Direito Penal i

211
DIREITO PENAL I Allan Ricardo I- NOÇÕES INTRODUTÓRIAS ___________________ O fato social é sempre o ponto de partida na formação da noção do Direito. O Direito surge das necessidades fundamentais das sociedades humanas, que são reguladas por ele como condição essencial à sua própria sobrevivência. Neste passo, o fato social que se mostra contrário à norma de Direito forja o ilícito jurídico, cuja forma mais séria seria o ilícito penal, que atenta contra os bens mais caros da vida social. Quando as infrações aos direitos e interesses do indivíduo assumem determinadas proporções, e os demais meios de controle social mostram-se insuficientes ou ineficazes para harmonizar o convívio social, surge o Direito Penal com sua natureza peculiar de meio de controle social formalizado, procurando resolver conflitos e suturando rupturas produzidas pelas ações anti-sociais dos homens. Daí a conclusão de Durkhein de que o delito não ocorre somente na maioria das sociedades de uma ou outra espécie, senão em todas elas. A criminalidade é um fenômeno social normal. Em síntese, o fato social contrário à norma de Direito, do qual o delito é a sua forma mais grave, compromete a sobrevivência da sociedade, sendo o Direito Penal meio de que o Estado se utiliza para reprimir, quando não evitar, esta forma mais grave de condutas anti-sociais. II- CONCEITO DE DIREITO PENAL ___________________ Pode-se definir Direito Penal como o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a

description

Resumo de Direito Penal.

Transcript of Direito Penal i

Page 1: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- NOÇÕES INTRODUTÓRIAS___________________

O fato social é sempre o ponto de partida na formação da noção do Direito. O Direito surge das necessidades fundamentais das sociedades humanas, que são reguladas por ele como condição essencial à sua própria sobrevivência.

Neste passo, o fato social que se mostra contrário à norma de Direito forja o ilícito jurídico, cuja forma mais séria seria o ilícito penal, que atenta contra os bens mais caros da vida social.

Quando as infrações aos direitos e interesses do indivíduo assumem determinadas proporções, e os demais meios de controle social mostram-se insuficientes ou ineficazes para harmonizar o convívio social, surge o Direito Penal com sua natureza peculiar de meio de controle social formalizado, procurando resolver conflitos e suturando rupturas produzidas pelas ações anti-sociais dos homens.

Daí a conclusão de Durkhein de que o delito não ocorre somente na maioria das sociedades de uma ou outra espécie, senão em todas elas. A criminalidade é um fenômeno social normal.

Em síntese, o fato social contrário à norma de Direito, do qual o delito é a sua forma mais grave, compromete a sobrevivência da sociedade, sendo o Direito Penal meio de que o Estado se utiliza para reprimir, quando não evitar, esta forma mais grave de condutas anti-sociais.

II- CONCEITO DE DIREITO PENAL___________________

Pode-se definir Direito Penal como o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em conseqüência, as respectivas sanções.

O professor José Frederico Marques, citado em várias obras, define o Direito Penal como o conjunto de normas que ligam ao crime, como fato, a pena como conseqüência, e disciplinam também as relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabilidade das medidas de segurança e a tutela do direito de liberdade em face do poder de punir do Estado.

Um conceito mais sintético, mais não menos importante, é fornecido pelo professor Cezar Roberto Bitencourt, para que o Direito Penal é um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de segurança.

Page 2: Direito Penal i

III- CARACTERÍSTICAS DO DIREITO PENAL___________________

- PREVENTIVO ou MOTIVADOR: é uma das principais características do moderno direito penal. Antes de punir o infrator da ordem jurídico-penal, procura-se motivá-lo para que dela não se afaste, estabelecendo normas proibitivas e cominando as sanções respectivas, visando evitar a prática do delito.

- NORMATIVO: trata-se o direito penal de ciência normativa, posto ter por finalidade o estudo da norma, do direito positivado. O direito penal tem como objeto de estudo os preceitos legais, o “dever ser”, bem como as conseqüências jurídicas do não-cumprimento dos preceitos normativos.

- VALORATIVO: o direito, de um modo geral, não empresta às normas o mesmo valor, porém, esse varia, de conformidade com o fato que lhe dá conteúdo. Desta forma, o direito valoriza as suas normas, que se dispõem em escala hierárquica. Incumbe ao direito penal, em regra, tutelar os valores mais elevados ou preciosos, ou, se quiser, ele atua somente onde há transgressão de valores mais importantes ou fundamentais para a sociedade.

- FINALISTA: porque atua em defesa da sociedade na proteção de bens jurídicos fundamentais, tais como a vida, a incolumidade física e psíquica, a honra, o patrimônio, etc.

- SANCIONADOR: é através da sanção que o direito penal protege outra norma jurídica extrapenal. Assim, por exemplo, o direito civil regula a propriedade, ao passo que o direito penal estabelece sanções àqueles que cometem delitos contra a propriedade alheia. Assim, o direito penal protege a ordem jurídica como um todo.

IV- CARÁTER FRAGMENTÁRIO DO DIREITO PENAL___________________

Caráter fragmentário quer dizer que o Direito Penal só pode intervir quando houver ofensa a bens fundamentais para a subsistência do corpo social. A isso eqüivale dizer que, nem todas as ações que lesionam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, como nem todos os bens jurídicos são protegidos por ele.

O Direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, decorrendo daí o seu caráter fragmentário, uma vez que se ocupa somente de uma parte dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica.

Portanto, o que existe é uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se revela dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e intensidade da ofensa.

Segundo o prof. Munhoz Conde, o caráter fragmentário do Direito Penal se apresenta sob 03 aspectos:

- 1º) defendendo o bem jurídico somente contra ataques de especial gravidade, exigindo determinadas intenções ou tendências, excluindo a punibilidade da prática imprudente de alguns casos;

Page 3: Direito Penal i

- 2º) tipificando somente parte das condutas que outros ramos do Direito consideram antijurídicas;

-3º) deixando de punir, em princípio, ações meramente imorais, como a homossexualidade ou o incesto, por exemplo.

Resumindo, o caráter fragmentário do Direito Penal significa que não se deve sancionar todas as condutas lesivas dos bens jurídicos, mas tão-somente aquelas condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra os bens mais relevantes.

V- CARÁTER SUBSIDIÁRIO DO DIREITO PENAL___________________

Além do caráter fragmentário, o Direito Penal é também subsidiário, ou seja, a norma penal exerce uma função meramente suplementar da proteção jurídica em geral, só valendo a imposição de suas sanções quando os demais ramos do direito não mais se mostrarem eficazes ou hábeis na defesa dos bens jurídicos.

Isso quer dizer que, a intervenção do Direito Penal, no círculo jurídico dos cidadãos só tem sentido, como imperativo de necessidade, isto é, quando a pena se mostrar como o único e último recurso para a proteção do bem jurídico.

Em síntese, o Direito Penal deve ser encarado como a “ultima ratio” (último meio, última razão) da intervenção do Estado para manter a ordem e a paz social. Deflui-se dessa colocação, que o Direito Penal somente deve ser aplicado, ou utilizado, quando os outros meios de pacificação social, de que dispõe o Estado, se mostrarem ineficazes ou insuficientes a alcançar o desiderato pretendido, ou seja, a tranqüilidade, harmonia e segurança da vida em sociedade.

VI- PRINCÍPIOS LIMITADORES DO DIREITO DE PUNIR DO ESTADO___________________

Todos esses princípios, hoje insertos, explícita ou implicitamente, no Texto Constitucional, calcados nas idéias de liberdade e igualdade, apanágios do Iluminismo, têm a função de orientar o legislador ordinário para a adoção de um sistema penal voltado para os direitos humanos, embasado em um direito penal da culpabilidade, um direito mínimo e garantista.

A criação do tipo e a adequação concreta da conduta ao tipo devem operar-se em consonância com os princípios constitucionais do Direito Penal, os quais derivam da dignidade humana que, por sua vez, encontra fundamento no Estado Democrático de Direito.

Assim, é imperativo no Estado Democrático de Direito uma investigação ontológica do tipo incriminador. Crime não é apenas aquilo que o legislador diz sê-lo (conceito formal), uma vez que nenhuma conduta pode, materialmente, ser considerada criminosa se, de algum modo, não colocar em perigo valores fundamentais da sociedade.

Page 4: Direito Penal i

- PRINCÍPIO DA LEGALIDADE OU DA RESERVA LEGAL: tal princípio constitui uma efetiva limitação ao poder de punir do Estado. Em síntese, pode-se dizer que, por tal princípio, a elaboração de normas penais incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicadas sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definido-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente. A lei deve definir com precisão e de forma clara a conduta proibida e sua sanção.

O referido princípio possui assento constitucional, conforme se extrai do artigo 5º, XXXIX, da CF. Não obstante, a mesma regra vem disposta no art. 1º do CP – “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.”

Dada a importância do princípio em questão, a ele se retornará quando do estudo sobre as fontes do direito.

- PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL: quando se depara com um conflito de leis penais no tempo, aplica-se o princípio em questão, que possui, da mesma forma que o anterior, assento constitucional, conforme art. 5º, XL, da CP, regra essa que também vem esculpida no art. 2º, parágrafo único do CP.

Destina-se tal princípio a transmitir segurança jurídica e liberdade para a sociedade. Desde que uma lei entra em vigor até que cesse a sua vigência rege todos os atos abrangidos pela sua destinação. Entre estes dois limites – entrada em vigor e cessação de sua vigência – situa-se a sua eficácia. Não alcança assim, os fatos ocorridos antes ou depois do dois limites extremos: não retroage e nem tem ultra-atividade.

A isso eqüivale dizer que se adota em direito penal o princípio “tempus regit actum”, ou seja o tempo rege o ato.

Entretanto, a despeito do afirmado, tal princípio da irretroatividade somente se aplica para o caso de leis mais severas. Os dispositivos, constitucional e legal, acima citados, dão conta de um novo princípio: o da retroatividade da lei penal mais benigna. Assim, a lei penal nova que for mais favorável ao réu sempre retroage.

Contudo, este princípio será enfrentado com maior vagar quando se trabalhar com a aplicação da lei penal no tempo.

- PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA: também conhecido como “ultima ratio”, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a criminalização é inadequada e não recomendável.

Por isso, o direito penal deve ser a “ultima ratio”, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.

É a isso, como já visto, chama-se de caráter subsidiário do direito penal, somente se justificando a sua intervenção quando fracassam as demais formas protetoras do bem jurídico previstas em outros ramos do direito.

Em síntese, antes de se recorrer ao direito penal deve-se esgotar todos os meios extrapenais de controle social.

Portanto, pode-se afirmar que o princípio em questão estará sendo respeitado quando forem observados o caráter fragmentário (escolha de determinados

Page 5: Direito Penal i

bens sobre os quais o Estado deita a sua tutela penal) e o caráter subsidiário (utilização do direito penal em último caso para a pacificação social).

- PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE: segundo o referido princípio, não existe crime sem culpabilidade. O direito penal primitivo caracterizou-se pela adoção da responsabilidade penal objetiva, isto é, simples produção do resultado. Todavia, tal concepção está praticamente erradicada do moderno direito penal, vigindo, em verdade o brocardo latino “nullum crimen sine culpa”, ou seja, modernamente adota-se uma responsabilidade penal subjetiva.

A culpabilidade não é um fenômeno isolado, individual, afetando somente o autor do delito, mas é um fenômeno social, ou seja, não é uma qualidade da ação, senão uma característica que se lhe atribui, para poder ser imputada a alguém como seu autor e fazê-lo responder por ela.

Dessa forma não existe uma culpabilidade em si, individualmente concebida, mas uma culpabilidade em relação aos demais membros da sociedade.

Em direito penal, a culpabilidade assume um triplo sentido que precisam ser conhecidos e delimitados:

1º- Culpabilidade como fundamento da pena: refere-se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato típico e antijurídico, isto é, proibido por lei. Para isso exige-se uma série de requisitos: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e inexigibilidade de conduta diversa, que constituem os elementos positivos específicos do conceito dogmático de culpabilidade. A ausência de qualquer desses elementos impede a aplicação de uma sanção penal.

2º- Culpabilidade como elemento de determinação ou medição da pena: nessa acepção, a culpabilidade funciona como limite da pena, impedindo que a pena seja imposta aquém ou além da medida prevista pela própria idéia de culpabilidade, aliada a outros critério, como a importância do bem jurídico, fins preventivos, dano produzido, etc.

3º- Culpabilidade como conceito contrário à responsabilidade objetiva: nessa concepção, o princípio da culpabilidade impede a atribuição de responsabilidade objetiva. Ninguém pode responder por um resultado absolutamente imprevisível, se não houver obrado com dolo ou, pelo menos, culpa.

Dessas colocações podem ser extraídas, a princípio, três conseqüências materiais de relevância: a) não responsabilidade penal objetiva pelo simples resultado; b) a responsabilidade penal é pelo fato e não pelo autor; c) a culpabilidade é a medida da pena.

- PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL: afirma tal princípio que o direito penal somente deve tipificar condutas que tenham uma certa relevância social; caso contrário, não poderiam ser delitos. Assim, existem condutas que por sua “adequação social” não podem ser consideradas criminosas, o que, em outras palavras, significa afirmar que, a despeito do comportamento ser considerado criminoso pela lei, quando não afrontar o sentimento social de justiça (aquilo que a sociedade tem como justo), não pode ser considerado criminoso.

Page 6: Direito Penal i

O tipo penal implica uma seleção de comportamentos e, ao mesmo tempo, uma valoração. Contudo, certos comportamentos em si mesmos típicos carecem de relevância por serem correntes no meio social, pois muitas vezes há um descompasso entre as normas penais incriminadoras e o socialmente permitido, tolerado ou aceito. Por conseguinte, essas condutas aceitas socialmente e consideradas normais não podem sofrer este tipo de valoração negativa realizada pelo tipo penal.

A tipicidade de um comportamento proibido é enriquecida pelo desvalor da ação e pelo desvalor do resultado lesando efetivamente o bem juridicamente protegido, constituindo o que se chama de tipicidade material. Donde se conclui que o comportamento que se amolda a determinada descrição típica formal, porém materialmente irrelevante, adequando-se, em verdade, ao socialmente permitido ou tolerado, não realiza materialmente a descrição típica, portanto, não é crime.

Certo é que, a imprecisão do critério da “adequação social” impede que esse princípio seja aceito pelos maiores penalistas, haja vista a possibilidade de gerar insegurança e excesso de subjetividade na análise material do crime.

Por outro lado, é forçoso se reconhecer que, embora o conceito de adequação social não possa ser aceito com exclusividade, não se deve negar a sua importância como “critério de interpretação”. Todavia, o mesmo jamais deve ser utilizado isoladamente para a exclusão da tipicidade da conduta, senão acompanhado sempre dos demais princípios que informam o direito penal.

- PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA OU DA BAGATELA: segundo tal princípio, o direito penal não deve preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo que não podem ser admitidos tipos incriminadores que descrevam condutas de lesar o bem jurídico. A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. É inconcebível que o legislador tenha imaginado inserir em tipo penal condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o interesse protegido.

Assim, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal.

O que não se pode confundir é delito insignificante ou de bagatela com delitos de menor potencial ofensivo descritos pela Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais). Nesses últimos, a ofensa não pode ser taxada de insignificante, posto que possuem gravidade, ao menos, socialmente perceptível. Estas condutas descritas na citada Lei, embora lesem bens menos importantes se comparados a outros bens como a vida a liberdade sexual, são social e penalmente relevantes.

Em síntese, a insignificância da ofensa afasta a tipicidade da conduta. Todavia, esta valoração só pode ser feita através da consideração global da ordem jurídica. Da mesma forma, o princípio em questão somente pode ser analisado no caso concreto, não podendo se aplicado no plano abstrato, ou seja, não se pode afirmar de antemão que determinada conduta é penalmente irrelevante ou insignificante, senão que deve ser feita a análise da relevância ou não na situação fática em que se deu a conduta, atendendo, principalmente, para o grau de intensidade (extensão) da lesão produzida ao bem jurídico penalmente tutelado.

- PRINCÍPIO DA ALTERIDADE OU TRANSCENDENTALIDADE: tal princípio proíbe a incriminação de atitude

Page 7: Direito Penal i

meramente interna, subjetiva do agente e que, por essa razão, revela-se incapaz de lesionar o bem jurídico. O fato típico pressupõe um comportamento que transcenda a esfera individual do autor e seja capaz de atingir o interesse do outro (altero).

Por esta razão, a autolesão não é crime, salvo quando houver intenção de prejudicar terceiros, como na auto-agressão cometida com o fim de fraude ao seguro, em que a instituição seguradora será vítima de estelionato (art. 171, § 2º, CP).

Tal princípio veda, ainda, a incriminação do pensamento ou de condutas moralmente censuráveis, mas incapazes de penetrar na esfera do altero.

O bem jurídico tutelado pela norma, portanto, é o interesse de terceiros, pois seria inconcebível provocar a interveniência criminal repressiva contra alguém que está fazendo apenas mal a si mesmo.

VII- FONTES DO DIREITO PENAL___________________

Juridicamente, fonte é o lugar donde provém a norma de direito. É, pois, aquilo de que se origina.

A fonte remota do direito penal é a consciência do povo em dado momento de seu desenvolvimento histórico, consciência esta onde se fazem sentir as necessidades sociais e aspirações sociais.

VII.1- ESPÉCIES

No direito penal, as fontes distinguem-se em materiais, substanciais ou de produção e formais, de cognição ou conhecimento.

- Fontes Materiais, Substanciais ou de Produção: referem-se à gênese da norma penal, com relação ao órgão encarregado de sua elaboração. Fonte de produção é o Estado, órgão criador do direito penal. No Brasil, o art. 22, I, da CF estabelece que compete à União legislar sobre direito penal. Contudo, deve ser observado, ainda, o disposto no art. 22, parágrafo único, da CF, onde fica estabelecido que uma lei complementar federal poderá autorizar aos Estados-Membros a legislar em matéria penal sobre questões específicas. Trata-se de competência suplementar, que pode ou não lhes ser delegada. Questões específicas significam as matérias relacionadas na lei complementar que tenham interesse meramente local.

- Fontes Formais, de Cognição ou de Conhecimento: referem-se ao modo pelo qual o direito penal se exterioriza. Subdividem-se em :

a) Fonte formal direta ou imediata: a única fonte formal direta do direito penal é a lei. Dada a importância do tema, a ele se voltará em momento oportuno.

b) Fonte formal indireta ou mediata: são os costumes e os princípios gerais do direito.

VIII.2- FONTES FORMAIS INDIRETAS OU MEDIATAS

Page 8: Direito Penal i

a) Costume: é o conjunto de normas de comportamento a que as pessoas obedecem de maneira uniforme e constante, pela convicção de sua obrigatoriedade jurídica. Por obediência uniforme entende-se a prática de atos da mesma espécie. Por constante, entende-se a sua reiteração de forma continuada, por período mais ou menos longo.

Não se confunde, em verdade, costume com hábito. Neste último inexiste a convicção da obrigatoriedade jurídica.

O costume, como fonte formal do direito, possui dois elementos formadores:

- Elemento Objetivo: é a prática constante e uniforme de determinados atos.

- Elemento Subjetivo: é a convicção, o convencimento social da necessidade ou obrigatoriedade jurídica da prática da conduta.

Espécies de Costumes:

- Costume “contra legem”: apresenta-se como a inaplicabilidade da norma jurídica ora em face do desuso da mesma, da inobservância constante e uniforme da lei, ora sob o caráter de fonte criadora de preceitos que ampliem as justificativas e as descriminantes penais. Cumpre esclarece que o art. 2º, § 1º, da LICC (Lei de Introdução ao Código Civil) deixa claro que o costume não pode revogar uma lei. Assim, o desuso de uma norma não pode ser admitido como forma de revogação desta norma.

- Costume “secundum legem”: este traça regras sobre a aplicação da norma penal, consistentes na uniformização de interpretação e aplicação da lei penal.

- Costume “praeter legem”: este, por sua vez, preenche as lacunas e específica o conteúdo da norma. É elemento heterointegrador das normas penais não incriminadoras, quer lhes cobrindo as lacunas, quer lhes especificando o conteúdo e extensão.

Importa, ainda, saber que os costumes jamais poderão criar crimes ou determinar penas, em razão do princípio da legalidade ou da reserva legal. Por mais nocivo que seja um fato ao senso moral da coletividade, será atípico se não estiver definido em lei como crime.

Isto não significa que o costume não possua nenhum valor em matéria penal. Ao contrário, como elemento de interpretação tem grande valia no próprio campo das normas incriminadoras. Em determinadas figuras típicas o legislador inseriu expressões que ensejam a invocação do costume, como elemento exegético (de interpretação). Ex: mulher honesta, ato obsceno, inexperiência, reputação, dignidade, decoro, etc. Palavras que em determinada região são ofensivas à honra subjetiva, por exemplo, não o são em outras regiões. Nota-se, então, o valor do costume como elemento interpretativo, no sentido de determinar a validade cultural, social e ética do termo, apto a delimitar o seu conteúdo.

No que tange às normas penais não incriminadoras, a validade do direito costumeiro (consuetudinário) se mostra claro no tocante às normas penais permissivas, ampliando a extensão das causas excludentes de antijuridicidade ou culpabilidade. Não impede a sua eficácia o princípio da reserva legal. Este significa que não há conduta criminosa sem lei anterior, mas não que inexista causa de exclusão do injusto ou da

Page 9: Direito Penal i

culpabilidade sem lei. Além das causa excludentes previstas no direito positivado, o costume, como fonte secundária ou formal mediata, pode criar outras.

b) Princípios Gerais do Direito: vem disposto no art. 4º, da LICC, pois, nos seguintes termos: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” Tratam-se de princípios que se fundam em premissas éticas extraídas do material legislativo.

O prof. José Frederico Marques, citando Carnelutti, acentua que os PGD’s descansam em premissas éticas que são extraídas, mediante indução, do material legislativo.

É no campo da licitude penal que têm função os princípios gerais de direito, ampliando-a. Em certos casos, a adequação típica do fato praticado pelo agente a uma norma penal incriminadora, que enseja a aplicação da sanção penal, choca-se com a consciência ética do povo. Não obstante haver crime em face da norma, essa conclusão é repelida pelas regras do bem comum. Então, o fato deve ser justificado pelo princípio geral do direito e o agente absolvido. Quem iria, por exemplo, condenar pela prática de lesão corporal leve a mãe que fura a orelha da criança para pôr brincos? No entanto, o fato é típico. A ausência de condenação se alicerça, inclusive, nos princípios gerais de direito.

VIII.3- FORMAS DE PROCEDIMENTO INTERPRETATIVO

Pode interpretar o direito penal segundo alguns procedimentos, a saber:

a) Eqüidade: é a perfeita correspondência jurídica e ética das normas às circunstâncias do caso concreto a que estas se aplicam. Possui duas funções:

- na elaboração da norma, como critério político e ético;

- na interpretação da norma, como princípio de igualdade;

Não é fonte do Direito Penal, servindo como forma de procedimento interpretativo.

b) Doutrina: é o conjunto de estudos, investigações e reflexões teóricas, analisados e sustentados pelos autores e tratadistas, no estudo das leis. São as opiniões e idéias esposadas pelos jurisconsultos ou escritores do Direito, que não se limitam a fazer a exegese (interpretação) do textos legais, mas sistematizam todo o Direito, formulam princípio, propugnam idéias.

Não é fonte do Direito Penal. A “communis opinio doctorum”, por maior que seja a autoridade de que emana, não é mais que a tarefa de interpretação do estudioso.

c) Jurisprudência: constitui-se na repetição constante de decisões no mesmo sentido em casos idênticos. Da mesma forma, não é fonte do Direito Penal. Alguns entendem que a reiteração de decisões no mesmo sentido acaba sendo um costume e este é fonte formal secundária.

Não se pode negar o valor da jurisprudência. Ela se forma do trabalho exegético dos juízes e tribunais, no exercício da função jurisdicional.

Page 10: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- ANALOGIA___________________

O conjunto de leis que compõe a ordem jurídica, por mais diligente e previdente seja o órgão encarregado de sua elaboração, nunca deixará de ser lacunoso. Em razão disso, a LICC, em seu art. 4º, determina que se aplica ao caso legalmente omisso: a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Quando a fonte formal imediata, a lei, convenientemente interpretada, não fornecer a diretriz almejada que possa reger a espécie de fato submetida ao crivo em exame, o exegeta, não podendo deixar a questão sem solução, será levado a desenvolver a atividade determinada pela ordem jurídica, fixando a regra a ser aplicada segundo os processos de integração da lei por ela indicados.

A lei deve reger a espécie; em sua falta, aplicam-se as disposições concernentes aos casos análogos; não as havendo, ver-se-á se o costume tem regra cabível; havendo omissão nos costumes, ela será fornecida pelos princípios gerais de direito.

Essa ordem, na invocação dos processos de auto-integração da lei, não pode ser desprezada pelo intérprete. Assim, havendo uma lei reguladora do caso, não se lhe pode aplicar uma regra posta para caso análogo, ou um princípio geral de direito. Havendo ausência de previsão legislativa, não se lhe pode aplicar um preceito costumeiro, se houver, aplicável ao caso, disposição referente a hipótese análoga.

O emprego no processo de auto-integração não é ilimitado. Esbarra no princípio da reserva legal. Assim, só podem ser aplicados em relação às normas penais não incriminadoras.

A analogia é o primeiro recurso fornecido pela ciência jurídica na solução do problema da auto-integração da norma penal.

Importa saber, por necessário, que a analogia somente tem vez quando existirem lacunas involuntárias da lei, ou seja, onde uma regra legal tenha caráter definitivo não há lugar para a analogia, ou seja, não há possibilidade de sua aplicação contra legem. Isso ocorre porque a analogia pressupõe falha, omissão da lei, não tendo aplicação quando estiver claro no texto legal que a “mens legis” quer excluir de certa regulamentação determinados casos semelhantes. Deflui-se desta colocação que, a proibição do procedimento analógico em matéria penal há que assinalar limites precisos. Recai sobre todas as normas incriminatórias e todas as que (mesmo eximentes) sejam verdadeiramente excepcionais. Quaisquer outras normas do CP são suscetíveis de interpretação analógica.

I- CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA___________________

Consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante. É um princípio jurídico segundo o qual, a lei estabelecida para um determinado fato, a outro se aplica, embora não seja por ela, lei, regulado, dado a

Page 11: Direito Penal i

semelhança em relação ao primeiro regulado. Ex: o art. 128, II, do CP, dispõe que o aborto praticado por médico não é punido “se a gravidez resulta de estupro e o aborto pe precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” Trata-se de causa de exclusão de ilicitude prevista exclusivamente para a hipótese de gravidez decorrente de estupro. No entanto, como não se trata de norma penal incriminadora, mas ao contrário, permissiva “stricto sensu”, é possível, estender o benefício, analogicamente, à gravidez resultante de atentado violento ao pudor.

Quanto à natureza jurídica, a analogia não é fonte formal mediata do direito penal nem meio de interpretação da mesma.

Em verdade, a analogia é, pois, forma de auto-integração da lei para suprir lacunas porventura existentes. Em seu emprego, o intérprete parte da própria lei para elaborar a regra concernente ao caso não previsto pela legislação.

O processo analógico não cria direito novo, mas descobre o já existente e integra a norma estabelecida, o princípio fundamental, comum ao caso previsto pelo legislador.

Observe-se, portanto que no uso da analogia não há interpretação da lei, mas sim, aplicação da mesma, ou seja, aplicação ao caso a ser decidido de norma ou regra que regula hipótese semelhante em matéria análoga; pela regulamentação de caso análogo, infere-se que o legislador comporta-se-ia da mesma maneira, caso tivesse previsto o caso que na norma não se enquadra.

III- FUNDAMENTO DA ANALOGIA___________________

Considerada a analogia, numa noção geral, como a aplicação de uma regra de direito reguladora de determinadas relações a outras relações que têm afinidade com aquelas, mas para as quais não foi estabelecida, pode-se dizer que este processo tem por fundamento a identidade da “ratio legis”, com inspiração no princípio – “ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio” –, ou seja, onde existe a mesma razão de decidir, é de aplicar-se o mesmo dispositivo de lei.

Isso quer dizer que, em razão de um imperativo de igualdade, as mesmas situações de fato devem comportar as mesmas soluções jurídicas, levando isso se reconhecer que tal processo traduz uma harmonia íntima do sistema, ligando entre si as relações de direito, com o que realiza a idéia muito mais elevada de igualdade jurídica, que, por si só, justifica, fundamentalmente, o uso da analogia.

IV- REQUISITOS E OPERACIONALIZAÇÃO DA ANALOGIA___________________

Para que se possa utilizar a analogia, há a necessidade de concorrerem certos requisitos, a saber:

1º- que o fato considerado não tenha sido regulado pelo legislador;

2º- que o legislador tenha regulado situação que oferece relação de coincidência, de identidade com o caso não regulado;

Page 12: Direito Penal i

3º- o ponto comum às duas situações (a regulada e a não prevista) constitui o ponto determinante na implantação do princípio referente à situação considerada pelo julgador.

O emprego do suplemento analógico se fundamenta na seguinte operação mental: de uma determinada regra, que regula certa situação, passa o exegeta para outra regra, compreendendo não só a prevista, como também a não prevista.

V- ESPÉCIES DE ANALOGIA___________________

Existem vários critérios para que se possa classificar a analogia. Contudo, se dará aqui ênfase tão somente àqueles que têm importância prática para este estudo.

Primeiramente, importa estabelecer a divisão tradicional do instituto em:

1) Analogia Legal ou Analogia “legis”: ocorre quando o caso não previsto é regulado por um preceito legal que rege um caso semelhante. Desta forma, é a que compreende uma argumentação trabalhada sobre textos da norma penal, quando se verifica a insuficiência de sua redação. Aqui, parte-se de um preceito legal isolado. O fundamento aqui é aquele mencionado anteriormente – “ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio”, ou seja, fundamenta-se na “ratio legis”.

2) Analogia Jurídica ou Analogia “juris”: ocorre quando se aplica à espécie não prevista em lei, e com a qual não há norma que apresenta caracteres semelhantes, um princípio geral de direito. A hipótese é regulada por princípio extraído do ordenamento jurídico em seu conjunto. Parte-se de um conjunto de normas, extraem-se delas o pensamento fundamental ou os princípios que as informam para aplicá-los ao caso omisso. Essa analogia, ao contrário, não se fundamenta na “ratio legis”, mas na “ratio juris”. Pressupõe a inexistência de lei sobre ocaso. Entretanto, a regra a ser aplicada deve estar contida no ordenamento jurídico.

Ao lado dessa divisão, outra se apresenta e merece ser analisada:

1) Analogia “in bonam partem”: ocorre essa quando o sujeito é beneficiado pela sua aplicação. Fundamenta a não-aplicação ou a diminuição da pena nas mesmas hipóteses.

2) Analogia “in malam partem”: ocorre essa quando o sujeito é prejudicado pela sua aplicação. Fundamenta a aplicação ou agravação da pena em hipóteses não previstas em lei, semelhantes às que estão previstas. A exigência de lei prévia e estrita, corolários do princípio da reserva legal, impedem a analogia “in malam partem“, que encontra justificativa em um princípio de eqüidade.

VI- ANALOGIA, INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA E INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA___________________

É imperioso, que se estabeleça as diferenças existentes entre analogia, interpretação analógica e interpretação extensiva.

Page 13: Direito Penal i

Analogia é forma de auto-integração da ordem legal para suprir lacunas, estendendo a aplicação da lei a casos que ela não regula e que não cogita.

Interpretação extensiva é meio de interpretação da lei penal, a ser utilizado quando a lei cogita de contemplar o caso examinado, mas o seu texto diz menos que o pretendido, não o compreendendo. O intérprete deve ampliar o significado da norma além do que tiver expressado. A interpretação extensiva não faz senão reconstruir a vontade existente para a relação jurídica, que só por inexata formulação parece à primeira vista excluída. Assim, essa interpretação pressupõe que o caso concreto, muito embora pareça à primeira vista excluído do âmbito do texto legal, possa toda via ser enquadrado no mesmo.

Interpretação analógica, por sua vez, somente é utilizada quando o próprio texto legal determina. É o próprio dispositivo que determina que se aplique analogicamente o preceito. Ocorre toda vez que, a uma fórmula casuística segue-se uma fórmula genérica, vinculada à primeira. Aqui existe uma lei regulando a hipótese expressamente, mas de forma genérica, o que torna necessário o recurso à via interpretativa.

Assim, entre analogia e interpretação extensiva, existem diferenças que devem ser conhecidas. Na interpretação extensiva, o intérprete conclui que a lei contém disposição para o caso concreto, mas como o texto é defeituoso procura-se adaptá-lo a “mens legis”. A lei por um defeito, disse menos do que o legislador queria, mas a situação é alcançada por ela, devendo para tanto, interpretar-se extensivamente o dispositivo legal. A vontade da lei cogita de contemplar o caso examinado, mas o seu texto diz menos que o pretendido, não o compreendendo à primeira vista.

Na analogia, ao contrário, parte-se do pressuposto de que a lei não contém a disposição precisa para o caso concreto, mas o legislador cuidou de caso semelhante ou de matéria análoga. Para esta, a lei é precisa, correspondendo à “mens legis”, diz exatamente o que o legislador queria dizer.

Por outro lado, também é importante que se conheça as diferenças entre analogia e interpretação analógica. A interpretação analógica é forma de interpretação. Procede-se esta quando a lei determinar. Existe vontade na norma de alcançar os casos análogos. Está expresso na lei a sua utilização.

A analogia, por sua vez, é forma de integração. Não existe na lei vontade de compreender os casos análogos. Não existe esta “voluntas legis”, mas o intérprete assim mesmo preenche a lacuna, sempre em favor do réu.

Page 14: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- FONTE FORMAL IMEDIATA OU DIRETA - LEI PENAL___________________

A lei é a única fonte formal ou de cognição imediata de conhecimento. É imperioso que não se tome norma penal como sinônimo de lei penal. A lei penal contém a norma penal, vale dizer, contém o mandamento proibitivo da conduta por ela descrita.

Assim, norma é o mandamento de um comportamento normal, retirado do senso comum de justiça de cada coletividade. Trata-se, portanto, de uma regra proibitiva não escrita, que se extrai do espírito dos membros da sociedade, isto é, do senso de justiça do povo.

Por sua vez, lei é a regra escrita feita pelo legislador com a finalidade de tornar expresso o comportamento considerado indesejável e perigoso pela coletividade. É o veículo por meio do qual a norma aparece e torna cogente sua observância. Na sua elaboração devem ser tomadas algumas cautelas, a fim de se evitarem abusos contra a liberdade individual.

Portanto, é correto se afirmar que a lei penal é a fonte da norma penal. A norma é conteúdo da lei penal. O fundamento da lei penal é um princípio de comportamento, uma norma. Logo, a lei penal contém uma norma, que é a proibição da conduta por ela descrita.

Nesse raciocínio, aquele que pratica um delito age contra a norma, mas exatamente de acordo com a descrição contida na lei.

Contudo, não raras vezes, a doutrina utiliza um termo pelo outro, sem ater-se ao rigorismo científico.

II- CARACTERÍSTICAS DAS LEIS PENAIS___________________

As leis penais apresentam as seguintes características:

- Exclusividade: a lei penal é exclusiva. Somente ela pode definir condutas típicas e cominar sanções.

- Anterioridade: as leis penais incriminadoras somente têm incidência sobre fatos cometidos durante a sua vigência, não alcançando fatos anteriores a ela.

- Imperatividade: as leis penais são autoritárias, no sentido de fazer incorrer na pena aquele que descumpre o seu mandamento. É ela que separa a zona do lícito e do ilícito penal. A todos é devido acatamento à lei penal, sendo que, da violação do seu preceito primário (descrição típica) decorre uma sanção (preceito secundário).

- Generalidade: as leis penais se destinam a todos os membros da sociedade, mesmo os inimputáveis. Vale dizer, a lei penal tem efeito “erga omnes”.

Page 15: Direito Penal i

- Impessoalidade e Abstratariedade: as leis penas dirigem-se impessoal e indistintamente a todos, bem como, dirigem-se para fatos futuros. Não se concebe a elaboração de uma lei penal para punir especificamente uma pessoa ou um grupo determinado.

III- CLASSIFICAÇÃO DAS LEIS PENAIS___________________

A Lei Penal pode ser classificada em duas espécies: lei penais incriminadoras e leis penais não incriminadoras. Estas, por sua vez, pode ser classificadas em permissivas, explicativas ou complementares e finais.

- Leis penais incriminadoras: são as que descrevem crimes e cominam penas. Assim, são compostas por um preceito primário (preceptum juris) e por um preceito secundário (sanctio juris), vale dizer, uma primeira parte que descreve a conduta delitiva e uma segunda parte que comina a pena para que incorrer na dita conduta. Em outras palavras, no preceito primário vem descrito o comportamento humano ilícito e, no preceito secundário vem exposta a sanção ou penalidade que se associa àquela conduta. Portanto, observa-se que as normas penais incriminadoras tratam-se, na verdade, de uma construção eminentemente descritiva.

- Leis penais não incriminadoras: são aquelas que não definem crimes nem cominam penas. Podem ser:

a) permissivas: são as que determinam a licitude ou impunidade de determinadas condutas, embora estejam estas tipificadas como crimes. Dividem-se em:

1- permissivas “lato sensu”: quando se trata de normas penais

exculpantes ou excludentes de culpabilidade. A rigor, nestes casos, o direito penal não permite, ele reprime. Todavia, em determinados casos, o direito penal tão somente se resigna com a prática da conduta.

2- permissivas “stricto sensu”: quando se trata de normas justificantes ou excludentes de ilicitude ou antijuridicidade. Aqui, o direito penal permite que se pratique uma conduta proibida. Assim, os tipos permissivos, a rigor, são excludentes de ilicitude.

b) explicativas ou complementares: são as que explicam a conduta de outras, ou delimitam o âmbito de sua aplicação. São espécies de interpretação autêntica contextual, ou seja, o próprio legislador diz o que se deve entender, por exemplo, por funcionário público, casa, território nacional, etc., para efeitos penais. São de caráter vinculante, de observação compulsória.

c) finais: são as concebidas pelo legislador com uma finalidade específica. Tem-se algo em mente quando se elabora tais leis

Page 16: Direito Penal i

IV- INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PENAIS___________________

É a atividade que consiste em extrair da norma penal seu exato alcance e real significado. É extrair o significado e a extensão da norma em relação à realidade.

Em relação ao direito penal, a importância da interpretação se justifica na medida em que este não se apresente como “numerus apertus”, mas como “numerus clausus”. Não há infração senão as descritas pela lei penal e, em conseqüência, não há comportamento humano que não seja ou conduta lícita ou ilícita.

Assim, por mais clara que seja a letra da lei penal, como qualquer regra jurídica, não prescinde do labor exegético, tendente a explicar-lhe o significado, o justo pensamento, a sua real vontade, a sua “ratio juris”. Não tem aplicabilidade a regra do direito romano “in claris non fit interpretatio”, ou seja, somente quando a lei não é clara é que se deve entrar em seu espírito.

Observe-se que, a própria conclusão de ser clara determinada lei, demandou uma interpretação da mesma. Logo, a verificação da clareza, ao invés de afastar o trabalho exegético, implica e pressupõe o seu uso. Como saber se uma lei é clara, senão depois de interpretá-la?

Demonstrada a importância e necessidade de interpretação da lei penal, questiona-se se o intérprete deve buscar a vontade da lei ou a vontade do legislador.

A Escola Exegética identifica o sentido da lei com a vontade do legislador. Ocorre que o propósito do legislador pode não ser o que contém, objetivamente, os preceitos do texto legal.

Uma segunda posição entende que a interpretação deve ser teleológica, no sentido de fazer aflorar a vontade da lei.

IV.1- ESPÉCIES DE INTERPRETAÇÃO

1) Quanto ao sujeito:

a) autêntica ou legislativa: feita pelo próprio órgão encarregado da elaboração do texto. Pode ser:

- contextual: feita no bojo do próprio texto interpretado, ex: art. 327, CP;

- posterior: quando a lei interpretadora entra em vigor depois da interpretada.

Importante esclarecer que, a Exposição de Motivos não é uma interpretação autêntica, vez que não é lei, não tem força obrigatória e é possível notar-se antinomia entre ela e o texto legal. Vale, contudo, como forma de interpretação doutrinária.

b) doutrinária ou científica: é aquela feita pelos estudiosos do direito, são os seus comentários às leis. é a chamada “communis opinio doctorum”.

c) judicial: é a feita pelos órgãos do Poder Judiciário (juízes e tribunais). Não tem força obrigatória senão para o caso concreto (sobrevindo a coisa julgada).

Page 17: Direito Penal i

2) Quanto aos meios empregados:

a) gramatical, literal ou sintática: leva-se em conta o sentido literal das palavras. Contudo, a simples análise literal não é suficiente, porque pode levar a situações aberrantes dentro do sistema. Para que se alcance o significado da norma é preciso perquirir-lhe a finalidade, a “ratio legis”.

b) lógica ou teleológica: busca-se a vontade da lei, atendendo-se aos seus fins e à sua posição dentro do ordenamento jurídico. Indaga-se qual a intenção objetivada na lei. É uma pesquisa mais profunda, mais rica em subjetividade do que a simples interpretação gramatical. Passa-se, então, a investigar os motivos que determinam o preceito, as necessidades e o princípio superior que lhe deram origem, o que os clássicos denominaram de “ratio legis”; o elemento teleológico, o fim visado pela lei, a “vis legis”, e, finalmente, as circunstâncias do momento em que se originou, a “occasio legis”.

3) Quanto ao resultado:

a) declarativa: quando há perfeita correspondência entre a palavra da lei e a sua vontade.

b) restritiva: quando a letra escrita da lei foi além da sua vontade (a lei disse mais do que queria dizer, e, por isso, a interpretação vai restringir o seu significado).

c) extensiva: quando a letra escrita da lei ficou aquém de sua vontade (a lei disse menos do que queria, e, por isso, a interpretação vai ampliar o seu significado).

d) progressiva, adaptativa ou evolutiva: é aquela que, ao longo do tempo, vai adaptando-se às mudanças político-sociais e às necessidades do momento. Serve para adequar a lei à realidade social, jurídica, cultural, etc., de determinada sociedade.

Page 18: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- NORMAS PENAIS EM BRANCO___________________

São normas nas quais o preceito secundário (sanctio juris) está completo, permanecendo indeterminado o seu conteúdo. Tratam-se, portanto, de normas cuja descrição da conduta está incompleta, necessitando de complementação por outra disposição legal ou regulamentar.

Assim, são aquelas normas que possuem conteúdo, vale dizer, o preceito primário (preceptum juris) incompleto, vago, lacunoso, necessitando ser completadas por outras normas jurídicas, geralmente de natureza extrapenal. Assim, na lei penal em branco, o comportamento proibido vem apenas enunciado ou indicado, sendo a parte integradora elemento indispensável à conformação da tipicidade.

II- CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS PENAIS EM BRANCO___________________

De acordo com a categoria legislativa da norma integradora, isto é, da norma que complementa e dá conteúdo ao tipo penal incriminador, as normas penais em branco pode ser classificadas em :

1- NORMAS PENAIS EM BRANCO “LATO SENSU”, DE COMPLEMENTAÇÃO HOMOGÊNEA OU HOMÓLOGAS, NORMAS INCOMPLETAS, FRAGMENTO DE NORMAS OU NORMAS FRAGMENTÁRIAS: são aquelas aonde o complemento provém da mesma fonte formal, ou seja, a lei é complementada por outra lei. O complemento é determinado pela mesma fonte formal da norma incriminadora.

Há homogeneidade de fontes, sendo que tanto a norma penal em branco quanto o seu complemento são da mesma hierarquia. Podem ser:

a) Homólogas homovitelinas: o complemento da norma penal em branco é também uma lei penal. Ex: arts. 309 e 338, do CP, complementados pelo art. 5º, § 1º, do CP. Assim, tem-se NORMA PENAL + NORMA PENAL.

b) Homólogas heterovitelinas: o complemento da norma penal em branco é uma lei, entretanto, extrapenal. Ex: art. 237, do CP, complementado pelo art. 183, do CC. Assim, tem-se NORMA PENAL + NORMA EXTRAPENAL.

Page 19: Direito Penal i

2- NORMAS PENAIS EM BRANCO “STRICTO SENSU”, DE COMPLEMENTAÇÃO HETEROGÊNEA OU HETERÓLOGA: são aquelas cujo complemento está contido em norma procedente de outra instância legislativa, que não aquela da norma penal incriminadora. A lei penal é complementada por ato normativo, via de regra, infralegal. Ex: arts. 12 e 16, da Lei nº 6368/76, são complementados por decretos do Ministério da Saúde.

O que não se pode confundir são normas penais em branco com tipos penais abertos. Nas primeiras a complementação do tipo é efetuada através de ato normativo jurídico. Nos tipos penais abertos, a complementação é dada pela jurisprudência e pela doutrina, por não conterem os tipos, a determinação dos elementos do dever jurídico, cuja violação significa a realização de um tipo penal, tal como ocorre nos tipos culposos e tipos omissivos.

Page 20: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL OU DA LEGALIDADE___________________

O princípio da legalidade, segundo o qual nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada, sem que antes desse mesmo fato tenham sido instituídos por lei o tipo delitivo e a pena respectiva, constitui uma real limitação ao pode estatal de interferir na esfera das liberdades individuais.

O acima afirmado tanto é verdade que o referido princípio encontra assento no Texto Constitucional (art. 5º, XXXIX e XL), que preceitua, in verbis: “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”; “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

Sob um aspecto político, o princípio da legalidade trata-se de uma garantia constitucional fundamental do homem. O tipo penal, em verdade, exerce uma função garantidora do primado da liberdade, haja vista que a partir do momento em que somente se pune alguém pela prática de crime previamente definido em lei, os membros da coletividade passam a ficar protegidos contra toda e qualquer invasão arbitrária do Estado em seu direito de liberdade. Corresponde, portanto, a uma aspiração básica e fundamental do homem.

Sob um aspecto jurídico, o princípio da reserva legal determina que somente haverá crime quando existir perfeita correspondência entre a conduta praticada e a previsão legal. Tal aspecto ganhou força com a teoria de Binding, segundo a qual as normas penais incriminadoras não são proibitivas, mas descritivas; portanto, quem pratica um crime não age contra a lei, mas de acordo com esta, pois os delitos encontram-se pormenorizadamente descritos nos modelos legais, chamados de tipos. Cabe, portanto, à lei a tarefa de definir e não de proibir o crime – não há crime sem lei anterior que o defina -, proporcionando ao agente prévio e integral conhecimento das conseqüências penais da prática delituosa e evitando, assim, qualquer invasão arbitrária em seu direito de liberdade.

O princípio em análise costuma ser enunciado por meio da expressão latina “nullum crimen, nulla poena sine lege”. Significa, em outras palavras, que a elaboração das normas incriminadoras e das respectivas sanções constitui matéria reservada ou função exclusiva da lei.

Por outro lado, o que deve ficar claro é que o princípio da reserva legal não se aplica às normas penais não incriminadoras. Nestas, a pesquisa do intérprete busca uma regra que se situa na esfera da licitude.

Modernamente, o brocardo latino “nullum crimen, nulla poena sine lege” tem

uma concepção, adotada de forma mais ou menos cristalizada pela doutrina, de função de garantia da lei penal, o que provoca o seu desdobramento em quatro outros princípios:

- nullum crimen, nulla poena sine lege praevia;- nullum crimen, nulla poena sine lege scripta;- nullum crimen, nulla poena sine lege stricta;- nullum crimen, nulla poena sine lege certa.

Page 21: Direito Penal i

Lex praevia significa proibição de edição de leis retroativas que fundamentem ou agravem a punibilidade. Lex scripta, a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário. Lex stricta, a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pela analogia (analogia in malam partem). Lex certa, a proibição as leis penais indeterminadas ou de conteúdo incerto.

Com a aplicação concomitante desses quatro princípios, contidos implicitamente no princípio geral antes referido, constrói-se a denominada função de garantia da lei penal, que pode também ser entendida como autêntica função de garantia individual das cominações penais.

II – LEX PRAEVIA - EXIGÊNCIA DE LEI ANTERIOR___________________

A lei que institui o crime e a pena deve ser anterior ao fato que se quer punir. E somente a lei “stricto sensu” é que pode criar crimes e penas criminais. Nenhuma outra fonte subalterna pode gerar a norma penal.

Assim, somente a lei, na sua concepção formal e estrita, emanada e aprovada pelo Poder Legislativo, por meio de procedimento adequado, pode criar tipos penais e impor sanções.

Durante muito tempo se discutiu se as medidas provisórias, espécie legislativa introduzida no ordenamento jurídico pelo art. 62 da CF em substituição ao antigo decreto-lei, poderia veicular matéria penal, dado ao fato de que o referido artigo constitucional não havia estabelecido, de modo expresso, os limites objetivos para a edição das medidas provisórias, exigindo apenas relevância e urgência na adoção da medida, requisitos por deveras genéricos e pouco confiáveis.

A polêmica encerrou-se com a Emenda Constitucional nº 32/01, a qual estabeleceu no art. 62, § 1º, I, b, da CF, que é vedada a edição de medidas provisórias em matéria relativa a direito penal, processo penal e processo civil, pondo fim a qualquer tipo de argumentação que se podia fazer em favor de medidas provisórias veicularem matéria penal.

III – LEX SCRIPTA – HIPÓTESES DE EXCLUSÃO E DE ADMISSIBILIDADE DOS COSTUMES___________________

Da afirmação de que só a lei pode criar crimes e cominar penas resulta, como corolário, a proibição da invocação do direito consuetudinário para a fundamentação ou a agravação da pena, como ocorria no direito romano e no direito medieval. Não se deve, contudo, cometer o equívoco de afirmar que o direito costumeiro esteja totalmente afastado do âmbito penal.

Tem ele, real importância para a elucidação do conteúdo dos tipos. Além disso, quando opera como causa de exclusão de ilicitude (causa supralegal), de atenuação da pena ou de culpa, constitui verdadeira fonte do direito penal. Nessas hipóteses, por óbvio, não fere o princípio da reserva legal por não estar piorando, antes melhorando, a situação do autor do delito.

Contudo, a simples omissão da autoridade em reprimir determinados crimes ou contravenções não basta para revogar por desuso a norma penal incriminadora.

Page 22: Direito Penal i

IV – LEX STRICTA – HIPÓTESES DE EXCLUSÃO E DE ADMISSIBILIDADE DA ANALOGIA___________________

Outro corolário do princípio da legalidade é a proibição da aplicação da analogia para fundamentar ou agravar a pena (analogia in malam partem). A analogia, por ser uma forma de suprirem-se as lacunas das leis, supõe, para sua aplicação, a inexistência de norma legal específica. Baseia-se na semelhança.

Estando regulamentada em lei uma situação específica, aplica-se por analogia essa mesma regulamentação a outra situação, semelhante mas não regulamentada. É uma conclusão que se extrai do particular para o particular. Conclui-se a respeito de um caso o que se aplica a outro caso semelhante.

Em direito penal, a lei e, somente esta, delimita uma conduta lesiva, apta a por em perigo um bem jurídico relevante, e prescreve-lhe uma conseqüência punitiva. Ao fazê-lo, não permite que o tratamento punitivo cominado possa ser estendido a uma conduta que se mostre aproximada ou assemelhada.

Observe-se que o princípio da legalidade é expresso ao determinar que não existe crime sem lei que o defina. Exige-se, portanto, que somente a lei defina a conduta delituosa em todos os seus elementos e circunstâncias, a fim de que somente no caso de integral correspondência possa o agente ser punido.

Por essa razão, o princípio da legalidade, neste seu aspecto – “lex stricta” – veda por completo o emprego da analogia em matéria de norma penal incriminadora, encontrando-se esta delimitada pelo tipo legal a que corresponde.

Por outro lado, a analogia in bonam partem é perfeitamente aceita pelo direito penal, posto que não pretende prejudicar a situação do acusado, senão beneficiá-lo.

V – LEX CERTA ___________________

A exigência de lei certa diz respeito à clareza dos tipos penais, que não devem deixar margens à dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios. Para que a norma penal possa desempenhar sua função pedagógica (prevenção geral), motivando o comportamento humano, é necessário que seja facilmente acessível a todos, não só aos juristas.

Contudo, no atual estágio de nossa legislação, o ideal de que todos possam conhecer as leis penais parece cada vez mais distante, transformando-se, por imposição da própria lei e da realidade social, no dogma do conhecimento presumido, que outra coisa não é senão pura ficção jurídica.

Esse aspecto do princípio da reserva legal impõe que a descrição da conduta criminosa seja detalhada e específica, não se coadunando com tipos genéricos, demasiadamente abrangentes. O indesejável processo de generalização estabelece-se com a utilização de expressões vagas e sentido equívoco, capazes de alcançar qualquer comportamento humano e, por conseguinte, aptas a promover a mais completa subversão no sistema de garantias da legalidade.

No entanto, é de se reconhecer a existência de certas exceções. A proibição de cláusulas gerais não alcança, evidentemente, os regimes culposos, porque neles, por mais atento observador que possa ser o legislador, não terá condições de pormenorizar todas as condutas humanas ensejadoras da composição típica. Daí a razão, no caso de

Page 23: Direito Penal i

crimes culposos, das previsões típicas serem todas genéricas. Por isso, os tipos penais culposos são denominados de tipos abertos e excepcionam a regra da descrição pormenorizada.

Contudo, no que tange aos tipos penais dolosos, salvo algumas exceções de tipos abertos, como o adultério, no qual não se define os elementos da conduta , os crimes deverão ser descritos detalhadamente. As fórmulas excessivamente genéricas criam insegurança no meio social, deixando ao juiz uma larga e perigosa margem de discricionariedade.

Page 24: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I – APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO – EFICÁCIA TEMPORAL ___________________

A lei penal não é diferente das demais leis. Como todas, nasce, vive e morre.

De acordo com o princípio “tempus regit actum”, a lei rege, em geral, os fatos praticados durante a sua vigência. Não pode, em tese, alcançar fatos ocorridos em período anterior ao início de sua vigência nem ser aplicada àqueles ocorridos após a sua revogação.

Entretanto, por expressa disposição legal, é possível a ocorrência da retroatividade e da ultratividade da lei. Retroatividade é o fenômeno pelo qual uma norma jurídica é aplicada a fato ocorrido antes do início de sua vigência. Ultratividade é aplicação de uma norma a fato ocorrido após a sua revogação.

No que tange à lei penal, pode-se afirmar que sua eficácia temporal subordina-se a uma regra geral e a várias exceções, como se infere dos preceitos contidos no art. 5º, XL, da CF, bem como, dos arts. 2º e 3º, ambos do CP.

A regra geral é a da prevalência da lei do tempo do fato (tempus regit actum), isto é, aplica-se a lei vigente quando da realização do fato. Com isso, preserva-se o princípio da legalidade e da anterioridade da lei penal.

Portanto, o princípio que rege a lei penal quanto a sua eficácia temporal é o da IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS SEVERA, calcado no princípio “tempus regit actum”, ou seja, a lei rege todos os atos praticados no período compreendido entre a sua entrada em vigência (o que se dá com a sua publicação) e a cessação desta, que se dá com a sua revogação.

Esse princípio se harmoniza com a função de garantia da lei penal, representada pelo desdobramento do princípio da reserva legal ou da legalidade, notadamente em relação ao nullum crimen, nulla poena sine lege praevia.

II – PRINCÍPIOS APLICÁVEIS A LEI PENAL NO TEMPO ___________________

O art. 5º, XXXIX, da CF e o art. 1º, do CP estabelecem o princípio da irretroatividade da lei penal, como desdobramento do princípio da reserva legal, dentro da função garantista da lei penal. Esse princípio tem aplicabilidade quando a lei posterior for mais severa que a anterior. Tal conclusão extrai-se do disposto no artigo 5º, XL, da CF e art. 2º, parágrafo único do CP.

O princípio da irretroatividade da lei penal mais severa constitui um direito subjetivo de liberdade com fundamento constitucional. O direito adquirido do sujeito consiste em fazer tudo o que não é proibido pela lei penal. Se uma lei nova define uma conduta com crime, antes lícita, os fatos cometidos no período anterior à sua vigência não podem ser apenados.

Page 25: Direito Penal i

Contudo, pode ocorrer que, praticado um crime na vigência de uma lei, surja lei nova, impondo pena menos severa. Pergunta-se: não teria o Estado o direito adquirido de punir o criminoso pela lei anterior que comina pena mais severa?

Em verdade, não. A lei nova, mais benigna, exterioriza a consciência jurídica geral sobre aquele fato, entendendo que a sua punição deve ser mais branda. Se o próprio Estado reconhece que a pena antiga era muito severa, havendo necessidade de atenuá-la, demonstra renúncia ao direito de aplicá-la, não podendo alegar a teoria do direito adquirido em favor da continuação da punição com o plus do qual abriu mão.

Tem-se assim, dois princípios que regem o conflito de direito intertemporal:

1º- princípio da irretroatividade da lei penal mais severa (lex gravior); 2º- princípio da retroatividade da lei penal mais benigna (lex mitior);

Quanto a lei mais severa, quer parecer não existir dúvidas. A mesma tem aplicabilidade durante o seu período de vigência, ou seja, desde a sua publicação até a sua revogação. Em síntese, não retroage para alcançar fatos anteriores, nem tem ultratividade para abarcar fatos posteriores a sua revogação, vale dizer, a “lex gravior” não possui extra-atividade.

Por outro lado, a lei mais benigna prevalece em qualquer circunstância sobre a mais severa, quer prolongando-se além do instante de sua revogação (ultratividade), quer retroagindo ao tempo em que ainda não tinha vigência (retroatividade). A essas duas qualidades da lei mais benigna (também chamada por alguns de menos severa), retroatividade e ultratividade, dá-se o nome de extra-atividade, vale dizer, a “lex mitior” possuir extra-atividade.

III – HIPÓTESES DE CONFLITO DE LEIS PENAIS NO TEMPO ___________________

Podem ocorrer situações em que, a primeira vista, duas leis penais estariam a regular o mesmo fato, devendo-se, com base nos princípios acima determinar qual lei seria aplicável ao caso concreto. Isso ocorre no caso de sucessão de leis penais que regulem, no todo ou em parte, as mesmas questões, e se o fato houver sido cometido no período de vigência da lei anterior.

A doutrina aponta 04 hipóteses de conflito de leis no tempo, a saber:

- Novatio legis incriminadora: a lei nova incrimina fatos antes considerados lícitos;

- Novatio legis in pejus: a lei nova modifica o regime anterior, agravando a situação do sujeito;

- Novatio legis in mellius: a lei nova modifica o regime anterior, beneficiando a situação do sujeito;

- Abolitio criminis: a lei nova suprime normas incriminadoras anteriormente existentes;

Page 26: Direito Penal i

III.1- NOVATIO LEGIS INCRIMINADORA

Trata-se da hipótese em que lei posterior cria um tipo penal incriminador, tornando típica conduta considerada, até então, como irrelevante penal pelo direito penal. Esta lei não se aplica ao fatos ocorridos antes de sua vigência, seja quando cria um figura penal até então inexistente, seja quando se limita a agravar as conseqüências jurídico-penais do fato isto é, a pena ou a medida segurança. Incide aqui, em toda a sua plenitude, o art. 5º, XXXIX, da CF e o art. 1º, do CP.

A razão da irretroatividade é compreensível. Um dos requisitos do crime é a antijuridicidade: contrariedade do fato à norma, contida, implicitamente na lei penal. Se não existe lei, não há norma (mandamento proibitivo). Se não há advertência do Estado proibindo determinada conduta e impondo uma “sanctio juris” ao seu autor, ela é por ele considerada lícita, e que a pratica não pode ser apenado. Se assim não o fosse, não haveria garantia: o cidadão, praticando uma conduta lícita hoje, poderia em conseqüência dela ser condenado amanhã.

III.2- NOTAVIO LEGIS IN PEJUS

É a hipótese de lei nova mais severa (lex gravior) que a anterior. Vige o princípio da irretroatividade da lei penal (art. 5º, XL, da CF e art. 2º, parágrafo único, do CP).

Vale aqui a mesma colocação feita acima: a lei penal mais grave não se aplica aos fatos ocorridos antes de sua vigência, seja quando cria uma figura penal, seja quando se limita a agravar as conseqüências jurídico-penais do fato. Há , pois, uma proibição da retroatividade das normas penais mais severas de direito penal material.

A norma de direito penal mais severa só se aplica, enquanto vigente, aos fatos ocorridos durante sua vigência, vedada em caráter absoluto a sua retroatividade. Esse princípio aplica-se a todas as normas de direito material, pertençam elas à Parte Geral ou à Especial, sejam normas incriminadoras, sejam reguladoras da imputabilidade, da dosimetria da pena, das causas de justificação ou de outros institutos de direito penal.

III.3- NOVATIO LEGIS IN MELLIUS

É a hipótese em que a lei nova é mais favorável (lex mitior) que a anterior. É a lei que de alguma forma favorece ao sujeito, seja no tocante ao crime, seja no tocante à pena. Assim, será mais benigna a lei que, de qualquer modo favorecer o agente. Aplica-se, nesta hipótese, o disposto no art. 5º, XL, da CF e o art. 2º, parágrafo único do CP, que determina que a lei mais benigna prevalece sempre, quer seja anterior (ultratividade), quer seja posterior (retroatividade), vale dizer, a lex mitior é extra-ativa.

III.4- ABOLITIO CRIMINIS

É a hipótese em que a lei nova deixa de considerar como crime determinada conduta até então tipificada como ilícito penal. Trata-se de lei posterior que revoga o tipo penal incriminador, passando o fato a ser considerado atípico.

Em outras palavras, a lei nova exclui da órbita de incidência do direito penal fato considerado crime pela lei anterior. Trata-se de hipótese de descriminalização, ocorrendo extinção da punibilidade, conforme art. 107, III, do CP, arquivando-se o

Page 27: Direito Penal i

processo em curso, no tocante ao crime abolido, ou cessando a execução e os efeitos penais da sentença condenatória, ainda que transitada em julgado, pois, nos exatos termos do que dispõe o art. 2º, “in fine”, do CP.

IV – COMBINAÇÃO DE LEIS (LEX TERTIA) ___________________

Questão polêmica que se apresenta é a de saber se, na determinação da lei mais benigna aplicável, pode o juiz tomar os preceitos ou os critérios mais favoráveis da lei anterior e, ao mesmo tempo, os da lei posterior, combiná-los e aplicá-los ao caso concreto, de modo a extrair o máximo benefício resultante da aplicação conjunta só dos aspectos mais favoráveis de duas leis.

Duas correntes se apresentam na doutrina, cada qual formada por juristas de renome, pelo que, necessário que se analise, ainda que rapidamente, os argumentos de cada uma.

Nélson Hungria, Heleno Fragoso, Aníbal Bruno e Fernando Capez, dentre outros, defendem a posição de não ser possível a combinação de leis por parte do juiz, posto que, neste caso, o magistrado estaria arvorando-se na condição de legislador, criando uma terceira lei – “lex tertia”, dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo. Em outras palavras, estes juristas entendem que ao julgador não é dada a possibilidade de dividir as leis, aplicando ao caso concreto tão somente a parte benéfica de cada uma, sob pena de se estar criando (leia-se legislando) uma terceira lei, híbrida e destoante daquelas que foram editadas pelo Poder Legislativo.

Em sentido contrário, Francisco de Assis Toledo, José Frederico Marques, Damásio de Jesus, Júlio Fabbrini Mirabete, dentre outros, são partidários da possibilidade da combinação das duas leis. Argumentam esses autores, de um modo geral, que alegar que o juiz está fazendo lei nova, ultrapassando assim suas funções constitucionais, é argumento sem consistência, pois o julgador, em obediência a princípios de eqüidade consagrados pela própria Constituição, está apenas movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente legítima. O órgão judiciário não estaria tirando, “ex nihilo”, a regulamentação eclética que deve imperar “hic et nunc”. A norma do caso concreto é construída em função de um princípio constitucional, com o próprio material fornecido pelo legislador. Se ele pode escolher, para aplicar o mandamento da CF, entre duas séries de disposições legais, a que lhe pareça mais benigna, não se veria razão para que se lhe vede a combinação de ambas, para assim aplicar, mais retamente, a Constituição. Se lhe está afeto escolher o todo, par que o réu tenha o tratamento penal mais favorável e benigno, nada há que lhe obste selecionar parte de um todo e parte de outro, para cumprir uma regra constitucional que deve sobrepairar a pruridos de lógica formal. A verdade é que não se estará aplicando a lei mais benéfica, se, para evitar-se a transação e o ecletismo, a parcela benéfica da lei posterior não for aplicada pelo juiz; e este tem por missão precípua velar pela Constituição e tornar efetivos os postulados fundamentais com que ela garante e proclama os direitos do homem.

Tendo em vista, as duas posições ora apresentadas e, sobretudo, o quilate de seus defensores, deixa-se ao prudente juízo de cada um a adoção por uma ou por outra corrente, tão somente esclarecendo que, é imperioso que se tenha conhecimento dos fundamentos de ambas.

Page 28: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- LEIS DE VIGÊNCIA TEMPORÁRIA ___________________

Leis de vigência temporária são aquelas que trazem em seu texto o término de sua vigência. Tais leis foram ressalvadas pelo art. 2º, “caput”, da LICC. São também conhecidas como leis auto-revogáveis Podem ser:

- Lei Temporária: é a feita para vigorar em um período de tempo previamente fixado pelo legislador. Traz em seu bojo a data de cessação de sua vigência. É uma lei que desde a sua entrada em vigor está marcada para morrer.

- Lei Excepcional: é a feita para vigorar em períodos anormais, como guerra, calamidade pública, etc. Sua duração coincide com a do período excepcional (a lei dura enquanto durar a guerra, por exemplo). Observe-se, então, que não mencionam expressamente o prazo de vigência, condicionam, em verdade, a sua eficácia à duração das condições emergenciais que as determinam.

O art. 3º, do CP, cuida dessa espécie de leis (auto-revogáveis), preceituando: “a lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplicam-se ao fato praticado durante a sua vigência.”

Logo, percebe-se que a característica marcante desta espécie de lei é a ultra-atividade, pois regulam os fatos ocorridos durante sua vigência, mesmo após a sua revogação. No caso, mesmo que a lei posterior, vigente à época do julgamento do fato, seja mais benéfica, não retroagirá.

A circunstância de ter sido o fato praticado durante o prazo fixado pelo legislador (lei temporária) ou durante a situação de emergência (lei excepcional) é elemento temporal do próprio fato típico. O que possibilita a punição é a circunstância de ter sido a conduta praticada durante o prazo de tempo em que a conduta era exigida e a norma necessária à salvaguarda dos bens jurídicos expostas naquela ocasião especial.

Não se trata de superveniência de lei mais perfeita ou de desinteresse pela punição do agente (que determinam a elaboração de lei nova revogadora do tipo penal – abolitio criminis) e sim da desnecessidade de vigência da lei após aquela situação excepcional ser superada.

Ora, como tal lei é promulgada para vigorar por tempo predeterminado, seria totalmente ineficaz se não fosse ultra-ativa. Em verdade, perderiam a sua força intimidativa a medida que seu prazo fosse esgotando-se, comprometendo a sua finalidade de prevenção geral, o seu caráter motivador ou intimidativo. Assim, ainda quando mais severa, as leis de vigência temporária, por sua natureza, serão sempre aplicáveis aos fatos cometidos durante a sua vigência.

Observe-se, não há que se falar em ofensa ao princípio da retroatividade da lei mais benéfica (art. 5º, XL, CF), desde que bem entendido e aplicado.

Page 29: Direito Penal i

II – RETROATIVIDADE DA LEI PENAL EM BRANCO ___________________

Como já analisado, normas penais em branco são aquelas nas quais o preceito secundário (sanctio juris) está completo, permanecendo indeterminado o seu conteúdo (preceptum juris). Tratam-se, portanto, de normas cuja descrição da conduta está incompleta, necessitando de complementação por outra disposição legal ou regulamentar.

Logo, é de se concluir que esses tipos penais sofrem alteração sempre que se alteram as respectivas normas complementares. Questão que importa saber é a que versa sobre a revogação do complemento dessas normas, como no caso da exclusão de uma substância entorpecente da relação administrativa do Ministério da Saúde ou da redução do preço constante de uma tabela oficial. Haveria retroatividade em benefício do agente?

Alberto Silva Franco acentua que se o complemento derivar da mesma fonte legislativa (norma penal em branco homogênea), a retroatividade penal benéfica se torna inafastável. Contudo, se o complemento for de origem legislativa diversa (norma penal em branco heterogênea), a retroatividade pode ou não ocorrer. Se a legislação complementar não se reveste de excepcionalidade nem traz consigo a sua auto-revogação, a retroatividade se mostra admissível, como nos casos de alteração de portarias sanitárias que elencam moléstias cuja notificação é compulsória. A situação, porém, modifica-se quando a proibição aparece em legislação editada em situação de anormalidade econômica ou social que reclama uma pronta e segura intervenção do poder público, tendente a minimizar ou elidir seus efeitos danosos sobre a população. Nestes casos, a legislação complementar possui certo parentesco com a norma excepcional ou temporária.

Fernando Capez, a seu turno, entende que, ocorrendo a modificação posterior “in mellius” do complemento da norma penal em branco, para se saber se haverá ou não retroação, é imprescindível verificar se o complemento revogado tinha ou não as características da temporariedade ou excepcionalidade.

Em síntese, quando se vislumbrar no complemento a característica da temporariedade, típica da normas de vigência temporária, também se operará a sua ultra-atividade. Nessa hipótese, o comando legal era para que a norma não fosse desobedecida naquela época, de maneira que quaisquer modificações ulteriores serão impassíveis de alterar a estrutura do tipo. Ao contrário, quando inexistir a característica da temporariedade, haverá retroatividade “in mellius”. Logo, ante ao exposto, não interessa se o complemento advém de lei ou de ato infralegal, pois a retroatividade depende exclusivamente do caráter temporário ou definitivo da norma complementar.

III – TEMPO DO CRIME ___________________

A análise do âmbito temporal de aplicação da lei penal necessita da fixação do momento em que se considera o delito cometido – tempus commissi delicti.

A determinação do tempo em que se reputa praticado o delito tem relevância jurídica não somente para fixar a lei que o vai reger, mas também para fixar a

Page 30: Direito Penal i

imputabilidade do sujeito. A questão ganha interesse no caso em que, após realizada a atividade executiva do delito e antes de produzido o resultado, surge nova lei, alterando a legislação sobre a conduta punível: qual a lei a se aplicada, a do tempo da atividade ou a em vigor quando da produção do resultado?

Não obstante, a fixação do momento da prática do delito é imperiosa à apreciação de seus elementos subjetivos, circunstâncias, prescrição, anistia, etc.

Sobre o tema, 03 teorias se apresenta:

1ª- Teoria da Atividade: considera-se praticado o delito no momento da conduta praticada pelo sujeito. Atende-se ao momento da prática da atividade (ação ou omissão).

2ª- Teoria do Resultado ou do Efeito: considera-se praticado o crime no momento de sua consumação, não se levando em consideração o momento em que o agente praticou a conduta.

3ª- Teoria Mista ou da Ubiqüidade: considera-se praticado o delito tanto no momento da ação quanto do resultado.

O art. 4º, do CP, preceitua expressamente: “considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.” Adota-se, assim, a teoria da atividade, pois é nesse momento que o indivíduo exterioriza a sua vontade de violar o preceito proibitivo. Isso evita o absurdo de uma conduta, praticada licitamente sob o império de uma lei, poder ser considerada crime, em razão de o resultado vir a ser produzido sob o império de outra lei incriminadora. Da mesma forma, não é de se aceitar a teoria da ubiqüidade, pois não existe lógica em considerar-se um fato cometido sob a eficácia de duas lei diferentes, ao mesmo tempo.

Realmente, a lei penal atua sobre a vontade de seus destinatários e é justamente no momento da prática delituosa (ação, conduta) que o sujeito demonstra a vontade de concretizar os elementos objetivos do tipo (dolo), sobre que recai um juízo de censurabilidade (culpabilidade normativa)

Contudo, embora seja esta a teoria adotada, o CP, implicitamente, adota algumas exceções à teoria da atividade, como, por exemplo: o marco inicial da prescrição abstrata começa a partir do dia em que o crime consuma-se; nos crimes permanentes, do dia em que cessa a permanência; etc. Entretanto, tais exceções devem se analisadas caso a caso.

Page 31: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO ESPAÇO – EFICÁCIA ESPACIAL ___________________

A lei penal em decorrência da soberania, vige em todo o território de um Estado politicamente organizado. No entanto, pode ocorrer, em certos casos, para um combate eficaz à criminalidade, a necessidade de que os efeitos da lei penal ultrapassem os limites territoriais para regular fatos ocorridos além de sua soberania, ou, então, a ocorrência de determinada infração penal pode afetar a ordem jurídica de dois ou mais Estados soberanos. Surge assim, a necessidade de limitar a eficácia espacial da lei penal, disciplinando qual lei deve ser aplicada em tais hipóteses.

A aplicação da lei penal brasileira no espaço é regida pelo princípio da territorialidade, como regra e, como exceção pelos princípios de aplicação da extraterritorialidade

II- PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDAE DA LEI PENAL ___________________

Este princípio vem disciplinado no art. 5º, do CP e, determina que, aplica-se a lei penal brasileira aos fatos puníveis praticados em território nacional, independentemente da nacionalidade do agente, da vítima ou do bem jurídico lesado. Trata-se da principal forma de delimitação do âmbito de vigência da lei penal, tendo por fundamento, a soberania política do Estado. Divide-se em:

a) territorialidade absoluta: só a lei brasileira é aplicável aos crimes cometidos no território nacional;

b) territorialidade temperada: a lei penal brasileira aplica-se, em regra, ao crime cometido no território nacional. Excepcionalmente, porém, a lei estrangeira é aplicável a delitos cometidos total ou parcialmente em território nacional, quando assim determinarem tratados e contravenções internacionais.

O Brasil adota o princípio da territorialidade temperada. O ordenamento penal brasileiro é aplicável aos crimes cometidos no território nacional, de modo que ninguém, nacional, estrangeiro ou apátrida, residente ou em trânsito pelo Brasil, poderá subtrair-se à lei penal brasileira por fatos criminosos aqui praticados, salvo quando normas de direito internacional dispuserem em sentido contrário.

Diante disso, é imperioso que se analise, para efeitos penais, o que se entende por território nacional.

Page 32: Direito Penal i

III- CONCEITO DE TERRITÓRIO PARA EFEITOS PENAIS ___________________

O art. 5º, § 1º, do CP define o que deve ser entendido, para efeitos penais, como território nacional. Em síntese, sob o prisma material, compreende o espaço delimitado por fronteiras geográficas. Sob o prisma jurídico, abrange todo o espaço em que o Estado exerce a sua soberania.

O território nacional pode ser entendido em dois sentidos:

- Sentido estrito: é o território sob o aspecto material, abrangendo solo, subsolo, sem solução de continuidade e com limites reconhecidos, as águas interiores, o mar territorial, a plataforma continental e o espaço aéreo correspondente.

- Sentido amplo, por extensão ou por ficção: considera-se território nacional, para efeitos penais, as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro, onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar. É o que está disposto no art. 5º, § 1º, do CP. Assim, o raciocínio a ser feito é o seguinte:

a) navios ou aeronaves públicas: onde quer que se encontrem são considerados parte do território nacional;

b) navios ou aeronaves privadas: em mar territorial estrangeiro ou no espaço aéreo correspondente, submetem-se à lei do país correspondente; quando em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente, submetem-se à lei do país cuja bandeira ou pavilhão ostentam; em mar territorial brasileiro ou no espaço aéreo correspondente, a lei brasileira é aplicável.

IV- PRINCÍPIO DA EXTRATERRITORIALIDADE DA LEI PENAL ___________________

Como se observou, nos termos do art. 5º, do CP, o legislador penal brasileiro adotou o princípio da territorialidade temperada como regra. Esse princípio, entretanto, sofre exceções no próprio corpo do dispositivo, ao ressalvar a possibilidade de renúncia de jurisdição do Estado, mediante convenções, tratados e regras de direito internacional.

O princípio da extraterritorialidade consiste na aplicação da lei brasileira aos crimes cometidos fora do Brasil. A jurisdição é territorial, na medida em que não pode ser exercida no território de outro Estado, salvo em virtude de regra permissiva, emanada do direito internacional costumeiro ou convencional. Em respeito ao princípio da soberania, um país não pode impor regras jurisdicionais a outro. Nada impede, contudo, um Estado de exercer, em seu próprio território, sua jurisdição, na hipótese de crime cometido no estrangeiro.

A extraterritorialidade possui duas formas:

Page 33: Direito Penal i

- Incondicionada: são as hipóteses previstas no art. 7º, I, do CP. Diz-se incondicionada porque não se subordina a qualquer condição para atingir um crime cometido fora do território nacional.

- Condicionada: são as hipóteses do art. 7º, II e de seu § 3º. Nesses casos, a lei nacional só se aplica ao crime cometido no estrangeiro se satisfeitas as condições indicadas no § 2º e nas alíneas a e b do § 3º, do CP.

V- PRINCÍPIOS PARA APLICAÇÃO DA EXTRATERRITORIALIDADE ___________________

Afim de que seja aplicada extraterritorialidade, como exceção ao princípio geral da territorialidade da lei penal, é necessário que sejam analisados certos princípios que permitem ou fundamentam a aplicação da lei penal de determinado Estado, fora de seu território.

1) Princípio da personalidade ou da nacionalidade: de acordo com este princípio, a lei do Estado é aplicável ao seus cidadãos onde quer que eles se encontrem. O Estado tem o direito de exigir que o seu cidadão tem, no exterior, determinado comportamento. Pode-se, assim, punir o autor do delito, se nacional, quer tenha praticado o delito em seu país, quer o tenha feito fora dos limites territoriais. Este princípio subdivide-se em :

a) personalidade ativa: leva-se em consideração somente a nacionalidade do autor do delito. Não interessa a nacionalidade do sujeito passivo, ou seja, da vítima.

b) personalidade passiva: determina que se aplica a lei nacional ao cidadão que comete crime no estrangeiro contra bem jurídico do seu Estado ou contra sujeito passivo de sua nacionalidade. Assim, exige, este princípio, que sejam nacionais tanto o autor quanto o ofendido do ilícito penal.

Esse princípio tem por objetivo impedir a impunidade de nacionais por crimes praticados em outros países, posto que, conforme determina o art. 5º, LI, da CF e o art. 77, I, da Lei nº 6.815/80 – Estatuto do Estrangeiro, o Brasil não concede a extradição de nacionais, exceto dos naturalizados e quando se tratar da prática de crimes comuns. Conseqüência disso é submeter à lei brasileira os nacionais que tenham cometido crime no estrangeiro, sob pena de se fomentar a impunidade.

2) Princípio da defesa, real ou da proteção: este princípio tem em vista a titularidade ou nacionalidade do bem jurídico lesado ou exposto a perigo de lesão pelo delito cometido, independentemente do local de sua prática ou da nacionalidade do sujeito ativo. Protege-se, assim, determinados bens jurídicos que o Estado considera fundamentais.

Esse princípio, modernamente, tem recebido grande prestígio, principalmente em tempos de “economia global” ou “globalização”, onde, não raras vezes, os interesses nacionais têm sido lesados no estrangeiro, ante a necessidade, cada vez maior, do Estado proteger seus interesses além fronteiras.

Page 34: Direito Penal i

3) Princípio da justiça universal, da universalidade, da justiça cosmopolita, da jurisdição universal, da jurisdição mundial, da repressão universal ou da universalidade do direito de punir: segundo esse princípio, todo Estado tem o direito de punir qualquer crime, seja qual for a nacionalidade do agente ativo ou da vítima ou o local de sua prática, desde que o criminoso esteja dentro de seu território. Estaria, assim, os Estados em estreita cooperação na luta contra o crime, devendo obrigar-se a punir o criminoso que estivesse em seu território.

O fundamento desta teoria é ser o crime um mal universal, e por isso todos os Estados têm interesse em coibir a sua prática e proteger os bens jurídicos da lesão provocada pela infração penal.

Em verdade, seria o princípio ideal no combate à criminalidade, como se todo o planeta se constituísse em um só território para efeitos de repressão criminal. Esbarra ele, contudo, nos problemas de diversidade de legislação penal entre os países, na dificuldade de colheita de provas, etc. em razão disso e de outros fatores, não pode, obviamente, ter aplicação senão secundária, em casos restritos.

4) Princípio da representação, da bandeira ou do pavilhão: atribui ao Estado sob cuja bandeira está registrada a embarcação ou aeronave o poder de sujeitar à sua jurisdição penal os responsáveis por crimes cometidos a bordo dessa embarcação ou aeronave, ainda que em alto-mar ou em território estrangeiro e espaço aéreo correspondente, desde que haja deficiência legislativa ou desinteresse de quem deveria reprimir a conduta delitiva. É portanto, um princípio subsidiário, somente tendo incidência quando verificada a inércia do país que, com base no princípio da territorialidade ou demais princípios que informam a extraterritorialidade, teria jurisdição para reprimir.

VI- PRINCÍPIOS ADOTADOS PELO CÓDIGO PENAL ___________________

O CP adota, como regra geral, o princípio da territorialidade (art. 5º) e como exceção, os demais princípios que fundamentam a extraterritorialidade incondicionada e condicionada.

Antes de se estabelecer um quadro esquemático, é preciso esclarecer que a estrutura do CP, no que tange à extraterritorialidade não é imune à críticas. O art. 7º, I e II, do CP, enumeram as hipóteses de extraterritorialidade. Nos § § 1º e 2º, são encontradas, respectivamente, a extraterritorialidade incondicionada e as condições relativas ao inciso II. Quebrando essa estrutura, o § 3º arrola uma hipótese, o que deveria ter sido feito por inciso. Do modo como foi disposto, existem hipóteses dispostas em incisos e parágrafos, o que pode gerar, numa leitura menos atenciosa, certa confusão, na medida em que, o legislador destinou os dois primeiros parágrafos para estabelecer a existência de condições ou não para a aplicação da extraterritorialidade. Portanto, o § 3º, em verdade, deveria estar em uma alínea do inciso II.

- Extraterritorialidade Incondicionada – art. 7º, I, do CP:

- “a”, “b” e “c” – princípio da defesa, real ou da proteção;- “d” – para uns, princípio da nacionalidade ativa, para outros, princípio da

proteção. Por fim, uma terceira corrente, entende que se trata da aplicação do princípio da justiça universal ou cosmopolita.

Page 35: Direito Penal i

- Extraterritorialidade condicionada – art. 7º, II, do CP:

- “a” – princípio da universalidade ou da justiça cosmopolita;- “b” – princípio da nacionalidade ativa;- “c” – princípio da representação, do pavilhão ou da bandeira;- art. 7º, § 3º, “a” e “b” – princípio da proteção, real ou da defesa. Alguns

entendem que seria aplicável o princípio da nacionalidade passiva, contudo, conforme a exposição que se fez do princípio, não há possibilidade de aplicação, posto que este exige que tanto o sujeito ativo quanto o passivo sejam nacionais, o que não é o caso do § 3º.

Com base neste quadro esquemático, quer parecer que a visualização da aplicação dos princípios ora trabalhados se torna mais clara e mais facilmente assimilável.

Em conclusão, observe-se que, do modo como é conceituado, o princípio da nacionalidade passiva não tem aplicação em nosso ordenamento jurídico, pois fica absorvido em todos as hipóteses em que se poderia cogitar de sua aplicação, pelo princípio da defesa, real ou da proteção. Caso o mesmo fosse entendido como aplicável quando um cidadão brasileiro fosse vítima de um crime praticado no estrangeiro, independentemente da nacionalidade do sujeito ativo. Dentro deste conceito então, poderia ser aplicado o princípio da personalidade passiva. Entretanto, frize-se, nos moldes em que é entendido, não tem aplicação no direito penal brasileiro.

VII- CONDIÇÕES PARA INCIDÊNCIA DA EXTRATERRITORIALIDADE ___________________

O art. 7º, I, do CP trata, como já visto, da extraterritorialidade incondicionada. A importância dos bens jurídicos, objeto da proteção penal, justifica, em tese, essa incondicional aplicação da lei penal brasileira. Nestes crimes, o poder jurisdicional brasileiro é exercido independentemente da concordância do país onde o crime ocorreu.

Da mesma forma, a circunstância do fato ser lícito no pais onde foi praticado ou se estiver extinta a punibilidade é irrelevante para o direito penal brasileiro. Essa interpretação se extrai da conjugação do art. 7º, I e do seu § 1º, do CP.

Contudo, essa preocupação excessiva do legislador brasileiro em punir as infrações cometidas contra os bens descritos no inciso I, se adota de forma absoluta, pode levar à consagração de um injustificável “bis in idem”, posto que, conforme o § 1º, o agente seria punido no Brasil, ainda que condenado no estrangeiro.

Todavia, o art. 8º,do CP em boa hora corrige este desvio, determinando que, a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime quando forem diversas ( diversidade qualitativa), ou nela é computada quando idênticas (diversidade quantitativa).

Por outro lado, o art. 7º, II, do CP estabelece as hipótese de extraterritorialidade condicionada. A esta conclusão se chega pela interpretação que deve ser feita do § 2º, do mesmo artigo, que determina para a aplicação da lei penal brasileira, o concurso das seguintes condições: a) entrar o agente no território nacional; b) ser o fato punível também no país de origem em que foi praticado; estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não ter sido o agente

Page 36: Direito Penal i

absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

Não obstante, o § 3º, estabelece, ainda, além destas condições, mais duas, para a hipótese nele elencadas: a) não ter sido pedida ou tendo sido negada a extradição; b) houver requisição do Ministro da Justiça.

Importante saber, no que se refere às condições exigidas, a natureza jurídica das mesma, embora o professor Fernando Capez entenda que todas são condições de procedibilidade ou persecutibilidade.

Assim, o art. 7º, § 2º, do CP estabelece, em suas alíneas, as condições exigidas que possuem, cada qual, a seguinte natureza:

- a: condição de procedibilidade ou de persecutibilidade;- b: condição objetiva de punibilidade;- c: condição objetiva de punibilidade;- d: condição extintiva de punibilidade;- e: condição extintiva de punibilidade. Já no § 3º, do art. 7º, a primeira condição tem a natureza de condição

objetiva de punibilidade e a Segunda de condição objetiva de procedibilidade.

Pelo examinado, conclui-se que, no caso de extraterritorialidade condicionada, a jurisdição nacional é subsidiária. Se o autor de um crime praticado no estrangeiro for processado perante esse juízo, sua sentença preponderará sobre o juízo brasileiro. Caso o réu seja absolvido pelo juiz territorial, aplicar-se-á a regra “non bis in idem” para impedir a persecutio criminis (art. 7º, § 2º, d, CP). No entanto, no caso de condenação, se o condenado se subtrair à execução da pena, não lhe caberá invocar a regra acima mencionada: será julgado pelo órgãos judiciários nacionais e, se for o caso, condenado de novo, solução esta consagrada pelo art. 7º, § 2º “d” e “e”.

Já no caso das hipóteses do art. 5º (territorialidade) e do art. 7º, I (extraterritorialidade incondicionada), ambos do CP, a jurisdição nacional é principal, vale dizer, compete à jurisdição brasileira conhecer do crime, quer porque foi cometido no território nacional, quer por força do princípio da proteção, real ou da defesa. Desse modo, uma eventual absolvição no estrangeiro não impedirá uma nova ação penal no Brasil, nem uma sentença condenatória, tão somente devendo observar-se, quando for o caso, o disposto no art. 8º, do CP.

Por fim, é de se esclarecer que o princípio da extraterritorialidade é inaplicável para as contravenções penais. Tal constatação decorre do disposto no art. 2º da LCP pois, nos exatos termos: “a lei brasileira só é aplicável à contravenção praticada no território nacional.”

VIII- LUGAR DO CRIME___________________

A determinação do lugar em que o crime se considera praticado (“locus commissi delicti”) é decisiva no tocante à competência penal internacional. Nem sempre é fácil se apurar o local do crime, principalmente quando o “iter criminis“ se desenrola em lugares diferentes, os chamados crimes à distância ou de espaço máximo.

Para solucionar a questão surgem 03 teorias:

Page 37: Direito Penal i

1ª) Teoria da Atividade: considera-se como lugar do delito aquele em que é praticada a conduta típica, ou seja, onde praticou os atos executórios do crime. O defeito desta teoria reside na exclusão da atuação do Estado em que o bem jurídico foi atingido e, à evidência, onde o delito acabou produzindo os seus maiores efeitos nocivos.

2ª) Teoria do Resultado: considera-se lugar do crime aquele em que é produzido o resultado ou o evento, isto é, onde o crime se consumou, pouco importando o local da ação ou da omissão do agente. A crítica a esta teoria é a exclusão da atuação do Estado onde a ação se realizou, que tem justificado interesse na repressão do fato.

3ª) Teoria Mista ou da Ubiqüidade: considera-se lugar do crime tanto aquele em que se praticou a conduta quanto aquele em que se produziu o resultado. Será, portanto, considerado lugar do crime, o local onde se deu qualquer dos momentos do “iter criminis”.

O Brasil adotou, conforme o art. 6º, do CP, a teoria mista ouda ubiqüidade, ao preceituar: “considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado.”

Uma eventual lacuna que poderia restar da redação do art. 6º seria quando, por exemplo, o delito produzisse apenas parte do resultado no território nacional, tendo a ação ou omissão sido praticada fora dele. Pergunta-se, poderia ser aplicada a lei penal brasileira com base na teoria mista?

Para o professor Cezar Roberto Bitencourt a lei nacional não poderia ser aplicada posto que o legislador penal se referiu a parte da ação ou da omissão, mas não faz o mesmo em relação ao resultado, e parte do resultado não se pode confundir com todo este.

O professor José Frederico Marques, por sua vez, entende que a ocorrência de parte do resultado também é considerado um resultado, devendo ser aplicada a lei brasileira no caso de resultado parcial no Brasil.

Quer parecer que razão assiste a esse último posto que, não se poderia privar a jurisdição nacional de conhecer do crime quando parte do resultado se produziu no território nacional, tão somente porque a conduta não alcançou o êxito pleno pretendido, mormente quando o resultado parcial produzido assume proporções consideráveis e ofende parcialmente vários bens jurídicos.

A inaplicabilidade da lei penal brasileira nestes casos, seria aceitar, implicitamente, a teoria da ação e, consigo, as suas críticas, conforme acima mencionadas resumidamente.

Por fim, para fins de aplicação da lei penal brasileira, resultado é aquilo que forma a figura típica e que lhe é elemento constitutivo, não se incluindo, portanto, nesse conceito os efeitos secundários do crime que se produzam em território nacional. O único efeito que importa é o resultado típico, como, por exemplo, a morte no delito de homicídio.

Page 38: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- APLICAÇÃO DA LEI PENAL EM RELAÇÃO ÀS PESSOAS ___________________

De um modo geral, os limites da aplicação da lei processual penal em relação às pessoas são definidos pelos arts. 5º e 7º, do CP, que se referem ao crimes praticados no território nacional ou no estrangeiro, combinados com o art. 1º, do CPP, que prevê a aplicação do referido estatuto aos atos processuais praticados em todo território brasileiro. Em princípio, pois, as regras de processo penal aplicam-se a qualquer pessoa na hipótese de apuração de infração penal a eu se aplique a lei penal brasileira e aos atos processuais a serem praticados no Brasil embora decorrentes de processo sobre infração penal submetida às leis estrangeiras.

Contudo, a regra comporta exceções. O art. 1º, I, do CPP e o art. 5º, do CP (imunidades diplomáticas), art. 1º, II, do CPP (exclusão de aplicação do CPP ao Presidente da República, aos ministros de Estado nos crimes conexos com o do Presidente, aos ministros do STF, nos crimes de responsabilidade) e a Constituição Federal (imunidades parlamentares) as estabelecem.

Em qualquer dos casos, os privilégios não são estabelecidos em razão da pessoa, mas em razão da função exercida por ela, com o que não se viola o preceito constitucional da igualdade das pessoas perante a lei. As Constituições Federal e Estaduais prevêem, ainda, hipóteses de foro por prerrogativa de função.

I.1- IMUNIDADES DIPLOMÁTICAS

Os chefes de Estado e os representantes de governos estrangeiros estão excluídos da jurisdição criminal dos países em que exercem sua funções. Isto se dá em razão do respeito e consideração ao Estado que representam e na necessidade de cercar sua atividade de garantia para o perfeito desempenho de sua missão diplomática, considerada um aspecto da soberania do Estado estrangeiro.

Esta imunidade alcança os agentes diplomáticos, ao pessoal técnico e administrativo das representações, aos seus familiares e aos funcionários de organismos internacionais (ONU, OEA, etc.). Ficam excluídos da imunidade, os empregados particulares dos agentes diplomáticos, a não ser que o Estado Acreditante as reconheça. Em não sendo reconhecida a imunidade dos empregados particulares, o Estado Acreditado deverá exercer sua jurisdição sobre tais pessoas de modo a não interferir demasiadamente com o desempenho das funções da missão diplomática.

Questão interessante é se a referida imunidade estende-se ao aos cônsules. Estes são agentes administrativos que representam interesses de pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras. Assim, não gozam de imunidade diplomática, salvo se existir tratado entre as nações interessadas.

Contudo, os cônsules não estão sujeitos à jurisdição das autoridades judiciárias e administrativas do Estado receptor pelos atos realizados no exercício das funções consulares. Além disso, gozam de alguns privilégios a respeito da prisão preventiva.

Page 39: Direito Penal i

As sedes diplomáticas (embaixadas, sedes de organismos internacionais, etc.), já não são consideradas extensão do território estrangeiro, embora sejam invioláveis como garantia aos representantes alienígenas, não podendo, desse modo, ser objeto de busca e apreensão, penhor ou qualquer outra medida coercitiva, ficando assegurada a proteção aos seus arquivos, documentos, correspondência, etc., incluídos os dos funcionários consulares, por não pertencerem a estes, mas ao Estado a que eles servem.

É possível a renúncia à imunidade da jurisdição penal que, pela sua própria natureza, é de competência do Estado Acreditante, e não do agente diplomático.

I.2- IMUNIDADES PARLAMENTARES

As imunidades parlamentares compõem a prerrogativa que assegura aos membros do Congresso a mais ampla liberdade de palavra, no exercício de sua funções, e os protege contra abusos e violações por parte dos outros Poderes constitucionais.

As imunidades parlamentares, estabelecidas pela Constituição Federal, pode ser de duas ordens:

I.2.1- IMUNIDADES PARLAMENTARES ABSOLUTAS, MATERIAIS OU SUBSTANTIVAS

A imunidade absoluta vem disposta no artigo 53, da CF, com redação dada pela EC nº 35/01 – “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.”

Portanto, essa espécie de imunidade implica subtração da responsabilidade penal, civil, disciplinar ou política do parlamentar por suas manifestações. Com a nova redação do dispositivo constitucional, ampliou-se a imunidade para que, além da penal, se tornasse também civil, o que significa que o parlamentar não pode mais ser processado por perdas e danos materiais e morais em virtude de suas manifestações no exercício da função política.

Questão que tem gerado muita discussão na doutrina é quanto a natureza jurídica das imunidades absolutas. Pontes de Miranda, Nelson Hungria e José Afonso da Silva, entendem-na como causa excludente de crime; Heleno Cláudio Fragoso, considera-a como causa pessoal de exclusão de pena; Damásio de Jesus, como causa funcional de exclusão ou isenção de pena; Aníbal Bruno, como causa de exclusão de criminalidade; Magalhães Noronha como causa de irresponsabilidade; José Frederico Marques, como causa de incapacidade penal por razões políticas; Luiz Flávio Gomes, como causa de exclusão da tipicidade e, Fernando Capez, faz menção, ainda, àqueles que entendem-na como causa de exclusão de ilicitude

Em princípio, a teor do dispositivo constitucional, não seria necessário que o congressista se encontrasse no exercício de suas funções legislativas no momento do fato criminoso ou que a manifestação constitutiva do ilícito penal versasse sobre matéria parlamentar. Contudo, o STF entende que há a necessidade de um nexo entre a expressão de pensamento e a condição de parlamentar, porque, se não houver qualquer relação entre a ofensa e o exercício da função, inexistirá a garantia.

Por outro lado, havendo esta correlação, a imunidade estende-se a todos os “crimes de opinião ou de palavra”, não respondendo os parlamentares por crimes contra a honra, de incitação ao crime, de apologia de crime ou criminosos, etc., bem como, por delitos previstos na Lei de Imprensa, ou de qualquer outra lei especial.

Page 40: Direito Penal i

A imunidade absoluta é IRRENUNCIÁVEL, porque não é deferida em razão da pessoa do parlamentar, mas visa preservar o próprio regime representativo. Ela é inerente ao mandato. Assim, o parlamentar não pode renunciar aquilo que não lhe pertence. A imunidade pertence ao Parlamento, não ao parlamentar.

A imunidade absoluta inicia-se com a diplomação do parlamentar. Este termo inicial é obtido de forma indireta, já que a CF não faz referência expressa ao início da mesma, referindo-se tão somente à ao início da imunidade relativa, conforme o art. 53, § 2º, da CF. Encerra-se com o término do mandato. Contudo, mesmo após o mandato, o parlamentar não poderá ser processado por fato praticado em razão de sua função, durante o período da imunidade.

A imunidade absoluta aplica-se, da mesma forma, aos deputados estaduais, por força do disposto no artigo 27, § 1º, da CF – “Será de quatro anos o mandato dos Deputados Estaduais, aplicando-se-lhes as regras desta Constituição sobre o sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimento e incorporação às Forças Armadas.” Contudo, as Constituições Estaduais devem prever a referida imunidade nos exatos termos da CF, não podendo aumentar ou diminuir as garantias dos parlamentares.

Os vereadores também gozam da imunidade absoluta, ou da imunidade pelos crimes de opinião, nos exatos termos do disposto no art. 29, VIII, da CF – “inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município;”. Assim, o destaque é que a imunidade dos parlamentares municipais fica adstrita à circunscrição do Município, abrangendo, por exemplo, as declarações prestadas em emissoras de radiofusão, cujo alcance é indeterminado.

I.2.2- IMUNIDADES PARLAMENTARES RELATIVAS, FORMAIS OU PROCESSUAIS

As imunidades relativas são aquelas que se referem à prisão, ao processo, às prerrogativas de foro e para servir como testemunha, embora somente as duas primeiras sejam incluídas na noção de imunidade processual em sentido estrito.

A EC nº 35/01 alterou significativamente a disciplina da chamada imunidade formal

Vem disposta no artigo 53, §§ 1º, 2º e 3º, da CF, com a nova redação passaram a estabelecer: § 1º- “Os deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.” §2º - Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.” § 3º - “Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.”

Portanto, observa-se que o controle legislativo deixou de ser prévio, passando a ser posterior: não existe mais a possibilidade de licença prévia para processar o parlamentar.

Para que não restem dúvidas quanto à persecução penal dos parlamentares, é importante se estabelecer o momento em que se deu a prática do crime:

Page 41: Direito Penal i

- crimes praticados antes da diplomação: não haverá incidência de qualquer imunidade formal em relação ao processo, podendo o parlamentar ser normalmente processado e julgado pelo STF, enquanto durar o mandato.

- crimes praticados após a diplomação: o parlamentar poderá ser processado e julgado pelo STF, enquanto durar o mandato, sem necessidade de qualquer autorização, porém, a pedido de partido político com representação na Casa Legislativa respectiva, esta poderá sustar o andamento da ação penal pelo voto aberto (ostensivo e nominal) da maioria absoluta de seus membros. A suspensão da ação penal persistirá enquanto durar o mandato, e acarretará, igualmente, a suspensão da prescrição.

Conclui-se, portanto, que com a nova disciplina, a imunidade formal não impede mais o oferecimento da denúncia contra o parlamentar, não havendo mais que se falar em imunidade processual como condição de prosseguibilidade da ação penal.

A sustação do andamento da ação penal pela Casa Legislativa respectiva dependerá dos seguintes requisitos:

1) Momento da prática do crime: independentemente da natureza do crime praticado, somente haverá incidência da imunidade formal em relação ao processo, quando a infração tiver sido cometida pelo parlamentar após a diplomação.

2) Termo para sustação do processo: somente poderá ser iniciado o procedimento pela Casa Legislativa, se houver ação penal em andamento, ou seja, após o recebimento da denúncia ou queixa-crime pelo STF; persistindo essa possibilidade até a decisão final ou até o término do mandato, quando, então, cessarão todas as imunidades.

3) Provocação de partido político com representação da própria Casa Legislativa: importante ressaltar que não será a ciência do STF à Casa Legislativa respectiva, informando do início da ação pena contra parlamentar por crime praticado após a diplomação, que iniciará o procedimento para análise da sustação da ação penal. Haverá, por necessidade, provocação de partido político com representação na referida Casa Legislativa. A Casa Legislativa não poderá, portanto, agir de ofício ou mesmo por provocação de qualquer de seus membros, posto que a EC nº 35/01 somente concedeu legitimidade aos partidos políticos com representação para a deflagração desse procedimento, por seus órgãos dirigentes, nos termos de seus próprios estatutos.

4) Prazo para análise do pedido de sustação: a Casa Legislativa terá 45 dias do recebimento do pedido de sustação pela Mesa Diretora, para votar o assunto, sendo improrrogável esse prazo.

5) Quórum qualificado para a sustação do processo: a sustação somente se dará pelo voto da maioria absoluta dos membros da Casa Legislativa, votos esses que deverão ser ostensivos e nominais.

Page 42: Direito Penal i

A nova disciplina da imunidade formal, em face de sua nítida natureza processual, tem aplicação imediata (art. 2º, do CPP – “tempus regit actum”) permitindo ao STF o início da ação penal em relação a todas as infrações penais praticadas por parlamentares, inclusive em relação àquelas em que a licença – até então exigida – tivesse sido negada.

No que tange à abrangência da imunidade formal, independem de licença quaisquer processos ou medidas de natureza cível, administrativa ou disciplinar, ou mesmo ações penais em relação a crimes cometidos antes da diplomação.

Igualmente, a nova disciplina da imunidade formal não produzirá nenhum efeito em relação ao prosseguimento de processo criminal, nas hipóteses em que, ao tempo de sua investidura, o parlamentar já estivesse sendo processado, em qualquer juízo ou Tribunal. Nessa hipótese, a competência alterar-se-á para o STF que prosseguirá normalmente com o processo penal. Nestes casos, destaque-se que, o STF não tem sequer a obrigação de comunicar a Casa Legislativa sobre a existência da ação penal em curso.

Ainda, no que diz respeito à suspensão do processo, é de se observar o disposto no art. 53, § 5º,da CF. Havendo a possibilidade da sustação da ação penal perante o STF, o Texto Constitucional, com a finalidade de evitar a impunidade, determina que a prescrição ficará suspensa enquanto durar o mandato.

Dessa forma, o termo inicial para a suspensão da prescrição coincide com o momento em que a Casa Legislativa susta o andamento da ação penal; e o termo final para essa suspensão será o término do mandato.

Por outro lado, no que toca ao Presidente da República e ao Governador, continua vigente o instituto da licença prévia da Câmara dos Deputados ou da Assembléia Legislativa.

No que tange à imunidade formal relacionada à prisão, a EC nº 35/01 também disciplinou de forma diversa. Com peculiar acerto a referida emenda revogou a previsão existente até então no Texto Magno (antigo art. 53, § 3º, da CF) que exigia voto secreto para deliberação sobre a prisão do parlamentar, pois a votação ostensiva e nominal no julgamento de condutas dos agentes políticos é a única forma condizente com os princípios da soberania popular e da publicidade consagrados, respectivamente, no art. 1º, parágrafo único da CF e no art. 37, “caput”, da CF.

Quanto à possibilidade da prisão do parlamentar em virtude de decisão judicial com trânsito em julgado, o STF posiciona-se pela sua admissibilidade, por entender que a garantia jurídico-institucional da imunidade parlamentar formal não obsta, observado o devido processo legal, a execução de penas privativas de liberdade definitivamente impostas ao parlamentar.

Por outro lado, manteve-se a orientação de que os parlamentares nunca podem ser presos, ainda que em flagrante, se o crime for afiançável.

As referidas imunidades dizem respeito à prática, pelo parlamentar, de crimes comuns, entendendo-se estes, como todos aqueles não abrangidos pela imunidade absoluta (crimes de opinião), inclusive os definidos em leis penais especiais. Não se trata de opor aqui a espécie de crimes comuns aos de responsabilidade referidos no artigo 85, da CF ou aos crimes políticos.

Os membros do Congresso Nacional são protegidos pela imunidade absoluta nos crimes de opinião e pela imunidade processual nos demais.

Conforme o art. 27, § 1º, da CF, esta imunidade também se estende aos Deputados estaduais. Contudo, os vereadores não são beneficiários da imunidade processual, por falta de previsão constitucional. Assim, não podem prevê-la as Constituições Estaduais ou as Leis Orgânicas dos Municípios, por se tratar de matéria

Page 43: Direito Penal i

penal e processual penal que só pode ser objeto de lei estadual nos casos especificados na Constituição Federal.

I.3- FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

Entre as imunidades relativas, em sentido amplo, encontram-se as referentes ao foro por prerrogativa de função, também denominada de competência originária “ratione personae”, consistente na atribuição de competência a certos órgãos superiores da jurisdição para processar e julgar originariamente determinadas pessoas, ocupantes de cargos ou funções públicas de especial relevo na estrutura federativa. Esta competência é determinada pela Constituição Federal e pelas Constituições Estaduais.

A matéria será tratada com mais vagar quando se trabalhar com competência, bastando por hora, destacar-se três pontos de especial importância:

- A súmula 394 do STF foi revogada. Assim, caso o parlamentar venha a cometer o delito durante o exercício do mandato, deve ser observado o foro por prerrogativa de função. Contudo, cessado o mandato o processo é encaminhado para o foro que normalmente seria competente;

- A súmula 03 do STF estabelece que o foro por prerrogativa de função concedido aos deputados estaduais só podem ser argüidas perante as autoridades judiciárias locais, não podendo ser invocada em face do Poder Judiciário federal;

- A competência por prerrogativa de função concedida pela Constituição Federal prevalece sobre a competência do Júri, em razão da especialidade da norma dos arts. 102, 105 e 108, em relação ao art. 5º, XXXVIII, da CF. Contudo quando o foro por prerrogativa de função for concedido por qualquer outra norma, federal ou estadual, ela não prevalecerá sobre a competência do Júri.

Quanto ao foro por prerrogativa de função, embora o próprio STF tenha revogado a Súmula 394 é de se noticiar, ainda que rapidamente, posto que a matéria será tratada com maior atenção quando se enfrentar o instituto da competência, que a Lei nº 10.628/02, alterou o art. 84, do CPP, estabelecendo o foro por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública, o que vale também para os processo penais em decorrência de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92), conforme o § 2º, do referido artigo 84, do CPP ora alterado.

I.4- IMUNIDADE PARA SERVIR COMO TESTEMUNHA

Os agentes diplomáticos não são obrigados a prestar depoimento como testemunha. Os cônsules são obrigados a depor, exceto sobre fatos relacionados com o exercício de suas funções, conforme a Convenção de Viena.

Os deputados e senadores não são obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes conferiram ou deles receberam informações, conforme art. 53, § 5º, da CF. Esta imunidade estende-se aos deputados estaduais. Quanto ao mais, os parlamentares estão obrigados a depor, praticando crime de desobediência se recusarem a prestá-los, ou de falso testemunho se calarem ou falsearem a verdade (art. 342, do CP).

Page 44: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- CONFLITO APARENTE DE NORMAS ___________________

A tipicidade de uma conduta, ou seja, a subsunção de determinada ação humana a um tipo legal de crime, pode oferecer ao aplicador da lei dificuldades significativas quando a mesma conduta criminosa apresente características previstas em mais de um tipo penal

Surge assim, o conflito aparente de normas que pode ser conceituado como o conflito que se estabelece entre duas ou mais normas aparentemente aplicáveis ao mesmo fato. Há conflito porque mais de uma pretende regular o fato, mas apenas aparentemente, porque, com efeito, tão somente uma delas acaba sendo aplicada à espécie.

Evidentemente, que não se trata de um conflito efetivo de normas, sob pena de o Direito Penal deixar de constituir um sistema, ordenado e harmônico, onde suas normas apresentam entre si uma relação de dependência e hierarquia, permitindo a aplicação de uma só lei ao caso concreto, excluindo ou absorvendo as demais.

Diante disso, observa-se, para que se fale em conflito aparente de normas, a necessidade da ocorrência de determinados requisitos, a saber:

1) unidade de fato (há somente uma infração penal);2) pluralidade de normas que (aparentemente) pretendem regular o fato;3) aparente aplicação de todas as normas à espécie (tal incidência é

apenas aparente);4) efetiva aplicação de apenas uma norma (somente uma norma é

aplicável, daí porque o conflito é apenas aparente); A solução desse conflito, frise-se, aparente, se dá, ao contrário do que

ocorre com o concurso de crimes que vem regulado em lei, pela aplicação de alguns princípios, os quais ao mesmo tempo em que afastam as normas não incidentes, apontam aquela que realmente regula o caso concreto. Tais princípios são: a) da especialidade; b) da subsidiariedade; c) da consunção ou absorção e, para parte da doutrina, d) da alternatividade.

II- PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE – “Lex epecialis derogat legi generali” ___________________

Se entre duas normas existe uma relação de especialidade, isto é, de gênero para espécie, a regra é a de que a norma especial afasta a incidência da norma geral. Considera-se especial a norma que contém todos os elementos da geral e mais o elemento especializador. Há, pois, na norma especial, um plus, isto é, um detalhe a mais que sutilmente a distingue da norma geral.

Para se saber qual é a norma especial e qual é a norma geral, não é preciso analisar o fato concreto praticado, sendo suficiente que se compare abstratamente as descrições contidas nos tipos penais. A isto eqüivale dizer que a prevalência da norma especial sobre a geral se estabelece “in abstracto”, pela comparação das definições abstratas contidas nas normas, enquanto os outros exigem um confronto em concreto das

Page 45: Direito Penal i

leis que descrevem o mesmo fato. Ex: art. 121 e 123, ambos do CP; art. 334 do CP e art. 12, da Lei 6368/76.

Da mesma forma, o tipo básico é excluído pelo qualificado ou pelo privilegiado, também pelo princípio da especialidade, já que os tipos derivados possuem todos os elementos do básico, mais os especializantes. Assim, por exemplo, o furto privilegiado e o qualificado prevalecem sobre o simples.

III- PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE – “Lex primaria derogat legi subsidiariae” ___________________

Norma subsidiária é aquela de descreve um grau menor de violação de um mesmo bem jurídico, isto é, um fato menos amplo e menos grave, o qual, embora definido como delito autônomo, encontra-se também compreendido em outro tipo como fase normal de execução de crime mais grave. Define, portanto, como delito independente conduta que funciona como parte de um crime maior.

Assim, haverá subsidiariedade quando diferentes normas protegem o mesmo bem jurídico em diferentes fases, etapas ou graus de agressão.

Para que o legislador puna o agente pela fase anterior, exige-se a condição de que este agente não incorra na punição da fase posterior, mas grave, em que só esta última prevalece.

A norma primária prevalece sobre a norma subsidiária, que passa a funcionar como “tipo reserva”. Tenta-se aplicar a norma primária, e somente quando ela não se aplicar ao caso concreto, recorre-se subsidiariamente à norma menos ampla.

A subsidiariedade pode ser expressa, como no caso do art. 132, e art. 129, § 3º, ambos do CP, ou pode não ser expressa, ou seja, pode ser tácita.

Há subsidiariedade tácita nos tipos penais que descrevem fase prévia, de passagem necessária para a realização do delito mais grave cuja punição abrange todas as etapas anteriores de execução. Assim, por exemplo, ocorre com a tentativa em relação ao crime consumado, com as lesões corporais em relação ao homicídio, art. 157 e 146, do CP, etc.

Observe-se que, ao contrário do princípio da especialidade, para a aplicação do princípio da subsidiariedade, é imprescindível a análise do caso concreto, sendo insuficiente a mera comparação dos tipos penais. Com efeito, da mera leitura de tipos penais não se saberá qual deles deve ser aplicado ao caso concreto.

Na subsidiariedade não existem elementos especializantes, mas descrição típica de fato mais abrangente e mais grave. O referencial, portanto, é diferente. Uma norma é mais ampla do que a outra, mas não necessariamente especial. A comparação se faz de parte a todo, de conteúdo para continente, de menos para mais amplo, de menos para mais grave. Um fato (subsidiário) está dentro de outro (primário).

IV- PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO OU ABSORÇÃO – “Lex consumens derogat legi consumptae” ___________________

É o princípio pelo qual um fato mais amplo e mais grave consome, isto é, absorve, outros fatos menos amplos e graves, que funcionam como fase normal de preparação ou execução ou como mero exaurimento.

Page 46: Direito Penal i

A linha que diferencia o princípio da consunção do princípio da subsidiariedade é muito tênue. Na verdade, a diferença está apenas no enfoque dado na incidência do princípio. Na subsidiariedade, em função do dato praticado, comparam-se as normas para se saber qual é a aplicável. Na consunção, sem recorrer às normas, comparam-se os fatos, verificando-se que o mais grave absorve todos os demais. A comparação, portanto, é estabelecida entre fatos e não entre normas, de maneira que o mais perfeito, o mais completo, o todo prevalece sobre a parte.

Em verdade, esse princípio é muito discutido, de conceituação pouco precisa e, em alguns casos, de utilidade problemática ante a possibilidade de solução satisfatória com a aplicação dos princípios anteriormente examinados.

Todavia, há casos que, sem dúvida, não são abrangidos pela especialidade ou pela subsidiariedade, sendo resolvidos tão somente pelo princípio da consunção, daí mais do que justificada a sua aceitação pela doutrina. Tais casos são:

- Crimes Progressivos: ocorre quando o agente, objetivando, desde o início, produzir resultado mais grave, pratica, por meio de atos sucessivos, crescentes violações ao bem jurídico. Há uma única conduta comandada por uma única vontade, mas compreendida por diversos atos.

- Crimes Complexos: são os que resultam da fusão de dois ou mais delitos autônomos, que passam a funcionar como elementares ou circunstâncias do tipo complexo. Ex: latrocínio – roubo + homicídio.

- Progressão Criminosa: está compreende três subespécies:a) progressão criminosa “stricto sensu”: quando o agente deseja

inicialmente produzir um resultado e, após atingi-lo, decide prosseguir e reiniciar sua agressão produzindo uma lesão mais grave. Distingue-se do crime progressivo, porque, enquanto neste há unidade de desígnios (desde logo o agente já quer o resultado mais grave), na progressão criminosa ocorre pluralidade de elemento subjetivo, ou seja, pluralidade de vontades (inicialmente quer um resultado e, após atingi-lo, muda de idéia e resolve provocar outro mais grave);

b) fato anterior não punível (“ante factum” não punível): sempre que um fato anterior menos grave for praticado como meio necessário para a realização de outro mais grave, ficará por este absorvido. Note que o fato anterior que integra a fase de preparação ou de execução somente será absorvido se form de menor gravidade;

c) fato posterior não punível (“post factum” não punível): ocorre quando, após realizada a conduta, o agente pratica novo ataque contra o mesmo bem jurídico, visando apenas tirar proveito da prática anterior. O fato posterior é tomado como mero exaurimento.

V- PRINCÍPIO DA ALTERNATIVIDADE ___________________

Ocorre quando a norma descreve várias formas de realização da figura típica, em que a realização de uma ou de todas configura um único crime. São chamados tipos mistos alternativos, os quais descrevem crimes de ação múltipla ou de conteúdo variado.

Em verdade, não há propriamente um conflito aparente de norma, mas um conflito interno da própria norma. Além disso, o princípio da consunção resolve com vantagem o mesmo conflito

Page 47: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

TEORIA GERAL DO DELITO

I- CONCEITOS DE CRIME ___________________

Em conseqüência do caráter dogmático do Direito Penal, o conceito de crime é essencialmente jurídico. Atendendo-se ao aspecto externo, puramente nominal do ato, obtém-se uma definição formal; observando-se o conteúdo do fato punível, consegue-se uma definição material ou substancial; examinando-se as características ou aspectos do crime, chega-se a um conceito analítico, estratificado ou estrutural do crime.

É extremamente importante que se conheçam esses conceitos de crime, posto que, todo estudo de qualquer instituto jurídico-penal tem fundamento na noção de crime.

1) Conceito Formal de crime: esse conceito resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal e, portanto, considera-se infração penal tudo aquilo que o legislador descrever como tal, pouco importando o seu conteúdo. Considera-se a existência de um crime sem levar em conta sua essência ou lesividade material. Valora-se excessivamente o aspecto externo do delito, utilizando-se de uma operação de simples adequação do fato à norma, sem, todavia, penetrar em sua essência, em seu conteúdo, em sua matéria. Assim, segundo esse conceito crime é todo fato humano contrário à lei. Crime é uma conduta contrária ao Direito, a que a lei atribui uma pena. CRIME É TODA AÇÃO OU OMISSÃO PROIBIDA PELA LEI SOB AMEAÇA DE UMA PENA.

2) Conceito Material de crime: esse conceito busca estabelecer a essência do conceito, isto é, o porquê de determinado fato ser considerado criminoso e outro não. Nota-se uma preocupação com o caráter teleológico do crime, procurando se analisar a razão que levou o legislador a definir determinada conduta como típica, a sua natureza danosa e suas conseqüências. Esse conceito substitui a coerência formal de um pensamento jurídico circunscrito em si mesmo por um conceito de delito voltado para os fins pretendidos pelo Direito Penal e pelas perspectivas valorativas que o embasam. Neste passo, crime é todo fato humano que, propositada ou descuidadamente, lesa ou expõe a perigo bens jurídicos considerados fundamentais para a existência da coletividade e da paz social. Crime é qualquer fato do homem, lesivo a um interesse, que possa comprometer as condições de existência, de conservação e de desenvolvimento da sociedade. CRIME É A CONDUTA HUMANA QUE LESA OU EXPÕE A PERIGO UM BEM JURÍDICO PENALMENTE TUTELADO.

Page 48: Direito Penal i

3) Conceito Analítico de crime: esse conceito busca, sob um prisma jurídico, estabelecer os elementos estruturais do crime. A finalidade desse enfoque é propiciar a correta e mais justa decisão sobre a infração penal e seu autor, fazendo com que o julgador ou intérprete desenvolva seu raciocínio em etapas. O que não se pretende é passar a idéia de que o crime é algo divisível. Não o é. Ao contrário, o crime é um todo e apenas como um todo gera repercussão no mundo jurídico. A divisão que se faz dos elementos que o compõe se dá por razões didáticas, vale dizer, visa-se facilitar a análise da ocorrência de um crime, analisando-se por etapas os seus elementos, sendo que o segundo elementos somente será analisado após a verificação do primeiro, e assim por diante. Logo, CRIME É TODA CONTUDA HUMANA TÍPICA, ANTIJURÍDICA (ILÍCITA) E CULPÁVEL.

É de se colocar que, em relação ao conceito analítico de crime, alguns doutrinadores, tais como Damásio de Jesus, Fernando Capez e Walter Coelho, defendem a idéia de que crime é TODO FATO HUMANO TÍPICO E ANTIJURÍDICO (ILÍCITO), sendo que a culpabilidade seria pressuposto da pena.

Contudo, tal orientação não é seguida pela grande maioria dos doutrinadores finalistas, que defendem a idéia de que a ação ou omissão típica e antijurídica para constituir crime têm que ser culpáveis. Na verdade, somente uma ação humana pode ser censurável, somente ela pode ser objeto do juízo de censura. Não se pode, em verdade, confundir objeto da valoração com a valoração do objeto. Assim, o objeto da valoração é a conduta humana, tida como censurável. E a valoração do objeto é o juízo de censura que se faz sobre a ação que se valora.

A admissão da culpabilidade apenas como pressuposto da pena não pode prosperar. Para tanto, é necessário que se façam algumas indagações para sustentar tal posição: a) Seria possível a imposição de uma sanção a uma ação típica, que não fosse antijurídica? b) Poder-se-ia sancionar uma ação antijurídica que não se adequasse a uma descrição típica? c) A sanção penal (pena e medida de segurança) não é uma conseqüência jurídica do crime? d) A tipicidade e a antijuridicidade não seriam também pressupostos da pena? Na medida em que a sanção penal é conseqüência jurídica do crime, este, com todos os seus elementos, é pressuposto daquela. Assim, não somente a culpabilidade, mas igualmente a tipicidade e a ilicitude, são pressupostos da pena, que é a sua conseqüência.

II- FATO TÍPICO ___________________

Para que se possa afirmar que o fato concreto tem tipicidade, é necessário que ele se contenha perfeitamente na descrição legal, ou seja, que haja perfeita adequação do fato concreto ao tipo penal. Assim, fato típico pode ser conceituado como fato material que se amolda perfeitamente aos elementos constantes do modelo previsto na lei penal. Tais elementos, que serão analisados separadamente são:

- conduta (ação ou omissão) humana;- o resultado;- a relação de causalidade ou nexo causal;

Page 49: Direito Penal i

- a tipicidade. Caso o fato concreto não apresente um desses elementos, não é fato típico e, portanto, não é crime. Excetua-se, no caso, a tentativa, onde não se verifica o resultado.

II.1- AÇÃO OU CONDUTA HUMANA ___________________

O sistema penal vigente está substancialmente formado por um conjunto de normas que proíbem, determinam ou simplesmente permitem fazer ou não fazer. Essas normas, que podem facilmente ser deduzidas da lei penal mas que com esta nem sempre se confundem, dirigem-se a todo aquele que seja capaz de realizar a ação proibida, ou de omitir a determinada, e que, nas circunstâncias, tenha o dever de realização ou de abstenção do ato.

Ás normas proibitivas correspondem os denominados delito de ação ou tipos comissivos – o agente faz o que estava proibido. Às normas preceptivas correspondem os delitos de omissão ou tipos omissivos – o agente não faz o que podia e estava obrigado a fazer. Não obstante, pode ainda ocorrer uma hipótese híbrida de o agente, com o não fazer, contrariar duas normas, uma preceptiva, outra proibitiva, como ocorre com os denominados delitos omissivos impróprios ou comissivos por omissão.

Disso decorre que, o fato-crime consiste sempre e necessariamente em uma atividade humana, positiva ou negativa, pois a contrariedade ao comando da norma, que concretiza a realização de um tipo delitivo, só se estabelece diante da existência de uma ação ou omissão, que seja fruto de uma vontade, capaz de orientar-se pelo dever-ser da norma.

Pode-se definir a conduta como sendo a ação ou omissão humana, consciente e voluntária, dirigida a uma finalidade.

TEORIAS DA CONDUTA

Três teorias se apresentam, procurando estabelecer o que se deva entender como conduta, haja vista que, conforme o sentido que se dê à palavra ação (entendida em sentido amplo, abrangendo a ação em sentido estrito – fazer, e a omissão – não fazer), modifica-se o conceito estrutural de crime.

1) TEORIA CAUSALISTA, NATURAL OU CLÁSSICA.

Essa teoria foi concebida em momento de excessivo apego às leis, em que a igualdade formal era alcançada por meio de regras genéricas e objetivas e surgia como um eficiente meio de controlar abusos e arbitrariedades do Estado.

Foi sob a égide desse positivismo jurídico que surgiu o conceito causal de ação, elaborado por Von Liszt e Beling, no final do século XIX. A ação consistia numa modificação causal do mundo exterior, perceptível pelos sentidos, e produzida por uma manifestação de vontade, isto é, por uma ação ou omissão voluntária.

Assim, a ação era entendida como o movimento corporal voluntário que causava modificação no mundo exterior. A manifestação de vontade, o resultado e a relação de causalidade eram os três elementos do conceito de ação. Abstraia-se, no

Page 50: Direito Penal i

entanto, desse conceito o conteúdo da vontade, que era deslocado para a culpabilidade (dolo e culpa).

Havia um fracionamento da ação, dividindo-a em: a) processo causal/externo objetivo – que abarcava a ação e o resultado; b) processo volitivo/interno subjetivo – que englobava o conteúdo da vontade.

Portanto, essa teoria foi a responsável pela divisão da ação humana em dois segmentos distintos: de um lado, o processo causal visível, isto é, a conduta corporal do agente e o seu efeito ou resultado; de outro, o querer interno do agente. Situava-se no injusto o encadeamento causal externo e, na culpabilidade, todos os elementos subjetivos, isto é, os elementos internos, anímicos do agente.

O resultado penalmente relevante consistia em uma modificação no mundo exterior físico, perceptível do ponto de vista material, isto é, sensorialmente. A conduta era, assim, tratada como uma simples exteriorização de movimento ou abstenção de comportamento exigido, desprovida de qualquer finalidade. Para a caracterização do fato típico era dispensável a avaliação de elementos subjetivos, deslocando-se tal estudo para o momento de verificação da culpabilidade, que era entendida como puramente psicológica, sem qualquer traço normativo.

Por essa razão, tornava-se totalmente desnecessário, para efeito de configuração do crime, saber se o resultado foi produzido pela vontade do agente ou se decorreu de sua atuação culposa, interessando apenas indagar acerca de seu causador material.

Destarte, essa teoria limitava-se a perguntar o que foi causado pelo querer do agente, qual o efeito produzido por dito querer. Era irrelevante se estes efeitos eram também conteúdo da consciência e do querer do agente, e até que ponto o eram. Para afirmar que existia uma ação bastava a certeza de que o sujeito tinha atuado voluntariamente. O que quis (ou seja, o conteúdo da vontade) era por ora irrelevante: o conteúdo do ato de vontade somente tinha importância quando se trabalhava com a culpabilidade.

Observa-se, portanto, que os autores da época clássica pretenderam estabelecer uma dogmática, com base lógica, sem a preocupação de conteúdos valorativos, circunscritos às normas jurídicas.

Essa teoria não logrou êxito em se firmar na medida em que, no início do século XX descobriram-se elementos subjetivos do tipo, que deram origem aos chamados delitos de intenção. A teoria causal não conseguia explicar essa tipicidade composta não só por elementos objetivos, mas também por elementos subjetivos. Por outro lado, com o reconhecimento de que na tentativa o dolo é um elemento subjetivo do injusto, desintegrou-se o sistema clássico de ação, que se fundamentava nessa distinção básica entre causal-objetivo e anímico-subjetivo. Ora, se o dolo pertence ao injusto da tentativa, não pode ser somente elemento da culpabilidade na consumação, especialmente quando se admite que a distinção entre tentativa e consumação carece de relevância material. Da mesma forma, a teoria encontrou dificuldades insuperáveis em relação aos crimes culposos, especialmente com a compreensão de que o fator decisivo do injusto, nesses crimes, é o desvalor da conduta. Ainda, a referida teoria não se aplicava aos crimes omissivos, aonde não se tinha uma ação, vale dizer, não se tinha um movimento corporal, ao contrário, se observava uma inação, ou uma não-ação. Faltava a relação de causalidade entre a não-realização de um movimento corporal e o resultado.

Page 51: Direito Penal i

2) TEORIA FINALISTA DA AÇÃO

Em oposição à teoria causal da ação surge a teoria finalista da ação. Os questionamentos que formularam essa última dirigiam-se à injustificável desconsideração da vontade humana na apreciação do fato típico, por parte dos causalistas: ora, no homicídio, a despeito do resultado ser idêntico – morte - , por que o homicídio doloso é considerado um crime mais grave que o homicídio culposo?

Deve-se concluir que essa diferença de tratamento legal não depende apenas da causação do resultado, mas, sim, da forma como foi praticada a ação. A partir dessa constatação, o delito não poderia mais ser conceituado apenas como um simples desvalor do resultado, passando antes a configurar um desvalor da conduta.

Matar alguém do ponto de vista objetivo, configura a mesma ação, mas matar alguém para vingar o estupro da filha é subjetivamente diferente do que matar por dinheiro. A diferença entre as duas condutas não reside, portanto, no desvalor do resultado, mas sim, no desvalor da ação, posto que o resultado em ambas foi o mesmo.

Opondo-se ao conceito causal de ação, e especialmente à insustentável separação entre a vontade e seu conteúdo, Welzel elaborou o conceito finalista de ação. O mérito da teoria finalista da ação é o de superar a taxativa separação dos aspectos objetivos e subjetivos da ação e do próprio injusto, transformando, assim, o injusto naturalístico em injusto pessoal.

Para Welzel, toda ação humana é o exercício de uma atividade final. A ação é portanto um acontecer final e não puramente causal. A finalidade ou o caráter final da ação baseia-se em que o homem, graças ao seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as conseqüências possíveis de sua conduta.

Prossegue o autor dizendo que a atividade final é uma atividade dirigida conscientemente em função do fim, enquanto que o acontecer causal não está dirigido em função do fim, mas é resultante causal da constelação de causas existentes em cada caso. A finalidade é, por assim dizer, vidente; a causalidade é cega.

A vontade, portanto, é a espinha dorsal da ação final, considerando que a finalidade baseia-se na capacidade de vontade de prever, dentro de certos limites, as conseqüências de sua intervenção no curso causal e de dirigi-lo, por conseguinte, à consecução de um fim.

Sem vontade, que dirige o suceder causal externo, convertendo-o em uma ação dirigida finalisticamente, a ação ficaria destruída em sua estrutura e seria rebaixada a um processo causal cego. A vontade final, como fator que configura objetivamente o acontecer real, pertence, por isso, à ação.

Dentro desse conceito finalista, a ação realiza-se em duas fases:

1ª) subjetiva: ocorre na esfera intelectiva: a)antecipação do fim que o agente quer realizar (objetivo pretendido); b) seleção dos meios adequados para a consecução do fim (meios de execução); c) consideração dos efeitos concomitantes relacionados à utilização dos meios e o propósito a ser alcançado (conseqüências da relação meio/fim).

2ª) objetiva: ocorre no mundo real: execução da ação real, dominada pela determinação do fim e dos meios na esfera do pensamento. Em outros termos, o agente põe em movimento, segundo um plano, o processo causal, dominado pela finalidade, procurando alcançar o objetivo proposto. Se por qualquer razão, não se consegue o domínio final ou não se produz o resultado, a ação será apenas tentada.

Page 52: Direito Penal i

Em síntese, a conduta realiza-se mediante a manifestação da vontade dirigida a um fim. O conteúdo da vontade está na ação, é a vontade dirigida a um fim, e integra a própria conduta e assim, deve ser apreciada juridicamente.

A vontade constitui elemento indispensável à ação de qualquer crime, sendo o seu próprio cerne. Isso não tem o condão de deslocar para o âmbito da ação típica o exame do conteúdo de formação dessa vontade, estudo que há de ser reservado à culpabilidade.

3) TEORIA SOCIAL DA AÇÃOPreceitua a teoria social da ação que um fato considerado normal, correto,

justo e adequado pela coletividade, não pode ao mesmo tempo produzir algum dano a essa mesma coletividade, e, por essa razão, ainda que formalmente enquadrável em um tipo incriminador, não pode ser considerado típico.

Um fato não pode ser definido em lei como infração penal e, ao mesmo tempo, ser aplaudido, tolerado e aceito pela sociedade. Tal antinomia fere as bases de um sistema que se quer democrático.

Com base nessa premissa básica, construiu-se a teoria da adequação social, para excluir do âmbito de incidência típica algumas condutas que são socialmente toleradas, praticadas e aceitas pela sociedade. Faltaria, nesse caso, uma elementar implícita, não escrita, que está presente em todo o modelo descritivo legal, que é o dano de repercussão social.

Surge assim, uma fundamental distinção entre subsunção formal e subsunção material ou sociocultural da conduta. Uma conduta formal e aparentemente típica pode não sê-lo, quando enfocada dentro de um determinado contexto sociocultural.

Assim, segundo a referida teoria, para o Direito Penal somente interessaria o sentido social de ação, haja vista que o conceito final de ação determina o sentido de ação de forma extremamente unilateral, em função da vontade individual, quando deveria fazê-lo de uma forma objetiva sob o ponto de vista social.

A teoria social da ação surgiu como uma via intermediária, por considerar que a direção da ação não se esgota na causalidade e na determinação individual, devendo ser questionada a direção da ação de forma objetivamente genérica.

Ação seria todo o comportamento objetivamente dominável dirigido a um resultado social objetivamente previsível.

O problema em relação a essa teoria reside no fato de que, a sua adoção pode levar a arriscados desdobramentos: a partir do momento em que uma ação considerada pelo legislador como criminosa passa a ser compreendida como normal e justa pela coletividade, pode o juiz deixar de reprimi-la, passando a tê-la como atípica, porque, para o enquadramento na norma, é necessária inadequação social.

Ocorre que o costume, ainda que contra legem, em nosso sistema não revoga lei (art. 2º, caput, da LICC), do mesmo modo que ao julgador não é dado legislar, revogando regras editadas pelo Poder Legislativo. Inequivocadamente, há um certo risco de subversão da ordem jurídica, pois o direito positivo encontra-se em grau hierarquicamente superior ao consuetudinário e por este jamais poderá ser revogado.

Além disso, existe uma visível dificuldade em conceituar-se o que seja relevância social da conduta, pois tal conceito prescinde de um juízo de valor, ético. Seria, então, um critério vago, impreciso que poderia influenciar nos limites da ilicitude, tornando também indeterminada a tipicidade.

A adequação social, isoladamente, constitui pólo gerador de insegurança dogmática, mas como critério auxiliador da verificação típica é imprescindível, sendo

Page 53: Direito Penal i

impossível aceitar um conceito meramente formal e fechado de crime, desprovido de conteúdo material, ou seja, de lesividade social.

É válida, portanto, e de suma importância como instrumento auxiliar de interpretação e valoração das normas jurídicas, em cotejo com os postulados constitucionais garantistas, que impedem a incriminação mediante processos insípidos de mera subsunção formal.

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- ELEMENTOS DA CONDUTA___________________

Adotando-se a teoria finalista da ação, pode-se conceituá-la como sendo a ação ou omissão humana consciente e dirigida a determinada finalidade.

Segundo essa definição, a conduta apresenta as seguintes características:

1- comportamento humano: assim, não estão incluídos os fatos naturais (chuva, raios, etc.), os do mundo animal e os atos praticados pelas pessoas jurídicas. Caso um cão morda alguém, a mando de uma pessoa, a conduta foi praticada pela pessoa e não pelo animal.

2- exteriorização: a conduta exige a necessidade de uma repercussão externa da vontade do agente. O pensar e o querer humanos não preenchem as características da ação enquanto não se tenha iniciado a manifestação exterior dessa vontade. Não constituem conduta o simples pensamento, a cogitação, o planejamento intelectual da prática de um crime.

3- finalidade: é elemento da conduta o ato de vontade dirigido a um fim e a manifestação dessa vontade (atuação), que abrange o aspecto psíquico( campo intelectual) e o aspecto mecânico (movimento ou abstenção de movimento). Ato voluntário não implica em ato livre, onde seja querido o resultado. O ato é voluntário quando existe uma decisão por parte do agente, quando não é um simples resultado mecânico. A conduta é voluntária ainda quando a decisão do agente não tenha sido tomada livremente, ou quando este a tome motivado por coação ou por circunstâncias extraordinárias, uma vez que isso se resolve no campo da culpabilidade e não no da conduta, pois em ambas as situações a conduta sempre existirá. Conduta não significa conduta livre.

4- consciência: é decorrente do saber causal do homem, tornando possível a ele ter ciência da sua conduta e antever, dentro de certos limites, o resultado decorrente de sua prática.

Page 54: Direito Penal i

Assim, só pessoas humanas podem realizar conduta, pois são as únicas dotadas de vontade e consciência para buscar uma finalidade. Animais irracionais não realizam condutas, e fenômenos da natureza não as constituem.

II- AUSÊNCIA DE CONDUTA___________________

A simples vontade de delinqüir não é punível, se não for seguida de um comportamento externo. Nem mesmo o fato de outras pessoas tomarem conhecimento da vontade criminosa será suficiente para torná-la punível. É necessário que o agente, pelo menos, inicie a execução da ação que pretende realizar.

Todavia, do conceito de ação ou omissão devem ficar fora todos os movimentos corporais ou atitudes passivas que careçam de relevância para o Direito Penal, para que, assim, possam cumprir a função limitadora exigida pela dogmática jurídico-penal. Quando o movimento corporal não for orientado pela consciência e vontade não se pode falar em ação.

Existe ausência de ação, segundo a doutrina dominante, em três grupos de hipóteses:

1) Coação física irresistível – vis absoluta

Quem atua obrigado por uma força irresistível não age voluntariamente. Quem atua, nessas circunstâncias, não é dono do ato material praticado, não passando de mero instrumento realizador da vontade do coator. Nesse particular, o CP reconhece e pune a figura do autor mediato – art. 22, do CP.

Em geral, pode-se dizer que toda conduta que não seja voluntária – no sentido de espontânea – e motivada, supõe ausência de ação humana. Assim, é a força irresistível material. Importa, entretanto advertir que nem a demência nem a coação moral – vis relativa ou vis compulsiva, podem significar falta de ação.

Assim, a coação física exclui a própria ação, enquanto a coação moral exclui a culpabilidade, desde que irresistíveis. Tanto a demência quanto a coação moral poderão, quando muito, constituir excludentes de culpabilidade.

2) Movimentos reflexos

São atos reflexos, puramente somáticos, aqueles em que o movimento corpóreo ou a sua ausência é determinado por estímulos dirigidos diretamente ao sistema nervoso. Nesses casos, o estímulo exterior é recebido pelos centros sensores, que o transmitem diretamente aos centros motores, sem intervenção da vontade, como ocorre, por ex., em um ataque epilético. Com efeito, os atos reflexos não dependem da vontade.

Todavia, estes não se confundem com os atos em curto-circuito e com as reações explosivas, posto que nesses existe vontade ainda que meramente fugaz, sendo, portanto, suscetíveis de dominação finalística. Nos atos em curto-circuito e nas reações explosivas a velocidade com que surge o elemento volitivo é tão grande que se torna impossível controlá-lo. Mas esse aspecto poderia ser examinado na culpabilidade, mas exatamente na imputabilidade, diante de um eventual transtorno mental transitório.

Page 55: Direito Penal i

3) Estados de inconsciência

Em termos jurídicos-penais, a consciência, é o resultado da atividade das funções mentais. Não se trata de uma faculdade do psiquismo humano, mas do resultado do funcionamento de todas elas. Quando essas funções não funcionam adequadamente se diz que há um estado de inconsciência, que é incompatível com a vontade, e sem vontade não existe conduta.

Alguns exemplos de estado de inconsciência seriam o sonambulismo, a embriagues letárgica, a hipnose, etc. como nesse casos os atos praticados não são orientados pela vontade, consequentemente não podem ser considerados ações penalmente relevantes.

No que tange à embriaguez letárgica, de regra, a mesma tem sido analisada como excludente de culpabilidade, pela ausência de imputabilidade em decorrência de um transtorno mental transitório. No entanto, essa solução é absolutamente incorreta, na medida em que a embriaguez letárgica constitui o grau máximo da embriaguez, sendo impossível se vislumbrar qualquer resquício da existência da vontade. E, como sem vontade, não existe ação, a embriaguez letárgica exclui própria ação.

Antes de tratar-se de uma discussão meramente acadêmica, a adoção por uma ou outra posição tem conseqüência práticas bastante visíveis: sendo admitida como excludente da própria ação, impedirá a configuração da participação “stricto sensu” (teoria da acessoriedade limitada) e da responsabilidade civil.

Por outro lado, nos estados de inconsciência, se o agente coloca-se voluntariamente nessa condição para delinqüir, responderá normalmente pelo ato praticado, segundo o princípio da actio libera in causa.

III- FORMAS DE CONDUTA___________________

A conduta, em regra, é consubstanciada em ação em sentido estrito ou comissão, que é um movimento corpóreo, um fazer, um comportamento ativo (atirar, subtrair, ofender, etc.). Poderá, entretanto, constituir-se numa omissão, que, segundo a teoria normativa é a inatividade, a abstenção de movimento, é o não fazer alguma coisa quando se pode e se deve fazer. O fundamento de todo crime omissivo constitui-se em uma ação esperada e na não-realização de um comportamento exigido pelo sujeito.

Como já visto, as condutas comissivas desrespeitam preceitos proibitivos (a norma manda o agente não fazer e ele faz). Já as condutas omissivas desatendem mandamentos preceptivos ou imperativos (a norma mandar o agente fazer e ele não faz).

Page 56: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- A OMISSÃO E SUA FORMAS___________________

O Direito Penal contém normas proibitivas e normas imperativas ou preceptivas. A infração dessas normas imperativas constitui a essência do crime omissivo. A conduta que infringe uma norma imperativa consiste em não fazer a ação ordenada pela norma. Logo, a omissão em si mesma não existe, pois somente a omissão de uma norma determinada pela norma configurará a essência da omissão. Aliás, ontologicamente, a omissão não é em si mesma uma ação, mas a omissão de uma ação determinada.

Assim, ao lado da ação, a omissão aparece como uma forma independente de conduta humana, suscetível de ser regida pela vontade dirigida a um fim. Logo observa-se que a ação e a omissão são sub-classes independentes dentro do gênero conduta, passíveis de serem regidas pela vontade final. Contudo, como já dito, a omissão está necessariamente ligada a uma ação, já que isoladamente não existe omissão, senão a omissão de uma ação determinada por uma norma imperativa.

Fica claro, então, que o poder da vontade humana não se esgota tão-só no exercício da atividade final positiva (o fazer), mas também na sua omissão (o não fazer quando tinha a obrigação de realizar e podia fazê-lo).

Configura-se o crime omissivo quando o agente não faz o que pode e deve fazer, que lhe é juridicamente ordenado. Portanto, o crime omissivo consiste sempre na omissão de uma determinada ação que o sujeito tinha a obrigação de realizar e que podia fazê-lo. Esses crimes omissivos podem ser divididos em:

1) Crimes omissivos próprios ou puros: são aqueles que consistem na desobediência a uma norma mandamental, norma esta que determina a prática de uma conduta, que não é realizada. Há, portanto, a omissão de um dever de agir imposto normativamente. São aqueles que se perfazem com a simples conduta negativa do sujeito, independentemente de produção de qualquer conseqüência ou resultado posterior. A norma penal que os contém, ao invés de um mandamento negativo (ex: não matarás), determina um comportamento positivo (ex: prestarás socorro, ajuda, etc.). Observe-se, contudo, que o dever do agente é somente o de agir, mas não o de evitar o resultado. O resultado que eventualmente decorra dessa omissão será irrelevante para a configuração do crime, podendo, entretanto, configurar uma majorante ou até mesmo uma qualificadora do tipo. São crimes de mera atividade, ou melhor dizendo, de mera inatividade.

2) Crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão ou omissivos-comissivos: nesses crimes, o agente não tem simplesmente a obrigação de agir, mas a obrigação de agir para evitar um resultado, isto é, deve agir com a finalidade de impedir a ocorrência

Page 57: Direito Penal i

de determinado evento. Tratam-se de crimes materiais, isto é, um crime de resultado. São delitos onde a punibilidade advém da circunstância de o sujeito, que a isto se encontrava obrigado, não ter evitado a produção do resultado embora pudesse fazê-lo. Ele se omite, ocorrendo o resultado. Isso não quer dizer que ele produz o resultado, posto que, da omissão, fisicamente, nada surge. Ocorre que a lei considera que nessas situações, o não fazer tem o mesmo valor que o fazer.

II- TEORIAS SOBRE A NATUREZA DA OMISSÃO___________________

Quanto à natureza da omissão, duas teorias se apresentam, a saber:

1) Teoria naturalística: de acordo com essa teoria, a omissão é um fenômeno causal, que pode ser claramente percebido no mundo dos fatos, já que, em vez de ser considerada uma inatividade (“non facere”), caracteriza-se como verdadeira espécie de ação. Constitui, portanto, um “fazer”, ou seja, um comportamento positivo: quem se omite faz alguma coisa. Por essa razão, essa teoria é chamada de naturalística: a omissão provoca modificações no mundo naturalístico (mundo dos fatos), na medida em que o omitente, ao permanecer inerte, fez coisa diversa da que deveria ter feito. Assim, a omissão nada mais é do que uma forma de ação. Ora, sendo ação, então tem relevância causal, ou seja, aquele que se omite também dá causa ao resultado e por ele deve responder.

Essa teoria foi duramente criticada por MAURACH, o qual observou que, se a omissão é um nada, do nada, nada pode surgir e concluiu que o delito de omissão não pode originar nenhuma causalidade.

De fato, o autor tem razão, na medida em que a omissão não interfere dentro do processo causal, pois quem se omite não faz absolutamente nada e, por conseguinte, não pode causar coisa alguma. Dentro da lei da causa e efeito, a inatividade não pode ser provocadora de nenhum resultado.

Fica, portanto, evidente que a omissão não causa nada. É certo que ela impede que se interfira na cadeia de causalidade, mas positivamente não causa nenhum resultado. O que ocorre é que o omitente poderia intervir no processo causal e evitar o resultado, mas isso é diametralmente diferente de se afirmar que ele causou o resultado.

Nosso ordenamento jurídico não aceita a teoria naturalística da omissão, conforme fica claro da leitura do art. 135, parágrafo único, 2ª parte, do CP, onde o agente responde por omissão de socorro qualificada e não por homicídio.

2) Teoria normativa: para essa corrente a omissão é um nada, logo, não pode causar coisa alguma. Quem se omite nada faz, portanto, nada causa. Assim, o omitente não deve responder pelo resultado a que não deu causa. Excepcionalmente, embora não se possa estabelecer nexo causal entre omissão e resultado, essa teoria, entretanto, admite que aquele que se omitiu seja responsabilizado pela ocorrência. Para tanto, há necessidade de que esteja presente o chamado “dever jurídico de agir”.

A omissão penalmente relevante é constituída de dois elementos: o “non facere” (não fazer) e o “quod debeatur” (aquilo que tinha o dever jurídico de fazer). Não basta, portanto, o não fazer, sendo preciso que, no caso concreto, haja uma norma determinando o que devia ser feito. Só dessa forma o comportamento omissivo ganha relevância para o Direito Penal.

Page 58: Direito Penal i

A omissão é, portanto, “um não fazer o que devia ser feito”. Daí o nome de teoria normativa: para que a omissão tenha relevância causal (por presunção legal), há necessidade de uma norma impondo, na hipótese concreta, o dever jurídico de agir. Só assim pode-se falar em responsabilidade do omitente pelo resultado.

Como se nota, a omissão não é um “facere”, nem um “non facere” simplesmente, mas um não fazer o que concretamente podia e devia ser feito, de acordo com o procedimento que uma pessoa normal teria naquela mesma situação, que é o previsto na norma.

III- REQUISITOS OU PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS DOS CRIMES OMISSIVOS___________________

Para a caracterização da conduta omissiva é necessário analisar se o omitente tinha poder, nas circunstâncias, para executar a ação exigida pela norma mandamental, mediante a análise dos seguintes requisitos:

a) conhecimento da situação fática;

b) consciência, por parte do agente, de seu poder de ação para execução da ação omitida: é o chamado dolo de omissão, em contraponto ao dolo de ação.

c) poder de agir: o poder de agir é um pressuposto básico de todo comportamento humano. Também na omissão, evidentemente, é necessário que o sujeito tenha a possibilidade física de agir, para que se possa afirmar que não agiu voluntariamente. É insuficiente, portanto, o dever de agir, sendo necessário que além do dever, haja também a possibilidade física de agir, ainda que com risco pessoal.

d) dever de impedir o resultado: ainda que o agente pudesse e devesse agir, fazendo com que o resultado desaparecesse com a prática da conduta omitida, ainda assim, não se pode atribuir o resultado ao agente que se omitiu. É necessária uma outra condição, qual seja, é preciso que o agente tivesse o dever de evitar o resultado, isto é, o especial dever de evitá-lo ou, em outros termos, que ele fosse garantidor da sua não ocorrência.

IV- DO CASO FORTUITO E DA FORÇA MAIOR___________________

A pergunta que não cala é qual seria a natureza do caso fortuito e da força maior: excludentes de culpabilidade ou excludentes do nexo de causalidade?

Para que se possa tentar responder essa questão, é mister que se defina o que seja caso fortuito e força maior.

- CASO FORTUITO: é aquilo que se mostra imprevisível, quando não inevitável; é o que chega sem ser esperado e por força estranha à vontade do homem, que no o pode impedir.

- FORÇA MAIOR: trata-se de um evento externo ao agente, tornando inevitável o acontecimento. Ex: coação física.

Page 59: Direito Penal i

Em verdade, quer parecer que as hipóteses não excluem o nexo de causalidade. É equivocada a afirmação de que o caso fortuito e a força maior rompem a relação de causalidade. Esta existe ou não existe, não sendo possível ser extinta depois de sua ocorrência. Na hipótese de uma pessoa que, ao dirigir seu veículo vem a atropelar um transeunte, em razão da ruptura da barra de direção, não se pode afirmar que não houve nexo de causalidade. Nexo causal houve, por certo: se não estivesse dirigindo não ocorreria o atropelamento.

Por outro lado, também não nos parece acertada a afirmação de que o caso fortuito e a força maior seriam casos de excludentes de culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa. Em verdade, quando se está diante das hipóteses ora trabalhadas não há que se falar em conduta – veja-se o exemplo da coação física, onde o agente não passa de mero instrumento do crime.

Ao adotar-se a teoria finalista da ação, o dolo e a culpa constituem elementos do tipo penal, integrando portanto a conduta que, por sua vez, é elemento do fato típico. Nas hipóteses de força maior e caso fortuito não há que se falar em culpa ou dolo. Logo, se não há conduta dolosa ou culposa, não há conduta típica.

Conseqüência disso é que, quando interferem a força maior e o caso fortuito, não há crime por ausência de conduta dolosa ou culposa, que leva a ausência de fato típico, ou seja, trata-se de um fato atípico para o direito penal, de um indiferente penal.

Page 60: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- O RESULTADO___________________

Não basta a conduta para que o crime exista, pois é exigido, como vimos, o segundo elemento do fato típico, que é o resultado. Resultado é a modificação no mundo exterior provocada pela conduta.

Comumente se utiliza a expressão evento como sinônimo de resultado, embora etimologicamente possuam significados bem distintos. Evento é qualquer acontecimento; resultado é conseqüência, efeito da conduta.

Se é certo que a própria conduta já constitui modificação no mundo exterior, mais certo é afirmar que o resultado é a transformação operada por ela, é o seu efeito, dela se distinguindo.

II- TEORIAS DO RESULTADO___________________

Duas teorias procuram explicar a natureza do resultado, a saber:

1) Teoria Naturalística: segundo essa teoria, o resultado é a modificação causada no mundo exterior pela conduta. O conceito resulta da relação entre a conduta e a modificação, prescindindo-se de sua análise em face da norma jurídica.

2) Teoria Normativa ou Jurídica: resultado é toda a lesão ou ameaça de lesão a um interesse penalmente relevante. Todo crime tem um resultado jurídico porque sempre agride um bem jurídico tutelado. Quando não houver resultado jurídico não existe crime.

A doutrina sobre a temática não é pacífica. Mirabete entende que, ao prever o CP tipos penais em que não existe modificação no mundo exterior (invasão de domicílio, reingresso de estrangeiro expulso, etc.) estaria a admitir crimes sem resultado. Contudo, ao mesmo tempo, afirma-se no art. 13, do CP que a existência do crime depende do resultado. Desta forma, entende o autor, que se deva buscar um conceito jurídico ou normativo de resultado, evitando-se a incompatibilidade absoluta entre os dispositivos que descrevem comportamentos que não provocam a modificação no mundo exterior e o disposto no artigo 13, do CP.

Em sentido oposto, Damásio de Jesus e José Frederico Marques entendem que não consititui obstáculo ao entendimento da existência de crimes sem resultado naturalístico o que se contém nos arts. 13 e 18, do CP. A disposição do art. 13, “caput”, 1ª parte, do CP, apenas significaria que existem crimes que dependem da produção do resultado, não significando em absoluto que não haja delitos sem resultado. E mais, se o legislador penal, apesar do que contém o art. 13, do CP, definiu tipos penais de mera conduta, onde nem existe o resultado de perigo, indubitável que podem existir em nossa sistemática legal, delitos sem resultado.

Page 61: Direito Penal i

III- CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES QUANTO AO RESULTADO___________________

Quanto a ocorrência ou não de resultado, os crimes podem ser classificados em:

1) crimes materiais ou de resultado: descrevem a conduta cujo resultado integra o próprio tipo penal, isto é, para a sua consumação é indispensável a produção de um dano efetivo. A não ocorrência do resultado ocasiona a tentativa.

2) crimes formais ou de consumação antecipada: esses também descrevem a conduta e o resultado, contudo, não se exige a produção desse último para ocorrer a consumação do crime. basta a vontade do agente e a vontade de concretizá-lo, configuradoras do dano potencial, isto é, do “eventus periculi” (ex: ameaça, injúria verbal, extorsão mediante seqüestro, etc.). O legislador antecipa a consumação, satisfazendo-se com a simples ação do agente.

3) crimes de mera conduta ou de mera atividade: nesses, o legislador não determinou nenhum resultado, descrevendo somente a conduta, sem preocupar-se com a ocorrência ou não de um eventual resultado. O crime se consuma com a simples atividade do agente.

Page 62: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- O NEXO DE CAUSALIDADE___________________

Em razão da integração existente na descrição típica de ação e resultado, e considerando que o legislador penal estabelece tipos penais, englobando em sua descrição típica, não só a conduta humana, mas também a conseqüência por ela produzida, de tal sorte que só haverá crime consumado quando se concretizar o resultado, surge a necessidade de se analisar o terceiro elemento do fato típico, qual seja, o nexo causal ou de causalidade.

Nexo causal é o elo de ligação concreto, físico, material e natural que se estabelece entre a conduta do agente e o resultado naturalístico, por meio do qual é possível dizer se aquela deu ou não causa a este.

Consiste, assim, o nexo causal em uma mera constatação acerca da existência de relação entre a conduta e o resultado. A sua verificação atende apenas às leis da física, mas especificamente, da causa e do efeito. Por essa razão, sua aferição independe de qualquer apreciação jurídica, como, por exemplo, da verificação da existência de dolo ou culpa por parte do agente. Não se trata de questão opinativa, pois ou a conduta provocou o resultado ou não provocou.

Para a existência do fato típico, entretanto, não basta a mera configuração do nexo causal. É insuficiente para tanto aferir apenas a existência de um elo físico entre ação e resultado. De acordo com a interpretação do art. 19, do CP, é imprescindível que o agente tenha concorrido com dolo ou culpa (quando admitida), uma vez que sem um ou outra não haverá fato típico. A isso, chama-se de nexo normativo.

À vista do exposto, para a existência do fato típico são necessários: o nexo causal físico, concreto e o nexo normativo (vínculo subjetivo), que depende da verificação de dolo ou culpa.

II- TEORIA DA EQUIVALÊNCIA DOS ANTECEDENTES – “CONDITIO SINE QUO NON”___________________

Dentre as condutas humanas que o Direito Penal valora negativamente, como indesejadas, somente para uma parcela menor – os crimes de resultado – apresenta relevância a questão da relação de causalidade.

A 2ª parte do artigo 13, CP, consagra a adoção da teoria da equivalência das condições, para determinar a relação de causalidade.

Para essa teoria, toda e qualquer conduta que, de alguma forma, ainda que minimamente, contribua para a produção do resultado deve ser considerada sua causa. Tudo aquilo que, excluído da cadeia de causalidade, ocasionar a eliminação do resultado deve ser tido como sua causa, pouco importando se, isoladamente, tinha ou não idoneidade para produzi-lo.

Page 63: Direito Penal i

Causa seria toda ação ou omissão anterior que contribuiu para a produção do resultado.

Raciocinando-se ao contrário, tudo aquilo que, retirado da cadeia de causa e efeito, provocar a exclusão do resultado considera-se causa. A esse sistema de aferição deu-se o nome de “procedimento hipotético de eliminação”.

Todavia, diante do preconizado pela teoria da equivalência dos antecedentes, uma pergunta se impõe: não poderia haver uma responsabilização muito ampla, à medida que são alcançados todos os fatos anteriores ao crime? Os pais não poderiam responder pelos crimes cometidos pelos filhos? Nessa linha de raciocínio não se chegaria a um “regressus ad infinitum”?

A resposta é não. Como esclarecido acima, a responsabilidade penal exige, além do mero nexo causal, o nexo normativo. A teoria da equivalência dos antecedentes situa-se no plano exclusivamente físico, resultante da aplicação da lei natural da causa e efeito. Todavia, é mister a consideração da causalidade subjetiva (nexo normativo); é necessária a presença de culpa (em sentido amplo, abrangendo dolo e culpa em sentido estrito), caso contrário, a cadeia de causa e efeito seria infinita, respondendo pelo crime todos quantos houvessem física ou materialmente concorrido para o evento.

Em outras palavras, pelas leis da física há uma inegável relação de causa e efeito entre pais, filho e crime. é evidente que sem os primeiros não existiria o autor da infração, logo, do ponto de vista físico-naturalístico, aqueles constituem umas das causas. No entanto, para o Direito Penal, é insuficiente o nexo meramente causal-natural, sendo imprescindível para a existência do fato típico a presença do dolo ou da culpa (necessários para caracterizar a tipicidade).

III- TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA___________________

Para essa teoria, ao contrário da anterior, só é considerada causa a condição idônea à produção do resultado. O juízo de adequação causal realiza-se mediante um retorno à situação em que se deu a ação, a partir da qual se examinam em abstrato a probabilidade e a idoneidade da ação, segundo as leis da causalidade. Vale dizer, ainda que contribuindo de qualquer modo para a produção do resultado, um fato pode não ser considerado sua causa quando, isoladamente, não tiver idoneidade para tanto. São necessários, portanto: contribuição efetiva e indoneidade individual mínima.

Essa teoria não é adotada pelo CP.

IV- A RELEVÂNCIA CAUSAL DA OMISSÃO___________________

De acordo com o art. 13, “caput”, do CP, aparentemente, teria sido adotada a teoria naturalística da omissão, equiparando-a a um “facere”, uma vez que, ao considerar causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido, sinalizou no sentido de que tanto a ação quanto a omissão dão causa ao resultado. Essa idéia, contudo, não é verdadeira.

A teoria adotada foi mesmo a normativa. A omissão é um nada e, como tal, não dá causa a coisa alguma. Extrai-se essa conclusão da leitura do § 2º, do art. 13, do CP, segundo o qual a omissão só tem relevância causal quando presente o dever jurídico

Page 64: Direito Penal i

de agir. Embora não tenha dado causa ao resultado, o omitente, entretanto, será responsabilizado por ele sempre que, no caso concreto, estiver presente o dever jurídico de agir. Ausente este, não comete crime algum.

Os casos em que a omissão tem relevância causal vem dispostos, de forma taxativa, no art. 13, § 2º, do CP.

1) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: trata-se de do chamado dever legal, que é apenas uma espécie de dever jurídico. Sempre que por lei, o agente tiver a obrigação de cuidado, proteção e vigilância, deverá ser responsabilizado pelo resultado se, com sua omissão, tiver concorrido para ele com dolo ou culpa. Nesses casos, se o sujeito, em virtude de sua abstenção, descumprindo o dever legal, não obstruir o processo causal que se desenrola diante dele, é, por assim dizer, considerado o causador. É o caso do dever de assistência mútua entre os cônjuges, que devem os pais aos filhos. Da mesma forma, aquelas pessoas que exercem determinadas atividades, as quais têm implícita a obrigação de cuidado ou vigilância ao bem alheio, também têm o dever legal, como no caso dos bombeiros, dos médicos, dos policiais, etc.

2) de outra forma, assumir a responsabilidade de impedir o resultado: durante muito tempo se falou em dever contratual. Ocorre, porém, que o contrato não esgota as hipóteses de assunção de responsabilidades. Pode não existir contrato e o agente ter assumido, de fato, a responsabilidade para com outrem. O que deve ficar claro é que, nessa hipótese o dever não decorre de lei, mas de um contrato, de mera liberalidade ou de qualquer outra forma, que não imposição legal. O dever jurídico, portanto, deriva, no caso, de um compromisso anteriormente assumido. Denomina-se essa hipótese de “dever do garantidor”. Francisco de Assis Toledo entende que o conceito de garantidor não deve ser interpretado de forma restritiva, estendendo-se para todo aquele que, por ato voluntário, promessas, veiculação, publicidade ou mesmo contratualmente, capta a confiança dos possíveis afetados por resultados perigosos, assumindo, com estes, a título oneroso ou não, a responsabilidade de intervir, quando necessário, para impedir o resultado lesivo. Ex: o guia, os organizadores de competições esportivas, as babás, etc.

3) com o comportamento anterior, criar o risco da ocorrência do resultado: essa hipótese é chamada de “ingerência da norma”, aonde o sujeito, com seu comportamento anterior, criou o risco para a produção do resultado. O agente coloca em andamento, com sua atividade, um processo que pode ser chamado de risco, ou, então, com seu comportamento, agrava um processo já existente. Não importa que o tenha feito voluntária ou involuntariamente, dolosa ou culposamente; importa é que com a sua ação ou omissão originou uma situação de risco ou agravou uma já existente. Em virtude desse comportamento anterior, surge-lhe a obrigação de impedir que essa situação de perigo evolua para uma situação de dano efetivo, isto é, que venha realmente ocorrer um resultado lesivo ao bem jurídico tutelado. Afirmam os doutrinadores

Page 65: Direito Penal i

estrangeiros que o dever de agir subsiste ainda que a conduta seja somente perigosa, mas não antijurídica. É o caso, do agente que, por diversão, joga um amigo num rio. Fica obrigado a salvá-lo, caso ele esteja se afogando.

V- SUPERVENIÊNCIA CAUSAL___________________

Causa é toda condição que atua paralelamente à conduta, interferindo no processo causal. Como o CP adota a teoria da equivalência dos antecedentes, não tem o menor sentido tentar estabelecer-se qualquer diferença entre causa, concausa, ocasião ou condição. Qualquer conduta que, de algum modo, ainda que minimamente, tiver contribuído para a eclosão do resultado deve ser considerada uma causa, pela aplicação do critério da eliminação hipotética, se, desaparecido um fato, o resultado também desaparece, aquele deverá ser considerado causa deste.

Contudo, as concausas são aquelas causas distintas da conduta principal, que atuam ao seu lado, contribuindo, auxiliando na produção do resultado ou podem produzi-lo de maneira total, absolutamente independente da conduta que se examina. Assim pode-se falar em :

1) Concausas absolutamente independentes: são aquelas que refogem ao desdobramento causal da conduta, produzindo, por si só, o resultado. Nesses casos, fazendo-se o juízo hipotético de eliminação, verifica-se que a conduta não contribuiu em nada para a produção do evento. Não se originam da conduta e comportam-se como se por si só tivessem produzido o resultado, não sendo uma decorrência normal e esperada. Não tem, portanto, nenhuma relação com a conduta. Nessas circunstâncias, a causalidade da conduta é excluída pela própria disposição do art. 13, “caput”, do CP. Elas podem ser:

a) preexistentes: são aquelas que já existiam antes da existência da conduta, ou seja, antes da realização do comportamento humano. Atuam independentemente da ocorrência da conduta, de maneira que com ou sem a ação o resultado teria ocorrido. Ex: o agente atira na vítima e esta vem a falecer, mas não em decorrência dos ferimentos provocados pela arma de fogo, mas sim porque momentos antes a vítima havia ingerido veneno fulminante. Observe-se que o envenenamento não possui relação com os disparos, sendo diversa a sua origem. Além disso, produziu por si só o resultado, já que a “causa mortis” foi a intoxicação aguda provocada pelo veneno e não a hemorragia interna traumática provocada pelos disparos.

b) concomitantes: são aquelas que ocorrem simultaneamente com a conduta, mas com ela não se confundem. Não tem qualquer relação com a conduta e produzem o resultado independentemente desta, no entanto, por coincidência, atuam exatamente no instante em a conduta é realizada. Ex: no exato momento em que o agente está injetando veneno na artéria da vítima esta é alvejada por vários disparos de arma de fogo, perpetrados por terceiro, e falece instantaneamente. Essa conduta

Page 66: Direito Penal i

(disparos de arma de fogo) tem origem totalmente diversa da primeira (injeção de veneno), estando totalmente desvinculada de sua linha de desdobramento causal. É independente porque por si só produziu o resultado, embora concomitante, por coincidência.

c) supervenientes: são aquelas que surgem ou se manifestam depois de realizada a conduta. Atuam depois da conduta. Ex: o agente, envenena a vítima, mas antes que o veneno produza seus efeitos, a vítima é atacada por terceiro que a mata com vários disparos de arma de fogo. O fato posterior não tem qualquer relação com a conduta do agente. Os disparos não guardam qualquer relação com o envenenamento. Trata-se de uma concausa absolutamente independente porque por si só produziu o resultado.

A conseqüência da ocorrência de concausas absolutamente independentes

é que elas rompem totalmente com o nexo causal, e o agente só responde pelos atos até então praticados. Em nenhum dos três exemplos acima mencionados o agente deu causa à morte da vítima, logo, se não a provocou, não poderá ser responsabilizado por homicídio consumado. Responderá, outrossim, por tentativa de homicídio, com a qualificadora do emprego de veneno ou não, conforme a hipótese.

2) Concausas relativamente independentes: são aquelas que atuam de forma que, pode-se dizer, auxiliando ou reforçando o processo causal iniciado com a conduta do agente. Há uma soma de esforços, uma soma de energias, que produz o resultado. Ao contrário da anterior, origina-se da conduta e comporta-se como se por si só tivesse produzido o resultado. Tem relação com a conduta apenas porque dela se originou, mas é independente, uma vez que atua como se por si só tivesse produzido o resultado. Elas podem ser:

a) preexistentes: são aquelas que já existiam antes da conduta. São deflagradas pela conduta, mas já existiam antes da mesma. Ex: o agente desfere um golpe de faca na vítima, que é hemofílica e vem a morrer em face da conduta, somada à contribuição de seu peculiar estado fisiológico. No caso, o golpe, isoladamente considerado, seria insuficiente para produzir o resultado fatal verificado, de modo que a hemofilia atuou de forma independente, produzindo por si só o resultado final. O processo patológico, contudo, só foi detonado a partir da conduta do agente (golpe de faca) razão pela qual a hemofilia é apenas relativamente independente. Há na verdade, uma soma de esforços, de energias para se alcançar o resultado final. Não se pode afirmar que, suprimindo hipoteticamente o ferimento, a morte teria ocorrido da mesma forma. Na hipótese, o ferimento foi condição indispensável à ocorrência do resultado. É evidente que o resultado foi facilitado pela deficiência da vítima, a hemofilia. Entretanto, a hemofilia sozinha, isoladamente, não teria causado o resultado morte da forma como ocorreu. Há, nesse caso, uma causa preexistente, que se alia à conduta do agente, e ambas, juntas, vão determinar a ocorrência do resultado.

Page 67: Direito Penal i

b) concomitantes: são aquelas agem no exato momento da prática da conduta, mas tem sua origem nessa última. O agente atira na vítima, que, assustada, sofre um ataque cardíaco e morre. Observe-se que o tiro provocou o susto e, indiretamente, a morte. A causa da morte foi a parada cardíaca e não a hemorragia traumática provocada pelo disparo. Trata-se de causa que por si só produziu o resultado, mas que se originou a partir da conduta, tendo atuado ao mesmo tempo. Novamente constata-se a soma de esforços de energia. O tiro, por si só não seria apto a provocar o resultado verificado, da mesma forma que a vítima não faleceria de ataque cardíaco se não houvesse ocorrido o tiro. Logo, existe uma soma de energias para que se alcance o resultado final.

c) supervenientes: são aquelas que atuam ou surgem depois de praticada a conduta, mas que decorrem dessa. Ex: o agente esfaqueia a vítima. Socorrida e medicada, a vítima é orientada quanto aos cuidados a tomar, mas não obedece à prescrição médica, e, em virtude dessa falta de cuidado, o ferimento infecciona, gangrena e ela morre. Nesse exemplo, inegavelmente, houve uma soma de esforços, ou de energias, que, unidas, produziram o resultado morte. Existe uma conduta anterior, o ferimento, e uma concausa superveniente, que é a infecção e a gangrena. Suprimindo-se o ferimento a morte teria ocorrido? Não, pois sem ferimento não haveria o que infeccionar. Logo, pode-se estabelecer uma relação entre a conduta anterior e o evento posterior. Em virtude disso, não se pode excluir o nexo causal entre a conduta que feriu a vítima e a morte subseqüente ocasionada pela infecção.

A conseqüência da ocorrência de concausas relativamente independentes no desdobramento causal é que as mesmas mantém íntegra a relação causal entre conduta e resultado. Nessas hipóteses, o agente responderá pelo resultado, a menos que não tenha concorrido para ele com dolo ou culpa (nexo normativo). Sim, porque como já visto, dizer que existe nexo causal não dispensa a presença do elemento psicológico (dolo) ou normativo (culpa) da conduta, sem os quais o fato será atípico.

Portanto, tem-se até agora duas alternativas: ou exclui-se a causalidade do comportamento humano, porque um juízo hipotético de eliminação permite essa exclusão, e atribui-se a causação do resultado a um fato estranho à conduta, na hipótese, uma concausa absolutamente independente; ou não se exclui esse vínculo de causalidade, porque, pelo juízo hipotético de eliminação, a conduta foi necessária à produção do evento, ainda que auxiliada por outras forças, na hipótese, uma concausa relativamente independente.

SUPERVENIÊNCIA DE CAUSA RELATIVAMENTE INDEPENDENTE

Há, no entanto, uma terceira alternativa, que vem disciplinada no art. 13, § 1º, do CP. Esse parágrafo é de uma clareza meridiana ao limitar o seu alcance, excluindo, desde logo, as concausas preexistentes e as concomitantes. Quanto ocorrer qualquer uma dessas duas só haverá as duas alternativas já mencionadas: ou são absolutamente independentes e excluem a relação causal ou são relativamente independentes e se aliam à conduta, não excluindo o nexo de causalidade.

Page 68: Direito Penal i

Tratando-se, porém, de concausa superveniente, tem-se as duas alternativas mencionadas e mais uma terceira, disciplinada no parágrafo mencionado.

A leitura menos avisada poderia levar, à primeira vista, a imaginar-se que essa previsão legal seria, no mínimo, pleonástica, porque, se é uma causa superveniente que, por si só, produziu o resultado, seria independente da conduta e, portanto, o problema estaria resolvido pelo “caput” do art. 13, do CP. Com o juízo hipotético de eliminação, o resultado seria atribuído a essa concausa independente e estaria afastado o nexo de causalidade entre a conduta anterior e o resultado. Todavia, a lei não contém palavras inúteis ou desnecessárias. Portanto, deve-se buscar o real sentido da disposição legal. E, realmente, o legislador refere-se a uma concausa relativamente independente e não absolutamente independente.

Mas se uma causa é relativamente independente, como por si só pode produzir o resultado? A interpretação é a seguinte: quando alguém coloca em andamento determinado processo causal pode ocorrer que sobrevenha, no decurso deste, uma nova condição (concausa) – produzida por uma atividade humana ou por um acontecimento natural – que, em vez de se inserir no fulcro aberto pela conduta anterior, provoca um novo nexo causal. Embora se possa estabelecer uma conexão entre a conduta primitiva e o resultado final, a segunda causa (concausa superveniente), é de tal ordem que determina a ocorrência do resultado, como se tivesse agido sozinha, pela anormalidade, pelo inusitado, pela imprevisibilidade da sua ocorrência.

Segundo Damásio de Jesus, o melhor critério a ser seguido é aquele que considera a autônoma a concausa superveniente, quando esta não se encontra na linha de desdobramento físico da conduta anterior. A concausa superveniente, que por si só produz o resultado, é a que forma um novo processo causal, que se substitui ao primeiro, não estando em posição de homogeneidade com a conduta do agente.

Nesse sentido, a Exposição de Motivos do CP esclarece: “somente no caso em que se verifique uma interrupção de causalidade, ou seja, quando sobrevem uma causa que, sem cooperar propriamente com a ação ou omissão, ou representando uma cadeia causal autônoma, produz, por si só, o evento, é que este não poderá ser atribuído ao agente, a quem, em tal caso, apenas será imputado o evento que se tenha verificado por efeito exclusivo da ação ou omissão.”

Quando se está, portanto, diante de uma concausa superveniente, e se quer verificar se a conduta anterior do agente é causa ou não, deve-se partir, obrigatoriamente, do juízo hipotético de eliminação: excluí-se mentalmente a conduta anterior e se verifica se o resultado teria ocorrido. Se a resposta for negativa pode-se afirmar que há uma conexão causal entre a conduta anterior e o resultado.

Mas, em se tratando da ocorrência de concausa superveniente, tem-se de suspeitar da hipótese do art. 13, § 1º, do CP. Por isso, formula-se uma segunda pergunta: essa concausa superveniente se insere no fulcro aberto pela conduta anterior, somando-se a ela para a produção do resultado ou não? Se a resposta for afirmativa, não excluirá o nexo de causalidade da conduta anterior, porque a concausa posterior somente somou-se à conduta anterior do agente na produção do resultado.

Todavia, se ao contrário, encontrar-se uma resposta negativa, isto é, que a concausa superveniente causou isoladamente o evento, está-se resolvendo a hipótese com base no art. 13, § 1º, do CP, afastando a relação de causalidade da conduta anterior. Nesse caso, o agente responderá da conduta anterior responderá pelos atos praticados que, em si mesmos, constituírem crimes, segundo seu elemento subjetivo, mas não responderá pelo resultado final constatado.

Veja-se o exemplo: o agente fere a vítima com dois disparos de arma de fogo. Socorrida, a mesma é levada ao hospital para ser medicada, mas a ambulância que

Page 69: Direito Penal i

conduzia a mesma envolve-se em um acidente de trânsito, projetando a vítima para fora, vindo esta a bater a cabeça no meio-fio da calçada e morre. Nesse caso, excluindo-se a conduta dos ferimentos produzidos pelos disparos, teria ocorrido o resultado morte? Se a vítima não tivesse sido ferida, teria morrido naquele local e daquela maneira? Não, nem estaria na ambulância, não teria sido projetada e muito menos batido a cabeça. Não se pode dizer, então, que a conduta anterior não foi condição indispensável para a ocorrência do resultado subseqüente. Foi. Mas houve também uma concausa superveniente, o acidente que projetou a vítima para fora da ambulância. Assim, tem-se que perguntar: essa concausa superveniente aliou-se ao ferimento, somando energias na produção do resultado morte, ou a vítima morreu exclusivamente em virtude da segunda causa? Evidentemente que ela morreu de traumatismo cerebral, de maneira, portanto, inusitada, anormal, imprevisível em relação à conduta primitiva. Nessa hipótese, não houve soma de energias entre as “causas” anterior e posterior. A segunda causa – concausa superveniente relativamente independente – produziu, por si só, o resultado morte.

A doutrina costuma dizer que, nesse caso, o perigo criado pela conduta do agente não chega ao dano final, porque uma concausa superveniente determina o surgimento de um novo perigo, de modo a determinar o dano final. Aplica-se, então, o art. 13, § 1º, do CP.

No exemplo citado, realmente há uma independência relativa, porque se a vítima não estivesse ferida não teria se acidentado naquele local e daquela maneira. Mas essa concausa, por si só, ocasionou o resultado, excluindo, então, a imputação do fato ao agente.

O agente que realizou os disparos de arma de fogo não é autor de homicídio, mas causou somente uma lesão corporal dolosa ou culposa, ou quem sabe uma tentativa de homicídio, segundo o elemento subjetivo que motivou sua conduta anterior. Ou, ainda, não se lhe imputarão os fatos antecedentes, se o ferimento inicial da vítima tiver sido acidental, isto é, sem dolo ou culpa.

Page 70: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- TIPO E TIPICIDADE___________________

Tipo legal é um dos postulados básicos do princípio da reserva legal. Na medida em que a CF consagra expressamente o princípio de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, fica outorgada à lei a relevante tarefa de definir, isto é, de descrever os crimes.

Assim, tipo penal é o modelo descritivo das condutas humanas perigosas, criado pela lei penal, com a função de garantia do direito de liberdade. É o conjunto dos elementos do fato punível descrito na lei penal. Exerce uma função limitadora e individualizadora das condutas humanas penalmente relevantes. Em última análise, tipo é um modelo legal abstrato que descreve um comportamento proibido.

Por outro lado, tipicidade é a subsunção, a justaposição, o enquadramento, amoldamento de uma conduta praticada no mundo dos fatos ao modelo abstrato descrito na lei penal (o tipo legal). Portanto, tipicidade é a conformidade do fato praticado pelo agente com o modelo abstratamente descrito na lei penal.

Um fato para se adjetivado de típico precisa adequar-se a um modelo descrito na lei penal, isto é, a conduta praticada pelo agente deve subsumir-se na moldura descrita na lei penal.

A adequação típica ou tipicidade pode ser:

- Imediata ou Direta: ocorre quando o fato se subsume imediatamente no modelo legal, sem necessidade da concorrência de qualquer outra norma. Ex: matar alguém: essa conduta se amolda imediatamente ao tipo descrito no art. 121, do CP.

- Mediata ou Indireta: que constitui exceção, quando necessita da concorrência de outra norma, secundária, de caráter extensivo, que amplie a abrangência da figura típica. Nesses casos, o fato praticado pelo agente não vem a se adequar direta e imediatamente ao modelo descrito na lei, o que somente acontecerá com o auxílio de outra norma ampliativa, como ocorre com a tentativa e a participação “stricto sensu”. Na hipótese de tentativa há uma ampliação temporal da figura típica, e no caso da participação há uma ampliação espacial e pessoal da conduta típica.

Por outro lado, a evolução do conceito de tipo, pode ser desdobrada em 03 fases distintas:

1- Fase da Independência: o tipo é completamente desvinculado da ilicitude, tendo mera função descritiva, sem nenhum conteúdo valorativo. BELING idealizou o conceito de tipo como sendo a descrição legal de um delito, a ser contemplado, única e exclusivamente, de modo objetivo. Em seu entendimento, todo acontecimento objetivo deveria pertencer ao tipo, sendo que qualquer elemento subjetivo deveria ficar restrito ao campo da culpabilidade. Nesse compasso, ficariam fora do tipo

Page 71: Direito Penal i

penal não só o dolo, mas quaisquer considerações acerca da vontade do autor, como seus motivos, tendências ou intenções.

Via-se, no tipo, uma função meramente descritiva, completamente separada da antijuridicidade e da culpabilidade. Sua função era definir, objetivamente, delitos e nada mais. Constatando-se a adequação de um fato à norma penal incriminadora, se passaria a um segundo momento para a análise valorativa da conduta, a ser feita pela antijuridicidade. Posteriormente, se analisaria a reprovabilidade da conduta, que constitui a culpabilidade.

Essa fase coincidiu com a teoria causal ou naturalística da ação.

2- Fase da ratio cognoscendi da antijuridicidade ou do caráter indiciário da ilicitude: essa fase teve início com os estudos de MAYER, para quem o fato típico não poderia mais ser isolado da ilicitude, como se fossem fenômenos completamente distintos. O tipo não cumpriria, assim, uma função meramente descritiva, mas se constituiria em indício da antijuridicidade. Mantinha-se, em verdade, a distinção entre tipicidade e ilicitude, mas se reconhecia que o fato de uma conduta ser típica já representava um indício de sua antijuridicidade. O simples enquadramento de um fato humano em tipo penal incriminador já provocava uma reação negativa da coletividade. Tal fato, até prova em contrário, será tido por contrastante com a ordem legal. Embute-se, portanto, no tipo uma idéia provisória de que o fato nele descrito é também ilícito. Essa teoria pode ser definida na seguinte colocação: todo fato típico é também antijurídico, a não ser que esteja presente alguma causa de exclusão de antijuridicidade.

3- Fase da ratio essendi da antijuridicidade ou do tipo legal como essência da ilicitude: MEZGER e SAUER transmudara o tipo penal para um tipo do injusto, que assim passou a ser a ratio essendi (a razão de ser) da antijuridicidade. O tipo passou a ser conceituado como ilicitude tipificada. Desse modo tipo e ilicitude fundiram-se em uma relação indissolúvel no interior do injusto, embora seus conceitos não se confundissem. A sustentação desse posicionamento firmava-se na declaração de que o fato típico é antinormativo, enquanto as causas de justificação descrevem comportamentos normativos. Dessa constatação resulta que, separando tipicidade de ilicitude em dois momentos distintos, surgiria a híbrida figura do fato antinormativo-normativo. O que houve nessa fase, portanto, foi uma inclusão da tipicidade na antijuridicidade, de forma que se passou a conceituar crime como sendo a ação tipicamente antijurídica e culpável. A ilicitude seria muito mais do que ratio cognoscendi, constituindo, em verdade, a base desta, isto é, a sua ratio essendi. A tipicidade seria, portanto, a razão de ser da ilicitude. Esse posicionamento coincide com a chamada teoria dos elementos negativos do tipo a qual se observará, oportunamente, é objeto de severas críticas pela doutrina.

A teoria adotada é, na verdade a segunda, ou seja, a tipicidade é a ratio cognoscendi da ilicitude. Tipicidade e ilicitude são fenômenos diferentes que não podem ser confundidos. Quanto as eventuais críticas que se fazem a essa teoria, no sentido de que ela faz uma presunção de que todo o fato típico é criminoso, ressalte-se que sua antinormatividade não é definitiva, mas provisória. Com efeito, presente alguma causa de justificação, o fato será normativo, ou seja, conforme o ordenamento jurídico vigente, tão somente se relega essa análise para um momento posterior à análise da adequação do fato à lei penal abstrata. Desse modo, quem mata em legítima defesa não pratica um fato antinormativo-normativo, mas sim, um fato normativo, posto que autorizado por uma lei penal não-incriminadora “stricto sensu”.

Page 72: Direito Penal i

II- TIPO FUNDAMENTAL E TIPO DERIVADO___________________

a) Tipo fundamental ou básico: é o que oferece a imagem mais simples de uma espécie de delito. É o tipo que se localiza no “caput” de um artigo e contém apenas os componentes essenciais do crime, sem os quais este desaparece (atipicidade absoluta) ou se transforma em outro (atipicidade relativa). Ex: art. 121, do CP – são elementos desse crime: o sujeito ativo, a conduta, o dolo, o sujeito passivo, o resultado e o nexo causal. Retirando-se qualquer um desses elementos o delito de homicídio desaparece.

b) Tipo derivado: são os que se formam a partir do tipo fundamental, mediante o destaque de circunstâncias que o agravam ou atenuam. Se a agravação consistir em novos limites abstratos de pena, como ocorre no caso do art. 121, § 2º, do CP, tem-se o tipo qualificado; se consistir em um aumento em determinado percentual (1/3, 2/3, 1/2, etc.), ocorre a chamada causa de aumento; no caso de atenuação surge o tipo privilegiado – ex: art. 121, § 1º, do CP. No tipo derivado encontram-se os componentes secundários do tipo, que não constituem a sua essência. Localizam-se nos parágrafos do tipos incriminadores fundamentais.

O tipo derivado pode constituir-se em figura totalmente dependente e vinculada, aplicando-se-lhe, por essa razão, todas as regras incidentes sobre o delito básico previsto no “caput”. É o que ocorre com as causas de aumento e de diminuição de pena previstas nos parágrafos do tipo fundamental.

No caso das qualificadoras, porém, o tipo derivado ganha certa autonomia do tipo fundamental, denominando-se, por isso, de tipo derivado autônomo (delito independente ou delito “sui generis”). Nessa hipótese são previstos novos limites abstratos de pena, fazendo com que apareça um delito independente, ao qual não se aplicam os dispositivos regradores do “caput”.

III- ELEMENTOS ESTRUTURAIS DO TIPO___________________

O tipo penal, ao contrário do que preceituava BELING, não é composto única e exclusivamente por elementos descritivos ou objetivos, mas também, por vezes, observa-se a presença de elementos normativos e subjetivos. Assim, são elementos que integram o tipo penal:

a) Elementos objetivos (descritivos): são aqueles que se referem ao aspecto material do fato. Existem concretamente no mundo dos fatos e apenas precisam ser descritos penal norma. São identificados penal simples verificação sensorial, isto é, são verificáveis pela percepção dos sentidos. São o objeto, o lugar, o tempo, os meios empregados, o núcleo do tipo (verbo), etc.

Page 73: Direito Penal i

b) Elementos normativos: são aqueles para cuja compreensão é insuficiente desenvolver uma atividade meramente cognitiva, devendo-se realizar uma atividade valorativa. Ao contrário dos descritivos, seu significado não se extrai de mera observação, sendo imprescindível um juízo de valoração jurídica, social, cultural, histórica, política, religiosa, bem como qualquer outro campo do conhecimento humano. Classificam-se em jurídicos, quando exigem juízo de valoração jurídico, e em extrajurídicos ou morais, quando pressupõe um exame social, cultural, histórico, religioso, político, etc. Ex: “sem justa causa”, “decoro”, “mulher honesta”, “dignidade”, “funcionário público”, “indevidamente”, “alheia”, etc.

c) Elementos subjetivos: são dados ou circunstâncias que pertencem ao campo psíquico-espiritual e ao mundo de representação do autor. São constituídos pelo elemento subjetivo geral – dolo – e elementos especiais do tipo – elemento subjetivo do injusto ou elemento subjetivo diverso do dolo – que pertencem ao tipo subjetivo.

IV- TIPO PENAL NOS CRIMES DOLOSOS (Tipo de injusto comissivo doloso) ___________________

IV.1- CONCEITO DE DOLO

Ao se adotar a teoria finalista da ação, verifica-se que o dolo faz parte do tipo, sendo o seu elemento subjetivo. Em verdade, o dolo é o elemento psicológico da conduta (lembrando-se que a conduta é um dos elementos do fato típico). Assim, em última análise, o próprio dolo é um dos elementos do fato típico e, sua ausência exclui, por conseguinte, o fato típico.

Pode-se conceituar o dolo como sendo a vontade livre e consciente de realizar os elementos descritos no tipo legal. Mais amplamante, é a vontade livre e consciente de praticar a conduta descrita no tipo penal.

O art. 18 do CP refere-se ao crime doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.” Vê-se, nitidamente aqui, a menção ao dolo direto e ao dolo eventual.

IV.2- ELEMENTOS DO DOLO

Pela definição de dolo, constata-se que o mesmo é composto de dois elementos: um cognitivo, que é o conhecimento do fato constitutivo da ação típica; e um volitivo, que é a vontade de realizá-la. O primeiro elemento, o conhecimento, é pressuposto do segundo, a vontade, que não pode existir sem aquele.

a) Elemento Cognitivo: é a consciência daquilo que se pretende praticar. Essa consciência deve ser atual, isto é, deve estar presente no momento da ação, quando ela está sendo realizada. A previsão, ou seja, a representação, deve abranger correta e completamente todos os elementos essenciais do tipo, sejam eles

Page 74: Direito Penal i

descritivos, normativos ou subjetivos. Por isso, quando o processo intelectual-volitivo não atinge um dos componentes da ação descrita na lei, o dolo não se aperfeiçoa, vale dizer, não se completa.

Contudo, essa consciência como elemento do dolo, não se confunde com a consciência da ilicitude que hoje, pela teoria finalista da ação, está deslocada para o interior da culpabilidade. A consciência exigida pelo dolo abrange tão-somente a representação dos elementos integradores do tipo penal. É suficiente o conhecimento das circunstâncias de fato necessárias à composição da figura típica.

A consciência da ilicitude, ao contrário, é aquela necessária para o conhecimento da configuração típica, que faz parte da estrutura da culpabilidade e, como se verá, pode ser apenas potencial.

b) Elemento Volitivo: é a vontade, incondicionada, que deve abranger a conduta (ação ou omissão), o resultado e o nexo causal. A vontade pressupõe a previsão, isto é, a representação, na medida em que é impossível querer algo conscientemente senão aquilo que se previu ou representou na mente, pelo menos, parcialmente. A previsão sem vontade é algo completamente inexpressivo, indiferente para o Direito Penal, e a vontade sem representação, sem previsão é absolutamente impossível.

Assim, para a teoria finalista da ação, o fato típico é composto por um dolo natural ou puramente psicológico (posto que o elemento normativo – potencial conhecimento da ilicitude do fato – foi deslocado para o interior da culpabilidade), completando-se com a vontade e a consciência da ação, do resultado tipificado como injusto e da relação de causalidade.

IV.3- TEORIAS DO DOLO

Três teorias procuram definir o que seja dolo, a saber:

a) Teoria da Vontade : para essa teoria, tida como clássica, dolo é a vontade dirigida ao resultado. Para CARRARA, o grande defensor da teoria, o dolo “consiste na intenção, mais ou menos perfeita de fazer um ato que se conhece contrário à lei.” A essência do dolo está na vontade, não de violar a lei, mas de realizar a conduta e obter o resultado. Dolo é vontade de praticar a conduta e produzir o resultado. Não que ela negue a representação (consciência) do fato, que é indispensável, mas destaca, sobretudo, a importância da vontade de causar o resultado.

b) Teoria da Representação : dolo é a vontade de realizar a conduta, prevendo a possibilidade do resultado se verificar, sem, contudo, desejá-lo. Bastaria, portanto, a representação do agente (que ele previsse) a possibilidade do resultado para que sua conduta fosse tipificada como dolosa. Seria suficiente a representação subjetiva ou a previsão do resultado, como certo ou provável. Na verdade, a simples representação da probabilidade de ofensa a um bem jurídico não é suficiente para se demonstrar que o agente tenha assumido o risco de produzir determinado resultado.

Page 75: Direito Penal i

c) Teoria do Consentimento ou do Assentimento : o dolo seria o assentimento, isto é, a previsão do resultado com a aceitação dos riscos de produzi-lo. Não bastaria, portanto, representar, sendo preciso aceitar como indiferente a ocorrência do resultado. Assim, também seria dolosa a vontade não dirigida diretamente ao resultado como provável ou possível, mas que consentia na sua ocorrência, ou que assumiria o risco de produzir o resultado. Consentir na produção do resultado seria uma forma de querê-lo.

Pela leitura do artigo 18, do CP, observa-se que o legislador penal pátrio adotou a teoria da vontade para o dolo direto e a teoria do assentimento para o dolo eventual.

IV.4- ESPÉCIES DE DOLO

O surgimento das diferentes espécies de dolo é ocasionado pela necessidade de a vontade abranger o objetivo pretendido pelo agente, o meio utilizado, a relação de causalidade, bem como o resultado.

a) Dolo Direto, Imediato ou Determinado: é a vontade de praticar a conduta e produzir o resultado (teoria da vontade). Ocorre quando o agente quer diretamente o resultado, como fim de sua ação. FREDERICO MARQUES leciona que “diz-se direto o dolo quando o resultado no mundo exterior corresponde perfeitamente à intenção e à vontade do agente. O objetivo por ele representado e a direção da vontade se coadunam com o resultado do fato praticado.” Esse dolo direto pode ser dividido em: dolo direto de 1º grau – diz respeito aos fins propostos pelo agente e aos meios escolhidos pelo mesmo, consistindo na vontade de produzir as conseqüências primárias do delito, ou seja, o resultado típico inicialmente visado; dolo direto de 2º grau ou conseqüências necessárias ou de efeitos necessários concomitantes – diz respeito aos efeitos colaterais representados como necessários, consistindo nas conseqüências secundárias não desejadas originalmente pelo agente, mas que acabam sendo provocadas porque indestacáveis do primeiro evento. Portanto, nesse caso, o agente não quer alcançar os resultados secundários, mas se dá conta de que não pode alcançar a meta traçada sem causar tais efeitos acessórios, portanto, necessários. É situado como objeto do dolo direto não através de uma relação de imediatidade (1ºgrau), mas por uma relação de necessidade (2º grau).

b) Dolo Indireto, Mediato ou Indeterminado: é aquele aonde o agente não quer diretamente o resultado, mas aceita a possibilidade de produzi-lo (dolo eventual), ou não se importa em produzir este ou aquele resultado (dolo alternativo). Exemplo do segundo é quando um desafeto encontrando outro, lança-lhe uma granada querendo matá-lo ou feri-lo. Não quer “o” resultado, mas “um” resultado. Já no dolo eventual, o agente prevê o resultado e, embora não o queira propriamente, pouco se importa com a sua ocorrência. É, no dizer de NELSON HUNGRIA,

Page 76: Direito Penal i

lembrando FRANK, a hipótese em que se faz uso da seguinte fórmula: “seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir.”

Por outro lado, é possível se verificar outras classificações para o dolo, sendo que, para o momento, apenas mais uma interessa.

a- Dolo Natural: é o dolo concebido como um elemento puramente psicológico, desprovido de qualquer juízo de valor. Trata-se de um simples querer, independentemente de o objeto da vontade ser lícito ou ilícito, certo ou errado. Esse dolo compõe-se apenas de consciência e vontade, sem a necessidade de que haja também a consciência de que o fato praticado é ilícito, injusto ou errado. Dessa forma, qualquer vontade é considerada dolo, tanto a de beber água quanto a de praticar um crime. afasta-se, assim, a antiga concepção do “dolus malus” do direito romano. Foi concebido pela doutrina finalista, integrando a conduta e, por conseguinte, o fato típico. Não é elemento da culpabilidade nem tem a consciência da ilicitude como seu componente.

b- Dolo Normativo: é o dolo da teoria causal, naturalística ou clássica da ação penal. Em vez de constituir elemento da conduta, é considerado requisito da culpabilidade e possui três elementos: a consciência, a vontade e a consciência da ilicitude. Portanto, para que se afirme que o agente agiu com dolo, não basta a vontade de realizar a conduta, sendo necessário que tenha a consciência de que ela é ilícita, injusta, errada. Observa-se, portanto, um elemento normativo no dolo, que depende de juízo de valor, ou seja, a consciência da ilicitude. Só há dolo quando, além da consciência e da vontade de praticar a conduta, o agente tenha a consciência de que está cometendo algo censurável. Logo, o dolo normativo não é um simples querer, mas um querer algo errado, ilícito (“dolus malus”). Deixa de ser um elemento puramente psicológico, para ser um fenômeno normativo, que exige juízo de valoração.

V- TIPO PENAL NOS CRIMES CULPOSOS (Tipo de injusto culposo) ___________________

V.1- CONCEITO DE CULPA

Pode-se conceituar culpa como sendo a falta do dever objetivo de cuidado manifestada numa conduta produtora de um resultado não querido, mas objetivamente previsível. Portanto, a culpa é o elemento normativo da conduta, isso porque a sua verificação demanda um prévio juízo de valor, sem o qual não se sabe se ela está ou não presente.

Enquanto no crime doloso é punida a conduta dirigida a um fim ilícito, no crime culposo pune-se a conduta mal dirigida, normalmente destinada a fim penalmente irrelevante, quase sempre lícito. Portanto o que se observa, no tipo culposo é a

Page 77: Direito Penal i

divergência entre a ação efetivamente praticada e a que devia realmente ter sido realizada, em virtude da observância do dever objetivo de cuidado.

A direção finalista da ação, nos crimes culposos, não corresponde à diligência devida, havendo contradição essencial entre o querido e o realizado pelo agente.

Com relação à tipicidade da conduta culposa, observa-se que a culpa não está descrita, nem especificada, mas apenas genericamente prevista no tipo penal. O tipo limita-se a dizer “se o crime é culposo, a pena será de....”. Com isso se faz necessário, para uma correta adequação típica, mais do que uma simples correspondência entre a conduta e o modelo hipotético descrito na lei penal. Há que se fazer um juízo de valoração, verificando-se se o agente obrou com o cuidado necessário e normalmente exigível, vale dizer se comportou como um homem de prudência média teria agido nas mesmas circunstâncias.

Observa-se, portanto, que o tipo penal culposo é tido como um tipo aberto, posto que a conduta culposa não é descrita. Aliás seria impossível se exigir do legislador penal que previsse todas os comportamentos culposos possíveis, posto que sempre será necessário comparar, em cada caso, a conduta praticada com a que seria ideal naquelas circunstâncias.

V.2- ELEMENTOS DO TIPO PENAL CULPOSO

O crime culposo tem uma estrutura completamente diversa do crime doloso, não contendo o chamado tipo subjetivo, em razão da natureza normativa da culpa. Com efeito, conforme ensina JUAREZ TAVARES, “o delito culposo contém, em lugar do tipo subjetivo, uma característica normativa aberta: o desatendimento ao cuidado objetivo exigível do autor.” Assim, pode-se afirmar que o tipo culposo apresenta os seguintes elementos:

1- INOBSERVÃNCIA DO CUIDADO OBJETIVO DEVIDO: o essencial do tipo culposo não é a simples causação do resultado, mas sim a forma em que a ação causadora se realiza. Por isso, a observância do cuidado objetivo devido, isto é, a diligência devida, constitui o elemento fundamental do tipo culposo. Analisa-se a conduta praticada pelo agente no caso concreto e aquela que um homem de cuidado médio teria adotado na mesma situação, para se verificar se o agente agiu com inobservância do cuidado acima descrito.

2- PRODUÇÃO DE UM RESULTADO E NEXO CAUSAL: o resultado integra o crime culposo. O crime culposo não tem existência real sem o resultado. É um crime de resultado ou material por excelência. Não existem crimes culposos de mera conduta, sendo imprescindível a ocorrência do resultado naturalístico para o aperfeiçoamento do crime. assim, se houver inobservância do dever de cuidado, mas o resultado não se verificar, não haverá crime. por outro lado, é indispensável que o resultado seja conseqüência da inobservância do cuidado objetivo, ou, em outros termos, que este seja causa daquele. Portanto, quando for observado o dever de cuidado exigido e, ainda assim, o resultado ocorrer, não se poderá falar em crime culposo.

Page 78: Direito Penal i

3- PREVISIBILIDADE OBJETIVA DO RESULTADO: o resultado deve ser objetivamente previsível, vale dizer, é a possibilidade de qualquer pessoa dotada de prudência mediana prever o resultado. A questão se o agente podia, no caso concreto, ter adotado as cautelas devidas – previsibilidade subjetiva, somente deverá ser analisada na culpabilidade.

4- CONEXÃO INTERNA ENTRE O DESVALOR DA CONDUTA E O DESVALOR DO RESULTADO: o conteúdo do fato culposo é determinado pela coexistência do desvalor da conduta e do desvalor do resultado. É indispensável a existência de uma conexão interna entre o desvalor da conduta e o desvalor do resultado, isto é, que o resultado decorra exatamente da inobservância do cuidado objetivo devido. O desvalor da conduta está representado pela inobservância do cuidado objetivamente devido e o desvalor do resultado pela lesão ou perigo concreto de lesão do bem jurídico. Não se nega que nos crimes culposos se dá preponderância ao desvalor da conduta, que assume o centro da teoria do delito, em comparação com o desvalor do resultado. Contudo, sem resultado não se pode falar em crime culposo, que, no ordenamento jurídico nacional, é crime material.

V.3- MODALIDADES DE CULPA

O art. 18, II, do CP estabelece as modalidades de culpa que podem dar ensejo ao tipo penal culposo, a saber:

a- Imprudência : é a prática de uma conduta arriscada ou perigosa e tem caráter comissivo. É a imprevisão ativa (culpa in faciendo ou in committendo). É, portanto, a culpa de quem age, ou seja, aquela que surge durante a realização de um fato sem o cuidado necessário. Trata-se, assim, de um agir sem cautela. Uma característica importante da imprudência é a de que nela a culpa se desenvolve paralelamente à ação. Ex: manejar arma carregada, dirigir embriagado, ultrapassagem proibida, etc.

b- Negligência : é a displicência no agir, a falta de precaução, a indiferença do agente, que, podendo adotar as cautelas necessárias, não o faz. É a imprevisão passiva, o desleixo, a inação (culpa in ommittendo). Consiste em deixar de tomar o cuidado devido antes de começar a agir. A negligência dá-se sempre antes do início da conduta. Implica, pois, a abstenção de um comportamento que era devido. Negligente é quem, podendo e devendo agir de determinado modo, por indolência ou preguiça mental, não age ou se comporta de modo diverso. Ex: deixar arma ou substância tóxica ao alcance de uma criança, deixar de reparar os pneus e verificar os freios antes de uma viagem, etc.

c- Imperícia : é a falta de capacidade, o despreparo ou a insuficiência de conhecimentos técnicos para o exercício de arte, profissão ou ofício. Todavia, imperícia não se confunde com erro profissional. Esse é um acidente escusável, justificável e, de regra, imprevisível. Esse tipo de

Page 79: Direito Penal i

acidente não decorre da má aplicação de regras e princípios recomendados pela ciência. Deve-se à imperfeição e precariedade dos conhecimentos humanos, operando, portanto, no campo do imprevisto e transpondo os limites da prudência e da atenção humana. Ex: médico que vai curar a vítima e lhe amputa a perna, atirador de elite que acerta a vítima, etc.

V.4- ESPÉCIES DE CULPA

É possível se falar em culpa própria e culpa imprópria. A culpa própria pode ser dividida em: culpa consciente e culpa inconsciente. O CP não distingue culpa consciente de culpa inconsciente para o fim de dar-lhes tratamento diverso. Todavia, é imperioso que se diferencie elas, bem como se apresente outras espécies de culpa.

a- Culpa Consciente ou com previsão: ocorre quando o agente, deixando de observar a diligência a que estava obrigado, prevê um resultado, previsível, mas confia convictamente que ele não ocorra. Assim, o agente prevê o resultado, embora não o aceite. Logo, quando o agente embora prevendo o resultado, espera sinceramente que este não ocorra, está-se diante da culpa consciente e não do dolo eventual. O traço distintivo entre ambos é que no dolo eventual o agente não se importa com produção do resultado, enquanto na culpa consciente o agente não quer a produção do resultado. Observa-se, então que, na culpa consciente, a censurabilidade do agente é maior do que na inconsciente. Embora o CP, como já dito, não dê tratamento diverso a elas, é razoável que o juiz, na fixação da pena base (1º fase da dosimetria da pena), ao analisar a culpabilidade (art. 59, CP), eleve um pouco mais a sanção de quem age com culpa consciente, dada a maior censurabilidade do comportamento.

b- Culpa Inconsciente: é a culpa sem previsão, em que o agente não prevê o que era previsível. É a ação sem previsão do resultado previsível. É de se colocar que a previsibilidade é o elemento identificador dos dois tipos de culpa, haja vista que a imprevisibilidade desloca o resultado para o caso fortuito ou força maior, portanto, para hipóteses sem relevância para o direito penal. Em verdade, esta espécie de culpa caracteriza-se pela ausência de representação da lesão do cuidado objetivo devido – o autor não representa a possibilidade de realização do tipo penal. Então, observe-se que embora exista a previsibilidade, não há previsão por parte do agente.

Importante destacar a diferença entre dolo eventual e culpa consciente. Ambos possuem um traço em comum – a previsão do resultado proibido. Mas enquanto no dolo eventual o agente anui ao advento do resultado danoso, assumindo o risco de produzi-lo; na culpa consciente, ao contrário, o agente repele a hipótese da ocorrência do resultado danoso, esperando sinceramente que o mesmo não ocorra. Então, fica clara a diferença ente não querer o resultado (culpa consciente) e não se importar com o mesmo (dolo eventual).

Contudo, pode-se ainda pensar em outras espécies de culpa, a saber:

Page 80: Direito Penal i

a- Culpa imprópria, por extensão, por equiparação ou por assimilação: somente impropriamente se pode falar em culpa quando o agente prevê e quer o resultado produzido. Essa espécie de culpa decorre de erro de tipo inescusável, onde o agente supõe estar diante de uma situação que lhe permite praticar, licitamente, um fato típico. Há uma apreciação equivocada da realidade fática, fazendo o agente supor que está acobertado por uma causa excludente de ilicitude. Entretanto, como esse erro poderia ter sido evitado pelo emprego de diligência mediana, subsiste o comportamento culposo. Com efeito, a culpa imprópria decorre de erro de tipo evitável. Nessas hipóteses o agente quer o resultado em razão de sua vontade encontrar-se viciada por um erro que, com mais cuidado poderia ser evitado. Ex: Mévio encontra-se em casa, de madrugada, assistindo televisão, quando Tício, seu primo, entra pela casa pela porta dos fundos. Acreditando tratar-se de um assalto, Mévio efetua disparos de arma de fogo, atingindo seu parente, certo de que está praticando uma conduta perfeitamente lícita, amparada pela legítima defesa. A ação, em si, é dolosa, mas Mévio incorreu em erro de tipo essencial evitável, o que exclui o dolo de sua conduta, subsistindo a culpa, em face da evitabilidade do erro. Observe-se então, que existe um pouco de dolo e um pouco de culpa na conduta e, somente por equiparação, por extensão ou por assimilação pode se falar em uma conduta culposa.

V.5- CONCORRÊNCIA E COMPENSAÇÃO DE CULPAS

Há concorrência de culpa quando dois indivíduos, um ignorando a participação do outro, concorrem, culposamente, para a produção de um fato definido como crime. Ex: colisão de dois veículos em um cruzamento, com lesões recíprocas para os condutores, onde ambos estavam errados: um em velocidade excessiva e o outro atravessando o sinal fechado. Nessas hipótese, os agentes respondem, isoladamente, pelo resultado produzido. Cada um dos agentes responderá pelo resultado lesivo que produziu pela falta de cuidado objetivo devido.

Ocorre que, no Direito Penal, não se admite a compensação de culpas. A eventual culpa da vítima não exclui a do agente; elas não se compensam. As culpas recíprocas do ofensor e do ofendido não se extinguem. A culpa recíproca somente produz efeito quanto à fixação da pena, posto que, o art. 59, CP faz alusão ao “comportamento da vítima”, como uma das circunstâncias a serem consideradas quando da fixação da pena base.

Por outro lado, somente a culpa exclusiva da vítima, exclui a do agente, para quem, nesse caso, a ocorrência do evento foi pura infelicitas fati. A toda evidência tal afirmação é lógica. Ora, se a culpa foi exclusiva da vítima é porque não houve culpa alguma do agente, não havendo, portanto, que se falar em compensação de culpas, muito menos em responsabilização do agente por crime culposo.

Page 81: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- ANTIJURIDICIDADE OU ILICITUDE___________________

Tomando-se por base o conceito analítico de crime (conduta típico, ilícita/antijurídica e culpável)1. Uma vez superada a análise da tipicidade, ou seja, da adequação do fato a um modelo abstrato descrito na lei penal (tipo penal), cumpre se debruçar sob a antijuridicidade, haja vista que, não é suficiente que o comportamento seja típico. É preciso que seja também ilícito e culpável.

O conceito de antijuridicidade é o oposto ao de juridicidade: assim como juridicidade indica conformidade ao direito, antijuridicidade indica contradição ao direito. Em outras palavras, a ilicitude é a contradição entre a conduta (ação ou omissão) e o ordenamento jurídico; pela qual a ação ou omissão típicas se torna ilícitas.

Portanto, a antijuridicidade é uma relação de contrariedade entre o fato e a norma jurídica.

O CP, com a reforma de 1984 (Lei nº 7.209/84) abandonou o termo antijuridicidade para adotar o termo ilicitude, seguindo a orientação do professor FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, para quem, o crime é um fato visceralmente jurídico e, portanto, não pode ser antijurídico. Pode sim, ser ilícito, ou seja, contrário ao ordenamento jurídico.

Com efeito, o crime está incluído no gênero “fatos jurídicos” e isto não é passível de contestação, diante da constatação óbvia de que o crime é uma criação do direito positivo – nullum crimen sine lege. Certo é classificar o crime como pertencente ao gênero fatos jurídicos, entre uma de suas ramificações, os denominados atos ilícitos. Deveras, o crime não pode ser, ao mesmo tempo, um fenômeno jurídico (que provoca repercussões na esfera jurídica) e antijurídico.

Em última análise, a ilicitude é uma relação ou propriedade que se atribui ao fato típico e que tem o condão de exprimir uma idéia de contradição de antagonismo, de oposição ao direito.

II- ILICITUDE FORMAL E ILICITUDE MATERIAL___________________

A questão de ilicitude formal e material tem relação com o conceito material e formal de crime.

O conceito formal de crime resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal, portanto, considera-se como crime tudo aquilo que o legislador define como tal,

1 Para alguns, como Damásio de Jesus e Walter Coelho, o crime, sob o conceito analítico, é fato típico e ilícito/antijurídico, sendo a culpabilidade pressuposto da pena. Todavia, este não parecer ser o melhor entendimento, conforme expõe BITENCOURT, Cezar Roberto in: Manual de Direito Penal – Parte Geral, p. 276. No mesmo sentido, SANTOS, Juarez Cirino dos in: A Moderna Teoria do Fato Punível, p. 05 e TOLEDO, Francisco de Assis in: Princípios Básicos de Direito Penal, p. 163.

Page 82: Direito Penal i

pouco importando o seu conteúdo. Considera-se a existência de um crime sem levar em conta sua essência ou lesividade material. Valora-se excessivamente o aspecto externo do delito, utilizando-se de uma operação de simples adequação do fato à norma, sem, todavia, penetrar em sua essência, em seu conteúdo, em sua matéria. Assim, segundo esse conceito crime é todo fato humano contrário à lei. Crime é uma conduta contrária ao Direito, a que a lei atribui uma pena. CRIME É TODA AÇÃO OU OMISSÃO PROIBIDA PELA LEI SOB AMEAÇA DE UMA PENA.

Sob o aspecto material, o conceito busca estabelecer a essência do conceito, isto é, o porquê de determinado fato ser considerado criminoso e outro não. Nota-se uma preocupação com o caráter teleológico do crime, procurando se analisar a razão que levou o legislador a definir determinada conduta como típica, a sua natureza danosa e suas conseqüências. Esse conceito substitui a coerência formal de um pensamento jurídico circunscrito em si mesmo por um conceito de delito voltado para os fins pretendidos pelo Direito Penal e pelas perspectivas valorativas que o embasam. Neste passo, crime é todo fato humano que, propositada ou descuidadamente, lesa ou expõe a perigo bens jurídicos considerados fundamentais para a existência da coletividade e da paz social. Crime é qualquer fato do homem, lesivo a um interesse, que possa comprometer as condições de existência, de conservação e de desenvolvimento da sociedade. CRIME É A CONDUTA HUMANA QUE LESA OU EXPÕE A PERIGO UM BEM JURÍDICO PENALMENTE TUTELADO.

Assim, tomando-se por base tais conceitos de crime, pode-se definir:

- ILICITUDE FORMAL: mera contrariedade do fato ao ordenamento legal, sem qualquer preocupação quanto à efetiva perniciosidade social da conduta. O fato é considerado ilícito porque não estão presentes as causas de justificação, pouco importando se a coletividade reputa-o reprovável.

- ILICITUDE MATERIAL: é a contrariedade do fato em relação ao sentimento comum de justiça (injusto). O comportamento afronta o que o homem médio considera justo, correto. Há uma lesividade social ínsita na conduta, a qual não se limita a afrontar o texto legal, provocando um efetivo dano à coletividade. Assim, a ilicitude material é aquela existente na conduta humana que fere o interesse tutelado pela norma, vale dizer, que lesa ou expõe a lesão um interesse penalmente tutelado. Conseqüência da adoção da ilicitude material é a possibilidade do reconhecimento de causas supralegais de exclusão, com base no princípio da ponderação de bens.

Contudo, a distinção entre ilicitude formal e material e perfeitamente superável e dispensável. O que se denomina de ilicitude formal, nada mais é do que a própria tipicidade, posto que a contradição entre o comportamento humano e a lei penal se exaure no primeiro elemento do crime, que é o fato típico.

Assim, somente pode subsistir como válida a concepção material de ilicitude, entendida como a relação de antagonismo que se estabelece entre uma conduta humana voluntária e o ordenamento jurídico, de modo a causar lesão ou expor a perigo de lesão um bem jurídico tutelado.

III- CARÁTER DA ILICITUDE ___________________

Page 83: Direito Penal i

No que tange ao caráter da ilicitude, duas teorias se apresentam e merecem ser enfrentadas.

- TEORIA OBJETIVA: para esta teoria, o caráter da ilicitude resolve-se num contraste entre o fato e o ordenamento jurídico, independentemente da capacidade de entendimento ou da imputabilidade do sujeito. Portanto, basta que o fato típico não esteja amparado por uma causa de exclusão para considerar-se a conduta como ilícita, ainda que praticada por um inimputável (este praticaria uma conduta típica, antijurídica, todavia não seria culpável).

- TEORIA SUBJETIVA: para esta teoria, como existem elementos objetivos e subjetivos no tipo penal (que dão origem à divisão entre tipo objetivo e tipo subjetivo), nas causas de justificação existem igualmente componentes objetivos e subjetivos. Assim, o fato só é ilícito se o agente tiver capacidade de avaliar seu caráter criminoso, não bastando que objetivamente a conduta esteja descoberta por causa de justificação. Para essa teoria, o inimputável não comete fato ilícito.

IV- CARÁTER INDICIÁRIO e ILICITUDE POR EXCLUSÃO ___________________

É absolutamente correto se afirmar que todo fato penalmente ilícito é, antes de tudo, típico. Todavia, pode ocorrer que um fato típico não seja necessariamente ilícito, ante a ocorrência de uma causa de justificação. É o caso do homicídio praticado em legítima defesa. O fato é típico (encontra adequação em um modelo abstrato na lei penal – art. 121, CP), contudo não é ilícito (posto que praticado sob o manto de uma excludente de ilicitude – art. 23 c/c art. 25, ambos do CP).

Como já verificado, o tipo penal possui uma função seletiva, segundo a qual o legislador escolhe, dentre todas as condutas humanas, somente as mais perniciosas ao meio social, para defini-las em modelos incriminadores (caráter fragmentário do Direito Penal).

Da ocorrência de um fato típico, surge a impressão de que algo de danoso aconteceu ao meio social, já que uma conduta definida em lei como nociva foi realizada. Por essa razão, costuma-se dizer que todo fato típico contém um caráter indiciário da ilicitude, ou seja, constatada a tipicidade de uma conduta, passa a incidir sobre ela a presunção de seja ilícita, ou seja, contrária ao ordenamento jurídico.

Partindo-se dessa premissa (todo fato típico é, em princípio, ilícito ou antijurídico), a ilicitude passa a ser analisada a contrario sensu, ou seja, se não estiver presente nenhuma causa excludente da ilicitude o fato será considerado ilícito.

Por essa razão, a ilicitude de um fato típico é constatada pela mera confirmação de um prognóstico decorrente da tipicidade, o qual somente será afastado pela verificação de uma causa excludente de ilicitude. Não é preciso, por conseguinte, demonstrar que um fato típico também é ilícito. Essa será uma decorrência normal e natural da tipicidade.

Assim, à vista do exposto, o exame da ilicitude nada mais é do que o estudo das suas causas de exclusão, pois, se estas não estiverem presentes, haverá confirmação da presunção da ilicitude.

Page 84: Direito Penal i

V- CAUSAS SUPRALEGAIS DE JUSTIFICAÇÃO: o consentimento do ofendido. ___________________

As causas que excluem a ilicitude da conduta podem estar disposta em lei (art. 23 e seguintes do CP), bem como podem ser supralegais, (quando aplicadas analogicamente, ante a falta de previsão legal).

A relação das causas excludentes de ilicitude não constitui numerus clausus. Esse rol, na verdade, é meramente exemplificativo, pois as fontes justificadoras podem ter sua origem em qualquer outro ramo do ordenamento jurídico ou até mesmo no costume. Pode-se, para tanto, recorrer-se aos princípios gerais do direito, à analogia ou aos costumes.

A lei apenas apresenta alguns casos-padrão em que a conduta será permita, ou seja, será entendida como não ofensiva ao ordenamento jurídico, mas em momento algum pretende limitar o infinito universo de tolerância ao fato típico. Fato é que, o caráter dinâmico da realidade social permite que condutas antes proibidas passem a ter aceitação social, legitimando-as culturalmente. Por outro lado, não é dado ao legislador prever todas as hipóteses em que as transformações produzidas pela evolução ético-social de um povo passam a autorizar ou permitir a realização de determinadas condutas, inicialmente proibidas.

Entretanto, embora não se desconheça a possibilidade de causas supralegais de justificação, o rol do art. 23, do CP, embora não seja exaustivo, deixa muito pouco espaço para o reconhecimento de das mesmas, mormente quando entre as hipóteses legais encontram-se os exercícios regular de um direito e o estrito cumprimento do dever legal, que acabam por funcionar como verdadeiros gêneros das mais variadas espécies de normas permissivas espalhadas pelo ordenamento jurídico, abrangendo-as, praticamente, todas.

Contudo, pelo menos em um caso é possível se falar em causa supralegal de justificação: o consentimento do ofendido. Observe-se que não há que se falar em colisão com o princípio da reserva legal, haja vista que se cuida de norma penal não incriminadora “stricto sensu”, isto é, de redução do poder punitivo estatal, constituindo garantia ao direito de liberdade do cidadão.

Todavia, não é todo o consentimento do ofendido que se constitui em causa supralegal de justificação, mas somente aquele que se impõe de fora para dentro, sem integrar a descrição típica do fato.

Em muitas figuras delitivas, a ausência do consentimento faz parte da estrutura típica, funcionando como uma característica negativa do tipo. É o caso dos arts. 150, 151 e 219, todos do CP. Nessas hipóteses, a presença do consentimento afasta a TIPICIDADE da conduta que, para configurar crime, exige o dissenso da vítima. Em outras hipóteses, o consentimento do ofendido funciona como verdadeira elementar do crime, como no caso dos arts. 126, 217 e 220, todos do CP. Nesses casos, o consentimento é elemento essencial do tipo penal.

Quer numa, quer noutra hipótese, não se tem o consentimento do ofendido justificante. Na primeira o consentimento funciona como excludente de tipicidade, na segunda, como elementar do tipo penal.

Entretanto, nada impede que se reconheça a figura do consentimento justificante, quando decorrer de vontade juridicamente válida emitida pelo titular de um bem jurídico disponível. Esse consentimento afasta a contrariedade à norma jurídica,

Page 85: Direito Penal i

ainda que eventualmente a conduta consentida venha a se adequar a um modelo abstrato de proibição. Aqui se tem o consentimento como causa de justificação supralegal. Exemplos dessa situação são os arts. 148, 155 e 163, todos do CP.

Portanto, é perfeitamente possível aceitar-se o consentimento do ofendido como excludente de ilicitude supralegal, quando o mesmo se impõe de fora para dentro do tipo, excetuando-se as hipóteses em que o consentimento exclui a própria adequação típica (1ª hipótese) ou quando se constitui em elemento essencial do tipo (2ª hipótese).

VI- CAUSAS LEGAIS DE JUSTIFICAÇÃO ___________________

O artigo 23, do CP arrola 04 causas de justificação, a saber: 1- estado de necessidade, 2- legítima defesa, 3- estrito cumprimento do dever legal e 4- exercício regular de um direito.

VI.1- ESTADO DE NECESSIDADE___________________

VI.1.1- GENERALIDADES E CONCEITO.

Os arts. 23, I e 24, ambos do CP, dão conta do estado de necessidade, entendido este como uma causa de exclusão de ilicitude da conduta de quem, não tendo o dever legal de enfrentar uma situação de perigo atual, a qual não provocou por sua vontade, sacrifica um bem jurídico ameaçado por esse perigo para salvar outro, próprio ou alheio, cuja perda não era razoável exigir. Caracteriza-se, portanto, pela colisão de interesses juridicamente protegidos.

Como coloca HELENO FRAGOSO, o que justifica a ação é a necessidade que impõe o sacrifício de um bem em situação de conflito ou colisão, diante da qual o ordenamento jurídico permite o sacrifício do bem de menor valor, desde que imprescindível para a salvaguarda do bem preservado.

O que se constata então, no estado de necessidade, é a justificação de uma ação predominantemente agressiva com aspectos defensivos, embora essa conclusão não possa ser levada a extremos, pois há situações de estado de necessidade que se diferenciam entre si pela maior intensidade, em umas, do caráter defensivo do ato necessário; em outras, pela do caráter agressivo. Diante desta possível distinção pode-se falar em:

- ESTADO DE NECESSIDADE DEFENSIVO: ocorre quando o ato necessário se dirige contra a coisa de que promana o perigo para o bem jurídico defendido. Ex: matar o cão alheio que lhe ataca.

- ESTADO DE NECESSIDADE AGRESSIVO: é aquele em que o ato necessário se dirige contra coisa diversa daquela de que promana o perigo para o bem jurídico defendido. Ex: quem, para prestar socorro a um indivíduo baleado, toma veículo alheio que se encontrava estacionado e dele se utiliza sem autorização do dono.

Page 86: Direito Penal i

Outra classificação quanto ao estado de necessidade se faz mister, afim de que se possa conhecer a teoria unitária e diferenciadora.

- ESTADO DE NECESSIDADE JUSTIFICANTE: quando o bem ou interesse sacrificado for de menor valor. Nessa hipótese, a ação será considerada lícita, afastando a criminalidade, desde que tenha sido indispensável para a conservação do bem mais valioso, portanto, há exclusão da ilicitude.

- ESTADO DE NECESSIDADE EXCULPANTE: quando o bem ou interesse sacrificado for de igual valor ou superior ao que se salva. Nesse caso, o Direito não aprova a conduta. No entanto, ante a inexigibilidade de conduta diversa, exclui a culpabilidade.

VI.1.2- TEORIA UNITÁRIA E TEORIA DIFERENCIADORA.

Duas teorias procuram explicar quais efeitos serão produzidos do reconhecimento da conduta do agente ter sido praticada em estado de necessidade.

- TEORIA UNITÁRIA: para esta teoria, o estado de necessidade é sempre causa de exclusão de ilicitude. Não existe ponderação ou comparação dos bens envolvidos no fato, haja vista que ninguém é obrigado a ficar calculando o valor de cada interesse em conflito, bastando que atue de acordo com o senso comum daquilo que é razoável. Assim, ou o sacrifício de determinado bem é aceitável, e o estado de necessidade atua como causa justificadora, ou este sacrifício não é razoável, e o fato passa a ser ilícito. Essa teoria reconhece tão somente o estado de necessidade como excludente de ilicitude, ou seja o ESTADO DE NECESSIDADE JUSTICANTE. É a teoria dotada pelo CP, conforme se desprende do art. 24, § 2º, do CP, que dispõe que, quando o sacrifício não for razoável, o agente responde pelo delito, com direito a uma redução de pena de 1/3 a 2/3. Assim, se a falta de razoabilidade gera o efeito de reduzir a pena, significa que o indivíduo praticou um fato típico, ilícito e culpável, portanto, um crime. Não existe, na hipótese, exclusão de ilicitude, apenas redução da pena – causa especial de redução de pena prevista na parte geral do código ou minorante.

- TEORIA DIFERENCIADORA: de acordo com essa teoria deve ser feita uma ponderação entre os valores dos bens/interesses e deveres em conflito, de maneira que o estado de necessidade será justificado quando o bem sacrificado for de menor valor que o preservado. Por outro lado, quando o bem sacrificado for de igual valor ou valor superior ao bem preservado, o estado de necessidade continuará existindo, contudo, como excludente de culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa. Portanto, observa-se que a referida teoria reconhece o ESTADO DE NECESSIDADE JUSTIFICANTE e o ESTADO DE NECESSIDADE EXCULPANTE. É a teoria adotada pelo CP alemão e pelo CP espanhol.

O Brasil, como já afirmado, adota a TEORIA UNITÁRIA, não sendo possível, em nosso ordenamento jurídico, o reconhecimento do ESTADO DE NECESSIDADE EXCULPANTE, senão, eventualmente, como causa supralegal de exclusão de culpabilidade, quando se preservar o bem de menor valor em detrimento do bem de maior valor, ou seja, o indivíduo pratica um injusto, somente deixa de ser punido pelo mesmo diante da inexigibilidade de conduta diversa.

Page 87: Direito Penal i

Já no que tange a bens de igual valor, a ação do indivíduo que preserva um dos bens, embora típica, não pode ser qualificada de ilícita, justamente porque, como acentuava MAYER, o que não pode ser razoavelmente exigido do indivíduo não lhe pode ser imposto pelo direito positivo. Diante de uma norma permissiva, não há como se falar em ilicitude do fato que a ela se ajusta. Uma ação juridicamente permitida não pode ser ao mesmo tempo proibida pelo direito. No caso de interesses de igual valor, o direito concede a faculdade da própria ação violenta para a salvaguarda de qualquer deles. Fala-se em faculdade e não propriamente num direito, posto que a este deve corresponder uma obrigação, sendo que, no caso, nenhum dos titulares dos interesses equivalentes em colisão está obrigado a suportar o sacrifício do seu.

VI.1.3- REQUISITOS DO ESTADO DE NECESSIDADE A configuração do estado de necessidade pressupõe a presença simultânea

de determinados requisitos, a saber:

a- Existência de perigo atual: o art. 24, do CP determina que somente o perigo atual justifica o ataque. Atual é o que é presente, que subsiste e persiste. É a ameaça que se verifica no exato momento em que o agente sacrifica o bem jurídico alheio. Observe-se que o legislador não se referiu a eminência de perigo. Deve tratar-se de perigo presente, concreto, imediato, reconhecido objetivamente. Entretanto, não se deve confundir eminência de perigo que, em verdade nada mais seria uma ameaça de ameaça, não sendo acobertada pela excludente, com eminência de dano. A atualidade do perigo engloba a eminência do dano. Em outras palavras, o indivíduo está diante de uma situação real, concreta de perigo, da qual poderá advir um dano a um bem jurídico seu ou de terceiro, dano esse que não era razoável exigir-se do titular. Assim, perigo passado caracteriza vingança e perigo futuro caracteriza suposição vazia, não acobertados pela excludente.

b- Existência de perigo inevitável: não basta que o perigo seja atual, há de ser também inevitável. Somente se admite o sacrifício do bem quando o indivíduo não dispuser de qualquer outro meio de salvaguardar o bem pretendido. O chamado “commodus discessus”, ou seja, a saída mais cômoda, no caso a opção pela ação que sacrifica o bem deve ser sempre evitável, somente estando autorizada quando não existirem outros meios. Por exemplo, existindo a possibilidade de fuga, não se justifica o ataque. O agente deve optar, invariavelmente, pelo meio que cause menor dano, embora não se possa deixar de considerar, nas circunstâncias fáticas, o estado emocional do agente, tanto para a avaliação dos danos quanto para a escolha do meio menos lesivo. Exige-se esse comportamento do indivíduo porque o mesmo não está sofrendo nenhuma agressão injusta, mas tenta afastar uma ameaça a um bem jurídico. Em síntese, inevitável é a lesão necessária, na exata medida de sua necessidade para salvaguardar o bem ameaçado. Quando o agente opta pelo meio mais gravoso para afastar o perigo, embora outro fosse possível, responde pelo excesso, que poderá ser doloso ou culposo.

c- Não provocação voluntária do perigo: a expressão que não provocou por sua vontade não se confunde com dolo, posto que, nos crimes culposos, a conduta, de regra, também é voluntária. Ademais, nesse caso, o que não deve ter sido

Page 88: Direito Penal i

provocado pela vontade do agente é a conduta e não o resultado. Contudo, a doutrina não é uníssona neste particular.

Para ASSIS TOLEDO, não apenas o perigo doloso, mas também o provocado por culpa, obstam a alegação do estado de necessidade, vez que, a conduta culposa também é voluntária na sua origem. Esta posição é compartilhada por NELSON HUNGRIA e FREDERICO MARQUES.

Por outro lado, DAMÁSIO DE JESUS, FERNANDO CAPEZ e BITENCOURT entendem que apenas quando a situação de perigo foi provocada intencionalmente é que não se poderá alegar o estado de necessidade, ou seja, quando a situação de perigo adveio de culpa, é possível reconhecer-se a excludente.

d- Inexigibilidade de sacrifício do bem ameaçado: o art. 24 do CP, ao se referir à proteção de direito próprio ou alheio cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se, orientou-se pelo princípio da razoabilidade. Verifica-se nesse requisito a ponderação objetiva dos bens em colisão envolvidos. Contudo, mais do que a proporcionalidade dos bens em conflito, pretende-se valorar a situação concreta de perigo para aferir a proporcionalidade entre a gravidade do perigo e do bem ameaçado. Dentro deste contexto, não se pode deixar de ser considerar valorativamente a situação de perigo, as circunstâncias fáticas, o estado emocional do agente e a proporcionalidade dos bens envolvidos. O que não se espera, nem se pode exigir é uma aferição milimétrica entre os bens envolvidos.

e- Direito próprio ou alheio: o termo direito é empregado no sentido de qualquer bem tutelado pelo ordenamento jurídico (vida, liberdade, integridade física, patrimônio, etc.). o que é imprescindível é que o bem a ser protegido tenha sido merecedor de tutela do ordenamento jurídico, sob pena de não haver direito a se salvaguardar. No que tange a proteção de direito alheio, não se exige qualquer relação jurídica específica entre o agente e o titular do direito que se pretende proteger. Embora não se exija autorização ou consentimento do titular do direito para que o agente possa agir, questão interessante é a que trata da hipótese de direitos ou interesses disponíveis. Nesse caso, a intervenção deverá contar com o consentimento do titular do direito, haja vista que este pode preferir solução diferente para o fato, até mesmo suportar o dano decorrente da situação de perigo.

f- Elemento subjetivo: finalidade de salvar o bem em perigo: o fato necessário deve ser praticado com o intuito de salvaguardar o bem em perigo. Assim, pouco adianta estarem presentes todos os requisitos objetivos do estado de necessidade se o agente desconhecia a sua existência, vale dizer, agiu imbuído por motivação distinta. A ação do estado de necessidade, como única possibilidade de afastar o perigo, deve ser objetivamente necessária e subjetivamente conduzida pela vontade do salvamento. Se faltar a finalidade específica de salvar, a ação não estará acobertada pela excludente de ilicitude.

g- Ausência do dever legal de enfrentar o perigo: sempre que a lei impuser ao agente o dever de enfrentar o perigo, deve ele tentar salvar o bem ameaçado sem destruir qualquer outro, mesmo que para tanto tenha que correr riscos inerentes à sua função. Todavia, tal dever limita-se ao período em que o agente encontra-se no exercício da atividade específica e, mesmo assim, tal dever não

Page 89: Direito Penal i

tem caráter absoluto, a ponto de negar-se qualquer possibilidade de se alegar estado de necessidade. A exigência de sacrifício no exercício dessas atividades não pode exigir atos de puro heroísmo ou de bravura desmedida. Ex: para salvar um bem patrimonial (um carro, por exemplo) é inadmissível que se exija de um único policial que enfrente uma quadrilha fortemente armada, ou seja, que sacrifique a própria vida. Importante destacar que o artigo 24, § 1º, do CP, refere-se somente ao dever legal que, em verdade, é uma modalidade de dever jurídico, conforme dispõe o art. 13, § 2º, do CP. Portanto, o garantidor é aquele que com uma conduta anterior criou o risco de produzir o resultado, pode alegar o estado de necessidade em sua defesa, posto que, não tinha o dever legal de agir, ou seja, o seu dever não decorre de lei, mas de uma manifestação de vontade ou mesmo de uma ingerência sua. Assim, o agente pode praticar uma conduta típica omissiva, mas não ilícita, ante a possibilidade de invocar o estado de necessidade. Ex: guarda-costas e cliente que naufragam. O guarda-costas não tem o dever legal de assegurar a vida de seu cliente. Tem sim, um dever contratual, o que não exclui a possibilidade de alegar estado de necessidade.

VI.2- LEGÍTIMA DEFESA___________________

VI.2.1- GENERALIDADES E CONCEITO.

A legítima defesa constitui direito de proteção enraizado na consciência jurídica do povo, fundada em dois princípios: o princípio da proteção individual de bens e interesses e o princípio social da afirmação do direito.

O reconhecimento da faculdade de autodefesa contra agressões injustas não constitui uma delegação estatal, mas a legitimação pela ordem jurídica de uma situação de fato na qual o direito se impõe diante do ilícito. Trata-se, na verdade, de uma causa de justificação que se baseia no princípio da afirmação do direito, onde o direito não precisa nem deve retroceder diante do injusto, ao contrário, deve se impor a ele.

Assim, pode-se definir o instituto como sendo a causa de exclusão de ilicitude que consiste em repelir injusta agressão, atual ou eminente, a direito próprio ou alheio, usando moderadamente dos meios necessários.

O que se constata, então, na legítima defesa, ao contrário do estado de necessidade, é uma ação predominantemente defensiva com aspectos agressivos.

VI.2.2- FUNDAMENTO E NATUREZA JURÍDICA DA LEGÍTIMA DEFESA

A legítima defesa apresenta um duplo fundamento, baseado nos princípios acima expostos. De um lado, a necessidade de defender bens jurídicos perante uma agressão; de outro, a necessidade de defender o próprio ordenamento jurídico, que se vê violado por uma agressão injusta. Isso se dá, porque o Estado reconhece a sua incapacidade de oferecer proteção aos cidadãos em todo momento e lugar.

No que tange à natureza jurídica do instituto, duas correntes se apresentam:

Page 90: Direito Penal i

- Subjetiva : que vê na legítima defesa uma causa de exclusão de culpabilidade, fundamentando-se na perturbação de ânimo do agredido ou nos motivos determinantes do agente.

- Objetiva : considera a legítima defesa uma causa excludente de ilicitude, fundamentando-se no fato de que a mesma é um direito primário do cidadão. Por óbvio, o nosso ordenamento jurídico entende o instituto como uma excludente de ilicitude, conforme arts. 23, II e 25, ambos do CP.

VI.2.3- REQUISITOS DA LEGÍTIMA DEFESA

A legítima defesa, afim de que se constitua em causa de justificação, deve conter os seguintes requisitos, a saber:

a- Agressão injusta: agressão é toda conduta humana que ataca um bem jurídico, lesando-o ou pondo-o em perigo. Irrelevante é que a conduta não constitua um ilícito penal. O ataque de um animal, por exemplo, não constitui agressão, logo não autoriza a legítima defesa, mas sim o estado de necessidade. Injusta é a agressão contrária ao ordenamento jurídico. Constitui-se, portanto, em agressão ilícita, o que necessariamente não quer dizer crime. assim, injusta é a agressão que não está acobertada por uma norma jurídica, ou seja, que não é autorizada pelo ordenamento jurídico. A reação a uma agressão justa não configura a legítima defesa, e o raciocínio é lógico. Se a agressão é justa (lícita, portanto) a reação a ela não o poderá ser.

b- Agressão atual ou eminente: atual é a agressão que está acontecendo, isto é, que ainda não foi concluída. Observe-se que, nos crimes permanentes, a defesa é possível a qualquer tempo, haja vista que a conduta e a consumação destes crimes se prolonga no tempo. Eminente é a agressão que está preste a ocorrer. Nesse caso, a agressão ainda não começou a ser produzida, mas deve iniciar a qualquer momento. Admite-se a reação desde logo, ou seja, sem demora, posto que ninguém está obrigado a esperar ser atingido por um golpe para poder se defender. Contudo, agressão eminente não se confunde com agressão futura. Agressão futura não é aquela que está preste a acontecer, mas sob a qual existe uma possibilidade remota ou não de acontecer em algum momento, não necessariamente no imediatamente seguinte. O indivíduo que mata a vítima porque está haveria lhe ameaçado de morte (mal futuro), não pode alegar legítima defesa.

c- Agressão a direito próprio ou alheio: qualquer bem jurídico pode ser protegido pela legítima defesa, para repelir injusta agressão. A distinção se dá somente em relação à titularidade do bem defendido. Fala-se em legítima defesa própria quando o agente defensor é o titular do bem agredido ou ameaçado e, em legítima defesa de terceiro, quando o defensor não é o titular do bem ofendido ou ameaçado, mas objetivamente protege interesses de outrem. Contudo, não se pode deixar de verificar algumas restrições à defesa de direito alheio, resultantes da natureza do direito defendido. Assim, quando se trata de direito disponível e agente capaz, a defesa de terceiro não pode fazer-se sem a concordância do titular desse direito.

Page 91: Direito Penal i

d- Uso dos meios necessários: são necessários os meios reputados eficazes e suficientes para repelir a agressão. Devem ser considerados como aqueles menos lesivos colocados à disposição do agente no momento em que sofre a agressão. A configuração de uma situação de legítima defesa está diretamente relacionada com a intensidade da agressão, periculosidade do agressor e com os meios de defesa disponíveis. No entanto, não se exige uma adequação perfeita, milimétrica, entre o ataque e a defesa, para se estabelecer a necessidade dos meios e a moderação no seu uso. Isso se dá, basicamente, porque não se pode afastar a capacidade valorativa, obviamente prejudicada, de quem se encontra envolvido emocionalmente em um conflito no qual é vítima de ataque injusto. A reação imediata (e essa é a exigida na legítima defesa) na se coaduna com uma valoração detida e criteriosa dos meios necessários a repulsa imediata e eficaz. Assim, os meios necessários são aqueles suficientes e indispensáveis para o exercício eficaz da defesa. Se não houver outros meios, poderá ser considerado necessário o único meio disponível.

e- Uso moderado dos meios necessários: não basta que o agente se utilize dos meios necessários. É necessário que ao faze-lo, aja com moderação, ou seja, o meio não deve ser utilizado além do que é preciso para evitar a lesão ao interesse que se pretende proteger, sob pena do agente responder por excesso doloso ou culposo. O requisito da moderação exige que aquele que se defende não permita que sua reação cresça em intensidade além do razoavelmente exigido pelas circunstâncias para fazer cessar a agressão. Contudo, como já afirmado, essa moderação não pode ser aferida de forma milimétrica, mas sim deve ser analisada em cada caso. Modernamente, admiti-se a invocação do princípio da proporcionalidade no que tange ao emprego moderado dos meios necessários, na exata medida em que o direito à legítima defesa encontra o seu limite na proibição geral do abuso de direito e nos elementos normativos da imposição, ou seja, uma defesa, cujas conseqüências situam-se em crassa desproporção para com o dano iminente, é abusiva e, assim, inadmissível.

f- Elemento subjetivo (animus defendendi): assim como nas demais causas de justificação, na legítima defesa também se exige o elemento intencional do agente, que se resume no propósito de defender-se. Defesa é uma verdadeira ação humana e somente se diferencia da ação criminosa pelo significado positivo que lhe atribui a ordem jurídica. Dito de outra forma, na ação criminosa, dá-se o desvalor da ação; na ação defensiva, reconhece-se a existência de um intenso conteúdo valioso. Em ambas, a orientação de ânimo, de intencionalidade do agente, é elemento decisivo, posto que o fato, na sua aparência exterior, permanece o mesmo (ex: matar). Assim, mesmo que a agressão seja injusta, atual ou eminente, a legítima defesa não se configura se o agente desconhecia essa situação. Se, encontrava-se impulsionado pela vontade de praticar um crime e não de se defender, ainda que, por coincidência, o seu ataque acabe sendo uma defesa, o fato será ilícito. Assim, a legítima defesa deve ser objetivamente necessária e subjetivamente orientada pela vontade de defender-se. Assim, somente os elementos objetivos não são hábeis a demonstrar uma situação de justificação, fazendo-se necessário à presença do elemento subjetivo no agente, qual seja o animus defendendi.

Page 92: Direito Penal i

VI.2.4- LEGÍTIMA DEFESA E AGRESSÃO DE INIMPUTÁVEIS

A injustiça da agressão deve ser aferida de forma objetiva, ou seja, independentemente da capacidade do agente. Assim, os inimputáveis podem sofrer repulsas acobertadas pela legítima defesa. A questão merece reflexão.

Alguns autores, como Nelson Hungria, defendem a idéia de que o tratamento da defesa contra a agressão de inimputável deve se dar à luz do estado de necessidade, mais benéfico para o agressor, por exigir a fuga da vítima agredida quando possível, o que não ocorre na legítima defesa. Contudo, tal orientação não parece satisfatória, mormente, diante do crescente aumento da criminalidade juvenil na sociedade. Imagine-se a hipótese do agente ser vítima de um roubo perpetrado por um inimputável (em razão da idade, por exemplo). Adotando-se a orientação do mestre Nelson Hungria, vítima do roubo não poderia defender-se com o emprego de violência pondo em risco a vida do agressor inimputável (vida contra patrimônio), ainda que esse fosse o único meio existente no momento, restando a mesma a fuga e uma forçada conformação com a espoliação de seu patrimônio, com dano que poderia ser impossível de reparação.

Com efeito, tal posição não pode prosperar. Inimputabilidade é causa excludente de culpabilidade, ou seja, o inimputável pode sim, praticar uma conduta típica e ilícita. Assim, a conduta do inimputável, embora não seja culpável, é ilícita, ou seja, trata-se de agressão injusta a ser repelida pela legítima defesa.

VI.2.5- LEGÍTIMA DEFESA E “COMODUS DISCESSUS”

Na legítima defesa, o “comodus discessus” opera de forma diferente do estado de necessidade, no qual, como já afirmado, não é admitido (o sacrifício do bem, embora seja a saída mais cômoda para o agente, deve ser realizado somente quando inevitável). Na legítima defesa, onde o agente sofre ou presencia uma agressão injusta, a solução é diversa. Como se trata de repulsa a agressão, não deve sofrer os mesmos limites. A lei não obriga ninguém a ser covarde, de modo que o sujeito pode optar entre a fuga ou permanecer e defender-se de acordo com as exigências legais.

VI.2.5- LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA

Questão que se apresenta é a da possibilidade de legítima defesa da honra. Em princípio, todos os direitos são passíveis de legítima defesa, inclusive a honra. Desta forma, fica patente que é perfeitamente possível a legítima defesa da honra.

Entretanto, o que se discute é a proporcionalidade entre a ofensa e a intensidade da repulsa. Aquele que está sendo vítima de um crime contra a honra (calúnia, difamação ou injúria- esta ainda que real) não poderá alegar legítima defesa se mata o seu agressor, ante a visível desproporcionalidade entre a agressão e a repulsa. Da mesma forma, nada justifica a morte do cônjuge adúltero, não apenas ante a falta de moderação na repulsa, mas também porque a honra é um atributo personalíssimo, não podendo ser considerada ultrajada por um ato imputável a terceiro, mesmo que este seja a esposa ou do marido do adúltero.

VI.2.6- ESPÉCIES DE LEGÍTIMA DEFESA

A doutrina indica uma série de espécies de legítima defesa, a saber:

Page 93: Direito Penal i

a- Legítima defesa real ou própria: é a tradicional defesa legítima contra agressão injusta, atual ou eminente, onde estão presentes todos os requisitos da sua configuração.

b- Legítima defesa putativa: ocorre quando o agente se julga, equivocadamente, diante de uma agressão injusta, atual ou eminente, acreditando, portanto, autorizado juridicamente a repeli-la. Observe-se que a situação fática somente existe na representação do agente, posto que, objetiva e realmente, não existe.

c- Legítima defesa subjetiva: é aquela de advém do excesso praticado por erro de tipo escusável. Após defender-se de uma agressão inicial, o agente começa a exceder, pensando ainda estar sob a influência do ataque. Na sua mente, ele ainda está defendendo-se, porque a agressão ainda não cessou, mas, objetiva e realmente, já deixou a posição de defesa e passou ao ataque. O que se tem, portanto, é uma legítima defesa inicial que, depois de cessada a agressão, continua existindo somente na mente do indivíduo, por erro escusável.

d- Legítima defesa recíproca: é inadmissível legítima defesa contra legítima defesa, ante a impossibilidade de defesa lícita em relação a ambos os envolvidos. Contudo, é possível se pensar na hipótese de legítima defesa real contra legítima defesa putativa

e- Legítima defesa sucessiva: é possível na hipótese de excesso por parte da vítima que se defende. Observe-se que também é possível na legítima defesa subjetiva, no que diz respeito ao excesso praticado pela vítima em razão de erro de tipo escusável. Aqui a vítima que inicialmente era defensor passa a ser agressor, autorizando o agressor original a se defender, repelindo agressão injusta.

VI.2.7- HIPÓTESES DE CABIMENTO DA LEGÍTIMA DEFESA

a- Legítima defesa contra agressão acobertada por uma excludente de culpabilidade: é perfeitamente possível a vítima agir em legítima defesa quando o seu agressor está acobertado por uma excludente de culpabilidade (coação moral irresistível ou inimputabilidade, por exemplo), haja vista que a agressão é injusta, somente o seu autor não será culpável.

b- Legítima defesa real contra legítima defesa putativa: na legítima defesa putativa o agente pensa estar se defendendo, mas na verdade está praticando um ataque injusto. Se é certo que ele não sabe que está praticando um ataque contra um inocente, mais certo ainda é que este último não precisa suportar o ataque motivado por erro ao qual não deu causa.

c- Legítima defesa putativa contra legítima defesa putativa: ocorre quando os dois indivíduos estão em erro. É possível que ambos recorram a legítima defesa putativa, contudo, somente no caso concreto é que se poderá verificar se o erro em que incorreram era escusável (exclui dolo e culpa) ou inescusável (exclui dolo, mas permite a punição a título de culpa).

Page 94: Direito Penal i

d- Legítima defesa real contra legítima defesa subjetiva: como já visto acima, é possível que o agressor se torne vítima e vice-versa, diante do excesso escusável perpetrado pela vítima inicial.

e- Legítima defesa putativa contra legítima defesa real: não deixa de ser possível, contudo, somente em caso de legítima defesa de terceiro. Ex: A presencia seu amigo brigando e, para defendê-lo, agride seu oponente. Contudo, na verdade, o amigo era o agressor, o terceiro apenas se defendia.

VI.2.8- HIPÓTESES DE NÃO CABIMENTO DE LEGÍTIMA DEFESA

Nas hipóteses que seguem, não é possível se alegar legítima defesa, ante a falta de um de seus requisitos indispensáveis, qual seja, em nenhuma das hipóteses o agente estará diante de uma situação de agressão injusta.

a- Legítima defesa real contra legítima defesa real;b- Legítima defesa real contra estado de necessidade;c- Legítima defesa real contra exercício regular de um direito;d- Legítima defesa real contra estrito cumprimento do dever legal.

Em síntese, não se poderá alegar legítima defesa real contra qualquer outra excludente de ilicitude, justamente porque, como o próprio nome deixa claro, o suposto agressor estará agindo conforme o direito, já que a ilicitude de sua conduta foi excluída pelo ordenamento jurídico.

VI.3- ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL___________________

VI.3.1- CONCEITO E REQUISITOS

O fundamento da excludente entabulada no art. 23, III, 1ª parte, do CP é que não há crime quando o agente pratica o fato no “estrito cumprimento de dever legal”. Ora, quem cumpre dever legal dentro dos limites impostos pela lei obviamente não pode estar praticando ao mesmo tempo um ilícito penal, ou seja, não pode estar praticando uma conduta que ofenda o ordenamento jurídico.

Assim, pode ser conceituado como causa de exclusão de ilicitude que consiste na realização de um fato típico, por força do desempenho de uma obrigação imposta por lei, e nos seus exatos limites. Ex: é o carrasco que cumpre a sentença em relação ao condenado. O policial que prende o criminoso.

A excludente conta com requisitos que não podem ser afastados, sob pena de não se caracterizar a causa de justificação, a saber:

a- Dever legal: compreende toda e qualquer obrigação direta ou indiretamente derivada de lei. Pode, portanto, constar de decreto, regulamento, ou qualquer ato administrativo infralegal, desde que originário de lei. O mesmo se diga em

Page 95: Direito Penal i

relação a decisões judiciais, que nada mais são do que determinações emanadas do Poder Judiciário em cumprimento da ordem legal. Não o caracterizam as obrigações de natureza social, moral ou religiosa. Portanto, a norma da qual emana o dever tem que ser jurídica, e de caráter geral. Se a norma tiver caráter particular, de cunho administrativo, poderá configurar obediência hierárquica – art. 22, 2ª parte do CP.

b- Cumprimento dentro dos estritos limites da lei: exige-se que o agente se contenha dentro dos rígidos limites do seu dever, fora dos quais desaparece a excludente. Assim, somente os atos rigorosamente necessários e que decorram de exigência legal amparam-se na causa de justificação em estudo.

c- Elemento subjetivo: como as demais excludentes, também esta exige o elemento subjetivo, isto é, o sujeito deve ter conhecimento de que está praticando um fato em face de um dever jurídico que lhe é imposto por lei, direta ou indiretamente.

VI.3.2- ALCANCE DA EXCLUDENTE

Embora a norma permissiva seja endereçada, via de regra, aos agentes públicos, seus destinatários naturais, não se pode deixar de reconhecer a possibilidade de ser aplicada ao cidadão comum, quando este atua sob a imposição de um dever legal. A giza de exemplo, lembra-se da hipótese do dever que têm os pais de guarda, vigilância e educação dos filhos. No cumprimento desse dever, podem ter a necessidade de praticar alguma sorte de constrangimento que, fora do exercício do “patrio poder” (lembre-se que hoje, com o advento do novo CC fala-se em poder familiar), constituiria ato ilícito. Se não cometem excessos, no cumprimento desses deveres, atuam sob o pálio desta causa de justificação.

Alguns autores, dentre eles, Aníbal Bruno, entendem que o poder familiar constituiria, em verdade, exercício regular de um direito e não cumprimento de estrito dever legal. Assis Toledo, contudo, sustenta a posição de que se trata, efetivamente, de cumprimento de dever legal, ante a anterioridade lógica do dever de educar sobre os direitos daí decorrentes, embora, fique claro que o resultado da adoção de uma ou outra posição serão rigorosamente o mesmo, qual seja, estar-se-á diante de uma causa excludente de ilicitude.

VI.3.3- ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL E CONCURSO DE PESSOAS

O reconhecimento da excludente de ilicitude a um autor deve estender-se, também, ao co-autor e ao partícipe, haja vista que o fato não pode ser objetivamente lícito para uns e ilícito para outros. Contudo, a falta do elemento subjetivo por parte do co-autor ou do partícipe, afasta a excludente. Ante a falta de conhecimento da situação justificante, responderão pelo crime.

Page 96: Direito Penal i

VI.4- EXERCÍCIO REGULA DE UM DIREITO___________________

VI.4.1- CONCEITO E REQUISITOS

O fundamento da justificante inserida no art. 23, III, 2ª parte, do CP é uma ação juridicamente permitida não pode ser, ao mesmo tempo, proibida pelo direito. Em outras palavras, o exercício de um direito não pode ser ilícito, sob pena de não se estar diante de um direito.

Sendo assim, pode ser conceituado como a causa de exclusão de ilicitude que consiste no exercício regular de uma prerrogativa conferida pelo ordenamento jurídico, caracterizada como fato típico.

Apresenta os seguintes requisitos que não podem ser afastados, a saber:

a- Exercício de um direito: a expressão direito é empregada em sentido amplo, abrangendo todas as formas de direito subjetivo, penal ou extrapenal, como por exemplo, o jus corrigendi (exercido pelos pais, que deriva do poder familiar – art. 1634, I, do CC). Questão que merece atenção é se os professores e mestres poderiam impor castigos corporais às crianças e adolescentes sob sua guarda. No Brasil, tal prática não é mais aceita, mormente diante do emprego de novos métodos educacionais e pedagógicos, que tornam tais práticas obsoletas e desnecessárias.

b- Exercício regular: regular será o exercício que se contiver nos limites objetivos e subjetivos, formais e materiais impostos pelos próprios fins do direito. Exercício regular, portanto, é aquele que se encontra orientado e se contém nos limites impostos pelos fins sociais, econômicos do direito em causa, pela boa-fé e pelos costumes. O exercício de um direito com o intuito de prejudicar caracteriza o seu irregular exercício, ou seja, o abuso de direito, se o dano ocorre.

c- Elemento subjetivo: é necessário o conhecimento de toda a situação fática autorizadora da excludente. Aliás, é esse elemento que diferencia o ato de correção do pai das vias de fato, injúria real ou até lesões corporais. É a vontade de exercitar de forma regular um direito que não permite que um fato tido como típico seja qualificado de ilícito.

VI.4.2- ALCANCE DA EXCLUDENTEA excludente alcança qualquer pessoa, posto que qualquer um pode

exercitar um direito subjetivo ou uma faculdade previstos em lei. Inclui-se aqui, portanto, a coação para evitar suicídio ou para a prática de intervenção cirúrgica (art. 146, § 3º, do CP), imunidade judiciária (art. 142, II, do CP), (art. o cidadão que realiza uma prisão em flagrante (art. 301 do CPP), dentre outras).

VI.4.3- INTERVENÇÕES MÉDICAS E CIRÚRGICAS

A intervenção médica ou cirúrgica constitui-se em exercício regular de um direito. Entretanto, deve-se observar que, para tanto, há de existir o consentimento do paciente ou de seu representante legal. Ausente o consentimento, caracteriza-se o estado de necessidade em favor de terceiro (art. 146, § 3º, I, do CP). Contudo, nesse caso específico, o estado de necessidade é excludente de tipicidade.

Page 97: Direito Penal i

VI.4.4- VIOLÊNCIA DESPORTIVA

Quando a violência ocorre no esporte que é exercido nos limites da disciplina que o regulamente, não há que se falar em conduta ilícita, embora típica. O resultado danoso que possa advir do boxe, do judô, karatê, futebol, handebol, etc, como atividades desportivas reconhecidas, autorizadas e regularizadas pelo Estado, constitui exercício regular de um direito. Contudo, se o desportista afasta-se das regras que disciplinam a modalidade esportiva desenvolvida, responderá pelo resultado danoso que der causa, de forma dolosa ou culposa.

VI.4.5- OFENDÍCULOS ou OFFENDICULASOfendículos ou offendiculas são aparatos que, de regra, constituem-se de

dispositivos ou instrumentos facilmente perceptíveis objetivando impedir ou dificultar a ofensa ao bem jurídico protegido, seja o patrimônio, o domicílio ou qualquer outro bem jurídico, como por exemplo, caco de vidro, pontas de lança em muros e portões, cães bravios, etc.

Embora alguns autores equiparem os ofendículos com as chamadas defesas mecânicas predispostas, esse não parece ser o melhor entendimento. As defesas mecânicas predispostas são aparatos ocultos com a mesma finalidade dos ofendículos, contudo, não perceptíveis, não visíveis, como é o caso da cerca elétrica, armas automáticas predispostas, ou qualquer outro tipo de armadilha prontas para atuar no momento de uma eventual agressão e ignoradas pelo agressor. Por se tratarem, essas últimas, de dispositivos não perceptíveis, dificilmente escaparão do excesso, configurando, via de regra, delitos dolosos ou culposos.

Outra questão que merece atenção é quanto à natureza jurídica dos ofendículos. Parte dos doutrinadores, dentre eles Aníbal Bruno e Mirabete, os ofendículos seriam, verdadeiramente, exercício regular de um direito, o de se autoproteger.

Contudo, para outros, dentre os quais, Bitencourt, Assis Toledo, Magalhães Noronha, Nelson Hungria e Damásio de Jesus, os ofendículos seriam exemplo de legítima defesa (preordenada ou predisposta), onde a potencialidade lesiva de certos recursos (cães bravios e outros aparatos) seria tolerada quando atingir o agressor, mas censurada quando o atingido for inocente.

Para apenas citar as argumentações de ambas as posições, fica-se com a de Mirabete, no primeiro caso, que ao sustentar o seu posicionamento contrário à legítima defesa, assevera “parece-nos discutível a aceitação deste último entendimento, pois a consciência da conduta deve estar presente com relação ao fato concreto. Garantindo a lei a inviolabilidade do domicílio, exercita o sujeito uma faculdade ao instalar os ofendículos, ainda que não haja agressão atual ou eminente.” Sustentando a segunda orientação, Bitencourt esclarece que “adotamos esse entendimento, vez que oferece melhores recursos para análise de cada caso concreto, diante da necessidade de diversos requisitos da legítima defesa. Na verdade, acreditamos que a decisão de instalar os ofendículos constitui exercício regular de direito, isto é, exercício do direito de autoproteger-se. No entanto, quando reage ao ataque esperado, inegavelmente, constitui legítima defesa preordenada.”

Contudo, adotando-se uma ou outra posição, certo é que, usada de forma moderada ou regular, constitui-se em excludente de ilicitude, sob pena do agente responder por excesso doloso ou culposo, conforme o caso.

Page 98: Direito Penal i

VII- EXCESSOS NAS CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO ___________________

O art. 23, parágrafo único, do CP dá conta do chamado excesso punível, ao estabelecer que “o agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.”

Com efeito, o excesso pode ocorrer em qualquer causa de justificação, podendo derivar de dolo, culpa ou de caso fortuito, sendo que, nesta última hipótese, o agente não terá responsabilidade penal alguma.

O que deve ficar claro para que se configure a situação de excesso é que, inicialmente, se esteja diante de uma situação de justificação, ou seja, que o agente, originariamente, aja amparado por uma excludente. Portanto, a presença dos requisitos das excludente, num primeiro momento, são pressupostos para que se possa considerar a hipótese de excesso.

O excesso doloso, consciente ou voluntário ocorre quando o agente, deliberadamente, aproveita-se da situação excepcional que lhe permite agir, praticando um fato típico, para impor sacrifício maior do que o estritamente necessário para a salvaguarda do direito ameaçado. Configurado o excesso doloso, o agente responderá dolosamente pelo fato praticado, beneficiando-se somente da atenuante insculpida no art. 65, III, c, do CP, ou da minorante prevista no art. 121, § 1º, do CP, quando for o caso. Ex: aquele que mata o seu agressor que lhe havia desferido um único tapa na face, responde por homicídio doloso, eventualmente privilegiado.

O excesso culposo, inconsciente ou involuntário advém de erro de tipo escusável ou mesmo de erro de proibição evitável (esse último quanto aos limites da excludente). O excesso culposo somente pode advir de erro, havendo uma avaliação equivocada do agente quando, nas circunstâncias, era perfeitamente possível uma avaliação adequada.

Entretanto, não se pode perder de vista o princípio da excepcionalidade do tipo penal culposo, constante do art. 18, parágrafo único, do CP. Assim, o agente somente responderá pelo excesso culposo quando houver previsão legal para a modalidade culposa do crime.

Fala-se, ainda, no excesso exculpante, que é aquele que não deriva nem de dolo, nem de culpa, mas de erro plenamente justificável pelas circunstâncias. É o que ocorre, por exemplo, com a legítima defesa subjetiva (que decorre de um excesso escusável, como já visto). Apesar de consagrada pela doutrina, a expressão é tecnicamente incorreta, haja vista não se tratar de uma exclusão de culpabilidade, mas do próprio fato típico, devido à eliminação do dolo e da culpa que, pela teoria finalista da ação, passam a integrar o fato típico e não mais são espécies de culpabilidade.

A verdade é que, o excesso punível, seja a título de dolo, seja a título de culpa, decorre do uso imoderado ou desnecessário de determinado meio, que causa resultados mais graves do que o razoavelmente suportável nas circunstâncias.

Page 99: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- CULPABILIDADE___________________

Diante da adoção do conceito analítico de crime tripartido (crime é toda conduta típica, ilícita e culpável), cumpre analisar o último elemento desse conceito, a culpabilidade.

Culpabilidade pode ser conceituada como uma qualidade negativa que se atribui a ação do autor. É a censurabilidade ou reprovabilidade da conduta que recai sobre o autor, em razão da conduta por ele praticada. É, em última análise, um predicado negativo da ação do sujeito.

O conceito de culpabilidade como juízo de valor negativo ou reprovação do autor pela realização não justificada de um crime, fundado no poder de agir conforme a norma, em condições de normalidade do fato, parece constituir uma expressão contemporânea dominante no conceito normativo de culpabilidade: o juízo de valor da culpabilidade tem por objeto o tipo do injusto (realização não justificada de um crime) e por fundamento o poder atribuído ao sujeito de agir conforme a norma.

A culpabilidade recebe um triplo sentido: 1- como fundamento da pena; 2- como elemento de determinação ou medição da penal; 3- como conceito contrário à responsabilidade objetiva. O estudo a ser realizado aqui é somente quanto à culpabilidade no seu primeiro sentido, ou seja, como fundamento da pena.

Três indagações se apresentam e devem ser enfrentadas quando se fala em culpabilidade:

1ª - Que coisa é a culpabilidade? Será um fenômeno psíquico? Será um juízo que se emite a respeito de algo? Será ambas as coisas?

2ª- Onde está a culpabilidade? Em que lugar pode-se encontrá-la? Estará ela no psiquismo do criminoso, ou estará na cabeça do julgador? Estará ela, porventura, nos dois lugares?

3ª- Qual o objeto do juízo da culpabilidade? Será ele a pessoa do criminoso? Será ele apenas o fato criminoso, isto é, um fato episódico na vida do criminoso? Ou será ele ambas as coisas mencionadas?

A fim de responder esses questionamentos é importante que se conheça as teorias contemporâneas que procuram explicar a culpabilidade.

1) TEORIA PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADEPara essa teoria, a culpabilidade reside na relação psíquica do autor com

seu fato, ou seja, trata-se de uma ligação psíquica entre o agente e o fato. Para os seus defensores, a culpabilidade é um liame psicológico que se estabelece ente a conduta e o resultado, por meio do dolo ou da culpa. O nexo psíquico entre a conduta e o resultado esgota-se no dolo e na culpa, que passam a constituir, assim, não só as duas espécies da culpabilidade, como também a sua totalidade.

Essa teoria da culpabilidade tem estreita ligação com a teoria causal da ação. A teoria causalista da ação reduziu a ação a um processo causal originado do

Page 100: Direito Penal i

impulso voluntário. A teoria psicológica da culpabilidade defendia que ela era a responsabilidade do autor pelo ilícito que causou, ou seja, era a relação subjetiva entre o autor e o fato.

Em outras palavras, o que há de ser conjugado aqui é que a conduta era vista num plano meramente naturalístico; desprovida de qualquer valor, como simples causação do resultado. A ação era considerada o componente objetivo do crime, enquanto que a culpabilidade era o componente subjetivo, apresentando-se ora como dolo, ora como culpa. Partia portanto, da distinção entre a parte exterior do fato punível – componente objetivo –, que era representada pela tipicidade e pela ilicitude, e sua parte interior, isto é, psíquica – componente subjetivo –, representada pela culpabilidade.

Admitia-se, como pressuposto da culpabilidade; a imputabilidade, entendida como capacidade de ser culpável.

Para essa teoria o dolo era natural ou psicológico, vale dizer, não se exigia do agente o conhecimento da ilicitude do fato por ele praticado.

Apresenta como traços característicos:

- culpabilidade é a ligação psicológica (subjetiva) entre o agente e o fato por ele praticado.

- dolo e culpa não só eram as duas espécies de culpabilidade, como também a totalidade da culpabilidade;

- o dolo era natural ou psicológico;- tinha a imputabilidade (entendida como capacidade de ser culpável) como pressuposto

da culpabilidade;- a conduta era entendida do ponto de vista meramente causal, naturalístico, como

simples causa do resultado;- baseava suas idéias na previsibilidade e voluntariedade;- a culpabilidade estava no psiquismo do agente.

Embora tal teoria tenha demonstrado um avanço na teoria do direito penal, já que reconhece a existência de elementos psíquicos que compunham o crime, recebeu várias críticas, as quais não soube rebater. As principais críticas que se apresentaram foram:

1- a culpa não pode integrar a culpabilidade psicológica porque é normativa e não psíquica;

2- a culpabilidade reunia duas coisas absolutamente distintas: dolo – elemento psicológico –, e culpa – elemento normativo –, particularmente a culpa inconsciente, onde não existe previsão;

3- não encontrava explicação razoável para a isenção de pena nos casos de coação moral irresistível, obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal, ou para a redução da mesma nas hipóteses de embriaguez ou de paixão e emoção, onde a presença do dolo era evidente. Somente conseguiria explicar tais situações se renunciasse a culpabilidade como vínculo psicológico entre o autor e o fato;

Com a descoberta dos elementos subjetivos do injusto, enunciados por MEZGER, comprovou-se que o dolo não pertencia à culpabilidade, mas à conduta, posto que sua exclusão leva a atipicidade da conduta.

O grande erro da teoria psicológica foi tentar reunir, como espécies da culpabilidade, fenômenos completamente distintos: o dolo e a culpa.

Page 101: Direito Penal i

2) TEORIA PSICOLÓGICO-NORMATIVA DA CULPABILIDADE OU NORMATIVA DA CULPABILIDADE

Com o descobrimento dos elementos normativos e subjetivos do tipo, o sistema do positivismo-naturalista de Von Litz e Beling sofreu profundo abalo, gerando uma superação e substituição por um modelo neokantiano, que defendia um conceito neoclássico de delito.

FRANK foi o grande precursor de uma nova teoria acerca da culpabilidade. O jurista desenvolveu a teoria normativa ou psicológico-normativa da culpabilidade,que exigia como requisitos da culpabilidade algo mais do que simplesmente a imputabilidade e dolo ou culpa.

Assim, o dolo e a culpa deixaram de ser espécies de culpabilidade ou simplesmente como “a culpabilidade”, passando a constituir elementos dela, embora a sua presença não fosse suficiente.

O que se pretendeu a referida teoria foi introduzir um novo elemento na culpabilidade, um juízo de valor – a reprovabilidade do ato praticado.

Esse juízo de reprovabilidade, a censurabilidade do ato praticado pelo agente, estava consubstanciado na exigibilidade de conduta diversa ou na exigibilidade de conduta conforme o direito.

Tal concepção passou a ver a culpabilidade como algo que se encontra fora do agente, isto é, não mais como vínculo entre este e o fato, mas como juízo de valoração a respeito do agente. Em vez de o agente ser o portador da culpabilidade, de carregar a culpabilidade em si, no seu psiquismo, ele passa a ser objeto de um juízo de censurabilidade, que é emitido pela ordem jurídica.

O que se pretendia era uma teoria capaz de explicar que determinado indivíduo que praticasse uma conduta dolosa não receberia a pena, justamente porque não se podia fazer o referido juízo de censurabilidade, ou seja, não se podia exigir do agente outra conduta, no caso concreto, senão aquela por ele praticada. Buscava-se uma explicação razoável para a situação, por exemplo, do agente sob coação moral irresistível, que dá causa ao resultado, de forma dolosa ou culposa, é imputável; contudo não podia ser punido.

Ficava claro, então, que não bastava o dolo ou a culpa para caracterizar a culpabilidade (lembrando que a imputabilidade era pressuposto básico), mas que havia de se fazer um juízo de reprovação sobre o agente, um juízo de censurabilidade, o que somente ocorreria se o Direito pudesse exigir dele outra conduta que não a praticada.

Objetivando afastar crítica feita a teoria psicológica, no que dizia respeito à natureza jurídica de dolo ou culpa, a teoria psicológico-normativa introduziu um novo elemento no dolo, que de natural ou psicológico, passou a normativo, composto pelos seguintes elementos:

1) elemento cognitivo ou intelectual – a previsão do fato;2) elemento volitivo ou intencional – a voluntariedade;3) elemento normativo – a consciência atual da ilicitude .

Com isso, passou a exigir-se que o agente tivesse conhecimento de que seu

comportamento era injusto, ilícito aos olhos da coletividade. O dolo era formado não só pela consciência da vontade de realizar a conduta e produzir o resultado, mas também pela consciência da ilicitude. Exigia-se, então, o chamado dolus malus. Nesses termos, se o agente tivesse a consciência e a vontade de realizar a conduta, mas não soubesse que a mesma era ilícita, não poderia ser responsabilizado.

Page 102: Direito Penal i

Acreditava-se, assim, estar satisfazendo-se a crítica de que, se a culpabilidade era um juízo de valoração, de censurabilidade, o dolo não poderia nela estar incluído, haja vista que era um elemento psicológico. Ora, se a culpabilidade, enquanto juízo de valoração, era normativa; os elementos que a compunham, da mesma forma, haveriam de ser eminentemente normativos. A inclusão do terceiro requisito no dolo (transformando-o de natural ou psicológico para normativo) pretendia resolver essa questão.

Por outro lado, reconhecendo-se que o dolo possui um elemento normativo, nada estava a impedir que o mesmo dividisse espaço com a culpa, esta sim, sempre normativa. Logo, não haveria qualquer incompatibilidade entre o dolo e a culpa serem analisados na culpabilidade.

Os traços característicos da teoria eram:

- a culpabilidade é um juízo de valor sobre uma situação fática de ordinário psicológica;- os elementos psicológicos (dolo e culpa) estão no agente do crime, mas o seu

elemento normativo está no juiz, não no criminoso;- a culpabilidade foi incrementada por mais um elemento ou requisito – a exigibilidade

de conduta diversa (poder de agir de outro modo);- o dolo passa de natural ou psicológico para normativo com o acréscimo de um terceiro

elemento – consciência atual e concreta da ilicitude da conduta.

Embora, não se possa negar que tal teoria representou um considerável avanço em relação a anterior; não faltaram críticas a seus postulados, a saber:

1- o dolo deixa de ser puramente psicológico e passa a ser normativo, portanto, híbrido – psicológico e normativo ao mesmo tempo;

2- a adoção de um dolo híbrido impedia a possibilidade de se reconhecer a culpabilidade dos criminosos habituais ou por tendência, já que tais criminosos, em virtude do meio social em que viviam, não poderiam ter consciência da ilicitude do fato que praticavam, porque ele de regra, nascia, crescia e se desenvolvia em um meio social em que determinadas condutas ilícitas eram tidas como normais, corretas, esperadas pelo grupo social do qual faziam parte. Assim, chegava-se a conclusão forçada de que tal indivíduo agia sem dolo, posto que lhe faltava a consciência atual da ilicitude do fato, que era elemento indispensável do dolo normativo;

3- Continuava unindo dois elementos com naturezas distintas – dolo e culpa, ainda que se falasse em dolo normativo, esse não deixava de ter elementos psicológicos;

Assim, diante das críticas encetadas contra a teoria psicológico-normativa e diante da sua incapacidade de dar solução adequada, sobretudo, para a criminalidade habitual, posto que, pelas suas orientações esses indivíduos “às avessas” não praticavam condutas dolosas, haja vista que o seu meio social não lhes permitia tomar a consciência da ilicitude exigida, a mesma foi rapidamente afastada, dando espaço ao surgimento de uma nova concepção.

Page 103: Direito Penal i

3) TEORIA NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE A referida teoria extraiu todo e qualquer elemento psicológico da

culpabilidade, reservando para ela somente aquelas circunstâncias que condicionam a reprovabilidade da conduta contrária ao Direito.

Tal teoria teve como precursores HARTMANN e GRAF ZU DOHNA, mas o seu grande defensor foi WELZEL, que constatou que o dolo não podia permanecer dentro do juízo de culpabilidade, deixando a ação humana sem o seu elemento característico fundamental, qual seja, a intencionalidade, o finalismo.

Portanto, a teoria normativa pura da culpabilidade veio de encontro à teoria finalista da ação, que deslocou o dolo e a culpa para o injusto, para o tipo, ou seja, para a própria conduta. Com isso, a finalidade, a intencionalidade foi levada para o centro do injusto.

Comprovado que o dolo e a culpa integram a conduta; a culpabilidade passa a ser puramente normativa ou valorativa, ou seja, é puro juízo de valor, de reprovação, que recai sobre o autor do injusto penal excluída de qualquer dado psicológico.

O que se constata é a Welzel incumbiu o papel de elaborar uma nova redistribuição sistemática dos elementos estruturais do crime.

Diante disso, pode-se conceituar a culpabilidade como sendo o poder concreto de agir conforme a norma, próprio do sujeito imputável que realiza, sem justificação, o tipo de um crime, conhecendo ou podendo conhecer a ilicitude da conduta praticada, em situação de exigibilidade de conduta diversa.

A culpabilidade para a teoria normativa pura é formada por: a) imputabilidade (que continua sendo pressuposto da culpabilidade); b) conhecimento da ilicitude (contudo tal conhecimento passa a ser meramente potencial e não mais atual, real ou concreto); c) exigibilidade de conduta diversa (é o poder agir de outro modo ou de modo diverso).

Assim, para que se possa punir o indivíduo (para que se possa falar em culpabilidade), requer-se que o mesmo seja imputável (tenha capacidade penal), que tenha tido a possibilidade de compreender o caráter ilícito de sua conduta (portanto, o conhecimento da ilicitude não precisa ser atual, bastando que seja potencial) e que, de acordo com esse entendimento (estado de pura escolha) pudesse dirigir sua conduta em sentido diverso do que agiu, vale dizer, pudesse agir de outro modo.

Em outras palavras, culpável é o fato praticado por sujeito imputável que tinha a possibilidade de saber que o seu comportamento era proibido pelo ordenamento jurídico, e que, nas circunstâncias que agiu, poderia ter agido de modo diverso, conforme o direito.

O que a teoria normativa pura fez foi estabelecer, através de Graf zu Dohna, a distinção necessária entre valoração do objeto e objeto da valoração. A culpabilidade é uma valoração; não pode estar, portanto, misturada com o objeto da mesma valoração que lhe é exterior. Assim, a culpabilidade é apenas a censurabilidade (juízo normativo, valorativo); o dolo, que se encontra na conduta, é o objeto sobre o qual recai esta valoração.

Os traços característicos dessa teoria são:- a culpabilidade é um juízo valorativo, um juízo de censura que se faz ao autor de um

fato criminoso;- a culpabilidade está na cabeça de quem julga, mas tem por objeto o agente do crime e

sua ação criminosa;- a culpabilidade é formada pelos seguintes elementos: a)imputabilidade; b) potencial

conhecimento da ilicitude; c) exigibilidade de conduta diversa;

Page 104: Direito Penal i

- o dolo encontra-se na conduta e é puramente psicológico ou natural, isto é, não se exige mais que o agente tenha consciência da ilicitude do fato, mas somente que tenha consciência de querer realizar a conduta;

- a culpabilidade é meramente um juízo de valoração, normativo, sem qualquer elemento psicológico na sua estrutura.

Essa é a teoria atual adotada pelo nosso ordenamento jurídico.

II- ELEMENTOS DA CULPABILIDADE___________________

Partindo-se da adoção da teoria normativa pura da culpabilidade, interessa analisar os seus elementos formadores, a saber:

1) IMPUTABILIDADE:é a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. A culpabilidade passa a ser vista não apenas como pressuposto prévio da culpabilidade, mas como condição central da mesma. O agente deve ter plenas condições físicas, psicológicas, morais e mentais de saber que está realizando um ilícito. Além disso, deve ter capacidade de controlar a sua vontade de acordo com esse entendimento. Em outras palavras, imputável não é apenas aquele que tem capacidade de intelecção sobre o significado de sua conduta, mas também de comando da própria vontade, de acordo com esse entendimento.

Observa-se então, que a imputabilidade apresenta um aspecto intelectivo – capacidade de entendimento, e outro volitivo – faculdade de controlar e comandar a própria vontade. Na ausência de um desses elementos, não se pode falar que o agente seja imputável, ou seja, não se pode considerar o agente responsável penalmente pelos seus atos.

2) POTENCIAL CONHECIMENTO DA ILICITUDE DO FATO: o art. 21, do CP determina que o desconhecimento da lei é inescusável, posto que ninguém pode deixar de cumpri-la alegando que não a conhece (art. 3º LICC). Contudo, para que se possa ser punido pelo fato praticado é necessário que o agente conheça ou possa conhecer o caráter injusto de sua conduta. Observe-se que a teoria normativa pura da culpabilidade trabalha com um dolo natural ou psicológico (que não exige a consciência atual da ilicitude da conduta, mas consciência da vontade de realizar a conduta).

O tema não é tranqüilo e a doutrina não é pacífica na construção de um conceito satisfatório do que se deva entender por potencial conhecimento da ilicitude do fato. Contudo, pode-se afirmar que não aproveita ao agente alegar falta de conhecimento da ilicitude do fato quando:

a) teria sido fácil para ele, nas circunstâncias, obter essa consciência com algum esforço de inteligência e com os conhecimentos havidos da vida em sociedade do seu próprio meio;

b) propositadamente (ignorantia affectada), recusa-se a se instruir para não ter que evitar uma possível conduta proibida;

c) não procura informar-se convenientemente, mesmo sem má intenção, para o exercício de atividades regulamentadas.

Entretanto, quando se trabalhar com a Teoria do Erro, mais especificamente, com erro de proibição, o tema será novamente enfrentado.

Page 105: Direito Penal i

3) EXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA: o que deve ficar claro é que não basta para um juízo de censurabilidade, poder o agente conhecer o caráter ilícito de sua conduta. É necessário também que possa se determinar de acordo com esse entendimento, ou seja, que possa orientar a sua conduta conforme o direito. Deve-se, portanto, ser analisada, também, a possibilidade concreta que o autor tem de determinar-se conforme o sentido em favor da conduta jurídica. De acordo com a teoria da normalidade das circunstâncias concomitantes, para que se possa considerar alguém culpado pela prática de uma infração penal é necessária que ela tenha sido praticada em circunstâncias normais, pois caso contrário não será possível exigir do sujeito conduta diversa da que, efetivamente, acabou praticando. Em outras palavras, somente podem ser punidas as condutas que podiam ser evitadas. Presente a inevitabilidade, não se exclui a vontade, que permanece íntegra, agindo como força propulsora da conduta, mas essa vontade encontra-se viciada, o que impede o juízo de valoração que se possa fazer sobre a conduta praticada pelo agente.

III- EXCLUDENTES DE CULPABILIDADE___________________

Ao se iniciar o estudo sobre as excludentes de culpabilidade, também conhecidas como causas exculpantes ou dirimentes, deve-se fazer menção ao caso fortuito e a força maior. Ambos constituem marcos negativos delimitadores da responsabilidade penal.

Na força maior afasta-se a punibilidade de um fato típico diante da impossibilidade de evitar-se o resultado danoso, embora previsível. Já no caso fortuito, a punibilidade é afastada diante da imprevisibilidade do resultado, embora evitável. Aliás, como lembra Nelson Hungria, pode-se dizer que: no caso fortuito, se o resultado fosse previsível, seria evitável; na força maior, ainda que o resultado fosse previsível ou previsto seria inevitável.

Juridicamente, entretanto, equiparam-se as duas hipóteses, posto que, tanto faz não poder prever um evento, quanto prevê-lo ou poder prevê-lo, sem, entretanto, poder evitá-lo.

Diante de uma situação onde se depreenda o caso fortuito ou a força maior, não incide o direito penal, ao contrário, os fatos passam a ser indiferente para o direito penal, quer diante da inevitabilidade do resultado, quer diante de sua imprevisibilidade absoluta.

O CP cataloga 06 causas excludentes de culpabilidade, a saber: 1- inimputabilidade em razão de menoridade (art. 27, do CP); 2- inimputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26, caput, do CP); 3- inimputabilidade por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior (art. 28, § 1º, do CP); 4- coação moral irresistível (art. 22, 1ª parte, do CP); 5- obediência hierárquica (art. 22, 2ª parte, do CP); 6- erro de proibição inevitável (art. 21, caput, do CP).

III.1 – INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DE MENORIDADE – Art. 27, do CP

Imputabilidade é a capacidade de culpabilidade. Quem carece desta capacidade, por não ter maturidade suficiente, ou por sofrer graves alterações psíquicas,

Page 106: Direito Penal i

não pode ser declarado culpado e, por conseguinte, não pode ser responsável penalmente pelos seus atos, por mais que sejam típicos e antijurídicos.

Assim, o agente será imputável toda vez que reunir condições de normalidade e maturidade psíquicas.

Existem 03 sistemas que procuram determinar o momento fixador da imputabilidade, a saber:

a) Sistema biológico : esse sistema condiciona a responsabilidade penal à saúde mental, à normalidade da mente. Se o agente é portador de uma enfermidade ou grave doença mental, deve ser declarado irresponsável sem nenhuma necessidade de ulterior indagação psicológica. Não se indaga se a anomalia causo alguma perturbação capaz de retirar a inteligência ou vontade no momento da prática do fato. Trata-se, portanto, de um critério falho, haja vista que deixa de punir aquele indivíduo que tem entendimento e capacidade de determinação de acordo com esse entendimento, apesar de ser portador de uma doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado.

b) Sistema psicológico : tal sistema não indaga se existe uma perturbação mental mórbida: apenas declara a irresponsabilidade penal se, ao tempo do crime, estava abolida no agente, seja qual for a causa, a faculdade de apreciar a criminalidade do fato (momento intelectual) e de se determinar de acordo com essa apreciação (momento volitivo). Portanto, não se preocupa com a existência de eventual quadro patológico de doença mental, já que a imputabilidade pode ser afastada mesmo diante da não constatação de uma doença mental. Se o agente não tinha condições de entender o caráter ilícito de sua conduta ou de se determinar de acordo com esse entendimento, será considerado inimputável, pouco importando a causa disso.

c) Sistema biopsicológico (normativo ou misto) : trata-se da reunião dos dois anteriores: a responsabilidade penal somente será excluída, se o agente, em razão de enfermidade, retardamento mental ou desenvolvimento mental incompleto, era, no momento da conduta, incapaz de entendimento ético-jurídico e autodeterminação. Assim, a doença mental, por si só não exclui a imputabilidade. É necessário que, em razão dela, o agente não reúna capacidade de entendimento ou de autodeterminação de acordo com esse entendimento.

Pode-se afirmar, de uma forma genérica, que está presente a imputabilidade toda vez que o agente apresenta condições de normalidade psíquica e maturidade jurídica. A falta de uma ou de outra podem levar ao reconhecimento da inimputabilidade por incapacidade de culpabilidade.

No que tange à imaturidade mental, esta, por si só, esgota o conceito de inimputabilidade, diante de uma presunção legal consubstanciada no art. 27, do CP. Encerra o dispositivo legal que o menor de 18 anos é inimputável, diante da presunção de sua imaturidade mental.

Observa-se, então, que quanto à menoridade penal, o CP adotou expressamente o CRITÉRIO BIOLÓGICO, não se preocupando com o desenvolvimento mental do menor de 18 anos, considerando-o inimputável, independentemente de possuir

Page 107: Direito Penal i

plena capacidade de entendimento da ilicitude do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento. Aliás, a mesma regra mereceu respaldo constitucional em 1988, posto que, a CF, em seu art. 228 expressamente determinou: “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.”

O que se observa é que tanto o art. 228, da CF quanto o art. 27, do CP encerram uma hipótese de presunção “iure et iure”, portanto, absoluta, não admitindo prova em contrário.

A discussão que se tem presenciado acerca da necessidade da redução da maioridade penal para 16 anos não passa, em verdade de apanágio para um Estado que se mostra incapaz de lidar, de forma coerente, com a crescente criminalidade juvenil. Convém, a título de informação, lembrar que o CP espanhol, de 1996, portanto, o mais moderno dos códigos penais europeus, elevou a maioridade penal de 16 para 18 anos, justamente porque à redução da maioridade penal não corresponde uma redução da criminalidade juvenil, senão que são aliciados adolescentes ainda mais jovens e o ciclo se perpetua.

A verdade é que, enquanto o Estado e, neste contexto não escapa a sociedade civil, não dispuser de políticas sociais hábeis a retirar o adolescente de meios que propiciam sua corrupção moral e, sobretudo, impossibilitam sua condução pelo caráter pedagógico instituído na norma penal, o discurso acerca da necessidade da redução da maioridade penal não passa de retórica vazia, desagregada de qualquer substrato jurídico e descontextualizada diante do momento social que se apresenta.

Por fim, deve-se lembrar que, o menor de 18 anos que pratica um fato típico e ilicitude, fica sujeito as medidas sócio-educativas estampadas no ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).

III.2 – INIMPUTABILIDADE POR DOENÇA MENTAL, DESENVOLVIMENTO MENTAL INCOMPLETO OU RETARDADO – Art. 26, caput, do CP

O art. 26, do CP encerra a hipótese de exclusão da imputabilidade diante da incapacidade do agente de entender o caráter ilícito de sua conduta ou de se determinar de acordo com esse entendimento. Constata-se que o CP, na espécie, adotou o CRITÉRIO BIOPSICOLÓGICO, ou seja, não basta que o agente seja portador de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado. É necessário que em razão de um desses estados, o agente seja inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito de sua conduta ou de se determinar de acordo com esse entendimento. Portanto, a presente excludente de culpabilidade ou dirimente apresenta 03 requisitos, a saber:

1- requisito causal – doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado;

2- requisito cronológico – tempo da ação ou da omissão;3- requisito conseqüencial – inteira incapacidade de entender o caráter ilícito

do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.1- DOENÇA MENTAL: a despeito da falta de rigor científico do CP, pode

ser conceituada como a perturbação mental ou psíquica de qualquer ordem, capaz de eliminar ou afetar a capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou a de comandar a vontade de acordo com esse entendimento. Compreende uma infindável gama de moléstias, citando como por exemplo, psicose, neurose, esquizofrenia, paranóias, psicopatias, epilepsias, cleptomania, etc.

Page 108: Direito Penal i

Da mesma forma, a dependência patológica de substâncias psicotrópicas (álcool, entorpecentes, estimulantes e alucinógenos) configura doença mental, segundo dispõe o art. 19 e parágrafo único, da Lei nº 6368/76.

Questiona-se se o sonambulismo ou a hipnose poderiam ser enquadradas no art. 26, do CP. Contudo, é de se verificar que tais hipóteses levam à ausência de vontade, quer porque o agente não age de forma consciente, quer porque age sem vontade. Nessas hipóteses, existe ausência da conduta, primeiro elemento do fato típico. Portanto, é caso de ausência de tipicidade e não de ausência de culpabilidade. O hipnotizado, por exemplo, não é autor, mas mero executor inculpável.

2- DESENVOLVIMENTO MENTAL INCOMPLETO: é aquele que ainda não se concluiu, devido à recente idade cronológica do agente ou à sua falta de convivência em sociedade, ocasionando imaturidade mental e emocional.

A menoridade é a hipótese mais eloqüente de desenvolvimento mental incompleto mas que, por suas peculiaridades, é tratada em dispositivo à parte (art. 27, do CP), como já visto.

O art. 26, “caput”, do CP está a se referir, desta maneira, àqueles que, sendo maiores de 18 anos, não podem ser tidos como portadores de um desenvolvimento mental completo. Insere-se aqui, o caso do silvícola inadaptado à sociedade, que não reúnem condições de chegar ao completo desenvolvimento mental com o acúmulo das experiências hauridas no cotidiano. Observe-se, entretanto, que a simples condição de silvícola não leva a constatação da inimputabilidade, mormente se o mesmo é perfeitamente integrado ao meio civilizado. Portanto, é no caso concreto que se deve analisar o nível de aculturamento do silvícola. Por outro lado, por óbvio, que a inimputabilidade do silvícola não tem origem patológica, mas decorre da ausência de adaptação à vida social urbana ou rural, à dificuldade de se orientar pela complexidade das normas ético-jurídico-sociais reguladoras da vida dita civilizada e, sobretudo, diante de uma flagrante diferença na escala de valores.

Da mesma forma, insere-se aqui, o surdo-mudo que, privado do som e da comunicação oral, fica alijado da cultura, sem assimilar suas normas, sem a capacidade de avaliar o sentido ético-social de seus atos. Contudo, diante da possibilidade de se educar, de alcançar o entendimento necessário para ajustar seu comportamento de acordo com os padrões sociais, éticos e jurídicos da sociedade em que está inserido, somente no caso concreto é que se poderá afirmar que lhe falta imputabilidade diante do desenvolvimento mental incompleto. Assim, a condição biológica da surdomudez é insuficiente, de per si, para caracterizar a inimputabilidade.

3- DESENVOLVIMENTO MENTAL RETARDADO: é aquele incompatível com o estágio de vida em que se encontra a pessoa, estando, portanto, abaixo do desenvolvimento normal para aquela idade cronológica. A diferença com o desenvolvimento mental incompleto é que, enquanto neste não há maturidade psíquica em razão da precoce fase de vida do agente ou da falta de conhecimento empírico; no desenvolvimento mental retardado a capacidade não corresponde às expectativas para aquele momento da vida, o que significa que a plena potencialidade jamais será atingida.

É o caso dos oligofrênicos, que são pessoas de reduzidíssimo coeficiente intelectual. Classifica-se numa escala de inteligência decrescente em débeis mentais, imbecis e idiotas.

Alguns autores incluem nessa hipótese o surdo-mudo. Contudo, parece não ser esta a melhor orientação, até mesmo porque o surdo-mudo em razão de sua deficiência tem seu desenvolvimento mental prejudicado, o que não leva a crer que, diante de ensinamento adequado possa alcançar a maturidade e desenvolvimento psicológico condizentes com a sua idade cronológica.

Page 109: Direito Penal i

CULPABILIDADE DIMINUÍDAEntre a imputabilidade e a inimputabilidade, existem determinadas

gradações, por vezes insensíveis, que exercem, no entanto, influência decisiva na capacidade de entendimento e de autodeterminação do indivíduo. Tal fato não passou desapercebido pelo legislador penal, que tratou da hipótese n art. 26, parágrafo único do CP.

Encontra-se nesta situação o chamado fronteiriço, que apresenta situações atenuadas ou residuais de psicoses, de oligofrenias, etc. Esses estados afetam a saúde mental do indivíduo sem, contudo, excluí-la. Ou seja, o agente não é inteiramente capaz de entender o caráter ilícito de sua conduta ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Observe-se que não é o caso de afastar-lhe a culpabilidade, senão de diminuí-la em razão da menor censura que se lhe pode fazer, diante da maior dificuldade de valorar adequadamente o fato e posicionar-se de acordo com essa valoração. O agente é imputável, mas para alcançar o grau de conhecimento e de autodeterminação é-lhe necessário maior esforço.

Em síntese,o que ocorre, na hipótese é que o agente não possui plena capacidade de entender a ilicitude do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. A inimputabilidade elimina a capacidade de culpabilidade; a culpabilidade diminuída (semi-imputabilidade) apenas reduz a capacidade de culpabilidade

III.3 – INIMPUTABILIDADE POR EMBRIAGUEZ COMPLETA, PROVENIENTE DE CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR – Art. 28, § 1º, do CP

Pode-se conceituar embriaguez como a intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool ou qualquer outra substância de efeitos análogos, sejam elas entorpecentes (morfina, ópico, maconha, etc), estimulantes (cocaína, heroína) ou alucinógenos (ácido lisérgico – LSD). Segundo a classificação mais conhecida a embriaguez possui três estágios:

1- Excitação : caracteriza-se pelo estado eufórico inicial provocado pela inibição dos mecanismos de autocensura. O agente torna-se inconveniente, perde a acuidade visual e tem seu equilíbrio corporal afetado. Em virtude de sua maior extroversão, esta fase é denominada como a “fase do macaco”.

2- Depressão : passada a fase inicial, estabelece-se uma confusão mental e há irritabilidade, que deixam o indivíduo potencialmente mais agressivo. É conhecida como a “fase do leão”.

3- Letargia ou fase do sono : é a última fase, e somente quando grandes doses são ingeridas, o agente fica em um estado de dormência profunda, com perda do controle sobre as funções fisiológicas. Nesta fase é possível que o ébrio cometa crimes omissivos. É conhecida com a “fase do porco”.

Por outro lado, é possível classificar-se a embriaguez em: Embriaguez não acidental: está por sua vez pode ser classificada em voluntária (intencional ou dolosa) e culposa.

a- Voluntária : quando o agente ingere a substância alcoólica ou de efeitos análogos com a intenção de embriagar-se.

Page 110: Direito Penal i

b- Culposa : quando a embriaguez do agente decorre da ingestão imprudentemente excessiva de bebida alcoólica ou de substância de efeitos análogos, sem que, efetivamente, quisesse embriagar-se. A alteração psíquica não decorre de um comportamento doloso, mas de uma conduta culposa, imprudente, excessiva.

2- Embriaguez acidental: é aquela proveniente de caso fortuito ou força maior.

a- Caso fortuito : é quando o agente ignora a natureza tóxica do que está ingerindo, ou não tem condições de prever que determinada substância, na quantidade ingerida, ou nas circunstâncias em que o faz, poderá provocar a embriaguez. Ex: ingerir bebida alcoólica após ter tomado medicamento (antibiótico, ansiolítico, etc.). não se evita o resultado porque o mesmo era imprevisível.

b- Força maior : é algo que independe do controle ou da vontade do agente. Deriva de uma força externa ao agente, que o obriga a ingerir a substância. O agente sabe o que está acontecendo, mas não consegue impedir. Ex: o indivíduo é obrigado, mediante coação física a ingerir bebida alcoólica ou outra substância tóxica.

Pode, ainda, a embriaguez ser classificada em: 1- Completa: é aquela que tem como conseqüência a retirada total da

capacidade de entendimento e de autodeterminação do indivíduo, que perde integralmente a noção sobre o que está acontecendo.

2- Incompleta: ocorre quando a embriaguez retira parcialmente a capacidade de entendimento e autodeterminação do indivíduo, que ainda consegue manter um resíduo de compreensão e vontade.

Diante desta classificação, cabe analisar cada uma das conseqüências jurídicas produzidas pela embriaguez, objetivando determinar em que situações a mesma é excludente de culpabilidade diante da inimputabilidade.

a- EMBRIAGUEZ NÃO ACIDENTALO art. 28, “caput”, do CP determina que a embriaguez, dolosa ou culposa,

completa ou incompleta, não exclui a imputabilidade penal. O que deve ficar claro é que o aspecto doloso ou culposo, da embriaguez decorre dela mesma, caso seja intencional ou derivada de imprudência no uso da substância, e não do fato pelo agente praticado após embriagar-se. O fato de o agente ter querido embriagar-se ou ter querido simplesmente beber, não altera o grau de sua responsabilidade penal.

Observa-se, então, que o que é livre na causa é a embriaguez e não a ação criminosa. Pode o agente praticar um delito em estado de embriaguez que era absolutamente imprevisível no momento ou antes da embriaguez. E quando há imprevisibilidade não se pode falar em liberalidade, diante da impossibilidade de se relacionar esse fato a uma formação de vontade contrária ao Direito, anterior ao estado de embriaguez, isto é, quando o indivíduo encontrava-se em perfeito estado de discernimento.

Em outras palavras, isso significa que de uma embriaguez dolosa pode resultar um crime culposo, assim como de uma embriaguez culposa pode resultar um crime doloso.

Page 111: Direito Penal i

b- EMBRIAGUEZ ACIDENTALComo já visto, a embriaguez acidental é aquela que decorre de caso fortuito

ou força maior. As conseqüências jurídicas do fato praticado pelo agente que se encontrava em embriaguez acidental vêm dispostas nos §§ 1º e 2º, do art. 28, do CP.

O art. 28, § 1º, do CP encerra a hipótese em que a embriaguez acidental é excludente de culpabilidade. Para tanto, devem estar presentes os seguintes requisitos:

a- a embriaguez foi provocada por caso fortuito ou força maior;b- a embriaguez foi completa;c- o agente era inteiramente incapaz de entendimento ou de

autodeterminação no momento da conduta (ação ou omissão).

Portanto, somente quando presentes os requisitos acima mencionados é que se pode falar em excludente de culpabilidade (ausência de imputabilidade) diante de embriaguez.

No caso de tratar-se de embriaguez acidental incompleta, na qual o agente, a despeito de não ter dado causa (voluntária ou não) à embriaguez, guarda certa capacidade de entendimento e de autodeterminação, persiste a imputabilidade diante da capacidade, ainda que diminuída, de entender e de se autodeterminar de acordo com esse entendimento. É a hipótese prevista no art. 28, § 2º, do CP. Portanto, está-se diante de uma hipótese de imputabilidade diminuída, mas não de inimputabilidade, diante da possibilidade de se verificar que o agente ainda possuía parte do elemento cognitivo e volitivo que compreendem a imputabilidade.

EMBRIAGUEZ HABITUAL E PATOLÓGICAEmbriaguez habitual não se confunde com embriaguez crônica ou

patológica. A habitualidade na ingestão de bebida alcoólica pode levar ao alcoolismo crônico, mas o ébrio habitual não pode ser, de antemão, considerado um alcoólatra, justamente porque este último recebe um tratamento diferenciado no direito penal. Portanto, a princípio, o ébrio habitual tem sua conduta disciplinada pelo art. 28, do CP.

A embriaguez patológica manifesta-se em pessoas predispostas, e assemelha-se à verdadeira psicose, devendo ser tratada, juridicamente, como doente mental, nos termos encetados no art. 26 e parágrafo único do CP. É o caso dos alcoólatras e dos dependentes, que se colocam em estado de embriaguez em virtude de uma vontade invencível de continuar a consumir a substância.

TEORIA DA “ACTIO LIBERA IN CAUSA” E EMBRIAGUEZ PREORDENADA

Pela teoria da “actio libera in causa”, se o dolo não é contemporâneo à ação é, pelo menos, contemporâneo ao início da série causal de acontecimentos, que se encerra com o resultado danoso. Como o dolo é coincidente com o primeiro elo da série causal, deve o agente responder pelo resultado que produzir. Tal teoria pode ser resumida na expressão latina “causa causae est causa causati” (a causa da causa é também causa do que foi causado)

Trazendo essa idéia para a embriaguez, antes de embriagar-se o agente deve ser portador de dolo ou culpa não somente em relação à embriaguez, mas também em relação ao fato delituoso posterior.

Pela teoria, considera-se, portanto, o momento da ingestão da substância e não o da prática da conduta delituosa.

Page 112: Direito Penal i

Alguns autores como Nelson Hungria e Fernando Capez entendem que, a teoria da “actio libera in causa” deve ser adotada em nosso ordenamento jurídico, ainda que não se possa desconsiderar o fato de ser, em determinados casos, resquício de responsabilidade objetiva. Capez afirma que, afim de que o agente não fique impune à ação punitiva do Estado e o bem jurídico sem tutela penal, na embriaguez não acidental leva-se em conta, exclusivamente, o momento em que o sujeito escolhe livremente entre consumir ou não a substância. Se houve livre-arbítrio nesse momento, ainda que na ação delituosa não haja nenhum resíduo de voluntariedade, não se poderá cogitar de ausência de dolo ou culpa.

Contudo, forte é a resistência a adoção da “actio libera in causa” de forma indiscriminada por boa parte da doutrina. Basileu Garcia afirmava que não se percebe nenhum nexo de causalidade psíquica entre a simples deliberação de ingerir bebida alcoólica e um crime superveniente. O agente não pensa em delinqüir.

No mesmo sentido, Damásio de Jesus, para quem, a moderna doutrina penal não aceita a aplicação da “actio libera in causa” à embriaguez completa, voluntária ou culposa e não preordenada. Se o sujeito se embriaga, sem que, contudo, haja previsão de prática de crime posterior, não se pode afirmar que o mesmo desejou, assumiu o risco ou previu a possibilidade do crime. Quando ainda imputável, o agente não age com dolo ou culpa em relação ao resultado do crime determinado. A embriaguez não pode ser considerada ato de execução do crime que o agente não previu.

Bitencourt, da mesma forma, crítica a adoção indiscriminada da “actio libera in causa”. Para o autor, ao contrário do que preconiza a referida teoria, a conduta praticada pelo ébrio será considerada dolosa ou culposa, não pela natureza da embriaguez – voluntária ou culposa – pertencente à fase de imputabilidade real, mas segundo o elemento subjetivo do momento em que a ação é praticada. Ou seja, isso significa, como já dito, que de uma embriaguez dolosa pode resultar um crime culposo, assim como de uma embriaguez culposa pode resultar um crime doloso.

Por outro lado, a “actio libera in causa” é perfeitamente aplicável quando se está diante de embriaguez preordenada, ou seja, quando o agente embriaga-se com a finalidade de vir a delinqüir.Observe-se que não se confunde com embriaguez voluntária, onde o que o agente quer é embriagar-se, mas não tem a intenção de cometer crimes neste estado. Na preordenada, o agente deliberadamente se embriaga para praticar a conduta delituosa, liberando os seus freios inibitórios e fortalecendo sua coragem. Nesta hipótese, a conduta de ingerir a substância já constitui ato inicial do comportamento típico, já se vislumbrando o objetivo delituoso que se almeja ou que assume o risco de produzir.

Fica demonstrada a vontade contrária ao direito na fase anterior ao estado de embriaguez. O agente coloca-se em estado de embriaguez como o primeiro momento da realização do fato típico. Nessa situação o agente não só deve responder por crime doloso, com tem a sua pena agravada conforme dispõe o art. 61, II, l, do CP.

Nada impede que o indivíduo beba voluntariamente para embriagar-se, para sentir a sensação da embriaguez ou para sufocar suas mágoas e frustrações, sem pensar em cometer crime algum. Nesta hipótese haverá apenas embriaguez voluntária, mas não preordenada.

EMOÇÃO E PAIXÃODe acordo com o art. 28, I, do CP, a emoção e a paixão não excluem a

imputabilidade. Emoção é o sentimento abrupto e repentino, que produz violenta perturbação do equilíbrio psíquico (ira, medo, alegria, surpresa, vergonha, prazer erótico, etc.). A paixão é o sentimento duradouro e profundo, que vai arraigando-se paulatinamente na alma humana. É uma profunda e duradoura crise psicológica que

Page 113: Direito Penal i

ofende a integridade do espírito e do corpo (amor, ódio, ciúme, avareza, cupidez, piedade, etc.).

Kant dizia que a emoção é como uma torrente que rompe o dique de continência, enquanto a paixão é o charco que cava o próprio leito, infiltrando-se, paulatinamente, no solo.

A diferença entre as duas é que, a emoção é aguda e de curta duração, enquanto a paixão é crônica e de existência mais estável. Em outras palavras, a emoção dá e passa, enquanto a paixão permanece, alimentando-se nas suas próprias entranhas.

Embora essas sejam diferenças marcantes entre uma e outra, na prática e extremamente difícil distingui-las, vez que não apresentam diversidades de natureza ou de grau, pois a paixão nasce da emoção e, como existem paixões violentas e emoções calmas, o inverso também é verdadeiro, embora se diga que a emoção é aguda e a paixão é crônica. A diferença mais sutil entre ambas é que a emoção é passageira e a paixão é duradoura.

Em nosso ordenamento jurídico tanto a emoção quanto a paixão não excluem a imputabilidade do indivíduo, podendo, quando muito, funcionar como causas de diminuição da censurabilidade da conduta (causa especial de diminuição de pena ou minorante ou atenuante).

No primeiro caso (minorante ou causa especial de diminuição de pena) tem que estar presente a injusta provocação da vítima e o domínio de violenta emoção, como ocorre com o homicídio privilegiado (art. 121, § 1º, do CP) e lesões corporais privilegiadas (art. 129, § 4º, do CP). No segundo caso (atenuante – art. 65, III, c, do CP), que se aplica a quaisquer crimes, também tem que estar presente a injusta provocação da vítima e a influência da violenta emoção após injusta provocação da vítima.

Logo, o que se percebe é que, além da violência emocional, é fundamental que a provocação tenha sido da própria vítima, e através de um comportamento injusto, ou seja, não justificado, não permitido, não autorizado.

Ressalvados os dois casos acima, os estados emocionais ou passionais somente poderão servir como modificadores da culpabilidade se forem sintomas de uma doença mental, isto é, se forem estados emocionais patológicos. Contudo, nestas circunstâncias, já não mais se estará diante de emoção ou paixão, senão que haverá anormalidade psíquica, devendo o problema ser analisado à luz do disposto no art. 26 e parágrafo único do CP. Em outras palavras, nestas situações, o indivíduo deve ser tratado como inimputável ou semi-imputável, pouco importando a origem de sua inimputabilidade ou culpabilidade diminuída.

III.4- COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL – art. 22, 1ª parte, do CP Trata-se de uma excludente de culpabilidade em razão da inexigibilidade de

conduta diversa.Coação é o emprego de força física ou grave ameaça para que alguém faça

ou deixe de fazer alguma coisa. Diante disso, pode-se falar coação física (conhecida como vis absoluta ou vis corporalis) e coação moral (conhecida como vis relativa ou vis compulsiva). A coação pode ser, ainda: a- irresistível – o coagido ou coato não tem condições de resistir; b- resistível – o coagido ou coato tem condições de resistir.

Com relação às conseqüências que despontam do emprego da coação, pode se falar em atipicidade do fato, excludente de culpabilidade e causa atenuante de pena.

A coação física exclui a conduta, uma vez que elimina totalmente a vontade. O fato passa a ser atípico. Ocorre a exclusão da conduta diante da ausência de vontade.o executor do ato é considerado mero instrumento da realização da vontade do coator, que,

Page 114: Direito Penal i

na realidade, é o autor mediato. Não se verifica no executor qualquer resquício de vontade, posto que a mesma foi totalmente afastada pelo emprego da força física. Logo, a hipótese é de atipicidade de conduta para o coagido executor e de autoria mediata para o coator. Não há que se falar em concurso de pessoas.

Quanto à coação moral, é de se verificar se a mesma era resistível ou irresistível.

Em se tratando de coação moral resistível, há crime, tanto por parte do coagido quanto por parte do coator. Não há que se falar em ausência de vontade. Ela existe, embora esteja viciada. A vontade permanece intangida, sendo possível exigir-se conduta diversa do agente. Nesta hipótese existe concurso de pessoas. O coato é autor do crime, contudo, tem sua culpabilidade diminuída, justamente porque sua vontade estava viciada. Aplica-se a atenuante prevista no art. 65, III, 1ª parte, do CP. O coator, por sua vez, é o autor mediato do crime e tem sua pena agravada, conforme o art. 62, II, do CP.

Por fim, tem-se a hipótese da coação moral irresistível. Irresistível é toda coação que pressiona a vontade impondo determinado comportamento, eliminando ou reduzindo o poder de escolha. A irresistibilidade da coação deve ser medida pela gravidade do mal ameaçado. Essa gravidade deve relacionar-se com a natureza do mal e, evidentemente, com o poder do coator em produzi-lo. Somente o mal efetivamente grave e iminente tem o condão de caracterizar a coação irresistível. A iminência significa iminência à recusa, ou seja, se o coagido se recusar, o coator tem condições de cumprir a ameaça em seguida, seja por si mesmo, seja por interposta pessoa.

Nesta hipótese, considera-se punível somente o coator, que no caso é autor mediato, posto que o executor é tido como instrumento, vez que não se podia exigir do mesmo outra conduta, senão a por ele praticada. Não há concurso de pessoas e somente o coator responde pelo crime, ficando o coagido isento de pena diante de uma excludente de culpabilidade.

III.5- OBEDIÊNCIA HIERÁRQUICA – art. 22, 2ª parte, do CP É a obediência a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico,

tornando viciada a vontade do subordinado e afastando a exigência de conduta diversa. Observe-se que a excludente abrange tão somente a relação de direito público, não podendo se aproveitar da dirimente as relações hierárquicas privadas.

A doutrina entende que se trata de um caso especial de erro de proibição, onde o agente, supondo obedecer a uma ordem legítima de seu superior, pratica um fato típico.

Para que se possa falar na exculpante, tem que estar presentes os seguintes requisitos:

a- um superior hierárquico;b- um subordinado;c- uma relação de direito público entre ambos, já que o poder hierárquico é

inerente à Administração Pública;d- uma ordem do primeiro para o segundo;e- ilegalidade da ordem, visto que ordem legal exclui a ilicitude diante do estrito

cumprimento do dever legal;f- aparente legalidade da ordem.

O que interessa destacar é que a ordem deve ser ilegal, contudo, não manifestamente ilegal, ou seja, flagrantemente ilegal. Deve a mesma ter uma aparência de legalidade, afim de que o subordinado que a obedece estar agindo sem culpabilidade,

Page 115: Direito Penal i

por ter avaliado incorretamente a ordem recebida, incorrendo em uma espécie de erro de proibição.

Entretanto, se cumprir ordem manifestamente ilegal, responde pelo crime juntamente com o seu superior. O subordinado não tem a obrigação de cumprir ordem ilegal. Ele tem a obrigação de cumprir ordens inconvenientes, inoportunas, mas não ilegais. Também não tem direito, como subordinado que é, de discutir a oportunidade e conveniência de uma ordem. Mas a ilegalidade, mais do que o direito, tem o dever de aponta-la, e negar-se a cumprir ordem manifestamente ilegal.

Assim, se o subordinado cumpre ordem manifestamente ilegal responde pelo crime com a pena atenuada conforme dispõe o art. 665, III, c, do CP. Todavia, se o subordinado cumpre a ordem manifestamente ilegal, mas por erro de proibição, a supõe legal, responde pelo delito com a pena diminuída, conforme o art. 21, 2ª parte do CP.

Questão que interessa de perto é a situação do militar. Enquanto o funcionário público civil tem o direito e o dever de questionar a legalidade da ordem, não a sua oportunidade e conveniência; o militar não pode, se quer, questionar a legalidade da ordem, haja vista ter o dever legal de obediência, sendo que a inobservância deste dever pode constituir o crime de insubordinação (art. 163, do CPM).

O subalterno militar não é culpado, qualquer que seja a sua convicção sobre a ilegalidade da ordem. O CPM, em seu art. 38, § 2º, determina que o militar não deve cumprir ordem manifestamente criminosa. Observe-se, contudo, que a situação é completamente diversa.

Por óbvio não se pode obrigar ninguém a cumprir uma ordem criminosa, sob pena de se ferir as premissas de um Estado Democrático de Direito. Todavia, quanto à legalidade, quanto às formalidades, não pode o militar subalterno questioná-las.

Alguns autores entendem que o militar seria beneficiado por uma excludente de ilicitude, qual seja, o estrito cumprimento do dever legal, posto que, seu dever é cumprir a ordem emanada de superior hierárquico, não lhe cabendo questionar sobre a legalidade ou ilegalidade da mesma.

Outros entendem que o militar seria beneficiado pela coação moral irresistível quando fosse coagido a cumprir ordem manifestamente criminosa. Assim, quando a ordem for manifestamente criminosa, o militar poderá alegar, desde que presentes os requisitos, coação moral irresistível. Contudo nada impede que possa alegar obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal.

III.6- ERRO DE PROIBIÇÃO INEVITÁVEL – Art. 21, caput, do CP O erro de proibição inevitável incide sobre a potencial consciência da

ilicitude do fato e, será devidamente trabalhado quando se estudar a teoria do erro, bastando por hora, salientar-se que o erro de proibição não diz respeito à tipicidade, ao tipo penal, mas à sua ilicitude. Não existe, na hipótese de erro de proibição, a consciência da ilicitude (atual ou potencial) do fato, que é um pressuposto ou elemento da culpabilidade, como já visto. O erro de proibição, portanto, não elimina o dolo, mas excluí a reprovabilidade da conduta por falta de conhecimento potencial da ilicitude do fato.

Page 116: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- CONDIÇÕES OBJETIVAS DE PUNIBILIDADE E ESCUSAS ABSOLUTÓRIAS___________________

I.1- INTRODUÇÃO

Inicialmente, deve ficar claro é que a punibilidade não é um elemento ou requisito do crime, mas sua conseqüência jurídica. A prática de um fato definido como crime traz consigo a punibilidade, isto é, a aplicabilidade da pena que lhe é cominada em abstrato na norma penal. Com a prática do crime, o direito de punir do Estado que era abstrato, torna-se concreto, surgindo a punibilidade, que é a possibilidade jurídica de impor sanção penal.

O conceito de fato punível é constituído pelas categorias gerais da ação, da tipicidade, da ilicitude e da culpabilidade e, em regra, a presença dessas categorias é suficiente para determinar a punibilidade respectiva; por exceção, a punibilidade pode depender da existência de outros pressupostos ou circunstâncias, conhecidos como condições objetivas de punibilidade e escusas absolutórias (também conhecidas como fundamentos excludentes de pena).

I.2- CONDIÇÕES OBJETIVAS DE PUNIBILIDADE

As chamadas condições objetivas de punibilidade consistem em determinados requisitos ou certos resultados cuja existência objetiva condiciona a punibilidade da ação típica, ilícita e culpável. A diferença fundamental entre os requisitos ou resultados objetivos definidos como condições objetivas de punibilidade e os elementos objetivos do tipo penal residem no fato de que as condições não precisam ser apreendidas pelo dolo do agente ou se relacionar com a sua imprudência.

Assim, são chamadas de condições objetivas de punibilidade porque independem, para serem consideradas condições para a punibilidade, de estarem acobertadas pelo dolo do agente ou de serem abrangidas pela sua conduta culposa.

Desta forma, são exteriores ao tipo e, em conseqüência, ao próprio crime. Assim, pode-se afirmar que tem como características:

a- situarem-se fora do crime;b- não serem abrangidas pelo dolo ou culpa do agente;

Elas encontram-se fora do crime praticado pelo agente e a sua ocorrência não depende do dolo ou da culpa do agente. É certo que a segunda característica se encontra implícita na primeira: se a condição objetiva de punibilidade se acha fora do crime, é evidente que não depende do dolo ou da culpa do agente, pois estes fazem parte do tipo.

Todavia, a separação se dá por razões de compreensão. Se a punibilidade não é requisito do crime, a circunstância que a condiciona não pode encontrar-se no crime, senão fora dele.

Importante destacar que as condições objetivas de punibilidade não se confundem com as condições de procedibilidade, que dizem respeito à ação penal, como

Page 117: Direito Penal i

por exemplo, a sentença transitada em julgado no cível, no crime definido no art. 236, do CP; a representação e a requisição do Ministro da Justiça nos crimes de ação penal pública condicionada, etc. Estas apenas condicionam o exercício da ação penal, são de direito processual e se atêm somente à admissibilidade da persecução penal.

Exemplos de condições objetivas de punibilidade encontram-se no art. 7º, § 2º, b e c, do CP. Assim, no caso de extraterritorialidade condicionada da lei penal brasileira, as circunstâncias de ser o fato punível também no país em que foi praticado e estar incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição constituem condições objetivas de punibilidade.

Alguns autores trazem, ainda, como exemplo de condições objetivas de punibilidade, o resultado morte ou lesão corporal grave previsto no art. 122, do CP. Contudo, em razão da questão encerrar uma séria polêmica, posto que outros tantos, consideram o resultado como elemento do tipo, deixa-se, por hora, de incluir o exemplo, o que poderá ser feito, posteriormente quando do estudo do tipo penal de participação em suicídio.

1.2- ESCUSAS ABSOLUTÓRIAS (FUNDAMENTOS EXCLUDENTES DA PENA)

As escusas absolutórias, ao contrário das condições objetivas de punibilidade, constituem circunstâncias cuja presença exclui a punibilidade já caracterizada de ações típicas, ilícitas e culpáveis. Assim, são causas que fazem com que a um crime não se associe pena alguma, por razões utilidade pública ou de política criminal.

Não se confundem com as excludentes de ilicitude ou com as excludentes de culpabilidade. Tanto umas quanto as outras excluem o crime. As escusas absolutórias deixam íntegro o crime. Contudo, por razões de política criminal, não se aplica a pena.

Os efeitos do reconhecimento das escusas absolutórias são idênticos aos da extinção de punibilidade. Assim, elas somente extinguem o poder-dever do Estado de aplicar a sanção, subsistindo as demais conseqüências secundárias do fato.

Por outro lado, o reconhecimento das mesmas é obrigatório, não ficando ao arbítrio judicial a concessão do benefício.

O CP somente prevê como escusas absolutórias o art. 181, I e II (imunidades nos delitos contra o patrimônio) e o art. 348, § 2º (isenção de pena no crime de favorecimento pessoal). Por outro lado, não é de se afirmar que o perdão judicial seja caso de escusa absolutória, vez que, na escusa a sentença concessiva é meramente declaratória, enquanto que no perdão judicial ela é constitutiva.

Page 118: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- CONSUMAÇÃO ___________________

I.1- DO CRIME CONSUMADO

Diz-se consumado o crime quando expressa a total conformidade do fato praticado pelo agente com a hipótese abstrata descrita pela norma penal incriminadora. Em outras palavras, é aquele em que foram realizados todos os elementos constantes de sua definição legal.

Consuma-se o crime quando o tipo está inteiramente realizado, ou seja, quando o fato concreto se subsume no tipo abstrato da lei penal. Quando são preenchidos todos os elementos do tipo objetivo, pelo fato natural, ocorre a consumação. Tal regra vem descrita no art. 14, I, do CP – “diz-se o crime consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal.”

Entretanto, não há que se confundir crime consumado com crime exaurido. Neste, após a consumação, outros resultados lesivos ocorrem. O crime pode estar consumado e dele não haver resultado todo o dano que o agente previra e visara. Assim, por exemplo, é o caso da corrupção passiva (art. 317, do CP), da extorsão mediante seqüestro (art. 159, do CP), da concussão (art. 316, do CP), dentre outros.

Por outro lado é importante se estabelecer o exato momento em que se consuma o crime, posto que tal momento é de suma importância para o direito penal. Assim:

a- crimes materiais : a consumação ocorre com o evento ou resultado naturalístico. Ex: arts 121, 122, 123, 155, 157, 213, 214, etc.

b- crimes formais ou de consumação antecipada : a consumação ocorre com a prática da conduta, independentemente da ocorrência do resultado. Ex: arts. 158, 159, 316, 317, 333, etc.

c- crimes de mera conduta ou de mera atividade : a consumação ocorre com a prática da conduta, já que o tipo não prevê qualquer resultado. Ex: arts. 150, 338, etc.

d- crimes culposos : a consumação ocorre com a verificação do resultado naturalístico, posto que, se houver inobservância do dever de cuidado, mas o evento não se realizar, não haverá crime.

e- crimes habituais : a consumação ocorre com a reiteração de atos, posto que, cada um deles, isoladamente, é um indiferente penal. Ex: arts. 284, I, 282, 229, 230, etc.

f- crimes permanentes : a consumação se protai no tempo, desde o instante em que se reúnem os seus elementos até que cesse o comportamento do agente. Ex: arts. 148, 159, 219, 220, 228, 249, etc.

g- crimes omissivos próprios : a consumação ocorre no momento em que o agente deveria agir e não o fez. Ex: arts. 135, 269, 320, etc.

Page 119: Direito Penal i

h- crimes omissivos impróprios : a consumação ocorre com a produção do resultado naturalístico.

i- crimes complexos : a consumação ocorre quando os crimes componentes estiverem totalmente realizados. Ex: arts. 157, 159, etc.

j- crimes qualificados pelo resultado : a consumação ocorre com a produção do resultado agravador. Ex: arts. 157, § 3º, 159, § 3º, etc.

I.2- ITER CRIMINIS

Como em todo ato humano, no crime, a idéia antecede a ação. É no pensamento do homem que se inicia o movimento delituoso. Assim, iter criminis nada mais é do que o caminho do crime, desde o momento em que germina, como idéia, no espírito do agente, até aquele em que se consuma no ato final.

A importância em se conhecer o iter criminis reside no fato de se precisar exatamente em que momento o indivíduo penetra no campo da ilicitude, posto que é a partir deste momento que o seu atuar constitui um perigo de violação ou violação efetiva de um bem jurídico e que começa a realizar-se a figura típica do crime. Assim, é possível se estabelecer as fases do iter criminis da seguinte forma:

a- cogitação;b- atos preparatórios;c- atos executórios;d- consumação.

COGITAÇÃO (Cogitatio): é a fase interna, onde o agente mentaliza, idealiza, planeja, representa mentalmente a prática do crime. Nesta fase de pura elaboração mental não se pode falar em punição por parte do direito penal, posto que cada um pode pensar o que bem quiser. Na cogitação não existe projeção no mundo exterior. Assim, vale o brocardo latino – “pensiero non paga gabella, cogitationis poena nemo patitutur.” Como dizia Welzel, “a vontade má não se pune, só se pune a vontade má realizada.” Somente quando se rompe o claustro psíquico que o aprisiona e materializa-se concretamente a ação, é que se pode falar em fato típico.

ATOS PREPARATÓRIOS: é o início da fase externa do iter criminis. São, portanto, externos ao agente, que passa da cogitação à ação objetiva. Trata-se da prática dos atos imprescindíveis à execução do crime. Nessa fase, via de regra, ainda não se iniciou a agressão ao bem jurídico. O agente não começou a realizar o verbo núcleo do tipo. Sendo assim, tais condutas também não podem ser punidas, apesar da posição em contrário dos positivistas que estariam a reclamar a punição dos atos preparatórios como medida de prevenção criminal. Contudo, embora a regra seja a de que os atos preparatórios não sejam puníveis, em determinados casos, o legislador eleva esses atos em tipos penais autônomos como acontece no caso do art. 291 (petrechos para falsificação de moeda), art. 238 (atribuir-se falsamente autoridade para celebração de casamento), art. 239, art. 251, art. 288, etc. Tais atos, teoricamente seriam preparatórios, mas o legislador, levando em consideração o valor do bem jurídico tutelado, à periculosidade da conduta e a própria periculosidade do agente, eleva tais atos à condição de tipos autônomos, haja vista representarem uma ameaça atual ao direito e a sociedade como um todo.

Page 120: Direito Penal i

ATOS EXECUTÓRIOS: são aqueles dirigidos diretamente à prática do crime, quando o autor se põe em relação imediata com a ação típica. É nesse momento em que o bem jurídico começa a ser efetivamente atacado pela ação do agente. A partir desse momento o fato se torna punível, posto que o agente inicia a realização do verbo núcleo do tipo penal. O grande dilema que se apresenta nesse tópico é o estabelecimento de um critério seguro de diferenciação entre atos preparatórios e atos executórios.

A linha que separa os atos preparatórios dos atos executórios é por demais tênue e o estabelecimento de um critério diferenciador seguro se torna obrigatório. Dentre tantos critérios que se apresentaram (o dos atos remotos – equívocos e dos atos próximos – inequívocos), fica-se com aqueles mais aceitos pela doutrina de um modo geral – o critério material – ataque ao bem jurídico e o critério formal – início da realização do tipo.

O critério material entende que os atos executórios se iniciam no momento em que o bem juridicamente protegido é posto realmente em perigo pela conduta do agente. Portanto, o momento diferenciador estaria no ataque direto ao objeto de proteção jurídica. Haveria ato executório quando a conduta do agente atacasse o bem jurídico. Assim, o ato que não constituísse ameaça ou ataque direto ao objeto jurídico tutelado seria considerado como ato preparatório. Esse critério, em verdade, não satisfaz, na medida em que o perigo ao bem jurídico também pode apresentar-se em face da realização de atos preparatórios.

O critério formal entende que o início da execução é marcado pelo início da realização do tipo penal, ou seja, quando se inicia a realização do verbo núcleo do tipo. Assim, existe ato de execução quando o comportamento do agente dá início à realização da conduta descrita no tipo penal. É em referência ao tipo penal considerado que se pode decidir se tratasse de um ato preparatório ou de um ato executório. Não obstante, deve-se observar que um dos princípios basilares do direito penal é o princípio da reserva legal, pois só constitui crime o fato expressamente previsto em lei como tal. Assim, somente pode-se falar em ato de execução diante de uma conduta idônea (apta à consumação) e inequívoca (indubitavelmente destinada à produção do resultado), de maneira que somente depois de iniciada uma conduta idônea e inequívoca, ou seja, o verbo núcleo do tipo, é que se terá iniciado a realização do fato definido no modelo penal incriminador.

Embora o critério adotado pelo direito penal pátrio tenha sido o critério formal, o mesmo não fica a salvo de críticas. Existem atos tão próximos e quase indissociáveis do início do tipo que merecem ser tipificados como tentativa. Por isso, tem-se adotado a complementação sugerida por FRANK, para quem se deve incluir na tentativa as ações que, por vinculação necessária com a ação típica, aparecem, com parte integrante dela, segundo uma concepção natural.

CONSUMAÇÃO: como já visto, diz-se consumado o crime quando se reúnem todos os elementos de sua definição legal – art. 14, I, do CP. Assim, a consumação ocorre quando todos os elementos que se encontram descritos no tipo penal foram realizados.

Page 121: Direito Penal i

II- TENTATIVA (CONATUS) ___________________

II.1. CONCEITO

Tentativa é a não-consumação de um crime, cuja execução foi iniciada, por circunstâncias alheias à vontade do agente. É a realização incompleta do tipo penal, do modelo descrito na lei penal. Na tentativa, há prática de ato de execução, mas o sujeito não chega à consumação por circunstâncias independentes de sua vontade. Tal conceituação vem consubstanciada no art. 14, II, do CP.

Em outras palavras, a tentativa é um crime que entrou em execução, mas no seu caminho para a consumação é interrompido por circunstâncias acidentais. Em última análise, a tentativa é um delito incompleto, de uma tipicidade subjetiva completa, com um defeito na tipicidade objetiva.

II.2- NATUREZA JURÍDICA

A tentativa não é um crime autônomo. Na verdade, trata-se da realização incompleta de uma figura típica. Não existe nenhuma norma incriminadora tipificando a conduta de “tentar matar alguém” ou “tentar subtrair”, etc.

Trata-se de um tipo penal ampliado, um tipo penal aberto, um tipo penal incompleto. Constitui uma ampliação temporal da figura típica. Assim, a tentativa nada mais é do que uma norma de extensão ou de ampliação temporal da figura típica, sendo um dos casos de adequação típica de subordinação indireta ou mediata (o outro caso encontra-se no concurso de pessoas).

A tipicidade da tentativa decorre da conjunção do tipo penal com o dispositivo que a define e prevê sua punição (art. 14, II, do CP). Observe-se que o art. 14, II, do CP é uma norma extensiva, ampliativa, secundária ou de reenvio. É por força dela que se amplia a proibição contida nas normas penais incriminadoras a fatos que o agente realiza de forma incompleta.

Sem a norma de extensão, a tentativa de homicídio, por exemplo, seria um fato atípico, por força do princípio da reserva legal.

II.3- ELEMENTOS DA TENTATIVA

A tentativa deve possuir todos os elementos de um crime consumado, menos a consumação. Assim, é constituída pelos seguintes elementos:

a- Início da execução: ao se adotar a teoria objetiva para diferenciar atos preparatórios dos atos executórios, se exige que a conduta do agente corresponda ao verbo núcleo do tipo. Assim, a tentativa somente será punível quando a ação penetrar na fase da execução.

b- Não-consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente: iniciada a execução de um crime, ela pode ser interrompida por dois motivos: 1- pela própria vontade do agente (é o caso da desistência voluntária e do arrependimento eficaz); 2- por circunstâncias alheias à vontade do agente (aqui se encontra a tentativa). A não-consumação pode se dar por qualquer causa interruptiva, desde que estranha à vontade do agente. Diante disso, pode

Page 122: Direito Penal i

se falar em tentativa perfeita ou crime falho e tentativa imperfeita ou propriamente dita, conforme se verá mais adiante.

c- Dolo em relação ao crime total (dolo de crime consumado): não existe um dolo especial de tentativa, diferente do elemento subjetivo informador do crime consumado. O elemento subjetivo da tentativa é o dolo do delito consumado (a vontade do agente é de consumar o crime e não de apenas tentar consumar). Assim, o agente deve agir dolosamente visando praticar a conduta e obter o resultado final que concretiza o crime perfeito e acabado. É necessário que o agente pretenda produzir um resultado mais grave do que aquele a que vem efetivamente conseguir. Em síntese, não existe diferença entre o dolo do crime consumado e o dolo da tentativa. Quem mata age com o mesmo dolo de quem tenta matar.

II.4- ESPÉCIES DE TENTATIVA

Iniciada a fase executória, o movimento criminoso pode: a) interromper-se no curso da execução; b) parar na execução completa; c) chegar à consumação. Dependendo do momento em que a atividade criminosa cessar, ocorre uma das três figuras, doutrinariamente conhecidas como tentativa imperfeita, tentativa perfeita e crime consumado.

Assim, cabe analisar cada uma as espécies de tentativa:

a- TENTATIVA IMPERFEITA (ou propriamente dita): ocorre quando há interrupção dos atos executórios. O agente não consegue praticar todos os atos de execução do crime por circunstâncias alheias à sua vontade. Nesta espécie de tentativa o agente não exaure toda a potencialidade lesiva de sua conduta, ou seja, não chega a realizar todos os atos executórios necessários à produção do resultado inicialmente pretendido, por circunstâncias estranhas à sua vontade. Aqui é possível a desistência voluntária.

b- TENTATIVA PERFEITA (acabada ou crime falho): ocorre quando o agente pratica todos os atos de execução, mas o crime não se consuma por circunstâncias alheias à sua vontade. A fase executória realiza-se integralmente, mas o resultado visado não ocorre. A execução se conclui, mas o crime não se consuma. O agente esgota a potencialidade lesiva de sua conduta, mas o resultado não se verifica. O crime é subjetivamente consumado em relação à pessoa que o comete, mas não o é objetivamente em relação à pessoa ou coisa contra a qual é dirigida. Aqui é possível o arrependimento eficaz.

A distinção entre tentativa perfeita e imperfeita é irrelevante para a incidência do art. 14, II, do CP. Contudo, essa distinção assume relevância no momento da dosimetria da pena e, sobretudo, no campo da desistência voluntária e do arrependimento posterior.

É possível falar-se ainda em:

- Tentativa branca ou incruenta: quando a vítima do crime não é atingida, nem vem a sofrer ferimentos. Importante notar que a tentativa branca pode ser perfeita ou imperfeita. No primeiro caso, o agente realiza a conduta

Page 123: Direito Penal i

integralmente, sem, contudo, conseguir ferir a vítima; no segundo, a execução é interrompida sem que a vítima venha a ser atingida.- Tentativa vermelha, cruenta ou sangrenta: nesse caso a vítima é atingida,

vindo a lesionar-se. Do mesmo modo, pode ocorrer tentativa cruenta perfeita ou imperfeita.

II.5- PUNIBILIDADE DA TENTATIVA

Segundo a teoria da impressão, o Direito, ao punir a tentativa, está protegendo um bem jurídico, ainda que este não tenha corrido perigo de maneira efetiva, mas pelo simples fato de a tentativa vir a proporcionar a vivência do perigo.

Diante dessa colocação, duas teorias procuram explicar a punibilidade da tentativa, a saber:

a- TEORIA SUBJETIVA: fundamenta a punibilidade da tentativa na vontade do autor contrária ao direito. Prega a aplicação da mesma pena que a do delito consumado. Para essa teoria, o elemento moral, a vontade do agente é decisiva, porque está completa, perfeita. Imperfeito é o delito sob o aspecto objetivo, que não chega a consumar-se. Em face disso, a pena da tentativa deve ser a mesma do crime consumado. Assim, aquele que praticasse uma tentativa branca de homicídio ficaria sujeito à mesma pena daquele que praticasse um homicídio consumado.

b- TEORIA OBJETIVA (realística): a tentativa deve ser punida de forma

mais branda que o crime consumado, porque objetivamente produziu um mal menor. Essa teoria fundamenta-se no perigo a que é exposto o bem jurídico. Como a lesão foi menor ou não ocorreu qualquer resultado lesivo ou perigo de dano, o fato cometido pelo agente fica sujeito a uma resposta penal menos severa. É o perigo efetivo que representa diretamente para o bem jurídico que torna a tentativa punível. O CP, em seu art. 14, parágrafo único, adotou essa teoria determinando que aquele que praticar um crime tentado fique sujeito à pena do crime consumado reduzida de 1/3 a 2/3. A diminuição de um a dois terços não decorre da culpabilidade do agente, senão da própria gravidade do fato constitutivo da tentativa. Quanto mais o sujeito se aproxima da consumação menor deve ser a diminuição da pena; quanto menos ele se aproxima da consumação maior deve ser a diminuição da pena.

Por outro lado, importa, ainda, fazer menção à ressalva prevista no art. 14, parágrafo único do CP – “salvo disposição em contrário, ...”. Com essa colocação estabeleceu o CP que podem existir casos onde a tentativa seja punida com a mesma pena do crime consumado, sem a diminuição legal, como ocorre no caso do art. 352, do CP e 309, do Código Eleitoral. Quando isso ocorre, denominam-se os crimes de crimes de empreendimento ou de atentado, onde se aplica a mesma pena para a figura consumada e tentada.

II.6- CRIMES QUE NÃO ADMITEM TENTATIVAA tentativa, como fragmento de crime que é, não tem sua presença

assegurada em todas as espécies de crimes. Assim, alguns crimes não comportam a tentativa, a saber:

Page 124: Direito Penal i

a- crimes culposos : o crime culposo não tem existência real sem o resultado. Se houver inobservância do dever de cuidado objetivo, mas o resultado não se verificar, não haverá crime ou tentativa do mesmo. Importante destacar que somente os crimes praticados com culpa própria não admitem tentativa. Os crimes praticados com a chamada culpa imprópria (na verdade trata-se de um crime doloso ao qual se aplica a pena de um crime culposo, diante de um erro de tipo vencível – culpa no antecedente, dolo no conseqüente) admitem tentativa. Contudo, na verdade não se trata de um crime culposo, mas de um crime doloso ao qual somente impropriamente se pode denominar de culposo, haja vista que culpa não há, mas vontade de praticar a conduta e de produzir o resultado, motivado por um erro de tipo essencial inescusável.

b- crimes preterdolosos ou preterintencionais (dolo no antecedente e culpa no conseqüente): também não admitem tentativa, posto que o resultado mais grave que qualifica o crime somente pode ser atribuído ao agente a título de culpa.

c- crimes omissivos próprios : não admitem tentativa posto que não existe um resultado naturalístico produzido pela omissão. Se o agente deixa passar o momento em que deveria agir, o delito está consumado; se ainda pode agir, não se pode falar em crime.

d- crimes omissivos impróprios : são os chamados delitos comissivos-omissivos ou crimes comissivos por omissão. Estes produzem resultado naturalístico e, portanto, admitem tentativa.

e- crimes unissubsistentes ou de ato único : não admitem tentativa diante da impossibildade de fracionamento dos atos de execução.

f- crimes habituais : não admitem tentativa, posto que o que o caracteriza é a prática reiterada de certos atos que, isoladamente, constituem um indiferente penal. Ora, ou há reiteração e o crime está consumado ou não há reiteração e não há crime.

g- crimes de atentado ou de empreendimento : não admitem tentativa justamente porque é inadmissível tentativa de tentativa.

h- crimes que a lei só pune se ocorrer o resultado : como é o caso do art. 122, do CP – participação em suicídio.

Page 125: Direito Penal i

III- TENTATIVAS ABANDONADAS ___________________

III.1- CONCEITOO art. 15, do CP estabelece que “o agente que, voluntariamente, desiste de

prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.” Tratam-se de espécies de tentativa abandonada ou qualificada. Em outras palavras, o agente pretendia produzir o resultado consumativo, mas acaba por mudar de idéia, vindo a impedi-lo por sua própria vontade. Desta forma, o resultado não se produz por força da vontade do próprio agente, ao contrário da tentativa, na qual o resultado não se verifica por circunstâncias alheias à vontade do agente.

É de se observar que os crimes culposos não admitem tentativas abandonadas, pois, como se trata de abandonar a execução de um fato típico, pressupõe-se um resultado que o agente pretendia produzir (dolo), mas, posteriormente ao início da execução, desiste voluntariamente ou se arrepende, evitando-o.

III.2- NATUREZA JURÍDICAA natureza jurídica das tentativas abandonadas é questão que tem gerado

certa polêmica na doutrina. Alguns autores, como NELSON HUNGRIA, entendem que se trata de causas extintivas de punibilidade (embora não dispostas no art. 107, do CP), ou seja, circunstâncias que, sobrevindo à tentativa de um crime, anulam a punibilidade do fato a esse título. Há uma renúncia do Estado ao jus puniendi (no que tange ao crime tentado) por motivos de oportunidade.

No mesmo sentido, VON LITZ afirmava que o fato não deixa de ser um crime tentado; somente desaparece a possibilidade de aplicação da pena, a título de conatus.

Contudo, não parece ser esse o melhor entendimento. Observe-se que, tanto na desistência voluntária, quanto no arrependimento eficaz, não se atinge o momento consumativo do crime por vontade do agente. Isso torna evidente a falta de adequação típica pela inocorrência do segundo elemento da tentativa, qual seja, a não-consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente. Não existe tentativa típica.

Lembre-se que o delito tentado é formado pela norma penal incriminadora principal (art. 121, 155, 157, etc.) + a norma secundária, de ampliação, de extensão, de reenvio (ar. 14, II, do CP), que determina que o fato não produza o resultado perseguido pelo agente por circunstâncias alheias à sua vontade.

Assim, fica claro que não existe adequação típica de tentativa quando o fato não alcança sua consumação por vontade do próprio agente. Nas tentativas abandonadas ou qualificadas não existe a elementar “alheia à vontade do agente”, o que torna o fato atípico, diante do preceito definidor de tentativa.

DAMÁSIO DE JESUS bem coloca que “quando o crime não atinge o momento consumativo por força da vontade do agente, não incide a norma de extensão e, em conseqüência, os atos praticados não são típicos em face do delito que se pretendia cometer. Se a tentativa é a execução iniciada de um crime que não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente, é evidente que não há conatus quando o delito não atinge o seu momento consumativo em face da própria vontade do sujeito.”

Portanto, as tentativas abandonadas são, em verdade, causas de exclusão de adequação típica ampliada, o que significa dizer que tanto a desistência voluntária quanto o arrependimento eficaz tornam a conduta do agente atípica em relação ao delito que pretendia praticar.

Page 126: Direito Penal i

Conclui-se, por fim, que os dois institutos (desistência e arrependimento) não são causas extintivas de punibilidade, pois esta pressupõe a causa de punibilidade, que, na hipótese, seria a tentativa, que não existiu. Não havendo tentativa, pela falta de um dos seus elementos (não ocorrência do resultado por circunstâncias alheias à vontade do agente), não se pode falar em extinção da punibilidade, mas deve-se falar tão-somente em inadequação típica.

III.3- DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIAO agente que inicia a realização de uma conduta típica pode,

voluntariamente, interromper a sua execução. Isso caracteriza a tentativa abandonada ou qualificada, a desistência voluntária, que em nosso ordenamento jurídico é impunível.

O Estado, por razões de política criminal, tem interesse que o agente interrompa voluntariamente a execução do crime, evitando o resultado e, para tanto, oferece ao agente a oportunidade de sair da situação que criara, sem ser punido.

Na verdade, a diferença entre desistência voluntária e tentativa pode ser resumida na colocação de FRANK: posso, mas não quero (desistência voluntária); quero, mas não posso (tentativa).

Por outro lado, não é necessário que a desistência seja espontânea, basta que seja voluntária. Espontânea ocorre quando a idéia inicial parte do próprio agente, e voluntária é a desistência sem coação moral ou física, mesmo que a idéia inicial tenha partido de outrem, ou mesmo resultado de pedido da própria vítima.

Conforme o art. 15 do CP determina, o agente responde pelos atos já praticados. A isso se chama tentativa qualificada. O agente responde pelos atos praticados que, de per si, constituem tipos penais.

Por outro lado, observe-se que a desistência voluntária só tem cabimento em casos de tentativas imperfeitas. Aliás, pode-se dizer que a desistência voluntária corresponde a uma tentativa imperfeita, posto que a execução não chega ao final, vale dizer, não se consuma o crime por vontade do próprio agente.

III.4- ARREPENDIMENTO EFICAZTrata-se também de uma hipótese de inadequação típica da tentativa. Aqui,

o agente, após ter esgotado todos os meios de que dispunha – necessários e suficientes –, arrepende-se e evita que o resultado aconteça. Nesse caso, a execução vai até o final, não sendo interrompida pelo autor, no entanto, este, após esgotar a atividade executória, arrepende-se e impede o resultado. Isto é, pratica nova atividade para evitar que o resultado ocorra.

Como na desistência, o arrependimento deve ser voluntário, não necessariamente espontâneo. Contudo, para que se possa falar em tentativa abandonada é necessário que o agente logre êxito em sua nova conduta, ou seja, que efetivamente evite que o resultado ocorra. Se o agente não evitar o resultado, por mais que tenha tentado, não se pode falar em arrependimento eficaz e o agente responde pelo crime consumado, podendo apenas ser beneficiado, se for o caso, na dosimetria da pena.

Por outro lado, o arrependimento eficaz somente pode ocorrer em tentativas perfeitas (crimes falhos). Aliás, o arrependimento eficaz é sucedâneo da tentativa perfeita, pois se verifica o esgotamento da atividade executória.

Da mesma forma que na desistência voluntária, caso o agente efetivamente consiga evitar o resultado, ou seja, caso o seu arrependimento realmente seja eficaz, responderá apenas pelos atos até então praticados e que, por si só, constituam fatos típicos.

Page 127: Direito Penal i

IV- ARREPENDIMENTO POSTERIOR ___________________

O instituto do arrependimento posterior vem entabulado no art. 16, do CP. Contudo, o próprio nome do instituto merece uma crítica inicial, na medida em que todo arrependimento só pode ser posterior, haja vista que ninguém pode se arrepender antes de começar a fazer alguma coisa. Logo, a expressão é absolutamente redundante.

Ao contrário dos institutos anteriores, o arrependimento posterior não gera atipicidade de conduta. Trata-se, em verdade, de uma causa especial de diminuição de pena prevista na parte geral do código (minorante).

Pode ser conceituado como a causa de diminuição de pena que se aplica ao crime cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa, em que o agente, voluntariamente, repara o dano ou restitui a coisa até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime.

Fica claro que o objetivo do dispositivo foi o de estimular a reparação do dano no crime patrimonial cometido sem violência ou grave ameaça.

IV.1- ELEMENTOS OU REQUISITOS

Para que se possa falar em arrependimento posterior devem concorrer os seguintes requisitos:

1- crime cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa: o dispositivo diz respeito à violência, física ou moral, dirigida contra pessoa. Somente é cabível nos crimes em que haja lesão patrimonial direta. Assim, a despeito de posicionamentos em contrário, entende-se como Mirabete que não cabe a aplicação do dispositivo em caso de lesões corporais culposas ou mesmo homicídios culposos. Por outro lado, se a violência é empregada contra a coisa e não contra a pessoa, como, por exemplo, no crime de dano, é possível a aplicação do benefício.

2- reparação do dano ou restituição da coisa: deve ser integral, salvo se a vítima ou os herdeiros desta aceitarem a reparação ou restituição parcial, renunciando ao restante. Por outro lado, somente a reparação ou restituição levada a efeito pelo próprio agente é que autoriza a concessão da redução de pena, haja vista que o que se pretende é uma evolução positiva na vontade do agente, o repensar da conduta delituosa. Há que existir a exteriorização do estado psíquico do agente, ou seja, o próprio arrependimento que identifica a causa de redução de pena. Por outro lado, o ressarcimento feito por terceiro ou parente, desde que autorizado pelo agente, não afasta a concessão do benefício, posto que, demonstrado estará o seu arrependimento.

3- voluntariedade do agente: o arrependimento deve ser voluntário, não necessariamente espontâneo, podendo ocorrer em face de sugestão ou conselho de terceiro.

4- antes do recebimento da denúncia ou da queixa-crime: para que se possa conceder a causa de diminuição de pena, o arrependimento deve se dar até o recebimento da denúncia ou queixa-crime. Caso seja posterior ao recebimento

Page 128: Direito Penal i

da peça inicial, o agente terá direito tão-somente a uma atenuante – art. 65, III, b, do CP.

Contudo, existem hipóteses especiais em que o arrependimento posterior possui outra natureza jurídica e que merecem ser analisadas:

a- peculato : em se tratando de peculato doloso, nada há de diferente. O arrependimento anterior ao recebimento da denúncia ou da queixa é causa de diminuição de pena. Caso seja posterior ao recebimento, tem-se a atenuante genérica. Contudo, em se tratando de peculato culposo (art. 312, § 2º, do CP), o § 3º do referido dispositivo determina que, se a reparação do dano se der antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, estará extinta a punibilidade e, se lhe for posterior, reduz de metade a pena imposta.

b- emissão de cheque sem provisão de fundos : no caso de emissão de cheques sem provisão suficiente de fundos, a reparação do dano até o recebimento da denúncia extingue a punibilidade do agente, nos termos da Súmula 554, do STF, posto que o delito de estelionato exige como pressuposto à sua consumação o efetivo prejuízo da vítima. Desaparecendo este, não se tipifica o delito do art. 171, § 2º, VI, do CP, inexistindo, assim, justa causa para a propositura da ação penal e instauração de inquérito policial, sob pena de configurar-se constrangimento ilegal. Difere, portanto, do arrependimento posterior, pois este instituto exige, para ser aplicado, que o fato praticado tenha enquadramento típico. Contudo, se o cheque for preenchido de forma fraudulenta, crime será de estelionato (art. 171, “caput”, do CP), e a reparação do dano só trará as conseqüências entabuladas no art. 16, do CP.

c- crime contra a ordem tributária : o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive com acessórios, até o recebimento da denúncia também extingue a punibilidade (art. 34, da Lei nº 9.249/95), não havendo que se falar em arrependimento posterior ou em suas conseqüências.

d- crimes de ação penal privada e pública condicionada à representação de competência dos Juizados Especiais: a reparação do dano na audiência preliminar acarreta a extinção da punibilidade, por meio da renúncia ou direito de queixa ou de representação (art. 74, parágrafo único da Lei nº 9.099/95)

Por fim, é de se colocar que se tratando de causa objetiva de diminuição de pena, o arrependimento posterior não se restringe à esfera pessoal de que o realiza, tanto que extingue a obrigação erga omnes. Estende-se, portanto, aos co-autores e partícipes acusados pelo mesmo fato.

Page 129: Direito Penal i

V- CRIME IMPOSSÍVEL (tentativa inidônea, tentativa inadequada ou quase-crime) ___________________

V.1- CONCEITOO art. 17, do CP encerra a figura do chamado crime impossível. Crime

impossível é aquele que, pela ineficácia total do meio empregado ou pela impropriedade absoluta do objeto material, é impossível de se consumar. Diante do conceito, pode-se afirmar que existem duas espécies de crime impossível:

- por ineficácia absoluta do meio empregado;- por absoluta impropriedade do objeto material.

V.2- NATUREZA JURÍDICA

Não se trata o crime impossível de causa de isenção de pena, conforme parece sugerir a redação do art. 17,do CP, mas de verdadeira causa geradora de atipicidade de conduta, posto que não se concebe queira o tipo incriminador descrever como crime uma ação impossível de se realizar. Portanto, o crime impossível é causa de exclusão da própria tipicidade de conduta.

Enquanto na tentativa a consumação deixa de ocorrer pela interferência de causa alheia à vontade do agente, no crime impossível a consumação jamais ocorrerá, e , assim sendo, a ação não se configura como tentativa de crime, que se pretendia cometer, por ausência de tipicidade. Dessa forma, equivoca-se o legislador ao editar: “não é punível a tentativa” como se tratasse de causa de impunidade de um crime tentado configurado. Em síntese, é causa de exclusão de fato típico.

V.3- HIPÓTESES DE CRIME IMPOSSÍVEL

O art. 17, do CP encerra, como já dito, duas hipóteses de crime impossível, a saber:

1- Por ineficácia absoluta do meio: o meio empregado ou o instrumento utilizado para a execução do crime jamais o levará à sua consumação. O meio é inadequado, inidôneo, absolutamente ineficaz para produzir o resultado pretendido pelo agente. É imperioso, entretanto, que a ineficácia do meio seja absoluta, posto que, se a mesma for relativa, haverá tentativa punível. Ex: tentativa de homicídio por envenenamento com emprego de farinha em vez de veneno; tentativa de homicídio servindo-se de um palito de dentes, etc.

2- Por absoluta impropriedade do objeto: ocorre quando a pessoa ou a coisa sobre a qual recai a conduta é absolutamente inidônea para a produção de algum resultado lesivo. É o caso em que não existe objeto matéria sobre o qual possa recair a conduta ou então, pela situação ou condição do objeto torna-se impossível a produção do resultado visado pelo agente. Da mesma forma que no caso anterior, a impropriedade deve ser absoluta, posto que, se for relativa, haverá tentativa punível. Ex: tentar matar um cadáver, manobras abortivas em mulher que não está grávida, etc.

Page 130: Direito Penal i

V.4- PUNIBILIDADE DO CRIME IMPOSSÍVELExistem várias teorias sobre a punibilidade do crime impossível, a saber:a- Teoria subjetiva: o agente deveria ser punido porque revelou sua

vontade de delinqüir. O que seria realmente decisivo seria a intenção do agente. Toda tentativa em si mesma é inidônea, uma vez que não alcança o resultado visado. A inidoneidade, porém, deve ser apreciada não conforme a realidade dos fatos, mas segundo a avaliação do agente no momento da ação. Assim, o agente de um crime impossível deve sofrer a mesma sanção da tentativa.

b- Teoria sintomática: o agente deveria ser punido caso demonstrasse periculosidade. Portanto, o decisivo aqui seria analisar-se a conduta do agente a fim de verificar indícios de sua periculosidade. Mesmo na tentativa inidônea, revelando-se indícios da presença de temibilidade criminal, o agente deveria ser punido.

c- Teoria objetiva: para essa teoria, como não há, no crime impossível, os elementos objetivos da tentativa; e o bem jurídico não correu perigo, não há tentativa e o agente não deve ser punido. O que justifica a punibilidade da tentativa é o perigo objetivo que ela representa para o bem jurídico. E esse perigo só existirá se os meios empregados na tentativa forem adequados à produção do resultado e se o objeto visado apresentar as condições necessárias para que esse resultado se produza. Assim, não havendo idoneidade nem nos meios, nem no objeto, não se pune a ação. Essa teoria divide-se em:

1- Teoria Objetiva Pura: sempre haverá crime impossível, seja a ineficácia e a impropriedade absolutas ou relativas;

2- Teoria Objetiva Temperada: só se fala em crime impossível quando a impropriedade e a ineficácia forem absolutas. Em sendo relativas, haverá tentativa. Esta é a adotada pelo CP.

VI- DELITO PUTATIVO ___________________

O delito putativo ou imaginário é aquele que só existe na cabeça do agente. Este supõe, erroneamente, que está praticando uma conduta típica, quando na verdade o fato não constitui crime. Como o crime só existe na imaginação do agente, esse conceito equivocado não basta para torna-lo punível. Há, na verdade, um erro de proibição às avessas – o agente imagina proibida uma conduta permitida. Ex: é o agente que acredita estar cometendo o crime de sedução (art. 217, do CP) com jovem de 20 anos.

Evidentemente o CP não faz qualquer menção ao delito putativo, posto que seria redundância patética, truísmo flagrante afirmar que “não é crime aquilo que não é crime.”

Fala-se, ainda, no delito putativo por erro de tipo. Nesse caso, o indivíduo quer praticar um crime, mas, devido ao desconhecimento da realidade fática, comete um indiferente penal (mulher que acreditando estar grávida ingere substância abortiva). Costuma-se dizer que nesse caso, o agente é um criminoso incompetente, posto que quer cometer um crime e não consegue. Contudo, a hipótese configura crime impossível, pela impropriedade absoluta do objeto, não havendo que se fazer tal distinção.

Page 131: Direito Penal i

DIREITO PENAL IAllan Ricardo

I- CONCURSO DE PESSOAS ___________________

Normalmente os tipos contidos na Parte Especial do Código Penal referem-se a fatos realizáveis por uma única pessoa. Contudo, o fato punível pode ser obra de um ou vários agentes. Essa reunião de pessoas no cometimento de uma infração penal dá origem ao chamado concursus delinquentium, ou seja, concurso de delinqüentes, concurso de agentes ou co-delinqüência. A cooperação na realização do fato típico pode ocorrer desde a elaboração intelectual até a consumação do delito.

O concurso de pessoas pode ser definido como a ciente e voluntária participação de duas ou mais pessoas na mesma infração penal. Há, na hipótese, convergência de vontades para um fim comum, que é a realização do tipo penal, sendo dispensável que haja acordo prévio entre os indivíduos, bastando que um deles esteja ciente de que participa da conduta de outro para que se esteja diante de um concurso.

I.1- ESPÉCIES DE CONCURSO DE PESSOAS ___________________

É possível se falar em duas espécies de concurso de pessoas, a saber:

a- Concurso necessário: ocorre nos casos de crimes plurissubjetivos, os quais exigem o concurso de pelo menos duas pessoas. Aqui a norma penal incriminadora, no seu preceito primário, reclama, como condição indispensável do tipo, a existência de mais de um autor, de maneira que a conduta não pode ser praticada por uma só pessoa. Trata-se de caso de co-autoria obrigatória, mas a participação stricto sensu pode ou não ocorrer, sendo, portanto, eventual. Ex: arts. 137, 240 e 288, todos do CP.

b- Concurso eventual: refere-se aos crimes unissubjetivos ou monossubjetivos, que podem ser praticados por um ou mais agentes. Quando cometidos por duas pessoas ou mais em concurso, haverá co-autoria ou participação stricto sensu, dependendo da forma como os agentes concorreram para a prática do delito, mas tanto uma como outra podem ou não ocorrer, sendo ambas eventuais. Ex: arts. 121, 129, 155, 157, 171, etc., todos do CP.

O que deve ficar claro é que o chamado concurso necessário, na hipótese dos crimes plurissubjetivos, não oferece as dificuldades a serem nesse tópico. Sendo assim, apenas se tratará da hipótese de concurso de agentes eventual.

I.2- TEORIAS SOBRE O CONCURSO DE PESSOAS ___________________

São várias as teorias a respeito da natureza do concurso de pessoas quando se procura estabelecer se existe na hipótese um só ou vários crimes. Sendo assim, várias teorias procuram explicar o complexo problema da criminalidade coletiva, a saber:

Page 132: Direito Penal i

a- Teoria Pluralista ou Pluralística: para essa teoria cada um dos participantes responde por um delito próprio. Assim, à pluralidade de pessoas corresponde uma pluralidade de crimes. Em outras palavras, essa teoria defende a idéia da existência de uma pluralidade de crimes, de tal modo que cada indivíduo responda por um crime específico. A cada participante corresponde uma conduta própria, um elemento psicológico próprio e um resultado igualmente particular. É tida, desta forma, como uma teoria subjetiva.

b- Teoria Dualista ou Dualística: para essa teoria existem dois crimes, quais sejam, um cometido pelos autores e outro cometido pelos partícipes. Existe no crime uma ação principal, que é a ação do autor do crime, o que executa a ação típica, e ações secundárias, acessórias, que são as realizadas pelos partícipes. Essa teoria consagra, portanto, dois planos de condutas, um principal, a dos autores e co-autores, e um secundário, a dos partícipes.

c- Teoria Monista, Monística ou Unitária: entende essa teoria que todos aqueles que contribuem para a prática do delito cometem o mesmo crime, não havendo distinção quanto ao enquadramento típico entre autor e partícipe. Todos responderiam por um único crime. Assim, todo aquele que concorre de alguma forma para o crime é seu causador na totalidade e responde por ele integralmente. Embora o crime seja praticado por diversas pessoas, permanece uno e indivisível. O crime é resultado da conduta de cada um e de todos, indistintamente. Desta forma, pode-se falar que há unidade de crime e pluralidade de pessoas. É tida, portanto, como uma teoria objetiva.

Essa última teoria foi a teoria adotada pelo CP, em seu art. 29. Logo, todos aqueles que, na qualidade de co-autores ou partícipes, deram a sua contribuição para o resultado típico devem por ele responder, ou seja, as condutas de todos se subsume ao mesmo tipo penal.

I.3- REQUISITOS DO CONCURSO DE PESSOAS ___________________ Para que se aperfeiçoe o concurso de pessoas é indispensável a presença dos seguintes requisitos, a saber:- Pluralidade de condutas: para que haja concurso de pessoas, exigem-se, no

mínimo, duas condutas praticadas por pessoas distintas, quer sejam praticando o verbo-núcleo do tipo (co-autoria), quer sejam praticando um o verbo núcleo do tipo e o outro, condutas acessórias (participação stricto sensu). A participação de cada um e de todos contribui para o desdobramento causal do evento e respondem todos pelo mesmo fato típico em razão da norma de extensão de concurso.

- Relevância causal de cada uma das condutas: se a conduta não tem relevância causal, isto é, não contribui em nada para a eclosão do resultado, não pode ser considerada como integrante do concurso de pessoas. A causalidade é o nexo entre os vários comportamentos dos participantes, formando um só crime. As várias condutas devem constituir procedimentos de contribuição ao delito ou antecedentes causais necessários à sua produção. Assim, nem todo comportamento constitui participação, pois precisa ter eficácia causal, provocando, facilitando ou ao menos estimulando a realização da conduta principal.

Page 133: Direito Penal i

- Liame subjetivo entre os participantes (concurso de vontades): é imprescindível a unidade de desígnios, ou seja, a vontade de todos de contribuir para a produção do resultado, sendo o crime produto de uma cooperação desejada e recíproca. Exige-se, portanto, a consciência de que participam de uma obra comum. A ausência desse elemento psicológico desnatura o concurso eventual de pessoas, transformando-o em condutas isoladas e autônomas, dando ensejo, via de conseqüência a chamada autoria colateral. Somente a adesão voluntária, objetiva (nexo causal) e subjetiva (liame psicológico), à atividade criminosa de outrem, visando à realização do fim comum, cria o vínculo do concurso de pessoas e sujeita os agentes à responsabilidade pelas conseqüências da ação. Por outro lado, é necessária a homogeneidade de elemento subjetivo, não se admitindo participação dolosa em crime culposo e vice-versa.

Outro destaque que há de se fazer é que, embora seja imprescindível que as vontades se encontrem para a produção do resultado, não se exige prévio acordo, bastando apenas que uma vontade adira à outra.

Ainda, o simples conhecimento da realização de uma infração penal ou mesmo a concordância psicológica caracterizam, quando muito, conivência, que não é punível em nosso ordenamento jurídico, a título de participação, se não constituir, pelo menos, alguma forma de contribuição causal, ou, então, constituir, por si mesma, uma infração típica. Tampouco será responsabilizado como partícipe quem, tendo ciência da realização de um delito, não o denuncia às autoridades, salvo se tiver o dever jurídico de fazê-lo.

- Identidade da infração penal para todos: para que o resultado da ação de vários participantes possa ser atribuído a todos, tem que consistir em algo juridicamente unitário. Não se trata, propriamente, de um requisito, mas de conseqüência jurídica em face das outras condições. Tendo sido adotada a teoria unitária ou monista, em regra, todos, co-autores e partícipes, devem responder pelo mesmo crime, ressalvadas as hipóteses de exceções pluralísticas, conforme adiante se verá.

II- AUTORIA ___________________

Uma das questões tormentosas do Direito Penal refere-se ao que se deva entender por autoria. Tal conceito não pode circunscrever-se a quem pratica pessoal e diretamente a figura delituosa, mas deve compreender também quem se serve de outrem como instrumento (autoria mediata). É possível igualmente que mais de uma pessoa pratique a mesma infração penal, ignorando que colabora na ação de outrem (autoria colateral), ou então, consciente e voluntariamente, coopere no empreendimento criminoso, quer praticando atos de execução (co-autoria), quer instigando, induzindo ou auxiliando (participação em stricto sensu) na realização da conduta punível.

Assim, várias teorias se apresentem a fim de definir o que se deva entender por autoria.

1- Teoria ou Conceito Restritivo de autor : segundo essa teoria, autor é quem realiza a conduta típica descrita na lei, isto é, é somente aquele que pratica o verbo-núcleo do tipo (mata, subtrai, falsifica, constrange, ameaça, etc.). Assim, para essa teoria, nem todo aquele que interpõe uma causa realiza

Page 134: Direito Penal i

o tipo penal, posto que a causação não é igual a realização do delito. As espécies de participação, instigação e cumplicidade são, portanto, nessa hipótese, causas de extensão ou de ampliação da punibilidade, haja vista que, por não integrarem a figura típica, constituiriam comportamentos impuníveis.Observe-se que realizar a conduta é objetivamente diferente de favorecer a sua prática. Deduz-se daí, que autoria e participação stricto sensu também devem ser distinguidas através de critérios objetivos.Dessa colocação, afirmava Jescheck, que o conceito restritivo de autor deve ser complementado por uma teoria objetiva de participação, a qual pode assumir dois aspectos distintos, a saber:

a- Teoria Objetivo-formal: tal teoria não nega a importância do elemento causal (característico no concurso de pessoas), mas destaca as características exteriores do agir, isto é, a conformidade da ação com a descrição formal do tipo penal. Essa teoria atém-se à literalidade da descrição legal e define como autor aquele cujo comportamento se amolda ao círculo abrangido pela descrição típica e, como partícipe, aquele que produz qualquer outra contribuição causal do fato.

b- Teoria Objetivo-material: tal teoria parte da premissa quem nem sempre os tipo penais descrevem com clareza e exatidão o injusto da ação (a descrição típica do fato), dificultando, desta forma, a distinção entre autor e partícipe, principalmente nos crimes de resultado. O objetivo desta teoria era suprir os defeitos apresentados pela objetivo-formal, considerando a maior periculosidade que deve caracterizar a conduta do autor em relação a do partícipe; em outras palavras, considerando a maior importância objetiva da contribuição do autor em relação à contribuição do partícipe. Contudo, tal teoria peca por desconsiderar o aspecto subjetivo e a dificuldade prática de distinguir causa e condição ou mesmo de distinguir causa mais ou menos importante, pelo que foi abandonada.

O que se pode sintetizar é que o conceito restritivo de autor, complementado pela teoria formal-objetiva de participação stricto sensu, tem o mérito de fundamentar a distinção entre autor e partícipe na relação com a ação típica (autor realiza o verbo-núcleo do tipo, partícipe realiza condutas acessórias, secundárias, mas sobretudo, extratípicas em relação ao verbo-núcleo do tipo, somente sendo punido em razão da presença de uma norma de extensão, de ampliação ou de reenvio), um critério formal, rigoroso em todas as suas hipóteses de autoria direta.

Contudo, tal conceito, ainda que a ele seja agregada a teoria formal-objetiva da participação, deixa de contemplar as hipóteses de autoria mediata e, eventualmente, casos de co-autoria em que não haja uma contribuição importante.

A despeito das críticas encetadas quanto a essa teoria, foi a mesma adotada pelo CP. Nesse sentido, a lição de Fernando Capez, Mirabete e Damásio de Jesus, embora os autores não desconheçam o posicionamento daqueles que sustentam ter o ordenamento jurídico pátrio ter adotado, após a reforma de 1984, a teoria do domínio final do fato, em razão da adoção da teoria finalista da ação.

2- Teoria ou Conceito Extensivo de autor : tal teoria parte da premissa dogmática da equivalência dos antecedentes. Não distingue autoria

Page 135: Direito Penal i

de participação. Assim, é autor todo aquele que contribui, de alguma forma, para o resultado. Para ela, instigadores e cúmplices são igualmente autores, já que não distingue a importância da contribuição causal de uns e de outros. Em outras palavras, autor é quem dá causa ao resultado. Autor não é apenas aquele que realiza o verbo-núcleo do tipo, mas também quem concorre de qualquer modo para o crime, não importando se tal cooperação é decisiva ou insignificante. Basta que o indivíduo tenha contribuído de alguma forma para a causação do resultado que será considerado autor do delito.

Para essa teoria, o tratamento diferenciado emprestado ao cúmplice ou instigador constitui causa de restrição ou limitação de punibilidade.

Objetivamente não há qualquer distinção entre autor e partícipe, ante a adoção da equivalência dos antecedentes. Essa distinção que a lei reconhece e que está na realidade das coisas deve ser buscada e alcançada através de um critério subjetivo. Assim, liga-se a essa teoria uma nova teoria da participação, a saber:

a- Teoria Subjetiva da participação: essa teoria é um complemento necessário à teoria extensiva. Segundo ela, é autor quem realiza uma contribuição causal do fato, seja qual for seu conteúdo, com vontade de autor, enquanto que o partícipe agiria com vontade de partícipe. De outra maneira, o autor que o fato como “próprio”, age com animus auctoris; o partícipe quer o fato como “alheio”, age com animus socii.

Os inconvenientes da distinção puramente subjetiva entre autor e partícipe são manifestos. A principal e mais contundente crítica que se fez a referida teoria diz respeito a possibilidade de se punir verdadeiros autores do crime como partícipes e, como autores, quem não teve intervenção material no crime. Nesse sentido, vários nazistas (que determinaram a morte de milhões de pessoas) forma condenados como mero partícipes, haja vista que queriam o fato como “alheio”.

Portanto, tal teoria deve, desde logo, ser rechaçada em sua plenitude, dada a possibilidade de, na sua aplicação, obter-se verdadeiras aberrações, como acima demonstrado

3- Teoria do domínio final do fato : também conhecida como teoria objetivo-subjetiva, trata-se de uma elaboração superior às teorias até então conhecidas, admitindo com facilidade a figura do autor mediato, além de possibilitar uma melhor compreensão sobre a co-autoria. Surgiu com o finalismo de Welzel e a sua tese de que, nos crimes dolosos, é autor quem tem o controle final do fato. Segundo seus defensores, nem uma teoria puramente objetiva nem outra essencialmente subjetiva são adequadas para fundamentar a essência da autoria e fazer, ao mesmo tempo, a delimitação correta entre autoria e participação. Parte do conceito restritivo de autor e tem, como pretensão, sintetizar os aspectos objetivos e subjetivos, impondo-se, então como uma teoria objetivo-subjetiva. Embora o domínio final do fato suponha um controle final (aspecto subjetivo), não requer somente a finalidade, mas também uma posição objetiva que determine o efetivo domínio sobre a ação. Não importa se o agente pratica ou não o verbo-núcleo do tipo, posto que o que a lei exige é o controle de todos os atos, desde o início da execução até a produção do resultado. Assim, autor é quem tem o poder de decisão sobre a realização do fato, ou seja, autor é quem domina a realização do fato típico, controlando a continuidade ou a paralisação da ação típica.É não só aquele que executa, mas

Page 136: Direito Penal i

também aquele que se serve de outros, como instrumento, para a execução da infração penal (autoria mediata). O autor tem, assim, o controle subjetivo do fato e atua nesse controle. Por sua vez, será considerado partícipe aquele que não dominar a realização do fato típico, ou seja, aquele que não tem controle sobre a continuidade ou paralisação da ação típica. Observa-se, então, que o autor diferencia-se do partícipe pelo domínio finalista do acontecer; o partícipe, ou bem se limita a colaborar no fato, dominado pelo autor de modo finalista, ou determina a sua realização.

A teoria do domínio final do fato, conforme acima exposta, trás consigo as seguintes conseqüências jurídicas, a saber:

1ª- a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamentam sempre a autoria;

2ª- é autor quem executa o fato utilizando a outrem como instrumento (autoria mediata);

3ª- é autor o co-autor que realiza uma parte necessária do plano global (domínio funcional do fato), embora não seja um ato típico, desde que integre a resolução delitiva comum.

Por essa teoria pode se afirmar que autor não se confunde obrigatoriamente com o executor material do fato. Do mesmo modo, não deixa de ser autor que se serve de outrem, não imputável, para a prática de fato criminoso, porque é ele quem conserva em suas mãos o comando da ação criminosa.

Por fim, para a teoria do domínio final do fato, é possível se falar em três formas de autoria, a saber:

a- Autoria propriamente dita: é o executor, ou seja, aquele que realiza o núcleo da ação típica (verbo-núcleo do tipo);

b- Autoria intelectual: quem planeja toda a ação delituosa sem, no entanto, realizá-la materialmente (não pratica o verbo-núcleo do tipo, mas idealiza e planeja a execução, que fica a cargo de outrem). É quem, sem executar diretamente a conduta típica, possui o domínio dela, porque planificou e organizou sua realização, podendo, por conseguinte, decidir sobre sua interrupção.

c- Autoria mediata: o agente, conhecido como sujeito de trás, serve-se de outra pessoa para, em seu lugar, como se fosse um instrumento de sua atuação, executar o verbo-núcleo do tipo, ou seja, a ação principal. É aquele que de forma consciente e deliberada faz atuar por ele outro cuja conduta não reúne todos os elementos para ser punível.

II.1- AUTORIA MEDIATA OU INDIRETA___________________

A autoria mediata define a realização do tipo com utilização de terceiro como instrumento, em que o fato típico aparece como obra do autor mediato, e o instrumento atua em posição subordinada ao poder do autor mediato. Em outras palavras, a autoria mediata ocorre da hipótese de alguém servir-se de outra pessoa que não reúne condições de avaliar o que está fazendo ou de determinar-se de acordo com esta avaliação, para que, em seu lugar, realize o crime.

Assim, todos os pressupostos necessários à punibilidade devem encontrar-se na pessoa do “homem de trás”, no autor mediato, e não no executor, autor imediato.

Page 137: Direito Penal i

Normalmente, a autoria mediata ocorre nas hipóteses de erro de tipo escusável determinado por terceiro (art. 20, § 2º, do CP), coação mora irresistível e obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal (art. 22, do CP); ausência de capacidade penal – imputabilidade em razão da idade (art. 27,do CP), por doença mental (art. 26, caput, do CP) ou por embriaguez acidental completa (art. 28, § 1º, do CP).

Desta forma, é correto se afirmar que não é possível se falar em autoria mediata nas seguintes hipóteses:

a- se o terceiro não é instrumento, mas autor plenamente responsável;b- nos crimes de mão própria, que exigem a realização corporal da ação

típica pelo próprio autor;c- nos crimes próprios, onde se exige do autor qualidades próprias, salvo se

o autor mediato as possuir;d- nos crimes culposos, haja vista a ausência de vontade construtora do

acontecimento e, portanto, de domínio final do fato.

II.2- CO-AUTORIA ___________________

Co-autoria é a realização conjunta, por mais de uma pessoa, de uma mesma infração penal. É o cometimento comunitário de um fato punível mediante uma atuação conjunta consciente e querida. Assim, ocorre co-autoria quando dois ou mais agentes, conjuntamente, realizam o verbo-núcleo do tipo. Por isso é também chamada de autoria coletiva.

Welzel lembra que, a co-autoria é, em última análise, a própria autoria. Funda-se ela sobre o princípio da divisão de trabalho; cada autor colabora com sua parte no fato, a parte dos demais, na totalidade do delito e, por isso, responde pelo todo.

Embora, a princípio, o instituto possa se mostrar claro, tal constatação não é verdadeira.

Em primeiro lugar, não há necessidade de acordo prévio entre os agentes do crime, bastando a consciência de cooperar na ação comum. Essa consciência de estar contribuindo para a realização comum de uma infração penal constitui o liame psicológico que une a ação de todos, dando o caráter de crime único. A resolução comum de executar o fato é o vínculo que converte as diferentes partes em um todo único.

Por outro lado, se é certo que todos participam de um único crime em razão do liame psicológico que os une, não é preciso que todos realizem a mesma conduta. A contribuição dos co-autores no fato criminoso não necessita ser materialmente a mesma, podendo haver divisão dos atos executivos. Basta que cada um contribua efetivamente na realização da figura típica e que essa contribuição possa ser considerada importante no aperfeiçoamento do crime.

Outro destaque que há que se fazer é que, na co-autoria não existe relação de acessoriedade, mas a imediata imputação recíproca, visto que cada um dos agentes desempenha uma função fundamental na consecução do objetivo comum delituoso. O que de fato importa, segundo a concepção finalista, é que na co-autoria o domínio final do fato pertença a todos os agentes envolvidos na empreitada delituosa.

Assim, para se falar em co-autoria, podem ser elencados os seguintes requisitos, sem os quais a mesma não se aperfeiçoa:

1- prática de um único crime;2- presença de duas ou mais pessoas;3- liame psicológico entre os vários agentes;4- divisão de trabalho entre os agentes;5- domínio final do fato por todos os envolvidos.

Page 138: Direito Penal i

II.3- AUTORIA COLATERAL___________________

Há autoria colateral quando duas ou mais pessoas, ignorando uma a contribuição da outra, realizam condutas convergentes objetivando a execução da mesma infração penal. É o agir conjunto de vários agentes, sem reciprocidade consensual no empreendimento criminoso que identifica a autoria colateral.

Assim, o elemento caracterizador da autoria colateral é a ausência do liame psicológico (vínculo subjetivo) entre os agentes. Nessa hipótese, não é a adesão à resolução criminosa comum, que não existe, mas o dolo dos participantes, individualmente considerado, que estabelece os limites da responsabilidade penal de cada um.

Observe-se o seguinte exemplo: se dois indivíduos, sem saber um do outro, colocam-se de tocaia e quando a vítima passa desferem tiros, ao mesmo tempo, matando-a, cada um responderá, individualmente, pelo crime cometido. Se houvesse o liame subjetivo, ambos responderiam como co-autores de homicídio qualificado. Havendo co-autoria é indiferente saber qual dos dois disparou o tiro fatal, pois ambos responderão igualmente pelo delito consumado.

Entretanto, na autoria colateral é indispensável se precisar quem produziu o quê. Imagine-se que apenas o tiro de um dos agentes produziu a morte, sendo que o outro apenas alcançou superficialmente a vítima. Nesse caso, aquele que desferiu o tiro fatal haverá de responder pelo crime consumado, enquanto que o outro haverá de responder por tentativa de homicídio qualificado. Isso ocorre ante a falta de unidade de desígnio, cada qual respondendo pelo crime que cometeu, ou seja, homicídio qualificado consumado e tentativa de homicídio qualificado.

II.4- AUTORIA INCERTA___________________

Ocorre quando, na autoria colateral, não se pode precisar que foi o real causador do resultado. Servindo-se do exemplo acima, imagine-se a hipótese em que não é possível de identificar qual dos agentes efetuou o disparo fatal.

Sabe-se que ambos realizaram a conduta, contudo, não se pode precisar com exatidão a quem deva ser imputado o resultado letal. Em outras palavras, sabe-se quem executou, mas ignora-se quem produziu o resultado.

Nessa hipótese é impossível que ambos respondam por homicídio qualificado consumado, haja vista que um deles ficou apenas na tentativa; absolvê-los também é inviável, porque ambos participaram de um crime de autoria conhecida e, um deles, alcançou o resultado pretendido.

A solução, diante desta vexata quaestio, é aplicar o disposto no art. 14, II, do CP aos dois agentes, isto é, ambos devem responder por tentativa de homicídio qualificado, abstraindo-se o resultado, cuja autoria é incerta.

Aplica-se no caso, o princípio do in dubio pro reo.Por outro lado, não há que se confundir autoria incerta com autoria ignorada

ou desconhecida. Nesta última, não se sabe quem é o autor do delito; na primeira sabe-se quem praticou a conduta delitiva, somente não se pode precisar a quem o resultado deve ser atribuído.

Page 139: Direito Penal i

III- PARTICIPAÇÃO STRICTO SENSU___________________

Embora o CP não defina o que se deva entender por participação, é possível reconhecer-se, doutrinariamente, a distinção ontológica que está, não apenas na lei, mas na situação fenomenológica da co-autoria e da participação stricto sensu.

A participação em sentido estrito, como espécie do gênero concurso de pessoas, é a intervenção em um fato alheio, o que pressupõe a existência de um autor principal. De fato, a participação depende da existência de um fato principal doloso, assim como a parte depende do todo.

Observe-se que o partícipe não pratica a conduta descrita no verbo-núcleo do tipo penal, mas realiza uma atividade secundária, acessória que contribui, estimula ou favorece a execução da conduta principal proibida. O partícipe não realiza uma atividade propriamente executiva em relação ao crime que se pratica.

O que se verifica na participação em sentido estrito é uma contribuição causal, embora não totalmente indispensável, ao delito e também a vontade de cooperar na conduta do autor.

Em síntese, dá-se a participação em sentido estrito quando o sujeito, não praticando atos executórios do crime (verbo-núcleo do tipo), concorre de qualquer modo para a sua realização. O partícipe não realiza a conduta descrita no preceito primário da norma penal incriminadora, mas realiza uma atividade que contribui para a formação do delito.

III.1- ESPÉCIES DE PARTICIPAÇÃO STRICTO SENSU___________________

A participação pode apresentar-se sob várias formas: instigação, determinação, chefia, organização, ajuste, cumplicidade etc. A doutrina, contudo, considera duas espécies de participação, a saber:

a- Instigação e Induzimento (participação moral): ocorre instigação quando o partícipe atua sobre a vontade do autor. Instigar significa animar, estimular, reforçar uma idéia preexistente. O instigador limita-se a reforçar a resolução criminosa do autor, não tomando, contudo, parte na execução do delito ou no domínio final do fato. No induzimento, o partícipe toma a iniciativa intelectual, fazendo surgir no pensamento do autor uma idéia até então inexistente. Induzir significa suscitar uma idéia. O que de fato interessa é que, quer se trate de instigação, quer se trate de induzimento, o partícipe age sobre a vontade do autor, ora provocando para que surja nele a vontade de cometer o crime, ora estimulando a idéia já existente, ou seja, o partícipe presta uma contribuição moral para a prática do crime.

b- Cumplicidade (participação material): é a participação material, em que o partícipe exterioriza a sua contribuição através de um comportamento, de um auxílio. Assim, será partícipe, na modalidade de cumplicidade, aquele que contribui para o crime prestando auxílio ao autor, exteriorizando-se a conduta por um comportamento ativo. Contudo, nada impede que a cumplicidade se dê mediante um comportamento omissivo, quando o partícipe tem o dever jurídico de agir,

Page 140: Direito Penal i

como na hipótese do empregado que não tranca o cofre para que seja facilitada a ação do autor do furto com o qual colabora o partícipe. A cumplicidade tem de favorecer (objetivamente) o fato principal e este favorecimento ser querido (subjetivamente) pelo cúmplice, para o qual basta o dolo eventual. Em síntese, na cumplicidade o partícipe contribui materialmente para a prática do crime.

Importa, ainda, saber que, em quaisquer das modalidades de participação

devem estar presentes dois requisitos, sem os quais a mesma não se verifica: a) eficácia causal e, b) consciência na participação na conduta de terceiro. Não basta realizar a atividade de partícipe se esta não influir na atividade final do autor. Não tem relevância a participação se o crime não for, ao menos, tentado. Por outro lado, é indispensável saber que coopera na ação delitiva de outrem, mesmo que o autor desconheça ou até recuse a cooperação. O partícipe precisa ter consciência de participar na ação principal e no resultado.

III.2- FUNDAMENTOS DA PUNIBILIDADE DA PARTICIPAÇÃO STRICTO SENSU___________________ Duas teorias procuram explicar o fundamento da punibilidade da participação, que, em si mesma, poderia constituir uma figura atípica.

a- Teoria da participação na culpabilidade: segundo essa teoria o partícipe é punido pela gravidade da influência que exerce sobre o autor, convertendo-o em delinqüente ou, no mínimo, contribuindo para tanto. Para essa teoria o partícipe age corrompendo o autor, conduzindo-o a um conflito com a sociedade, tornando-o culpável e merecedor de pena.

Modernamente, contudo, alguns argumentos afastam de forma decisiva a aplicação da referida teoria. Primeiramente, a culpabilidade é uma questão pessoal de cada participante, independe da dos demais. O fato de qualquer dos participantes ser inculpável só diz respeito a ele. Em segundo lugar, o reconhecimento da acessoriedade limitada, torna desnecessário o exame da importância da participação na culpabilidade do autor. Portanto, tal teoria não é adotada.

b- Teoria do favorecimento ou da causação: o fundamento da punição do partícipe reside no fato de ter favorecido ou induzido o autor a praticar o delito. O agente é punível não porque colaborou na ação de outrem, mas porque, com a sua ação ou omissão, contribuiu para que o crime fosse cometido. O desvalor da participação no fato está em causar ou favorecer a lesão não justificada de um bem jurídico tutelado por parte do autor. É indiferente que o autor aja ou não culpavelmente. Para essa teoria a vontade do partícipe deve dirigir-se à execução do fato principal. Deixa claro, entretanto, que o partícipe não viola por si mesmo a norma típica, senão que o seu injusto consiste em colaborar na violação da norma por parte do autor. O injusto do fato do partícipe dependerá, via de conseqüência, do injusto do fato principal. É a teoria adotada.

Page 141: Direito Penal i

III.3- NATUREZA JURÍDICA DA PARTICIPAÇÃO STRICTO SENSU___________________

A pergunta que deve ser feita é a seguinte: a participação em sentido estrito se constitui em uma conduta acessória de outra principal?

Duas teorias procuram explicar ou responder a questão, a saber:

a- Teoria Causal: tal teoria é criação de Von Buri. Estabelece que não há diferença entre agentes principais e secundários, sendo verdadeiramente unitária. Parte do princípio da equivalência das condições antecedentes. Todo resultado é conseqüência de um conjunto de causas necessárias para a sua produção. Se todos os co-delinqüentes são causas do crime, é evidente que o delito é conseqüência da atividade de cada um e de todos, sem distinção objetiva. Não se pode fazer distinção entre autores e partícipes, entre o que realiza um delito e o que participa de um delito alheio. Para o partidários desta teoria fica afastada a distinção entre delinqüente principal e acessório, pois, no caso concreto, não pode ser concebida uma atividade do autor independente da atividae dos partícipes. Afirmam que não se cuida de uma relação pessoal, como ocorre na teoria acessória, mas de uma relação real, em que o crime, como conseqüência de uma atividade comum, é um fato único e, por isso, comum a todos e a cada um dos agentes.

b- Teoria da Acessoriedade: partindo-se do fundamento da punibilidade do partícipe chega-se à conclusão natural de que a participação em sentido estrito é uma conduta acessória, secundária, que adere a outra principal. A participação somente adquire relevância jurídica quando estiver unida a um fato principal. A participação somente se reveste de tipicidade através de uma norma de extensão reguladora da co-delinqüência. Diante dessas colocações, vários posicionamentos procuraram explicar a natureza jurídica da participação, a saber:

1- Teoria da Hiperacessoriedade : essa teoria exige que o fato principal seja típico, ilícito, culpável e que em relação ao partícipe concorram ainda as circunstâncias de agravação e atenuação da pena que existem em relação ao autor principal. Tal teoria não pode ser aceita justamente pela exigência de no fato do partícipe concorrerem inclusive as causas de agravação e atenuação existentes em relação ao autor do fato.

2- Teoria da Acessoriedade extremada ou extrema : para essa teoria o comportamento principal deve ser típico, ilícito e culpável, excetuando-se apenas as circunstâncias agravantes e atenuantes da pena. Assim, se o autor for inimputável ou incidir em erro de proibição ou, por qualquer razão, for inculpável, o partícipe também o será. Assim, a acessoriedade da participação seria absoluta: estaria condicionada à punibilidade da ação principal.

3- Teoria da Acessoriedade limitada : para essa teoria exige-se que a conduta principal seja típica e ilícita. Isso quer dizer que a participação é

Page 142: Direito Penal i

acessória da ação principal, de um lado, mas que também depende desta até certo ponto. Não é necessário que o agente seja culpável. É suficiente que sua ação seja antijurídica, isto é, contrária ao direito, sem necessidade de ser culpável. O fato é comum, mas a culpabilidade é individual. A admissibilidade e a punibilidade da participação, como tal, dependem do caráter objetivamente antijurídico da ação do autor principal. Essa é a teoria adotada pelo nosso ordenamento jurídico.

4- Teoria da Acessoriedade mínima : para essa teoria, a punibilidade da participação ficaria condicionada ao fato da ação principal ser típica. Assim, basta que o partícipe concorra para a prática de um fato típico, pouco importando que o mesmo não seja ilícito. Isso equivale a dizer que uma ação justificada para o autor (excludente de ilicitude) constitui crime para o partícipe. Em outras palavras, aquele que induzir o agente a agir em legítima defesa responderá pelo crime, enquanto que o executor, autor direto, será absolvido pela causa de justificação.

III.4- PARTICIPAÇÃO DE PARTICIPAÇÃO E PARTICIPAÇÃO SUCESSIVA___________________

Questão que merece atenção é a possibilidade de se falar em participação de participação e participação sucessiva.

Por participação de participação entende-se as hipóteses onde ocorre uma conduta acessória de outra conduta acessória. É o induzimento de induzimento, a instigação de instigação. Ex: A induz B a induzir C a matar D. É punível desde que possua relevância causal.

Por outro lado, por participação sucessiva entende-se a hipótese onde o mesmo partícipe concorre para a conduta principal de mais de uma forma. Assim, em primeiro lugar auxilia ou induz, em seguida instiga e assim por diante. Na verdade não há que se falar em auxílio de auxílio (participação de participação), mas numa relação direta entre partícipe e autor, pela qual o primeiro concorre de mais de uma maneira.

III.5- PARTICIPAÇÃO STRICTO SENSU IMPUNÍVEL___________________

Como observado, a participação está condicionada a dois requisitos fundamentais: eficácia causal e consciência de participar na ação comum. De outro lado, a regra é de que o crime não será punido se não foi ao menos tentado. A participação em um crime que não chegou a iniciar não tem eficácia causal, e sem essa eficácia não há que se falar em participação criminosa. Nessa circunstâncias, como atividade acessória que é, em qualquer de sua formas, não será punível.

Por outro lado, a tentativa de participação é impunível por duas razões: a) porque a participação só constitui periculosidade criminal quando leva a um fato principal real; b) porque punir a simples tentativa de participação – principalmente em caso de cumplicidade – evocaria um verdadeiro Direito Penal de ânimo.

Da mesma forma, não é punível a participação posterior à consumação. Considerando a necessidade da relevância causal da conduta do participante, somente poderá ser considerado como tal o agente cuja conduta contribuir para a produção do resultado. Desse modo, o fato que constitui a co-autoria ou a participação em sentido

Page 143: Direito Penal i

estrito deve ser realizado antes ou durante o delito, nunca depois da consumação. Se posterior não será considerado concurso de pessoas, mas crime autônomo.

III.6- PUNIBILIDADE NA PARTICIPAÇÃO STRICTO SENSU___________________

O partícipe não pratica a conduta descrita no preceito primário da norma penal incriminadora, mas realiza uma atividade secundária que contribui, estimula ou favorece a execução da conduta proibida. Observa-se então que o partícipe não realiza atividade propriamente executiva, pelo que, a princípio, as condutas dos partícipes seriam impunes, posto que as prescrições da Parte Especial do CP não abrangem o comportamento do partícipe.

A fim de que não se tenha tal impunidade, faz-se necessário utilizar de uma norma de extensão, de ampliação ou de reenvio. Constata-se, portanto, que a participação em sentido estrito é traz consigo uma adequação típica de subordinação mediata ou indireta.

Com efeito, para que o partícipe responda pelo resultado delituoso é necessário que sua conduta seja alcançada pelo tipo penal (que não a prevê) através de uma norma ampliativa. Para tanto, o legislador estabeleceu o disposto no art. 29, do CP.

No caso da participação em sentido estrito inocorre correspondência direta entre a conduta e o tipo penal, posto que o partícipe não realiza o verbo-núcleo do tipo. Assim, a norma do art. 29, do CP funciona como uma “ponte”, ligando a conduta do partícipe ao modelo legal. Trata-se então, como já dito, de uma norma de extensão ou de ampliação pessoal e espacial. Espacial porque opera-se de uma pessoa (autor) para outra (partícipe). Espacial porque amplia-se para alcançar o partícipe.

Assim, para que se possa falar na punibilidade do partícipe é indispensável a regra do art. 29, do CP, por tratar-se de uma norma de ampliação pessoal e espacial, sem a qual, a participação em sentido estrito seria impunível.

III.7- PARTICIPAÇÃO DE MENOR IMPORTÂNCIA___________________

O art. 29, § 1º, do CP estabelece que se a participação for de menor importância a pena poderá ser diminuída de 1/6 a 1/3.

Por óbvio que a referida regra somente se aplica ao partícipe e não ao co-autor. Ainda que a participação do co-autor tenha sido pequena, terá ele contribuído diretamente na execução propriamente do crime. A sua culpabilidade é naturalmente superior à de um simples partícipe, e será avaliada conforme dispõe o art. 29, caput, do CP.

Alguns autores defendem a idéia de que a redução prevista no § 1º é facultativa, pois o juiz poderá constatar uma intensidade de vontade do partícipe igual à dos demais intervenientes. Outros entendem que a faculdade resume-se ao quantum da redução e não quanto a ela própria. Reconhecia a participação de menor importância, a redução se impõe, sendo facultado ao juiz tão somente reduzi-la em maior ou menor grau, se constatar a maior ou menor intensidade volitiva do partícipe, se constatar a maior ou menor culpabilidade deste.

Page 144: Direito Penal i

III.8- COOPERAÇÃO DOLOSAMENTE DISTINTA (DESVIO SUBJETIVO DE CONDUTA)___________________

O chamado desvio subjetivo de conduta ocorre quando a conduta executada difere daquela idealizada a que aderira o partícipe, isto é, o conteúdo do elemento subjetivo do partícipe é diferente do crime praticado pelo autor.

O art. 29, § 2º, do CP estabelece a regra a ser aplicada diante da hipótese de cooperação dolosamente distinta.

A regra da disposição em exame pretende ter aplicação a todos os casos em que o partícipe quis cooperar na realização de delito menos grave. O concorrente deverá responder de acordo com o que quis, segundo o seu dolo, e não de acordo com o dolo do autor.

III.9- POSSIBILIDADE DE PARTICIPAÇÃO LATO SENSU EM CRIMES CULPOSOS E CRIME OMISSIVOS___________________

Questão interessante é saber se os crimes culposos e omissivos admitem participação lato sensu (co-autoria e participação stricto sensu).

Em relação aos crimes culposos, a doutrina alemão não admite co-autoria, afirmando que qualquer contribuição na causa produtora do resultado não querido caracteriza, em si, autoria. Quando houver a cooperação imprudente de vários autores, a contribuição de cada um deve ser avaliada separadamente, pois cada um será autor acessório. Tal concepção decorre do fato da doutrina alemã adotar a teoria do domínio final do fato.

Em relação à participação em sentido estrito, a doutrina alemã entende que a mesma somente é possível em crime dolosos.

Por outro lado, a doutrina espanhola admite tanto a co-autoria quanto a participação em sentido estrito em crimes culposos. O comum acordo, impossível quando ao resultado, é perfeitamente possível na conduta imprudente, que, de regra, é voluntária.

A doutrina brasileira, por sua vez, à unanimidade, admite a co-autoria em crime culposo, mas rechaça a possibilidade da participação em sentido estrito. Pode existir um vínculo subjetivo na realização da conduta, que é voluntária, inexistindo, contudo, tal vínculo em relação ao resultado, que não é desejado. Os que cooperam na causa, isto é, na falta do dever de cuidado objetivo, agindo sem a atenção devida, são co-autores.

No que diz respeito ao crimes omissivos, entende-se impossível a co-autoria e possível a participação em sentido estrito. Observe-se que se o agente tem o dever de agir e não age não será co-autor daquele que deixou de cumprir o seu dever, mas autor de crime autônomo.

Já em relação à participação em sentido estrito, nada impede que o agente instigue, ou induza ou mesmo, auxilie materialmente o autor a não agir quando tinha obrigação legal de fazê-lo.

Page 145: Direito Penal i

III.10- COMUNICABILIDADE DAS CIRCUNSTÂNCIAS, CONDIÇÕES E ELEMENTARES___________________

A primeira diferenciação a ser feita é quanto ao que se deve entender sobre circunstâncias, condições e elementares.

Circunstâncias são dados, fatos, elementos ou peculiaridades que apenas circundam o fato principal. Não integram a figura típica, podendo contribuir, contudo, para aumentar ou diminuir a sua gravidade. Pode ser:

a- Objetivas: são as que dizem respeito ao fato objetivamente considerado, à qualidade e condições da vítima, ao tempo, lugar, modo e meios de execução do crime.

b- Subjetivas: são as que se referem ao agente, às suas qualidades, estado, parentesco, motivos do crime, etc.

Condições de caráter pessoal são as relações que o agente tem com o mundo exterior, com outros seres, com estado de pessoa, de parentesco, etc.

Elementares do crime são dados, fatos, elementos e condições que integram a figura típica. É todo componente essencial da figura típica, sem o qual esta desaparece ou se transforma. Certas peculiaridades que normalmente constituiriam circunstâncias ou condições podem transformar-se em elementos do tipo penal e, nesses casos, deixarem de apenas circundar o tipo para integrá-lo.

O art. 30, do CP determina que as circunstâncias e condições de caráter pessoal não se comunicam, salvo quando elementares do crime. Por serem pessoais, dizem respeito exclusivamente ao agente que as tem como atributo. Cada agente responderá de acordo com suas circunstâncias e condições pessoais.

O CP, ao determinar que as circunstâncias e condições pessoais não se comunicam, a contrario sensu, determina que as de caráter objetivo se comunicam.

A verdade é que, pode-se resumir a comunicabilidade ou não das circunstâncias, condições e elementares, em duas regras básicas:

1ª- as circunstâncias e condições de caráter pessoal não se comunicam entre co-autores e partícipes, por expressa determinação legal;

2ª- as circunstâncias objetivas e as elementares do tipo (sejam elas objetivas ou subjetivas) só se comunicam se entrarem na esfera de conhecimento dos participantes.

Page 146: Direito Penal i