forma dosjulgamentos e da função dos magistrados. No LivroSexto, Capítulo III – “Em que governos e em que casosse deve julgar segundo os termos precisos da lei” –, diz:

“Quanto mais o governo se aproxima darepública, tanto mais rígida se torna a maneira de julgar.(...) Nos Estados Despóticos, não existe lei: a regra é opróprio juiz. Nos Estados monárquicos, existe uma leie, onde esta é exata, o juiz a observa; onde não existe,ele procura-lhe o espírito. Nos governos republicanosé da natureza da constituição que os juízes observemliteralmente a lei”. (Montesquieu, 1979, p. 83)

Corroborando esse trecho, declara no LivroDécimo-Primeiro, Capítulo VI – “Da Constituição daInglaterra”:

Porém, se os tribunais não devem ser fixos, osjulgamentos devem sê-lo a tal ponto, que nuncasejam mais do que um texto exato da lei. Se fossemuma opinião particular do juiz, viver-se-ia nasociedade sem saber precisamente os compromissosque nela são assumidos”. (Montesquieu, 1979, p. 150)

Ainda no mesmo capítulo, acentua que:

“Poderia acontecer que a lei, que é ao mesmotempo clarividente e cega, fosse, em certos casos,muito rigorosa. Porém, os juízes de uma nação nãosão, como dissemos, mais que a boca que pronun-cia as sentenças da lei, seres inanimados que nãopodem moderar nem sua força nem seu rigor”.(Montesquieu, 1979, p. 152)

Montesquieu não deixa, no entanto, de consignaralgumas exceções a essa rigidez na aplicação das regras,“baseadas no interesse particular de quem deve ser julgado”,como por exemplo, os poderosos que, caso contrário, ver-se-iam reféns da inveja do povo (1979, p. 152).

III. 2 Cesare Beccaria (1738-1794)Não obstante o fato da preocupação maior de

Beccaria concentrar-se no direito penal, crê-se importanteressaltar que suas idéias extrapolaram, e muito, os limitesdessa província. Aqui, sublinham-se argumentos quedizem respeito, prioritariamente, aos deveres dos juízes.

No capítulo IV, “Da interpretação das leis”, Beccariadiz que “(...) os juízes dos crimes não podem ter o direitode interpretar as leis penais, pela razão mesma de que nãosão legisladores”. (Beccaria, s/d, p. 35)

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Defendendo uma forma de atuação, no séculoXVIII, que ainda hoje é extremamente popular e usual,ao menos oficialmente ou na esfera discursiva, chamadade subsunção dos fatos à norma e baseada na lógicaformal, sustenta que:

“(...) o juiz, cujo dever consiste exclusivamenteem examinar se tal homem praticou ou não um atocontrário às leis. O juiz deve fazer um silogismo perfeito.A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conformeou não a lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Seo juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais,ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto eobscuro. Nada mais perigoso do que o axiomacomum, de que é preciso consultar o espírito da lei.Adotar tal axioma é romper todos os diques eabandonar as leis à torrente das opiniões. Essa verdademe parece demonstrada, embora pareça um paradoxoaos espíritos vulgares que se impressionam maisfortemente com uma pequena desordem atual do quecom conseqüências distantes, mas mil vezes maisfunestas, de um só princípio falso estabelecido numanação”. [sem grifo no original] (Beccaria, s/d, p. 36)

E tendo como premissa um relativismo, umamultiplicidade de pontos de vista na avaliação das coisase a pluralidade de fatores que interferem no processodecisório dos juízes, Beccaria critica a liberdade deinterpretação e propõe uma forte restrição à mesma.Ponderando benefícios e malefícios, abraça a interpretaçãoliteral da lei. Optou-se, aqui, por transcrever uma longapassagem, dado o seu valor.

“Cada homem tem sua maneira própria de ver; eum mesmo homem, em diferentes épocas, vê diver-samente os mesmos objetos. O espírito de uma lei seria,pois, o resultado de boa ou má lógica de um juiz, deuma digestão fácil ou penosa, da fraqueza do acusado,da violência das paixões do magistrado, de sua relaçãocom o ofendido, enfim, de todas as pequenas causas quemudam as aparências e desnaturam os objetos noespírito inconstante do homem. Veríamos, assim, a sortede um cidadão mudar de face ao passar para outrotribunal, e a vida dos infelizes estaria à mercê de umfalso raciocínio, ou do mau humor do juiz. Veríamos omagistrado interpretar apressadamente as leis, segundoas idéias vagas e confusas que se apresentassem aoseu espírito. Veríamos os mesmos delitos punidosdiferentemente, em diferentes tempos, pelo mesmotribunal, porque, em lugar de escutar a voz constante einvariável das leis, ele se entregaria à instabilidadeenganosa das interpretações arbitrárias. Podem essasirregularidades funestas ser postas em paralelo com osinconvenientes momentâneos que às vezes produz a

observação literal das leis? Talvez esses inconvenientespassageiros obriguem o legislador a fazer, no textoequívoco de uma lei, correções necessárias e fáceis. Mas,seguindo a letra da lei, não se terá ao menos que temeresses raciocínios perniciosos, nem essa licençaenvenenada de tudo explicar de maneira arbitrária emuitas vezes com intenção venal. Quando as leis foremfixas e literais, quando só confiarem ao magistrado amissão de examinar os atos dos cidadãos, para decidir setais atos são conformes ou contrários à lei escrita; quando,enfim, a regra do justo e do injusto, que deve dirigir emtodos os seus atos o ignorante e o homem instruído, nãofor um motivo de controvérsia, mas simples questão defato, então não mais se verão os cidadãos submetidos aojugo de uma multidão de pequenos tiranos, tanto maisinsuportáveis quanto menor é a distância entre oopressor e o oprimido; tanto mais cruéis quanto maiorresistência encontram, porque a crueldade dos tiranosé proporcional, não às suas forças, mas aos obstáculosque se lhes opõem; tanto mais funestos quanto ninguémpode livrar-se do seu jugo senão submetendo-se aodespotismo de um só. Com leis penais executadas à letra,cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientesde uma ação reprovável; e isso é útil, porque talconhecimento poderá desviá-lo do crime. Gozará comsegurança de sua liberdade e dos seus bens; e isso é justo,porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade.É verdade, também, que os cidadãos adquirirão assimum certo espírito de independência e serão menosescravos dos que ousaram dar o nome sagrado de virtudeà covardia, às fraquezas e às complacências cegas; estarão,porém, menos submetidos às leis e à autoridade dosmagistrados. Tais princípios desagradarão sem dúvidaaos déspotas subalternos que se arrogaram o direito deesmagar seus inferiores com o peso da tirania quesustentam. Tudo eu poderia recear, se esses pequenostiranos se lembrassem um dia de ler o meu livro eentendê-lo; mas, os tiranos não lêem”. (Beccaria, s/d,p. 36-37)

III. 3 Hans Kelsen (1881-1973)Nas obras do maior expoente da tendência do

“positivismo jurídico”, a ética e o direito aparecem comocoisas distintas. A tarefa do jurista-filósofo consistiriana elaboração de uma teoria do jurídico, entendida tão-somente como uma descrição vinculada às prescriçõesdo direito positivo. Kelsen pretendeu elaborar umconhecimento científico – respaldado no positivismofilosófico ou cientificismo de Augusto Comte – do direitopositivo. Na sua obra principal, Teoria Pura do Direito,esforça-se em livrar a ciência jurídica das imprecisões,

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da opacidade, da incerteza e da subjetividade, em suma,da poluição de “impurezas”.

O Direito e a Moral são, para ele, sistemas denormas distintos. Acentua que:

“A necessidade de distinguir o Direito da Morale a ciência jurídica da Ética significa que, do ponto devista de um conhecimento científico do Direitopositivo, a legitimação deste por uma ordem moraldistinta da ordem jurídica é irrelevante, pois a ciênciajurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seuobjeto, mas apenas tem de o conhecer e descrever. (...)a tarefa da ciência jurídica não é de forma algumauma valoração ou apreciação do seu objeto, mas umadescrição do mesmo alheia a valores (wertfreie)”.(Kelsen, 1998, p. 77)

Nesta passagem, ficam claros os esforços de Kelsenpara elaborar o modelo de ciência jurídica e direito que,como já se referiu, Weber chama de “Direito formal” –referente à análise da estrutura formal do Direitopositivo. O processo lógico partiria dos conceitos e, pormeio de deduções lógicas, chegar-se-ia às proposiçõesjurídicas e, a partir destas, às decisões judiciais.

No modelo kelseniano, “a ciência jurídica, porém,apenas pode descrever o direito; ela não pode, como oDireito produzido pela autoridade jurídica (através denormas gerais ou individuais), prescrever seja o que for”.(Kelsen, 1998, p. 82)

Tal como Montesquieu e Beccaria, Kelsen acreditanão haver valores absolutos, mas apenas valores relativos(1998, p. 76), fazendo disso um pressuposto de sua teoria.

“Devemos ter presente, porém, quandoapreciamos ‘moralmente’ uma ordem jurídicapositiva, quando a valoramos como boa ou má, justaou injusta, que o critério é um critério relativo, quenão fica excluída uma diferente valoração com basenum outro sistema de moral, que, quando umaordem jurídica é considerada injusta se apreciadacom base no critério fornecido por um sistema moral,ela pode ser havida como justa se julgada pela medidaou critério fornecido por um outro sistema moral”.(Kelsen, 1998, p. 76)

No entanto, ao dizer que “se a ordem moral nãoprescreve a obediência à ordem jurídica em todas ascircunstâncias e, portanto, existe a possibilidade de umacontradição entre a Moral e a ordem jurídica (...)(Kelsen, 1998, p. 77), ele acaba contribuindo para adefinição do papel de uma teoria da justiça. Explica-se:como a norma jurídica positiva é válida, mesmocontrariando a ordem normal, é o caso de estipular a

forma de decisão, em casos de flagrante injustiça, e oque fazer para evitar, apesar de sua validade formal, asua aplicação mecânica. É nesse espaço que uma teoriada justiça substantiva se faria importante. Um bomexemplo de uma ordem social imoral, porém legal, queé aceito pela Teoria Pura, é dado por Kelsen:

“(...) uma ordem jurídica ou certas das suasnormas que, ao tempo em que entraram em vigor,poderiam ter correspondido às exigências moraisde então, hoje podem ser condenadas como profun-damente imorais”. (1998, p. 78)

Por fim, Kelsen diz:

“Com efeito, a ciência jurídica não tem delegitimar o Direito, não tem por forma alguma dejustificar – quer através de uma Moral absoluta, queratravés de uma Moral relativa – a ordem normativa quelhe compete – tão-somente – conhecer e descrever”.(1998, p. 78)

III. 4 Max Weber (1864-1920)Weber não é aqui visto em função de sua clara

preferência por uma concepção de direito racional-formal. A razão que orientou a escolha de suas palavrasfoi a tentativa de mostrar uma faceta, um tantodesconhecida, pode-se dizer, desse pensador.

Os trechos selecionados sugerem que interessesparticulares, de caráter patrimonial, impulsionaram easseguram a formação e manutenção de um sistemajurídico composto por regras formalmente gerais,aplicadas por operadores neutros e imparciais.

Weber chega a reconhecer que essa ordem jurídicaformal, “impessoal”, opera para a vantagem de gruposeconômicos dominantes.

“Os interessados em adquirir poder no mercadosão os interessados de tal ordem jurídica. Principal-mente no interesse deles, ocorre, sobretudo, o estabe-lecimento de “disposições jurídicas autorizadoras”, quecriam esquemas de acordos válidos, aos quais, apesarda liberdade formal de todos para fazer uso deles, têmde fato acesso somente os donos de propriedades e que,portanto, fortalecem somente a autonomia e a posição depoder destes, e de mais ninguém”. [sem grifos no original](Weber, 1999, p. 65-66)

Relacionando a justiça de cunho formalista coma ausência de considerações de caráter ético, diz:

“(...) aquela liberdade máxima, concedida pelajustiça formal, dos interessados na defesa de seus

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interesses formalmente legais, já em virtude dadesigualdade na distribuição de poder econômico quepor ela é legalizada, necessariamente leva sempre denovo ao resultado de que os postulados materiais daética religiosa ou da razão política parecem violados”.(Weber, 1999, p. 102)

Referindo-se especificamente às relações detrabalho, Weber assinala que o direito formal de umtrabalhador de acordar livremente com qualquerempresário, de fato, pouco lhe serve. A parte maispoderosa no mercado (o empresário) acaba por fixar ascondições de trabalho à sua discrição, que acabam porser impostas devido às necessidades materiais dopostulante ao emprego:

“O resultado da liberdade de contrato é,portanto, a criação da possibilidade de usar apropriedade de bens, mediante a hábil aplicação delano mercado, como meio para adquirir, sem encontrarbarreiras jurídicas, poder sobre outras pessoas”.(Weber,,,,, 1999, p. 65)

Pode-se deduzir, a partir dessas passagens de Weber,que o que maiormente se quer com o tão propagado – eaté fielmente defendido – princípio da segurança jurídicaé, na verdade, o funcionamento preciso do aparato oficial,garantidor de certas expectativas estabilizadas da ordemsocial existente.

IV – CONSEQÜÊNCIAS DESSASIDÉIAS

Um dos mais célebres ministros da Corte SupremaNorte-Americana, Benjamin N. Cardozo (1870-1938),que se contrapôs aos juristas formalistas de seu tempo,em especial John Austin (1790-1859), comentou acercados efeitos do trabalho dos juristas analíticos:

“A insistência constante no sentido da morale da justiça não constituírem direito contribuiu paragerar desconfiança e desdém pelo direito, comoalguma coisa a que a moral e a justiça não são apenasestranhas, mas hostis”. (Cardozo, 1956, p. 75)

Com efeito, essa separação entre o direito,reduzido a um “o-que-a-lei-manda-fazer”, e uma noçãode justiça substantiva gerou conseqüências noimaginário, e daí nas práticas, tanto de leigos como depolíticos e profissionais do direito.

7 SCHMIDT, Selma. O processo civilizatório demora anos. César Maia: Entrevista. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 24/11/2002.Caderno Rio, p. 27.

Um exemplo paradigmático do que se afirma, é ode uma declaração do prefeito do Rio de Janeiro, CésarMaia. Numa entrevista,7 diante de um comentário darepórter – “essas brigas judiciais acabam não resultandonuma punição efetiva...”–, quando falava sobreliminares que revogaram atos de cassação de alvarás porparte da prefeitura, Maia declarou: “Parte dos juízesimagina que está na função para fazer justiça. Quem fazjustiça é o político, que elabora as leis. O Judiciário é umpoder técnico, que deve aplicar as leis”. Nada maispróximo das idéias sustentadas por Montesquieu eBeccaria, acerca da função do juiz. Essa mesma crençana objetividade, num juiz que só sofreria a interferênciados ditames legais quando de sua decisão (equiparada auma subsunção lógica), parece ser percebida, também,em José Alfredo de Oliveira Baracho, em livro queaborda o tema da cidadania. Como se o problema seexaurisse na observância ou não da lei e a uma esferalógico-formal, diz:

“A função jurisdicional coloca os juízessubmetidos unicamente à lei. A independênciajudicial, em qualquer de seus aspectos, tem comodestinatário o juiz, como administrador da justiça,que, exercendo o poder jurisdicional ou a funçãojurisdicional, aplica a norma ao caso concreto,condição básica da imparcialidade judicial, que vaiorientar a objetividade da sentença, constituindo umagarantia essencial para os jurisdicionados. Para atingiressa independência propugna-se liberar o juiz deinfluências externas, gerando o autogoverno”.(Baracho, 1995, p. 13)

Pode-se argumentar que o juiz baiano fez umasubsunção perfeita do caso concreto à norma legalgarantidora da propriedade privada, mas nem por issosua decisão foi considerada “justa” por parte dotratorista, que, apesar das muitas homenagens(inclusive da OAB nacional), terá de responder a umprocesso criminal pelo delito de desobediência.

Com relação à liberdade e autonomia da vontadeformalmente consideradas e legalmente garantidas, elembrando a citação final de Weber sobre como aliberdade formal pode engendrar opressão econômica,vale resgatar outra parte da decisão do juiz do TRT-MG. Em perspicaz suporte da livre exploração dotrabalhador, conjeturou:

“(...) não tendo sido sequer alegado que otransporte nessas condições tivesse o escopo de

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humilhar ou ofender o reclamante, que nunca serebelou ou fez objeção contra a conduta patronal,preferindo percorrer os 16 Km do deslocamento a péou por outro meio de transporte”. (proc. RO 484/03,TRT, public. 25/03/2003)

De fato, segundo o raciocínio do juiz, o queixosotrabalhador deve ter preferido não exercitar suasmúltiplas opções e, portanto, agora nada pode alegar.Pena que, não sabendo desfrutar sua liberdade de serexplorado, ajuizou tal ação.

Todos esses casos apresentados sugerem que umateoria analítica do direito positivo, por si, não pode servista como o apanágio de todos os problemas. O direitopositivo de base empírica não é suficiente para dar contados múltiplos casos concretos.

Os próprios juízes declaram, de forma recorrente,que seguem no seu ofício a Constituição e suasconsciências. O que existe em suas consciências, ou asinterpretações e ações derivadas disso, é o que permaneceum grande mistério. Isso é reforçado pelo “Justice”Benjamin Cardozo que, parecendo dialogar comjusfilósofos positivistas, diz:

“A idéia de poder o jurista abandonar todaconsideração do que deveria ser a lei, surge da ficção deconstituir o direito um sistema completo e fechado e deserem os juristas e juízes meros autômatos que registrama sua vontade ou fonógrafos que pronunciam suasdisposições. Os sentimentos de justiça não podem serbanidos da teoria do direito nem de sua administração”.(Cardozo.8 Apud Rodrigues, 1956: p. XI)

Já Chaïm Perelman, no livro Ética e Direito,sustenta que se dá preferência, por vezes, a um valor nãoexplicitamente protegido por lei ao invés de um valorlegalmente sancionado. Acentua ele que: “Portanto, todoo direito não está nos textos legais. O juiz efetivamenteleva em conta valores e regras, mesmo que estas nãotenham sido votadas e promulgadas formalmente”.(Perelman, 1996, p. 454-455)

Esse acionar de recursos não estritamente legaisassocia-se, como já visto, à justiça material de Weber.

Em outra parte, Perelman diz que:

“Ao integrar no direito positivo regras e valoresdiferentes daqueles reconhecidos pela lei, o juiz

8 The Paradoxes of Legal Science. 2. ed. New York: Columbia University Press, 1928, 1930, p. 27.9 Sobre a doutrina que defende a interpretação conforme os princípios, cf. as obras de Ronald Dworkin.10 Edmundo Lima de Arruda Jr. e Marcus Fabiano Gonçalves, no livro Fundamentação ética e hermenêutica – alternativas para o

direito, declaram que “desfazer a ingenuidade ou o oportunismo dessas crenças hermenêuticas [cientificistas] constitui agora umadas tarefas teóricas mais urgentes, a ser desempenhada em nome da transparência operativa da ciência jurídica moderna” (2002, p.

procura conciliar a lei com a justiça, ou seja, aplicar alei de forma que suas decisões possam ser socialmenteaceitáveis. É seguindo o mesmo espírito que, após asegunda Guerra, várias constituições européiasintroduziram em seu texto artigos que protegem osvalores fundamentais de uma sociedade democráticae, de modo mais especial, dos direitos humanos”.(Perelman, 1996, p. 455)

Essas palavras também são válidas para o Brasil,em especial no que concerne ao direito constitucional.A Constituição brasileira atual possui numerososprincípios, fundamentos e normas altamente abstratas.Desta forma, as decisões dos tribunais, em especial osdas instâncias superiores, em julgamentos que envolvemos chamados direitos fundamentais, têm um fortecaráter de decisões políticas ou “decisões de princípio”.9

Necessário se faz, portanto, um modelo deinterpretação que vá além de um mero silogismo. Essemodelo de interpretação bem poderia valer-se de pluraiscontribuições advindas do campo da teoria da justiça,sobretudo para melhor controlar atos de vontadepessoais dos julgadores e auxiliá-los na escolha deprioridades.

Já alguns livros de direito nacionais de hermenêu-tica jurídica, ao invés de permanecerem coletando antigosmétodos de interpretação (gramatical, lógico, históricoetc.), começam a problematizar a prática decisória dosjuízes, vista até então como sujeita às regras da lógicapura, da razão consciente e da estrita legalidade.10

Margarida Maria Lacombe Camargo abordandoas idéias de Recaséns Siches, diz:

“Na realidade, os juízes, ao privilegiarem osefeitos concretos do direito na sociedade, muitas vezesse vêem diante da necessidade de dissimular a lei parafazer justiça, ou pelo menos evitar a injustiça. Mas,para escapar de qualquer tipo de crítica ou acusaçãoem virtude de terem agido arbitrária ou negligente-mente ameaçando a ordem e a estabilidade social,precisam elaborar uma justificativa que apresenteuma aparência lógica e que seja, portanto, convin-cente. O que Recaséns Siches almeja é que os juízespossam agir sem culpa; fazer justiça sem culpa, “soba luz do meio-dia”. (Camargo, 1999, p. 167)

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Ocorre que desvendar os processos de tomada dedecisões, avaliando o possível impacto de fatoresextralegais, as motivações dos juízes e exigir umafundamentação mais rigorosa das sentenças, envolve oreconhecimento de que os magistrados têm um papelativo na definição do que é o direito. Isto é, faz com queseja necessário o reconhecimento de que a subjetividadedos julgadores não é apenas um fator de segunda ordem,mas, pelo contrário, por vezes tende a ser o maisimportante.11 Não estranho, portanto, foi a preocupaçãoe cautela do atual Poder Executivo brasileiro na escolhados novos ministros que iriam ser indicados paraintegrar o colegiado do Supremo Tribunal Federal. Issose explica de forma coerente, na medida em que se sabeque a composição dos tribunais pode determinar odireito a ser declarado pelos colegiados de magistrados.

Esse tema toca diretamente a questão da criação,ou da construção judicial do direito. Questão associadaao antigo debate “interpretação versus construção”.Essas idéias estão no centro do palco das teoriasjusfilosóficas atuais e da ciência política contemporânea,como, por exemplo, na questão do ativismo judicial(com as chamadas implicações contra-majoritárias).

Esse ativismo judicial – tema que está associadoao papel apropriado dos magistrados, à separação depoderes e à forma de configuração de sua legitimidade –é assunto controverso que divide posições apaixonadas.

Um dos mais influentes teóricos atuais do direitoe da ciência política, Ronald Dworkin, já na introduçãode “Uma Questão de Princípio”, diz:

“O antigo debate, se os juízes devem criar erealmente criam o direito, tem mais importânciaprática do que jamais teve, pelo menos nos EstadosUnidos”. (2000, p. VII)

Uma vez dito isso tudo, cabe uma pequena análiseda distância entre o que aqui se sublinhou e o binômioensino-prática do direito no Brasil.

IV. 1 Ensino e Prática do Direito emOposição à Justiça e Princípios

Existe uma história de um professor de direito quefoi repreendido por um aluno, ao escrever no quadro: “ACiência Jurídica nada tem a ver com a Justiça”. O professorvisava dar uma maior dramaticidade às suas aulas sobreKelsen. Ao contrário do que se poderia pensar, ele não se

zangou com o aluno, mas, pelo contrário, desapontou-secom o restante silencioso da turma.

Considerando tal história como verídica, pode-sequestionar as possíveis razões para uma tal corroboraçãosilenciosa de jovens com a afirmação que, eventualmente,dissocia o direito da justiça. Do mesmo modo, pode-seperguntar por que um magistrado determina que um “painão biológico” seja o pai de uma criança, apegando-se,tão somente, às disposições legais que dão margem a queele possa assim agir. Claro, uma vez que, nenhuma outraprova poderia ser mais convincente para determinar apaternidade biológica. Se, como dizem os especialistas, oexame de DNA só comporta um erro em cem milhões e,se o douto magistrado de fato merece esse qualificativo, o“pai judicial” deveria, talvez, direcionar tão significativasorte em um sorteio qualquer. Caso contrário, deve-sereconhecer que o direito pode sim modificar a naturezadas coisas.

Esse caso, cuja decisão foi confirmada pelas cortessuperiores, traz à memória um célebre julgamento daCorte Suprema dos Estados Unidos, que no caso Herreracontra Collins12 admitiu que o acusado talvez fosseinocente, mas ainda assim poderia ser executado caso ojulgamento fosse conduzido de forma apropriada esegundo os ditames constitucionais.

Também os outros casos, em especial o caso dosjuízes trabalhistas, tal como relatou John French, cujapreocupação ao decidir foi meramente formal eabstrata, desconhecendo uma realidade concreta dedependência econômica e ausência de liberdade real porparte dos trabalhadores, podem ser usados paraconstruir um cenário, cuja existência maior ou menornão será provada neste limitado trabalho, de umaprática positivista que camufla vigorosos juízos de valore escolhas pessoais que permanecem num espaço opaco.

A defensável incoerência de todas essas históriasreforça um discurso que questiona, criticamente, duasprovíncias dialeticamente entrelaçadas: o ensino e aprática do direito. Essas duas províncias, como já se disse,privilegiam uma abordagem formalista. Essa abordagemtraduz-se, por exemplo, em um estudo muito maisdelongado dos campos do direito que tenham por baseum diploma legal mais “carnudo”. Não é por outrarazão que, em geral, os estudantes dedicam-se por cercade 4 anos ao estudo do direito civil, enquanto o direitoconstitucional acaba merecendo apenas cerca de 1 ano.Seria porque existe menos “teoria constitucional” e mais“teoria civilista”? De fato, esse parece não ser o motivo.

11 Neste sentido, cf.: PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz e a emoção. Campinas: Millenium, 2003.12 Herrera v. Collins, 506 U.S. 390 (1993).

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Ocorre que o Código Civil (tanto o anterior, de 1916,como o atual, de 2002) tem mais de 2.000 artigos,enquanto a Constituição Federal de 1988 tem cerca de250 artigos (excluindo o ADCT).

Como, seguindo a orientação de Kelsen, a CiênciaJurídica tem tão-somente que conhecer e descrever aordem normativa que lhe compete, estuda-se predomi-nantemente, senão exclusivamente, a estrutura formaldo direito escrito nacional. Daí os nomes das cadeirasnas faculdades poderem ser, coerentemente, criticadas emudadas de “Direito Constitucional”, “Direito ProcessualCivil”, etc., para “Descrição da Constituição Brasileira”,“Descrição do Código de Processo Civil I, II ”, etc.

Além disso, as discussões em torno das normas,valores e princípios consignados na Constituição nãodeveriam exigir um tempo maior, tendo em vista queeste é o diploma legal superior do ordenamento jurídico,frente ao qual todas as normas têm de ser avaliadas ecompatibilizadas? Não é a Constituição também,segundo um dos discursos majoritários, a consolidaçãodas maiores aspirações de uma população? Não consignaos direitos mais fundamentais, sem o qual a própriasociedade não pode existir?

É possível, então, argumentar que, talvez, amaioria das faculdades de direito – falhos centros deformação legal e exitosos centros de deformação pessoal– tenha uma pitada de responsabilidade nessedistanciamento do direito com uma teoria da justiçasubstantiva qualquer. Isso pela simples ausência, oupouca presença, da última.

Os profissionais jurídicos, previamente torturadosfísica e psicologicamente por cinco ou seis anos, talvezqueiram tão somente permanecer leais a esses ensina-mentos descritivos. Os juízes, em particular, podem estarbuscando o conforto de referendar na prática, mesmoque isso viole interesses fundamentais das pessoas ea própria natureza das coisas, as lições aprendidas,proferidas pelos “ilustres professores”, autoridades emapresentar as “escrituras sagradas”, que passam a serchamadas no direito de “Códigos” ou a “Bíblia do DireitoCivil”, a “Bíblia do Processo Penal”...

Entra-se, pois, num círculo perverso, cuja essênciaé um ensino que privilegia uma única dimensão possívelde trabalho com o ordenamento jurídico, reforçando ereafirmando uma atuação prática, criticável por sermecânica e irreal. Ensino esse, baseado em Códigos e

manuais um tanto quanto presos ao modelo prático quese critica. Vale lembrar os dizeres de Pierre Bourdieu(1930-2002):

“(...) é pela lógica interna das obras jurídicasque delimitam em cada momento o espaço dospossíveis e, deste modo, o universo das soluçõespropriamente jurídicas”. (Bourdieu, 2001, p. 211)

Com isso, em mente, face à pequena exploraçãode temas não estritamente descritivo-legais nos livrosde direito, pode-se perceber como os juízes podemsuspender seus juízos morais e conseqüencialistas, e setornar indiferentes aos efeitos de seus julgados,identificando o jurídico ao legal.

V – A FUNÇÃO PRÓPRIA DOSJUÍZES: ARISTÓTELES

Vários estudos oriundos de campos interdisci-plinares, como, por exemplo, da sociologia e filosofiajurídicas, apontam a existência de diversos modelosanalítico-compreensivos do direito, entre eles o dopositivismo jurídico. Este é apenas uma das perspectivasanalíticas existentes. Várias dessas perspectivas buscamdar fundamento às ações daqueles que trabalham nochamado “universo jurídico”, sustentando ser o “direito”e o “jurídico” algo mais do que apenas as normasadvindas do Estado. Pode-se metaforicamente argu-mentar que, da mesma forma que o amor não pode serreduzido ao sexo, o direito não se reduz à lei, sendo estaapenas uma (e, segundo algumas correntes, nem sempre)manifestação do direito. Não se pretende aqui esmiuçaressas explicações, pois isso escaparia aos restritos limitesdeste estudo. Parte-se do pressuposto de que mais de ummétodo juridicamente respaldável existe, e isso tanto nateoria quanto nas práticas observáveis, e pode, portanto,ser razoavelmente defensável.13

O esforço lógico-analítico do positivismo acabou,então, por ocultar uma compreensão multidimensionaldo direito, propiciando a confusão em torno de algunsdogmas centrais: (a) a vinculação das decisões dos magis-trados – supostamente neutros e, portanto, imparciais– à lei estatal; (b) a dependência de todo direito emrelação ao Estado, e (c) a unidade do direito identificadaà coerência sistemática das proposições jurídicas.

As proclamadas virtudes de tal modelo teórico,que serve de fundamento a condutas práticas, consistem

13 Para uma explicação mais detalhada sobre outras formas, além da estritamente normativa, de atuação jurídica possível, cf.: HALIS,Denis de Castro. “A natureza do processo e a evolução do direito: uma leitura de Benjamin N. Cardozo”. Trabalho apresentado noCongresso Internacional de Direito, Justiça Social e Desenvolvimento, realizado entre 07 e 10 de agosto de 2002, em Florianópolis,

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no interesse pela proteção de uma suposta objetividade ede um determinismo, que se pode dizer falacioso. Isso ficaexpresso em recorrentes afirmações do tipo: – “isto é assimporque a lei manda que seja assim”. A qualificação“falacioso” pode ser sustentada na medida em que seentenda que a lei não é um ser vivente, sendo que, naverdade, as pessoas – com autoridade para tal – é quemandam. E mandam baseadas num sentido que atribuemtanto à lei como à situação em que ela deve ser, ou não,aplicada.

A idéia, que se pretende introduzir aqui, é a de queos comportamentos pessoais que são norteados, em tese,segundo esse modelo teórico, passível das mencionadascríticas, tendem a recusar, sobremaneira, o reconheci-mento de uma realidade traumatizante14 que muitas vezesgera problemas complexos na aplicação das regras nasociedade. Destaca-se, no âmbito deste estudo, particular-mente a realidade dos vínculos trabalhistas.

Lêda Boechat Rodrigues, renomada historiadorado Supremo Tribunal Federal, afirma que:

“os juízes marcham às vezes para soluçõesimpiedosas, convencidos da impossibilidade daescolha de outro desfecho. [sem grifo no original](Rodrigues, 1956, p. VII)

Nada pode ser dito de mais pertinente face aosobjetivos deste trabalho.

Dito isto, pode-se dizer que, por meio desse modelode entendimento (dito dogmático) dos “fenômenosjurídicos” acaba ocorrendo uma grande desatenção acercade problemas que podem ser reputados como centraisnum plano de aspirações por mudanças. Perde-se de vista,portanto, a finalidade mais democrática do direito, ou oque deveria ser a sua característica principal. Para escolhersomente uma teoria da justiça que trabalhe nesse sentidoe que pode acrescentar algo a esse debate, vale recordar anoção utilitarista de Justiça de Jeremy Bentham (1748-1832). Essa pode ser sumarizada na clássica fórmula dapromoção do máximo prazer e bem-estar para o maiornúmero de pessoas, ao mesmo tempo, em que persegue aminimização do sofrimento. No livro Uma Introduçãoaos Princípios da Moral e da Legislação, diz:

“O objetivo geral que caracteriza todas as leis –ou que deveria caracterizá-las – consiste em aumentar

14 Considera-se traumatizante o dar-se conta do “turbilhão” de transformações institucionais contemporâneas que se agiganta frente aosfragilizados indivíduos e grupos sociais, com a sorte de seus destinos “privatizada”, e sem possibilidades de apoiarem-se na segurança detradicionais relações sociais e expectativas estabilizadas (como, por exemplo, a estabilidade no emprego). Pode-se afirmar que vivemos emum período de “colapso de expectativas”. Milhares de pessoas que hoje trabalham, que possuem o que comer hoje já não possuem a certezade comer amanhã, de trabalhar no dia seguinte. Neste ambiente, a “ordem”, entendida como um meio regular e estável, pode-se mostrarpor demais virulenta a um enorme contingente populacional, chamado, por muitos, de “excluídos” da sociedade.

15 Em especial, cf. o Livro X, Ética a Nicômaco, 1996.

a felicidade global da coletividade; portanto, visam elasem primeiro lugar a excluir, na medida do possível,tudo o que tende a diminuir tal felicidade, ou seja,tudo o que é pernicioso”. (Bentham, 1974, p. 65)

No entanto, o que se percebe na aplicação dasnormas oficiais do Estado, segundo declaradas atuações“estritamente técnicas”, é uma terminologia quedesumaniza as pessoas, tornando-as quase como “coisas”(curioso é o termo “jurisdicionados”, amplamenteadotado no meio jurídico e perceptível facilmente nosinformativos classistas dos “operadores jurídicos”, que,parece remeter a uma certa passividade dos sujeitos).

Mas daí vem a pergunta: – Qual é a função própriado juiz? Qual a finalidade da atividade do juiz? Um cd-rom é capaz de arquivar toda a legislação estatal vigentee possuir, ainda, um catálogo de comportamentosaceitáveis (lícitos) e puníveis (ilícitos). Logo, ter umacoletânea de leis e comportamentos na cabeça não é afunção própria do juiz. No entanto, boa parte dasprovas de seleção para a magistratura parece requererexatamente isso.

Caso os dizeres de Aristóteles tenham algum valor,merecendo ser lembrados,

“é possível perceber que o intelecto humano ésua melhor parte, a parte superior em termos deimportância e o que conforma a verdadeira natureza decada criatura humana. Por conseguinte, é preciso que aspessoas se esforcem ao máximo para viver de acordocom o que possuem de melhor”.15 (Aristóteles, 1996)

Logo, para Aristóteles, a função própria doshomens é exercer e desenvolver sua razão reflexiva, seuraciocínio. Isto é “a atividade vital do elemento racionaldo homem” (1996, p. 126) na acepção de “exercício ativodo elemento racional” (idem). Mais à frente isso énovamente ressaltado:

“(...) e afirmamos que a função própria dohomem é um certo modo de vida, e este é constituídode uma atividade ou de ações da alma que pressupõemo uso da razão, e a função própria de um homem bomé o bom e nobilitante exercício desta atividade ou aprática destas ações (...)”. (Aristóteles, 1996, p. 126)

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Esse elemento racional pode, de certo modo,persuadir os outros elementos irracionais – que nãoquestionam os “porquês” – também orientadores daconduta das pessoas, como a fé (na coerência da lei, porexemplo).

Como o juiz não deixa de ser um homem – apesarde numerosas abstrações ilusórias – com um arsenal devicissitudes, pode-se dizer, por analogia, que ele tambémdeve exercer ativamente suas mais sublimes faculdades,desenvolvendo sua “razão de pensar” e não simplesmenteatrelar-se a sua “razão obediente”. Neste último caso,tornar-se-ia refém de uma lei possivelmente dissonantede anseios sociais mais prioritários ou de outra convicçãodogmática qualquer, inclinando-se em direção a umcaminho facilmente repudiável.

Para isso, no entanto, é preciso estar preparado:

“É bem possível, portanto, que enquanto ascoleções de leis, e também de constituições, podemser úteis para as pessoas capazes de estudá-las e julgaro que há nas mesmas de bom ou mau e quais são osdispositivos adequados às peculiaridades de cadacidade, aquelas que examinam tais coleções sem estarintelectualmente preparadas para isto não formarãoum juízo acertado (a não ser que o façam acidental-mente) (...)”. (Aristóteles, 1996, p. 319-320)

Ora, se a função própria do juiz, a sua finalidade,não é ser alimentado de leis e, na hora própria, “vomitá-las” – isso é veementemente negado pelos próprios juízes– pode ser que ela consista no uso efetivo do exercício desua razão ativa. Sua excelência seria ampliada na medidado exercício de seu raciocínio e não com a eliminaçãodesse. É essa “razão de pensar”, reflexiva, que dizem só ohomem deter, que pode bem conduzi-lo e promover suaspotencialidades.

Esse “efetivo exercício da razão ativa” será neces-sário exatamente para que se realize a justiça nos casosconcretos. Este problema – justiça do caso concreto – serelaciona com o cotejamento da justiça e a eqüidade, efoi também tratado por Aristóteles:

“O que cria o problema é o fato de o eqüitativoser justo, mas não o justo segundo a lei, e sim umcorretivo da justiça legal. A razão é que toda lei é deordem geral, mas não é possível fazer uma afirmaçãouniversal que seja correta em relação a certos casosparticulares. Nestes casos, então, em que é necessário

estabelecer regras gerais, mas não é possível fazê-locompletamente, a lei leva em consideração a maioriados casos, embora não ignore a possibilidade de falhadecorrente desta circunstância. (...) Quando a leiestabelece uma regra geral e aparece em sua aplicaçãoum caso não previsto por esta regra, então é correto,onde o legislador é omisso e falhou por excesso desimplificação, suprir a omissão dizendo o que opróprio legislador diria se estivesse presente e o queteria incluído em sua lei se houvesse previsto o casoem questão”. (Aristóteles, 1996, p. 212-213)

Logo, o problema passa a ser a maneira pela qualse pode conduzir, controlar, ou tornar essa intervençãosubjetiva na aplicação da lei menos opaca, mais coerentee aceitável. Pelo menos não se estará mais encerradonuma discussão tradicional, agregadora de falsosdilemas e suposições, que associa o dever do juiz a umaaplicação estrita da lei, dita necessária para a unifor-midade e a decorrente segurança jurídica. Uniformidadee segurança que já não existem, ao menos não sob oformato oficialmente propagado (de fato, algunschegam a falar em “jurisprudência lotérica”).16

Reconhece-se, além disso, que as pretensões poruma justiça legal irrestrita não são aconselháveis, fazendo-se necessária uma intervenção eqüitativa. Sendo que: “(...)o eqüitativo é, por sua natureza, uma correção da lei ondeesta é omissa devido à sua generalidade”. (Aristóteles,1996, p. 213), [e isto é] “(...) melhor que o erro oriundoda natureza irrestrita de seus ditames [legais]” (idem).

VI – CONSIDERAÇÕES FINAISDo que se discutiu, pode-se extrair que o

magistrado tem várias opções possíveis de atuação quesão juridicamente válidas e sustentáveis. Por vezes,mesmo tendo ciência disso, opta pela utilização de cunhoformalista e de personalização da lei (“a lei manda...”),justificando sua decisão com base em referências estritasà letra da lei ou em argumentos tradicionalistas clássicos(“julgar diferente seria usurpar a competência dolegislador, violando o princípio da separação de poderes,etc.)”, usados de forma abstrata e sem qualquerrelativização. Essa opção “absolutista”, que faz referênciaestritamente à disposição da lei, leva, por vezes, a umresultado que agrava tensões, promove violência, geramal-estar generalizado, tem efeitos sociais funestos,

16 Eduardo Cambi. Jurisprudência Lotérica. In: Cidadania e Justiça, Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros, n. 11, 2. semestrede 2001. p. 193-211. A noção de jurisprudência lotérica se concretiza “(...) quando a mesma questão jurídica é julgada por duas oumais maneiras diferentes. Assim se a parte tiver a sorte de a causa ser distribuída a determinado juiz que tenha entendimentofavorável da matéria jurídica envolvida, obtém a tutela”.

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oprime mais intensamente os mais desfavorecidos,desenvolve o subdesenvolvimento, etc.

Não obstante esses efeitos, que dificilmente podemser entendidos como desejados, mas muito mais como“efeitos perversos da ação” (Weber), essa opção podeestar sendo recorrentemente feita quando da impossibi-lidade de julgar – dado o volume de processos e outrasdificuldades – utilizando uma metodologia mais trabalhosae refletida e conjugando métodos, diferentes perspectivas eponderações, o que exigiria, talvez, um tempo e esforçonão compatíveis com as condições dadas e exigênciasestabelecidas. Em função desses problemas concretos, énegada a pluralidade de atuações possíveis, refugiando-sena protetora letra da lei, tal como se apenas um sentidohouvesse.

Contudo, as práticas jurídicas também acabam porcomportar argumentos não “técnicos”, mesmo que issonão seja ensinado nos livros. E, dessa forma, existindo narealidade, mas sendo negado na teoria, esses argumentosacabam produzindo incerteza e tornando os ditos“jurisdicionados” verdadeiros reféns das personalidadesdos juízes. Isto é, acaba ocorrendo uma mescla do que háde pior nos dois mundos: uma aplicação mecânica denormas somada a uma arbitrariedade mascarada porsupostas tecnicidades que ora são enfatizadas, ora não. Isso

tudo em detrimento de uma doutrina que reconhecesse avalidade e pertinência de um reencontro da “ciência dodireito” com uma teoria da justiça.

Argumenta-se, por fim, que o aparato de adminis-tração judicial que, em tese, distribui “justiça”, “solucio-nando” conflitos, não se confunde, automaticamente, coma própria “justiça”. Diz-se isso, uma vez entendido queaquele aparato deve promover alguma concepção de“justiça” substancialmente democrática. Em outraspalavras, não se deve identificar o mero funcionamentoformal da “máquina judiciária” – e seus produtos – comqualquer concepção de justiça que não se restrinja a umviés estritamente formal. Logo, não se admite aqui, porforça deste argumento, que uma perspectiva única, defoco formal (ou oficial) da realidade, se identifique, paraefeitos de discussão do “justo”, ao próprio “justo”. Noçãoesta, que envolve a percepção de múltiplas dimensões.

O esforço, portanto, estaria em reconciliar o estudodas regras do Estado com as regras das pessoas, percebendoque se os pressupostos de uma forma de atuação sugeridanão se fazem presentes, não se deve tentar violar arealidade das coisas, mas, sim, dialogar com elas. Dessaforma talvez, o mundo jurídico, com seus “encantadosmitos”, não precisasse ser povoado por seres que paratrabalhar suspendam suas dimensões de “serespensantes”.

Correspondência para/Correspondence to: Denis de Castro Halis – Rua Ferreira Viana, 36 apto. 501 – Flamengo – Rio de Janeiro – RJ – CEP 22210-040Tel./Fax: (21) 2265-4912 – e-mail: [email protected]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ASPECTOS DA TERCEIRIZAÇÃO E ODIREITO DO TRABALHO

R E S U M O A B S T R A C T

José Ribeiro de CamposAdvogado. Professor de Direito Material e Processual do Trabalho no

Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul – IMES.Mestre e Doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O propósito deste artigo é abordar a terceirizaçãodentro de um contexto mais amplo, que é a flexibilizaçãodo Direito do Trabalho. É abordada ainda, a evoluçãoda terceirização, que, mesmo sem uma legislaçãoespecífica, é admitida pelo Tribunal Superior do Tra-balho, que se posiciona, inclusive, quanto às suasconseqüências.

Palavras-chave: terceirização, direito do trabalho,flexibilização, direito administrativo, Tribunal Superiordo Trabalho-Brasil.

The purpose of this article is to relate the service ofthird in great view than before, because it is moreadapted with the new Labor Law. It is related too thatwithout specific law, the Superior Court of Labor has aclear position of the consequences of that.

Keywords: the service of third, labor law, flexibility,administrative law, Superior Court of Labor-Brazil.

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1 – A FLEXIBILIZAÇÃO DO DIREITODO TRABALHO

A terceirização é um fenômeno intimamente ligadoà teoria da flexibilização do Direito do Trabalho, namedida em que rompe com a bilateralidade nas relaçõesde trabalho (empresa e trabalhador), surgindo paraparticipar desta relação um terceiro (empresa tomadora,empresa de prestação de serviços e trabalhador).

Com efeito, o Direito do Trabalho, fundado narigidez de suas normas e princípios, está sendoquestionado, diante dos reflexos da economia e dasmudanças sofridas pela sociedade, surgindo anecessidade da flexibilização dos direitos trabalhistas.

A flexibilização teve seu desenvolvimento naEuropa na década de 80, em virtude da crise econômicae introdução de novas tecnologias, com a finalidade deevitar o aumento do desemprego decorrente de extinçãode empresas.1

Amauri Mascaro Nascimento leciona que“flexibilização do direito do trabalho é a corrente depensamento segundo a qual necessidades de naturezaeconômica justificam a postergação dos direitos dostrabalhadores, como a estabilidade no emprego, aslimitações à jornada diária de trabalho, substituídas porum módulo anual de totalização da duração do trabalho,a imposição pelo empregador das formas de contraçãodo trabalho moldadas de acordo com o interesseunilateral da empresa, o afastamento sistemático dodireito adquirido pelo trabalhador e que ficaria ineficazsempre que a produção econômica o exigisse, enfim, ocrescimento do direito potestativo do empregador,concepção que romperia definitivamente com a relaçãode poder entre os sujeitos do vínculo de emprego,pendendo a balança para o economicamente forte”.2

Luiz Carlos Amorim Robortella define aflexibilização do Direito do Trabalho “como oinstrumento de política social caracterizado pelaadaptação constante das normas jurídicas à realidadeeconômica, social e institucional, mediante intensaparticipação de trabalhadores e empresários, para eficazregulação do mercado de trabalho, tendo como objetivoso desenvolvimento econômico e o progresso social”.3

Sérgio Pinto Martins acentua que “a flexibilizaçãodo Direito do Trabalho é o conjunto de regras que têm

1 Arnaldo Sussekind. Instituições de direito do trabalho, p. 197.2 Curso de direito do trabalho, p. 137.3 O moderno direito do trabalho, p. 128-129.4 Flexibilização das condições de trabalho, p. 25.5 Rosita de Nazaré Sidrim Nassar. Flexibilização do direito do trabalho, p. 159-160.6 Marlly. A Cardone. Introdução do tema da flexibilização do direito do trabalho. Revista LTr, vol. 54, p. 85.7 José Pastore. A flexibilidade dos mercados de trabalho e contratação coletiva, p. 13.

por objetivo instituir mecanismos tendentes a compati-bilizar as mudanças de ordem econômica, tecnológica,política ou social existentes na relação entre capital e otrabalho”.4

Assim, denota-se que flexibilizar o Direito doTrabalho é adaptá-lo à realidade econômica e social domomento, visando principalmente preservar a empresae os empregos.

As causas da flexibilização são, principalmente, acrise econômica, as mudanças tecnológicas, a competiçãona economia mundial e o aumento do desemprego.

A crise econômica mundial influencia a flexibili-zação, na medida em que o quadro economicamente difíciltornou os avanços dos direitos sociais um peso para asempresas. A crise atinge o Direito do Trabalho, colocandoem risco sua eficácia, diante da inexistência de respaldoeconômico para se garantir o atendimento de seuscomandos, surgindo, diante deste quadro, a necessidadede criar novas formas de contratar e organizar o tempo detrabalho, retirar obstáculos para o despedimento eflexibilizar os rigores do Direito Laboral.5

Também as mudanças tecnológicas tiveram efeitosnas relações de trabalho, diante do surgimento de novasformas de prestação de serviços como, por exemplo, otrabalho à distância.

As novas tecnologias interferem, inclusive, nasubordinação jurídica, pois as modalidades novas deprestação de trabalho, como o teletrabalho, que éconseqüência do progresso da informática, não exige ainserção do trabalhador na organização empresarial,podendo ser eliminada a dependência do empregado àsordens diretas do empregador.6

Outro fator determinante da flexibilização foi aacirrada competitividade entre as empresas, fruto daglobalização da economia mundial, fazendo com queelas procurem de todas as formas reduzir custos,principalmente os custos com a mão-de-obra.

O mercado competitivo exige constantesinovações, redução de custos, melhoria da qualidade, epara fazer frente a estas exigências, aparece como umadas soluções a flexibilização das relações trabalhistas.Sem a possibilidade de flexibilizar, as adaptações setornam lentas e com isso os trabalhadores ficam sememprego, pois as empresas perdem a competição pornovos mercados.7

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Flexibilizar as normas trabalhistas é uma dassaídas para enfrentar a competição econômica.

Para enfrentar o desemprego, grande mal daatualidade, não poderão ser recusadas todas as formasde flexibilização, que possam contribuir para preservare criar novos empregos.

A flexibilização é sentida no contrato de trabalho,principalmente no salário, no procedimento dedespedida, na jornada de trabalho, na duração docontrato e na contratação de mão-de-obra.

Os modos de estipulação do salário foramflexibilizados de modo a tentar eliminar ou diminuir arelação entre o custo do trabalho e o desemprego atravésda moderação dos salários. O congelamento, a reduçãodo ritmo da indexação, a diminuição ou suspensão dosalário mínimo e a implantação de sistemas deremuneração diferenciada, são os mecanismos maisutilizados para se obter a flexibilização dos salários.8

A Constituição Federal prevê a flexibilização dossalários, permitindo, mediante negociação coletiva, aredução salarial, conforme consta no inc. VI, do art. 7°,nos seguintes termos: “irredutibilidade do salário, salvoo disposto em convenção ou acordo coletivo”.

Outra manifestação de flexibilização do salário é aparticipação nos lucros ou resultados da empresa, poisesta forma de retribuição é desvinculada da remuneração,na forma expressa pelo art. 7°, inc. XI, da ConstituiçãoFederal: “participação nos lucros, ou resultados, desvin-culada da remuneração, ...”.

O procedimento de despedida ao longo do tempopassa a ser flexibilizado, a estabilidade no emprego cedepara a necessidade econômica de renovação dosempregados, mantendo-se, no entanto, a proteçãocontra o despedimento arbitrário.

A antiga estabilidade decenal, prevista no art. 492,da Consolidação das Leis do Trabalho, foi flexibilizadacom o advento do Fundo de Garantia por Tempo de Ser-viço criado pela Lei n. 5.107/66, regulamentado atual-mente pela Lei n. 8.036/90 e fulminada pela ConstituiçãoFederal de 1988, que garantiu o direito ao Fundo deGarantia por Tempo de Serviço a todos os trabalhadoresurbanos e rurais (art. 7°, inc. III).

Atualmente a flexibilização da jornada de trabalhotem sido muito utilizada, proporcionando ao emprega-dor a distribuição das horas de trabalho diante danecessidade de maior ou menor produção, evitandodispensa de alguns empregados.

9 Os trabalhadores frente à terceirização, Pesquisa DIEESE, vol. 7, p. 13.8 Rosita de Nazaré Sidrim Nassar, op. cit., p. 56-57.

A Constituição Federal faculta a redução dajornada de trabalho e a compensação de horários noinc. XIII, do art. 7°:

Duração do trabalho normal não superior a oitohoras diárias e quarenta e quatro semanais, facultada acompensação de horário e a redução de jornadamediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Nesta linha, a Consolidação das Leis do Trabalhoprevê a possibilidade de compensação de horas detrabalho, o denominado “banco de horas”, no § 2°, doart. 59, da seguinte forma:

Poderá ser dispensado, sem acréscimo de saláriose, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho,o excesso de horas em um dia for compensado pelacorrespondente diminuição em outro dia, de maneiraque não exceda, no período máximo de um ano, à somadas jornadas semanais de trabalho previstas, nem sejaultrapassado o limite máximo de 10 horas diárias.

Quanto à duração do trabalho, há a possibilidadede se firmar contrato de trabalho por prazo determinado.Além da previsão expressa nos §§ 1° e 2° do art. 443 daConsolidação das Leis do Trabalho, a Lei n. 9.601/98instituiu o contrato de trabalho por tempo determinadocondicionando a sua adoção à negociação coletiva.

Na contratação de mão-de-obra, a flexibilizaçãomanifesta-se nas situações em que a prestação dos serviçosnão é feita por empregados, mas por terceiros, como porexemplo, o trabalho temporário previsto na Lei n. 6.019/74 e a contratação de empresas prestadoras de serviços.

A terceirização é reflexo de flexibilização do Direitodo Trabalho, na medida em que possibilita a contrataçãode uma empresa para a realização de atividades, que, casonão existisse esta possibilidade, seriam realizadas porempregados da própria empresa.

Neste sentido, o Dieese menciona: “no que se refereespecificamente à mão-de-obra, a terceirização se inserecomo fator de flexibilização, ao eliminar para a firmacontratante o “problema” dos custos econômicos diretoscom o trabalho, dentre os quais admissão, demissão,treinamento e benefícios sociais”.9

2 – A TERCEIRIZAÇÃOExplica Octávio Bueno Magano, que “terceirizar

significa transferir a terceiros atividades anteriormentea cargo da própria empresa. A terceirização, assim

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concebida, possui duas vertentes: transferência aterceiros de toda e qualquer atividade ou apenas daschamadas atividades-meio”.10

Cássio Mesquita Barros Junior preleciona que aterceirização “é uma estratégia econômica através daqual um terceiro, em condições de parceria, prestaserviços ou produz bens para uma empresa que ocontrata. Ao transferir a esse terceiro a produção dasatividades acessórias e de apoio, pode a empresacontratante concentrar-se na sua atividade principal, oque levou a ciência da administração a chamar esseprocesso de focalização”.11

Marly A. Cardone fala que “terceirização identificao fenômeno de transferência da produção de bens ouserviços para outra empresa ou pessoa que não aquelaque, primitivamente, os produzia”.12

Terceirização, segundo Eduardo Gabriel Saad,“significa a realização, por um terceiro, de atividade-fim ou atividade-meio da empresa contratante”.13

Para Ives Gandra da Silva Martins Filho, “trata-se,na sua vertente positiva, de descentralização empresa-rial tendente à especialização de funções, com vistas aoincremento de eficiência produtiva. No entanto, a ver-tente negativa, quando visa a redução de custos através daliberação de encargos sociais, encontra-se óbice no ordena-mento jurídico-trabalhista, protetivo do hipossufiente”.14

Pedro Vidal Neto diz que “a terceirização consiste natransferência, a outras organizações, de certos serviços ouatividades, que se põem como atividades-meio, para queuma empresa possa desenvolver suas atividades-fim”.15

Assinala Luis Carlos Amorin Robortella que apalavra terceirização incorporou-se ao processoeconômico “indicando a existência de um terceiro que,com competência, especialidade e qualidade, emcondição de parceria, presta serviços ou produz benspara a empresa contratante”.16

Sérgio Pinto Martins leciona que a terceirizaçãoconsiste “na possibilidade de contratar terceiro para a

10 Alcance e limites da terceirização no Direito do Trabalho. Noções atuais de direito do trabalho: estudos em homenagem ao professorElson Gottschalk, p. 281.

11 Flexibilização do direito do trabalho e terceirização. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, n. 21, p. 277.12 A terceirização e seus reflexos no direito do trabalho. Revista de Direito do Trabalho, n. 80, p. 18.13 O trabalhador e a terceirização da economia. Suplemento Trabalhista LTr, n. 89, p. 563.14 Terceirização legal e ilegal. Suplemento Trabalhista LTr, n. 125, p. 813.15 Aspectos jurídicos da terceirização, Revista de Direito do Trabalho, n. 80, p. 24.16 O moderno direito do trabalho, p. 236.17 A terceirização e o direito do trabalho, p. 23.18 Ibid, p. 6-7.19 Carlos Alberto Ramos Soares de Queiroz. Manual de terceirização, p. 14.

realização de atividades que não constituem o objetoprincipal da empresa. Essa contratação pode envolvertanto a produção de bens como serviços, como ocorrena necessidade de contratação de serviços de limpeza,de vigilância ou até de serviços temporários”.17

Propomos, como definição de terceirização, atransferência para uma empresa de prestação de serviçosespecializados (prestadora), dos serviços não ligados aoobjetivo econômico (atividade-fim) da empresacontratante (tomadora), sendo que os serviços serãorealizados através dos empregados da prestadora,dentro ou fora da empresa tomadora.

3 – A TERCEIRIZAÇÃO E SUASCONSEQÜÊNCIAS NO MERCADODE TRABALHO

É importante destacar que um dos fatores quedeterminou a disseminação do fenômeno da terceiri-zação foi a brutal concorrência entre as empresas, queforam levadas à especialização, fazendo com quecontratassem os serviços de outras empresas para arealização de atividades não ligadas ao negócio principal.

O processo de terceirização está associado àfocalização, que é a estratégia das empresas de concentrarsuas atividades naquilo que é o segredo do negócio, facili-tando a gestão empresarial, para diminuir a diversidadedas formas de organização da produção e do trabalho.Com a terceirização, as empresas têm condições dereduzir custos e melhorar o desempenho e a qualidade,vez que realizam um menor número de processos, o que éimportante para enfrentar a concorrência.18

Empresas que já passaram pela fase de acentuadacentralização e verticalização, adotando o processo deterceirização, perceberam os benefícios de terem setornado mais ágeis, eficientes, eficazes, ganharamqualidade, especialização e, finalmente, como resultadoda terceirização, competitividade dos seus produtos nomercado.19

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A terceirização está relacionada com a opção dasempresas em administrar o contrato com fornecedores,no sentido de conseguir redução de custos e melhoria daqualidade, pois deixam de desenvolver produtos eserviços, que passam a ser feitos por outras empresasespecializadas nestas atividades.

Caracteriza-se como uma técnica moderna degestão empresarial, baseada em mudanças estruturais,tendo como objetivo a concentração de esforços para aatividade principal da empresa. Está relacionada com aqualidade, a competitividade e a produtividade, sendoque a empresa concentra-se no seu produto estratégico,deixando que as tarefas secundárias e auxiliares sejamfeitas por empresas especializadas.

A situação econômica, agravada pela recessão,obrigou as empresas a passarem por um processo dereestruturação, no sentido de se adaptarem aos novostempos, sob pena de não conseguirem sobreviver; coma crise, foram obrigadas a procurar nas empresas deprestação de serviços uma parceria para a realização dediversas atividades, que elas mesmas realizavam.

O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, mencionaque as empresas brasileiras foram estimuladas pelarecessão a reduzir os custos, conseqüentementeadotaram a transferência de algumas atividades paraterceiros, e terceirizando, elas tentaram, por exemplo,eliminar os altos custos representados pelas frotas deveículos, garagem, manutenção, enfim, custos comatividades secundárias.20

A terceirização gera para as empresas contratantesuma parceria na busca de objetivos comerciais, cada umaaprimorando a sua especialidade, buscando a qualidade;com isso o trabalhador também busca o aprimoramentoprofissional, tanto o empregado da tomadora como oda prestadora dos serviços.

A empresa tomadora dos serviços deixa de serresponsável por todas as fases do processo produtivo, oque repercute no Direito do Trabalho, que sempre esteveapoiado na empresa auto-suficiente, uma vez que, coma terceirização, há uma desconcentração produtiva eeconômica, pois o fornecimento de bens e serviços ébuscado no mercado.

20 Os trabalhadores e a terceirização, Diagnóstico e propostas dos Metalúrgicos do ABC, p. 30.21 Argeu Egydio dos Santos. Terceirização e seus efeitos. Terceirização no direito do trabalho e na economia, p. 76 e o Sindicato dos

Metalúrgicos do ABC, op. cit., p. 34.22 Terceirização: uma alternativa de flexibilidade empresarial, p. 52-53.23 Heloisa Helena Teixeira de Souza Martins. Os dilemas do movimento sindical em face da terceirização, Terceirização: diversidade e

negociação no mundo do trabalho, p. 38.24 op. cit., p. 31.25 op. cit., p. 16.

Alguns entendem que a terceirização trouxeconseqüências negativas, como a redução salarial, emcomparação com as empresas tomadoras dos serviços,não concessão de benefícios, como transportes,alimentação, assistência médica e outras e até reduçãono nível de emprego.21

Jerônimo Souto Leiria cita como conseqüênciasnegativas da terceirização para as empresas, os seguintesaspectos: aumento de risco a ser administrado,dificuldades no aproveitamento dos empregados játreinados, demissão na fase inicial, mudança na estruturado poder, falta de parâmetros de preço nas contrataçõesiniciais, custo das demissões, relação com sindicatos, máescolha de parceiros, má administração do processo eaumento de dependência de terceiros.22

Outra conseqüência da terceirização é o aumentodo número das micro e pequenas empresas em todos ossetores da economia, assim, mesmo havendo diminuiçãode emprego nas grandes empresas, há a abertura denovos empregos nas micro, pequenas e médias empresas.

Assim, quanto a questão da redução do empregoprovocada pela terceirização é colocada frente aocrescimento das micro e pequenas empresas, os seus efeitosparecem reduzidos, pois de alguma forma, essas empresas,mesmo que não ofereçam as mesmas condições, aparecemcomo a solução para o desemprego.23

Por outro lado, a perda das vantagens oferecidaspela grande empresa, como transporte, assistênciamédica e outras, é minimizada pelo oferecimento deempregos, nas micro e pequenas empresas e há ocrescimento do setor de serviços, em face do predomínioda terceirização nos serviços de vigilância, alimentação,transporte, processamento de dados e manutenção.

Cita o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC ocrescimento do setor de serviços no PIB, pois a terceirizaçãoé um dos motivos do crescimento do setor terciário daeconomia, e, embora esteja se dirigindo para as atividadesprodutivas, ainda predomina no setor de serviços.24

Diante desse fenômeno, diz o Dieese que “na esferados serviços ligados à indústria se nota uma trajetóriaascendente do emprego. Isto decorre, em boa medida,do ajuste realizado pelas grandes empresas que vêmexternalizando inúmeras atividades com o intuito dereduzir custos”.25

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No mesmo sentido, Luiz Carlos Amorim Robortellafala da expansão do setor de serviços como fonte de geraçãode empregos, e que “o elevado número de empresas deprestação de serviços no país, com milhões detrabalhadores, torna essencial uma política legislativa deestímulo a essas atividades econômicas, que constitueminstrumento de combate ao desemprego.26

Destaca-se ainda a opinião de Amador Paes deAlmeida quando escreve que “a contratação de empresasprestadoras de serviços, entre se constituir numa formade aperfeiçoamento das operações fundamentaisindispensáveis à própria atividade-fim, é meio deincremento de emprego, utilizando, no mais das vezes,embora não necessariamente, de mão-de-obra ociosa edesqualificada (faxineiros, vigias, etc.)”.27

As conseqüências positivas, para as empresas, noentender de Carlos Alberto Ramos Soares de Queirozsão: gera a desburocratização, alivia a estruturaorganizacional, proporciona melhor qualidade naprestação de serviços, contribuindo para a melhoria doproduto final, traz mais eficácia empresarial, aumentaa flexibilidade nas empresas, proporciona maioragilidade decisória e administrativa, simplifica aorganização, incrementa a produtividade, tem comouma das conseqüências a economia de recursoshumanos, materiais, instrumental, de equipamentos,econômicos financeiros.28

Pedro Paulo Teixeira Manus lembra que “nãoperdendo de vista que atravessamos um período em quese busca criar e adaptar novas formas de prestação deserviço às exigências de mercado, por meio do processodenominado terceirização, mas que exige cuidado paranão perder de vista a necessária proteção que o Direitodo Trabalho deve dispensar aos trabalhadores de formageral”.29

Quanto às conseqüências jurídicas, primeirodestaca-se que a empresa de prestação de serviços devemanter contrato de trabalho com seus empregados, paraque eles possam ficar protegidos pela legislação trabalhistae pelos instrumentos normativos aplicáveis à categoriaprofissional e econômica.

Caso a empresa contratante utilize a terceirizaçãoapenas com objetivo de fraudar direitos trabalhistas,camuflando a relação de emprego, poderá ser reconhecidoo vínculo de emprego entre o trabalhador e a empresatomadora dos serviços.

26 O moderno direito do trabalho, p. 255.27 A terceirização no direito do trabalho: limites legais e fraude à lei, terceirização no direito do trabalho e na economia, p. 36.28 Manual de terceirização, p. 19-20.29 Direito do trabalho, p. 75.

Outra importante conseqüência refere-se àresponsabilidade da empresa contratante dos serviços,pelas obrigações trabalhistas não pagas pela empresacontratada. O contratante poderá ser responsabilizadopelos direitos trabalhistas sonegados do trabalhador,conforme consta no inc. IV, do Enunciado n. 331 doTribunal Superior do Trabalho.

4 – A TERCEIRIZAÇÃO VISTA PELAJUSTIÇA DO TRABALHO

A terceirização é um fenômeno com conseqüênciaspara do Direito do Trabalho, no entanto, carece de umaregulamentação legal específica, sendo que a orientaçãoque os jurisdicionados têm advém da jurisprudência doTribunal Superior do Trabalho, expressa através doEnunciados n. 331.

4.1 – O Posicionamento doTribunal Superior do Trabalhodo Enunciado n. 256 ao 331.

Antes do Enunciado n. 331 ser editado, o tema dacontratação de empresas de prestação de serviços eratratado pelo Enunciado n. 256, publicado no Diário daJustiça da União de 09 de setembro de 1986, nos seguintestermos:

Salvo os casos de trabalho temporário e deserviços de vigilância, previstos nas Leis ns. 6.019, de03/01/74 e 7.102, de 20/06/86, é ilegal a contrataçãode trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomadordos serviços.

O Enunciado, em comento, foi alvo de muitascríticas por parte dos estudiosos do Direito do Trabalho,que não aceitavam a posição do Tribunal Superior doTrabalho acerca da matéria. Abaixo destacamos algunscomentários feitos à época.

Arnaldo Sussekind disse que o Enunciado n. 256não proibia uma empresa de contratar prestadora deserviço ou empreiteira, para a execução de serviços ouobras, mas que a proibição estava restrita à contrataçãode trabalhadores por empresa interposta, não podendosupor “por ferir o sistema jurídico nacional, é que asúmula em foco tenha tido a intenção de proibir os

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legítimos contratos de prestação de serviços ou deempreitada de obras, previstos no Código Civil”.30

Paulo Teixeira Coelho entendeu que Enunciadon. 256 caracterizou como ilegal toda e qualquercontratação de empresa prestadora de serviços, e queexistiam várias atividades de prestação de serviços aterceiros que não configuravam a locação de mão-de-obra. Assim, o Enunciado em foco “foi extremamenteinfeliz, pois generaliza o conceito de empresa interposta,estendendo-o a toda e qualquer empresa de prestaçãode serviços a terceiros”.31

Irani Ferrari disse que o Enunciado em questão“considera ilegal ‘ab initio’, o que poderá ser legal, porquenão revogadas as formas de prestação de trabalho sob oenfoque da locação de serviços ou empreitadas” e queainda era “contrário ao princípio da livre iniciativa econtra o código civil, no que respeita às prestações deserviços e também às empreitadas, se configuradaslegalmente, este fim, podendo guardar seus aspectos deautonomia ou de legítimos empregadores”.32

Onofre Carlos de Arruda Sampaio manifestou-seno sentido de que nem todas as empresas prestadoras deserviços têm como objetivo fraudar a legislaçãotrabalhista, e de que “não estão tais empresas limitadasàs atividades de baixo nível intelectual, meramentebraçais, como limpeza e vigilância, mas abrangeu todosos campos com as que fornecem serviços de alimentação,de programação para computadores, assistência médica,odontologia, assistência técnica para equipamentos,manutenção elétrica, etc”.33

Amador Paes de Almeida deu a interpretação nosentido de que “em nenhum momento quis o Enunciadotranscrito eivar de nulidade a verdadeira terceirização,que consiste na contratação de empresas prestadoras deserviços para a realização das operações secundárias, aindaque permanentes, assim consideradas, como já se frisou,aquelas que não se relacionem com a atividade-fim”.34

Na opinião de Marly A. Cardone, o TribunalSuperior do Trabalho exorbitou ao editar o Enunciadon. 256, cristalizando o que não é cristalizável, já que aJurisprudência, em sua função integrativa e formuladorado Direito, deve ter exatamente a flexibilidade que a leinão pode ter, examinando as facetas de cada caso.35

30 Enunciado n. 256: a mão-de-obra contratada e empresas de prestação de serviços, Revista LTr,, vol. 51, p. 276.31 Empresas prestadoras de serviços – Enunciado n. 256 – Súmula de jurisprudência predominante do Tribunal Superior do Trabalho.

Suplemento Trabalhista LTr, n. 35, p. 179-180.32 Enunciado n. 256 do TST. Suplemento Trabalhista LTr, n. 7, p. 28.33 Na contramão da história. Suplemento Trabalhista LTr, n. 18, p. 110.34 A terceirização no Direito do Trabalho: limites e fraude à lei, terceirização no direito do trabalho e na economia, p. 37.35 A terceirização e seus reflexos no direito do trabalho. Revista de Direito do Trabalho, n. 80, p. 22.36 Política do trabalho, p. 60.

Manifestou-se Octávio Bueno Magano dizendoque o Enunciado em questão “mostrou-se inteiramentedivorciado da realidade palpitante em nossos dias, emque se sobressai o fenômeno da cooperação entreempresas, explicável pelas exigências da técnica e pelaexacerbação da concorrência. Para enfrentar aconcorrência, cada vez mais aguçada, a empresa precisaaumentar a sua produtividade, o que a leva a seespecializar e a adquirir, no campo de sua especialização,dimensão que lhe permita o uso intenso da técnica”.36

A orientação jurisprudencial do Tribunal Superiordo Trabalho, contida no Enunciado n. 256, contrariava aidéia da terceirização, impedia a contratação dasempresas prestadoras de serviços; por isso, à época sedefendia a sua revisão, o que de fato veio ocorrer com aedição do Enunciado n. 331.

Através da Resolução n. 23/93, o Órgão Especialdo Tribunal Superior do Trabalho aprovou o Enunciadon. 331, publicado no Diário da Justiça da União de 21 dedezembro de 1993, com a seguinte redação:

Contrato de Prestação de Serviços – Legalidade– Revisão do Enunciado n. 256.

I A contratação de trabalhadores por empresainterposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamentecom o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalhotemporário. (Lei n. 6.019, de 03.01.74).

II A contratação irregular de trabalhador,através de empresa interposta, não gera vínculo deemprego como os órgãos da Administração PúblicaDireta, Indireta ou Fundacional (art. 37, II, daConstituição da República).

III Não forma vínculo de emprego com otomador da contratação de serviços de vigilância (Lein. 7.102, de 20.06.83), de conservação e limpeza, bemcomo a atividade-meio do tomador, desde queinexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

IV O inadimplemento das obrigações traba-lhistas por parte do empregador implica a responsabi-lidade subsidiária do tomador dos serviços quanto

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àquelas obrigações, desde que este tenha participadoda relação processual e conste também do títuloexecutivo judicial.

A revisão do Enunciado n. 256 partiu derequerimento do Ministério Público do Trabalho, emface de divergências interpretativas, com relação aoalcance daquele Enunciado sobre as contratações deprestação de serviços efetuadas pelos órgãos públicos.

Foram instaurados inquéritos civis públicoscontra o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federalface à alegações de terceirização ilegal efetuadas por estesbancos oficiais, com a finalidade de fraudar a legislação.Assim, o Banco do Brasil firmou termo de compromissoperante a Procuradoria Geral do Trabalho, no sentidode regularizar a situação ilegal no prazo de 240 dias,abrindo concurso público para as atividades de limpeza,ascensorista, telefonista, copa, gráfica e digitação.37

Depois o Banco do Brasil teve dificuldades derealizar os concursos em relação aos serviços de limpeza,face à impossibilidade de adequação dos candidatosaos cargos disputados, já que sem exigência deescolaridade e as funções sem caráter técnico; temeu-seque as pessoas qualificadas seriam aprovadas apenascom o objetivo de ingressar no banco e depois galgaroutras funções, ficando as atividades para as quaisprestaram concurso desatendidas.38

Diante da importância da questão, o TribunalSuperior do Trabalho reviu o Enunciado n. 256 e amatéria debatida está prevista no Enunciado n. 331, queno item II diz que, mesmo irregular, a contratação dotrabalhador por empresa interposta não gera vínculoempregatício com a Administração Pública.

Assim, o Tribunal Superior do Trabalho eliminoua utilização do expediente fraudulento do ingresso nosórgãos da Administração Pública através da utilizaçãode empresa prestadora de serviços, pois a Justiça doTrabalho, fulcrada no Enunciado n. 256, reconhecia ovínculo de emprego.

No entanto, como se denota o Tribunal Superiordo Trabalho não se limitou a tratar da contração deempresas de prestação de serviços pela AdministraçãoPública, tratou de outros aspectos jurídicos pertinentesà terceirização, como as hipóteses em que ela é possível eainda dos efeitos jurídicos para o tomador dos serviços.

O inc. I praticamente repetiu a redação doEnunciado n. 256, no sentido de considerar ilegal a

37 Redação da Revista LTr, vol. 58, p. 738 Ibid., mesma página.

contratação de mão-de-obra através de empresa interposta,já que a terceirização tem como objetivo a prestação deserviços e não locação permanente de mão-de-obra.

No inc. II, conforme já mencionado acima, tratoude terceirização, especificamente no setor público, como intuito de evitar fraudes e seguir o mandamentoconstitucional, previsto no art. 37, inc. II, no sentido deque a pessoa somente se torna funcionária ou empregadapública, mediante concurso.

O Tribunal Superior do Trabalho flexibilizou apossibilidade de se contratar empresas prestadoras deserviços, conforme consta no inc. III, prevendo apossibilidade de contratação de serviços especializadosligados à atividade-meio das empresas.

No entanto, menciona a possibilidade de serreconhecido o vínculo de emprego no caso de existirsubordinação e pessoalidade do trabalhador para coma empresa tomadora dos serviços.

Importante conseqüência da terceirização, constano inc. IV do Enunciado n. 331, que cuida da responsa-bilidade do tomador dos serviços no caso de inadimple-mento das obrigações trabalhistas por parte do empre-gador, e que teve a sua redação alterada pela Resoluçãon. 96/2000, pelo Pleno do Tribunal Superior doTrabalho, passando a vigorar com a seguinte redação:

IV O inadimplemento das obrigaçõestrabalhistas, por parte do empregador, implica naresponsabilidade subsidiária do tomador dos serviços,quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãosda administração direta, das autarquias, das fundaçõespúblicas, das empresas públicas e das sociedades deeconomia mista desde que hajam participado da relaçãoprocessual e constem também do título executivojudicial (art. 71 da Lei n. 8.666/93).

A alteração foi no sentido de constar, expressa-mente, a responsabilidade subsidiária da AdministraçãoPública pelas obrigações trabalhistas não pagas peloprestador dos serviços.

Tanto as empresas privadas como a AdministraçãoPública serão responsabilizadas pelo pagamento dosdireitos trabalhistas dos empregados das empresas deprestação de serviços, na hipótese dessas empresas nãohonrarem com tais direitos. Assim, o trabalhadorlesado, cobrará do seu empregador (empresa presta-dora), caso esta não pague ou não tenha condições depagar, quem pagará será a empresa tomadora.

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5 – CONCLUSÃODentre as manifestações de flexibilização do Direito

do Trabalho no Brasil, destaca-se a terceirização, queconsiste na possibilidade de uma empresa (tomadora dosserviços) contratar outra empresa (prestadora dosserviços) para realizar determinadas atividades, que anteseram realizadas pela própria empresa tomadora.

Terceirizando atividades, a empresa contratantedeixa de ser responsável por todas as etapas do processoprodutivo, o que repercute no Direito do Trabalho, quesempre esteve apoiado na empresa auto-suficiente, e coma terceirização, ocorre uma desconcentração do traba-lho, na medida em que alguns serviços são realizadospor terceiros.

A terceirização traz conseqüências para o mercadode trabalho, para a economia e para o Direito do Trabalho.

O tomador dos serviços deve se resguardar nomomento de contratar serviços de outra empresa,verificando se a contratada mantém contrato detrabalho com os trabalhadores, para que eles possamficar protegidos pela legislação trabalhista, pois, caso acontratante pretenda utilizar a terceirização apenas como objetivo de fraudar a legislação, camuflando a relaçãode emprego, poderá ser reconhecido o vínculoempregatício entre o tomador e o trabalhador.

A empresa contratante é responsável subsidiária,segundo o posicionamento do Tribunal Superior doTrabalho, pelas obrigações trabalhistas não pagas pelaempresa contratada.

Seria de bom alvitre que o legislador, atento aofenômeno da terceirização e suas conseqüências,regulamentasse a matéria, para gerar maior segurançapara os contratantes e trabalhadores envolvidos.

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BANCO DE DADOS

R E S U M O A B S T R A C T

Sergio Martins RstonMestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Procurador do Município de São Paulo.Professor Efetivo do Instituto Municipal de Ensino Superior de São Caetano do Sul – IMES.

Patrícia Mariano QuevedoAluna do Curso de Bacharel em Direito no Instituto Municipal de Ensino Superior de

São Caetano do Sul – IMES.

Os Bancos de Dados e cadastros de consumidoressão entidades de caráter público, ainda que particulares,não havendo mais dúvidas sobre o caráter públicodessas entidades.

PALAVRAS-CHAVE: bancos de dados, cadastro deconsumidores, Código de Defesa do Consumidor.

The Databases and cadasters of consumers are entitiesof public character, although matters, do not having moredoubts on the public character of these entities.

KEYWORDS: databases, cadasters of consumers,Consumer Defense Code.

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1 – INTRODUÇÃOO que é um banco de dados e cadastro de consu-

midores na ótica do Código de Defesa do Consumidor?Quais são os seus efeitos perante os consumidores? Aanálise dos bancos de dados e cadastros similares e alémdo mais, do remédio jurídico que advenha dessa relaçãoentre banco de dados e consumidores, é um assunto quetem despertado o interesse dos estudiosos.

2 – ACESSO AOS DADOSPara abordar o tema é importante que se examine

o sentido do caráter público dado aos bancos de dados.Fábio Ulhoa Coelho (apud GRINOVER, Ada Pellegrinie outros, Revista de Direito do Consumidor n. 1. São Paulo:RT, p. 77): “entende que os bancos de dados e cadastros,como entidades de caráter público, significa, apenas, queo armazenamento dos dados sobre os consumidores nãointeressa apenas ao proprietário do arquivo, mastambém às pessoas nele inscritas”. Por isso, entendetambém que o acesso às informações armazenadas éreconhecido somente a quem demonstre ter legítimointeresse ou, em outras palavras, cada consumidor temacesso aos dados relativos a ele próprio somente,admitindo ele, numa interpretação extensiva, nomáximo, o interesse dos sucessores, do cônjuge ou doinventariante quanto aos dados de pessoa falecida.Quanto aos demais, somente por ordem judicial, noslimites constitucionais.

Sundfeld Carlos Ari (In: Revista da ProcuradoriaGeral do Estado de São Paulo, dez. 1989, p. 110):questiona: O que são as entidades de caráter público?“Respondendo que não são, obviamente, as de carátergovernamental, porque então seria desnecessário oesclarecimento. As entidades de caráter público sópodem ser pessoas privadas que desempenham atividadeprivada e que passam, por força da Constituição, a seremobrigadas a prestar informações sobre os seus registros”.

Com a vigência do CDC, prevendo em seu art. 43,§ 4°, que os bancos de dados e cadastros relativos aconsumidores, os serviços de proteção ao crédito econgêneres são considerados entidades de caráterpúblico, não há mais dúvidas sobre o caráter públicodessas entidades privadas, bem como e até mesmo ospróprios bancos de dados de órgãos públicos, pelostermos do art. 29, combinado com o art. 3°, tambémtem caráter público, isto é, de acesso aos cidadãos econsumidores.

3 – DIREITO DE ACESSO, SOB AÓTICA DO CÓDIGO DE DEFESA DOCONSUMIDOR

Dispõe o CDC, em seu art. 43, caput, que aoconsumidor é garantido o “acesso às informaçõesexistentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoaise de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre assuas respectivas fontes”.

O acesso que tem o consumidor aos assentoslavrados em seu nome é direito básico estatuído peloCDC no campo dos arquivos de consumo. Numaseqüência lógica, é posterius em relação ao direito decomunicação, que é prius.

4 – RESPONSABILIDADE CIVILDOS ARQUIVOS DE CONSUMO

Os bancos de dados e os seus usuários respondempelas irregularidades que sucedem na sua operação.Trata-se de responsabilização civil, mas tambémadministrativa e penal.

Segundo o Desembargador Araken de Assis, (TJRS,5ª Turma, Ap. Civil n. 597.118.926, Lajeado, RS, rel. des.Araken de Assis, j. 07/08/97, v.u., Baasp 2044/481), unsdos mais lúcidos juristas do Brasil: “são deveras bemconhecidos os reflexos terríveis que a inscrição no Serviçode Proteção ao Crédito e em outros bancos de dadoscausam às pessoas, ao lhe restringir ou vetar acesso aocrédito”. E, pior, em face do freqüente descumprimentodo art. 43, § 2°, da Lei n. 8.078/90, que exige comunicaçãoao consumidor para abrir o cadastro, a pessoa só descobrea anotação infamante em situações vexatórias, quandoprocura realizar negócios. Esses “reflexos terríveis” sãotratados pelo ordenamento jurídico como perdas e danos,terreno próprio da responsabilidade civil.

Marco Antonio Zanelatto e Edgard Moreira daSilva, (Ação civil pública, p. 328): narram com realismoos percalços e prejuízos sofridos pelo consumidorindevidamente ‘negativado’. “Primeiro, é afetado seucrédito, impedindo a realização de negócios edenegrindo a sua imagem, pois ele passa a ser visto, nomeio social, como um mal pagador, como uma pessoaque não honra seus compromissos e, por isso, não émerecedora de crédito. Sofrem, assim, vexames econstrangimentos perante os empregados da loja ondeseu crédito foi recusado, os seus amigos, familiares etc.Não bastasse isso, para voltar a ter crédito na praça,encontra inúmeras dificuldades, pois, normalmente, sóconsegue eliminar os dados negativos existentes a seurespeito, nos bancos de dados, mediante ação judicial,

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cuja tramitação, como se sabe, em decorrência de váriosfatores, é lenta e o resultado, incerto. Assim, a ‘negati-vação’ de seu nome nesses arquivos acaba protraindo-seno tempo, com sérios transtornos a sua pessoa, quer naesfera patrimonial, quer na moral”.

Ninguém, realmente, contesta que a inscriçãoindevida ou incorreta abala o crédito de qualquer um eque com o assento desmerecido advem, normalmente,prejuízos patrimoniais e morais ao consumidor,conclusão essa que já encontraria suficiente fundamentadano Código Civil, mas que é, de maneira explícita, exigida“pela definição legislada do direito básico do consumidorprevisto no art. 6°, VI, do Código: efetiva reparação dedanos patrimoniais e morais (individuais, coletivos edifusos)”. Eventual indenização, é oportuna recordarneste ponto, é aferida de acordo com o regime especial deresponsabilidade civil estatuído no CDC.

Ao consumidor que deixa de realizar negócio porconta de notícia denegridora que o banco de dadosrepassa ao potencial parceiro contratual, bem instruiEduardo Gabriel Saad (Comentários ao Código de Defesado Consumidor, São Paulo, LTr, 1991, p. 251): “assiste odireito de postular em juízo uma compensação financeirapelos danos conseqüentes”.

A coleta, armazenamento e circulação, pois, deinformações sobre o consumidor contaminado porfalsidade, enganosidade, inexatidão, insuficiência oudesconformidade com os pressupostos que orientam osarquivos de consumo trazem, consigo, no plano cível, odever de reparar eventuais danos causados. O caráterdesabonador, isto é, danoso, é intrínseco à manutençãoou prestação de informação nessas condições.

O tema, desde a promulgação do CDC, vemfreqüentando, amiúde, os Tribunais Brasileiros que,atentos aos parâmetros constitucionais e legais, assimcomo aos reclamos sociais, vêm tutelando o consumidorcontra várias modalidades de abusos praticados pelosarquivos de consumo. Com a percuciência própria dosnotáveis civilistas, nota Cláudia Lima Marques(Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 3. ed.,São Paulo, RT, 1998, p. 633): “em excelente e pioneiraobra, que, nestes primeiros anos de vigência do CDC, ajurisprudência brasileira tem-se mostrado especialmentesensível ao problema do ressarcimento do dano moralsofrido pelo consumidor em suas relações de consumocom fornecedores e seus auxiliares profissionais (SPC,cartórios de protesto de títulos, jornais etc). Esta massivaresposta jurisprudencial, de uma unanimidade poucasvezes observada em matéria de defesa do consumidor,pode ter sua origem na hierarquia constitucional daproteção da personalidade e da dignidade humana, mas

demonstrou de forma clara a importância da atuaçãodo Judiciário na criação de uma sociedade mais ética”.

5 – DANOS INDENIZÁVEISComo sucede em outras áreas da atividade humana,

os danos causados pelo consumidor por conta daoperação dos arquivos de consumo, na área cível, são dedois tipos: patrimoniais e morais. Como regra, o ato quedispara a responsabilidade civil é a inscrição indevida,qualquer que seja o seu fundamento ou justificativa.

6 – DANOS PATRIMONIAISCaracterizam os danos patrimoniais pelo fato de a

vítima ver diminuído seu patrimônio, inclusive pela perdade uma vantagem que o crédito lhe propiciaria (umnegócio de momento; a aquisição de um produto ouserviço em liquidação, ou, ainda, de um imóvel emcondições privilegiadas, por exemplo) e que acaba porser frustrada pela informação incorreta ou desatualizadado arquivo de consumo. Normalmente, o valor do danoé aquele da vantagem perdida ou inviabilizada.

7 – DANOS MORAISA indenização do dano moral vem prevista

expressamente no CDC, art. 6°, VI e VII que assegura aoconsumidor, como direito básico, “o acesso aos órgãosjudiciários e administrativos, com vistas à prevençãoou reparação de danos patrimoniais e morais,individuais, coletivos ou difusos”. No caso dos arquivosde consumo, sua gênese encontra-se nos dissaboressofridos pelo negativado.

Como bem leciona o min. Ruy Rosado de Aguiar(STJ, 4ª Turma, RE n. 51.158-5-ES, rel. min. Ruy Rosadode Aguiar, j. 27/03/95, v.u.), ao decidir caso concreto:“o indevido protesto, a inscrição irregular em banco dedados sobre devedores relapsos, a ilegítima divulgaçãode fatos desabonatórios, etc., são situações que ofendemo sentimento das pessoas e, por isso, são consideradascausas eficientes de danos não patrimoniais”.

Há uma presunção relativa de que a negativaçãoindevida implica dano moral para o consumidorofendido. Mais ainda quando fatos concretos deconstrangimento têm lugar, como a denegação decrédito no instante da compra e venda. Desnecessáriaseja a recusa presenciada por múltiplas pessoas, bastandoa simples rejeição, que normalmente é constatada porpelo menos um empregado do fornecedor.

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A imagem do cidadão, mais ainda numaConstituição que tanto a valoriza, é tão central à suaexistência quanto a de uma empresa. Lembra, Araken deAssis (TJRS, 5a Turma, Ap. Civil n. 597.118.926, Lajeado,RS, rel. des. Araken de Assis, j. 07/08/97, v.u., Baasp 2.044/481 Apud), com sua habitual propriedade: “que não parecehaver a menor dúvida de que, comparativamente aosinteresses patrimoniais, os direitos inerentes à persona-lidade se ostentam axiologicamente mais relevantes.Merecem proteção mais acurada. É mais importanteindenizar a lesão à honra, à fama, à imagem, à privacidadedo que uma bicicleta e um automóvel”.

Como é próprio do dano moral, o valor daindenização há que ser substancial, pois do contrárionão cumpre seu papel preventivo de dissuadir o infratora praticar condutas futuras similares. A exemplaridadenorteia o regramento do dano moral, com mais razãoem situações onde o violador é poderoso e a vítima éconsiderada parte vulnerável, bem como quando ascondutas infrativas são reiteradas, afetando a um sótempo milhares de vítimas, com somente uma centelhadessas buscando remédio judicial. Recomenda-se que aindenização, respeitada o princípio da razoabilidade,não seja calculada em valor inferior ao valor do débitoindevida ou inadequadamente noticiado.

Os danos morais levam em conta o caráter reiteradoda prática, bem como a persistência em recusaratendimento aos reclamos legítimos do consumidor,conotação essa que, reiteremos, é própria ao seu caráterpunitivo, já que sua finalidade não é exclusivamenteressarcitória. O magistrado, em nenhuma hipótese, deveráse mostrar complacente com o ofensor contumaz, queamiúde reitera ilícitos análogos. E a severidade despontarána necessidade de desestimular a reiteração do ilícito.

8 – SANÇÕES ADMINISTRATIVASA Administração Pública pode – e deve – punir

práticas abusivas. Conseqüentemente, qualquerviolação dos direitos estampados no art. 43 do CDCsujeita seus infratores às sanções administrativasprevistas no art. 56 do mesmo Código.

São particularmente úteis no controle dos arquivosde consumo a multa, a suspensão do fornecimento doserviço (prestação de informações), a suspensãotemporária de atividade e a cassação de licença doestabelecimento ou da atividade.

Nelson de Azevedo Jobim (Código Brasileiro deDefesa do Consumidor Comentado pelos Autores doAnteprojeto, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 7. ed.,p. 431): são consideradas práticas infrativas, punidas com

multa ou, dependendo de sua gravidade, com quaisquerdas outras sanções previstas no art. 18, do decreto:

a) Impedir ou dificultar o acesso gratuito doconsumidor às informações existentes em cadastros,fichas, registros de dados pessoais e de consumo,arquivados sobre ele, bem como sobre as respectivasfontes;

b) Elaborar cadastros de consumo com dadosirreais ou imprecisos;

c) Manter cadastros e dados de consumidorescom informações negativas, divergentes da proteçãolegal;

d) Deixar de comunicar, por escrito, ao consu-midor a abertura de cadastro, ficha, registro de dadospessoais e de consumo, quando não solicitada porele;

e) Deixar de corrigir, imediata e gratuitamente,a inexatidão de dados e cadastros, quando solicitadopelo consumidor;

f) Deixar de comunicar ao consumidor, noprazo de cinco dias úteis, as correções cadastrais porele solicitadas.

9 – SANÇÕES PENAISO descumprimento dos deveres inerentes à

operação dos arquivos de consumo, além de implicaçõesde natureza civil e administrativa, também abre apossibilidade de repressão penal. Com isso, fica clara aimportância que o legislador conferiu à matéria.

Dois dos direitos básicos do consumidor nesta áreareceberam proteção penal: O direito de acesso e o direitode retificação imediata.

Quanto àquele, estabelece o art. 72:

Art. 72. Art. 72. Art. 72. Art. 72. Art. 72. Impedir ou dificultar o acesso doConsumidor às informações que sobre ele constemem cadastro, banco de dados, fichas ou registros:

Pena Pena Pena Pena Pena – Detenção de seis meses a um ano oumulta.

Atenção para a linguagem do dispositivo.Pune-se não só o impedimento do acesso comotambém o mero embaraço. É o caso do arquivista quedesrespeita os direitos do consumidor quanto àlinguagem do arquivo (especialmente os direitos àinformação objetiva, clara e de fácil compreensão).

A retificação imediata, se não cumprida,também configura crime:

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Art. 73. Art. 73. Art. 73. Art. 73. Art. 73. Deixar de corrigir imediatamenteinformação sobre Consumidor constante de cadastro,banco de dados, fichas ou registros que sabe ou deveriasaber ser inexata.

Pena – Pena – Pena – Pena – Pena – Detenção de um a seis meses ou multa.

Cabe ainda lembrar o tipo do art. 71 que, emboratratando especificamente das cobranças de dívidas, incluino seu campo de aplicação irregularidades praticadasno exercício da atividade de bancos de dados,nomeadamente quando são usados como formarepudiada de arrecadação contra o inadimplente.

Assim já decidiu, no plano cível, o STJ:

Constitui constrangimento e ameaça vedadospela Lei n. 8.078, de 11/09/90, o registro do nome doconsumidor em cadastros de proteção ao crédito,quando o montante da dívida é ainda objeto dediscussão em juízo.

José Geraldo Brito Filomeno (Manual de direitodo consumidor, 3. ed., São Paulo, Atlas, 1999, p. 278),assevera a respeito da omissão na correção de dadosincorretos (art. 73, CDC):

Art. 73 (...)Art. 73 (...)Art. 73 (...)Art. 73 (...)Art. 73 (...)

Trata-se de consectário lógico do anterior,tendo por escopo uma vez mais, reafirme-se, ocumprimento efetivo de norma estatuída na partematerial-civil do Código do Consumidor, isto é, nomesmo art. 43, que cuida dos bancos de dados ecadastros de consumidores, mais particularmente noseu § 3° e também dos §§ 4° e 5°, a saber:

Art. 43 (...)Art. 43 (...)Art. 43 (...)Art. 43 (...)Art. 43 (...)

§ 4° Os bancos de dados e cadastros relativos aconsumidores, os serviços de proteção ao crédito econgêneres são considerados entidades de caráterpúblico.

O núcleo do tipo em questão é expresso pelo verbodeixar (comportamento omissivo, pois) de corrigir dadosinexatos a respeito de qualquer consumidor em bancosde dados, tratando-se por conseguinte de delito formal ede natureza instantânea com efeito permanente, ou seja,sua consumação se protrai no tempo até que cesse apermanência nos registros, arquivos, fitas gravadas ouqualquer outro meio de armazenamento de informações.

O sujeito ativo é definido pelo § 3° do art. 43retromencionado, ou seja o arquivista ou responsávelpela manutenção dos referidos dados.

Como o tipo utiliza o advérbio imediatamentecom vistas à correção dos dados inexatos, e o ainda § 3°do art. 43 fala em cinco dias úteis por uma questão de

coerência mesmo porque ainda que a negativação, comose diz com relação a dados constantes de serviços deproteção ao crédito, por exemplo, possa ser feita comuma simples digitação, por certo haverá uma ordem deprocessamento dos dados. Trata-se uma vez mais de delitode perigo,,,,, portanto, independo de qualquer resultadodanoso – por exemplo, o consumidor com seu nomenão “negativado” não consegue fechar determinadonegócio em decorrência do dado inexato –, consuma-sepela simples constatação de que aquele não foi corrigidono prazo assinado. É evidente que, se houver danosefetivos, serão objeto de indenizações cabíveis.

O que se procura preservar, por certo, é adignidade e o crédito do consumidor, porque, comonotório, raros bens, sobretudo os de consumo duráveispodem prescindir de financiamento, sem falar-se emimpedimento de abertura de contas bancárias,hospedagens em hotéis, passagens aéreas, etc.

O § 4° do art. 43 ainda é complementar dodispositivo constitucional previsto pelo art. 5°, inc.LXXII da Constituição da República ao cuidar do habeasdata, já explicitado anteriormente.....

Segundo o Autor, “as ações de mandado desegurança e de habeas data destinam-se, por sua natureza,à defesa de direitos subjetivos públicos e têm, portanto,por objetivo precípuo os atos de agentes do PoderPúblico”, concluindo que “por isso, a sua extensão ouaplicação a outras situações ou relações jurídicas éincompatível com sua índole constitucional”, e “osartigos vetados, assim, contrariam as disposições dosinc. LXXI e LXXII do art. 5° da Carta Magna”. Mas osmencionados dispositivos, como já assinalado, falamprecisamente em habeas data relativamente à “bancosde dados de entidades governamentais ou de caráterpúblico”. Ora, para os efeitos do Código doConsumidor, quis o legislador ordinário complementaro dispositivo constitucional, dizendo exatamente queos bancos de dados e cadastros relativos a consumidores,os serviços de proteção ao crédito e congêneres sãoconsiderados entidades de caráter público.

Fábio Ulhoa Coelho (O empresário e os direitos doconsumidor: o cálculo empresarial na interpretação doCódigo de Defesa do Consumidor, São Paulo, Saraiva,1994, p. 154), tem o seguinte entendimento no tocanteao tema: “O banco de dados e cadastro de consumidoresé uma matéria indiretamente relacionada com aformação dos contratos de consumo e inserida nocapítulo das práticas comerciais do Código de Defesado Consumidor é a atinente aos bancos de dados ecadastro de consumidores. A ligação com o tema residenas finalidades desses instrumentos de memória

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empresarial, entre as quais se insere a de subsidiar ofornecedor durante as tratativas que antecedem acelebração do contrato de consumo”.

O tratamento das informações representa,atualmente, uma importante função administrativadentro da organização empresarial. Na verdade, sempredesempenhou papel relevante em qualquer ramo daatividade humana, mas, em razão do recente eextraordinário desenvolvimento da informática, astecnologias de organização de dados têm propiciado usosdinâmicos da informação. O que antes devia ser intuídopelo empresário, para melhor conhecer a clientela a seratendida, pode hoje ser objetivamente pesquisado,ordenado e armazenado. A informação sobre oconsumidor efetivo ou potencial é instrumentoimprescindível para as decisões do empresário. Asinformações específicas sobre cada consumidorindividualmente considerado têm a mesma importância,não apenas no que se refere ao cumprimento de cadacontrato em particular, mas também como base paraanálises gerais sobre o comportamento dos consumidores,o desempenho de certo produto, o direcionamento dapublicidade, as possibilidades de ampliação dos negócios,etc. Em suma, o tratamento das informações, tanto doperfil dos consumidores em geral como de cada um emparticular, é instrumento do cálculo empresarial.

No entanto, assim como as informações individuaissobre um consumidor podem servir, juntamente com asdemais relativas ao giro do empresário, à definição dapolítica empresarial, elas podem ser utilizadas tambémem prejuízo do mesmo consumidor, notadamente quandobaseadas em dados negativos ou errados sobre a sua pessoa.É a partir dos elementos reunidos em cadastro que aempresa fornecedora constrói a imagem de cadaconsumidor. O Código de Defesa do Consumidorpreocupa-se com a imagem que determinadas categoriasde consumidores passam a ter no interior da organizaçãoempresarial do fornecedor, em função de informaçõesnegativas ou erradas constantes de cadastros, fichas,registros e dados arquivados. Constitui, em outrostermos, legítimo interesse do consumidor conhecer oconteúdo das informações sobre ele armazenadas pelofornecedor para, se for o caso, exigir a sua correção.

A disciplina dos bancos de dados e dos cadastros deconsumidores aplica-se a qualquer armazenamento deinformações, informatizadas ou não, precárias oualtamente organizadas. O pequeno fornecedor, quemantém na agenda dados de sua freguesia, e o grandeempresário têm o dever de observar o regime disciplinardo tratamento das informações sobre os consumidores.Nesse sentido, estabelece a lei que o armazenamento de

informações deve ser feito de maneira objetiva, clara,verdadeira e em linguagem de fácil compreensão. Nãopoderá haver o uso de códigos internos do fornecedor,portanto, a menos que sejam dados ao conhecimento dosinteressados as chaves e significados correspondentes. Autilização de códigos pressupõe a possibilidade dedecodificação por qualquer pessoa que domine a línguapátria. Também não é admissível o arquivo de informa-ções falsas, incompletas ou obscuras.

O cadastro pode conter classificação doconsumidor feita pelo fornecedor, dentro dos critériosque considerar necessários ou úteis à orientação de seusnegócios. Assim, podem perfeitamente constar dosregistros internos do empresário qualificativos como“especial”, “comum” e outros, que sintetizem informaçõesglobais de avaliação da relação negocial estabelecida como consumidor. Isto, aliás, é particularmente usual nasinstituições financeiras, em que o tratamento preferencialliberado a certos clientes relaciona-se com o conceito dereciprocidade, isto é, concentração de interesses e negóciosem determinado banco. As classificações internas, noentanto, não podem se revestir de caráter subjetivo. Aocontrário, por força de lei (CDC, art. 43, § 1°), devempautar-se exclusivamente em critérios objetivos, para queos consumidores tenham meios de aferir a adequação dosseus enquadramentos.

Há alguns dados negativos do Consumidor que,mesmo sendo verdadeiros, não podem constar docadastro. São os relativos a fatos ocorridos além de umperíodo de 05 (cinco) anos, e também os fatos íntimos daspessoas independentemente de qualquer prazo. Osfornecedores não podem manter essas informaçõesarmazenadas em nenhum cadastro, ainda que secundário.O dado deve ser simplesmente eliminado, deletado dosistema. Há quem considere, não sem razão, deconstitucionalidade duvidosa essa exigência legal, namedida em que os bancos de dados e cadastros são bensdo patrimônio do empresário que consomemconsideráveis recursos. Assim, a norma determinativa desua eliminação compulsória afrontaria o direitoconstitucional da propriedade “cf. Caggiano, 1991, (FábioUlhoa Coelho. O empresário e os direitos do consumidor,São Paulo, Saraiva, 1994, p. 156)”.

Note-se bem a exata extensão do comandonormativo pertinente à eliminação dos dados negativos.A lei, literalmente, não exige que o período de referênciacorresponda, necessariamente, aos 5 anos imediatamenteanteriores. Qualquer período de 5 anos pode ser escolhidopelo fornecedor como referência a determinadoconsumidor. O que o direito positivo não admite é oarmazenamento de informações negativas sobre certa

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pessoa pertinentes a dois ou mais eventos ocorridos comseis, sete ou oito anos de distância entre eles.

Por informação negativa, entende-se aquela que,de qualquer modo, influi ou pode influir depreciativa-mente na formação da imagem do consumidor peranteo fornecedor ou perante a quem dela tome conhe-cimento. Claro que o juiz deve se valer de padrões moraismédios na aferição da negatividade da informação,atento à pluralidade de valores que permeia as classes eos agrupamentos sociais.

Os bancos de dados e cadastros de consumidores,assim como os serviços de proteção ao crédito econgêneres, são considerados entidades de caráterpúblico. Esta definição não significa, contudo, quequalquer pessoa, indistintamente, tenha direito de acessoàs informações neles armazenadas. Isto por duas razões.Em primeiro lugar, para proteger a privacidade esegurança das pessoas cadastradas, posto que certasinformações, particularmente as relativas à renda epatrimônio do consumidor, imprescindíveis à concessãode crédito, não podem ser divulgadas pelo fornecedor.Em segundo lugar, porque a confecção de cadastroabsorve considerável custo, suportando por um ou maisempresários. As informações armazenadas têm, emdecorrência, valor econômico.

A definição dos cadastros como entidades decaráter público significa, apenas, que o armazenamentodos dados sobre os consumidores não interessa apenasao proprietário do arquivo, mas também às pessoas neleinscritas. Nesse contexto, o acesso às informaçõesarmazenadas é reconhecido somente a quem demonstreter legítimo interesse. Em outros termos, cadaconsumidor pode acessar somente os dados relativos aele próprio. Uma interpretação extensiva poderialegitimar, no máximo, o interesse de sucessores, docônjuge ou do inventariante quanto aos dados de pessoafalecida. Em qualquer outra circunstância, oproprietário não está obrigado a franquiar o acesso aocadastro senão por ordem do Poder Judiciário.

O empresário, proprietário do cadastro, podefornecer, gratuita ou onerosamente, a quem ele desejaras informações armazenadas, desde que obedeça,estritamente, eventuais instruções do cadastrado notocante ao sigilo de certos dados. Mesmo na ausência dequalquer manifestação específica do consumidor, ofornecimento de dados armazenados deve resguardar,com rigor, as informações relativas à sua privacidade,como renda, patrimônio, doenças etc. O empresárioresponderá por perdas e danos, inclusive morais, casoforneça sem critério a terceiros os dados arquivados emseus cadastros, ainda que verdadeiros.

O consumidor tem o direito de acesso aos dadossobre ele existentes no arquivo de qualquer fornecedor.A lei não estabelece a forma, de sorte que basta solicitardiretamente ao proprietário do cadastro. Este, verificandoencontrar-se legitimado o requerente, deve transmitir-lhe o inteiro teor das informações existentes sobre suapessoa nos bancos de dados. Poderá exigir pagamentopor tal serviço, desde que o preço correspondente nãoinviabilize o exercício do direito pelo consumidor.

O direito de acesso ao cadastro compreende,também, o de ser informado acerca da fonte dos dadosarmazenados, não podendo o fornecedor negar-se aapontá-la. O contrato de cessão de banco de dados,portanto, não deve conter cláusula impeditiva documprimento dessa obrigação pelo cessionário.

A conduta de impedir ou dificultar o acesso doconsumidor às informações constantes de arquivoconfigura crime (CDC, art. 72). Responde penalmenteo dirigente da empresa responsável pela orientação deque resultou a obstaculizarão ou dificuldade de exercíciodo direito pelo consumidor. Não há, portanto, responsa-bilidade penal do empresário se ficar demonstrada ainiciativa de dirigente, ou de chefia intermediária daestrutura administrativa da empresa, como o fatordeterminante da negativa de acesso aos bancos de dadosou cadastros da empresa.

Na defesa de seu direito de acesso aos bancos dedados e aos cadastros mantidos por fornecedores, osconsumidores podem valer-se do habeas data, em razãoda natureza pública conferida pelo art. 43, § 4°, doCódigo de Defesa do Consumidor às informações nelesarmazenadas. Por essa razão, é inoperante o veto doChefe do Executivo ao art. 86 do Código de Defesa doConsumidor, que expressamente se referia ao conteúdodessa ação constitucional “cf. Watanabe, 1991, (FábioUlhoa Coelho, O empresário e os direitos do consumidor,São Paulo, Saraiva, 1994, p. 159)”. Conhecendo oconteúdo das informações armazenadas sobre a suapessoa, poderá o consumidor exigir a correção dasfalsas, se houverem. Cabe, por certo, a ele própriodemonstrar, ainda que indiciariamente, a falsidade dodado arquivado. Procedida à demonstração do erro,não poderá o empresário deixar de corrigir o dadoarmazenado e deverá, outrossim, comunicar em cincodias a correção efetivada aos destinatários das infor-mações, como, por exemplo, os representantes, as filiais,os associados, etc. Além da hipótese de correçãomotivada por solicitação do consumidor, o próprioresponsável pelo cadastro deverá providenciar o acertose, por qualquer razão, tiver conhecimento da existênciade erro nas informações arquivadas.

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Caso o proprietário do cadastro considereinsuficientemente provada a alegação do consumidor,poderá negar a correção, explicitando e fundamentandosuas razões. Ao consumidor, então, resta apenas requererem juízo a eliminação da falsidade, demonstrando-a. Naação judicial para compelir o fornecedor a alterar o dadoarmazenado, o consumidor pode ser beneficiado pelainversão do ônus de prova, nos termos do art. 6°, VIII, doCódigo de Defesa do Consumidor. Note-se, contudo, quenão caracteriza crime contra as relações de consumo arecusa razoavelmente fundada do empresário em atenderà solicitação de correção se, posteriormente, ele vier a sercondenado a acertar o cadastro em decisão judicial decunho civil, proferida a partir da inversão do ônusprobatório. A conduta tipificada pelo art. 67 do Códigode Defesa do Consumidor destina-se punir aqueles que,sem nenhuma razão consistente, deixaram de corrigir deimediato as informações falsas constantes de cadastro deconsumidor.

10 – REMÉDIO CONSTITUCIONALUTILIZADO PARA O BANCO DEDADOS E CADASTROS SIMILARES– HABEAS DATA

Segundo o Saudoso e Ilustre Jurista Pontes deMiranda (Tratado das ações, vol. I, Campinas, Bookseller,1998, p. 300), “quando a Constituição Federal prometeuhabeas corpus, habeas data, mandado de injunção emandado de segurança, inclusive coletivo, nas espéciesque definiu, criou pretensão à tutela jurídica por meio demandamentos, porém somente quem impetre o mandadotem pretensão processual. No texto constitucional, nãosó se promete tutela jurídica; promete-se tutela jurídicamandamental. A pretensão processual, ainda quandohaja qualificação, somente nasce com o exercício daquela.Quando a pretensão à tutela se qualifica, diminui amargem de liberdade que tem o legislador do direitoprocessual. Essa diminuição pode ser obra do direitoconstitucional”.

Assevera James Marins (apud Código de Defesa doConsumidor, São Paulo, RT, Ada Pellegrini Grinover eoutros, p. 434), no universo dos arquivos de consumo,assiste ao consumidor o direito de:

a)a)a)a)a) Obter liminarmente, através de antecipaçãode tutela em habeas data, a imediata anotaçãocontestativa ou explicativa (assentamento verdadeiro,porém justificável) com relação a dados constantesde cadastros de consumo (art. 43, § 3° do CDC, c/carts. 7°, III, da LHD, 84, § 3°, do CDC e 273, do CPC);

b) b) b) b) b) Obter liminarmente, através de antecipaçãode tutela no bojo de ação de revisão de contratofinanceiro em que comprova a inexistência de débito(através de perícia técnica juntada aos autos), a baixaimediata de restrições cadastrais (art. 43, § 3°, do CDC,c/c arts. 7°, II, segunda parte da LHD, 84 § 3°, do CDC).

No que se refere às providências judiciais assegu-radas, o consumidor deve fazer uso do habeas data,preferindo outro instrumento processual implementadordas normas materiais do CDC, não terá à sua disposição apossibilidade de “anotação” rápida nos seus assentamentosde “contestação ou explicação sobre dado verdadeiro, masjustificável, e que esteja sob pendência judicial ou amigável”.Isso porque outro remédio não é previsto no CDC. E não oé, notamos anteriormente, exatamente porque em relaçãoaos bancos de dados de consumo seu efeito prático serianenhum, conquanto o assentamento, mesmo que qualifi-cado pela incerteza derivada de “contestação” ou “explica-ção”, bastaria para “negativar” o consumidor, pondo emrisco, como se a providência mitigadora inexistisse, aviabilidade de seu crédito.

Não queiramos, aqui, comparar os bancos dedados de consumo com os assentamentos criminais quesão, normalmente, apreciados por técnicos especializados(Ministério Público e Juiz), situação bem diversa de umainformação com intuito comercial, manipulada porpessoas (= empregados) sem maiores qualificações e comparcos conhecimentos de Direito. Para estas, poucadiferença faz seja o débito de discussão judicial ou não,apresente-se “contestado” ou não, venha “explicado” ounão. A ouvidos parados, uma tal anotação tem um efeitoinversamente perverso, configurando-se até maisprejudicial à imagem do consumidor, com o significadopara o leigo que o credor foi obrigado a levar seu reclamoà última instância, isto é, a buscar a via judicial paracobrar o débito não pago. E não nos esqueçamos de que,no setor de crédito ao consumidor, todos se fiam cega esolenemente nesses arquivos de consumo. Sua palavra élei, mesmo que contra a lei.

Conseqüentemente, havendo litígio judicial sobreo valor ou mesmo a existência do débito de consumo enão tendo o consumidor feito uso do habeas data, aindaassim cabe ao juiz aplicar os remédios previstos na Lei n.9.507/97 como, por exemplo, determinando a simplesanotação do registro. Só que o processo é mais lento. Asopções judiciais, nos termos do CDC, são somente duas:suspensão (total ou parcial, esta através de retificação)ou manutenção integral do registro. São esses os únicosprovimentos possíveis previstos na legislação de fundodas relações de consumo.

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Finalmente, é bom ressaltar que anotação não seconfunde com retificação. Aquela é uma modestaressalva, pressupondo a preservação integral do arquivoimpugnado, apenas explicando-se a latere que hápendência judicial. Esta, diversamente, subtrai doarquivo a informação litigiosa, exatamente porque tema característica de incerteza, o que viola o pressupostosubstantivo de legitimidade do assento (inquestiona-mento do débito).

Situações várias se apresentam “em que a meraanotação de tais explicações não é suficiente para prevenirdanos ao consumidor, como nos casos em que o mesmodiscute judicialmente (em ação de revisão contratual)débitos com instituições financeiras que consideraindevidos, decorrentes, de cláusulas financeiras nulas”.

A situação é assemelhada àquela que prevalecianos SPCs, onde, por bom tempo, o consumidor“negativado” que adimplisse o débito tinha registrado ainformação “reabilitada.” Logo se verificou que, para ogrosso dos fornecedores, “reabilitado” não significava“confiável”, trazendo uma conotação negativa. Por issomesmo, tais registros foram banidos.

O núcleo do tipo em questão é expresso pelo verbodeixar (comportamento omissivo, pois) de corrigir dadosinexatos a respeito de qualquer Consumidor em bancos dedados, tratando-se por conseguinte de delito formal e denatureza instantânea com efeito permanente, ou seja, suaconsumação se protrai no tempo até que cesse apermanência nos registros, arquivos, fitas gravadas ouqualquer outro meio de armazenamento de informações.

O sujeito ativo é definido pelo § 3° do art. 43retromencionado, ou seja, o arquivista ou responsávelpela manutenção dos referidos dados.

Como o tipo utiliza o advérbio imediatamentecom vistas à correção dos dados inexatos, e o ainda § 3° doart. 43 fala em cinco dias úteis por uma questão decoerência mesmo porque ainda que a negativação, comose diz com relação a dados constantes de serviços deproteção ao crédito, por exemplo, possa ser feita comuma simples digitação, por certo haverá uma ordem deprocessamento dos dados. Trata-se uma vez mais de delitode perigo,,,,, portanto, independe de qualquer resultadodanoso – por exemplo, o consumidor com seu nomenão “negativado” não consegue fechar determinadonegócio em decorrência do dado inexato –, consuma-sepela simples constatação de que aquele não foi corrigidono prazo assinado. É evidente que, se houver danosefetivos, serão objeto de indenizações cabíveis.

O que se procura preservar, por certo, é adignidade e o crédito do consumidor, porque, comonotório, raros bens, sobretudo os de consumo duráveis

podem prescindir de financiamento, sem falar-se emimpedimento de abertura de contas bancárias,hospedagens em hotéis, passagens aéreas etc.

O § 4° do art. 43 ainda é complementar dodispositivo constitucional previsto pelo art. 5°, inc.LXXII da Constituição da República ao cuidar do habeasdata, já explicitado anteriormente.

Segundo o Autor, “as ações de mandado desegurança e de habeas data destina-se, por sua natureza, àdefesa de direitos subjetivos públicos e têm, portanto, porobjetivo precípuo os atos de agentes do Poder Público”,concluindo que “por isso, a sua extensão ou aplicação aoutras situações ou relações jurídicas é incompatível comsua índole constitucional”, e “os artigos vetados, assim,contrariam as disposições dos incs. LXXI e LXXII doart. 5° da Carta Magna”. Mas os mencionados disposi-tivos, como já assinalado, falam precisamente em habeasdata relativamente à “bancos de dados de entidadesgovernamentais ou de caráter público”. Ora, para osefeitos do Código do Consumidor, quis o Legisladorordinário complementar o dispositivo constitucional,dizendo exatamente que “os bancos de dados e cadastrosrelativos a consumidores, os serviços de proteção aocrédito e congêneres são considerados entidades de caráterpúblico”.

Sendo evidente a razão de tal dispositivo, pelo seupróprio enunciado: “quaisquer informações que possamimpedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aosfornecedores. Inócuo, igualmente, entendermos de relevo,assinalar ainda neste passo o veto oposto ao art. 45 doCódigo do Consumidor, visto que em havendo danomaterial ou moral, mesmo porque os tipos penais jáanalisados dele independem para sua consumação, aresponsabilidade pela indenização decorre da regra geraldo art. 186 do Código Civil, havendo ainda, no caso decobrança de dívida já paga, a regra do art. 940 do mesmoCódigo”.

Hélio Zagnetto Gama (Curso de direito doconsumidor, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 92): “coma adoção do habeas data constitucional, em que aocidadão é conferido o direito de saber a respeito dasinformações que sobre ele constem, logo a sociedadepassou a exigir que os serviços de proteção ao créditorevelassem as informações neles depositadas sobre osconsumidores. O autor, teve a honra de mover contra oSPC do Rio de Janeiro uma Ação Civil Pública, onde aJustiça ordenou que o serviço mantido pelos lojistas sópudesse negativar o nome do consumidor, se a este fossecomunicada a medida, bem como as razões danegativação com as indicações dos valores das cobrançase de local para os pagamentos”.

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Hely Lopes Meirelles (Mandado de segurança, açãopopular, ação civil pública, mandado de injunção e habeasdata, 13. ed. São Paulo: RT, 1989, p. 147): “o habeas dataé mais um dos chamados remédios constitucionaiscontra as ilegalidades ou abusos de poder oriundas dosservidores ou agentes públicos, especificamente comrelação aos dados e informações registrados no PoderPúblico e demais entidades que exerçam função ouatividade pública referentes aos administrados.” É, pois,um instrumento jurídico e processual, ação de cunhocivil, de que dispõe a pessoa física ou jurídica. ÓrgãosPúblicos despersonalizados dotados de capacidadeprocessual (ex.: Chefias do Executivo; Presidências dasMesas do Legislativo, etc.); ou também universalidadesde bens reconhecidas por lei (massa falida, espólio, etc.),com o escopo de assegurar o conhecimento de registrosconcernentes ao postulante e constantes de repartiçõespúblicas ou particulares acessíveis ao público, pararetificação de seus dados pessoais. Nesta ação, o autortem antes que requerer administrativamente àautoridade da entidade depositária do registro ou bancode dados para que forneça ou retifique, conforme o caso,os dados ou informações pessoais do autor, a qual estaráobrigada por lei a decidir sobre o pedido no prazoimpreterível de 48 (quarenta e oito) horas (art. 2°),comunicando ao requerente (autor) sobre odeferimento ou não do pleito em 24 (vinte e quatro)horas (art. 2°, parágrafo único), e dando ciência daefetiva retificação, se tiver se tratado disso, em 10 (dez)dias, confirmando-a ao requerente. Ou seja, antes dedar entrada com o habeas data, a pessoa deveprimeiramente levar a sua vontade de conhecer os dadosou informações à administração pública ou entidade,pois somente será cabível se o administrador ouautoridade se negar a fornecer o que fora solicitado,é o que se chama, no direito, de condição deprocedibilidade.

Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins(Comentários à Constituição do Brasil: “Promulgadaem 5 de outubro de 1988, 2. vol. arts. 5° a 7°, São Paulo,Saraiva, 1989, p. 361-367): “ “ “ “ “o objeto do habeas data é oasseguramento do acesso às informações pessoais doimpetrante constantes de registros ou bancos de dadosde entidades governamentais ou de caráter público como fim de retificação”.

E, conclui, o habeas data só pode objetivar oconhecimento de informações; não é meio adequado,portanto, para desvendar-se as razões ou os motivos daatuação administrativa, nem meio adequado parareabrir processos já arquivados. Não há que se confundir

o instituto com o previsto no inciso XXXIII, em que aConstituição Federal assegura a todos o direito de receberinformações dos órgãos públicos. Aqui, trata-se de oindivíduo ter acesso àquelas informações que dizemrespeito à atuação administrativa. São múltiplas assituações em que o cidadão tem interesse em saber dasintenções, dos propósitos, dos planos, das metas de umadministrador. São estes assuntos os contemplados peloinciso XXXIII. Este nada tem que ver com a obtenção deinformações pessoais.

José Frederico Marques (Manual de direitoprocessual civil, vol. I, São Paulo, Saraiva, 1976, p. 193):“““““o habeas data é uma medida judicial submetida aobenefício da gratuidade, nos termos do inciso LXXVIIdeste mesmo artigo. Esta isenção de custas deve serentendida amplamente, favorecendo o impetrante nãosó no que diz respeito à dispensa do pagamento de custasprocessuais e do prepara, como também das despesascom as publicações indispensáveis nos órgãos oficiais dedivulgação”.

Segundo Comentários ao Código de Defesa doConsumidor, o consumidor quando resolver fazer usodo habeas data como instrumento processual deviabilização de seus direitos de: conhecimento deinformações a seu respeito; retificação de dados; ou,anotação nos seus assentamentos de contestação ouexplicação sobre dado verdadeiro.

Nelson Nery Júnior e Rosa Nery (Código deProcesso Civil comentado, p. 1711): “que, para a defesados direitos dos consumidores, autorizou o legisladorqualquer espécie de pretensão capaz de propiciar a tutelaadequada e efetiva em defesa desses direitos, podendo-se para tanto se valer da antecipação da tutela, desdeque preenchidos os requisitos do permissivo legal”.

Nesse sentido, (Nelson Nery Júnior, Aspectos doprocesso civil..., Revista, cit., p. 296): “a antecipação datutela do art. 84 do Código do Consumidor permiteque o juiz adiante a tutela de mérito, o que, segundo adoutrina, equivale ao julgamento provisório deprocedência do pedido. Isso deverá ser feito diante derelevante fundamento da demanda e do justificadoreceio de ineficácia do provimento final.”

“E, conclui, justifica-se, assim, a concessão daantecipação da tutela prevista no art. 84 para a defesa dosdireitos do consumidor, entendendo serem normas quese complementam, atribuindo poderes ao juiz a fim deque se atinja a eficácia, a efetividade tempestiva da tutelapretendida”. (Neste sentido ver Kazuo Watanabe, Tutelaantecipatória e tutela específica..., Revista, cit., p. 81)

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11 – JURISPRUDÊNCIADefesa do Consumidor –Sistema de Proteção ao Crédito –Informações – Prazo.

Código de Defesa do Consumidor – Serviço deProteção ao Crédito – Informações – Prazo – Prescrição– Defeso ao SPC fornecer informações que desabonem oconsumidor, de modo a impedir ou dificultar acesso anovo crédito, após decorridos 5 (cinco) anos do registrodo débito ou antes de tal prazo, uma vez consumada aprescrição, ex vi do art. 43, §§ 1° e 5°, da Lei n. 8.078/90.(TAMG, 3ª Câm. Civ., AC 154.085-7, Rel. JuizGuimarães Pereira, j. 12/05/1993, ac. Um., Apte.: Clubedos Diretores Lojistas de Belo Horizonte, Apdos.:Antônio João dos Santos e s/m, Minas Gerais, II, 11-2-1994, p. 12, Ementa Oficial – IOB, 3:9424, ementário).(Rizzato Nunes,,,,, Luis Antonio. O Código de Defesa doConsumidor e sua Interpretação Jurisprudencial, SãoPaulo, Saraiva, 2. ed. 2000).

12 – CONCLUSÕESDiante de todo exposto, concluímos que os

Serviços de Proteção ao Crédito e cadastros similares, seenquadram entre os conceitos de “bancos de dados” e“cadastros de consumidores”, estes sendo partes de umgênero maior, os “arquivos de consumo”.

O SPC, inclusive, é mencionado como exemplotípico da categoria “banco de dados” (informaçõesorganizadas, arquivados em estabelecimento que não opróprio Fornecedor, em oposição à expressão“cadastros”, de acepção mais restrita).

Há, assemelhação entre bancos de dados ecadastros, como gênero, e os sistemas de proteção aocrédito, como espécie, sendo este, o SPC, também umbanco de dados e cadastro, utilizando especificamenteem favor do crédito.

É de extrema relevância dizer também quesegundo o art. 5°, inc. LXXII, alínea b, ConstituiçãoFederal combinado com o art. 43, § 4° CDC, onde esteúltimo confere aos bancos de dados e cadastros relativosa Consumidores, os serviços de proteção ao crédito econgêneres à natureza de entidades de caráter público,não resta dúvida que os SPCs e similares podem sim seralvos legítimos do remédio constitucional denominadohabeas data, caso assim o prefira o Consumidor. Noentanto, o habeas data deve preferir a qualquer outraação por ser mais rápido e viável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, A. TJRS, 5ª Turma, Ap. Cívil n. 597.118.926 – Lajeado-RS, rel.des. Araken de Assis, j. 07/08/97, v.u., BAASP 2.044/481.

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BREVES ANOTAÇÕES SOBRE OSCRIMES FALIMENTARES

R E S U M O A B S T R A C T

Vander Ferreira de AndradeEspecialista em Direito Penal.

Professor de Introdução ao Estudo do Direito e de Direito Penal do IMES.Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O presente artigo objetiva delinear algumascaracterísticas específicas dos crimes falimentares,em especial, aquelas afetas à natureza do delito, àpeculiaridade do sujeito ativo, bem como os pressu-postos para sua ocorrência, entendendo necessárioum enfoque da ciência penal, visto que a doutrinamajorante que tem se debruçado sobre a matériaprima pela militância primordial no campo do direitoprivado.

PALAVRAS-CHAVE: crimes falimentares, direitoprivado, direito, legislação penal.

The present article has the purpose to demonstratesomeone specifically characters of the falencial crimes,specially, those crimes natural, the people of thecriminals, and the basic elements for your fact,understanding necessary one abroad of the criminalscience.

KEYWORDS: falencial crimes, private law, law, criminallegislation.

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1 – A CORRELAÇÃO ENTRE OSCRIMES FALIMENTARES E OSCRIMES DE DANO E DE PERIGODE DANO

Como é cediço, os crimes falimentares, posto nãoconstantes do Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de1940 (Código Penal), preceitos primários e secundários(tipificação legal e correspectiva cominação penal),conformam-se como legislação especial ou extravagante,delineados no âmbito da própria Lei de Falências, mesmoo Decreto-lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945.

Nesse sentido, depreende-se que a intenção dolegislador ao estabelecer a norma penal falimentar foi ade conferir um tratamento especial para os delitos destanatureza, circunvizinhos dos dispositivos correlatos àrespectiva legislação comercial, impondo ao operador doDireito, bem como ao intérprete, a tarefa de consideraresta justaposição, como princípio hermenêutico de base.

Também exsurge a compreensão de que, buscandoprestigiar a normatização precedente, cunhou o legisladornormas penais tipicamente de perigo de dano, comobjetivo preventivo evidentemente perceptível, na linhado que indicava Oscar Stevenson: “em todos os crimesfalimentares o evento é de perigo, determinado por culpaou dolo de perigo. Num caso ou no outro, perigo para ocomércio e para a pública economia”. (Stevenson, 1938)

Assim também Trajano de Miranda:

“Adere a concepção de que tradicionais figuras,sobretudo da pretensa falência culposa, exprimemcrimes de dolo de perigo. Representam condutaincriminável, pelo risco de, vindo a ocorrer a falência,serem manifestamente danosos aos credores.

Irrelevante é que, de qualquer desses atos,condicionalmente perigosos, decorra a falência, comoo efeito da causa. O prejuízo dos credores, determinávelpor eles, é inerente à sua prática, quer haja taldecorrência, quer seja mesmo casual a insolvência. Éinegável que arriscar-se conscientemente a produzirum evento vale tanto quanto querê-lo; ainda que seminteresse nele, o agente o ratifica ex ante; presta anuênciaao seu advento”. (Valverde, 1999)

Contudo, não asserimos que a simplesconstatação da presença de crimes de perigo de dano notexto legal tenha o condão de elidir a consubstanciaçãode crimes de dano, ao contrário: a própria condiçãoobjetiva de punibilidade da falência descortina-se comoresultado no mundo fenomênico, adquirindo com issoaptidão para ser considerada, casuisticamente, como

hipótese delituosa, ou ainda, em face dos crimes defalência, pressuposto para a conformação do delito.

Logicamente que nesse diapasão convém lembraro significado do alcance destes institutos tipicamentepenais, analisados e classificados doutrinariamente,tomando-se como parâmetro o critério do resultado;assim são crimes de dano aqueles cuja consumação seperfaz com a lesão efetiva do bem jurídico posto sobtutela da norma, o que ocorre com a honra no crime deinjúria, com a integridade física no crime de lesõescorporais, ou com a vida no delito de homicídio; já oscrimes de perigo, consumam-se com a situação de riscoem que se coloca o bem jurídico; como leciona Mirabete“pode o perigo ser individual, quando expõe ao risco ointeresse de uma só ou de um número determinado depessoas (arts. 130, 132 etc.), ou coletivo (comum) (arts.250, 251, 254 etc.); às vezes a lei exige o perigo concreto,que deve ser comprovado (arts. 130, 134 etc.); outrasvezes refere-se ao perigo abstrato, presumido pela normaque se contenta com a prática do fato e pressupõe ser eleperigoso (art. 135, 253 etc.)”. (Mirabete, 1991)

Encontramos, portanto, ao longo da legislaçãocriminal falimentar delitos tanto de dano efetivamenteconsiderados, como aqueles que se caracterizam peloperigo de dano, não sendo, por vezes, tarefa símplicediferenciá-los, como talvez possa parecer à primeiravista; nesse sentido, é o que informa a Exposição deMotivos (à guisa de atos preparatórios da referida Lei econsiderandum para sua correta interpretação): “difícilnão há de se tornar para o intérprete distinguir os crimesfalimentares de dano dos crimes falimentares de perigode dano. Cogitar-se-á, nos primeiros, do nexo decausalidade entre o dano e a conduta incriminada; nossegundos, a mesma consideração carecerá de qualquerrelevância jurídica”.

Com efeito, pode-se concluir, com supedâneo emTrajano de Miranda que o critério de distinção, portanto,entre o delito de falência de dano e o de perigo “está nanecessidade ou não-necessidade de se apurar, conforme ocaso previsto na lei, o nexo de causalidade objetiva entrea ação ou a omissão e o evento ou resultado dela.

Não se trata, pois, de perigo concreto, efetivo oureal, que, em cada caso, deve subsistir e ser demonstrado,mas sim de perigo eventual, futuro, potencial, que não ésenão a probabilidade de um perigo, isto é, de um eventonão lesivo de um interesse, mas simplesmente perigoso.É o perigo presumido (ou que deve ser reconhecido inabstrato), que a lei presume, juris et de jure, emdeterminada ação ou omissão”. (Valverde, 1999); assimtambém a lição de Antolisei:

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“o evento perigoso caracteriza-se pela relaçãoem que ele se acha a respeito de um outro evento, queteria podido ou poderia verificar-se, mas que não severificou. E assim como este outro evento pode serpor sua vez um perigo, deve-se, pois, admitir tambémo perigo de perigo, isto é, de um evento de perigo(próximo), do qual pode derivar um outro perigo(remoto)”. (Antolisei, 1934)

2 – O SUJEITO ATIVO NOS CRIMESFALIMENTARES

Somente pode ser autor de crime de falência apessoa física. Vale aqui o brocardo societas potest nondelinquere. Não que a lei disponha que qualquer pessoanatural e em qualquer hipótese possa ser sujeito ativo dosdelitos falimentares. Haverá situações que, decorrente dadisposição normativa em voga, poderemos ter comoautor pessoa determinada, mesmo dotada de umaqualificação jurídica especial, situação em que nosdepararemos com um crime próprio; em outrascircunstâncias, tal exigência não se fará presente, no queteremos um crime simples. No entanto, inclinaçõesencontramos no sentido da responsabilização penal dapessoa jurídica, ideário este com o qual não concordamosconsoante já asserido, compreensão esta abonada naanálise de Pedrazzi e Costa Jr.:

“o afastamento da lei societária do princípiosocietas potest non delinquere é meramente aparente,pois a perigosidade que se pretende combater com amedida de segurança não é a da sociedade como tal,mas das pessoas físicas que se servem dela para violara lei penal: seria injusto, em nosso modo de ver,atribuir ao legislador brasileiro demasiadotradicionalismo. Não se deve esquecer, em primeirolugar, que dentre as normas penais societárias existemalgumas que tutelam a própria sociedade: nesse caso,não se pode nem de leve pensar que a sociedade possaser, simultaneamente, sujeito ativo e passivo decrime”. (Pedrazzi e Costa Jr, 1973)

Assim é que, a título de exemplo, serão crimespróprios os delitos dos arts. 186, 187 e 189, III, onde seexige do sujeito ativo ser falido (circunstância pessoaljurídica especial), igualmente os praticados por outraspessoas físicas determinadas como o síndico, o juiz, orepresentante do Ministério Público, o perito, oavaliador, o oficial de justiça, o leiloeiro, etc., comovistos no arts. 189, I, II , IV e 190; ausente esta exigênciaespecial poder-se-á reconhecer o crime simples.

Interessante observar que a doutrina privatista,ao comentar o crime falimentar, classifica-o, sob a égidedo agente, de próprio e impróprio, entendendo tratar-se o primeiro de crime perpetrado pelo falido e o segundopara os demais sujeitos ativos citados em lei; anotamosque tal classificação se nos afigura, no mínimo,inadequada, pois além de olvidar a célebre e jáconsagrada distinção entre crimes próprios e simples,cuja relevância se nos depara evidente, especialmentequando delimita as hipóteses de ocorrência delituosa,cria nova figura classificatória, sem acrescentar qualquerutilidade de ordem prática, ao invés disso, causandoperplexidade, especialmente pelos incipientes estudiososdeste tipo de delito.

Quanto ao concurso de agentes, de verificar-se quemesmo os crimes tidos por próprios, admitem apossibilidade de concurso de pessoas, sobretudo namodalidade participação, até porque prestigia a nossalegislação penal a teoria unitária no concurso de agentes,entendendo que qualquer sujeito que tenha de algumaforma contribuído para o advento do crime deve, emrazão de sua conduta, sujeitar-se à respectiva pena aodelito cominada; torna-se assim indispensável àconsciência do agente quanto ao status jurídico daquelecom que age em inequívoca colaboração (intelectual oumaterial) ou auxílio, seja este devedor ou falido,comerciante (ou a este equiparado) ou ainda os diretores,administradores, gerentes ou liquidantes na hipótese defalência das sociedades. Recai assim a responsabilidadepenal na pessoa física de firma individual, na pessoa dosgerentes de sociedade limitada, dos administradores ediretores das sociedades anônimas, dos liquidantes, bemcomo dos administradores de fato de uma sociedadequalquer; já a esposa do sócio-cotista, se não ficarcomprovado que exercia os poderes de gerência, nãoresponde.

“Há crimes por si mesmo e crimes falimentares quenecessitam para sua realização ou consumação doconcurso de duas ou mais pessoas. O crime, v. g., defalsificação da escrita, determinada pelo devedor oufalido, somente poderá surgir com o concurso do guarda-livros ou contador. Isso porque a lei exige que aescrituração nos livros mercantis seja feita por profissionalhabilitado ... No crime previsto no art. 187, de dano oude perigo de dano, o terceiro que participa consciente-mente do ato fraudulento torna-se, evidentemente, co-autor de crime, de conformidade com o que prescreve oart. 25 (atual 29) do Código Penal. E o concurso de agentestanto pode ocorrer no crime doloso, quanto no crimeculposo”. (Nélson Hungria, 1972)

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3 – CARACTERÍSTICASESSENCIAIS DOS CRIMESFALIMENTARES

Walter T. Alvarez alinhava as característicasprecípuas que pressupõe sejam imanentes ao delitoconcursal:

a) é condicional, isto é, só se consumamediante a declaração de falência;

b) não admite tentativa, pois, se existe o fato,que concorreu para a falência e se esta foi decretada,está o delito consumado (737);

c) tem caráter unitário, pois, ainda queexistam vários fatos, pela lei enumerados comodelituosos, só existe uma lesão jurídica que seconfigura pela sentença declaratória de falência;

d) admite o concurso formal, pois umadeterminada ação praticada pelo agente podeconstituir crime falimentar, se declarada a falência, e,igualmente, crime contra a economia popular, oucontra o patrimônio, contra a fé pública, etc. Trata-seefetivamente do concurso formal delineado no art.51, § 1° do Código Penal, e expressamente aplicadopelo art. 192 da lei falimentar. (Alvarez, 1982)

Comentando assim os pressupostos elencados pelorenomado privatista diríamos: de fato, o crime falimentarimpende sua consubstanciação via sentença declaratóriade falência; este pressuposto do crime, elemento doinjusto, condição objetiva de punibilidade ou, para nós,condição de procedibilidade, manifesta-se imprescindível,seja para convolar em crime concursal as condutasinfracionais classificadas como antefalimentares, sejapara corroborar as ações e omissões delituosas pós-falimentares; ausente esta poder-se-á falar em crimeautônomo comum que se apresenta na razão direta desua subsidiariedade decorrente da especialidade que gizaa lei de falências (como no caso de estelionato oufalsificação de títulos), mas jamais um crime falimentar.Contudo há que se verificar a conexão da conduta com ocaráter falencial, sem o que, a sentença declaratória defalência de per si não poderá ser considerada apta acaracterizar o delito concursal.

Quanto a não ocorrência da tentativa: de fato, oscrimes falimentares, especialmente os de perigo de dano,delineiam-se como crimes de mera conduta ou formais,onde o iter criminis não admite o seccionamento daconduta na fase executória; assim é que teremos ou crimede consumação antecipada, ou de consumaçãoinstantânea, com conduta e resultado ocorrentes nummesmo momento temporal.

Acrescentaríamos ainda outra característica, àguisa de classificação: os crime falimentares sãocomplexos, posto tutelarem mais de um bem jurídico(patrimônio, fé pública etc.), reunindo-se na descriçãonormativa mais de um delito no tipo penal, ou comoleciona Frederico Marques, referindo-se a Hungria:

“No crime complexo, observa Nelson Hungria(que ocorre quando vários fatos criminosos conver-gem como elementos constitutivos ou agravantesespeciais, em um só título de crime), a extinção dapunibilidade dos crimes-membros (que perdem suaautonomia ao se integrarem na unidade jurídica docrime complexo) não acarreta a do crime-corpo.Assim no crime de roubo, por exemplo, não importaque se extinga a punibilidade no tocante à lesãocorporal que funciona como crime-membro; o fato,na sua integralidade, continua punível a título deroubo”. (Marques, 1975)

Já a unicidade, característica imanente dos crimesfalenciais, denota e impõe um tratamento diferenciadoem face de eventual concurso de crimes de falência: é quediante de tal princípio, há de se desconsiderar qualquerpossibilidade de concurso (material ou formal),admitindo-se este somente quando ocorrente crimecomum cumulado com o de falência; assim, o operadordo Direito deverá examinar a gravidade maior do delitofalencial perpetrado para aplicar a pena referente a este,podendo em nosso entender, valer-se da dosimetria dapena, agravando a sanção imposta, com base em outroscrimes praticados conjunta ou separadamente, mas dequalquer forma, falenciais.

Rubens Requião, analisando a aplicação do citadoprincípio em nossos Tribunais comenta:

“Os autores, em uníssono, afirmam a unidadedo crime falimentar. Muito embora sejam várias asinfrações delituosas falimentares, a aplicação da penase determina pelo evento de maior gravidade. O crimefalimentar, por isso se caracteriza pela sua comple-xidade. Farta jurisprudência confirma o princípio.Elucidativo é o acórdão da Terceira Câmara doTribunal de Justiça de São Paulo que enunciou: “Ocrime falimentar é de estrutura complexa. Adeclaração de falência, como única condição depunibilidade, converte em unidade a pluralidade dosatos praticados pelo devedor anteriores a essadeclaração” (Revista dos Tribunais, 190/99).

Muito embora o princípio doutrinário sejaconsagrado, alguns magistrados porfiam na aplicaçãoisolada das penas, sendo sistematicamente corrigidos

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pelas decisões de superior instância, como se vê:“Indivisibilidade da ação penal. Nula a sentença que violao princípio da unidade complexa das ações ou omissõesdos falidos. Sendo o crime falimentar um todo único,não pode a sentença cindi-lo, para aplicar penasautônomas a cada uma de suas partes” (rec. de HabeasCorpos n. 49.563, SP, STF, 1ª Turma).

O Supremo Tribunal, em decisão plenária, fixouo princípio da absorção do estelionato pelo crimefalimentar de quer o acusado foi absolvido (HabeasCorpos n. 45.525, CE. In: RTJ, 35/474). Mas anterior-mente o mesmo Tribunal, no Recurso de Habeas corpusn. 37.213, relatado pelo Ministro Nélson Hungria,decidiu que, configurado o estelionato e quando se achaeste em concurso formal com crime falimentar, aextinção da punibilidade do último não acarreta a doprimeiro (RTJ, II/CL,II).

Waldemar Ferreira, por sua vez, acrescenta outrospressupostos aos acima enunciados:

a) o estado de falência, declarado por sentença;

b) o dolo, ou seja a fraude;

c) o intuito de lucro, em benefício próprio, do falidoou de terceiros;

d) o prejuízo dos credores.

De fato, os crimes de falência ensejam serempraticados com dolo, não mais se podendo falar emconduta culposa, haja vista a nova redação dos delitosfalimentares, que nada dispõe a respeito de ações ouomissões que violem o dever jurídico de cuidadoobjetivo; contudo, poder-se-á questionar, da mesmaforma como verificamos na Lei de Contravenções Penais,se não estariam alguns tipos penais implicitamentecontendo as infrações criminais falimentares, a título deculpa, perpetrados com imprudência, negligência ouimperícia; a nós parece não ser possível tal constatação,isso porque, ao estabelecer condutas desprovidasaparentemente de um querer dirigido à finalidade típica,pensamos que de qualquer forma, poder-se-á cogitarquando possível do dolo eventual, especialmentequando a conduta livre admite e assume o risco de umresultado de dano ou mesmo de perigo de dano.

O escopo lucrativo, por sua vez, não pode a nossover ser erigido em pressuposto essencial de todos oscrimes falimentares, até porque, tal elemento subjetivodo tipo, mesmo o especial fim de agir não se descortinapresente em todos os delitos concursais. Depreende-sedaí a imprescindibilidade da realização de umaperscrutação casuística, visando examinar se tal exigênciaestá consoante o modelo, o tipo penal, hipótese em que

peremptoriamente haveremos como reconhecê-loindispensável, sob pena mesmo da descaracterização docrime, posto elemento integrador essencial do tipo.

Já o prejuízo dos credores, da massa, também senos apresenta um elemento dispensável, visto que,conforme asserimos a princípio, o escopo do legisladorao criar a legislação penal falimentar pareceu-nos voltadapara a prevenção da ocorrência de ilícitos maiores, tudovisando tutelar o patrimônio dos credores, a fé pública,entre outros bens jurídicos protegidos. Portanto, falar-sena exigência do prejuízo, do dano em concreto, olvidaque no iter criminis, fases existem que são até mesmoconsideradas impuníveis, na hipótese em exame, oexaurimento, ou pos factum impunível.

4 – CONCLUSÃOOs crimes falimentares, previstos na legislação

penal especial, tem por objetivo tutelar a massa decredores, visando estimular a lisura e a probidade daadministração da massa falida, a correção do comporta-mento das pessoas ligadas, direta ou indiretamente aoevento falência, tais como o síndico, o devedor ou falido,o curador, o perito, o leiloeiro etc., bem como, porderradeiro, garantir um adequado processamento dasmedidas aplicáveis à falência, antes, durante e após oseu reconhecimento judicial.

Certamente que o fato de constituir um delito pordemais especial, com tratamento específico para diversostipos de instituições penais (reincidência, prescrição,sujeitos do delito, concurso de crimes etc.), recomendauma atenção pormenorizada até mesmo em face deinstitutos próprios do direito privado, não estranhandoo fato de alguns doutrinadores deste campo utilizarem-se de linguagem própria tais como um delito praticadocom má-fé (quando, na verdade, devendo referir-se aoelemento subjetivo do tipo deveria reportar-se ao doloou à culpa) ou ainda a classificações desconhecidas dodireito penal (como aquela que define um crime própriocomo o cometido pelo falido e o impróprio o cometidopor outras pessoas que não o devedor).

Deflui-se ainda claramente o caráter preventivodos crimes falimentares, posto que se evidencia nalegislação concursal o desiderato do legislador deprocurar fazer uso da incriminação de condutaspreparatórias de fatos mais graves, o que se coadunacom a natureza dos crimes de perigo de dano.

Assim e, de acordo com nosso entendimento,carece a doutrina pátria de estudos científicos no campodo direito penal a respeito da especial natureza dalegislação criminal falimentar, visto que a gama

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

majoritária de comentários, sejam os de índoledoutrinária, sejam os de ordem jurisprudencial, partemde privatistas, de estudiosos do direito mercantil,excetuando-se os processualistas penais, que na maioriadas vezes, dirigem suas análises a aspectos meramenteprocedimentais, não perscrutando os aspectos materiaisdos delitos de falência, o que de certa forma, condiz coma essência de seus estudos.

ABRÃO, N. Curso de direito falimentar. [S.l.]: São Paulo: Leud, 1994.

ALVAREZ, W. T. Direito falimentar. São Paulo: SugestõesLiterárias,1968.

ANDRADE, J. P. Manual de falências e concordatas. São Paulo: Atlas,1992.

BATISTA, N. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio deJaneiro: Revan, 1990.

BETTIOL, G. Direito penal. Tradução de P. J. C. Júnior e A. S. Franco.São Paulo: RT, 1971.

BIOLCHINI, M. C. A. A responsabilidade pelo insider trading noBrasil: proposta de lei penal. Seleções Jurídicas, (S.l.), n. 9, 1990.

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LACERDA, J. C. S. Manual de direito falimentar. Rio de Janeiro: FreitasBastos, 1980.

MARQUES, J. F. Tratado de direito penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva ,1965. v. 2.

MIRABETE, J. F. Manual de direito penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1989, v. 1.

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PIMENTEL, M. P. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas.Repertório IOB de Jurisprudência, São Paulo, n. 12, p. 230-232, jun.1990.

REQUIÃO, R. Curso de direito comercial. 11. ed. São Paulo: Saraiva,1982. v. 2.

STEVENSON, O. Crimes falimentares. São Paulo: Saraiva, 1978.

VALVERDE, T. M. Comentários à lei de falências. Rio de Janeiro:Forense, 1955.

Espera-se assim sejam os crimes falimentarestornados em objeto de estudo e pesquisa em nossasinstituições de ensino superior, de especialização e pós-graduação em geral, especialmente pela comunidadeafeta ao direito penal, em permanente comunhão comos cultores do direito privado, dado o seu caráterinegavelmente interdisciplinar, fato este que por si só, senos apresenta capaz e apto a contribuir para uma melhorcompreensão deste tipo de delito.

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Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

DIREITO DAS SUCESSÕES BRASILEIRO –DISPOSIÇÕES GERAIS ESUCESSÃO LEGÍTIMA*

Destaque para dois pontos de irrealização da experiência jurídica à face da previsão contida naregra estampada na nova Legislação Civil Pátria,

o Código Civil de 2002.**

Livre-Docente e Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.Professora Doutora do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo.Diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM.

* Palestra de abertura do II Seminário – Novo Código Civil Brasileiro: o que muda na vida do cidadão, promovido pelaOuvidoria Parlamentar e Terceira Secretaria da Câmara dos Deputados, em Brasília, em 05/11/2002.

** Parte das considerações aqui desenvolvidas pela autora-palestrante foram destacadas dos seus originais destinadosà produção de um dos 22 volumes da obra organizada e coordenada pelo Professor Antonio Junqueira de Azevedo,para a Editora Saraiva, denominada Comentários ao Código Civil Brasileiro (no prelo).

Este artigos trata do direito das sucessões brasileiro,ou seja, da morte real ou presumida da pessoa, sendoque o patrimônio deixado pelo morto seguirá as regrassucessórias do direito civil positivado: transmite-se aherança aos herdeiros legítimos e testamentários.

Palavras-chave: direito das sucessões brasileiro, novocódigo civil brasileiro, princípio da saisine, herdeiroslegítimos, herdeiros testamentários.

This article is about the brazilian succession rights, inother words, the real or presumptuous person’s death,because the birthright will follow the provided civil law:it’s transmited the inheritance to the heirs apparent andheirs by will.

Keywords: brazilian succession rights, new braziliancivil code, saisine principle, heirs apparent, heirs bywill.

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1 – CONSIDERAÇÕES DEPREÂMBULO RELATIVAMENTE ÀSUCESSÃO EM GERAL, SOB AANÁLISE DE ALGUNSDISPOSITIVOS DO NOVO CÓDIGOCIVIL: ARTS. 1.784, 1.786, 1.788,1.789, 1.845

A sucessão que vem disciplinada no Livro V doCódigo Civil pressupõe, intrínseca e invariavelmente, amorte da pessoa natural. Quer se trate de morte real oude morte presumida, por conseqüência normal e comodecorrência do princípio da saisine, o patrimôniodeixado pelo morto seguirá o destino que se estampanas regras sucessórias do direito civil positivado.

Art. 1.784.Art. 1.784.Art. 1.784.Art. 1.784.Art. 1.784.

Aberta a sucessão, a herança transmite-se,desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

A sucessão considera-se aberta no instante mesmoou no instante presumido da morte de alguém, fazendonascer o direito hereditário e operando a substituiçãodo falecido por seus sucessores a título universal nasrelações jurídicas em que aquele figurava. Não seconfundem, todavia. A morte é antecedente lógico, épressuposto e causa. A transmissão é conseqüente, éefeito da morte. Por força de ficção legal, coincidem emtermos cronológicos,1 presumindo a lei que o própriode cujus investiu seus herdeiros2 no domínio e na posseindireta3 de seu patrimônio, porque este não pode restaracéfalo. Esta é a fórmula do que se convencionadenominar droit de saisine.

O Código Civil de 1916 foi instituído com aseguinte regra, esculpida no art. 1.572:art. 1.572:art. 1.572:art. 1.572:art. 1.572: Aberta a sucessão,o domínio e a posse da herança transmitem-se, desdelogo, aos herdeiros legítimos e testamentários. Já a novacodificação civil traz a seguinte redação para traduzir omesmo princípio: art. 1.784art. 1.784art. 1.784art. 1.784art. 1.784 – Aberta a sucessão, aherança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimose testamentários.

A expressão “aberta a sucessão”, que vem repetidaem ambas as codificações, faz referência ao momentoem que surgem os direitos sucessórios, sem fazerreferência, entretanto, aos titulares desses direitos. Aatribuição desses mesmos direitos aos sucessores traduz-se pelos vocábulos devolução4 ou delação, que nada maisrepresentam do que o mesmo fenômeno visto peloprisma da sucessibilidade.5

Pelo princípio da saisine, a lei considera que nomomento da morte, o autor da herança transmite seupatrimônio, de forma íntegra, a seus herdeiros. Ora, odireito atual suprimiu da regra a expressão “o domínioe a posse da herança”, passando a prever a transferênciapura e simples da herança. Mas é óbvio que tal supressãonão vai representar diminuição do alcance objetivo doprincípio. Vale dizer, o objeto da transmissão continuasendo a herança, que como já se disse, é o patrimônio dodefunto, compreendendo todos os direitos que não seextinguem com a morte, sendo dela integrantes bensmóveis e imóveis, débitos e créditos.

Segundo a norma, enfim, a herança transmite-seaos herdeiros legítimos e testamentários, o que é dizerque ela se transmite por meio do condomínio a todosaqueles que foram contemplados com a atribuição deuma quota parte ideal instituída pelo autor da herançapor meio de testamento (herdeiro testamentário), ouaqueles que receberão a quota parte ideal determinadapor lei (herdeiro legítimo).

Convém lembrar que o sucessor legítimo será,nessa condição, sempre herdeiro e nunca legatário. Esseprincípio faz com que a ressalva final do atual art. 1.784inclua na transmissão decorrente do princípio da saisineaqueles indivíduos que, beneficiados por testamento, oforam com quota parte ideal e nunca por meio de umbem especificado ou passível de especificação, uma vezque esta forma de disposição testamentária constituilegado e a aquisição do bem sucessível vem disciplinadapelas regras da sucessão testamentária.

Em suma: o herdeiro recebe, desde o momento damorte do autor da herança, o domínio e a posse dosbens, em condomínio com os demais; o legatárioreceberá o domínio desde logo e a posse quando dapartilha, se beneficiado com coisa certa e receberá o

1 GOMES, Orlando. Sucessão, p. 11.2 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, 6. vol. – Direito das Sucessões, p. 14.3 RODRIGUES, Silvio. Direito civil - vol. 7, p. 13.4 CARVALHO SANTOS, J. M. Código civil interpretado. Direito das Sucessões. vol. XXII, p. 7.5 GOMES, Orlando. Ob. cit., p. 11.

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domínio e a posse no momento da partilha, se benefi-ciado com coisa incerta.6 Era assim no Código de 1916,prossegue assim no Código de 2002.

Art. 1.786.Art. 1.786.Art. 1.786.Art. 1.786.Art. 1.786.

A sucessão dá-se por lei ou por disposição deúltima vontade.

Este artigo equivale ao anterior 1573 (Código de1916), onde era possível ler que “a sucessão dá-se pordisposição de última vontade, ou em virtude de lei ”.

Os dispositivos, se não são idênticos, trazem asmesmas conseqüências práticas. A inversão das formasde sucessão no elenco legal não modifica os institutosnem traz prevalência diversa, relativamente àcodificação anterior, de uma forma sucessória sobre aoutra em virtude do quanto disposto no restante doLivro. Prevalece, por força do atual art. 1.788, a sucessãotestamentária sobre aquela que deriva de lei, até omontante que resguarde a parte indisponível – em certascircunstâncias – a fim de se dar, a esta parte, a destinaçãopreviamente determinada por lei.

A legislação anterior, ao determinar que asucessão se dava por disposição de última vontade,indicava já a prevalência da vontade do testador e,apenas subsidiariamente, na falta de disposição dessejaez, operava-se em virtude de lei. Mas esta última formade suceder sempre foi a mais difundida no Brasil. “Naverdade, via de regra as pessoas passam pela vida, e delase vão, intestadas; o reduzido número daquelas quetestam, o faz porque não tiveram filhos, ou porquedesejam beneficiar, quem sabe, o cônjuge, em desfavo-recimento dos ascendentes, ou, ainda, porque desejambeneficiar certas pessoas, por meio de legados, ou,simplesmente, porque desejam reconhecer filhos havidosfora do casamento.

“Poucos são os que, possuindo herdeirosnecessários, testam relativamente à parte disponível, semprejudicar, com isso, os descendentes ou os ascendentes.

“Essa espécie de aversão à prática de testar, entrenós, é devida, certamente, a razões de ordem cultural

ou costumeira, folclórica, algumas vezes, psicológica,outras tantas.

“O brasileiro não gosta, em princípio, de falar arespeito da morte, e sua circunstância é ainda bastantemistificada e resguardada, como se isso servisse para‘afastar maus fluídos e más agruras ...’. Assim, porexemplo, não se encontra arraigado em nossos costumeso hábito de adquirir, por antecipação, o lugar destinadoao nosso túmulo ou sepultura, bem como não temos, demodo mais amplamente difundido, o hábito decontratar seguro de vida, assim como, ainda, nãopraticamos, em escala significativa, a doação de órgãospara serem utilizados após a morte. Parece que estasatitudes, no dito popular, ‘atraem o azar ...’.

“Mas, a par destas razões que igualmente poderiamestar a fundamentar a insignificante prática brasileira docostume de testar, talvez fosse útil relatar, como o faz ZenoVeloso, que há certamente outra razão a ser invocada parajustificar a pouca freqüência de testamentos entre nós.Esta razão estaria diretamente direcionada à excelentequalidade de nosso texto legislativo que ainda vige – oCódigo Civil de 1916 – a respeito da sucessão legítima.Quer dizer, o legislador brasileiro, quando produziu asregras gerais relativas à sucessão ab intestato, o fez demaneira muito primorosa, chamando a sucederexatamente aquelas pessoas que o de cujus elencaria se, naausência de regras, precisasse produzir testamento. Poder-se-ia dizer, como o fez antes, na França, Planiol, que aregulamentação brasileira a respeito da sucessão abintestato opera assim como se fosse um ‘testamento tácito’ou um ‘testamento presumido’, dispondo exatamente comoo faria o de cujus, caso houvesse testado.

“Se assim for, compreende-se, então, a escassez detestamentos no Brasil, pois estes só seriam mesmo utilizadosquando a vontade do de cujus fosse distinta daquelanaturalmente esculpida na diagramação legislativa”.7

Seja por qual motivo for, fato é que a sucessãoopera-se, na prática, primordialmente em decorrênciada lei. Talvez por isso a inversão operada pelo últimolegislador civil, arrolando a sucessão legítima antes datestamentária no art. 1.786.

6 Walter Moraes deixa claro que: “Vale para os legados o princípio geral da aquisição imediata. A regra básica é a de que o legatárioadquire a deixa desde a morte do testador. O que impede a instantaneidade da aquisição são as seguintes circunstâncias: 1) existênciade condição suspensiva; 2) a indeterminação do objeto; 3) a inexistência do objeto no patrimônio deixado; 4) a inexistência dapersonalidade do legatário” (MORAES, Walter. Programa de direito das sucessões. Teoria Geral e Sucessão Legítima, p. 48). A primeirahipótese determina que se aguarde a verificação da condição que, em não ocorrendo, acarreta a devolução do bem aos herdeiroslegítimos. A segunda obriga que se espere o final da partilha. A terceira possibilita a aquisição do bem quando da partilha composterior entrega ao legatário, sempre que possível tal providência, sendo que, se impossível, dá-se por caduca a disposição. Aquarta hipótese, por fim, refere-se à instituição de prole eventual de terceiro como legatário, determinando-se que se aguarde suasuperveniência.

7 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil - vol. 6, p. 277-278.

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Para além disso, registre-se que o novo Código, senão alterou a ordem de vocação hereditária, fez ocônjuge supérstite passar à classe de herdeiro necessário(art. 1.845, CC) e determinou que concorra com osherdeiros das classes descendente e ascendente (art.1.829, incs. I e II, CC). Assim faz parte da primeira classede vocação em concorrência com os descendentes; dasegunda, em concorrência com os ascendentes; e daterceira, com exclusividade, tendo, portanto, retiradoo legislador pátrio uma das hipóteses que antes seformulava, a justificar a facção de um testamento, queera exatamente a intenção do testador de privilegiar oseu cônjuge, para depois de sua morte.

Art. 1.788.Art. 1.788.Art. 1.788.Art. 1.788.Art. 1.788.

Morrendo a pessoa sem testamento, transmitea herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorreráquanto aos bens que não forem compreendidos notestamento; e subsiste a sucessão legítima se otestamento caducar, ou for julgado nulo.

Antes de analisarmos o dispositivo, cabe fazermenção ao fato de que o Projeto de Código Civil,quando aprovado pelo Senado Federal, trazia já alocução “transmite a herança”, o que fez com que AntônioCláudio da Costa Machado e Juarez de Oliveirachamassem a atenção em sua obra8 para a necessidadede substituição por “transmite-se a herança”, o que nãoocorreu na Câmara dos Deputados. Assim sendo, ainterpretação literal do dispositivo pode querer forçaro entendimento de que quem transmite a herança aosherdeiros legítimos é a pessoa que morreu semtestamento. A herança deixa de transmitir-se de formareflexiva, como ocorria sob a vigência da Lei de 1916,para ser transmitida, passivamente, pelo autor daherança... Certamente não é essa a intenção do legisladorde 2002. Portanto, urge a alteração já antes proposta,incluindo-se o pronome reflexivo “se”.

O artigo citado é resultado da união dos arts. 1.574e 1.575 do Código de 1916, que tratavam, como trata oatual art. 1.788, das hipóteses em que, não existindotestamento ou, existindo este, dever-se-ia operar asucessão legítima, por se verificar a ausência depossibilidade de produção de efeitos do testamento.

Art. 1.789.Art. 1.789.Art. 1.789.Art. 1.789.Art. 1.789.

Havendo herdeiros necessários, o testador sópoderá dispor da metade da herança.

A herança do de cujus, a que o artigo se refere, écomposta pelos bens patrimoniais que a ele pertencem deforma exclusiva ou da quota parte que lhe couber, o queequivale a dizer que é composta por seus bens pessoais,bem assim pela parte que lhe cabia no patrimônio docasal, sendo ele casado, e admitindo seu regime de bensmatrimonial tal situação, e, ainda, pela parte dos bensque possuísse em condomínio. Dessa forma, para que severifique se as disposições testamentárias que o de cujusdeixou consignadas, para valerem após sua morte,respeitaram o quanto disposto no art. 1.789, há de seproceder à divisão decorrente do rompimento dos laçosmatrimoniais ocasionado por sua morte, bem assim,avaliar a quota parte dos bens condominiais. Somadosos valores, chegar-se-á ao valor total do patrimôniotransmissível pelo de cujus, reservando-se a metade dessevalor aos herdeiros determinados pela lei, coibindo-se aliberdade do testador para dispor de seu patrimônio,sendo certo que, se inexistentes estes últimos, poderá adisposição recair sobre a totalidade da herança.

Apenas cinqüenta por cento9 do patrimônio totalpoderá ser entregue por disposição testamentáriasempre que possuir, o testador, descendentes eascendentes, além de – à luz do novo Código Civil –possuir, o testador, cônjuge sobrevivo e na constância,por óbvio, do casamento.

O legislador nacional, portanto, sempre buscoupreservar os herdeiros necessários que não podem serafastados da sucessão, exceto se presente uma das causasque determine sua deserdação ou sua exclusão, porindignidade. Mas nem por isso retirou do testador aliberdade de dispor de seus bens, confeccionandotestamento, salvo se lhe faltasse, de forma perene,capacidade para a facção da cédula respectiva.

O novo Código Civil traz, no art. 1845, o elencodaquelas pessoas que o legislador selecionou para queocupassem a categoria de herdeiros necessários. Diz odispositivo:

Art. 1.845.Art. 1.845.Art. 1.845.Art. 1.845.Art. 1.845.

São herdeiros necessários os descendentes, osascendentes e o cônjuge.

Entende-se por herdeiros necessários aquelesherdeiros que não podem ser afastados da sucessão pelasimples vontade do sucedido. Quer isso significar que

8 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa; OLIVEIRA, Juarez de. Novo Código Civil, p. 363.9 “Perante o nosso direito positivo, a porção disponível é fixa, invariável. Em qualquer hipótese, seja qual for a qualidade e o número

dos herdeiros, compreenderá sempre a metade dos bens do testador. Assim não acontece, todavia, em outras legislações.”(MONTEIRO, Washington de Barros. Ob. cit., p. 10) E elenca, o saudoso escritor, ali, uma série de hipóteses verificáveis na legislaçãocomparada.

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apenas quando fundamentado em fato caracterizadorde ingratidão por parte de seu herdeiro necessário,poderá o autor da herança dela afastá-lo, e, ainda assim,apenas se tal fato estiver previsto em lei comoautorizador de tão drástica conseqüência.

A nova legislação não se refere ao fato de serem,tais herdeiros, sucessíveis efetivos, no que anda bem. Comefeito, tanto o excluído por indignidade quanto odeserdado são herdeiros sucessíveis que, tendo cometidoato atentatório previsto em lei, vêem-se, posteriormente,afastados da sucessão. Mas até que sejam afastados, sãoherdeiros sucessíveis e gozam da proteção legal dareserva dos bens que comporão a legítima.10

Mas, nesta sede agora em exame, isto é, a categoriados herdeiros necessários, certamente a modificação demaior monta que deve ser referida, e que já há muitotempo era reivindicada pela doutrina nacional11 é,indubitavelmente, a inclusão do cônjuge na classe dosherdeiros obrigatórios.12 E nem poderia ser diferente,diante da nova ordem de vocação hereditária instituídapelo legislador civil e que traz o cônjuge concorrendotanto na primeira quanto na segunda classe doschamados a suceder. Assim, conseqüência lógica de talmodificação era a proteção da legítima também em seufavor, impedindo que a simples feitura de um testamentoque dispusesse sobre a totalidade do acervo viesse aprejudicá-lo.

Apesar destas benéficas modificações, perdeu olegislador a oportunidade de prever, de forma expressa,tal proteção também para o convivente supérstite, já quegarantira a este, por força do art. 1.790 do Código Civilatual, a concorrência com os filhos do de cujus; na faltadestes, com os ascendentes do mesmo; e, por fim e nafalta de ambos, o recolhimento do total da herança. Talordem de vocação, especial para as hipóteses de aberturada sucessão no decorrer de união estável, em muito seassemelha à ordem de vocação do cônjuge supérstite,não se vislumbrando motivo para que as condições docônjuge e do convivente não se equiparassem também

na proteção da legítima, como, aliás, seria de bom alvitreem face das disposições constitucionais a respeito daequivalência entre o casamento e a união estável.

2 – DESTAQUE PARA DOISPONTOS DE IRREALIZAÇÃO DAEXPERIÊNCIA JURÍDICA À FACEDA PREVISÃO CONTIDA NA REGRAESTAMPADA NA NOVALEGISLAÇÃO CIVIL PÁTRIA, OCÓDIGO CIVIL DE 2002

2.1 A concorrência do conviventeou companheiro comdescendentes comuns e comdescendentes só do autor daherança – art. 1.790, I e II e art.1.834

Art. 1.790.Art. 1.790.Art. 1.790.Art. 1.790.Art. 1.790.

A companheira ou o companheiro participaráda sucessão do outro, quanto aos bens adquiridosonerosamente na vigência da união estável, nascondições seguintes:

I se concorrer com filhos comuns, terá direitoa uma quota equivalente à que por lei for atri-buída ao filho;

II se concorrer com descendentes só do autorda herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cadaum daqueles;

III se concorrer com outros parentes sucessí-veis, terá direito a um terço da herança;

IV não havendo parentes sucessíveis, terádireito à totalidade da herança.

10 Na deserdação, o herdeiro é “privado de uma vocação legitimária, por meio da vontade imperial do testador”, ao passo que aexclusão por indignidade resolve “uma vocação hereditária existente no momento da abertura da sucessão” (CAHALI, FranciscoJosé; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil, vol. 6, p. 384).

11 Em especial por Caio Mário da Silva Pereira, como este relata à p. 17 de seu Instituições de direito civil, v. VI, em perspectiva histórica.

12 “Compreendido o fenômeno da sucessão como uma exigência social de busca do melhor continuador da personalidade patrimonialdo de cuius, conforme a sua vontade, e baseado o critério dessa busca em presuntiva proximidade pessoal do sucessível com osucedido, justifica-se e explica-se o iter ascendente da vocação do cônjuge, dada a natural intimidade que da união do casal se esperaresultar. Tal visão e tal critério estão a sugerir, ao mesmo tempo, que a evolução da ordem de vocação ainda está a obrar à procurade uma situação definitiva para o cônjuge, que satisfaça socialmente, sob todos os aspectos” (MORAES, Walter. Ob. cit., p. 138).

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Quando da aprovação do projeto pelo SenadoFederal, foi acrescido ao Capítulo I do Título I do LivroV um artigo que não constava do Anteprojeto de 1975,por força da Emenda n. 358. Este artigo, ora sobcomento, dispõe acerca da sucessão em caso de uniãoestável, sendo certo que o projeto finalmente aprovadomodificou a redação original e atribuiu ao artigo o n.1.790, que encerra o presente capítulo.

Não obstante sua importância, parece, todavia,que a regra está topicamente mal colocada. Trata-se deverdadeira regra de vocação hereditária para as hipótesesde união estável, motivo pelo qual deveria estar situadono capítulo referente à ordem de vocação hereditária.

Sem firmar atenção ao histórico por que passou aunião estável ao longo das últimas décadas em busca dereconhecimento social, judicial e legal, de resto cabívelem outra sede, qual seja, a relativa ao direito de família,parece ser mais condizente e necessária uma análise dasrelações sucessórias entre o companheiro falecido e osupérstite, sem, no entanto, deixar de fazer referênciasoutras que se tornem necessárias à elucidação do tema.

Assim é que, anteriormente a 1988, quando aindase falava em concubinato e a reação social era no sentido,ainda que cada vez mais tímido, de se recriminar asuniões de fato entre homens e mulheres desimpedidosde contrair matrimônio, a jurisprudência foi, aospoucos e com base na Lei n. 6.858/80, garantindo àconvivente supérstite direito sucessório (tratava-se, emverdade de reconhecer o estatuto de dependente) sobreos bens de origem previdenciária, bem como sobre osbens de pequeno valor.

Quando a atual Constituição Federal entrou emvigor e garantiu, legitimando, uma verdadeira revoluçãode costumes em que as uniões de fato passaram a sercada vez menos recriminadas, para serem, já hoje, umaconstante, da qual muitas vezes, nem se pergunta aorigem da relação entre os membros da família – tudocomo parece ter querido o constituinte –, não erademasiado propugnar uma ampla e total igualdade dedireitos e deveres entre os conviventes relativamente aosdireitos e deveres exigidos dos membros de um casalunido pelo matrimônio.

No campo do direito sucessório essa igualdade, senão se operou totalmente, chegou muito próximo dissoem alguns pontos e avançou muito, inclusive, emoutros.13 Daí porque o convivente adquiriu não só direitoà meação dos bens comuns para os quais tenhacontribuído para a aquisição de forma direta ou indireta,

ainda que em nome exclusivo do falecido (art. 3°), comotambém adquiriu direito a um usufruto em tudo muitosemelhante ao usufruto vidual, isso sem se falar na suacolocação na terceira ordem de vocação hereditária logoapós os descendentes e os ascendentes, tudo isto por forçada Lei n. 8.971, de 29/12/1994, que em seu art. 2°, assimestabeleceu:

I o(a) companheiro(a) sobrevivente terádireito enquanto não constituir nova união, aousufruto de quarta parte dos bens do de cujos, sehouver filhos deste ou comuns;

II o(a) companheiro(a) sobrevivente terádireito, enquanto não constituir nova união, aousufruto da metade dos bens do de cujos, se nãohouver filhos, embora sobrevivam ascendentes;

III na falta de descendentes ou de ascendentes,o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito àtotalidade da herança.

Tendo se esquecido, o legislador infra-constitu-cional – sempre no que se refere ao direito sucessório – degarantir o direito real de habitação relativo ao imóvelque servia de residência para a família, sendo o único destanatureza, editou a Lei n. 9.278/96 que em seu art. 7°,parágrafo único, assim redigido, o previu: dissolvida aunião estável por morte de um dos conviventes, o sobre-vivente terá direito real de habitação, enquanto viver ounão constituir nova união ou casamento, relativamenteao imóvel destinado à residência da família.

Assim como a posição do cônjuge sobrevivomelhorou, naquilo que respeita aos problemas de ordemsucessória, nas previsões do novo Código Civil, ampliando-se os direitos que lhe assistem, era de se esperar que oconvivente supérstite tivesse sua condição privilegiada,relativamente àquela condição anteriormente descrita, etivesse garantido a igualdade de direitos relativamente aocônjuge sobrevivente, fazendo-se, assim, valer o dizerconstitucional em sua amplitude.

Todavia, não foi isto o que aconteceu.O anteprojeto de Código Civil elaborado em 1972,

bem assim o Projeto apresentado para discussão em 1975e aprovado na Câmara dos Deputados em 1984, nãopreviam qualquer regra relativamente à sucessão depessoas ligadas entre si apenas pelos laços do afeto. Foi oSenador Nélson Carneiro, em sua incessante luta pelamodernização das relações familiares brasileiras quemapresentou emenda no sentido de se garantir direitos

13 O que foi motivo para acerbadas críticas por parte da doutrina. Veja-se, por último, VELOSO, Zeno. Direito sucessório doscompanheiros. In: Direito de Família e o novo Código Civil, p. 225-237.

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sucessórios aos conviventes. Como lembra Zeno Veloso,14

a emenda foi claramente inspirada no Projeto de CódigoCivil elaborado por Orlando Gomes nos idos da décadade 1960 do século XX, antes portanto da igualdadeconstitucionalmente garantida. Bem por isso, o artigoem que resultou, este de n. 1.790, é de caris retrógradoreferentemente à legislação anteriormente sumariada.

Diferentemente do que ocorre com o cônjuge, queherda quota parte dos bens exclusivos do falecido quandoconcorre com os descendentes deste, percebendo, quantoaos bens comuns, apenas a meação do condomínio atéentão existente (e não mais do que isso), o convivente quesobreviver a seu par adquire não apenas a meação dosbens comuns (e aqui em igualdade relativamente aocônjuge supérstite), como herda quota parte destesmesmos bens comuns adquiridos onerosamente pelocasal, nada recebendo, no entanto, relativamente aos bensexclusivos do hereditando, solução esta que, para adaptaruma expressão de Zeno Veloso a uma outra realidade,“não tem lógica alguma, e quebra todo o sistema”.15

Não estabelece o Código Civil atual o direito realde habitação previsto pela Lei n. 9.278/96, devendo-se,por isso, e em analogia com a situação garantida aocônjuge e autorizada pela Constituição Federal, ter odispositivo do art. 7°, parágrafo único, desta lei comonão revogado.

Por fim, andou ainda mal o legislador ao aprovaro dispositivo, da forma como está, por recriar o privilégiodos colaterais até o quarto grau, que passam a concorrercom o convivente supérstite na terceira classe da ordemde vocação hereditária. Assim, morto alguém que viviaem união estável, primeiros a herdar serão os descendentesem concorrência com o convivente supérstite. Na falta dedescendentes, serão chamados os ascendentes emconcorrência com o convivente sobrevivo. Na faltatambém destes e inexistindo, como é óbvio, cônjuge queamealhe todo o acervo, serão chamados os colaterais atéo quarto grau ainda em concorrência com o convivente,uma vez que, afinal, são também os colaterais parentessucessíveis. E só na falta destes será chamado o conviventeremanescente para, aí sim, adquirir a totalidade do acervo.É flagrante a discrepância.

Bem por isto pede-se autorização para reproduzirneste tópico um trecho de extrema lucidez, tão comumna obra de Zeno Veloso:

“Na sociedade contemporânea, já estão muitoesgarçadas, quando não extintas, as relações de

afetividade entre parentes colaterais de 4° grau (primos,tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudonas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem,raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro,que vai começar a vigorar no terceiro milênio, resolve queo companheiro sobrevivente, que formou uma família,manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vaiherdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes,nem colaterais até o 4° grau do de cujus. Temos de convir.Isto é demais! [...]

“Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ouleigo, que assegure que tal solução é boa e justa? Por queprivilegiar a este extremo vínculos biológicos, ainda queremotos, em prejuízo dos vínculos do amor, daafetividade? Por que os membros da família parental,em grau tão longínquo, devem ter preferência sobre afamília afetiva (que em tudo é comparável à famíliaconjugal) do hereditando?

“Sem dúvida, neste ponto o C.C. não foi feliz. Alei não está imitando a vida, nem se apresenta emconsonância com a realidade social, quando decide queuma pessoa que manteve a mais íntima e completarelação com o falecido fique atrás de parentes colateraisdele, na vocação hereditária. O próprio tempo seincumbe de destruir a obra legislativa que não seguiu osditames do seu tempo, que não obedeceu as indicaçõesda histórica e da civilização.

“Aproveitando que o C.C. está na vacatio legis, urgeque seja reformado na parte que foi objeto deste estudo”.

“Se a família, base da sociedade, tem especialproteção do Estado; se a união estável é reconhecida comoentidade familiar; se estão praticamente equiparadas àsfamílias matrimonializadas e às famílias que se criaraminformalmente, com a convivência pública, contínua eduradoura entre o homem e a mulher, a discrepância entrea posição sucessória do cônjuge supérstite e a docompanheiro sobrevivente, além de contrariar osentimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letrae no espírito, os fundamentos constitucionais”.16

No que diz respeito à sucessão do convivente, emconcorrência com os herdeiros de primeira vocação, istoé, os descendentes, observa-se que o legislador civil atualpretendeu, efetivamente, dar distinto tratamento a essasucessão concorrente, aplicando distintas imposiçõesmatemáticas se os descendentes fossem filhos do conviventesupérstite e do convivente falecido, ou se, por outro lado,fossem descendentes exclusivos do autor da herança (incs.

14 Ob. cit., passim.15 VELOSO, Zeno. Ob. cit., passim.16 VELOSO, Zeno. Ob. cit., p. 236-237.

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I e II do art. 1.790 NCC, respectivamente), fazendo-oherdar a mesma porção deferida aos filhos comuns emetade da porção cabível aos descendentes exclusivos dode cujus.

Deu, portanto, tratamento preferencial ao convi-vente sobrevivo, quando se trata de concorrência comfilhos comuns a ele e ao morto. Esta foi a opção dolegislador civil brasileiro e passa ela a valer comoparadigma para a exegese do regramento, pelo futurodoutrinador, bem como pelo futuro aplicador dodireito, tudo em prol de uma sadia consolidaçãojurisprudencial do porvir.

A atividade do intérprete deve restar, desde já,entregue a uma consideração muito rígida, exatamentepara que não reste da tentativa (ou tentativas) deconcreção da nova ordem jurídica senão umainacreditável fonte de desconsideração do espírito dolegislador, da formulação axiológica de suas leis ou daprincipiologia que se pretende seja a paradigmática donovo Texto Civil Brasileiro.17

Tudo isso porque – infelizmente, e mais uma vez –não previu, o legislador, a tormentosa hipótese de seremherdeiros do falecido pessoas que guardem relação deparentesco (filiação) com o sobrevivo, em concorrênciacom outras que fossem parentes apenas dele, autor daherança.

Vale dizer, o legislador se olvidou mais uma vezda comum hipótese que abarca aqueles que, tendo sidocasados em primeiras núpcias, ou tendo mantido umaunião estável precedente, tenham se separado, sedivorciado ou assistido a morte do companheiro daprimeira fase de suas vidas, resolvendo, assim reconstruirsua trajetória afetiva com terceiro, hipótese esta que sequalifica, ainda, pela especial condição de ter advindoprole de ambos os relacionamentos vividos.

Não há, na nova Lei Civil, uma disposição queregulamente esta situação híbrida quanto à condição dosfilhos do falecido (comuns e exclusivos), com os quaisdeva concorrer o convivente supérstite.

Neste caso, restou inafastavelmente a dúvida: oubem se fazia o convivente supérstite concorrer com osdescendentes de ambas as condições (comuns eexclusivos) como se fossem todos descendentes comuns aosdois, herdando, portanto a mesma quota cabível a cadaum dos filhos, ou bem se fazia o convivente supérstiteconcorrer com os mesmos herdeiros como se fossem todosdescendentes exclusivos do autor da herança, percebendo,portanto, a metade dos bens que couber a cada qual.

Não bastassem essas duas modalidades exegéticaspara a apreciação da circunstância híbrida (existência defilhos comuns e de filhos exclusivos, em concorrênciacom o convivente sobrevivo), outras duas, aos menos, seapresentaram na consideração doutrinária inaugural:uma que buscou compor as disposições contidas nos incs.I e II do art. 1.790, atribuindo uma quota e meia aoconvivente sobrevivente – equivalente à soma das quotasque a ele seriam deferidas, na hipótese de concorrer comfilhos comuns (uma) e com filhos exclusivos (meia) –, eoutra que igualmente buscou compor as duas regras,dividindo proporcionalmente a herança em duas sub-heranças, atribuíveis a cada um dos grupos de filhos(comuns ou exclusivos) incorporando, em cada umadelas, a concorrência do convivente sobrevivo.

Seja qual for a formulação ou critério que seescolha, contudo, a verdade é que parece tornar-seimpossível conciliar, do ponto de vista matemático, asdisposições dos incs I e II deste art. 1.790.

Parece mesmo não haver fórmula matemáticacapaz de harmonizar a proteção dispensada pelolegislador ao convivente sobrevivo (fazendo-o recebero mesmo quinhão dos filhos que tenha tido em comumcom o autor da herança) e aos herdeiros exclusivos dofalecido (fazendo-os herdar o dobro do quantodispensado ao convivente que sobreviver).

Dessa forma, na realidade, são quatro as propostasde tentativas de composição dos dispositivos do CódioCivil envolvidos no assunto relativo à sucessão de filhos(comuns ou exclusivos) em concorrência com o conviventesobrevivente.

17 A respeito, vale a pena recuperar a cuidadosa lição de Gustavo Tepedino na mais recente obra sob sua coordenação e intitulada AParte Geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional (verificar Crise de fontes normativas e técnica legislativana parte geral do Código Civil de 2002, p. XXI): “Volta-se a ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que possam assegurar umamaior efetividade aos critérios hermenêuticos. Nesta direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípiosde tutela da pessoa humana [...], bem como sua transposição na legislação infraconstitucional. O legislador percebe a necessidadede definir modelos de conduta (standards) delineados à luz dos princípios que vinculam o intérprete, seja nas situações jurídicastípicas, seja nas situações não previstas pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos normativos (e particularmentenos novos códigos) os cânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectoscentrais da identidade cultural que se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do ponto de vista de sua estrutura efunção, a necessária comunhão entre o preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto”.

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1ª proposta: identificação dos descendentes como setodos fossem filhos comuns, aplicando-se exclusiva-mente o inc. I do art. 1.790 do Código Civil:

Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria àsimples regra de igualar os filhos de ambos os grupos,tratando-os como se fossem filhos comuns a ambos osconviventes.

Certamente não pode prosperar essa soluçãosimplista, pois se, por um lado, trata de manter igualadasas quotas hereditárias atribuíveis aos filhos (de qualquergrupo), conforme determina o art. 1.834 do Código,por outro lado, fere na essência o espírito do legisladordo Código Civil que quis dar tratamento diferenciadoàs hipóteses de concorrência do convivente sobrevivocom os descendentes do de cujus de um ou de outrogrupo (comuns ou exclusivos).

2ª proposta: identificação dos descendentes como setodos fossem filhos exclusivos do autor da herança,aplicando-se, neste caso, apenas o inc. II do art. 1.790do Código Civil:

Da mesma forma com a qual se cuidou de refutara proposta anterior, também aqui, por via desta divisãopatrimonial, se chegaria à mesma conclusão, vale dizer,o espírito do legislador do Código Civil restariamagoado, tendo em vista a inobservância da diferençaque quis dar às hipóteses de concorrência do conviventesobrevivo com os descendentes do de cujus de um ou deoutro grupo (comuns ou exclusivos).

Nessa hipótese por segundo considerada – e comoé possível observar – privilegiar-se-iam os filhos emdetrimento do convivente sobrevivo, que seria tido, sobtodos os aspectos como não ascendente de nenhum dosherdeiros, recebendo, então, apenas a metade do queaqueles herdariam. Por outro lado, naquela primeiraproposta formulada, o convivente sobrevivente acabariapor ser privilegiado, na medida em que participaria daherança recebendo quota absolutamente equivalente àsquotas atribuíveis aos descendentes de qualquer grupo.

3ª proposta: composição dos inc. I e II pela atribuiçãode uma quota e meia ao convivente sobrevivente:

Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria aseguinte regra: somar-se-ia o número total de filhoscomuns e de filhos exclusivos do autor da herança,acrescentar-se-ia mais um e meio (uma quota deferidaao convivente sobrevivente, no caso de concorrência comfilhos comuns, e meia quota deferida ao mesmosobrevivo, no caso de concorrência com filhos exclusivosdo falecido), dividindo-se, depois, a herança por essenúmero obtido, entregando-se quotas de valores iguais

aos filhos (comuns e exclusivos), o que atenderia aocomando de caráter constitucional do art. 1.834 NCC(que determina que descendentes da mesma classetenham os mesmos direitos relativamente à herança deseu ascendente), e uma quota e meia ao conviventesobrevivente, o que atenderia aos comandos dos incs. I eII do art. 1.790.

Pode parecer, à primeira vista, que esta soluçãoresolveria – com exemplar facilidade – o problema dapartilha, aparentemente atendendo a todas as regras doNCC de regência sobre o assunto.

Contudo, a pergunta difícil de responder que ficaé a seguinte: se esta for a solução buscada, onde residiria,dentro dela, aquele princípio que norteou o espírito dolegislador, ao dar diferentes variáveis de concorrência doconvivente sobrevivo com descendentes de um e de outrogrupo (comuns ou exclusivos)? Porque, afinal, o que sevê das quotas hereditárias e partilháveis entre os filhostodos é que efetivamente elas são iguais, mas a quantiaque se abateu da herança, para compor a quota doconvivente concorrente, foi retirada do monte-mor atodos eles idealmente atribuível, sem atentar para adiferença entre os filhos (como pretendeu diferenciá-los, para esse efeito, o legislador de 2002, nos incs. I e IIdo art. 1.790), diminuindo, igualmente, o quinhão decada um deles, afinal de contas, para compor a quotahereditária do convivente concorrente.

O que restou a considerar, num caso como esse, esob essa solução, é que o tratamento dado ao conviventesobrevivo foi muito mais privilegiado que em qualquerdas duas hipóteses singulares (incs. I e II do art. 1.790)previstas pelo legislador e vistas cada uma de per se.Confira-se: a) se concorresse apenas com filhos comuns,o convivente sobrevivo herdaria quota igual à quecoubesse a cada um deles; b) se concorresse apenas comdescendentes exclusivos do autor da herança, oconvivente sobrevivo herdaria quota equivalente à metadeda que coubesse a cada um deles; c) mas, nessa derradeiraproblemática e não prevista hipótese de concorrênciacom filhos de ambos os grupos (comuns e exclusivos), oconvivente se beneficiaria, por herança, com maiorquinhão, qual seja o quinhão equivalente a uma quota emeia, enquanto que cada um dos filhos (comuns ouexclusivos) herdaria uma única quota, cada um deles.

Não me parece que seja isto que tenha querido olegislador, uma vez que diferenciou as espécies deherdeiros descendentes, para efeito dessa concorrênciae, em nenhuma das formulações legislativas, deferiu, aoconvivente sobrevivo, uma quota hereditária maior doque a que coubesse a qualquer dos herdeiros com quemconcorresse. Na melhor das hipóteses (inc. I), o

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legislador pensou em igualar o quinhão do conviventesobrevivo ao quinhão do herdeiro, desde que fosse filhoseu e do autor da herança, mas nunca pensou emprivilegiar o convivente com quota maior do que adeferida ao herdeiro.

Assim – segundo quer me parecer – se aplicadoesse critério aqui desenhado, o resultado obtido ao finalde uma partilha seria um resultado absolutamentedissociado do espírito do legislador de 2002.

Penso não ser possível produzi-lo assimsimplesmente, tout court.

4ª proposta: composição dos incs. I e II pela sub-divisão proporcional da herança, segundo aquantidade de descendentes de cada grupo:

Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria aseguinte regra: primeiro se dividiria a herança a serpartilhada entre filhos comuns e filhos exclusivos em duaspartes (sub-heranças) proporcionais, cada uma delas, aonúmero de filhos de um ou de outro grupo. A seguir seintroduziria, em cada uma dessas sub-heranças, aconcorrência do convivente, conforme a determinação doinc. I ou do inc. II do art. 1.790, respectivamente. Depoisdisso, se somariam as quotas do convivente supérstite –obtidas em cada uma dessas sub-heranças – formando oquinhão a ele cabível. Aos filhos herdeiros caberia a quotaque houvesse resultado da aplicação das regras legais emcada uma das sub-heranças, conforme proposto.

É fácil verificar, se esse fosse o critério a serutilizado, que os quinhões dos filhos de um grupo seriamproporcionalmente maiores que os quinhões dos filhosdo outro grupo. Quinhões desigualados equivalem,

entretanto, ao desatendimento do art. 1.834 NCC,dispositivo de caráter constitucional.

Assim – segundo quer me parecer, nesta novaproposta de partição da herança – se aplicado o critériomatemático aqui desenhado, o resultado obtido ao finalde uma partilha seria um resultado absolutamentedissociado, não apenas do espírito do legislador de 2002,mas também da principiologia constitucional defundo.18

2.2 A concorrência do cônjugecom descendentes – arts. 1.829, I,1.832 e 1.834.

Depois de tratar das regras gerais respeitantes àsucessão, no sentido de serem regras que se aplicamtanto à sucessão testamentária, quanto àquela que seprocessa tendo falecido o de cujus ab intestato, passa olegislador a editar regras especialmente desenhadas paraaqueles casos em que a morte se dá com ausência detestamento ou de testamento válido, com testamentoincompleto, enquanto um testamento que não abrangea totalidade do acervo hereditário disponível, ou mesmocom um testamento que, não obstante completo,encontra limitação na existência de herdeirosnecessários, que são aqueles que necessariamente devemser chamados a herdar ou, ao menos, deliberar a respeitoda quota que lhes é deferida.

Esta chamada se organiza, em níveis de preferênciapor certas classes de pessoas consoante a regra do art.1829 do novo Código Civil:

18 O legislador brasileiro, de alguma forma, já se apercebeu da inviabilidade de conexão entre o enunciado genérico contido no art.1.790, I e II e a norma descritiva de valores que descreve o art. 1.834, todos do novo Código Civil Brasileiro. O Projeto de Lei n. 6.960/2002 (do Deputado Ricardo Fiúza) intenta uma nova redação para o art. 1790, deixando-o com a seguinte sugestão de redação: Art.1.790. O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte: I – em concorrência com descendentes, terá direito auma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estávele o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros se tivesse ocorrido, observada asituação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1.641); [...] A alteração de fundo ésignificativa, pois todo o contorno e conteúdo do dispositivo é alterado. Mas não esteve preocupado o legislador do substitutivo emcompor matematicamente a possibilidade de aplicação dos dispositivos do Código Civil tal como estão, hoje. Na substanciosa obradenominada Novo Código Civil Comentado, coordenada pelo próprio Deputado Ricardo Fiúza (Saraiva, 2002, 1843 p.), o juristaencarregado de comentar esse art. 1.790 e de demonstrar a sugestão legislativa de alteração que o acompanha (Projeto de Lei n.6.960/2002) foi exatamente o insigne Zeno Veloso, que assim descreveu a razão da sugestão legislativa sob comento: “Conscientedisso [referia-se aos inúmeros problemas originais do dispositivo], e considerando o posicionamento assumido no CongressoNacional, em vez de oferecer ao Deputado Ricardo Fiúza minha própria proposta, vou apresentar – com algumas alterações, a meuver necessárias – a que foi oferecida pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, colocando-a de acordo com aslimitações à concorrência dos cônjuges com os descendentes (art. 1.829) e com a emenda que estou propondo ao art. 1831, queregula o direito real de habitação. Transijo, enfim, para que o art. 1.790 não fique como está.”

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Art. 1.829.Art. 1.829.Art. 1.829.Art. 1.829.Art. 1.829.

A sucessão legítima defere-se na ordemseguinte:

I aos descendentes, em concorrência com ocônjuge sobrevivente, salvo se casado este com ofalecido no regime da comunhão universal, ou no daseparação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafoúnico); ou se, no regime da comunhão parcial, o autorda herança não houver deixado bens particulares;

II aos ascendentes, em concorrência com ocônjuge;

III ao cônjuge sobrevivente;

IV aos colaterais.

Impõe o legislador uma ordem de vocaçãohereditária, em que divide os chamados a herdar emclasses, impondo entre eles uma “relação preferencial”19

em que uns excluem os outros, segundo a ordemestabelecida no ordenamento.

O novo Código Civil, apesar de manter a ordem devocação hereditária tradicionalmente aceite peloordenamento jurídico brasileiro,20 garante ao cônjugesupérstite uma dada posição de igualdade, e por vezes atéde primazia, relativamente aos descendentes e ascendentes– que continuam a compor a primeira e a segunda classesde vocação hereditária – chamados a herdar.

Outra conseqüência trazida pela nova legislaçãofoi a revogação, por falta absoluta de previsão nestesentido, bem assim por perda de necessidade prática, dainstituição em favor do cônjuge sobrevivo dos direitosreais de uso ou usufruto, uma vez que este passa a herdarsempre que não lhe faltar legitimidade para tanto. Assim,se herda, adquire o direito de propriedade sobre umaparte do acervo, direito real este de amplitude quaseilimitada, e isto torna desnecessária a herança de direitosreais limitados. Manteve-se, entretanto o direito real dehabitação sobre a residência familiar, limitado ao fatode ser este o único bem com esta destinação.

O cônjuge sobrevivo encontra-se, por força destalistagem preferencial de chamamento a herdar, emterceiro lugar, mas posiciona-se favorecido também nasduas primeiras e antecedentes classes, já que o novellegislador dispôs que ele concorre com aqueles primeiro

chamados a herdar, isto é, os descendentes e osascendentes

A imissão do cônjuge nas classes anteriores àterceira, se faz de forma gradativa e proporcional àimportância que o legislador empresta aos descendentese aos ascendentes em relação ao apreço e carinho que omorto presumidamente guardaria para cada qual. Porisso é que a quota do cônjuge vai aumentandodependendo da classe em que se encontre, como se verá.

Por força do art. 1.845 do novo Código Civil, ocônjuge sobrevivo – já se o mencionou, antes – passa àcategoria de herdeiro necessário, tornando-se impossívelao cônjuge que primeiro falecer afastar o supérstite desua sucessão, o que antes era possível pela simples facçãode cédula testamentária que abrangesse todo opatrimônio do de cujus, inexistindo descendentes eascendentes do testador. Tornar o sobrevivente herdeironecessário da pessoa com quem conviveu e convivia atéperíodo próximo ao da morte deste é medida que secoaduna com a colocação daquele nas duas primeirasclasses de vocação sucessória, em concorrência comdescendentes e ascendentes. Com efeito, seria ilógicofazer do sobrevivente herdeiro preferencial, concorrentedos necessários e, ao mesmo tempo, negar-lhe talcondição. Daí a regra do art. 1.845 referido.

Todavia, a aquisição de fração da herança pelocônjuge supérstite depende da verificação de certospressupostos que garantam, do ponto de vista social, aharmonia e a continuidade da vida em comum, como quea legitimar a presunção de que o cônjuge participou daconstrução do patrimônio familiar, “seja pela cooperaçãodireta de trabalho, seja pela participação direta de apoio,de economias, da harmonia e até de sacrifícios”,21 apenaspara ficarmos na enumeração expendida por Caio Márioda Silva Pereira, um dos maiores defensores doreconhecimento do cônjuge não só como herdeiropreferencial, mas também como herdeiro necessário.

O primeiro destes pressupostos exigidos pela lei éo do regime matrimonial de bens. Bem por isso o inc. I doart. 1.829, anteriormente reproduzido, faz depender avocação do cônjuge supérstite do regime de bensescolhido pelo casal, quando de sua união, uma vez queo legislador enxerga nessa escolha uma demonstração

19 RODRIGUES, Silvio. Direito civil – direito das sucessões, p. 61. Ou, ainda, como deixou consignado Itabaiana de Oliveira, tratar-se-ia de verdadeira “coordenação preferencial dos grupos sucessíveis” (ITABAIANA DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de direitodas sucessões. vol. I, p. 169).

20 É a seguinte a redação do art. 1603 do Código Civil de 1916: “A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes;II – aos ascendentes; III – ao cônjuge supérstite; IV – aos colaterais; V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União”.

21 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Ob. cit., p. 76.

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prévia dos cônjuges no sentido de permitir ou não aconfusão patrimonial e em que profundidade queremver operada tal confusão.

Assim, não será chamado a herdar o cônjugesobrevivo se casado com o falecido pelo regime dacomunhão universal de bens (arts. 1.667 a 1.671 do atualCódigo Civil), ou pelo regime da separação obrigatóriade bens (arts. 1.687 e 1.688, combinado com o art. 1.641).

Por fim, aqueles casais que, tendo silenciadoquando do momento da celebração do casamento,optaram de forma implícita pelo regime da comunhãoparcial de bens, fazem jus à meação dos bens comuns dafamília, como se de comunhão universal se tratasse, maspassam agora a participar da sucessão do cônjugefalecido, na porção dos bens particulares deste.

Pode-se concluir, então, no que respeita ao regimede bens reitor da vida patrimonial do casal, que o cônjugesupérstite participa por direito próprio dos bens comunsdo casal, adquirindo a meação que já lhe cabia, mas quese encontrava em propriedade condominial dissolvidapela morte do outro componente do casal e herda,enquanto herdeiro preferencial, necessário, concorrentede primeira classe, uma quota parte dos bens exclusivosdo cônjuge falecido, sempre que não for obrigatória aseparação completa dos bens.

De outra feita, se concorrer na segunda classe,tirante a meação que lhe couber, herda não apenasfração dos bens particulares do de cujus como tambémfração dos bens comuns ao casal, uma vez que o inc. II doart. 1.829 não faz quaisquer das ressalvas feitas no incisoI do mesmo artigo em clara demonstração de que asexceções deste último inciso só servem para proteger osdescendentes do falecido e não os ascendentes deste,sempre que em concorrência com o cônjuge supérstite.

Outro pressuposto para a participação do cônjugesobrevivo na herança do falecido é a constância jurídicae fática do casamento (art. 1.830).

Art. 1.832.Art. 1.832.Art. 1.832.Art. 1.832.Art. 1.832.

Em concorrência com os descendentes (art.1.829, inc. I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dosque sucederem por cabeça, não podendo a sua quotaser inferior à quarta parte da herança, se for ascendentedos herdeiros com que concorrer.

A primeira classe a ser chamada à sucessão será ados descendentes do de cujus, em concorrência com ocônjuge supérstite que satisfaça às exigências relativasao regime matrimonial de bens (quanto a este tema,veja-se, supra, os comentários ao art. 1.830).

A regra geral é a de que o cônjuge supérstite e osdescendentes recebem a mesma quota hereditária.Todavia, esta regra encontra exceção na parte final doartigo reproduzido sempre que a concorrência se derentre o cônjuge supérstite e quatro ou mais dosdescendentes que teve em comum com o de cujus.

A sucessão que se resolva na vocação da primeiraclasse para receber a parte disponível, ou mesmo atotalidade da herança verá o acervo hereditário serdividido em tantas partes quantos forem os filhos, netos,bisnetos ou demais descendentes do de cujus, sempre quetodos sucedam por direito próprio, o que equivale adizer que todos os descendentes devem guardar,relativamente ao morto, o mesmo grau de parentesco, emais uma parte, esta destinada ao cônjuge supérstite.

Todavia, se a quota parte cabível a este último formenor do que a quarta parte do monte-mor e se todosos chamados a suceder forem também seus herdeiros,então a lei reserva ao cônjuge supérstite este montante,que será então descontado do acervo hereditário,repartindo-se os outros setenta e cinco por cento entreos descendentes que com este concorrem à sucessão.

Por outro lado, se à sucessão concorreremdescendentes apenas do de cujus, então a reserva daquarta parte ao sobrevivo não prevalecerá e a herançadividir-se-á em tantas partes quantos forem osdescendentes, mais uma a ser entregue ao cônjuge.

Questão mais tormentosa de se buscar solucionar,relativamente a essa concorrência prevista pelodispositivo em comento, é aquela que vai desenhar umahipótese em que são chamados a herdar os descendentescomuns (ao cônjuge falecido e ao cônjuge sobrevivo) eos descendentes exclusivos do autor da herança, todosem concorrência com o cônjuge sobrevivo. O legisladordo Código Civil de 2002, embora inovador naconstrução legislativa de hipótese de concorrência docônjuge com herdeiros de convocação anterior à suaprópria, infelizmente não fez a previsão da hipóteseagora em apreço, de chamada de descendentes dos doisgrupos, quer dizer, os descendentes comuns e osdescendentes exclusivos. E é bastante curioso, até,observar essa lacuna deixada pela nova Lei Civil, umavez que em nosso país a situação descrita é comuníssima,envolvendo famílias constituídas por pessoas que jáforam unidas a outras, anteriormente, por casamentoou não, resultando, dessas uniões, filhos (descendentes,enfim) de origens diversas.

A dúvida que remanesce, à face da ausência deprevisão legislativa para a hipótese, diz respeito, afinal, aofato de se buscar saber se prevalece, ou não, a reserva daquarta parte dos bens a inventariar, a favor do cônjugesobrevivo, em concorrência com os descendentes herdeiros.

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Ora, a maneira que escolheu o legislador pararedigir o art. 1.832 não deixa qualquer dúvida acerca daintenção de se dar tratamento preferencial ao cônjugesobrevivo, quando se trata de concorrência comdescendentes do de cujus que sejam também seusdescendentes, exatamente reservando-lhe esta quartaparte da herança, como quinhão mínimo a herdar, porconcorrência com aqueles. Observe-se que não fezidêntica referência, o legislador, para a hipótese distinta,vale dizer, de serem os herdeiros, com quem concorre ocônjuge sobrevivo, descendentes exclusivos do falecido.Logo, essa foi a opção do legislador civil brasileiro – ade privilegiar o cônjuge concorrente com a reserva daquarta parte da herança, apenas no caso de concorrênciacom herdeiros dos quais fosse ascendente – e, por essarazão, essa opção passa a valer como paradigma para aexegese do regramento, pelo futuro doutrinador, bemcomo pelo futuro aplicador do direito, tudo em prol deuma sadia consolidação jurisprudencial do porvir.22

Se este foi o espírito que norteou a concreçãolegislativa no novo Código Civil – e trata-se de umaformulação bastante elogiável – entendo que ele deva serpreservado, ainda quando se instale, na vida real, a hipótesehíbrida antes considerada, de chamamento de descendentesa herdar, de ambos os grupos, isto é, de descendentes quetambém o sejam do cônjuge concorrente, e de descendentesexclusivos do autor da herança. Qualquer solução quepretenda deitar por terra essa postura diferencialconsagrada pelo legislador deveria estar consignada emlei, ela também, exatamente para evitar a variada gama desoluções que terão que ser, obrigatoriamente, organizadaspelo aplicador e pelo hermeneuta, formulando paradigmasjurisprudenciais que não guardem qualquer correlaçãocom aquele espírito do legislador, claramente registradono artigo em comento (1.832).

Mas porque não há, na nova Lei Civil, umadisposição específica para a hipótese híbrida (descendentescomuns e descendentes exclusivos), soluções alternativaspoderão ser levantadas para os casos que se apresentaremnesse interregno de tempo que se estenderá entre a entradaem vigor do Código e a necessária alteração legislativa,no porvir.

Se assim for, então, parecem ser três as maisprováveis propostas de solução para as ocorrênciashíbridas de sucessão de descendentes dos dois grupos(comuns e exclusivos) em concorrência com o cônjugesobrevivente.

1ª proposta: identificação dos descendentes (comunse exclusivos) como se todos fossem tambémdescendentes do cônjuge sobrevivente.

Por esta via, que considera todos os descendentesdo de cujus como sendo descendentes também do cônjugesobrevivo, a solução possível seria apenas aquela dereservar a quarta parte da herança para ser amealhadapelo cônjuge que sobreviveu.

Solução desse jaez representaria, no entanto, umcerto prejuízo aos descendentes exclusivos do falecido,os quais, por não serem descendentes do cônjuge comquem concorrem, restariam afastados de parte mais oumenos substanciosa do patrimônio exclusivo de seuascendente morto.

Não se satisfaz, portanto, o espírito do legisladorno novo Código Civil, que pretendeu privilegiar ocônjuge supérstite – nestas condições de reserva de parteideal – tão – somente quando tal cônjuge fosse tambémascendente dos herdeiros de primeira classe com quemconcorresse. Por esse motivo tal proposta não deveprevalecer, não obstante garantir quinhões iguais aosfilhos de ambos os grupos (comuns e exclusivos) e aocônjuge sobrevivente.

2ª proposta: identificação dos descendentes (comunse exclusivos) como se todos fossem descendentesexclusivos do cônjuge falecido.

Da mesma forma com a qual se cuidou de refutara proposta anterior, também aqui se pode chegar àmesma conclusão de inobservância do espírito dolegislador do Código Civil. Mas, aqui, tal inobservânciase verifica na exata medida em que o tratamento de todosos descendentes do de cujus como seus descendentesexclusivos, acabaria por afastar a reserva da quarta partedo monte partível garantida ao cônjuge sobrevivo, comoforma de lhe garantir um maior amparo em sua viuvez.

Trata-los, aos descendentes todos, como se fossemdescendentes exclusivos do falecido representa soluçãoque fecha os olhos a uma verdade natural (descendentespor laços biológicos) ou civil (descendentes em razão deuma adoção verificada) que é a única verdade que olegislador tomou como autorizadora de uma maiorproteção dispensada ao cônjuge que sobreviver.

3ª proposta: composição pela solução híbrida,subdividindo-se proporcionalmente a herança,segundo a quantidade de descendentes de cada grupo.

Por esta via de raciocínio (que bem poderia serintentada pelo intérprete, à face da lacuna dolegislador), a divisão patrimonial do acervo hereditárioobedeceria às seguintes regras: primeiro se dividiria aherança em duas sub-heranças, proporcionalmente aonúmero de descendentes de cada um dos grupos (comunse exclusivos). A sub-herança que fosse destinada a

22 Essa mesma consideração, com a mesma natureza argumentativa, já foi levantada pela autora em comentários anteriores(art. 1.790), relativamente à sucessão, por concorrência, do convivente sobrevivo.

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compor os quinhões hereditários dos descendentesexclusivos seria dividida em tantas quotas quantos fossemos herdeiros desta classe, mais uma (correspondente àquota do cônjuge concorrente, conforme determinaçãodo art. 1.832, 1ª parte), entregando-se a cada um dosherdeiros o seu correspondente quinhão hereditário. Aseguir, dividir-se-ia, da mesma maneira, a sub-herançadestinada a compor os quinhões hereditários dosdescendentes comuns, pelo número deles, mais uma,destinada ao cônjuge que com eles concorre. Supondoque a somatória desta quota deferida ao cônjugesobrevivente (em concorrência com descendentescomuns) e da quota igualmente deferida a ele (emconcorrência com descendentes exclusivos) fosse menorque uma quarta parte da herança, então se reorganizariaa divisão, para que esse preceito do legislador ordináriopudesse ser observado. Para tanto, a sugestão seria a dese abater da sub-herança atribuível aos descendentescomuns o quanto fosse necessário para – somando-se aoquinhão do cônjuge obtido já da sub-herança deferidaaos descendentes exclusivos – consolidar o equivalente a25% do total da herança (atendendo, assim, ao quedispõe a segunda parte do mesmo dispositivo legal emcomento, o art. 1.832).

Ora, é muito fácil observar que, senão emcircunstância real excepcionalíssima, essa composiçãomatemática não conseguiria atender aos preceitos legais

envolvidos (art. 1.829, I e 1.832), e não garantiria aigualdade de quinhões atribuíveis a cada um dosdescendentes da mesma classe, conforme determina o art.1.834, de caráter constitucional. Quer dizer, nem seconseguiria obter – por esta proposta imaginadaconciliatória – iguais quinhões para os herdeiros da mesmaclasse (comuns ou exclusivos), nem seria razoável que aquarta parte garantida ao cônjuge fosse complementadapor subtração levada a cabo tão-somente sobre a partedo acervo destinada aos descendentes comuns.

De qualquer das formas, ao que parece, naocorrência de uma hipótese real de sucessão dedescendentes que pertencessem aos dois distintos grupos(comuns e exclusivos) em concorrência com o cônjugesobrevivo, não haveria solução matemática que pudesseatender a todos os dispositivos do Código Civil novo, oque parece reforçar a idéia de que, para evitar umaprofusão de inadequadas soluções jurisprudenciaisfuturas, o ideal mesmo seria que o legislador ordináriorevisse a construção legal do novo Diploma Civilbrasileiro, para estruturar um arcabouço de preceitosque cobrissem todas as hipóteses, inclusive as hipóteseshíbridas (como as tenho chamado) evitando o dissaborde soluções e/ou interpretações que corressemexclusivamente ao alvedrio do julgador ou dohermeneuta, mas desconsiderando tudo aquilo que, aprincípio, norteou o ideal do legislador, formatando oespírito da norma.23

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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23 A respeito, a autora solicita licença para repetir lição já anteriormente citada, de Gustavo Tepedino, também em nota de rodapé, noscomentários ao art. 1.790: “Volta-se a ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que possam assegurar uma maior efetividade aoscritérios hermenêuticos. Nesta direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípios de tutela da pessoahumana [...], bem como sua transposição na legislação infraconstitucional. O legislador percebe a necessidade de definir modelos deconduta (standards) delineados à luz dos princípios que vinculam o intérprete, seja nas situações jurídicas típicas, seja nas situações nãoprevistas pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos normativos (e particularmente nos novos códigos) oscânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da identidadecultural que se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do ponto de vista de sua estrutura e função, a necessária comunhãoentre o preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto” (Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral doCódigo Civil de 2002. A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional, p. XXI).

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GUARDA COMPARTILHADA:SÓ DEPENDE DE NÓS

R E S U M O A B S T R A C T

Débora BrandãoAdvogada. Doutoranda e Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP.

Professora de Direito Civil no IMES/SCS e UBC.

O presente trabalho visa analisar a guarda sob o pontode vista do rompimento da relação matrimonial ouconvivencial, adotando-se o modelo compartilhado.Inicialmente, buscou-se conceituar o instituto guarda,para após ingressar no guarda conjunta. Tal estudorequer o enfrentamento das muitas classificaçõesapresentadas pela doutrina como a guarda alternadaou o aninhamento ou nidação.Os reflexos trazidos pelo instituto obrigam a umaabordagem psicológica e social, ainda que superfi-cialmente, o que, aliás, foi feito.Procurou-se, também, apresentar os benefícios emalefícios que a guarda compartilhada traz consigo,não só do ponto de vista jurídico, mas tambémpsicossocial.Por fim, os projetos de lei em tramitação foram estu-dados e, no que julgamos pertinente, criticado.Concluímos que a guarda compartilhada deve serinstrumento utilizado com critério, jamais como expe-rimento teórico-jurídico.

PALAVRAS-CHAVE: guarda compartilhada, Código CivilBrasileiro, pais separados.

The present work seeks to analyze the guard under thepoint of view of the breaking of the matrimonialrelationship, being adopted the shared model.Initially, it was looked for to consider the institute keeps,after entering in the joint custody. Such study requeststhe confrontation of the many classifications presentedby the doctrine as the alternated guard, etc.The reflexes brought by the institute force to apsychological and social approach, althoughsuperficially, which, in fact, it was done.It was sought, also, to present the benefits and harmsthat the shared guard brings with itself, not only of thejuridical view, but also psychosocial.Finally, the bills were studied and, in that we judgedpertinent, criticized.We concluded that the shared guard must be instrumentused with criterion, never as theoretical-juridicalexperiment.

KEYWORDS: shared guard, Brazilian Civil Code,separate parents.

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1 – NOÇÕES INTRODUTÓRIAS ECONCEITO

A guarda é disciplinada no ordenamento jurídicobrasileiro, de maneira diferenciada, conforme a parti-cular situação. O novo Código Civil, Lei n. 10.406/02,dispõe sobre ela nos arts. 1.583 e seguintes. Esta guardaestabelece a quem caberá a permanência da criança ouadolescente após a dissolução da sociedade conjugal oudivórcio dos genitores.

A guarda dos filhos oriundos da união estável éprevista no art. 1.724, do Código Civil, mas a ela serãoaplicados, por analogia, os artigos pertinentes à guardaproveniente do fim da sociedade conjugal ou divórcio.

Há, ainda, a guarda para colocação da criançaou adolescente em família substituta, elencada nos arts.33 a 35 do ECA. Cabe, aqui, a observação de que o ECAnão foi revogado, eis que o novo diploma não cuidouda colocação em família substituta.

O presente trabalho visa a analisar a guarda sob oponto de vista do rompimento da relação matrimonialou convivencial, adotando-se o modelo compartilhado.

De acordo com De Plácido e Silva, o vocábuloguarda “é derivado do antigo alemão wargen (guarda,espera), de que proveio também o inglês warden(guarda), de que formou o francês garde, pelasubstituição do w em g, é empregado em sentido genéricopara exprimir proteção, observância, vigilância ouadministração”. Guarda de filhos “é locução indicativa,seja do direito ou do dever, que compete aos pais ou a umdos cônjuges, de ter em sua companhia ou de protegê-losnas diversas circunstâncias indicadas na lei civil. E guarda,neste sentido, tanto significa custódia como a proteçãoque é devida aos filhos pelos pais”.1

Para Maria Helena Diniz, a guarda

“constitui um direito, ou melhor, um poderporque os pais podem reter os filhos no lar,conservando-os junto a si, regendo seu comporta-mento em relação com terceiros, proibindo suaconvivência com certas pessoas ou sua freqüência adeterminados lugares, por julgar inconveniente aosinteresses dos menores”.2

1 Vocabulário jurídico, p. 365-366.2 Curso de direito civil brasileiro, p. 444.3 Guarda, tutela e adoção p. 534 Nick. Guarda compartilhada: um novo enfoque no cuidado aos filhos de pais separados ou divorciados. In: BARRETO, Vicente

(Coord.). A nova família: problemas e perspectivas, p. 135.5 Maria Antonieta Pisano Motta. Guarda compartilhada – novas soluções para novos tempos. Direito de família e ciências humanas.

Caderno do Estudos n. 3. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2000.

J. M. Leoni Lopes de Oliveira é mais sucinto: “Aguarda é um conjunto de direitos e deveres que certaspessoas exercem, por determinação legal, ou pelo juiz,de cuidado pessoal e educação de um menor de idade”.3

Após a conceituação preliminar do gênero guarda,ingressaremos no tema objeto deste trabalho: a guardacompartilhada.

“O termo guarda compartilhada ou guardaconjunta de menores (‘joint custody’, em inglês)refere-se à possibilidade dos filhos de pais separadosserem assistidos por ambos os pais. Nela, os pais têmefetiva e equivalente autoridade legal para tomardecisões importantes quanto ao bem estar de seusfilhos e freqüentemente têm uma paridade maior nocuidado a eles do que os pais com guarda única (‘solecustody’, em inglês)”.4

Apenas para esclarecer, isto não quer dizer que osfilhos morarão alternadamente com cada um dosgenitores, ou que o genitor não detentor da guardamaterial, física, não seja guardião, mas, sim, que aresponsabilidade por todos os direitos e deveres com relaçãoà prole é compartilhada pelo pai e pela mãe.

Observa-se que a guarda compartilhada apresentaum aspecto material ou físico e outro jurídico. O aspectomaterial ou físico implica ao genitor ter a prole consigo.Já o aspecto jurídico é comum aos genitores. Refere-seao exercício simultâneo de todos os poderes-deveresinerentes ao poder familiar.

“Na guarda compartilhada o genitor que nãotem a guarda física não se limitará a supervisionar aeducação dos filhos, mas ambos os pais participarãoefetivamente dela como detentores de poder eautoridade iguais para tomar decisões diretamenteconcernentes aos filhos, seja quanto à sua educação,religião, cuidados com a saúde, formas de lazer,estudos, etc”. 5

Existe muita confusão acerca da guarda compar-tilhada em virtude das mais variadas subclassificações,que apresentaremos a seguir:

Através da guarda alternada, os genitores ficarãopor período de tempo pré-estabelecido, geralmente de

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forma eqüânime e exclusiva, com a criança ouadolescente, exercendo a totalidade dos poderes-deveresque integram o poder familiar.6

Assim, no termo final do período, que pode ser deuma semana, um mês ou um ano, por exemplo, os papéisse invertem e quem exercia a guarda física naqueleperíodo passa a exercer o direito de visitas.

Há, também, o aninhamento ou nidação, queconsiste na permanência da criança ou adolescente numacasa, cabendo a cada um dos pais, por períodosalternados, a mudança para lá a fim de atender e convivercom os filhos.7

Estas outras formas de exercício da guarda, quenão a compartilhada propriamente dita, são bastantecriticadas pelos psicólogos, assistentes sociais e pelosaplicadores do Direito em geral. Tanto na guardaalternada quanto no aninhamento, a criança ouadolescente não estabelece um relacionamento estávelcom os pais e seu em torno, sob o ponto de vistaemocional e psíquico, uma vez que haverá inúmerasmudanças, seja dos pais, seja deles ou do ambientefamiliar no transcorrer de sua infância e adolescência.

Severas críticas ao exercício da guarda alternada,que se mostra contrária ao interesse da criança ouadolescente, leva-nos à reflexão:

“Pode ela afetar gravemente o equilíbrio domenor, sobretudo se é de pouca idade. Conformeopiniões autorizadas ... que a experiência comumparece confirmar, uma das necessidades básicas dacriança é a da continuidade e estabilidade das suasrelações e ambiência afetiva cuja quebra podeprejudicar o seu normal desenvolvimento, causando,por vezes, retrocessos psicológicos espetaculares”.8

“É um tipo de guarda que se contrapõefortemente ao princípio de ‘continuidade’, que deveser respeitado quando desejamos preservar o bem-estar físico e mental da criança”.9

É fundamental, para a criança ou adolescente, aconquista do seu espaço, seus limites, seus amigos. Defato, crianças e adolescentes submetidos a esta guardaficam privados de uma relação afetiva contínua tantocom seu pai quanto com sua mãe; não desenvolvemrelações sociais nem espaciais sólidas, podendo perder

6 Denise Duarte Bruno. Guarda compartilhada. Porto Alegre: Síntese, IBDFam, n. 12, p. 30.7 Idem, p. 31.8 Armando Leandro. Poder parental: natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária. In: Ciclo de

Conferência do Conselho Distrital do Porto. Temas de direito de família, p. 155-156.9 Maria Antonieta Pisano Motta. Guarda compartilhada: novas soluções para novos tempos, cit. p. 84.10 CF, art. 229 e NCCB, art. 1.566, IV.

estes referenciais tão importantes ao amadurecimentodo ser humano.

2 – ANÁLISE DA CONVENIÊNCIAOU NÃO DO EXERCÍCIO DAGUARDA COMPARTILHADA

Um dos principais motivos para a granderepercussão da guarda compartilhada em torno de todoo mundo, se deve ao fato da continuação da relação dacriança ou adolescente com seus genitores após aseparação ou divórcio.

Mas existem outros também relevantes: 1) ela nãoimpõe aos filhos a escolha por um dos genitores comoguardião, o que é causa, normalmente, de muita angústiae desgaste emocional em virtude do medo de magoar opreterido; 2) possibilita o exercício isonômico dosdireitos e deveres inerentes ao casamento e união estável,a saber, guarda, sustento e educação da prole;10

3) diminui os sentimentos de culpa e frustração dogenitor não guardião pela ausência de cuidados emrelação aos filhos; 4) com as responsabilidades divididas,as mães, que originalmente ficam com a guarda, têm seunível de cobrança e responsabilidade em relação àeducação dos filhos diminuídos e seguem seus caminhoscom menores níveis de culpa; 5) aumenta o respeitomútuo entre os genitores, apesar da separação oudivórcio, porque terão de conviver harmonicamentepara tomar as decisões acerca da vida dos filhos; destamaneira, a criança ou adolescente deixa de ser a tradicionalmoeda usada nos joguetes apelativos que circundam asdecisões sobre o valor da pensão alimentícia e outrasquestões patrimoniais.

Com a guarda compartilhada, a posição dogenitor frente à prole é totalmente modificada. De merovisitante volta a ser, efetivamente, pai. Fazendo ocaminho inverso, isto é, analisando a separação do pontode vista do genitor que não mais convive diariamentecom sua prole, de uma hora para outra, ele “passa a serconsiderado ‘visita’, o que no mínimo, no recôndito doseu ser, o fará sentir-se inabilitado para o exercício dafunção parental que até aquele momento exercia sem

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nenhum questionamento, por direito lhe cabia e eradeferida de forma integral”.11

Isto é especialmente relevante porque a Psicologiaendossa o que constatamos com a militância naadvocacia familiarista acerca dos efeitos que a separaçãoou o divórcio causam ao homem: o afastamento dospais em relação aos filhos é um freqüente recurso queaqueles encontram para se preservar da separação oudivórcio.

A afirmação, num primeiro momento, pode soarcomo um absurdo, porque existe um senso comum deque os pais que “abandonam” seus filhos não têmqualquer vínculo afetivo ou sentimento de bem-quererem relação a eles. Mas não procede totalmente este modode pensar.

Segundo Maria Antonieta Pisano Motta, Stuart eseus colaboradores “tiveram resultados em suaspesquisas que contrariam esta visão dos fatos, aoconstatar que os pais que não detinham a guarda,sofriam muito mais de depressão e ansiedade e tinhammaiores problemas de ajustamento do que aqueles paisque detinham a guarda ou que eram recasados.

Greif verificou que os homens freqüentementeexpressavam grande tristeza e depressão a respeito daperda de seus filhos e sentiam que afastar-se era a únicamaneira de conseguirem lidar com esses sentimentos”.12

Entendemos ser, no mínimo, temerário taxá-losde egoístas ou irresponsáveis quando, de fato, estãobuscando uma forma de sobrevivência. Devemosconsignar que, de forma alguma aprova-se esta condutacomo modelar. O que se busca é mostrar que o serhumano, por vezes, adota esta postura sem a intençãodeliberada de punir a prole ou o outro cônjuge, comosói acontecer.

Ainda sob este prisma devemos ressaltar aimportância da convivência da criança ou adolescentecom o pai e a mãe, essencial para o seu desenvolvimentocomo ser social.13

“O aspecto parental do casal é requerido para oexercício das funções paterno-maternas propostas para

11 Lia Justiniano dos Santos. Guarda compartilhada In: Revista Brasileira de Família, n. 8, p. 158.12 Maria Antonieta Pisano Motta. Guarda compartilhada – novas soluções para novos tempos, cit. p. 90.13 A esse respeito v. da própria autora a nota de rodapé n. 9, Parcerias homossexuais: aspectos jurídicos, p. 9114 Waldyr Grisard Filho. Com quem fico, com papai ou com mamãe? Direito de Família e Ciências Humanas. Cadernos de Estudos

Brasileiros. NAZARETH, Eliana Riberti (Coord.), n. 1, p. 80.15 Guarda dos filhos, cit. p. 123.

a resolução das demandas somáticas e emocionais como objetivo de permitir que os filhos obtenham amaturação física e psíquica. É um vínculo assimétricoque propulsiona e sustenta o crescimento edesenvolvimento. Permite a metabolização emocional;é responsável pelos processos de humanização eindividuação”.14

Além disso, favoravelmente à guarda comparti-lhada, temos o fato de que a criança ou adolescente nãofica privado da convivência com o grupo familiar e socialde cada um de seus genitores. Esta convivência previstaconstitucionalmente no art. 227 é absolutamentesaudável, especialmente quando se tratam de avós, tiose primos. Apenas para exemplificar, vamos nos deter naimportância da relação avoenga.

Na tenra idade temos a sensação da imortalidade,do tudo poder, beirando quase a auto-suficiência. Norelacionamento com os avós, dentre inúmerasexperiências e histórias, vamos, naturalmente,percebendo o processo de envelhecimento do serhumano; descobrimos os limites que a vida nos impõe eaprendemos a respeitá-los.

Sob o ponto de vista dos avós, podemos dizer quesuas forças são renovadas ao verem seus netos crescendo,descobrindo os mistérios da vida. Já dizia MouraBittencourt que: “A afeição dos avós pelos netos é aúltima etapa das paixões puras do homem. É a maiordelícia de viver velhice”.15

Os argumentos contrários ao exercício da guardacompartilhada também são sensíveis. São eles:apresentação de sinais de insegurança pela criança; aexploração, normalmente, da mulher quando a guardacompartilhada é usada como um meio para negociarvalores menores de pensão alimentícia; necessidade deconstante adaptação por parte dos pais e dos filhos; anecessidade dos genitores de terem um emprego comhorário flexível para o atendimento da prole.

Contudo, o que mais nos preocupa é a adoção daguarda compartilhada por pais que vivem “(...) emconflito constante, não cooperativos, sem diálogo,

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insatisfeitos, que agem em paralelo e sabotam um aooutro, contaminam o tipo de educação queproporcionam a seus filhos...”.16, 17

Nestes casos, as crianças ou adolescentes sãousados como verdadeiros mísseis lançados para detonar,ainda mais, a auto-estima do outro genitor, que não émais visto pelo ex-cônjuge como pai ou mãe de seu filhoe, por tudo isto, pessoa digna de respeito. O outro genitorpassa a ser inimigo de guerra, devendo ser derrotadocuste o que custar, ainda que seja a infância inocente oua saúde emocional de seu filho.

Eliana Riberti Nazareth aponta a tenra idadecomo outra situação em que a guarda compartilhada édesaconselhável.

16 Waldyr Grisard Filho, Guarda compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental, p. 174.17 A juíza Joecy Machado de Camargo apresenta um relato das questões mais freqüentes nas varas de família: “Mulheres que buscam

na guarda dos filhos apenas a segurança de uma pensão alimentícia, por não suportarem a idéia de terem que trabalhar paragarantir o sustento; homens que manipulam os filhos e denigrem a conduta da mulher com o único objetivo de não pagaremalimentos; mulheres que abandonam seus filhos por um novo amor – não raras vezes, quando crianças, essas mulheres tambémforam abandonadas pela figura materna, o que chamamos de recorrência; homens que abandonam os filhos e a mulher, por nãopossuírem o instinto paternal; a estruturação da personalidade é viciada pela falta de responsabilidade, solidariedade, não existindoem seu íntimo a afeição; geralmente foram criados em orfanatos, na rua, ausente a figura representativa da família; homens emulheres que, apesar de persistirem com a responsabilidade alimentícia, ignoram os filhos, sequer os visitam, passando as criançasa ser um fardo pesado em suas vidas; limitam-se a garantir apenas as despesas, contudo com freqüentes discussões acerca damajoração ou revisão da pensão. Guarda e responsabilidade, ... , p. 269.

18 p. 8319 Projeto de Lei n. 6.350/02

Do Sr. Tílden SantiagoDefine a guarda compartilhadaCongresso Nacional decreta:Art. 1° Esta Lei define a guarda compartilhada, estabelecendo os casos em que será possível.Art. 2° Acrescentem-se ao art. 1.583 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, os seguintes parágrafos:Art. 1.583(...)§ 1° O juiz, antes de homologar a conciliação, sempre colocará em evidência para as partes as vantagens da guarda compartilhada.§ 2° Guarda compartilhada é o sistema de corresponsabilização do dever familiar entre os pais, em caso de ruptura conjugal ou da convivência, emque os pais participam igualmente da guarda material dos filhos, bem como os direitos e deveres emergentes do poder familiar.Art. 3° O art. 1.584 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, passa a vigorar com a seguinte redação:Art. 1.584 Declarada a separação judicial ou o divórcio ou separação de fato sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dosfilhos, o juiz estabelecerá o sistema da guarda compartilhada, sempre que possível, ou, nos casos em que não haja possibilidade,atribuirá a guarda tendo em vista o melhor interesse da criança.§1° A Guarda poderá ser modificada a qualquer momento atendendo sempre ao melhor interesse da criança.Art. 4° Esta lei entra em vigor no dia 10 de janeiro de 2003.Projeto de Lei n. 6.315/02Do Sr. Feu RosaAltera dispositivo do novo Código CivilO Congresso Nacional decreta:Art. 1° Esta lei tem por objetivo instituir a guarda compartilhada dos filhos menores pelos pais em caso de separação judicial ou divórcio.Art. 2° O art. 1.583 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:Art. 1.583 (...)Parágrafo único. Nesses casos poderá ser homologada a guarda compartilhada dos filhos menores nos termos do acordo celebradopelos pais.Art. 3° Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.

“Até os quatro, cinco anos de idade, a criançanecessita de um contexto o mais estável possível paradelineamento satisfatório de sua personalidade.Conviver ora com a mãe ora com o pai em ambientesfísicos diferentes, requer uma capacidade de adaptaçãoe de codificação-decodificação da realidade só possívelem crianças mais velhas”.18

3 – PROJETOS DE LEI

Existem dois projetos de lei,19 ambos visandoalterar artigos no Código Civil, para a expressaconsagração da guarda compartilhada.

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O Projeto n. 6.350/02, de autoria do DeputadoFederal Tilden Santiago, acrescenta dois parágrafos aoart. 1.583. Apesar de louvável a iniciativa legislativa,algumas ponderações devem ser feitas.

Em primeiro lugar, há que se registrar as liçõespreliminares de Direito ao recomendarem que a lei nãodeve conter conceitos, definições, sendo isto tarefa dadoutrina.20

Porém, é exatamente isto que prevê o projeto aoinserir o § 2° no art. 1583: define guarda compartilhada.

O caput do art. 1.583 dispõe:

Nos casos de dissolução da sociedade ou dovínculo conjugal pela separação judicial por mútuoconsentimento ou pelo divórcio direto consensual,observar-se-á o que os cônjuges acordarem sobre aguarda dos filhos.

O Projeto, no § 1°, ao estabelecer que “O juiz,antes de homologar a conciliação, sempre colocará emevidência para as partes as vantagens da guardacompartilhada.” mostra-se um tanto quanto inconse-qüente. Ainda que a separação ou o divórcio sejampropostos como consensuais, a realidade nos mostra queos cônjuges, por vezes, cedem a esta espécie para nãoterem a causa do desenlace exposta, ou então por contada celeridade do rito, mas, na verdade, estão vivendoverdadeira guerra.

E mais, a guarda compartilhada, como já pudemosobservar, deve ser pensada pelos pais, preferencialmente,com a participação da criança ou adolescente, se possível,com o apoio de uma equipe multidisciplinar compostapor advogados, psicólogos e assistentes sociais.

Chegamos, então, à conclusão de que o § 1° se tornainviável, posto que a opção pela guarda compartilhadanão pode ser feita às pressas, em virtude das vantagens quea mesma possa apresentar. Além do mais, o projeto é silentesobre as diversas desvantagens da guarda compartilhadae, portanto, o juiz não fica obrigado a expô-las.

O art. 3° do Projeto de Lei propõe grande alteraçãoao art. 1.584 do Código Civil, pois estabelece como regraa guarda compartilhada quando não houver acordo entreos pais acerca da guarda. Ainda que exista a expressão

20 Roque Antonio Carrazza afirma: “... não é tarefa da lei – muito menos da Lei maior - expender definições. Definir é missão dadoutrina. A lei deve mandar, proibir ou facultar; nunca teorizar. Quem teoriza é o doutrinador, com o instrumental que lhe éfornecido pela Ciência (no caso, pela Ciência do Direito).Curso de direito constitucional tributário, p. 226.

21 “(...) aplicar esta modalidade de guarda, em especial através de sentença e não como fruto de um acordo exaustivamente ‘trabalhado’e elaborado pelas partes, pode se revelar uma contra-indicação para que o melhor interesse da criança seja atendido, uma vez queos tribunais não serão capazes de construir o que de fato não existe, ou seja, deve haver uma disposição básica, natural, por partedos pais para que tal modalidade de guarda venha de fato a funcionar, satisfatoriamente. Maria Antonieta Pisano Motta, Guardacompartilhada ..., p. 94.

“sempre que possível”, isto nos parece inadmissíveldesrespeito para com a criança ou adolescente.

Ora, se não existe acordo quanto à guarda, haveráacordo nas decisões diárias acerca do futuro da criançaou adolescente?

Por fim, o § 1° parece-nos obsoleto, porque já setem por certo que decisões sobre guarda e alimentos dosfilhos são rebus sic stantibus.

O Projeto, de autoria do Deputado Federal FeuRosa, é bem mais sensível e razoável. Pugna peloacréscimo de um parágrafo único no qual se permite,expressamente, a guarda compartilhada se houveracordo dos pais neste sentido.

Apesar de singelo, resolve a questão tendo em vistaque toda doutrina jurídica e psicológica brasileira eestrangeira. Somente se recomenda a guarda nos casosde absoluto acordo entre os pais.21

4 – CONSIDERAÇÕES FINAISA questão da guarda compartilhada mostra-se

bastante delicada. Os mais diversos interesses vêm à tonanesta seara e nos traz um grande desconforto, porque ocritério norteador de toda a guarda, o especial interesseda prole, parece não existir.

Infelizmente o uso inadvertido, irresponsável esem critério da guarda compartilhada por pessoasdespreparadas podem levá-la ao descrédito perante apopulação.

Com alguma freqüência, ouvimos colegas afirmaremque lançarão mão do instituto para que os pais possam,controlar de maneira velada, as ex-mulheres, perpetuandoa antiga relação conjugal, ainda que às avessas. Outros ainvocaram para verem os valores de pensão alimentíciadiminuída.

Cortar gastos supérfluos é necessário. A boa gestãodo dinheiro familiar, nos dias atuais, é de rigor, mas adiminuição da pensão alimentícia como forma deretaliação ao outro genitor é inadmissível!

A desordem psicossocial pela qual os genitorespassam, com o rompimento conjugal, é grande.

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“Pais com dificuldade de elaborar adequada-mente o distanciamento em relação aos seus filhosmuito facilmente ‘deslocam’ para o descumprimentoda pensão alimentícia sua insatisfação e seu pesar pornão estarem participando mais ativamente da vida deseus filhos”.22

A guarda compartilhada pode ser um belíssimoinstrumento de consolidação da sociedade parental,desde que exercida responsavelmente.

Ademais, há um movimento social que, desde anossa infância, tenta nos incutir a idéia de que a mulhernasce preparada para a maternidade e o homem, para apaternidade; que naturalmente o homem é apto a sermarido e a mulher, mulher.

Cada vez mais nos convencemos de que isto não éabsoluto. Precisamos aprender a ser marido, mulher,pai, mãe. Precisamos aprender a viver em família!

A família constitui o primeiro grupo social noqual o indivíduo começa a interagir.

“Este grupo caracteriza-se por suarepresentatividade e desempenho social em pequenadimensão, que se funde a outros grupos sociais,formando a sociedade humana como um todo”.23

O crescimento de uma criança num ambientedoente, em que pais e mães vivem uma disputa, muitasvezes até sem objeto (brigam porque precisam ferir umao outro por tudo o que já passaram), provavelmente,trará conseqüências graves: os pais estarão criando umadulto doente, porque as referências trazidas da infânciasão distorcidas; um adulto doente é o futuro marido,doente, o futuro pai, doente, que produzirá filhosdoentes. Resultado: uma sociedade familiarmente doente.

“Da mesma forma que a criança se relacionacom a família e a sociedade em geral integrando-seao sistema moral dominante, se este sistema social édesestruturado com visíveis desequilíbrios,permeados pela falta de afetividade no núcleofamiliar, os jovens também não conseguem elaborare assimilar normas de conduta, pois o referencial

22 Maria Antonieta Pisano Motta. Guarda compartilhada ..., cit. p. 90.23 Idem, p. 12824 Maria Luiza Clemente e Vilma Regina da Silva. A guarda de filhos como suporte para que os laços de união sejam mantidos? Direito

de Família e Ciências Humanas. Cadernos de Estudos Brasileiros. n. 3, p. 124-125.25 Waldyr Grisard Filho. Com quem fico, com papai ou com mamãe? Direito de Família e Ciências Humanas. Cadernos de Estudos

Brasileiros. NAZARETH, Eliana Riberti (Coord.), n. 1, p. 80-81.

existente apresenta-se de forma confusa. Portanto,para que se estabeleça uma boa formação de criançase adolescentes, pai e mãe devem estar conscientes deseus papéis, sendo que ambos são responsáveis pelasocialização de seus filhos”.24

Crianças não são objetos de experiênciaslaboratoriais de psicólogos, advogados, assistentessociais e juízes.

Quando um advogado sugere a guardacompartilhada, nestas condições, ou atende ao pedido deseu cliente, esquece-se que tem responsabilidade com ofuturo do ser humano e não com o emprego de modernasteorias para mostrar seus atualizados conhecimentos; temcompromisso com o desenvolvimento da sociedade e nãosomente com o alavancar de suas carreiras; por fim,compromisso com a Justiça.

Diante desta realidade absolutamente decadente,algumas questões são inevitáveis?

Como adotar o modelo da guarda compartilhadaquando diante de uma separação consensual, que nãofoi tão consensual assim?

Por mais que seja difícil, também precisamosaprender a desfazer nossos relacionamentos conjugaiscom urbanidade, senso e respeito. Um genitor não podesair desmoralizado ou humilhado pelo outro, porqueele continuará pai ou mãe.

Porém,

“(...) quando mesmo em sua dor e frustração ospais conseguem enxergar que os filhos também estãodesapontados e sofrendo, repartir a guarda podeengendrar elementos importantes para a restauração ereparação de aspectos internos conscientes einconscientes de todos os atingidos, no que concerne avivências de cuidar e de receber cuidado, e á capacidadede reorganização da vida afetiva e de estabelecervínculos gratificantes ‘apesar dos pesares’”.25

Assim, conclamamos a todos a refletir sobre nossosmais variados papéis diante da vida. Compartilhar podeser muito bom ou mau: depende de nós.

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HISTORIOGRAFIA JURÍDICA:PAUSÂNIAS E A MIRAGEM HELÊNICA

R E S U M O A B S T R A C T

Arnaldo Moraes GodoyProcurador da Fazenda Nacional de Categoria Especial.

Doutor e Mestre em Filosofia do Direito pela PUC-São Paulo.Diplomado em Direito Internacional pela Academia de Haia, Holanda.

Cuida da historiografia jurídica e da apropriação dolegado da Grécia Clássica. Indica textos de Pausâniascomo típicos da formatação de miragem helênica.Recomenda atitude crítica na leitura do passado emâmbito de história do direito.

PALAVRAS-CHAVE: história, direito, Pausânias, legadogrego, democracia.

The paper considers law history on a sense that therehas been manipulation towards Classical Greece. Itshows some texts from Pausanias as relevants in thistrend of historical approach. It recommends criticism inthe treatment that past has to have concerning lawhistory.

KEYWORDS: law history, Pausanias, greek legacy,democracy.

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Metodologia da historiografia do direitorecomenda que se suspeite do poder, do romantismo,das continuidades.1 Discurso convencional justificapráticas políticas de dominação no legado grego, atitudeque suscita a aludida desconfiança em relação ao poder.Trata-se de comportamento romântico, que percebemodelos políticos contemporâneos quais resultadosfossem de evolução, cujos primeiros passos teriam sedado em ambiente helênico. Práticas políticas e jurídicasencetam relações estruturais importantes,2 legitimadaspor visão subjetivista da história, de cunho presenteísta3:lê-se o passado com objetivos de se justificar o presente.Palavras em desuso são apropriadas, manobradas4,formatando-se passado que é menos o que realmenteteria sido e mais o resultado da imaginação histórica.Tais axiomas podem ser comprovados medianteavaliação da apropriação historiográfica do legadogrego, tema do presente artigo, que pretende identificarem textos clássicos, atribuídos a Pausânias, primeirosensaios no sentido de se conceber idílio grego,formatador de miragem helênica.

Contradições, perplexidades, ambigüidadesmarcam o legado romântico da Grécia Clássica. Análisemais objetiva é prejudicada porque somos contagiados porrecorrente idéia que nos dá conta de que a Grécia é o berçode nossa cultura. Muitas das civilizações antigas nãodeixaram marcas. Porém, restos do passado helênico sãoencontrados na península balcânica, nos grandes museus(Paris, Nova Iorque, Londres, Berlim, Roma, Atenas,Toronto), nos livros que compõem nossa tradição.

Ao contrário de egípcios, mesopotâmios,babilônicos, romanos, cujas línguas não são mais faladas(exceto o latim, em suas formas canônica e científica),gregos mantém falar de certa maneira próximo dosdialetos ático (consagrado por Tucídides e Platão) e koiné(aclamado no Novo Testamento). O que permite vínculomaior do presente com o pretérito, fazendo do passadogrego peso e obsessão para helenos contemporâneos.Quando visitados, tem-se que o visitante busca exemplares

1 José Reinaldo de Lima Lopes. O direito na história, p. 19 e ss.2 Antonio M. Hespanha. A história do direito na história social, p. 30.3 Adam Schaff. História e verdade, p. 111.4 Marc Bloch. Introdução à história, p. 171 e ss., R. G. Collingwood. The Idea of history, p. 231 e ss.5 Steven Connor. Cultura pós-moderna, introdução às teorias do contemporâneo, p. 57 e Thomas Docherty, Post Modernism, a Reader,

p. 1.6 Arnold Toynbee. A Herança dos Gregos, p. 17.7 Hebert F. Müller. The uses of the past, p. 99. Tradução livre do autor. When Shelley was writing his poem ‘Hellas,’ his ironic friend

Trelawney took him aboard a Greek caique at Leghorn, so that he might meet some Greeks in the flesh, Trelawney reports how he

found a dirty little ship infested by a gypsy crew, ‘shrieking, gesticulating, smoking, eating, and gambling like savages’.

humanos já inexistentes, amalgamados e transformadospelas idas e vindas da história, ciência que os gregos teriamcriado, quando Heródoto narrara suas andanças,embora estivesse ele mais preocupado com o tempo emque vivia.

Que Grécia buscamos? Em rigor, existem quatro:micênica, clássica, bizantina e moderna. A tradiçãocisma em hipervalorizar a Grécia clássica, decorrênciade inegáveis e incontestáveis méritos culturais. Noentanto, tem-se a interação de influências recíprocas,formando-se riquíssimo mosaico cultural. Tendênciaschocam-se, atraem-se, repelem-se, desconcertando,desafiando analistas e analisados.

Arnold Toynbee, estudioso da cultura grega,reconhecidamente o primeiro a usar o epíteto pós-moderno5, sentiu esse choque cultural e anotou:

“Tal como os judeus e os chineses, os gregoscriaram imagens de seu próprio passado que nãocorrespondem ao quadro visto por arqueólogos e porhistoriadores não emocionalmente envolvidos”.6

As Grécias homenageiam seus passados próximos,embora o período clássico seja o mais lisonjeado. É esseo tempo que encanta artistas, pensadores, homenspúblicos, historiadores. A busca dessa Grécia Clássica éfrustrante, quando não conseguimos isolá-la, decompô-la, entendê-la, relacionando-a com referências históricasmais seguras. Herbert Müller, estudando os usos dopassado, evidenciou a contradição, vivida pelo poetaShelley, que cantava uma Grécia que não mais existia:

“Quando Shelley estava escrevendo seu poema‘Hellas’, seu irônico amigo Trelawney levou-o a bordode um pequeno navio grego que estava ancorado emLeghorn. Assim Shelley poderia encontrar algunsgregos em carne e osso. Trelawney nos conta comoShelley encontrou o sujo navio infestado por umatripulação de ciganos que gritavam, gesticulavam,fumavam, comiam e jogavam como selvagens”.7

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A esse conflito não escapam nem mesmo os própriosgregos. Nikos Kazantzakis, escritor cretense nascido em1885, mistura situações de violência, opressão, injustiças,com lirismo, como a seguinte passagem, anotada emZorba, o Grego:

“São muitos os prazeres desse mundo – asmulheres, as frutas, as idéias. Mas singrar esses mares,num outono suave, murmurando o nome de cada ilha– não há, estou certo, alegria maior que possa mergulharo coração do homem no paraíso. Em nenhum lugar sepassa tão suavemente da realidade ao sonho. Asfronteiras se diluem, e os mastros do mais austero naviodeitam ramos e cachos. Poder-se-ia dizer que na Gréciao milagre é a flor inevitável da necessidade”.8

Ou Giorgios Seferis, prêmio Nobel de literaturade 1963, unido à Grécia por amor quase carnal,nostálgico, na busca de paraíso perdido, saudoso, cujolirismo é inspirado no patriotismo:

(...)

Enquanto isso, a Grécia viaja,

Viaja sempre,

E se ‘O Mar Egeu floresce de cadáveres’!

São os corpos dos que quiseram

Alcançar a nado o grande navio,

(...)

Onde quer que me leve a

Viagem,

A Grécia me fez mal (...) 9

Séferis viveu intensamente a saudade, o amor àpátria insultada por ditadura militar. Certa feitaperguntaram-lhe como ele poderia viver na Grécia comaqueles coronéis. Ele respondia que vivia na Grécia, porser seu país. Além disso, sugeria que os repórteresperguntassem aos coronéis como podiam viver naGrécia, com Seferis...10 A Grécia dos coronéis é retratada

8 Nikos Kazantzakis. Zorba, o Grego, p. 21.9 Giorgios Seferis. Poemas, p. 77.10 Peter Levi. The Hill of Kronos, p. 151.11 James Pettifer. The Greeks, The land and people since the war, págs. 99 e ss. Tradução livre do autor. Athens is a city of strangers with

as many as 40 per cent of today’s inhabitants born elsewhere.(...) But many more refugees were settled in Athens itself. The areasbetween Athens and Piraeus, hitherto open fields or factories, became a vast shanty town where over half a million people lived insqualid conditions.

12 Augusto Mancini. História da Literatura Grega, p. 236.13 Paul Harvey. Dicionário Oxford de Literatura Clássica, p. 382.14 Roland e Françoise Etienne. The Search for Ancient Greece, p. 16.

no filme “Z”, de Costa Gravas, película que expõe comrealismo as tensões do país durante a Guerra Fria.

Visitantes emitem opiniões mais ortodoxas:

“Atenas é uma cidade de estranhos. Quarentapor cento de seus habitantes vêm de fora (...). Muitosrefugiados estão em Atenas. A área entre Atenas ePireus, até recentemente local de fábricas ou camposabertos, torna-se uma imensa favela onde meiomilhão de pessoas vivem em esquálidas condições”.11

A eleição da Grécia como referencial remonta aPausânias, que viveu no século II d.C.. Viajou pelo país,descrevendo sítios, lugares, paragens, monumentos.No-lo informa Augusto Mancini, historiador da literaturagrega:

“Fonte de extraordinária importância para oconhecimento de antigüidades gregas públicas eprivadas, e sobretudo para a arqueologia, é a obra dePausânias, natural de Magnésia do Sípilo, na Lídia,que viveu no século II: Periegese da Grécia, em 10livros, que lhe valeu o título antonomástico de‘Perigeta’. É, efectivamente, uma obra que não temcomparação na antigüidade, pela copiosidade denotícias e dados quase sempre fidedignos e que porvezes não têm outra documentação senão a que nosdá Pausânias.12

Ruínas da Grécia capacitam-nos a endossar osjulgamentos de Pausânias:

“(...) sua obra é um guia escrito para turistasem que, tratando sucessivamente das várias partes daGrécia, ele enumera as coisas mais dignas de seremvistas nas mesmas, especialmente estátuas, quadros,túmulos e santuários, com suas lendas etimológicas,casos, digressões históricas, etc”.13

“Pausânias redigiu o mais importante referencialpara exploração da Hélade, utilizado até o século passado.É com Pausânias na bagagem que viajantes exploram asriquezas da Grécia, nos séculos XVIII e XIX.14

Tem-se a confirmação de Jacques Lacarriere:

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Pausânias. Um nome bem conhecido de todos osarqueólogos, helenistas, amantes e amadores da Gréciaantiga. Menos conhecido, no entanto, ou mesmototalmente ignorado por milhares de turistas queanualmente visitam a Grécia. Entretanto, sem ele, quesaberíamos nós de alguns aspectos essenciais deste país,daqueles que nenhuma escavação, nenhuma ruínapoderia restituir?”15

É também a impressão de Jean Pauillox, naintrodução à edição francesa de Pausânias:

“O pouco de informações que se possui sobreo autor não é suficiente para obscurecer as discussõessobre sua obra. Há muito admitira-se que Pausâniasreproduzira fielmente as notas acumuladas emviagens, concordando-as com aspectos históricos emitológicos, com digressões cultas, que conferem asua obra um aspecto muito mais elevado do que umsimples guia para turistas modernos”.16

Pausânias é incisivo, direto, objetivo. Porme-noriza, instiga, descreve, provocando o leitor. Observe-secomo ele começa descrevendo a Ática:

“No continente grego, junto às Cíclades e aoMar Egeu, o promontório de Sounion é um avanço doterritório Ático. Quando se distancia do promontóriovê-se, no topo, o templo de Atenas Sounias, navegando-se mais adiante vê-se Laurion, onde os ateniensestiveram outrora suas minas de prata; há em seguidauma ilha deserta, mas não muito extensa, chamadailha de Pátroclo, porque Pátroclo lá construíra umamuralha e fundara um campo fortificado”.17

Pausânias tornar-se-á referência e seus escritosinfluenciarão movimento que promove curiosidade eadmiração para com a Grécia. Com efeito:

15 Jacques Lacarriere, Promenades dans la Gréce Antique, p. 11. Tradução livre do autor. Pausanias. Un nom bien connu de tous lesarchéologues, hellénistes, amants et amateurs de la Grèce antique. Moins connu, par contre, ou même totalement ignoré des milliersde touristes qui visitent chaque année la Grèce. Pourtant, sans lui, que saurions-nous de certains aspects essentiels de ce pays, de ceuxqu’aucune fouille, aucune ruine ne peuvent à elles seules restituer?

16 Jean Pauilloux. Pausânias, Introduction, L’oeuvre, p. XIV. Tradução livre do autor. Le peu de renseignements que l’on possédait surl’auteur n’a pas médiocrement contribué à obscurcir les discussions sur l’oeuvre. Longtemps on avait admis que Pausanias rapportaitfidèlement les notes accumulées au cours de ses voyages, les agrémentant certes de développements historiques ou mythologiques,de digressions savantes qui donnent à son livre une allure tout autre que celle d’un guide à l’intention des touristes modernes.

17 Pausânias. Description de la Gréce, p. 20. Tradução livre do autor. Sur le continent grec, du côté des îles des Cyclades et de la mer Égée,le promontoire du Sounion est une avancée du territoire de l’Attique. Quand on longe le promontoire, il y a un mouillage et sur lesommet du promontoire le temple d’Athéna Sounias; en continuant à naviguer plus avant, il y a le Laurion où les Athéniens avaientautrefois des mines d’argent; il y a ensuite une île désert sans grande étendue que l’on nomme l’île de Patrocle, car Patrocle y aconstruit un rempart et établi un camp retranché.

18 Mary Beard e John Henderson. Antigüidade clássica, uma brevíssima introdução, p. 50.19 Idem, Ibidem, p. 54.

“Os gregos e romanos também foram turistas;também percorreram sítios clássicos, guias turísticosà mão, enfrentando bandidos, depenados pelosnativos, buscando o que lhes diziam ser digno de ver,famintos de atmosfera local”.18

Pausânias descrevia a Grécia, sugerindo que elafosse apreciada. Relacionava geografia, história,impressões, mitologia, opiniões, dados que coletou.Influenciou longa lista de viajantes: Byron, Schiellemann,Peter Levi, Nicholas Cage, Henry Muller, tanta gente,tão diferente. A obsessão pela Grécia é o traço comum:

“O guia da Grécia, portanto, é mais do que umsimples roteiro prático de viagem – mais do que umneutro levantamento do que havia para ser visto e decomo chegar até lá. Como qualquer autor de guiaturístico, antigo ou moderno, Pausânias optou sobreo que incluir, o que deixar de fora e como descreveros monumentos selecionados. Essas opçõesinevitavelmente acabam por constituir mais (emenos) que uma mera descrição da Grécia. Pausâniasoferece aos leitores uma determinada visão da Gréciae da identidade grega e uma maneira particular desentir a Grécia sob domínio romano. Essa identidadeenraíza-se no passado anterior à chegada dos romanos;e sentir a Grécia que ele apresenta implica negar oupelo menos obscurecer a conquista romana. Seu guia,em outras palavras, dá uma lição de como entender aGrécia. Uma lição que não dependia de ter,literalmente, estado lá ou de efetivamente seguirPausânias num giro pelas cidades e santuários daGrécia. Ler Pausânias podia ensinar um bocado sobrea Grécia, mesmo que nunca se tivesse colocado ospés lá. Ainda pode”.19

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Essa perspectiva de autoglorificação helênica jáera sentida em Tucídides, que anotara, cerca de seisséculos antes de Pausânias:

“Os atenienses, todavia, estavam entre osprimeiros a desfazer-se de suas armas e, adotando ummodo de vida mais ameno, mudar para uma existênciamais refinada”.20

Tal tradição encontra-se também em Heródoto,que se propunha a narrar “grandes e maravilhosasexplorações dos gregos”21. Recordações gregas evocaram,de há muito, certo ufanismo. Pausânias captou essatendência, desenvolvendo-a, descrevendo uma Héladeque conquistará corações e mentes de viajantes,aventureiros, curiosos, românticos, filósofos, oradores,poetas, artistas, pessoas de todos os gêneros.

O inventário de Pausânias é rigoroso. Tem-se quede sua pena e olhos nada escapara, assim:

“Próximo ao retrato de Demóstenes há umsantuário a Ares; duas estátuas de Atenas; outra deAres, obra de Alcamene; a de Atenas é obra de umPários, chamado Locros. Há também uma estátua deEnio, que temos por filho de Praxíteles”.22

20 Tucídides. A guerra do peloponeso, p. 21.21 Heródoto. História, p. 5.22 Pausânias. Description de la Gréce, p. 37. Tradução livre do autor. Près du portrait de Démosthène, il y a un sanctuaire d’Arès, oeuvre

d’Alcamène; celle d’Athéna est l’oeuvre d’un Parien, du nom de Locros. Il y a là aussi une statue d’Enyô, qu’ont faite les fils de Praxitèle.23 Idem, Ibidem, p. 57. Tradução livre do autor. Sur l’Agora d’Athènes il y a des monuments qui n’attirent pas l’attention de tout le

monde, en particulier un autel de la Pitié, à laquelle les seuls Athéniens redent un culte en Grèce, comme à la divinité qui est la plus utilepour la vie des hommes et dans les vicissitudes de l’existence.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TUCIDIDES. A guerra do Peloponeso. Trad. M. G. Kury. Brasília: UNB 1987.

É perene convite para visita a Atenas:

“Na Ágora de Atenas há monumentos quechamam a atenção de todo o mundo, principalmenteum altar à Piedade, a quem somente os ateniensescultuam na Grécia, como a divindade mais útil à vidados homens nas vicissitudes da existência”.23

Os escritos de Pausânias consubstanciam o quenossos dias matizariam como excertos de guias de viagem.E tais textos, produzidos com a finalidade de provocar,instigar, vender, afastam-se do real, externando categoriasseletivas, destinadas a convencer. Boa parte da admiraçãoque o mundo grego suscita, especialmente em âmbito deteoria política e de prática judiciária vincula-se a sutismanipulações do passado, já realizadas por Pausânias que,nesse sentido, aproxima-se de apressados historiadoresdo direito que cismam em encontrar no mundo helênicorespostas para todos os problemas de nossos tempos. Osmundos são outros, as épocas não são necessariamenteresultado de uma evolução. A democracia contem-porânea não é passo evolutivo da democracia grega. Éapenas um ensaio político de nosso tempo, prenhe detentativas frustradas e desacertos.

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O ESTADO MODERNO ATUALE SUA CRISE

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Carlos João Eduardo Sengerco-coordenador, e Professor da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito do Curso de Direito do

Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul – IMES.Doutorando pela Universidade do Museo Social Argentino, Buenos Aires, Argentina.Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Consultor Jurídico e Advogado.

O tema abordado, além de estar revestido de grande atualidade por concentrar as atenções dos estudiosos do direito,busca focalizar a instituição Estado, impondo-se reconhecer que a mesma está envolvida numa intensa crise motivadapor crescente insatisfação social ao modelo sob vigência, chegando aos limites do descrédito, que acaba por refletir naspessoas dos seus próprios dirigentes, integrantes de uma classe política, por coincidência escolhidos por esta mesmasociedade insatisfeita, através de voto via processo eletivo periódico. É certo, que praticamente em todos os países, anoção de Estado, e em particular quanto as suas atribuições ideais e as relações com a sociedade, tem sido objeto deestudos e críticas, acarretando ingentes discussões e grandes polêmicas. Assim, em não pesquisar-se as característicasdo Estado Moderno ao compasso do modelo atual vigente, considerando-se o ente Estado como um fenômeno universale necessário, a tendência é o distanciamento gradativo de suas naturais particularidades, ou seja, do seu real objetivoe da sua finalidade sob a moldura de um modelo ideal. É justamente no mecanismo desta relação angular, de um ladoaparecendo os governantes, e do outro, os governados, sobretudo no efetivo exercício do poder, onde reside toda umaceleuma, o seu “puns cruciens”, a princípio, em suas origens, uma convivência dotada mais ou menos de harmonia ede expectativas, passando no transcurso da modernidade a ser penosa e plena de acontecimentos sociais, queseguramente repercutem na falta de credibilidade da instituição a afetar este relacionamento, e com isso propiciando acrise do Estado moderno atual como organização dirigente e responsável pelos interesses sociais. O presente artigopugna na intenção de trazer a realce e ao campo da discussão acadêmica a idéia de um repensar do verdadeiro papeldo Estado hodierno como organização dirigente, ao cobro dos modelos sob vigência, numa ótica inspirada sob osauspícios da modernidade e da necessidade de estabelecer-se uma re-disciplinação normativa organizacional superiormais adequada, invocando-se aqui, por que não, o binômio de insuperável eficiência inserto em toda organização ao seuprogresso, como o custo e benefício, e como atenção à relação entre governantes e governados. Quanto custa o Estadoe os benefícios que ele nos traz, não se podendo prescindir dos problemas periféricos que forçosamente gravitam emtorno do mesmo, ao permeio das influências de uma ordem mundial impositiva e de certa forma arrogante, com sériarepercussão na convivência social ideal, afetada por toda sorte de interferências, principalmente a globalização, aeconomização, a má organização administrativa do Estado, os critérios de intervenção, os serviços burocratizados quedeixam a desejar, a corrupção nefasta, os problemas relacionados com o adensamento urbano e sua concentração, oexcesso de leis, a falta de segurança, um poder judiciário que deixa a desejar etc., representando áreas de preocupaçãoe sem solução a curto e médio prazo, fatores esses considerados de grande relevo e que detém uma séria implicaçãona ordem interna da nação, a ponto de questionar-se? o que é realmente importante a esta altura? uma reestruturaçãodo Estado que está assentado numa “mesmice” intolerável! um refazimento do pacto social! a alteração do modelotradicional e adequação a esta nova realidade! ou, escolher dentro do âmbito estrutural/organizacional, quem terá queencolher para que o outro cresça: o Estado ou a Nação? Nesta linha, é claro que seria o Estado pela multiplicidade defunções que passou a assumir, e a exemplo de nosso país, com um agigantamento antropofágico de extrema voracidadefiscal na melhor escola de um Leviatã moderno, portanto senhor exclusivo e todo poderoso das decisões, sem areposição equivalente para toda a sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: estado moderno atual, direito público, desigualdade social, democracia, nova república, crisedo estado.

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A B S T R A C T

The boarded theme, besides being covered of great actuality for concentrating the attentions of the studious of theright, it searches to focalize the State institution, imposing itself to recognize that the same is involved in an intensecrisis motivated by increasing social dissatisfaction to the model under validity, arriving to the limits of the discredit,which finishes for reflecting in people of their leading, integrant * of a political class, for coincidence chosen by thissame unsatisfied society, through vote by periodic elective process. It is practically certain, that in all the countries,the State notion, and in particular as to its ideal attributions and the relations with the society, it has been object ofstudies and criticises, carrying enormous discussions and great polemics. This way, in do not search the characteristicsof the Modern State to the compasses of the valid current model, considering itself the State entity as an universal andnecessary phenomenon, the tendency is the gradual distance of its natural particularities, in other words, of its realgoal and of its purpose under the frame of an ideal model. It is exactly in the mechanism of this angular relation, of aside the rulers appearing, and of the another, the governed, above all in the effective exercise of the power, where atumult inhabits all, its “puns cruciens”, the principle, in its sources, an endowed company more or less of harmony andexpectations, passing in the course of the modernity to be painful and full of social happenings, which surely reboundin the credibility lack of the institution to affect this relationship, and with that propitiating the crisis of the currentModern State as leading and responsible organization for the social interests. The present article has the intention ofbringing for highlight and to the field of the academic discussion the idea of one rethink of the true paper of the currentState as leading organization, to the charge from the models under validity, in an optics inspired under the auspices ofthe modernity and the need to establish a more adequate normative organizational superior rediscipline, invoking here,why not, the unberable efficiency binomial inserted in every organization to its progress, like the cost and benefit, andas attention to the relation between rulers and governed. How much cost the State and the benefits that it bring us, ifnot being able to do without the peripheral problems that unavoidably gravitate around of the same, to the permeate ofthe influences of a world and imposing order, in a way arrogant, with serious repercussion in the ideal social company,affected by all luck interferences, mostly for the globalization, the “economization”, the bad administrative organizationof the State, the intervention rules, the bureaucratized services that are sadly wanting in ever way, the disastrouscorruption, the problems related with the urban densification and its concentration, the laws excess, the safety fault,its judiciary that is sadly wanting in ever way, and etc., representing preoccupation areas and without solution theshort and average term, factors these considered of great importance and it detains a serious implication in theinternal order of the nation, ready to put in question: what really is important at this time? a restructuring of the Stateis seated in a same intolerable form! a remaking of the social pact! the alteration of the traditional model and adaptationto this new reality! or, choose inside the structural/organizational scope, who will have to shrink so that the othergrows: the State or the Nation? In this line, of course, it would be the State by the functions multiplicity that itproceeded taking over, and like our country, with an anthropophagous enlargement of extreme fiscal voracity in thebest school of a modern “Leviatã”, therefore exclusive and all powerful Mr. of the decisions, without the equivalentreplacement for all the society.

KEYWORDS: current modern state, public law, social inaquality, democracy, new republic, crisis of the state.

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1 – INTRODUÇÃODiante da proposição alvitrada, de todo opor-

tuno iniciar-se com a idéia do talentoso jurista brasileiroe ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, ArnoldWald:

“(...) Ao mesmo tempo, fala-se no declínio doEstado, na necessidade de um novo pacto social, no quala democracia se faria sentir não apenas na seleção dosgovernantes, mas, de modo mais intenso, na formaçãoda vontade nacional e no planejamento dialogado daeconomia, devolvendo o Poder Público à sociedade,numerosas atividades das quais se incumbiu de modoinadequado e reduzido a área de sua regulamentação,que se tornou excessiva. Tão perniciosa quanto a inflaçãomonetária é a inflação legislativa que também, muitasvezes, enseja o declínio das nações”. (Wald, Desafios doséculo XXI, artigo: “O papel do Estado no limiar do séculoXXI”, 1997, Cap. 7, p. 57).

Por sua vez, sugestiva é a lição do não menosnotável jurista Norberto Bobbio em dizer:

“(...) O Estado, ou, qualquer outra sociedadeorganizada onde existe uma esfera pública, nãoimporta se total ou parcial, é caracterizado por relaçõesde subordinação entre governantes e governados, oumelhor, entre detentores do poder de comando edestinatários do dever de obediência, que são relaçõesentre desiguais; a sociedade natural como descritapelos jusnaturalistas, ou a sociedade de mercado naidealização dos economistas clássicos, na medida emque são elevadas a modelo de uma esfera privadacontraposta à esfera pública, são caracterizadas porrelações entre iguais ou de coordenação...”. (Bobbio,Estado, governo e sociedade, 1992, p. 15-16)

Ao seu estudo, há que se ressaltar que o ponto departida não é novo, e nem particular o tema e a umaúnica corrente de pensamento a seu respeito, daí ainvestigação de princípios inovadores para aperfeiçoaruma estrutura tida como antiga e envolvida por sériasdeficiências, principalmente dentro dessa realidademoderna ao cobro de nossos dias, pois, diplomatas,historiadores, políticos e filósofos raramente identificama mudança tecnológica como uma força decisiva nosurgimento ou queda das nações-Estados, optandoexplicar o curso da história por meio de esforços dehomens e mulheres como seus antecessores responsáveis.

Ao propósito colimado, no sentido de se reestru-turar a organização Estado, segue-se ainda o pensar deArrnold Wald, o qual faz menção aos estudiosos DavidOsborne e Ted Gaebler (estes, em seu “ReinventingGovernment) ou seja, de

“(...) modificar o seu relacionamento com ocidadão, privatizar a sua gestão, retirar-lhe a arrogânciae a onipotência, que não se coadunam com ademocracia, submetê-lo à estrita obediência dasnormas jurídicas, também a sociedade deve criar osseus órgãos de colaboração, controle e intervençãona vida estatal, para reassumir a posição, que sempredeveria ter tido, de titular da verdadeira soberania,que pertence a Nação. Se algo já se fez para restringira função do Estado, mediante um esforço no campodas privatizações e de desregulamentação da atividadeeconômica, ao contrário, muito poucas têm sido asiniciativas da sociedade para criar mecanismos eespecialmente órgãos de mediação com o PoderPúblico, para colaborar com a administração, emborao funcionamento das câmaras setoriais, o diálogocrescente entre as empresas, sindicatos e órgãosgovernamentais, a concepção do ombudsman oucorregedor do povo, a criação de entidades reguladorasde composição mista e outras idéias indiquem umatendência neste sentido que precisa, todavia, ser con-cretizada, fortalecida, sedimentada e instituciona-lizada”. (Wald, opúsculo citado, 1997, p. 57)

Radicando-se no continente sul-americano, vê-seque vários dos presidentes eleitos e principalmente noBrasil, estão a admitir que o modelo de Estado estácrítico e praticamente quase todos mergulhados emdívidas de montante elevado para com o mundofinanceiro internacional, o que acaba de certa formapor interferir em suas soberanias, ditando-lhes normas,tendo-se assim, como de todo inquestionável, a premên-cia de uma reestruturação, no intento de se buscar umaeficaz remodelação, para tentar transformar o Estadonuma organização voltada para a realização do bem-estar comum e pelo menos próxima como agente idealde felicidade ao povo, e para que venha atender osverdadeiros anseios e reclamos da sociedade/nação.

Daí a razão dos questionamentos? O que é real-mente importante a esta altura? A reestruturação doEstado! O refazimento do pacto social! A alteração domodelo tradicional e adequá-lo a esta nova realidade!Ou, escolher dentro do âmbito estrutural/organiza-cional, quem terá que encolher para que o outro cresça:o Estado ou a Nação? Jamais se olvidando que o Estadoé produto e criação da Nação.

2 – BREVE ESCORÇO HISTÓRICOA um tênue retrospecto justificador indissociável,

não podemos relegar dos aspectos históricos que

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preponderam e envolvem uma visão da idéia da organi-zação Estado ao longo dos tempos: “(...) É fora dediscussão que a palavra ‘Estado’ se impôs através dadifusão e pelo prestígio do Príncipe de Maquiavel. A obracomeça, como se sabe, com estas palavras: ‘Todos osestados, todos os domínios que imperaram e imperamsobre os homens, foram e são ou repúblicas ouprincipados’ (1513, ed. 1977, p. 5)... Minuciosas e amplaspesquisas sobre o uso do ‘Estado’ na linguagem doQuatrocentos e do Quinhentos mostram que a passagemdo significado corrente do termo ‘status’ de ‘situação’ parao ‘Estado’ no sentido moderno da palavra, já ocorrera,através do isolamento do primeiro termo da expressãoclássica ‘status rei publicae’. O próprio Maquiavel nãopoderia ter escrito aquela frase no início da obra se a pala-vra em questão já não fosse de uso corrente...” (Bobbio,opúsculo citado, p. 65), e que dão rumo a trajetória, ondeGeorge Jellinek a sua época e nos seus estudos já preco-nizara uma classificação dos tipos de Estado ao longo dostempos, como: Estado Oriental, Estado Grego, EstadoRomano, Período Medieval e Estado Moderno (Jellinek,Teoria General Del Estado, 1978), cada qual com suasmetamorfoses à luz da premência e características.

Formado o Estado Moderno, há que se distinguirtrês etapas distintas até os dias atuais, estando agora, noque podemos considerar numa terceira fase:

a) na primeira fase, o Estado moderno viveu, acima detudo, uma preocupação com a unificação nacional, e,conseqüentemente, com a unificação do Direito,superando as radicações jurídicas, além do que, o direitoprivado dos contratos e das obrigações, não havia sedefinido com muita clareza em relação ao Estado;

b) uma segunda fase que é do Estado liberal, ocorridaao longo do século XIX e início do século XX, aorganização do Estado se compraz na delimitaçãodo poder político (como um primeiro segmento) eos direitos e garantias individuais como uma segundaetapa. No século XX, após a primeira grande guerramundial, é que surge o tratamento dado nasConstituições e que se enquadram dentro de uma,

c) terceira fase (terceira etapa), a saber, com a inclusãoda ordem econômica e social, o que veio decaracterizar no plano jurídico, especificamente nopatamar constitucional, o chamado Estado social,que é o fato da inserção da ordem econômica e socialna organização política das sociedades, visto que, éjustamente na ordem econômica e social quetencionou-se delimitar o poder econômico.

3 – O ESTADO MODERNO ATUALPortanto, na primeira fase desse constitucio-

nalismo e do chamado Estado liberal, havia umapreocupação, ou seja, a de delimitar o poder político,com o mais amplo espaço para a atuação dos indivíduos,atinente a autonomia privada, a liberdade contratual,a exaltação da livre ação das pessoas, mas a preocupaçãomaior era de demarcar os limites do Estado.

Como curiosidade, o direito público efetivamentesurgiu nessa época, não para regular o interesse público,e, sim, o interesse individual.

Por sua vez, o Estado Social cresceu no sentido dedar limites ao poder econômico e para regular o contratoe, principalmente a propriedade, cujo objetivo era adisciplinação da atividade econômica, restando claro einduvidoso que a atividade negocial é fator integranteda atividade econômica na circulação de bens e riquezas.

As Constituições passaram a estabelecer asgarantias do direito de propriedade individual,observadas as limitações que nela estavam estabelecidase que a lei passou a regular, do mesmo modo que ocontrato, originando assim nas Constituições umapreocupação em assegurar a livre iniciativa, consideradaa mola propulsora das relações negociais.

É certo, que na época atual tais princípiosencontram-se consagrados e não conseguem dar respostasadequadas, pois o atual estágio de complexidade dasrelações de negócios, máxime ante o alto grau deinterferência tecnológica, ponto de preocupação, nos levaa repensar e erigir outros princípios.

Dizem que o neoliberalismo voltou a defender a teseda mão invisível do mercado, e que seria a volta ao Estadomínimo, e o que temos nos dias atuais é uma autênticatransformação do Estado Social, sobretudo da década de1990 em diante, passando de um Estado empreendedor,para um Estado eminentemente regulador.

É nesta situação onde o Direito aparece comregras que são típicas desta virada e início de século,como exemplos: o controle do mercado, a legislação delivre concorrência, a tutela do consumidor, a afirmaçãoe busca da qualidade dos produtos e serviços etc.

4 – O MODELO BRASILEIROAo pesquisar-se o Estado brasileiro, impõe-se

destacar dois momentos absolutamente distintosatribuídos a sua evolução:

a) um primeiro, da colônia ao final do Império;

b) e, um segundo, após a instalação da República aos

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nossos dias, anotando-se que nesta fase é que tivemosa influência liberal bem acentuada, pois o perfil doEstado brasileiro à luz dos historiadores se resumepraticamente nas ações das últimas quatro décadas.

Consoante cediço, impõe-se aduzir que a partirda revolução militarista de 1964, a cúpula conotadacomo burocrática-militar incrementou as formas deintervenção do Estado no processo de desenvolvimentonacional, através da ocupação dos espaços deixados emaberto pela iniciativa privada, ou por incompetência,desinteresse ou obrigações desta junto às estruturasestatais, e o Estado, para dar respostas à sociedade, criouum setor produtivo que chegou a operar com certaeficiência dentro de uma lógica de mercado, estandosujeito inclusive aos riscos inerentes de uma atuaçãosemelhante ao capital privado (Pereira, A crise doEstado: ensaios sobre a economia brasileira, 1992).

Como se viu, a resultante desta situação foi umaexpansão não coordenada da atividade pública que levouo Estado a criar mais órgãos e tendo como objetivo umacentralização político/administrativa, que tinha comojustificação, tornar mais racional e mais conveniente aprópria atuação, sobretudo quanto ao seu controle.

Com isso, verifica-se preexistir um fenômenoinverso, isto é, a super-posição de esferas, não refletindoa racionalidade planejada, e a fragmentação do setorpúblico também contribuiu para a proliferação dejurisdições particularizadas que passaram a centralizaro processo de tomada de decisões em níveis cada vezmais especializados, voltando-se assim para

“(...) uma tendência de longa tradição: aarticulação de alianças entre segmentos do aparelhoburocrático e suas clientelas, por vezes gerando forosprivilegiados entre os setores público e privado e umestilo personalista de gestão” (Martins, Estadocapitalista e burocracia no Brasil pós-64, 1985).

O aumento de demandas e a impossibilidade doEstado em dar respostas satisfatórias aos diversossetores, fizeram com que diminuísse o apoio e acredibilidade que esses grupos mantinham com amáquina pública; isto apesar da magnanimidade doEstado na distribuição de privilégios, benefícios e,inclusive, assumir dívidas externas contraídas pelamesma iniciativa privada.

Segundo ainda Martins:

“(...) Ao ver que o governo o havia feito saltarno vazio, pois os segmentos sob controle do capitalprivado à sua montante já haviam completado suaexpansão e o setor estatal dava sinais de esgotamento

de sua capacidade de investimento, uniu-se à oposição.Passou a demandar o pronto retorno à democracia eorquestrou ampla campanha contra o estatismo, doqual foi um dos principais beneficiários”. (Martins,opúsculo citado, 1984)

Na referida direção, torna-se importante registrara menção de Wanderley G. dos Santos em sua obra, aodemonstrar que o contingente funcional não é propor-cionalmente superior àquele verificado em outrospaíses:

“(...) que a elefantíase estatal manifesta-se noelevado contingente de empregados públicos de todotipo: estatutários, celetistas, das administrações diretae indireta...”. (Santos, Mitologias institucionaisbrasileiras: do Leivatã paralítico ao Estado de natureza,v. 17, n. 7, 1993)

Destarte, a presença do Estado brasileiro, comgrande concentração de poderes, ao mesmo tempo queinsuficiente e inoperante, tinha como resultante ainviabilização das tentativas de reformas pararacionalizar principalmente a máquina pública, comofora alertado por E. Diniz e R. Boschi:

“(...) o êxito da reforma esbarra na contradiçãoentre o diagnóstico da crise do Estado,consensualmente definida em termos de prevalênciade práticas clientelistas que comprometem a eficáciado governo e sua capacidade de implementar medidascoerentes com aquele diagnóstico”. (Diniz, Boschi,Lessa, Modernização e consolidação democrática noBrasil: dilemas da nova república, 1989)

É justamente na exposição desta apreensãogenérica coligida quanto à atuação da máquina públicaaos dias atuais, que se permite falar da crise do Estado.

Em resumo, é a partir dos entendimentos geraisrelativos às funções e posições que o Estado deveadequar-se a sua missão, momento em que sãoconstruídas as idéias e perspectivas de superação da crisetendo como enfoque o Estado brasileiro, e, por fim, dasdificuldades do próprio país, visto que a crise nacional,é a crise do Estado, relativamente a sua política, aos seusserviços, seus representantes, e naqueles que de algumaforma estão relacionados com ele.

No dizer de Aspásia Camargo a mostrar este perfil,ao realizar a analise do período de transição da novarepública:

“(...) se criaram inúmeros pontos deintersecção e justaposição entre crises diversas queeclodem nos planos econômico, social e institucional

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e que revertem para um núcleo central básico: oEstado, palco de manifestação e de irradiação de todasas crises”. (Camargo, Continuidade e mudança no Brasilna nova república, 1989)

A exemplo do Brasil, é de se admitir que a crise éum espectro que aflige a maioria das nações do mundo.

5 – CONSIDERAÇÕES SOBRE ACRISE DO ESTADO MODERNOATUAL

A crise do Estado atual liga-se claramente à temáticada ingovernabilidade, motivada pelas intolerâncias,incompreensões e pleitos, uma tônica preocupante e daqual muito se fala ultimamente, aliás, muito bem retratadapela genialidade de Norberto Bobbio:

“(...) Por crise do Estado entende-se, da partede escritores conservadores, crise do Estadodemocrático, que não consegue mais fazer frente àsdemandas provenientes da sociedade e por ele mesmoprovocadas; da parte de escritores socialistas oumarxistas, crise do Estado capitalista, que nãoconsegue mais dominar o poder dos grandes gruposde interesse em concorrência entre si. Crise do Estadoquer portanto dizer, de uma parte e de outra, crise deum determinado tipo de Estado, não fim do Estado.Prova disso é que retornou à ordem do dia o tema deum novo ‘contrato social’, através do qual dever-se-iaprecisamente dar vida a uma nova força de Estado,diverso tanto do Estado capitalista ou do Estado deinjustiça, quanto do Estado socialista ou Estado denão-liberdade ...”. (Bobbio, opúsculo citado, p. 126)

Segue-se no entender de Pierre Rosanvallon:

“(...) Na realidade, o chamado contrato socialprecisa ser revisto, porque o que ocorreu foi o fato detornar-se o Estado dono da sociedade, em vez deconstituir, como deveria, o conjunto de serviçospúblicos à disposição da Nação, ou seja, do cidadão ...”(Rosanvallon, La crise de l’Etat providence, 1981) [esegundo ainda Guy Sorman quase na mesma direção:]“(...) O grande desafio atual consiste em reestruturaro Estado, simultaneamente, fortalecer e dinamizar ofuncionamento dos serviços públicos que deve prestar,terceirizando-os sempre que possível e oportuno.Essa reformulação do Estado se impõe a fim de evitaro colapso que até pode significar o fim de umacivilização e a volta dos bárbaros com a qual algunscientistas políticos nos ameaçam ...”. (Sorman, Emattendant lês barbares, 1992)

A par da vontade política, bem de ver, que odesenvolvimento científico e tecnológico atual permiteque se viabilize de maneira profunda e completa umare-democratização e re-ordenação do Estado, levando-se em conta, que a ordem atual apresenta-se com umaséria resistência a esta reforma.

O controle do Estado sobre o cidadão ou destesobre o Estado, configuram os limites extremos daquestão do exercício da democracia, ou seja, dademocracia revolucionária do Estado Moderno, ou deuma democracia manipulada e controladora, onde ocidadão praticamente se transforma num objeto de umaplanificada e massiva propaganda, que autoritariamenteé projetada sobre os seus hábitos e a sua cultura.

Sobre o assunto, invoca-se novamente opensamento de Arnold Wald no sentido de que:

“(...) Há uma certa tendência para ‘nacionalizar’o Estado, ou seja, submetê-lo diretamente à sociedade.Tal fato decorre tanto do caráter muitas vezes casuísticoe, algumas vezes, incoerente de regulamentação doEstado, como de ter o mesmo engordado demais,perdendo a flexibilidade e rapidez que o mundocontemporâneo e a chamada sociedade pós-industrialexigem nas decisões governamentais. Por outro lado,mantém-se um aparelho obsoleto tanto nas repartiçõespúblicas quanto em algumas empresas públicas esociedades de economia mista, dominadas por umcorporativismo condenável e, na maioria dos casos,destituídas do espírito empresarial, que justificou a suaprópria criação como instrumento da descentralizaçãoadministrativa ...”. (Wald, opúsculo citado, p. 58)

6 – CONCLUSÃOAs idéias apontadas e postas como alinhavos

conclusivos, diante de todo o inferido, na ótica de umsentido retrospectivo inseparável, o Estado Moderno éaquela organização cujos primeiros exemplos históricossurgiram nas últimas décadas do século XVIII como jávisto, em grande parte por influência das idéias quepresidiram a Revolução Francesa, mas, principalmente,no rumo consagrado pela constituição e pela práticapolítica dos Estados Unidos da América do Norte.

Ao longo da primeira metade do século XIXpredominou a compreensão restritiva dos fins do Estado,que por isso recebeu uma qualificação generalizadasacramentada pela doutrina, como um Estado meramentejurídico, isto é, encarregado, tão somente de legislar, degarantir a atuação da lei, de lançar e arrecadar tributospara a manutenção dos órgãos indispensáveis a essas

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finalidades, ou seja: dar suporte aos seus exércitos a fimde manter o respeito a sua soberania; de disciplinar adistribuição da população em seu território, sem qualquercompromisso, tudo sob o escólio da promoção do bem-estar comum e da felicidade.

Todavia, no seu estágio atual, torna-se necessárioter em conta as perspectivas para o Estado nacional dospaíses emergentes do terceiro mundo, diante das novasrealidades, necessidades e esperanças, isto é, no sentidode que se deve dar combate à desigualdade econômicaentre as pessoas, atentar-se para os excluídos sociais, re-fundar-se o humanismo, re-encontrar-se os alicerces doOcidente, com o retorno aos Estados democráticosautênticos, e ao velho sentido ético que as leis expressamna regulação do convívio humano, bem ao rumo dopensar do deputado Italiano Pietro Folena, no PrimeiroCongresso Social de Porto Alegre, realizado na cidadede Porto Alegre, no Rio Grande do Sul: “(...) oneoliberalismo expulsou do tempo os sentimentos éticosque eram tradicionais no convívio humano... acorrupção é inerente ao sistema...” (Folena, Anais do ICongresso Social de Porto Alegre, 2002); acrescentando-se ainda a expressiva afirmação do professor norte-americano Noam Chomsky neste mesmo Congresso,bastante contundente, de que: “(...) as classes dirigentesdo planeta impuseram a humanidade uma cultura dafutilidade...”. (Chomsky, Anais, 2002)

Nesta mesma cesta de idéias são as palavras domestre Arnold Wald, bem na linha dos questionamentossuscitados:

“(...) Cabe pois ao Estado, tendo em vista ocontexto nacional, ser um fiscal e catalisador eficiente donível adequado da globalização que interessa ao país,abrindo sua economia, num mundo que não mais admiteque as nações se transformem em verdadeiras autarquias,mas protegendo adequadamente os valores humanos,econômicos, intelectuais do país e dos cidadãos...”. (Wald,opúsculo citado, p. 64) [e nas conclusões bemdirecionadas por Benjamin R. Barber numa detidaanálise de uma entrevista por demais interessante do ex-presidente Bill Clinton dos Estados Unidos da Américado Norte:] “(...) é que a democracia e a unidade nacionalpodem ser ameaçadas pela globalização, cabendo aoPoder Público garantir a manutenção do Estado deDireito e dos valores humanos fundamentais. A defesada sociedade civil e do regime democrático dependem,pois, do combate que o Estado deve manter parapreservar tanto os direitos individuais quanto astradições e os valores da nacionalidade, que garantem asolidariedade, a coesão social e a segurança jurídica,evitando que a hegemonia de qualquer País ou de

qualquer grupo possa tolher o desenvolvimento livre eracional dos demais e que qualquer ideologia políticaou formação religiosa consiga abalar o sistemademocrático e o desenvolvimento da sociedade civil doqual o Estado é o representante, mas não o titular. Trata-se, pois: a) de substituir o capitalismo selvagem, comuma visão limitada ao curto prazo, por um social-capitalismo humanista baseado no espírito de parceriae confiança; b) reformular o Estado, dando-lheflexibilidade, caracterizando-o como entidadedescentralizada na tomada de decisões e tornando-omodesto nas suas ambições, mas eficiente nocumprimento de suas metas, como catalisador dodesenvolvimento econômico e social, provedor dajustiça, segurança, da educação e da saúde e garantidordos direitos individuais e coletivos; c) dar à democraciaum sentido mais participativo, mobilizando a sociedadecivil e as entidades intermediárias, privadas e públicas,aproximando os representantes do povo dos seuseleitores, por um sistema eleitoral mais adequado, oaprimoramento dos partidos e uma representaçãopolítica mais eqüitativa, conciliando-se liberdade eresponsabilidade. Nessa reformulação do Estado,criando novos equilíbrios e aprimorando a democracia,sob todas as suas formas, não só na eleição dosgovernantes mas também na gestão da sociedade, épossível que, finalmente, a chamada ‘terceira onda’permite que, na palavra de poeta, se encontremfinalmente a história e a esperança ...”. (Barber, Dijhadversus McWorld. In: Desafios do século XXI, p. 64)

Sobre o mesmo tema, e quase que na mesma formade pensar, importante é o entendimento de extremaatualidade do consagrado jurista e professor Ives Gandrada Silva Martins:

“(...) Com o Estado falido, o direito obsoleto,os políticos sem vocação de estadista e os burocratassem vontade de servir, o mundo inteiro depende hojemais da sociedade do que dos governos, mas esta écada vez mais inibida pelos governantes. Por esta razão,nem mesmo a formação de espaços pluriregionaispara propiciar o desenvolvimento das nações, como aUnião Européia, Mercosul, Nafta, etc., se apresentacomo solução, pois não sendo solucionados osproblemas de seus participantes, as relaçõescomunitárias terminam sendo maculadas. Nomáximo, protegem os próprios mercados – ou tentamproteger – contra os grupos externos, no mais estando,hoje, em plena linha de fogo a validade das tentativas.E, no Brasil, não é diferente. Todas as reformaspretendidas pelo governo mais fortalecem o Estadoque a sociedade. A reforma previdenciária, nos termos

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em que foi proposta pelo governo, tira direito doscidadãos, fortalece o direito dos políticos e servidorese aumenta a carga tributária apenas eleva a cargaimpositiva ... A do Judiciário não elimina as instâncias,nem veículos processuais e a administrativa, quepoderia diminuir a máquina do Estado, é umaincógnita, à falta dos textos complementares com aviabilização. Em outras palavras, o Brasil sofre omesmo raquitismo mental das tendências mundiais,no máximo outorgando-se ao governo atual aobtenção de uma estabilidade monetária, que hámuito o País não conhece. Vejo, portanto, com maispessimismo que otimismo a virada do século XX parao XXI, pois os grande desafios propostos não foramsolucionados ainda e, o que é pior, não há, sequer,perspectivas de que possam ser solucionados peloshomens que hoje dirigem os destinos do mundo ...”.(Martins, Desafios do século XXI, p. 20-21)

Ao mesmo propósito face ao rumo das conclusões,extrai-se de sugestivo editorial veiculado pelo ‘Jornal daTarde’, de São Paulo, uma interessante nota de chamada:

Governar é escolher quem terá que encolher paraque o outro cresça: o Estado ou a Nação, tendo como forçade argumentação a situação brasileira, complementandode forma eficiente o articulista em seu editorial:

“(...) Agora o Brasil tem de fazer uma escolhacrucial para o futuro: se quer trilhar o caminho dodesenvolvimento que levou à riqueza os EUA, oseuropeus ocidentais, o Japão e os tigres asiáticos, nosquais o crescimento foi alavancado pela iniciativaprivada; ou se continuará patinando no subdesen-volvimento para sustentar um Estado ineficiente, quemais suga que fornece opções de vida melhor àsociedade ...”. (Jornal da Tarde, Editoriais, “O pesoinsuportável dos impostos”, Caderno A 3, edição de20/06/2002).

Por derradeiro, aos problemas que hoje sãocomuns na maioria das nações, salientando-se aspróprias situações atuais do Brasil e da vizinha Argentinacomo exemplos, ao grau de suas preocupações, suascrises, ante os posicionamentos assinalados, os temposnão comportam mais providências paliativas, e outraconclusão não se chega, a não ser a da alternativa maisviável, ou seja, a de repensar-se o modelo do Estado ideal,para que realmente se submeta aos verdadeiros interessese anseios da sociedade, cabendo neste momento e que émundialmente histórico, no limiar deste novo século,principalmente nas aflições dos paises emergentes,

recomendar-se a diluição do excesso de atribuições queforam auto assumidas pelo Estado, ente consideradoantropofágico e de impressionante voracidade fiscal eque: os governos vêm e vão e o crescimento antropofágicodo Estado brasileiro não cessa (fonte: articulista BenedictoFerri Barros, Jornal da Tarde de São Paulo, Caderno A2edição de 30/05/2003), no sentido de equanimizá-las aforma mais racional, objetiva e justa, enxugar e melhoroperacionalizar a máquina burocrática, dar maioreficiência a sua ação, que atenda os interesses superioresda sociedade, voltados portanto, para os aspectos:institucionais, econômicos, financeiros e sociais, e,principalmente, na elaboração de um consentâneoquadro jurídico para essas reformas, que são extremanteimprescindíveis dentro da realidade.

A exemplo do que ocorre na França com aassunção das esquerdas no poder, já nos permite umaantevisão dos caminhos a serem trilhados por nosso paísatravés de seus governantes, justamente com as atitudese contingenciamentos na instalação do recente governo,observando-se desde os seus passos iniciais, umatendência de cunho eminentemente social, o qualencontra-se tangenciado por uma estrutura governa-mental federal centralizadora, numa sinalização óbviade que será marcantemente impositivo, em evidenteinadmissão de contraposição, deixando bem claro, queo repensar do Estado e do governo já estão previamentedelineados, na deliberada idéia bem definida de quemdeve encolher, ou seja, a nação. Tudo favorável ainstaurar-se velozmente um incomodo e prováveldiscricionarismo modernizado de esquerda, onde operigo situa-se justamente na prepotência e navoracidade fiscal avassaladora do Estado, carreando-seao fecho deste escrito, uma comparação dentro de umparalelismo de conjunturas vigentes nada animadoras,e no dizer do historiador Francês Druon, em seu livro“A França às ordens de um cadáver”, onde aponta, que62% do ganho individual médio dos franceses érecolhido pelo Estado francês sob as mais variadasformas de arrecadação, e cotejando-se com a situaçãode nosso país cujo percentual também se avoluma, estejá encontra-se no patamar dos aproximadamente 41%do PIB que produzimos, daí decorrendo a razão dosquestionamentos formulados para uma reflexão de todaa comunidade acadêmica interessada a soldo depreocupações, tudo a ensejar um desconfortáveldescompasso ao choque de estímulos que se deve dar ainiciativa privada como setor produtivo da sociedade.

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POLUIÇÃO: CONSIDERAÇÕESAMBIENTAIS E JURÍDICAS

Antônio Silveira Ribeiros dos SantosJuiz de Direito em São Paulo (titular da 5ª Vara Cível do Fórum Regional do Jabaquara). Ingressou namagistratura em 06.01.84, tendo judicado ainda nas Comarcas de: Registro, Jacupiranga, Cananéia,

Juquiá, Iguape, Eldorado Paulista, Miracatu, Piedade e Diadema.Criador do Programa Ambiental: A Última Arca de Noé (www.aultimaarcadenoe.com) de educaçãoambiental e estudos da história natural e direito ambiental. Criação de Projetos e Programas como:

Programa de Levantamento e Conservação da Biodiversidade do Bairro Sausalito (SP); Levantamento daavifauna da Cantareira (SP); Levantamento da avifauna da Estação Experimental de Itapetininga (SP) etc.

Participação em entidades: membro da Comissão jurídica do Club Athlético Paulistano (São Paulo);membro do CEO-Centro de Estudos Ornitológicos-SP; ex-membro Consultor da Comissão do Meio

Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil-Secção São Paulo; ex-secretário do Centro de EstudosJosé F. Marques, da Escola da Magistratura de São Paulo.

R E S U M O A B S T R A C T

Renata de Freitas MartinsAdvogada do escritório Chagury e Martins Consultoria Jurídica em São Paulo.

Colaboradora do Programa Ambiental: A Última Arca de Noé (www.aultimaarcadenoe.com).Diretora membro do Conselho de Ética da AMJS: Associação dos Moradores do Jardim da Saúde

(www.amjs.org.br).Idealizadora dos Projetos Animal Legal (www.direitosdosanimais.hpg.com.br) e Cidadania em Foco

(www.ndcteste.hpg.com.br).

Trata-se de artigo abordando os principais aspectosatinentes à poluição, trazendo sua conceituação,classificação, tipificação jurídica dos crimes ambientaisrelacionados e dados atuais sobre o assunto, tendo-seem vista a crescente degradação ambiental e oconseqüente prejuízo causado ao meio ambiente e àqualidade de vida global, e apresentando comoconclusão a importância do conhecimento dos aspectosjurídicos sobre o tema, bem como da divulgação dedados científicos sobre poluentes, para que sejaalcançado o tão galgado ambiente sadio e equilibrado.

PALAVRAS-CHAVE: poluição, crimes ambientais,degradação ambiental, legislação ambiental, programaseducacionais ambientais.

This article approaches the mainly aspects related topollution, bringing its conception, classification, juridicaltypes of related environmental crimes and actual dataabout the subject, due to the increasingly environmentaldegradation and the consequent prejudice caused tothe environment and to quality of global life, and showingas conclusions the importance of knowledge of thejuridical aspects about the subject, as scientific datadivulgation about polluters, for reaching that so desirablehealthy and equilibrated environment.

KEYWORDS: pollution, environment crimes,environment degradation, environment legislation,environment educational program.

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1 – INTRODUÇÃOA degradação ambiental vem tomando vultos

cada vez mais grandiosos em nosso planeta, e tem comoum de seus principais elementos causadores a poluição.

Para que possamos nos aprofundar na questão dapoluição, faz-se mister que, a priori, conceituemos aexpressão, o que fazemos a seguir.

Poluição é definida pela Lei n. 6.938/81, art. 3°, III,in verbis, como “a degradação da qualidade ambientalresultante de atividade que direta ou indiretamente:prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar dapopulação; criem condições adversas às atividades sociaise econômicas; afetem desfavoravelmente a biota; afetemas condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;lancem matérias ou energia em desacordo com os padrõesambientais estabelecidos”.

Meirelles1 define ainda poluição como “todaalteração das propriedades naturais do meio ambiente,causada por agente de qualquer espécie prejudicial àsaúde, à segurança ou ao bem-estar da população sujeitaaos seus efeitos” e Silva2 diz que poluição “é o modo maispernicioso de degradação do meio ambiente natural.Atinge mais diretamente o ar, a água e o solo, mastambém prejudica a flora e a fauna (...)”.

A poluição possui várias fontes, dentre as quaispodemos destacar: esgoto, resíduos sólidos, resíduos eemissões industriais, lixo radioativo, agrotóxicos, extraçãoe tratamento de minerais, veículos automotores etc.

2 – AS PRINCIPAIS FORMAS DEPOLUIÇÃO

Dependendo do elemento atingido, a poluiçãopoderá ser denominada de: hídrica, atmosférica, do solo,sonora, visual, radioativa, dentre outras. A seguiranalisamos cada uma das formas de poluição.

– Poluição hídricaPoluição hídricaPoluição hídricaPoluição hídricaPoluição hídrica: conforme consta no Decreto n.73.030/73, art. 13, § 1°, poluição da água é qualqueralteração de suas propriedades físicas, químicas oubiológicas, que possa importar em prejuízo à saúde,à segurança e ao bem-estar das populações, causardano à flora e à fauna, ou comprometer o seu usopara fins sociais e econômicos.

Quando se fala em poluição das águas, devem serabrangidas não só as águas superficiais como tambémas subterrâneas. Uma das principais fontes de poluição

1 Hely Lopes Meirelles. Direito administrativo brasileiro. Malheiros, São Paulo, 1994, p. 164.2 José Afonso da Silva. Direito ambiental constitucional. Malheiros, São Paulo, 1994, p. 10.

das águas são os resíduos urbanos, tanto os industriaisquanto os rurais, que são despejados voluntária ouinvoluntariamente. Como exemplos de materiaistóxicos que normalmente são despejados nas águas,destacam-se metais pesados como o cádmio e o mercúrio,o chumbo, nitratos e pesticidas. Estes poluentesrepresentam grande ameaça à qualidade da água, à saúdee ao meio ambiente, pois são capazes de provocarenormes danos aos organismos vivos, e, conseqüente-mente à cadeia alimentar e à nossa saúde.

Portanto, medidas devem ser tomadas no sentidode recuperação dos rios e mananciais atingidos pelapoluição, para que se garanta à população o abasteci-mento de água não infectada. Dentre essas medidas,ressalta-se o tratamento dos esgotos urbanos.

– Poluição atmosféricaPoluição atmosféricaPoluição atmosféricaPoluição atmosféricaPoluição atmosférica: poluição do ar pode serdefinida como a modificação da sua composiçãoquímica, seja pelo desequilíbrio dos seus elementosconstitutivos, seja pela presença de elemento químicoestranho, que venha causar prejuízo ao equilíbriodo meio ambiente e, conseqüentemente, à saúde dosseres vivos.

Este tipo de poluição pode ser classificado como:poluição pelos detritos industriais, poluição pelospesticidas e poluição radioativa e possui como fontes: asfixas (indústrias, hotéis, lavanderias etc.) e as móveis(veículos automotores, aviões, navios, trens etc.). Já osfatores que a causam podem ser: naturais e artificiais.Os fatores naturais são aqueles que têm causas nas forçasda natureza, como tempestades de areia, queimadasprovocadas por raios e as atividades vulcânicas. Já osfatores artificiais são os causados pela atividade dohomem, como a emissão de combustíveis de automóveis,queima de combustíveis fósseis em geral, materiaisradioativos, queimadas, etc.

Entre as mais graves conseqüências da poluiçãoatmosférica, podemos citar a chuva ácida, o efeito estufae a diminuição da camada de ozônio.

A chuva será considerada ácida quando tiver umpH inferior a 5,0, ocorrendo não apenas sob a forma dechuva, mas também como neve, geada ou neblina.Decorre da queimada de combustíveis fósseis,produzindo gás carbônico, formas oxidadas de carbono,nitrogênio e enxofre. Esses gases, quando liberados paraa atmosfera, podem ser tóxicos para os organismos. Odióxido de enxofre provoca a chuva ácida quando secombina com a água presente na atmosfera, sob a forma

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de vapor. As gotículas de ácido sulfúrico resultantes dessacombinação geram sérios danos às áreas atingidas. Alémdos sérios danos ao meio ambiente natural, as chuvasácidas também constituem séria ameaça ao patrimôniocultural da humanidade, corroendo as obras talhadasem mármore, que por ser uma rocha calcária, dissolve-sesob a ação de substâncias ácidas.

Outro causador da poluição é o chamado efeitoestufa, fenômeno de elevação da temperatura média daTerra, que ocorre pelo aumento considerável naconcentração de gás carbônico na atmosfera, provocadoprincipalmente pela queima de combustíveis fósseis edesmatamentos, formando assim uma espécie de“coberta” sobre a Terra impedindo a expansão do calor.O crescente aumento do teor do gás carbônico naatmosfera faz com que a temperatura da Terra esteja emconstante crescimento, o que pode ocasionar grandesdistúrbios climáticos.

Ainda temos a diminuição da camada de ozôniocomo fator de aumento da poluição. O ozônio estápresente na troposfera, que é a camada da atmosfera emque vivemos, e também em zonas mais altas daestratosfera, entre 12 e 50 km de altitude, tendo comofunção proteger o planeta da incidência direta de grandeparte dos raios ultravioleta, que é um dos componentesda radiação solar. Com a diminuição dessa camada deozônio, os raios ultravioleta atingem a Terra de formamais brusca, provocando graves doenças no ser humano,como câncer de pele, distúrbios cardíacos e pulmonares,queimaduras, problemas de visão, etc. O ambientetambém é diretamente atingido pelas modificações nacadeia alimentar, visto que certas espécies de animais eplantas são extremamente sensíveis a essa radiação,como os anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas). Alémdisso, a destruição desta camada de ozônio podecontribuir com o derretimento de parte do gelo dacalota polar, causando o superaquecimento do planeta.

Uma das grandes causas da diminuição da camadade ozônio tem sido a liberação de compostos químicosindustriais na atmosfera, denominados de CFC(clorofluorcarbono), que é um gás não tóxico, inodoro,e quimicamente inerte. É usado em grande escala comoagente refrigerador de geladeiras e aparelhos de arcondicionado, na manufatura de espumas de plástico e,principalmente, como propelente de sprays enlatados,e sua inércia química torna-o capaz de atingir grandesaltitudes sem se modificar, até alcançar a estratosfera,onde a radiação ultravioleta provinda do Sol provoca asua quebra.

4 Antonio Silveira Ribeiro dos Santos. Poluição Sonora e Sossego Público. Correio Brasiliense – Direito & Justiça, 06.09.1999.3 Luís Paulo Sirvinskas. Tutela penal do meio ambiente. São Paulo, Saraiva, 1998.

––––– Poluição do soloPoluição do soloPoluição do soloPoluição do soloPoluição do solo: conforme estabelece o Decreto n.28.687/82, art. 72, poluição do solo e do subsoloconsiste na deposição, disposição, descarga,infiltração, acumulação, injeção ou enterramento nosolo ou no subsolo de substâncias ou produtospoluentes, em estado sólido, líquido ou gasoso. Adegradação do solo pode dar-se por: desertificação,utilização de tecnologias inadequadas, falta depráticas de conservação de água no solo, destruiçãoda cobertura vegetal. Já a contaminação dos solosdá-se principalmente por resíduos sólidos e líquidos,águas contaminadas, efluentes sólidos e líquidos,efluentes provenientes de atividades agrícolas, etc.

– Poluição sonoraPoluição sonoraPoluição sonoraPoluição sonoraPoluição sonora: segundo a Cetesb, em definiçãocitada por Luís Paulo Sirvinskas,3 “poluição sonora é aprodução de sons, ruídos ou vibrações em desacordocom as precauções legais, podendo acarretarproblemas auditivos irreversíveis, perturbar o sossegoe a tranqüilidade alheias”.

A poluição sonora pode causar ainda mau humor,doenças cardíacas e, conseqüentemente, queda naprodutividade física e mental.

Esse tipo de poluição tem como causasprincipalmente o barulho de automóveis, aviões, obras,gritarias, etc., podendo ser mais ou menos nociva,conforme sua duração, repetição e intensidade (emdecibéis). Aliás, ultimamente temos observado que aimprensa em geral tem dado atenção às reclamações daspessoas com referência aos ruídos ou barulhosprincipalmente em bares, casas noturna, o que torna aspessoas expostas a todas as formas de barulho.

A poluição sonora dá-se per meio do ruído que é osom indesejado, sendo considerada uma das formas maisgraves de agressão ao homem e ao meio ambiente.Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) o limitetolerável ao ouvido humano é de 65 dB (A), acima dissoo nosso organismo sofre de estresse, o qual aumenta orisco de doenças. Com ruídos acima de 85 dB (A) aumentao risco de comprometimento auditivo, conformeSilveira.4 Sabe-se também que quanto mais tempoexposto, maior o risco da pessoa sofrer danos. Quanto aestes, dois fatores são determinantes para a sua amplitude:o tempo de exposição e o nível do barulho a que se expõea pessoa ou pessoas, sendo de se observar que cada casotem suas características e seu grau de conseqüência, o queexige estudos específicos para cada um.

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Em se tratando de poluição sonora restrita a umadeterminada região ou área, o problema torna-se muitasvezes de pequena proporção, mas quando ela atingegrande parte da cidade, como no caso de trânsito intensoe corredores de tráfego, a questão passa a ser mais amplae generalizada, pois além de ofender os moradorespróximos às vias públicas barulhentas, atinge tambémos que passam por elas, tornando-se assim um problemade saúde pública.

Já, na área trabalhista uma das principais causasda incapacidade funcional tem sido a perda da audiçãopela ocorrência do excesso de barulho no ambiente detrabalho, ou seja, pela poluição sonora a que se expõe otrabalhador. No âmbito doméstico, a poluição sonoraocorre pela emissão de ruídos acima das especificaçõesproduzidos por eletrodomésticos.

– Poluição visualPoluição visualPoluição visualPoluição visualPoluição visual: trata-se da degradação do ambientenatural ou artificial que provoca incômodo visual.O excesso de outdoors, propagandas, cartazes etc.,faz com que a cidade fique visualmente poluída, poisestes além de deixarem a cidade feia, ainda a tornacada vez mais suja, devido aos papéis que são jogadosna rua. Deve-se observar ainda que a gravidade destetipo de poluição será ainda maior se o bem lesado forum bem tombado.

– Poluição radioativa: Poluição radioativa: Poluição radioativa: Poluição radioativa: Poluição radioativa: radiação é o efeito químicoproveniente de ondas e energia calorífera, luminosa,etc. Existem três tipos de radiação: raios alfa e raiosbeta, que têm a absorção mais fácil, e raios gama,que são muito mais penetrantes que os primeiros, jáque se tratam de ondas eletromagnéticas. O contatocontínuo à radiação causa danos aos tecidos vivos,tendo como principais efeitos a leucemia, tumores,queda de cabelo, diminuição da expectativa de vida,mutações genéticas, lesões a vários órgãos etc.

Assim, poluição radioativa é o aumento dos níveisnaturais de radiação por meio da utilização de substânciasradioativas naturais ou artificiais. A poluição radioativatem como fontes as substâncias radioativas naturais quesão as substâncias que se encontram no subsolo, e queacompanham alguns materiais de interesse econômico,como petróleo e carvão, que são trazidas para a superfíciee espalhadas no meio ambiente por meio de atividadesdas mineradoras, principalmente. E as substânciasradioativas artificiais, as que não são radioativas, masque nos reatores ou aceleradores de partículas são“provocadas”.

5 Robson Spinelli Gomes. A poluição eletromagnética e sua interferência no nosso dia-a-dia. Revista Meio Ambiente Industrial. n. 28,nov. /dez. 2000, p. 120-127.

Também não podemos deixar de citar a poluiçãoeletromagnética, espécie da poluição radioativa, tendocomo principal fonte resultante as antenas detransmissão de sinais, as quais estão se multiplicandocada vez mais, principalmente devido à popularizaçãodos telefones celulares, aumentando o campo elétricoda cidade. Conforme informa Gomes,5 “os camposelétricos e magnéticos produzidos por instalaçõeselétricas são denominados campos de baixa freqüênciae estão enquadrados no elenco de radiações nãoionizantes, como também os campos gerados porsistemas de radiofreqüências e microondas, que utilizamfreqüências muito elevadas”. Todavia, qualquer que sejaa faixa de freqüência ocorrerá efeitos sobre o corpohumano, como mal-estar, sensação de choque,queimadura, dificuldade em respirar e batimentodesordenado do coração. Ademais, há a polêmica sobrea probabilidade de relação da poluição eletromagnéticacom o estímulo de crescimento de tumores cancerígenos.

3 – ASPECTOS JURÍDICOSA Lei n. 9.605/98, que trata dos crimes ambientais,

em seu art. 54, configura crime “causar poluição dequalquer natureza em níveis tais que resultem ou possamresultar danos à saúde humana, ou que provoquem amortalidade de animais ou a destruição significativa daflora”, o que inclui nesta figura delituosa todas as formasde poluição aqui tratadas.

A lei em questão também alberga figurasqualificadas ao crime de poluir, no caso de resultadosque: tornem uma área, urbana ou rural, imprópria paraa ocupação humana; causem poluição atmosférica queprovoque a retirada, ainda que momentânea, doshabitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretosà saúde da população; causem poluição hídrica que tornenecessária a interrupção do abastecimento público deágua de uma comunidade; dificultem ou impeçam o usopúblico das praias; ocorram por lançamento de resíduossólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ousubstâncias oleosas, em desacordo com as exigênciasestabelecidas em leis ou regulamentos.

Ademais, o artigo em análise adota o princípioda precaução, pois incorrerá nas mesmas penas previstasquem deixar de adotar, quando assim o exigir aautoridade competente, medidas de precaução em casode risco de dano ambiental grave ou irreversível. Porsua vez a Lei n. 8.078/90, Código do Consumidor, proíbe

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o fornecimento de produtos e serviços potencialmentenocivos ou prejudiciais à saúde (art. 10).

Desse modo, por se tratar de problema social edifuso, a poluição deve ser combatida pelo poderpúblico e pela sociedade. Individualmente com açõesjudiciais de cada prejudicado ou coletivamente por meioda ação civil pública (Lei n. 7.347/85). Ademais, o meioambiente equilibrado é um direito de todos (art. 225,da Constituição Federal) e um dever de proteção dosentes públicos, ou seja, União, Estados, e Municípios,por força da combinação dos arts. 23, 24 e 30constitucionais. De fato, o art. 23, VI coloca nacompetência comum da União, Estados, Distrito Federale Municípios, entre outras coisas, o combate à poluiçãoem qualquer de suas formas. Já, o art. 24, em seu inc. VIatribui a competência concorrente da União, Estados eDistrito Federal para legislar sobre o controle dapoluição. Finalmente no art. 30, da Carta Magna,encontra-se a melhor disposição quanto a competêncialegislativa do Município em relação ao meio ambientee, conseqüentemente, à sua poluição, quando diz quesua competência abrange assuntos de interesse local (I),e lhe dá competência suplementar à legislação federal eestadual no que couber (II).

Portanto, a questão da poluição deve ter a atençãodo Poder Público em geral, que deve procurar legislar,fiscalizar e gerenciar as atividades de forma a evitar danosao meio ambiente por elementos poluidores, inibindo assima prática de atos que possam implicar em dano ambiental.

4 – POLUIÇÃO: QUESTÃOPLANETÁRIA

Nas sociedades modernas, as indústrias sãonecessárias para atender as necessidades cada vez maioresda população, a qual por sua vez vem aumentando emnível assustador, ante os avanços tecnológicos quepossibilitaram curas de doenças com o prolongamento davida humana e, conseqüentemente, descontrole do binômionascimento-morte. Já para atender essa demanda crescente,as indústrias transformaram e transformam matéria-prima em produtos em grande escala, e para isto utilizamos recursos naturais. Essa transformação traz naturalmenteum custo ecológico devido ao impacto ambientalproduzido. Assim, a atividade industrial alcançou umagrande expansão nas últimas décadas, principalmente,chamando atenção para os danos em grande escala quevem impondo ao ambiente.

6 Boletim Informativo n. 26 do Comitê Brasileiro do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.7 Nosso futuro comum. Comissão Mundial para o Meio Ambiente. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2. ed. p. 195.

A industrialização e seus produtos são respon-sáveis pela expedição de gases como o dióxido de carbono,dióxido de enxofre e monóxido de carbono, entre muitosoutros, os quais contribuem para o chamado “efeitoestufa”, pelo qual a radiação solar fica presa próximo aosolo, esquentando a Terra e alterando seu clima. Alémdesses gases, o clorofernocarbono é responsável pelosdanos à camada de ozônio que protege a Terra dos raiosultravioletas, contribuindo assim também para o seuaquecimento. Aliás, o buraco na camada de ozônio sobrea Antártida dobrou de tamanho de julho a setembro de1995, passando a medir dez milhões de quilômetrosquadrados, o equivalente ao tamanho do continenteeuropeu.6

Estimam os cientistas que devido à poluiçãoatmosférica e, principalmente, pelo efeito estufa, astemperaturas médias globais terão um aumento entre1,5 e 4,5° C e as emissões de poluentes, principalmenteindustriais, da agricultura e dos veículos automotores,não forem suspensos ou diminuídos sensivelmente. Esseaumento de temperatura atingirá os pólos e elevará onível do mar entre 25 a 140 cm, o que inundará a maioriadas cidades costeiras com gravíssimas conseqüênciassócio-econômicas.7

Portanto, podemos imaginar a dimensão dos danoscausados pela poluição desses setores e atividadeshumanas, o que nos dá a preocupação de se tentar estudara fundo medidas que possam pelo menos minimizá-la.Tendo em vista que os países desenvolvidos são altamenteindustrializados e os em desenvolvimento estão seindustrializando, podemos perceber que a questão dapoluição climática com reflexos danosos aos recursoshídricos e ao meio ambiente global é uma questãoplanetária que deve assim ser tratada por todos os paísesdo mundo. Mas, de início, deparamos com uma grandedificuldade que é de se compatibilizar os interesses dospaíses em desenvolvimento e as nações industrializadas,bem como a difícil divisão de responsabilidades sobre otema em questão.

Os países industrializados respondem por cercade 75% do total das emissões de gases poluentes, o percen-tual restante é atribuído aos países em desenvolvimento.Por essa proporção, vê-se que cabe aos países industria-lizados uma maior redução e/ou reestruturação de seusparques industriais, em relação aos países em desenvol-vimento. Estes últimos, por sua vez, devem “crescer

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

industrialmente” de forma a poluir menos, não seguindoo exemplo atual das nações industrializadas. Ante ocaminho irreversível para a industrialização os paísesem desenvolvimento não podem estancar sua evoluçãoeconômica, mas devem executá-la de forma a causar omenor dano possível ao ambiente. Observando opercentual referido, todos os países devem partilhar aresponsabilidade pelos atos poluentes de qualquer queseja sua forma. Em conjunto devem encontrar medidasconcretas de proteção para evitar o caos ambiental quese aproxima, com critérios justos de divisões deresponsabilidades, o que podemos chamar de partiçãoresponsável.

Assim, podemos concluir que o combate ao efeitoestufa e os problemas de poluição atmosférica, dosrecursos hídricos e, em geral, do meio ambiente, passoua ser uma questão planetária, e como tal deve sertratada.

8 Programa Ambiental: A Última Arca de Noé, site: www.aultimaarcadenoe.com – Página sobre poluição.

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SIRVINSKAS, L. P. Tutela Penal do meio ambiente. São Paulo: Saraiva,1998. 159 p.

5 – CONCLUSÃOAnte o exposto, é lícito concluir que o problema

da poluição crescente está se tornando um problemaambiental mundial e somente com legislação forte eespecífica sobre o tema, aliada a fiscalização efetiva,poderemos estancar a progressiva agressão ao meioambiente.

Não poderão faltar também as ações oriundos daconscientização ambiental de todos os segmentos dasociedade, inclusive mediante programas educacionaisambientais pela internet8, o que permitirá a participaçãode todos no processo de melhoria da qualidade ambiental.

Daí porque é necessário que sejam conhecidostambém aspectos jurídicos sobre o tema, bem comosejam divulgados dados científicos sobre os poluentes,para que todos possam ter acesso amplo à informaçõesimportantes e alcançar o tão galgado ambiente sadio eequilibrado, e a conseqüente qualidade de vida.

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PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOSNA CONSTITUIÇÃO

Antonio Celso Baeta MinhotoMestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Professor do IMES de Teoria Geral do Direito Público.Advogado atuante em São Paulo.

Os princípios democráticos previstos na ConstituiçãoBrasileira de 1988 sofrem, ainda, de uma baixa eficiênciano que concerne à sua aplicação efetiva na sociedade,dificuldade que é sensivelmente aumentada pelaprópria crise mundial vivida pela Democracia Modernaatualmente.

PALAVRAS-CHAVE: Constituição Brasileira, princípiosdemocráticos, democracia moderna.

The democratic principles established in the BrazilianConstitution of 1988 still suffer a low efficiency in thatit concerns to its effective application in the society,difficulty that significantly is increased by the properworld-wide crisis lived by the modern Democracycurrently.

KEYWORDS: Brazilian Constitution, democraticprinciples, modern democracy.

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1 – INTRODUÇÃOFalar em Princípios Democráticos, especialmente

na Constituição, atrai, já de plano, uma certa amplidãoanalítica o que, assim, será aqui refletido, tanto quantopossível, numa abordagem mais geral e sem umcompromisso rígido de voltar-se apenas e tão-somentepara o atual texto constitucional vigente no Brasil, aquelepromulgado em 1988.

Com efeito, a própria noção de uma constituiçãonuma acepção mais formal ou pelo menos maisformalizada, entendendo-se aí um texto escrito, só tevesua real razão de ser a partir da valorização dos chamadosprincípios democráticos, muito embora a noção deDemocracia seja, como todos sabemos, bastante antiga,remontando à Grécia antiga, mais especificamente pelosescritos de Aristóteles que, segundo muitos crêem, é opróprio inventor do termo Democracia.1

Mas, ainda que o aspecto histórico da remotaantiguidade seja de relevante interesse, para esse pequenotrabalho irá interessar muito mais a Idade Moderna.

2 – PRINCÍPIOS – SURGIMENTO ESISTEMATIZAÇÃO

Muito embora não se tenha aqui por escopo erigirum estudo do tipo histórico-enciclopédico, alguns itenshistóricos devem ser inseridos para tratar o tema em apreço.

Desse modo, a história registra, como antecedentesrelevantes em termos de documentos com caráter aomenos aproximado com um texto constitucional – nadaobstante tenham existido outros documentos comopactos, forais e cartas de franquia, mais genéricos e menosrelevantes, historicamente falando – a Magna Carta, queconsubstancia o acordo entre o Rei João Sem Terra e seussúditos acerca dos limites de poder da Coroa, em 1215 e,como exemplo complementar, a chamada Petition ofRights, promulgada por parlamentares ingleses visandoforçar o Rei Carlos I a respeitar direitos imemoriais dosingleses.2

Sem embargo dos precedentes acima noticiados,foi real e efetivamente somente a partir do século XVII,com o início ou com a propagação mais abrangente emais substanciosa da variadas obras no campo político-

1 Aristóteles não foi o primeiro – não nos esqueçamos de que Platão, de quem aliás Aristóteles foi discípulo, já havia se dedicado àanálise do Estado e das formas de governo – mas pelo menos, foi o que primeiramente sistematizou de maneira razoavelmenteabrangente a idéia de Democracia e de suas qualidades para o Estado e para o Povo. Ver ARISTÓTELES (1991:105-111).

2 Cf. FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves (1990:4).3 A declaração de direitos oriunda da Revolução Francesa, tornada pública em 1789, dispunha: “Toda sociedade na qual não está assegurada

a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição”, em FERREIRA FILHO (1990:7).4 LASSALE, Ferdinand (1988:9-10).

social, é que notamos um maior incremento nacontemplação do tema como algo de fato importantena composição da vida política de uma nação.

Por essa época, ia sendo paulatinamentesedimentado o uso da expressão pacto social justamentepara expressar a necessidade de se adotar uminstrumento que funcionasse como uma espécie de fielda balança entre o poder estatal e o povo, expressão estaque foi imortalizada por obras como O Leviatã, deThomas Hobbes e Tratado do Governo Civil, de JohnLocke, além de diversos textos doutrinários de JeanJacques Rousseau. Se somarmos essa idéia com aseparação dos poderes dentro do Estado, consagradade forma lapidar por Montesquieu em sua obra Espíritodas Leis, teremos já os elementos informadores iniciaisde um texto constitucional tal como hoje concebemos.

A partir da Constituição dos EUA, em 1787 e, maisainda, com a Revolução Francesa de 1789 e a Declaraçãode Direitos de caráter constitucional que este movimentotrouxe consigo,3 vemos tomar assento de formadefinitiva na sociedade a ligação entre os direitos ditoscomo fundamentais àquela época, alçados à categoriade verdadeiras pilastras do estado moderno (liberdade,igualdade e fraternidade), num texto formalmentedisposto que albergasse esses princípios: umaConstituição escrita de caráter ou abrangência nacional.

Buscando uma maior didática, podemos situaros elementos tidos como informadores ou essenciais emtodo e qualquer texto normativo que pretenda ser umaConstituição, além dos já acima citados:

a) básica, como texto normativo;

b) fundamental, ou seja, dela devem derivar as demaisleis da nação e

c) necessidade ou, mais do que isso, necessidade ativa,já que inconcebível seria a existência de umaConstituição sem uma força que lhe desse razão deexistir4.

Entendidos estes resumidos elementos formadorese constitutivos de um texto constitucional e, mais, o brevehistórico acima articulado, entende-se já podermos partiragora para uma análise mais voltada à nossa Carta Magnade 1988 em face dos princípios democráticos.

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3 – O PRINCÍPIO NORMATIVO DADEMOCRACIA (CONSTITUIÇÃOFEDERAL 1988)

Historicamente, o Brasil, em matéria legislativa,sempre se pautou por inspiração externa, aspectobastante visível na época do Império, e que persistiumesmo após o advento da República em 1889, situaçãoque foi também notada, claro, em face dos diversos textosconstitucionais brasileiros, a começar pelo de 1824.

Os ideais de liberdade, fraternidade e igualdade,que em meados do século XIX já grassavam por todo omundo ocidental, influindo sobremaneira em toda alegislação vigente, foi inspirador também aqui no Brasil.Nesse mesmo modelo, ainda mais, já havia a idéia debusca de uma Democracia. Aliás, sobre a busca daDemocracia em nosso país e o papel da constituição nessabusca, registra-se críticas desde sempre, algumas até emtom romântico,5 outras num viés mais técnico, mas, comajustes aqui e ali, bastante pertinentes em seu conteúdo.6

Todavia, tomemos logo o estudo da ConstituiçãoFederal de 1988 e, numa primeira abordagem,busquemos entender, de forma sucinta, sua situaçãohistórica e as razões que a levaram a ser como é. Assim,ao lado de movimentos internos existentes no país, comoa extinção de sucessivos governos de exceção operadaem 1985, constatamos também itens ocorrentes nocenário internacional como a queda dos regimespolíticos do leste europeu, o processo de construção daUnião Européia, além de uma necessidade crescente deobter cidadania e identidade pelas nações de um modogeral,7 tendo este último item sido notado especialmentenas cisões ocorridas em várias nações como a antigaURSS, a Iugoslávia e a Tchecoslováquia.

O ambiente histórico-social em que se inseria aconstituinte de 1987, portanto, era de alegados novostempos, externamente e internamente, sendo que nocaso brasileiro havia um sentimento de resgate dasliberdades políticas, um anseio generalizado pelaretomada de um rumo democrático para a nação. Nesseaspecto, a idéia de democracia buscada pelo texto

5 “Direi apenas que, se esta solidariedade puder um dia ser conseguida, poderemos esperar tranquillos o advento da Democracia noBrasil. (...) se não for possível, é preciso que renunciemos então à esperança de assistirmos o advento da Democracia no Brasil (...)e nos contentarmos com o governo do povo por olygarchias broncas.” OLIVEIRA VIANNA (1927:117).

6 “Uma constituição não se faz com palavras bem encadeadas num sistema de preceitos. A ordem social, a ordem econômica, a ordemjurídica e a ordem administrativa, na unidade da ordem constitucional constituem fisiologicamente o Estado” FRANCO SOBRINHO,Manoel de Oliveira (1991:36).

7 MAUÉS, Antonio Gomes Moreira (1998:124).8 MAUÉS (1998:106).9 CANOTILHO, J. J. Gomes (1998:278).

constitucional em análise, vem insculpida já em seuprimeiro artigo, estando ali previsto que a RepúblicaFederativa do Brasil constitui um “Estado Democráticode Direito” (CF/88, art. 1°, caput).

A Constituição Federal de 1988 é, ou pretende ser,portanto, um instrumento do que se usou chamar deDemocracia Moderna, aquela “baseada na participaçãolivre e igualitária dos cidadãos no processo de tomada dedecisões políticas” .8 Qual seria, afinal, o significado doprincípio democrático posto como norma constitucionalou como idéia fundamental positivada num textoconstitucional?

Muito embora a pergunta acima tenha muito demera retórica, dada a subjetividade de seu conteúdo oumesmo do teor de sua resposta, alguns estudiosos tentamrespondê-la, como é o caso de Canotilho que nos ensinaque, na Carta Maior, por ele chamada “dirigente”(modelo no qual se inserem tanto a Constituiçãoportuguesa, por ele abordada, quanto a brasileira), alegitimidade do poder encontra-se normatizada deforma substancial (condicionada ao atingimento decertos fins e à realização de dados princípios) eprocedimental (condicionada à observância de regras).O princípio democrático, assim, é posto como forma deracionalização do processo político e como forma delegitimação do poder; destarte, o princípio democráticoconstitucionalmente disposto “sugere a existência de umobjectivo a realizar através da democracia”.9

Prevaleceu no texto constitucional brasileiro achamada legitimação substancial. Destarte, tal aspectose nota no assentamento dos fundamentos e dos objetivosfundamentais (CF/88, arts. 1° e 3°, v. g.), e na legitimaçãoprocedimental, na fixação das regras que controlam asformas de acesso e exercício do poder (arts. 14 a 17, queversam sobre os direitos e os partidos políticos), bemcomo no estabelecimento do controle de constitucio-nalidade, através do qual se garante a possibilidade de senegar eficácia a qualquer procedimento legislativoinconstitucional (arts. 52, X; art. 97; art. 102, I, a, III, a,b, c; 125, § 2°).

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4 – PARTICIPAÇÃO,REPRESENTATIVIDADE EPRINCÍPIO DEMOCRÁTICO

A democracia, ou o princípio primeiro/basilar dademocracia, como sabemos, engloba ou intentaenglobar, postulados da teoria democrática representativa(órgãos representativos, eleições, pluralismo partidário,separação de poderes) e, de outro, a tendência àimplementação de uma democracia participativa, atravésde cidadãos que aprendem a democracia, num processode construção de uma vivência, para, através dela,participar do processo decisório).

Fundado em tais elementos é que o mesmoCanotilho acima citado nos fala de uma relação dialéticaentre representatividade e participação, na vivênciademocrática.10 Dirigindo nossa atenção mais especifi-camente para a realidade brasileira, na ConstituiçãoFederal de 1988 podemos destacar, exemplificativa-mente, alguns pontos essencialmente correlatos àquestão democrática:

art. 1°, caput, temos a expressão “... Estado Democráticode Direito ...”, em que adjetivo “Democrático”praticamente qualifica a República;

art. 1°, II, no qual o termo “a cidadania”, mostra-se comofundamento da República;

art. 2°, em que se estabelece a separação dos poderes,postos como “independentes e harmônicos entre si”,uma previsão bastante peculiar dos regimesdemocráticos;

art. 5°, em que são dispostos os direitos e deveresindividuais e coletivos, dentre os quais podemosapontar, em seus incisos, exemplificativamente:

LXXI, que estabelece a via do mandado de injunção,instrumento destinado a garantir eficácia aos direitosconstitucionalmente dispostos;

LXXII, implementador do habeas data, voltado agarantir o acesso, pelo cidadão, a quaisquerinformações a seu respeito, constantes de bancos dedados governamentais ou de entidades de caráterpúblico;

LXXIII, concessor de legitimidade a “qualquer cidadão”para a propositura de ação popular, visandocombater atos lesivos ao patrimônio público ou àmoralidade administrativa, dentre outros.

10 CANOTILHO (1998:279).11 GARCIA, Maria et. alii., (1997:45-47).12 DAHL, Robert A., (1998:37).

Pode-se notar, assim, como a gama deinstrumentos constitucionais postos, tanto em relaçãoaos imperativos em face dos Poderes Públicos como àdisposição do cidadão para a almejada construção dademocracia no Brasil, são amplos.

Como ocorre no país com diversos outroscomandos legais vigentes, vale dizer textos legais decunho infra-constitucional, estes são em regra,lamentavelmente, objeto de muito acanhado uso,observando-se tal timidez por diversas razões que aquinem cabem ser analisadas.

Em obra de aguda análise e recente publicação,Maria Garcia,11 ao abordar o tema da representatividade,a identifica, na atualidade, como “vazia de significado”,em termos práticos, haja vista a fratura estabelecida, nasociedade contemporânea, no aspecto da comunhão deinteresses. Uma vez prejudicada essa convergência,inevitavelmente abalada a eficácia do modelodemocrático-representativo, como hoje o conhecemos.

De fato, se ao termo ou à idéia de democracia sefaz seguir a noção, concebida modernamente comoindissolúvel, da representatividade e esta, por seu turno,não se faz materializada ou presente de forma efetivanas nações que pretendem vivenciar a democracia nessesmoldes, o sentimento de frustração mostra-seproeminente, daí porque alguns autores, como MariaGarcia, se mostram tão ácidos no trato do tema, comovimos acima.

Robert A. Dahl, da Universidade de Yale, um dosmais destacados estudiosos do tema, nos Estados Unidos,aponta cinco elementos essenciais de caracterização deum regime democrático, dentre os quais, ganhadestaque a “efetiva participação” dos membros dacomunidade, aspecto que inclusive já vimos acima comoutro autor (ver nota 8).

Os estudos de Dahl, segundo se abstrai de suascolocações, indicam que tal efetividade seria perceptívelnum processo em que, anteriormente à implementaçãode um determinado plano de ação política, a todos ospartícipes dessa “associação” fossem asseguradas “iguaise efetivas oportunidades”12 de expressar seus pontos devista, para os demais membros da coletividade, acercade como entende devesse ser tal plano.

Todavia, a questão da Democracia como regra deobtenção do consenso, como regra de governabilidadeou auto-direcionamento, se quisermos ser maisabrangentes e idealistas, sofre restrições já bastante

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avolumadas nos dias atuais, não ficando restrita à deDahl, como vimos acima.13

5 – PRINCÍPIO DEMOCRÁTICOCOMO PROCESSO DINÂMICO

A expressão ou a idéia de princípio democráticocomo algo dinâmico, em movimento, foi criada porCanotilho. Ao descrever o princípio democrático comoum “processo dinâmico inerente a uma sociedade abertae activa”14, o mestre português destaca os preceitosconstitucionais que orientam a ação política para aconstrução de uma sociedade livre, justa e solidária(art. 3°, I, da CF/88, no Brasil), para a promoção daigualdade social e do bem-estar de todos (CF/88, art. 3°,III e IV), para a efetivação dos direitos econômicos,sociais e culturais.

Muito embora não se possa indicar a ausência oua pouca vivência da população brasileira num ambientedemocrático de fato como causa única de seus malessociais, o fato é que a evidente e notória timidez comque os meios constitucionalmente dispostos para aimplementação da Democracia e para a transformaçãosocial vêm sendo utilizados, somados à usual poucaatenção governamental a tal sorte de problemas, vêmlevando à perpetuação das desigualdades sociais, áreaem que o Brasil continua, desafortunadamente,figurando como um dos “líderes” nas pesquisassociológicas realizadas mundialmente.

Isso fica evidente até mesmo quando nosdeparamos com a distância observável entre a realidadesocial do país e o modelo de sociedade “aberta e ativa”,como descrita pelo mestre português já aquimencionado. Como um item agravante, ainda, pode-seconstatar, sem maiores dificuldades, que a prática dapolítica, no Brasil, vem sendo alvo de um crescentedesinteresse pelos cidadãos, o que pode ser explicado,ao menos em boa parte, pela própria conduta dospolíticos nacionais, no mais das vezes voltados àquestiúnculas cujo interesse coletivo é praticamentenenhum, agindo, assim, de forma tacanha e pequena notrato da coisa pública, quando não há verdadeirodegringolamento para a corrupção, a malversação de

13 Há vários estudiosos atuais que oferecem estudos bastante consistentes sobre a problemática da regra da maioria contida naideologia democrática moderna. Ao menos duas obras podem e devem ser indicadas neste sentido: CAMPILONGO, Celso Fernandes.Direito e democracia: a regra da maioria como critério de legitimação política, São Paulo: Edusp, 1991 e FARIA, José Eduardo deOliveira. Poder e legitimidade: uma introdução à política do direito, São Paulo: Edusp, 1976.

14 CANOTILHO (1998:279).15 Ver, a esse respeito, interessante trabalho de DURVERGER, Maurice (1975:69-70).16 DAHL (1998:37), o autor usa a expressão enlightened understanding para a idéia exposta.

verbas públicas e a impunidade.Até mesmo o ato de votar, considerado pedra

fundamental do processo democrático – muito emboranão seja visto, de modo algum, como uma unanimidadeem termos de instrumento democrático15 – vem sendoencarado, cada vez mais, como simples “obrigação” paragrande parte dos eleitores, o que acaba por colaborarcom a manutenção desse quadro desolador, num círculovicioso para o qual não se pode prever um fim certo.

Dahl, no mesmo estudo acima mencionado,assevera ainda como outro fator essencial àcaracterização de um regime democrático, ao lado daefetiva representação, a igualdade no direito a voto (CF/88, art. 14, caput), bem como uma “compreensãoiluminada”16 de cada um dos componentes dacoletividade acerca das características de cada uma dasalternativas políticas passíveis de serem empreendidas,e suas conseqüências prováveis.

Não se pode olvidar, por outro lado, que esse nívelde entendimento ou maturação compreensiva políticanão será e não pode mesmo ser atingido de formaimediata ou espontânea. A vivência democrática, noBrasil, não conta com mais do que duas décadas – muitoembora possamos até diminuir esse prazo já que aprimeira eleição majoritária para presidente de fato sedeu em 1989 – o que dá mostras claras do quanto aindahá que se trabalhar, neste sentido.

6 – ESTADO, SOCIEDADE EPRINCÍPIO DEMOCRÁTICO

Outro aspecto de relevo destacado por Canotilho,no texto estudado, se refere ao fato de que, ao menos naCarta Portuguesa, até mesmo os métodos de formaçãodos órgãos dirigentes dos partidos políticos têm deobedecer à regras democráticas. Este, possivelmente, umdos pontos mais relevantes da incipiência do modelodemocrático em prática no Brasil, por diversos motivos.

Muito embora seja fundamento legal que o acessoa mandatos eletivos é monopólio dos partidos políticos(CF/88, art. art. 14, § 3º, V), constatamos que, no Brasil,a identidade da população com os partidos e mesmodos próprios políticos com os partidos ao qual se

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conectam, é extremamente tênue, para não dizerinexistente mesmo. Basta ver que, ano após ano, osprincipais postos políticos do País são disputados, emregra, por “políticos profissionais”, que se revezam nacorrida eleitoral, sem qualquer liame mais profundocom o partido político que o sustenta.

Um ponto problemático adicional do sistema derepresentação partidária, como hoje vigente, no Brasil,diz respeito à não-obrigatoriedade de observância defidelidade partidária, o que leva os candidatos, não raro,a fazer das legendas uma espécie de mera via eleitoral,fato que vem reforçar a tese de que a força dos partidosse dilui e os programas partidários perdem significado.17

Abordando a temática da representação emambiente democrático ou na democracia, não podemosdeixar de destacar a obra de Pateman, em que esta autoralevanta um ponto crucial ao contexto social no qual sedeve desenvolver uma democracia, qual seja, aparticipação social em “áreas alternativas”18 como fatorde disseminação da prática e da vivência democráticas.

Atualmente, as formas de representação políticasugerem reflexões, sem as quais sua práxis corre o riscode perder sentido. Dallari, citado por Maria Garcia,19

vislumbra que, para a efetivação do regime democrático,talvez se faça necessária a “superação da representaçãopolítica, baseada no sistema de partidos, para a adoçãode representação institucional”, enxergando-se a idéiade instituição como uma “empresa que se realiza e duranum meio social”, a exemplo do que leciona MauriceHauriou e sua Teoria da Instituição.

7 – ORGANIZAÇÃO POLÍTICA EPRINCÍPIO DEMOCRÁTICO

O poder político se estabelece em “estruturas dedomínio” e o princípio democrático não elimina isso; ele“implica uma forma de organização desse domínio”,20

como nos ensina o professor lusitano. O mesmo Canotilhoprossegue mostrando uma noção fundamental na

17 O exemplo de Fernando Collor de Mello é bastante emblemático, uma vez que foi eleito em 1989 para Presidente da República porum partido político de pouca expressão nacional e, com seu impeachment em 1992, assistiu-se ao naufrágio praticamente concomitantedo mesmo PRN, o que bem indica a fragilidade do sistema partidário brasileiro. Há projetos de lei e tentativas variadas de se criaruma espécie de fidelização entre o político e seu partido, e mesmo entre os eleitores e os partidos, mas se nota pouca disposição porparte dos políticos em realmente mudar esse quadro.

18 PATEMAN, C. (1992:146). A autora, neste estudo, analisa em profundidade o processo de autogestão dos trabalhadores naIugoslávia como exemplo de coletividade participativa;

19 GARCIA (1997:50-52).20 CANOTILHO (1998:280).21 CANOTILHO (1998:280).22 Alusão feita ao título de destacada obra do jornalista Gilberto DIMENSTEIN (1993). São Paulo: Àtica.

democracia participativa ao afirmar que “o poder políticoé constituído, legitimado e controlado por cidadãos(povo)”,21 fazendo lembrar, inclusive, as idéias de Rousseausobre a questão da chamada democracia direta, cujo poderseria exercido diretamente pelo povo.

O raciocínio acima ainda nos leva ou remete à idéiade representatividade e participação e, ainda, à conceituaçãode associação, como um efetivo “fundamento funcionalda democracia”. O texto constitucional garante, ainda, odireito à livre associação, “profissional ou sindical”(art. 8º, caput) e, também, na forma de partidos políticos(art. 17).

Aos comentários já apresentados sobre os temasda representatividade e da participação, bem como aoapontamento da necessária formação de uma culturademocrática (o “cidadão de papel”22 não tem lugar numademocracia efetiva), cabe aqui mencionar aquele que,possivelmente, representa o ponto mais delicado doentendimento do sistema democrático: a delineação dosignificado conferido ao conceito de “povo”.

Como obra essencial para o estudo dessa questão,podemos apontar Quem é o Povo?, de Friedrich Müller,ex-professor de Direito Constitucional da Universidadede Heidelberg, na Alemanha, cujos conceitos acabarampor influenciar os trabalhos de diversos outrosconstitucionalistas, dentre os quais Konrad Hesse.

Segundo o mestre alemão – que nesse trabalhofaz referências diretas à Constituição brasileira de 1988– as Cartas Políticas valem-se da expressão “povo”,essencialmente, como elemento legitimador de simesmas, das estruturas de poder por ela constituídas: o“povo” é o detentor do “Poder Constituinte”. Esclarececontudo que, aparentemente, tal recurso retórico nãoespelha a realidade.

Na edição nacional de Quem é o Povo? merecedestaque, ainda, a introdução de Fábio Comparato, quetraça interessante evolução dos sentidos atribuídos àexpressão “povo”, historicamente, em que afirma que“nos países de grande desigualdade social – dos quais o

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Brasil é, por assim dizer, o modelo perverso – oaperfeiçoamento democrático não passa necessariamente,tal como sucede em países igualitários (...), pela atribuiçãode poderes decisórios ao povo”.23

8 – DIREITOS FUNDAMENTAIS EPRINCÍPIO DEMOCRÁTICO

Os direitos fundamentais estão ligadosumbilicalmente ao princípio democrático, sendo ambos,em verdade, elementos fundamentais do chamado“Estado de Direito”, expressão típica não só dos Estadosmodernos mas também dos textos constitucionais maisrecentes, sendo ainda itens intrinsecamente ligados aopróprio constitucionalismo.

Definir direitos fundamentais é tarefa relativa-mente difícil mas, podemos adotar a conceituação deCanotilho que os vê como direitos subjetivos de liberdade,afirmando, assim, que estes “constituem dimensõesimpositivas para o preenchimento intrínseco, através dolegislador democrático, desses direitos”.24

Essa colocação remete a outra obra fundamentaldo mesmo Canotilho – Constituição dirigente e vinculaçãodo legislador – sobre o tema da necessária ligação dolegislador, nos países dotados de uma Carta “dirigente”,aos ditames da ordem constitucional, sob pena deverem-se os programas idealizados pelo constituintetornados como mera intenção desprovida de eficáciaou aplicação efetiva.

No Brasil, a grande lista de direitos fundamentais25

é dotada, inclusive, de “imunidade” às emendasconstitucionais, são cláusulas pétreas (art. 60, § 4°, IV).Ademais, o rol disposto no art. 5° é exemplificativo, nãotaxativo, estendendo-se pela via do seu § 2°. Caso práticomarcante dessa imutabilidade, o julgamento da Adin n.939-7/DF, no qual o Supremo Tribunal Federal entendeuque a Emenda Constitucional n. 3, de 1993, violaria agarantia constitucional posta no art. 150, III, b, daCF/88 (princípio da anterioridade tributária).26

23 COMPARATO, F. K., em MÜLLLER, F. (2000:23).24 CANOTILHO (1998:280).25 Muitos são os que criticam o excessivo detalhismo ou a minudência com que se buscou elencar os diversos direitos fundamentais na

Constituição Federal brasileira de 1988. Celso Antonio Bandeira de Mello (Folha de São Paulo, 11/03/98) cunhou célebre frase nessesentido, dizendo que “O Constituinte de 1988 confeccionou uma constituição para futuro, mas olhando para o passado”, fazendoreferência aos anos de exceção do regime militar (1964-1989) em que os direitos fundamentais foram negligenciados.

26 Cf. MORAES, Alexandre de. (2000:301-302).27 Cf. MORAES (2000:304).28 Cf. MORAES (2000:306). Destacam-se, neste mesmo sentido, os entendimentos de Flávia Piovesan e Fernando Luiz Ximenes Rocha.29 BOBBIO, Norberto (1996:5).

A essa lista somam-se, ainda, aqueles incorporadosao ordenamento legal pela via dos Tratados Interna-cionais subscritos pelo Brasil, em caráter infraconstitu-cional, conforme o entendimento atual do SupremoTribunal Federal a respeito (Adin n. 1.480-3).27 Há,todavia, entendimentos diversos, no sentido da incor-poração automática – e com status constitucional,inclusive – das normas de direitos humanos previstas emtratados internacionais.28

Como fator adicional, podemos ainda citar o fatode os direitos fundamentais se dão ao longo de umaconstrução histórica,29 o que parece contribuir para afragilidade de tais direitos no Brasil, uma vez que aqui,alia-se a juventude em si da nação com a sua ainda maisjovem abertura a uma vivência democrática de fato.

A Constituição Federal de 1988, ao instituí-lostodos de uma vez, parece-nos ter “saltado” essa etapa deconstrução e de conquista de parte significativa de taisdireitos; em síntese, não nos parece possível identificar,no povo brasileiro, uma desejável “familiaridade” comeles, com seu significado, o que acaba por reduzir-lhes osentido e o alcance.

9 – CONCLUSÃOFalar sobre princípios democráticos, como quer

parecer seja evidente, é tratar de tema vasto em si mesmo,resultando daí que demanda esforço no sentido oposto,qual seja o de limitar o campo de análise, a maior dificuldadeaqui. Portanto, o tema princípio democrático permitiria,sem dúvida, inúmeras abordagens, todas elas muito maisamplas e ricas do que esse pequeno estudo comporta.

Como vimos, elementos suficientes existem, peloprisma jurídico, para garantir a concretização da“democracia programática” brasileira. É certo que todademocracia se consubstancia, em grande medida, emum programa, posto que se trata de um sistema emconstrução permanente, como explicitado no título doitem 5, acima.

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A questão que aqui se levanta diz respeito à “Forçanormativa da Constituição”, expressão sob a qual Hesseabordou esse tema de forma particularmente feliz.Dentre diversas considerações essenciais a uma melhorcompreensão dos problemas afetos à questão da eficáciaconstitucional, podemos destacar aquelas por eleapontadas como pressupostos30 para um bom desenvolvi-mento da força normativa da Constituição:

a) Ela deve manter-se próxima da realidade social,política, econômica e axiológica da sociedade a quese destina.

b) Ela deve ter “condições de adaptar-se a uma eventualmudança dessas condicionantes”, sem que issoimplique na necessidades de constantes reformas.

c) A lhe dar sustento contínuo, deve estar não apenas aprofundidade de seu conteúdo, mas a práxis de seusvalores, por aqueles aos quais ela se volta.

d) A interpretação constitucional deve reger-se pelo“princípio da ótima concretização da norma”, demodo a torná-la sempre tão próxima da realidadepresente quanto possível.

No caso brasileiro, especificamente, diversasetapas de um longo trabalho ainda carecem deimplementação, notadamente no que toca à formaçãode uma cultura popular, de uma base educacionaldirigida que a viabilize. Para tanto, não parece existircaminho eficaz que não passe pela educação popular paraa democracia, o que implica, inegavelmente, em umacomplexa decisão política de reforma no própriomodelo educacional do País, como um todo.

30 HESSE, Konrad. (1991: 20-23).31 A questão da perda de efetividade do modelo jurídico em vigência, porém, atrai outros comentários igualmente relevantes. Comentando

a perda da própria representatividade do modelo, GARCIA, Maria, em sua obra Desobediência civil, direito fundamental, (1993:98),lembra da questão inicial fundamental : “Por que obedecer ?”, já formulada por Max Weber, e prossegue afirmando que a “obrigaçãojurídico-política está em cheque pela crise vivida pelo Direito contemporâneo, traduzida pela perda de confiança na soluções normativas(...) onde não há legitimidade, não há autoridade - apenas a força aparece como sinônimo de violência, especialmente quando se tem emvista uma ordem simplesmente imposta ou o prevalecimento da vontade dos mais fortes - ou, apenas, a legalidade”; A interpretação dessemesmo modelo de direito, francamente inspirado em Hans Kelsen, em que se tenta expurgar todo o tipo de variação ou avaliação extranorma (ética, moral, aspectos sociais), é igualmente criticada. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos, autora de interessante obraintitulada Violência simbólica e poder jurídico, (1984 : 130), buscando comprovar seu argumento de que o exercício do direito modernofoi transformado em algo fetichista e ritualizado - opinião que obteria a concordância de Niklas Luhmann com toda a certeza – acidamenteafirma que na ótica dos juristas, a sociedade não é gentil nem maldosa, porque a famosa ‘vontade do legislador’, tão decantada nos manuaise tratados discursivos, não tem, estritamente, nenhum caráter. Para ele, uma vez que os juristas-glosadores não conseguem trabalhar comos novos instrumentos das ciências sociais, o direito (texto) deve permanecer inacessível, incompreendido pela sociedade, instrumental,voltado para a manutenção da ordem social, seja ela qual for, tenha ela o caráter ideológico que tiver.O Direito não mente jamais...Vale dizer:o direito existe para obscurecer a verdade social, deixando que ela jogue a ‘ficção do bom poder’”; Encerrando, temos um outro estudiosocomentando ter sido “o grande equívoco do liberalismo político o de não perceber que a própria sobrevivência do modo capitalista deprodução passou a exigir um processo decisório mais ágil, flexível e abrangente, incapaz de ser efetivamente controlado por modelosjurídicos rígidos e fechados”, FARIA (1999:124).

Claro que o objeto desse estudo voltou-se àquestão dos princípios democráticos na constituiçãomas, imaginar que isso possa ser um fim em si mesmoseria, na melhor das hipóteses, uma inegável temeridade.A constituição ou as constituições, instrumentossacramentadores ou ao menos repositórios formais doque os povos desejam de forma seminal para si própriosem termos de auto-condução, se insere num contextomaior, num contexto que passa pela análise maismoderna do Estado Democrático Liberal e o próprioquestionamento que se possa fazer sobre a dogmáticajurídica que lhe dá sustentação e deveria lhe dar tambémefetividade na aplicação de seus princípios básicos.

Há, portanto, todo um modelo que passa, nomínimo, por uma transição profunda. A dogmáticajurídica liberal e o sistema de direito positivista, assim,mostram amplos e inegáveis sinais de fadiga, sinais essesque, como o próprio Estado Liberal, dificilmente podemser revertidos nessa tendência de baixa efetividade crescente.

A descrença da população no Estado, através deseu Poder Judiciário, e atores correlatos como oMinistério Público, os advogados, as ONG’s do setor,advinda de uma resposta cuja efetividade é frustrante ea conseqüente legitimidade praticamente nenhuma,colaboram para tornar o cenário aqui em exposição,especialmente no que toca à efetividade dos princípiosdemocráticos, tanto mais caótico, abrangendo toda aestrutura do estado democrático de direito e, assim,também o papel do direito e de sua aplicação como formade garantir e prestigiar abrangentemente o arcabouçodos chamados princípios democráticos que, ao menosem tese, devem lhe informar a atuação.31

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Como grande matéria de fundo de todo essecenário, portanto, está em cheque o próprio EstadoDemocrático Liberal e o modo capitalista de produçãoque o acompanha. Sendo aspecto de muito maiordificuldade modificativa, haja vista que itens inerentes àsua própria existência teriam que ser alterados ou, nomínimo, profundamente questionados, o que lhealteraria de forma marcante a própria existência.

A democracia, que atingiu no século XX e agoramantém no século XXI, um status de intocabilidadeenquanto componente do Estado e via única para alcanceda felicidade humana – e até mesmo como elementoindispensável do Estado de Direito, a ponto de haver comuma linha lógica: Liberalismo Econômico/SegurançaJurídica/Democracia – já principia a encontrar fortescríticas e poderosos anteparos doutrinários.

Na verdade, a idéia de Democracia como grandemotor da felicidade humana já não se sustenta ou, pelomenos, sofre sérias restrições.32

Eric Hobsbawn, renomado professor de históriaeconômica e social da Universidade de Londres, numtrabalho extremamente impactante e bastante direto,intitulado “A Falência da Democracia”, afirma que “hojeem dia as autoridades públicas se vêem constantementeobrigadas a tomar decisões não apenas políticas mastambém técnicas, sobre interesses comuns; nessa área, ovoto democrático não adianta como guia”.33 Prossegueainda o professor em foco, no mesmo trabalho:

“Independentemente de quais fossem asperspectivas antes dos terremotos econômicos de 1997-98, hoje está claro que a utopia de um mercado globale sem Estado, baseado no ‘laissez-faire’, não vai seconcretizar. A maior parte da população do mundo, ecertamente aquela que vive sob regimes democráticosliberais merecedores do nome, vai continuar a viverem Estados operacionalmente eficazes, mesmo queem algumas regiões desafortunadas o poder do Estadoe a administração tenham virtualmente se desintegrado.Logo, a política vai continuar a existir. As eleiçõesdemocráticas, também. Resumindo: vamos enfrentar

os problemas do século 21 com um conjunto demecanismos políticos gravemente inadequado paralidar com eles”.

A profunda pressão que os grupos econômicosexercem sobre o Estado num ambiente globalizado,numa forma e intensidade jamais observada e, aindamais, verificando-se que tal situação não mostra meiosde modificação negociada, ou seja, com utilização dosmeios disponibilizados por esse mesmo Estado Liberal,chamado de Estado de Direito nessas ocasiões, sugereou nos conduz a uma situação crítica em que a rupturaé uma hipótese extremamente palpável, restando saberde que tipo esta poderá ser, uma vez que até mesmo acisão do modelo vigente poderá se dar em termos, formase modos inéditos.

Há que se ser, ainda mais, que nas sociedades dealto grau de complexidade e fragmentação, como as queatualmente proliferam, onde a representatividade é sempremais frágil, haja vista a dificuldade no estabelecimento deconsenso sobre diversos temas (aumentam as expectativase, simultaneamente, aumentam as frustrações),comportamentos politizados em âmbitos mais restritos– como identificado por Pateman, no texto aqui citado –parecem ganhar ainda mais relevância e sentido, nosentido de dar nova vida às práticas essenciais dademocracia.

Aliás, o tema frustração ou, ainda melhor,frustração como fenômeno social, tão celebrado na obrade Herbert Marcuse e na utilização dela pelos movimentosditos revolucionários de maio de 68, por exemplo, temmuito a ver com a aplicação eficaz da Constituição Federal.

Talvez, e é mesmo um mero talvez, uma constituiçãode fato popular, um texto constitucional emanado e defato aplicado como algo oriundo do povo, possa revertero clima pessimista de fim de século que hoje domina aEuropa, levando um grande estudioso da política e, maisdo que isso, das relações poder-sociedade, a afirmar que:

“a contradição entre o crescimento dasquantidades produzidas e a diminuição da qualidade da

32 “A democracia liberal demonstrou, ao longo do tempo, que pode ser praticamente inaplicável a certos casos. Em alguns paísesafricanos, por exemplo, a ausência de um ambiente democrático por um período de tempo razoável, transforma sua potencialinserção em algo arriscado. Uma simples eleição torna-se algo temerário, com possibilidades de convulsionamento socialextremamente palpáveis. Nesses caso, um déspota esclarecido pode gerar efeitos bem mais interessantes e desejáveis”, KAPLAN,Robert D. (2000:57). Poderíamos ainda acrescentar que o relativo encanto proporcionado pela Democracia Liberal durante anos noâmago dos países ocidentais capitalistas, especialmente seu alegado poder curativo sobre sociedades imersas em regimes totalitáriosou tirânicos, está sendo largamente contestado e isso advém, em grande parte, dos próprios resultados da aplicação desse sistemaou ambiente político na história recente de alguns países, notadamente aqueles em desenvolvimento, cujos resultados, ante essainserção da democracia, ou são pífios, ou são até desastrosos.

33 Folha de São Paulo, Caderno Mais, 09/09/2001.

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vida tende a se tornar o fenômeno mais importante dassociedades ocidentais, ameaçando provocar uma crisemuito mais grave que a dos anos 60 e (...) mesmo queexistam algumas poucas vitórias (...) tais vitórias isoladasestão imersas num oceano de fracassos cotidianos”.34

Algo, contudo, parece ser certo: o modelo doEstado Liberal e os princípios democráticos por eledefendidos e incensados, tal como conhecemos, não devepermanecer, mesmo sob uma roupagem nova que atépode ser vista como o próprio Neoliberalismo.35

A dúvida aqui é se, uma vez mais e como jáocorrido na história em outros tempos, esse modeloconseguirá modificar-se sem perder seus valoresessenciais, bons ou não, projeto que sem dúvida está emcurso com a globalização mas, cujos desdobramentossão ainda desconhecidos em sua totalidade. Não há hojea clareza existente no passado sobre as possibilidadesde cada ator social, daí porque são nebulosos os desdo-bramentos, como aqui afirmado.

34 DUVERGER, Maurice (1975:230-232).35 “A supremacia do neoliberalismo está sendo questionada, em todo o mundo. São poucos os que ainda acreditam na ‘nova ordem

econômica’, ‘mundo sem fronteiras’, ‘aldeia global’, ‘nova economia’ ou ‘fim da história’. Depois da euforia provocada pela queda domuro de Berlim, desagregação do bloco soviético e transformação do mundo socialista em uma vasta fronteira de expansão docapitalismo, logo muito começaram a dar-se conta de que os ‘impasses’, ‘obstáculos’, ‘perigos’ ou ‘ameaças’ não só continuarampresentes como se revelaram crescentes” IANNI, Otávio, A globalização ameaçada, Jornal Folha de São Paulo, 8 de junho de 2002. “Sea América Latina adotou um modelo único a partir dos anos 90, chamado de neoliberal ou de Consenso de Washington, a crise atualleva à inescapável tentação de concluir que o modelo fracassou”, Folha de São Paulo, 23 de junho de 2002.

Tal como a dogmática católica-cristã, que semantém poderosa e atuante mesmo após 2000 anos deluta contra as mais variadas forças dissolventes,transformadoras e modificativas – indo desde questõesinternas até o enfrentamento com novas seitas,atualmente – fica a indagação se conseguirá o EstadoLiberal atuar do mesmo modo, adaptando-se,modificando-se mas, preservando sempre o cerne liberalde um modo de produção capitalista, da defesa dapropriedade, da segurança jurídica formal e daliberdade individual, todos itens componentes, de ummodo ou outro, dos princípios democráticos modernos.

Hoje se mostra como mero exercício de futuro-logia tentar definir ou mesmo asseverar que elementoscomporão a sociedade humana desenvolvida futura, jáque nem sabemos se nossos valores e elementos éticos,morais, religiosos, políticos, sociais, ambientais, cultu-rais e até mesmo afetivos, serão preservados nalgummodelo ainda a ser nascido ou, por outro lado, se terãoa validade que têm hoje.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PODER CAUTELARGENÉRICO JURISDICCIONAL

Eduardo M. Martinez AlvarezVicerrector Acadêmico de la Universidad del Museo Social Argentino.

Professor Titular de Derecho Procesal – Parte General y Civil – Comercial ySeminario I del Doctorado em Derecho y Ciencias Sociales (UMSA).

Juez de la Câmara Nacional de Apelaciones em lo Civil.

Never as in the boarding of the subject of the “generalpower of jurisdictional caution”, it is perceived with suchclearness the instrumental nature of the judicialproceedings and the reciprocal interdependencebetween this and the substantial law, feeling - for thisreason - the intimate entailment of this with the ritual.It’s not difficult to notice - then - that the species ofprocedural custody is subordinated to the support formalpetition that is a while given demands the fund right.Such answer, by the jurisdiction, must be effective,temporary and the most possible extensive. Theprinciple Chiovendiano does not have to forget thatcharacterizes the effective custody, such as it providesto the titleholder of a substantial law, the possibility toenjoy the effects that make sure to him in the materiallegal plane. This is the same reason of the existenceand effectiveness of the civil jurisdictional custody.At the exibition of reasons of the most new law ofspanish civil judgement (1/2000, January 7th, 2000), itmentions with emphasis the art. 24 of the SpanishConstitution that confers the right to get effectivecustody of the judges and courts in the exercise of therights and legitimate interests, without, in no case,defenselessness can take place like place. Like in theart. 15 of the province of Buenos Aires Constitution thatcontemplates the seguring of the continuous andeffective judicial custody. It is also searches thisobjective in the art. 8 interpolated proposition 1st of thepact of the San José of Costa Rica and 2 nd interpolatedproposition 2 and 3 of the pact civil and political rightssubscribed in New York in 1966 which is operative inour law according to the rule in art. 75 in interpolatedproposition 22 of the National Constitution.

KEYWORDS: general power of jurisdictional caution,judicial procedings, national constitution.

R E S U M O A B S T R A C T

Nunca como en el abordaje del tema del “poder generalde cautela jurisdiccional”, se percibe com tal nitidez lanaturaleza instrumental del derecho procesal y de larecíproca interdependencia entre este y el derechosustancial, palpándose – por dicha razón – la íntimavinculación del último com el ritual. No resulta difíciladvertir – entonces – que la especie de tutela procesalse encuentra subordinada al requerimiento deprotección que en un momento dado exige el derechode fondo. Tal respuesta, por parte de la jurisdicción,debe ser eficaz, temporánea y lo mas amplia posible.No debe olvidarse el principio chiovendiano quecaracteriza la tutela efectiva, como la que proporciona,al titular de un derecho sustancial, la posibilidad degozar de los efectos que se le aseguran en el planojurídico material. Esta es la razón misma de la existenciay efectividad de la tutela jurisdiccional civil.Em la exposición de motivos de la novísima ley deenjuiciamiento civil de Espana (1/2000 del 7 de enerode 2000), se cita con énfasis al art. 24 de laConstitución española, que confiere el derecho a obtenerla tutela efectiva de los jueces y tribunales en el ejerciciode los derechos e intereses legítimos, sin que, enningún caso, pueda producirse indefensión. Al igual queen el art. 15 de la Constitución de la Provincia de BuenosAires que contempla el aseguramiento de la tutelajudicial continua y efectiva. Objetivo que tambiénprocuran los artículos 8 inciso 1º del Pacto del SanJosé de Costa Rica y 2º incisos 2 y 3 del Pacto deDerechos Civiles y Políticos suscripto em Nueva Yorken 1966, operativos en nuestro derecho según lodispuesto en el artículo 75 inciso 22 de la ConstituciónNacional.

PALABRAS-LLAVE: poder general de cautelajurisdiccional, derecho procesal, Constituición Nacional.

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1 – FUNDAMENTOResulta indiscutida la protestad del juez para

pronunciarse positivamente em peticiones de medidasanticipatorias de mérito. Para ello debe tratarse desupuestro de urgencia indudable y siempre que el órganojurisdiccional se persuada que, de no hacerlo, se seguiriaum perjuicio irreparable, conceptuado este como “laimposibilitad de obtener el retorno o devolución de loque desaparece para siempre”.1

Y como acertadamente sostiene Barbosa Moreira,se reconoce pacificamente en doctrina que esa potestaddel órgano jurisdiccional se traduce: “... en la licitud dedeterminar, cuando concurren los presupuestosfundamentales de esse tipo de tutela, las medidasprovisorias adecuadas ‘in concreto’ para la protecciónde derechos a favor de cuya existencia militen seriosindicios, para cuya salvaguarda se revele insuficiente oinocua, la más de la veces em razón de la inevitabledemora, la tutela cognitiva o ejecutiva. Intuitivas lasrazones de semejante entendimiento, en nuestros diasprácticamente incontrastado: la extrema variedad delas circunstancias que rodean las hipótesis ocurrentesen la vida cotidiana torna absurda la exigencia, quepretendiese hacer el legislador, de abarcar, emdiscriminación exhaustiva, todas las posiblesprovidencias capaces de atender, caso por caso, laspeculiariedades con que se enfrenta el juez”.2

Siguiendo ese orden de ideas – como también lohacen los artículos 938 de la Ordenanza Procesal CivilAlemana (ZPO), 399 del Código Procesal Civil Portuguêsde 1967, 700 del Código de Procedimientos Civil Italiano,736 del Código Procesal de Grecia, 530 del Código ProcesalCivil y Mercantil guatemalteco, 1428 de la anterior Ley deEnjuiciamiento Civil española y 5 y 70 de la nueva, 798 del“Código de Processo Civil” de Brasil – nuestro actualordenamiento procesal también contempla el podercautelar genérico jurisdiccional em su artículo 232,correspondiente a las medidas cautelares genéricas.

Veamos el tratamiento del tema en las diversaslegislaciones.

2 – DERECHO COMPARADOEn el derecho extranjero se verifica la existencia de

dos sistemas. En primer lugar, aquellos ordenamientos

1 MORELLO, A. M. y VALLEFIN C. A. El Amparo. Editorial Librería Editora Platense. p. 32-33.2 BARBOSA MOREIRA, J. C. Poder cautelar genérico del juez. Continencia y litispendencia, en Temas de Derecho Procesal, p. 141 y ss.

São Paulo, Saraiva, 1988.3 DOS SANTOS BEDAQUE. Tutela Cautelar ..., p. 37 y sus citas. São Paulo, Malheiro, 1998.4 ROSENBERG. Tratado de Derecho Procesal Civil, 1995, T° III, p. 283.

que contemplan el “poder cautelar general del juez” y losrestantes, que regulan las “medidas cautelares típicas”.

En el primer grupo, se encuentran el derechoanglosajón y el alemán.

El derecho francês también admite el poder generalde cautela, no obstante la regulación que poseen médioscautelares específicos (“ordonnances sur requête” y las“refere-provision”. art. 809 e “incidental”, art. 771). El“refere provision”, configura la típica anticipación de losefectos de la sentencia de mérito.

En el anglosajón, se observa la existencia de unenorme poder discrecional de los jueces, natural en unsistema de creación y de derecho por el Poder Judicial.Cualquier tentativa de obstaculizarlo se evita con el“contempt of court” que reprime actos que representenimpedimentos a la correcta actuación de la funciónjurisdiccional.

En Bélgica, el sistema de tutela es concedido antes deiniciado el proceso de conocimiento (Código Judicial, art.584) y ocurre igual con la medida incidental (art. 19).

El derecho suizo está compuesto por 26 códigos,correspondientes al número de cantones. En principio,todos reglamentan el poder general de cautela haciendoreferencia a las medidas conservatorias y anticipatorias.

En el derecho austríaco, el carácter genérico es aúnmayor, lo que posibilita al juez adaptar las medidas a lasnecesidades del caso concreto. Es aplicable a cualquiersituación de derecho sustancial y cabe tanto em la relaciónde la tutela de conocimiento como em la ejecutiva.3

A continuación, expondremos la cuestión emalgunos países em particular.

2.1 AlemaniaAdviértese claramente la inserción del poder general

de cautela en la ZPO alemana, cuando su parágrafo 938norma en lo pertinente: “El Tribunal determinará, a suarbitrio, las medidas que estime necesárias para el objetode que se trate...” (nach freiem Ermessen).

Se observa así el amplio margen de dicrecionalidadcom que cuenta el órgano jurisdiccional para el dictadode medidas provisionales, tanto que Rosenberg afirmabaque “El tribunal no está sujeto en esto a limitaciones,pues resuelve de acuerdo con su libre arbitrio”.4

Sin perjuicio de la existencia de los “EinstweiligeVerfugungen”, destinados a preservar el derecho de laparte, amenazado por los actos practicados por la obra.

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2.2 PortugalEl Código Procesal português de 1967, con similar

criterio en su artículo 399, reza: “Quando alguém mostrefundado receio de que outrem, antes de a ação serproposta ou na pendência dela, cause lesão grave edificilmente reparável ao seu direito, pode requerer, seao caso não convier nenhum dos procedimentosregulados neste capítulo, as providências adecuadas àsituação, nomeadamente a autorização para a práticade determinados atos, a intimação para que o réu seabstenha de certa conduta, ou a entrega dos bens móveisou imóveis, que constituem objeto da ação, a umterceiro, seu fiel depositário”.

2.3 ItaliaPor su lado, la anteriormente citada norma del

procedimiento italiano puede ser considerada comoseñera em la regulación del tema en estudio, cuando allegislar en la sección IV correspondiente a las“providencias de urgencia”, em su artículo 700 disponde:“Fuori dei casi regolati nelle precedenti sezioni di questocapo, chi há fundato motivo di temere Che durante iltempo ocorrente per far valere il suo diritto in viaordinaria, questo sia minacciato da um pregiudizioimminente e irreparabile, puó chiedere con ricorso algiudice i provvedimenti d’urgenza che appaiono,secondo le circonstanze, piú idonei ad assicurareprovvisoriamente gli effetti della decisione sul merito”.

Calvosa da cuenta de ello también al sostener que:“Il provvedimento cautelare ha, di larga massima, uncontenuto che vorrei definire atípico, perchê debeadeguarsi allá situazione sostanziale cautelanda, de sorteque l’azione cautelare, pur concepita in senso unitario,appare mutevole e diffilmente riconducibile ad unitá oa categoría unitaria, proprio per il diverso attegiarsidelle situazioni cautelande, e quindi delle situazionicautelanti, allá costituzione delle quali l’azione stessa ecoordinata”.5

2.4 EspañaA su vez, la nueva Ley de Enjuiciamiento Civil

española Nº 1 del 2000, vigente desde el 1/1/2001, en suartículo 5, posibilita a “... los tribunales – que seancompetentes y frente a los sujetos a quienes haya deafectar la decisión pretendida – la adopción de medidas

5 CALVOSA. La Tutela Cautelari. Turim, 1963, p. 317-318 (citado por Barbosa Moreira, op. nota que antecede).

cautelares y cualquier outra clase de tutela que esteexpresamente prevista por la ley”, principio que seratifica em la disposición de su art. 70, cuando a instanciade parte, lês posibilita “adoptar las medidas urgentesem los asuntos no repartidos cuando, de no hacerlo,pudiera quebrantarse algún derecho o producirse algúnperjuicio grave o irreparable”. Resulta elogiable lasanción de estas nuevas disposiciones que otorgan fuerteratificación al poder general de cautela. Cabe recordarque la anterior Ley de Enjuiciamiento Civil posibilitabaal juez la adopción de medidas que, según lascircunstancias del caso, fuesen necesarias para asegurarla efectividad de la sentencia que en el juicio recayere, ainstancia del demandante y bajo la responsabilidad deeste (art. 1428).

2.5 BrasilEn nuestro continente, el “Código de Processo

Civil” brasileiro en su art. 798 autoriza al juez a“determinar as medidas provisórias que julgaradequadas quando houver fundado receio de que umaparte, antes do julgamento da lide, cause ao direito daoutra lesão grave e de difícil reparação”, tras dejar asalvo los procedimientos cautelares específicos, que esteCódigo regula no Capítulo II deste Livro”.

De esta forma, la legislación brasileira posibilitael empleo de remedios similares a los contemplados porlos “Einstweilige verfugungen” austríacos y alemanes,“contempt of court” de los ingleses, “refere de urgence”de los franceses, o los “provvedimenti d’urgence” de lositalianos.

2.6 UruguayPor su parte, Uruguay, tomado del art. 280 del

magnífico Proyecto de Código tipo Procesal Civil paraIberoamérica de 1988 (autores: A. Gelsi Bidart, L. Torelloy E. Véscovi), en su artículo 317.1 del Código Generaldel Proceso de 1988, en sentido análogo dispone: “Fuerade los casos regulados en los artículos anteriores, podráel tribunal adoptar las medidas provisionales que juzgueadecuadas o anticipar la realización de determinadasdiligencias, para evitar que se cause a la parte, antes dela sentencia, una lesión grave o de difícil reparación opara asegurar provisionalmente la decisión sobre elfondo”. Como se advierte, la semejanza de la norma conla de la disposición brasilera es evidente.

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2.7 PerúPeru, en el art. 632 de su Código Procesal, con

énfasis formal contempla sin hesitar la potestad de dictarmedidas innovativas al legislar con carácter excepcionaly con este alcance: “Ante la inminencia de un perjuicioirreparable, puede el juez dictar medidas destinadas areponer un estado de hecho cuya alteración vaya a ser oes el sustento de la demanda. Esta medida es excepcionalpor lo que sólo se concederá cuando no resulte aplicableoutra prevista por la ley”.

2.8 República ArgentinaEntre nosotros, el art. 232 del rito civil y comercial

nacional faculta a los magistrados a decretar medidascautelares genéricas con el propósito de evitar pejuiciosinminentes e irreparables: “Fuera de los casos previstosen los artículos precedentes, quien tuviere fundadomotivo para temer que durante el tiempo anterior alreconocimiento judicial de su derecho, este pudieresufrir un perjuicio inminente o irreparable podrásolicitar las medidas urgentes que, según lascircunstancias, fueren más, aptas para asegurarprovisionalmente el cumplimiento de la sentencia”.

Esta norma – por su argumento – es utilizadafrecuentemente para acceder a decisiones anticipadas demérito (no cautelares) a falta de una específica a tal efecto,como la “tutela anticipatoria” legislada por el art. 231 delCódigo Procesal Civil y Comercial de la Pcia de La Pampa.

Se justifica en doctrina y jurisprudencia, que lasmedidas enumeradas no constituyen un límite a laposibilidad de tomar otras que pueden articularse através de la norma analizada.6

6 FALCON. Comentario al Código Procesal ..., T° I, p. 348 y sus citas. Abeledo-Perrot, 1998.

2.9 GuatemalaGuatemala, por su lado, también considera el poder

general de cautela en el artículo 530 del Código ProcesalCivil y Mercantil, con un contenido similar a los analizadosprecedentemente. “Providencias de urgencia. Fuera de loscasos regulados en los artículos anteriores y en otrasdisposiciones de este Código sobre medidas cautelares,quien tenga fundado motivo para temer que durante eltiempo necesario para hacer valer su derecho a través delos procesos instituidos en este Código, se halle tal derechoamenazado por un perjuicio inminente e irreparable,puede pedir por escrito al juez las providencias que, segúnlas circunstancias, parezcan mas idóneas para asegurarprovisionalmente los efectos de la decisión sobre el fondo”.

3 – ConclusionesEl hecho de que, tanto la doctrina como la

jurisprudencia, acepten la existencia de un poder generalde cautela e el juez, viabiliza – en circunstanciasexcepcionales, en las cuales medien razones de urgenciay cuasi certeza del derecho pretendido entre otras – elposible dictado de “proveídos interinales de mérito”.En las actuales circunstancias, no resulta justificable laausencia, a nivel nacional, de normas como la referidaen el orden provincial pampeano o sus similares delderecho comparado. Máxime la existencia de diversosanteproyectos que la regulan aceptablemente.

La universalmente anhelada “tutela judicialefectiva”, norte del proceso moderno, debe serprocurada en resguardo del justiciable.

Nunca de mejor aplicación como en el tema, larecordada frase del ilustre brasilero Rui Barbosa:“Justicia atrasada no es justicia, sino injusticia calificaday manifiesta”.