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1 Os objetivos políticos da Defesa brasileira nos dois governos Lula da Silva (2003-2010) O excerto selecionado para iniciar o artigo resume brevemente a ideia que se pretende passar ao abordar a temática de objetivos políticos. Após o grande volume de perdas humanas durante a I Grande Guerra, os estadistas questionavam-se como livrar a humanidade do flagelo da guerra. A Liga das Nações surgiu como uma tentativa de mitigar a guerra e seus efeitos na sociedade internacional. Dentre os esforços empreendidos pelo organismo, a troca de pensamentos entre intelectuais de renome foi um deles. No caso, o físico Albert Einstein questionou o psicólogo Sigmund Freud sobre o meio possível para atingir esse objetivo. O tom da resposta de Freud parte da relação proposta pelo físico entre direito e poder. Especialmente, o psicólogo faz um retrospecto da humanidade para demonstrar que a busca de impor a sua vontade sobre o outro perfez a história das comunidades. O binômio de Freud diferia daquele de Einstein. O psicólogo entendia que não era o poder o par dicotômico do direito, mas sim a violência. Em oposição à noção difundida nas sociedades atuais, o direito teria se desenvolvido a partir da violência e vice-versa. É interessante notar que pensadores que não se diziam politólogos possuíam visões muito apuradas dos processos que ocorriam. A visão freudiana aproxima-se do que o Carl von Clausewitz ditou sobre o tema menos de um século antes. Em sua definição, a guerra seria um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade. A violência física seria o meio. O fim visado seria a submissão da vontade, o abandono das resistências 1 . Portanto, como Freud, Clausewitz aponta o papel da violência na tentativa de se impor à vontade. Nesse processo, há duas ou mais vontades vivas que combatem em diversos atos, em golpes de duração variada com resultados diferentes. Daí a dificuldade de se elaborar teorias absolutas sobre problemas humanos. A imposição da vontade dita por Clausewitz e Freud representaria o objetivo político. Do ponto de vista da teoria, independe qual é essa orientação inicial. Cabe apenas que metas no tabuleiro, nacional ou internacional, modulem o emprego, os meios e a 1 CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 7-8. “A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo uma ou outra facção tinha de ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido pelo desmantelamento de sua força.” Sigmund Freud

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Os objetivos políticos da Defesa brasileira nos dois governos Lula da Silva (2003-2010)

O excerto selecionado para iniciar o artigo resume brevemente a ideia que se pretende passar

ao abordar a temática de objetivos políticos. Após o grande volume de perdas humanas durante a

I Grande Guerra, os estadistas questionavam-se como livrar a humanidade do flagelo da guerra.

A Liga das Nações surgiu como uma tentativa de mitigar a guerra e seus efeitos na sociedade

internacional. Dentre os esforços empreendidos pelo organismo, a troca de pensamentos entre

intelectuais de renome foi um deles. No caso, o físico Albert Einstein questionou o psicólogo

Sigmund Freud sobre o meio possível para atingir esse objetivo.

O tom da resposta de Freud parte da relação proposta pelo físico entre direito e poder.

Especialmente, o psicólogo faz um retrospecto da humanidade para demonstrar que a busca de

impor a sua vontade sobre o outro perfez a história das comunidades. O binômio de Freud diferia

daquele de Einstein. O psicólogo entendia que não era o poder o par dicotômico do direito, mas

sim a violência. Em oposição à noção difundida nas sociedades atuais, o direito teria se

desenvolvido a partir da violência e vice-versa.

É interessante notar que pensadores que não se diziam politólogos possuíam visões muito

apuradas dos processos que ocorriam. A visão freudiana aproxima-se do que o Carl von

Clausewitz ditou sobre o tema menos de um século antes. Em sua definição, a guerra seria um ato

de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade. A violência física

seria o meio. O fim visado seria a submissão da vontade, o abandono das resistências1. Portanto,

como Freud, Clausewitz aponta o papel da violência na tentativa de se impor à vontade.

Nesse processo, há duas ou mais vontades vivas que combatem em diversos atos, em golpes

de duração variada com resultados diferentes. Daí a dificuldade de se elaborar teorias absolutas

sobre problemas humanos. A imposição da vontade dita por Clausewitz e Freud representaria o

objetivo político. Do ponto de vista da teoria, independe qual é essa orientação inicial. Cabe

apenas que metas no tabuleiro, nacional ou internacional, modulem o emprego, os meios e a

                                                                                                               1 CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 7-8.

“A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo uma ou outra facção tinha de ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido pelo desmantelamento de sua força.”

Sigmund Freud

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duração que os combatentes empregarão na guerra. Dessa base, desenvolve-se a concepção

clássica de Clausewitz de que “a guerra não é somente um ato político, mas um verdadeiro

instrumento político, uma continuação das relações políticas, uma realização destas por outros

meios”2.

Na visão clausewitiziana, como o desígnio político é o móbil inicial da guerra, há

continuidade de sua influência, adaptando-se às condições e aos meios disponíveis. Da mesma

forma que a “a política introduzir-se-á inteiramente no ato de guerra, exercendo uma influência

constante sobre ela na medida em que a natureza das forças explosivas nela empenhadas assim o

permitam”3. Compreendendo-se o papel da política e dos objetivos políticos na determinação dos

meios militares empregados, busca-se transferir essa noção para as relações internacionais. A

Defesa representaria o correspondente da guerra no conceito clausewitziano e, portanto, estaria a

serviço dos objetivos externos do Estado.

Contudo, no Brasil, ao longo de sua história, não houve necessariamente essa

correspondência entre instrumento militar e objetivos de inserção internacional brasileira. O

histórico de autonomia das forças armadas e da diplomacia brasileira ao longo dos anos tenderam

a distanciar esses dois instrumentos de política externa brasileiros. Por um lado, os militares

detinham um histórico de atuação interna e intervenção na política, raramente agindo em missões

tradicionais externas. A diplomacia, por sua vez, foi adquirindo elevado grau de

institucionalização, desenvolvendo objetivos próprios na ação externa. E os governantes pouco

ocupavam-se de traçar linhas mestras para a política externa do país.

Cabe, portanto, questionar-se sobre a forma como a Defesa coloca-se na política externa

brasileira. Principalmente, nos anos 2000, um período de grande produção documental e

reformulação da estrutura da Defesa. Por isso, pela análise dos principais documentos produzidos

questiona-se se há a delimitações de objetivos políticos claros que o Brasil busca atingir com sua

Defesa na política internacional? Não pretende-se esgotar o assunto ou realizar uma análise da

política externa do Brasil a partir das ações tomadas. Entendendo a Defesa como parte da política

externa, logra-se apenas analisar a forma como o país delimitou que agiria para “impor sua

vontade” internacionalmente. Dispõe-se apenas, neste artigo, ao exercício intelectual de aplicar

os conceitos clausewitzianos ao caso brasileiro.

                                                                                                               2 CLAUSEWITZ, Carl von. Op. Cit, p. 27. 3 Ibidem.  

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O texto está estruturado em três partes. Em um primeiro momento, busca-se desenvolver o

arcabouço teórico, visando clarificar o entendimento de objetivos políticos. No segundo,

contextualizar o tema da Defesa no Brasil. E, no terceiro, realizar a análise dos objetivos políticos

da Política de Defesa Nacional e da Estratégia Nacional de Defesa, buscando articulá-los e ver

até que ponto convergem.

1. Entre a guerra e Defesa: Objetivos Políticos Internacionais e Política Externa

Nessa primeira seção, pretende-se tecer comentários teóricos sobre os objetivos políticos

para, nas próximas, possa-se prosseguir com a análise do caso brasileiro.

A guerra é tema de grandes reflexões ao longo da história. Para muitos pensadores, ela

possuiria sua lógica e gramática própria, e, portanto, deveria ser pensada pelos generais e

estrategistas. Os grandes filósofos da guerra, contudo, possuíam uma visão radicalmente oposta.

Talvez o exemplo de Carl von Clausewitz seja o mais latente. Para o autor, a guerra é a

continuação das relações políticas por outros meios. O conceito de política significaria “a

inteligência do Estado personificado”4. Ou seja, seu escopo relaciona-se à rason d’etat, aos

cálculos e objetivos estatais. Em consequência, as relações políticas seriam os contatos entre

outras inteligências, com objetivos similares ou não.

A partir dessa conceituação é possível compreender o puro conceito de guerra, o

fundamento filosófico ideal – portanto, inexistente na realidade – que sustenta a ação. Define-a

como “[...] um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”. A

vontade é o fim, enquanto a guerra é somente um meio. No puro conceito, como em um duelo a

grande escala, cujo objetivo é desarmar o inimigo. Contudo, o adversário consiste também em

uma força viva, e a resistência que apresentará será função dos meios que possui e da rigidez de

sua vontade. A consequência é que não haverá limites ao emprego da força, tanto de um lado

quanto de outro, produzindo uma escalada sem limites da violência.

Porém, como o autor aponta, o puro conceito não se aplica na realidade. É impossível

mobilizar todos os recursos de uma única vez, em um único golpe e como um ato filosoficamente

isolado. Portanto, a escalada do conflito à noção pura torna-se impossível. Essa conceituação não

tira da guerra sua visão ferramental, ao contrário, fortalece-a. O objetivo ainda será a imposição

da vontade e estará, portanto, no campo das relações políticas. Contudo, o desígnio político do

                                                                                                               4 Clausewitz, Carl von. Op. cit., p. 29.

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Estado não é pétreo e imutável. Possui característica variável. Por isso, há diversos tipos de

guerra, variando de acordo com os objetivos visados no campo das relações políticas.

Da mesma forma, como há limitações ao puro conceito da guerra, observa-se também

limitações entre o projeto da guerra e sua aplicabilidade. Segundo o autor:

“Assim se se pensa que a guerra é o resultado de um desígnio político, é natural que esse motivo inicial continue a ser a

consideração primeira e suprema que ditará a sua condução. Todavia, nem por isso o objetivo político é um legislador

despótico; terá de adaptar-se à natureza dos meios de que dispõe, o que leva, frequentemente à sua completa

transformação, mas sem que deixe de permanecer na primeira linha das nossas considerações. Do mesmo modo, a

política introduzir-se-á inteiramente no ato de guerra exercendo uma influência constante sobre ela na medida em que a

natureza das forças explosivas nela empenhadas assim o permitam”5.

Os fins da guerra devem adaptar-se aos meios e às condições. Por não ser “legislador

despótico”, ao longo dos conflitos, o desígnio político deve adaptar-se. Por um lado, exigir da

guerra o que ela não pode oferecer seria um erro. Por outro, exigir a vitória militar a qualquer

custo é outro erro, pois por vezes o desígnio político é atingível sem a necessidade de vencer. As

vezes somente não perder já seria suficiente. Observa-se, portanto, certo caráter normativo na

visão, pois além de realizar a análise da guerra, apresenta sugestões de como dever-se-ia conduzi-

la. Ao invés de enfraquecer o argumento, essa visão fortalece-o, pois pode-se observar sua

aplicabilidade, e pertinência, em outros campos adjacentes que partem de princípios semelhantes.

Por isso, pelo fundamento conceitual de Clausewitz, é possível pensar as relações

internacionais, a política externa e a Defesa. Principalmente pela herança que deixa para os

pensadores: uma visão instrumental da guerra. Essa conexão entre os dois campos permitiu a

Raymond Aron construir seu entendimento das relações internacionais por princípios

clausewitzianos. Para o autor, a ação externa dos Estados é definida a partir de duas gramáticas, a

diplomacia e a estratégia. A lógica da política externa seria composta pela forma de conduzir as

relações com as outras unidades políticas com o intuito de alcançar o “interesse nacional”, por

meio dessas duas gramáticas. Por isso, “a distinção entre diplomacia e estratégia é apenas

relativa, pois os dois denotam aspectos complementares da arte única da política” 6. Portanto,

ambas as práticas seriam instrumentos da ação externa. Em tempos de paz, o planejamento

                                                                                                               5 CLAUSEWITZ, Carl von. Op cit., p. 27. 6 ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: Ed. UnB, 2002, p. 72-73.

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estratégico não cessa. Em tempos de guerra, os contatos diplomáticos também não cessam.

Tornam-se, portanto, duas faces da mesma moeda.

No que concerne à estratégia, há também divergências quanto ao seu entendimento. O

general Moltke definiu a estratégia como a “adaptação prática dos meios postos à disposição dos

generais, para alcançar os fins da guerra”7. Liddell Hart, por sua vez, buscou clarificar o que se

entendia como “os fins da guerra” e propôs que o conceito era “a arte de distribuir e aplicar os

meios militares para atingir os fins da política”8. Ambos demonstram a importância da força

militar para a guerra. Não destacam, porém, a existência de outros atores que possuem suas

próprias vontades. Nesse sentido, ao presente trabalho, interessa a definição de André Beaufre, de

que é “a arte da dialética das vontades empregando a força para resolver o seu conflito”9. Assim,

mantém-se a noção do emprego militar, sem perder de vista a existência de outras vontades.

Essas vontades não atuam no vácuo. O ambiente internacional é seu tabuleiro. A

orientação que cada ator imputa ao conjunto das capacidades que detém na condução de suas

relações com os demais representa o escopo da política externa. Se essa lógica implica a

articulação dos meios das unidades políticas para atingir um conjunto de fins, no caso, o interesse

nacional, surgem visões sobre seu papel no cenário internacional e como dever-se-ia inserir-se.

Portanto, o conceito adotado no trabalho é adjacente ao aroniano. Entende-se como política

externa a “a conjugação dos interesses e ideias dos representantes de um Estado sobre sua

inserção no sistema internacional tal como este se apresenta ou em direção à sua reestruturação,

balizados por seus recursos de poder”10. No caso, os recursos de poder representam um conjunto

de aspectos econômicos, militares, diplomáticos e ideacionais11

Existe, contudo, uma diferença da política externa enquanto projeto e quanto resultado.

Para Aron, a política externa sem a existência de um projeto nacional, ou seja, a existência de um

                                                                                                               7  LIDDELL HART, Basil Henry. As Grandes Guerras da História. São Paulo: IBRASA, 1982, p. 404.  8 LIDDELL HART, Basil Henry. Op. Cit., p. 406. 9 BEAUFRE, André. Introdução à Estratégia. Rio de Janeiro: BIBLIEX,1998. 10 PINHEIRO, Letícia. Política Externa Brasileira (1889-2002). Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2010, p. 7. 11 Entende-se que as ideias detém força de influência na política internacional. Aron desenvolveu um pouco esse conceito ao abordar os objetivos da política externa (ARON, 2002, pp. 127-152) das unidades. Para o autor, os Estados buscariam o poder, a glória ou as ideias. Em resumo, significaria dizer que podem preocupam-se com sua própria segurança, buscando alterar as relações de poder ou manter o status quo; podem buscar a capacidade de liderar um grupo ou submetê-los às suas vontades; ou, podem defender a prevalência de uma ideia/ideologia sobre as demais ou a mera capacidade de exercê-la livremente. No final dos anos 1980, Joseph Nye Jr. também apontou a força das ideias nas relações internacionais, descrevendo seu conceito de soft power ou poder brando. Para o autor, o conceito significaria a “atração ideológica e cultural” exercida por um país (NYE JR., 2002, p. 15). A diferença de Aron para Nye Jr. representa na forma que as ideias se manifestam. Para Aron, a ideia pode ser motivadora da política externa, enquanto que para Nye Jr. pode influenciar as demais unidades subjetivamente.

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consenso mínimo sobre os objetivos a serem perseguidos a médio e longo prazo12, não faria

sentido. Por outro lado, na abordagem adotada por esse artigo, pode haver política externa sem

um “projeto de médio e longo prazo”. O jogo interno delimitaria a falta de consenso sobre a

forma de o país colocar-se no exterior. Todavia, ainda haveria ideias e interesses de elites

governantes sobre sua inserção, sejam elas convergentes ou não. Não se pode dizer que essa

prática seja salutar para a inserção internacional do Estado, mas, não reconhecê-la seria uma

inverdade. Em suma, um projeto nacional não é pressuposto para uma política externa, mas uma

política externa é pressuposto de um projeto nacional.

Dizer que há um projeto, significa que há certo consenso sobre os rumos a se imputar ao

instrumento militar. Se a guerra, pode ser instrumento da política, a consequência fundamental é

que a Defesa13 torna-se instrumento da política externa.

Pode-se dizer que, em certo sentido, a Defesa pode depender de uma Grande Estratégia.

No conceito de Liddell Hart, Grande Estratégia seria uma estratégia mais ampla, que serve “para

dar sentido de ‘execução de uma política’, com papel de coordenar e dirigir toda uma nação ou os

recursos de uma nação para a consecução de um objetivo político, visado com a guerra que é

definido pela política”. Substituindo a noção de “guerra” pela de “Defesa”, pode-se pensar na

existência de uma grande estratégia orientadora para a obtenção de objetivos políticos com a

articulação da Defesa. Nesse exercício, tem-se uma visão próxima daquela de Aron e partir-se-ia

de uma noção de projeto nacional. A Grande Estratégia de Defesa, referir-se-ia à relação dos

recursos da nação com a Defesa com o intuito de obter algo no campo da política, estando

definido um projeto nacional. Portanto, observamos a face da Estratégia das duas gramáticas

aronianas.

Para o presente trabalho, pretende-se elaborar uma breve diferenciação para que se possa

realizar com mais cautela e método a análise do caso brasileiro. Entende-se como objetivos de

políticos internacionais aqueles desígnios que orientam e instrumentalizam a Defesa para a

obtenção de ganhos no tabuleiro externo. Podem caminhar lado a lado aos objetivos políticos

nacionais, orientações da Defesa para se obter ganhos na política interna. Entende-se que esses

                                                                                                               12 ALSINA JR., João Paulo Soares. Política Externa e Política de Defesa no Brasil: Síntese Imperfeita. Brasília: Câmara dos Deputados, 2006, p. 96. 13 O termo Segurança indica um estado ou sensação capaz de produzir a percepção da ausência de ameaças que colocam em risco a existência, a propriedade, os interesses, os valores ou o particular modo de ser de quem percebe. Defesa, por sua vez, refere-se a uma das ações possíveis para atingir essa sensação. SAINT-PIERRE, Héctor Luis. Defensa y Seguridad. In: Atlas Comparativo de Defensa en America Latina: Edición 2008. Buenos Aires: Ser en el 2000, 2008, p. 59-62.

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objetivos são intercambiáveis dada a indistinção conceitual entre interno e externo. Entretanto,

podemos observar a preponderância de ganhos no tabuleiro interno ou no externo nos objetivos

logrados, o que permite essa diferenciação. Baseando-se no que apontou Clausewitz sobre a

guerra, os objetivos políticos (internacionais e nacionais) buscados com a Defesa devem ser

coerentes com o que ela pode oferecer. Não seria correto exigir dela algo que ela não pode ajudar

a atingir. Além dessa consciência, é importante que se compreenda a importância da adaptação

dos fins políticos aos meios disponíveis. Em um grau menor, os objetivos políticos são também

função dos meios que se possui.

O arcabouço conceitual dessa seção será base para a análise realizada da Política de

Defesa brasileira. Analisando a relação entre os objetivos anunciados pela Defesa, os meios

enunciados e os meios disponíveis, pretende-se analisar, pelos documentos se há uma Grande

Estratégia coerente para a Defesa inserida em sua política externa.

2. Definições políticas e a Defesa na agenda política brasileira

Para tratar do tema da política de Defesa é preciso, em primeiro lugar, compreender sua

natureza política. Ou seja, o fato de ser fruto do “entrechoque de interesses e perspectivas das

diversas forças políticas no panorama político da sociedade brasileira”14. No sentido apontado por

Aron, é preciso que tanto a Diplomacia quanto a Estratégia sejam função da consecução de

objetivos da política.

No Brasil, abordar a questão de política de Defesa não é tarefa fácil. Há uma percepção

socialmente construída de difícil e lenta desconstrução. O primeiro eixo dessa percepção social

decorre do fato que desde o fim do Império que o país satisfez-se com o status territorial obtido,

não detendo pretensões expansionistas. Desde então, a ação diplomática desenvolveu uma

autoimagem de perfil não-confrontacionista, baseada na solução de contenciosos pela via

multilateral, deduzindo a importância de pensar o mundo militarmente15. O segundo é a baixa

percepção de ameaças externas da sociedade brasileira e a ideia de baixa incidência de conflitos

de natureza regular na América do Sul. As maiores ameaças percebidas pela sociedade provém de

temáticas próximas ao cotidiano das pessoas, como o crime organizado, a violência social ou

                                                                                                               14 PROENÇA JR., Domício & DINIZ, Eugenio. Política de Defesa no Brasil: uma análise crítica. Brasília: Universidade de Brasília, 1998. 15 LIMA, Maria Regina Soares de. Diplomacia, defesa e a definição política dos objetivos nacionais: o caso brasileiro, p. 409-410. In: JOBIM, Nelson A. ETCHEGOYEN, Sergio W. ALSINA, João Paulo (orgs.). Segurança Internacional: perspectivas brasileiras. Rio de Janeiro: FGV, 2010.

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desastres climáticos16. A consequência desses fatores é o questionamento da utilidade do poder

militar e das forças armadas em um país como o Brasil, e, particularmente o entendimento

arraigado na sociedade de que seu emprego deveria estar focado no combate ao narcotráfico e à

criminalidade. O terceiro eixo estruturante dessa percepção é, por um lado o baixo interesse dos

governos em atuar nas questões de Defesa, seja pelo baixo ganho clientelista dessas políticas, seja

por preparo parco. Por consequência, há a delegação dos temas militares às próprias forças

armadas, acompanhada de reduzida preocupação com o controle político sobre sua atuação.

No plano da formulação da política externa, observa-se, no Brasil, algumas

incongruências com os fundamentos do modelo teórico adotado no presente trabalho. Ao longo

do tempo, desenvolveu-se excessiva autonomia corporativa das Forças Armadas e do Ministério

das Relações Exteriores frente aos controles democráticos. A falta de definição política clara dos

governantes sobre a atuação internacional do Brasil, ou de um projeto nacional, reforçou a já

baixa articulação entre Diplomacia e Defesa no país17.

No entanto, a subordinação aos objetivos políticos da burocracia diplomática ao poder

político não é comumente vista como elemento fundacional da sociedade da forma, como é a dos

militares18. Ao se identificar política externa como diplomacia, confundem-se os meios e as

ferramentas, com os fins e os formuladores. Ou seja, significa confundir o nível da gramática

com o da lógica. Não seria o Ministério das Relações Exteriores “[...] quem formula a política

externa de uma unidade decisória, mas quem a executa pelos meios diplomáticos. Tampouco é o

Ministério de Defesa quem a formula, mais quem dispõe dos meios para executar a política

externa caso sejam necessários”19.

Defronte a esse contexto, observaram-se tentativas de imputar orientações políticas para

as forças armadas brasileiras, sem que, necessariamente, tenha havido um projeto nacional

minimamente coeso de inserção internacional. As primeiras movimentações ocorreram durante o

                                                                                                               16 Segundo o Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) do IPEA, em 2011, 54,2% da população teria mais medo do crime organizado, seguido de um desastre ambiental ou climático, com 38,6%. Guerras contra uma potência externa ou país vizinho aparecem, respectivamente, com 34,7% e 33%.  17 LIMA, Maria Regina Soares de. Diplomacia, defesa e a definição política dos objetivos nacionais: o caso brasileiro, p. 409-410. In: JOBIM, Nelson A. ETCHEGOYEN, Sergio W. ALSINA, João Paulo (orgs.). Segurança Internacional: perspectivas brasileiras. Rio de Janeiro: FGV, 2010, pp. 402-403. 18 Cabe destacar que mesmo a subordinação dos militares ao poder instituído não possui papel central na agenda nacional. Comparando com a Argentina, por exemplo, o problema do controle político sobre os militares apresenta-se de forma destacada na vida política nacional desde o fim do regime autoritário. No Brasil, por sua vez, foram poucas as menções ao tema e o processo de transição foi tutelado pelos oficiais. No que concerne à questão da relação entre formulação de política externa e controle democrático no Brasil, Maria Regina Soares de Lima possui trabalhos significativos sobre o tema. 19 SAINT-PIERRE, Héctor Luis. A defesa na política externa brasileira: dos fundamentos a uma análise do caso brasileiro. Análise de Conjuntura, n. 8, ago 2010, pp. 4-5.

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governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A Política de Defesa Nacional, de 1996,

foi o documento pioneiro nesse sentido. Seja por ser o primeiro movimento, seja pela falta de

vontade política, seja por resistências militares, o documento produzido foi muito genérico e, por

isso, não pode ser considerado como um orientador político claro da ação externa do Brasil ou do

emprego das forças armadas. Havia repetição de preceitos consagrados da diplomacia sem a

construção de diretrizes claras ao emprego do instrumento militar. Resultava em muito espaço

para que as próprias forças delimitassem a formulação estratégica e pouco resultado na

subordinação militar pelo podes instituído.

O processo de criação do ministério da Defesa revelou uma tentativa de dar seguimento

ao impulso iniciado pela PDN. Cardoso teve que lidar com as resistências militares a um

ministério civil que limitasse o poder das forças. A consolidação do caminho escolhido pelo

presidente representou um início positivo na construção de um modelo possível de orientação

política para a Defesa. Exemplo disso, foi a adoção do modelo de estruturação do ministério

escolhido pelo presidente e não daqueles sugeridos por segmentos dos militares durante o

processo20.

Ainda no segundo mandato de Cardoso, a atualização da política de Defesa brasileira era

parte da agenda. Contudo, foi apenas na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) que as

movimentações na direção de inflexões concretizaram-se. A escolha de um diplomata para o

cargo de ministro da Defesa em 2003, José Viegas Filho, demonstrava o início da diluição das

fronteiras entre essas duas gramáticas do Brasil. Durante o período, ocorreram movimentações

bastante intensas no processo de formulação de política de Defesa. Em 2005, Política de Defesa

Nacional recebeu uma atualização, tornando-se mais completa e trazendo, pela primeira vez, a

separação conceitual entre Defesa e Segurança no país. Em 2008, o governo publicou um

documento que visava orientar o emprego conjunto das três forças e apresentar orientações sobre

a aplicação da Defesa no país, a Estratégia Nacional de Defesa (END)21. Esboçou-se algum

debate nacional em 2003-2004, mas em 2007 o diálogo foi ínfimo. Em 2010, conclui-se a

estruturação da política no campo, a partir da Lei Complementar (LC) 136, atualizando a antiga

LC 97. Foram implementadas algumas mudanças previstas na END e, delimitou-se que os

documentos políticos do país na área seriam uma Política Nacional de Defesa, uma Estratégia

                                                                                                               20 OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. Democracia e Defesa Nacional: A criação do ministério da Defesa no governo FHC. Barueri: Manole, 2005, p. 115-196. 21 SAINT-PIERRE, Héctor Luis., Op. Cit.

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Nacional de Defesa e um Livro Branco da Defesa Nacional, a serem atualizados e revisados

periodicamente.

A partir desse esboço amplo do panorama das políticas de Defesa no contexto da política

externa brasileira, propomos, na próxima seção, o exercício intelectual de verificar se é possível

identificar na PDN, de 2005, e na END, de 2008, objetivos políticos internacionais da ação

externa brasileira e se os meios dispostos parecem coerentes às metas fixadas, e se há, em alguma

medida, uma Grande Estratégia de Defesa.

3. Objetivos políticos na agenda brasileira: uma Grande Estratégia em construção?

Pretende-se nessa seção realizar o exercício intelectual de tentar identificar os objetivos

políticos internacionais na PDN e na END, questionar se é possível esboçar uma Grande

Estratégia de Defesa e analisar se os meios apresentados são coerentes aos fins políticos.

Entende-se a limitação dessa abordagem, pois a análise documental não representa a

contrapartida das ações tomadas na direção dos objetivos apontados. Por outro lado, como os

documentos apresentam papel central no posicionamento brasileiro, a não compleição dos

objetivos dispostos levantará dúvidas sobre as estratégias traçadas e a condução da política de

Defesa.

Antes de prosseguirmos, é preciso realizar uma breve digressão sobre o caráter dos

documentos de Defesa brasileiros com o intuito de compreender a finalidade de cada um deles. A

Política de Defesa Nacional possui um caráter mais geral. Como pretende ser o documento

orientador das linhas gerais da Defesa brasileira, não há delimitações profundamente claras sobre

as estratégias traçadas para atingir os grandes desígnios apresentados. A Estratégia Nacional de

Defesa, por sua vez, logra apresentar os meios para a compleição dos objetivos dispostos na

PDN. Portanto, possui um caráter mais operacional. Contudo, quando da produção da END,

ainda não se tinha clareza sobre a estrutura da Defesa nacional brasileira. Foi somente a partir de

2010, pela LC 136, que passou a ser composta por uma PDN, uma END e um Livro Branco de

Defesa Nacional, periodicamente revisados. Considerando que entre 2003 e 2010 iniciou-se um

período de transições na Defesa, pode não haver um grau de identificação preciso entre as

funções de cada documento. Por isso, primeiramente, analisaremos cada documento isoladamente

e, em um segundo momento, veremos como eles se articulam em seus objetivos políticos.

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3.1. Os Objetivos Políticos da PDN

A Política de Defesa Nacional, de 2005, está orientada em sete grandes eixos. A primeira

aponta as linhas gerais da relação conceitual entre o Estado, Defesa e Segurança. O segundo, o

terceiro e o quarto descrevem, respectivamente, as características do cenário internacional,

regional e brasileiro. O quinto preocupa-se em demonstrar os Objetivos da Defesa Nacional22, o

sexto, suas Orientações Estratégicas, e o sétimo, suas Diretrizes.

Como apontamos na seção anterior, a PDN foi construída a partir da convocação de ciclos

de debates organizados pelo ministro da Defesa. O resultado dos debates foi convertido em um

livro, “Pensamento Brasileiro em Defesa e Segurança”. Não se pretende abordar no artigo quais

aspectos debatidos apareceram na versão final ou qual foi o papel desses debates no documento

produzido. É de interesse apenas a preocupação com o debate, mesmo que represente uma

argumentação panfletária, pois possui significado na medida em que é base para o entendimento

da Defesa como uma política pública. Portanto, preocupa-se com o envolvimento de civis,

acadêmicos e cidadãos no processo.

Essa característica do processo aparece manifesta no documento de forma bastante

arraigada. Logo na Introdução, indica-se que “um dos propósitos da Política de Defesa Nacional

é conscientizar todos os segmentos da sociedade de que a defesa da Nação é um dever de todos

os brasileiros”23. A ideia de conscientizar parte do pressuposto de que uma realidade existe, mas

não se tem conhecimento dela ou não lhe garante a devida importância. Portanto, o primeiro

movimento sugerido pela PDN é de transformar as consciências nacionais da importância da

temática da Defesa para o Brasil. Em primeira instância, os ganhos logrados não estão

diretamente na política internacional, mas na interna. A partir de uma mudança na forma de

pensar o tema nacionalmente, emergiriam efeitos sobre a atuação externa do país, possibilitando

maior envolvimento e participação de civis nos debates e processos. Nesse sentido, uma das

Orientações Estratégicas é o “desenvolvimento de mentalidade de defesa no seio da sociedade

brasileira[...]”, pois isso seria “[...] fundamental para sensibilizá-la acerca da importância das

                                                                                                               22 É importante dizer que os objetivos políticos, nacionais e internacionais, não necessariamente convergem com o enunciado. A leitura pode revelar alguns aspectos que não estão na lista. Segundo o documento, os objetivos da Defesa nacional são:

1. a garantia da soberania do patrimônio nacional e da integridade territorial; 2. a defesa dos interesses nacionais e das pessoas, dos bens e dos recursos brasileiros no exterior; 3. a contribuição para a preservação da coesão e unidade nacionais 4. a promoção da estabilidade regional 5. a contribuição para a manutenção da paz e da segurança internacionais; e 6. a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios internacionais

23 BRASIL, Política de Defesa Nacional, 2005, p. 1.

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questões que envolvam ameaças à soberania, aos interesses nacionais e à integridade territorial do

País”24.

Outros aspectos importantes manifestam-se na seção descritiva do Ambiente

Internacional. O Brasil aponta que “a configuração da ordem internacional baseada na

unipolaridade no campo militar associada às assimetrias de poder produz tensões e instabilidades

indesejáveis para a paz”25. Assume-se que pelo respeito ao direito internacional – em princípios

como defesa da democracia, da cooperação, da proscrição de armas químicas, biológicas,

nucleares e da busca da paz – e ao multilateralismo pode-se obter mais estabilidade no sistema.

Nesse sentido, há a ideia implícita de que da forma como a ordem internacional26 tem sido

conduzida não se observa o respeito da totalidade desses princípios. O Brasil “defende a

reformulação e a democratização das instâncias decisórias dos organismos internacionais, como

forma de reforçar a solução pacífica de controvérsias e sua confiança nos princípios e normas do

Direito Internacional”. Essa ideia convive com a de que “[...] não é prudente conceber um país

sem capacidades de defesa compatível com sua estatura e aspirações políticas”27. No mesmo

sentido, um dos Objetivos da Defesa Nacional é “a projeção do Brasil no concerto das nações e

sua maior inserção em processos decisórios internacionais”28.

A PDN sugere que o Brasil possui uma visão dupla. Entende que o mundo atual é

composto por uma unipolaridade militar. Ou seja, refere-se à preponderância militar dos Estados

Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), liderada por ele. Ações que

sustentam-se somente na visão dessa potência, ou que não garantem voz igual aos demais países

do sistema, não poderiam ser consideradas como coerentes com os princípios do direito que

regem a ordem internacional. Nesse sentido, as principais instâncias decisórias das organizações

internacionais não coincidiriam com esses princípios. Daí a necessidade de reforma-las. Ao

mesmo tempo, afirma-se que a Defesa é importante, pois, sem ela, não se estaria sendo coerente

com a “estatura” e as “aspirações políticas” do país. Ou seja, há um objetivo de maior inserção

nacional do país, de projeção do Brasil no âmbito das grandes instâncias decisórias

                                                                                                               24 Brasil, Op. cit. 25 BRASIL, Op. cit., Parágrafo 2.3. 26 Por ser um documento político e não acadêmico, não há uma definição precisa do que entende-se por ordem internacional. Pode-se inferir, a partir do exposto no texto, que representa o conjunto de normas que pretende organizar as relações entre os Estados. 27 BRASIL, Op. cit., Parágrafo 4.7. 28 BRASIL, Op. cit., Parágrafo 5, VI  

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internacionais, algo pouco provável com as atuais condições de Defesa e o pouco espaço

garantido nas grandes organizações internacionais.

Nesse sentido, há dois objetivos, bastante interligados, no tabuleiro político internacional.

O primeiro é alteração das instâncias decisórias. Aqui pode-se citar, por exemplo, a reforma da

Organização das Nações Unidas (ONU) e de seu Conselho de Segurança, objetivo bastante

defendido pela diplomacia do governo Lula. O segundo seria consequência do anterior, a

projeção internacional do Brasil nessa nova cena política. Há, portanto, uma preocupação com a

ampliação do poder brasileiro no cenário internacional.

No plano regional, mais do que a lógica da confiança mútua, a tônica é a estabilidade no

entorno estratégico do país, a América do Sul e o Atlântico Sul. A cooperação e a integração

emergem como formas de reduzir o espectro dos conflitos, seja pelo Mercosul, pela Organização

de Cooperação Amazônica, pela Comunidade Andina de Nações, pela Comunidade Sul-

Americana de Nações – futura Unasul – ou pela construção da confiança com outros países da

região. A ideia de estabilidade liga-se com noção anterior de projeção internacional do Brasil.

Um entorno regional sem conflitos seria a base de uma maior inserção internacional segura e

confiável. Paralelamente, a cooperação também tem o objetivo de “demonstrar poder” do país

internacionalmente. “Para ampliar a projeção do País no concerto mundial e reafirmar seu

compromisso com a defesa da paz e com a cooperação entre os povos, o Brasil deverá intensificar

sua participação em ações humanitárias e em missões de paz” sob a égide de organismos

multilaterais”29.

A manutenção da soberania brasileira é outro objetivo que aparece na PDN. Planeja-se

elaborar a Defesa visando a proteção das áreas econômicas, do poder político e de recursos

naturais. O Brasil aponta que “prioriza a Amazônia e o Atlântico Sul, pela riqueza de recursos e

vulnerabilidade de acesso pelas fronteiras terrestres e marítima” 30 . No mesmo sentido

soberanista, preocupa-se em revitalizar as capacidades nacionais das forças armadas, seja pelo

reaparelhamento, seja pela revitalização de uma indústria de defesa nacional, seja pela

cooperação na mesma área. Afirma-se que “o desenvolvimento da indústria de defesa, incluindo

o domínio de tecnologias de uso dual, é fundamental para alcançar o abastecimento seguro e

previsível de materiais e serviços de defesa”31. Da mesma forma, “a integração regional da

                                                                                                               29 BRASIL, Op. Cit., Parágrafo 6.17. 30 BRASIL, Op. Cit., Parágrafo 4.3. 31 BRASIL, Op. Cit., Parágrafo 6.9.

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indústria de defesa, a exemplo do Mercosul, deve ser objeto de medidas que propiciem o

desenvolvimento mútuo, a ampliação dos mercados e a obtenção de autonomia estratégica”32.

Nesse sentido, a cooperação poderia garantir um meio para a redução dos custos da revitalização

da indústria de Defesa nacional e contribuir para a melhoria das capacidades do país.

Analisando-se essas principais linhas dispostas pela PDN, podemos apontar um fio

condutor nos meios e nos fins do documento. Duas são as principais ideias subjacentes entre

todas as propostas. Em primeiro lugar, a de ação autônoma do Brasil. Essa visão manifesta-se na

preocupação em criar uma indústria nacional de Defesa, conscientizar e capacitar a população

para pensar a temática e criar uma estratégia dissuasória para a proteção do país. Em segundo

lugar, há a ideia de inserção internacional e projeção de poder do país. A reforma dos órgãos de

decisão internacional representariam a busca de mais espaço para a diplomacia brasileira atuar no

exterior, ampliando seu grau de influência. A participação em missões de paz traria a ideia

internacional de que o Brasil possui forças armadas capacitadas para tornar-se uma potência,

enquanto que a estabilidade regional fortaleceria a ideia de liderança brasileira. Nesse sentido,

pode-se dizer que os objetivos políticos internacionais da PDN referem-se à busca de ampliação

do poder do Brasil no processo decisório da gestão da ordem internacional – alterando as

capacidades internas e buscando novos espaços de atuação externa – e à capacidade de liderança

e estabilidade em seu entorno estratégico.

3.2. Objetivos políticos da Estratégia Nacional de Defesa

A Estratégia Nacional de Defesa, publicada em 2008, representa um plano de ações

estratégicas de médio e longo prazo com o intuito de modernizar a estrutura de defesa nacional.

Apresenta propostas de mudanças de médio e longo prazo e fixa prazos para a implementação.

Representa, portanto, o meio disposto para se atingir os objetivos delineados pela Política de

Defesa Nacional. É importante destacar que essa concepção de END como meio de

implementação da PDN foi estabelecida somente em 2008, com a publicação da Estratégia. Até

2010, a PDN detinha uma seção Diretrizes Estratégicas, algo que que foi retirado a partir da

alteração da estrutura da Defesa Nacional.

O documento orienta-se em três eixos estruturantes. O primeiro aponta como as forças

armadas devem estruturar-se e atuar. O segundo aborda a reorganização da indústria nacional de

                                                                                                               32 BRASIL, Op. Cit., Parágrafo 6.10.  

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Defesa. O terceiro trata da questão dos efetivos das forças armadas. Em nossa análise, não

entraremos no campo dos meios militares apontados. Busca-se aqui apenas entender o

fundamento dos objetivos políticos (nacionais e internacionais) desenvolvidos pelo Brasil.

Contudo, a despeito de a END poder ser entendida como um meio da Defesa pode-se

observar alguns objetivos manifestos no documento. Em primeiro lugar, há exaltação nacional e o

discurso de um projeto nacional de Brasil destinado a tornar o Brasil uma potência, colocando-o

em “seu lugar” no mundo. Na Introdução do documento, já se explicita essa ideia: “o Brasil

ascenderá ao primeiro plano no mundo sem exercer hegemonia ou dominação. O povo brasileiro

não deseja exercer mando sobre outros povos. Quer que o Brasil se engrandeça sem imperar”33.

No mesmo sentido, afirma-se que “se o Brasil quiser ocupar o lugar que lhe cabe no mundo,

precisará estar preparado para defender-se não somente das agressões, mas também das

ameaças”34. A noção de “nação” forte e de país destinado a ser grande, repete-se durante todo o

documento, demonstrando a busca de projeção internacional do Brasil.

As críticas mais acirradas ao documento defendem que esse tom soberanista, autonomista

e nacionalista prejudicaria os objetivos políticos internacionais visados pelo país, pois tanto os

grandes objetivos logrados internacionalmente, quanto os regionais dependem de mais do que a

vontade política e os elementos dispostos na END. Haveria a dificuldade econômica, a

viabilidade política e a pressão externa por projetos dessa envergadura, desconsideradas por ele.

Os exemplos mais latentes talvez estejam no setor estratégico nuclear, pela ideia de investimento

nesse ramo energético e na construção de um submarino de propulsão nuclear para o país35.

Outro objetivo que podemos apontar é o de conscientizar a sociedade. Busca-se trazer a

Defesa para a agenda nacional e incluir um “debate nacional”. Para a END, “os recursos

demandados pela defesa exigem uma transformação de consciências para que se constitua uma

estratégia de defesa para o Brasil”36.

Pode-se dizer que esse representa um objetivo político nacional, ou seja, que demanda

ganhos maiores no tabuleiro interno do que no internacional. Não se pode negar que haveria

benefícios no tabuleiro externo, contudo, o foco primário é a política interna. Busca-se

transformar as consciências sobre o papel da Defesa, torna-la parte da agenda política nacional de

                                                                                                               33 BRASIL. Estratégia Nacional de Defesa, 2008, p. 1. 34 Ibidem. 35 ALMEIDA, Paulo Roberto de. Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes. Boletim Meridiano 47, v. 10, n. 104, p. 5-9, 2010. 36 BRASIL, Op. Cit., p. 2.

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maneira permanente. É interessante notar, todavia, que internamente a publicação da END não

foi suficiente para alterar a participação da população nas questões de Defesa. Como descreveu o

almirante reformado Mario César Flores no periódico O Estado de S. Paulo: “A Estratégia

Nacional de Defesa (END), em vigor desde dezembro de 2008 e desde então aberta ao

conhecimento público, vem interessando à opinião pública? Não. Que repercussão teve no

Congresso, corresponsável pela defesa, numa democracia? Nenhuma”37. As iniciativas que

envolveram os debates no campo da Defesa não necessariamente produziram influências sobre os

documentos produzidos em anos posteriores.

O tema da relação com o desenvolvimento possui também centralidade e permite

evidenciar objetivos políticos. No documento, a Estratégia de Defesa é tida como inseparável da

Estratégia de Desenvolvimento, pois a partir da Defesa o Brasil teria autonomia para eleger seu

próprio modelo de desenvolvimento. Aponta-se que a END produz-se como um esboço de uma

grande estratégia brasileira no conceito de Liddell Hart38. Torna-se latente a ideia de construção

do projeto de uma Grande Estratégia de Defesa. A própria END parece trazer para si essa

responsabilidade ao afirmar que “trata de questões políticas e institucionais decisivas para a

defesa do país, como os objetivos de sua ‘grande estratégia’ e os meios para fazer com que a

Nação participe da defesa.”39

Dentro dessa correlação conceitual, no campo industrial, há a definição de três setores

estratégicos para o país: o espacial, o cibernético e o nuclear. Nos três setores transcenderiam a

divisão entre “desenvolvimento” e “defesa”, pois possibilitariam a atuação conjunta entre esse

dois campos da sociedade e garantiriam ao Brasil “[...] o equilíbrio e a versatilidade de sua matriz

energética e avançar em áreas, tais como as de agricultura e saúde, que podem se beneficiar da

tecnologia de energia nuclear”40.

Um aspecto importante refere-se ao fato de o Brasil não orientar seu potencial estratégico

em torno de inimigos ou ameaças, mas sim nas capacidades. Ou seja, pretende-se apenas ampliar

a capacidade dissuasória do país, de dissuadir potenciais ameaças ao passo que se torna o braço

militar da diplomacia brasileira. Em artigo recente, o atual ministro da Defesa, Celso Amorim,

                                                                                                               37 O Estado de S. Paulo. Estratégia Nacional de Defesa. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,estrategia-nacional-de-defesa,766385,0.htm 38 SAINT-PIERRE, Héctor Luis. A defesa na política externa brasileira: dos fundamentos a uma análise do caso brasileiro. Análise de Conjuntura, n. 8, ago 2010, pp. 8-9. 39 BRASIL. Op. cit., Parágrafo 1, p. 3. 40 BRASIL, Op. Cit., Parágrafo 6., p. 5.

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exemplificou como se dá essa vinculação conceitual e destacou a importância da Estratégia

Nacional da Defesa para o país:

Brazil’s abundance of energy, food, water, and biodiversity increases its stake in a security environment

characterized by rising competition for access to, or control of, natural resources. In order to meet the

challenges of this complex reality, Brazil’s peaceful foreign policy must be supported by a robust defense

policy. Brazil’s National Defense Strategy, updated in 2012, states that the modernization of the Armed

Forces is intrinsically linked to national development. Thus, it emphasizes the need to strengthen the

domestic defense industry. In accordance with the Strategy, Brazil is enhancing its conventional deterrence

capabilities, including by building a nuclear-propelled submarine as part of a naval program commensurate

with its responsibilities in the South Atlantic41.

Com o intuito de obter essas novas capacidades, a revitalização da Indústria de Defesa

nacional ganha papel central. A prioridade brasileira enunciada é de “desenvolvimento de

capacidades tecnológicas independentes” e “subordinar as considerações comerciais aos

imperativos estratégicos”42, significando que o Brasil não estaria buscando apenas comprar ou

vender produtos de Defesa, mas sim obter a tecnologia necessária para o desenvolvimento

autônomo de sua atuação. O Brasil preocupa-se com a revitalização dessa indústria e demonstra-

se a importância do incentivo do Estado em desenvolvê-la. Indicativo dessas preocupações são as

propostas de criação da Secretaria de Produtos de Defesa (SEPROD) e de Ciência e Tecnologia

no MD – criada efetivamente em 2010 – e de desenvolvimento de um regime de tributação

especial para materiais de Defesa – criado em 2011, com o Regime Especial de Tributação da

Indústria de Defesa (RETIND).

A cooperação regional relaciona-se diretamente com essa relação entre desenvolvimento e

defesa e com a busca de revitalização e expansão de uma Indústria de Defesa nacional. Poucas

são as menções feitas à temática, e as que foram feitas parecem derivar dessa noção. Na seção

Diretrizes, os parágrafos 18, “Estimular a integração da América do Sul”, e o 22, “Capacitar a

indústria nacional de material de defesa para que conquiste autonomia em tecnologias

indispensáveis à defesa”, são exemplos disso. Dentro da ideia de afastar conflitos e ampliar os

contatos militares regionais, a integração das bases industriais de Defesa está na base da ideia de

                                                                                                               41 AMORIM, Celso. Hardening Brazil’s Soft Power. Project Syndicate, 16/07/2013. Disponível em: http://www.project-syndicate.org/commentary/a-more-robust-defense-policy-for-brazil-by-celso-amorim  42 BRASIL, Op. Cit., Parágrafo 1, p. 26.

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cooperação manifesta no documento. Isto coloca-se em conformidade com a busca de parceiros

regionais para a produção e venda dos produtos produzidos no Brasil. Nesse sentido, a região

aparece como um mecanismo de reduzir os custos econômicos e políticos de se fomentar uma

indústria de Defesa somente com incentivo estatal.

A partir dessas assertivas, depreende-se que a relação entre Defesa e Desenvolvimento

sustenta uma espécie de projeto inicial de Grande Estratégia de Defesa para o país. Esse conceito

fundamenta a ideia de que revitalização da indústria de material de Defesa e de cooperação com

os países da América do Sul. O Brasil busca evidenciar que o investimento na Defesa possui

ganhos para a indústria nacional e é passível de trazer benefícios para toda a sociedade, e não

somente aos militares. Concomitantemente, o país preocupa-se em obter o ferramental necessário

a tornar-se um ator importante no cenário internacional baseando-se no conceito de autonomia.

Há uma visão de que a forma de lograr os objetivos visados internacionalmente é perseguindo

uma “soberania estratégica” nos materiais de Defesa. Para isso, seria necessário investimentos em

diversos setores conjuntamente.

Portanto, esse binômio “Defesa-Desenvolvimento” possui uma dupla faceta no campo dos

objetivos políticos do país. Por um lado, detém um papel bastante focado em uma audiência

interna, de se obter resultados na política nacional, pelo desenvolvimento de uma consciência da

importância da temática da Defesa para o país, dos benefícios que pode trazer ao

desenvolvimento e à economia nacional. O primeiro objetivo político interno refere-se aos

benefícios que se pode obter economicamente e ao desenvolvimento nacional. O segundo,

externo, refere-se à autonomia e independência estratégica do país. Não depender de tecnologia

estrangeira, significa não limitar-se às vontades das grandes potências. Ou seja, o objetivo

político internacional implícito trata-se da autonomia ou soberania no campo da produção dos

materiais de Defesa.

Na END, há uma linha mestra nos objetivos políticos. A base é o binômio “Defesa-

Desenvolvimento”. Essa noção parte de uma ideia autonomista de projeto de desenvolvimento, a

partir da qual o Brasil precisaria ser capaz de definir seus rumos, reduzindo os ciclos de

dependência externa. Primeiramente, entende-se que o país não deveria ter que depender dos

recursos externos para seu projeto de desenvolvimento. Para tanto, precisaria capacitar-se

internamente para isso, criando recursos humanos e materiais. Em segundo lugar, que o Brasil

possui um papel e um lugar no mundo a ser atingido ao longo no futuro. Investindo na Defesa,

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estaria investindo em maior projeção internacional e, consequentemente, em seu

desenvolvimento. Terceiro, obter maior participação da sociedade civil na temática para que se

possa construir mentalidades e usufruir do benefício existente entre o campo do Desenvolvimento

e da Defesa.

3.3. Objetivos políticos da Defesa brasileira: consciência, autonomia e projeção

Nos dois documentos de Defesa brasileiros existe uma convergência de objetivos políticos

que nos permitem depreender os traços da Grande Estratégia de Defesa do país e resumir os

principais objetivos logrados. É interessante perceber que não necessariamente o resultado de

nossa análise converge com os Objetivos da Defesa Nacional dispostos na PDN, pois pode-se

depreender que existem alguns desígnios políticos mais importantes e destacados do que outros.

Resumem-se os objetivos políticos da Defesa brasileira em três conceitos interligados:

consciência, a autonomia e a projeção internacional.

A consciência pode ser apontada como um objetivo político nacional presente tanto na

PDN como na END. A despeito da diferença de abordagem em cada documento, a visão é a de

que é preciso construir uma conscientização em escala nacional da importância da Defesa para

que se possa construir uma comunidade epistêmica no campo e para que se produzam recursos

humanos capacitados e dispostos para trabalhar no campo da indústria de material de Defesa. Na

PDN, destaca-se apenas a importância disso, enquanto na END, produz-se uma argumentação

que vincula o conceito de “desenvolvimento” ao de “defesa”. Pode-se questionar até que ponto

essa não seria uma vinculação de caráter panfletário e retórico, meramente com o intuito de

destacar o campo, tendo em vista que obter meios ao desenvolvimento é um dos grandes

objetivos da política externa brasileira e das orientações de política econômica do país.

A autonomia seria um objetivo político internacional. Na PDN, parte-se da noção de que

o sistema internacional fundamenta-se em normas que não são aplicadas igualitariamente a todos

os países e que os mecanismos de gestão da ordem internacional precisam ser revisados. Na

END, indica-se que autonomia é independência tecnológica e política de grandes potências. Ser

capaz de empregar as tecnologias que se deseja nos três grandes setores estratégicos, o nuclear, o

cibernético e o espacial, produzir os próprios materiais empregados na Defesa e proteger-se

contra quaisquer agressões externas representaria ser autônomo. O aspecto da autonomia parte,

portanto, do pressuposto da liberdade de ação e da não-intervenção de outros Estados na

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definição dos objetivos brasileiros. Por isso, faz-se importante o conceito dissuasório empregado

nos dois documentos.

A projeção internacional é outro objetivo político internacional que, de certa forma,

relaciona-se diretamente ao anterior. Tanto na PDN quanto na END, há a ideia de que o Brasil

busca projetar-se no cenário internacional e, para isso, precisa ser autônomo em suas escolhas. O

aspecto da projeção apresenta-se como a busca de o país obter mais significância no cenário

internacional. Principalmente, nos grandes tabuleiros de decisão internacional, como as

organizações internacionais. Há, implicitamente, a busca de tornar-se uma potência, ocupando

um espaço maior na gestão da ordem internacional.

Observa-se o esboço de uma Grande Estratégia de Defesa orientada para a projeção

internacional, autonomia de escolhas e conscientização da sociedade civil da importância da

Defesa. Há a busca de ocupar um espaço mais amplo internacionalmente.

Contudo, não se observa, em nenhum dos documentos, a manifestação sobre qual tipo de

país o Brasil viria a tornar-se. A END faz a ressalva de que se logra ascender ao primeiro plano

sem exercer dominação ou hegemonia. Mas em que medida busca-se ascender a essa posição?

Quais as responsabilidades e custos que o Brasil estaria disposto a aceitar nesse novo cenário? Se

vier a tornar-se uma potência, que tipo de potência seria? Há indícios dessa preocupação no início

do documento, como citamos, mas essa não se avança nesse sentido.

Da mesma forma, uma das críticas que se faz à END, por exemplo, é a falta de

explicitação dos objetivos visados internacionalmente. Se deseja-se ascender ao primeiro plano,

provavelmente, refere-se também a uma vaga no Conselho de Segurança da ONU43. Contudo,

parece haver certo receio em explicitar esse objetivo. Pode-se levantar a hipótese de que poderia

gerar desconfianças no projeto de cooperação regional que o país passou a liderar nos anos 2000,

pelos esforços na criação da Unasul e de seu Conselho Sul-Americano de Defesa. A falta de

clareza nesse sentido, não significa que o objetivo inexista e sim parece ocultá-lo.

Quanto à lógica apresentada pela END, há outra ressalva digna de nota. Apesar de

delimitar um objetivo político, parte da estratégia apresentada pelo Brasil para atingi-lo parece

não considerar as limitações existentes, tanto econômicas, quanto de acesso tecnológico

internacionalmente. Como colocou Beaufre, a estratégia parte do pressuposto da existência de

vontades opostas, e a END não garante muito peso às resistências e reservas que se teria à busca                                                                                                                43 DE ALMEIDA, Paulo Roberto. Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes. Boletim Meridiano 47, v. 10, n. 104, p. 5-9, 2010.

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de autonomia tecnológica brasileira. Nem mesmo como o Brasil faria para driblar essa limitação

durante o longo e lento processo de desenvolvimento de um mercado sul-americano. Mesmo

porque esse mercado não seria capaz de suprir a totalidade de produtos de Defesa que o país

demanda, tendo em vista que esse campo oferece muita resistência à entrada de novas empresas.

Paralelamente, a capacidade de se criar novas parcerias dependeria das manobras políticas dos

policymakers em reduzir a influência das empresas americanas na América do Sul, aquelas que

dominam o mercado44.

4. Considerações Finais

O objetivo do presente artigo foi identificar os objetivos políticos manifestos nos

documentos de política de Defesa do Brasil, baseando-se na visão clausewitziana da guerra.

Entendeu-se que se a guerra é passível de ser considerada como função da política, a Defesa

também é e, portanto, caberia analisar sua instrumentalidade. Para tanto, analisou-se os

documentos de Defesa brasileiros produzidos entre 2003 e 2010. Pretendeu-se obter detalhes

sobre a visão do Brasil nesses documentos, entendendo-os como parte da política externa

brasileira, mas sem entrar em detalhamentos sobre a atuação externa concreta do Brasil durante o

período.

Constatou-se que há três grandes objetivos políticos orientadores da Defesa nacional: a

busca de autonomia, de conscientização da sociedade civil sobre a importância da Defesa e de

projeção internacional. Há um fio condutor entre a PDN e a END nesses três objetivos. Contudo,

há alguns aspectos dignos de nota, como a falta de explicitação de alguns desígnios externos,

como o desejo de ocupar

À guisa de conclusão, pode-se dizer que os documentos de política de Defesa brasileiros

delimitam alguns objetivos políticos (internacionais e nacionais) que não necessariamente

coincidem com aqueles desígnios orientadores citados pela PDN. A conscientização, a busca de

autonomia e a ideia de projetar-se internacionalmente parecem mais proeminentes. Há indícios de

falta de explicitação de alguns dos principais objetivos internacionais visados. Seja por

preocupação com desconfianças na América do Sul, seja por falta de clareza sobre a forma de

projeção e inserção internacional que o Brasil pretende obter. Entende-se que o Brasil apresenta

                                                                                                               44 DAGNINO, Renato Peixoto; CAMPOS FILHO, Luiz Alberto Nascimento. A revitalização da indústria de defesa brasileira: análise da alternativa Cooperação Sul-americana/européia. Vértices, v. 9, n. 1, 2007, p. 38-41.  

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um esboço de uma Grande Estratégia de Defesa, sem contudo, deixar claro o suficiente quais são

todos os objetivos políticos internacionais. Algumas questões aparecem de forma bastante

genérica, tornando difícil pensar se é possível atingi-los ou se sabe-se com clareza em quais

tabuleiros internacionais pretende-se jogar.

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ALMEIDA, Paulo Roberto de. Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes. Boletim Meridiano 47, v. 10, n. 104, 2010. ALSINA JR., João Paulo Soares. Política Externa e Política de Defesa no Brasil: Síntese Imperfeita. Brasília: Câmara dos Deputados, 2006, p. 96. AMORIM, Celso. Hardening Brazil’s Soft Power. Project Syndicate, 16/07/2013. Disponível em: http://www.project-syndicate.org/commentary/a-more-robust-defense-policy-for-brazil-by-celso-amorim ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: Ed. UnB, 2002. BEAUFRE, André. Introdução à Estratégia. Rio de Janeiro: BIBLIEX,1998. CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 7-8. DAGNINO, Renato Peixoto; CAMPOS FILHO, Luiz Alberto Nascimento. A revitalização da indústria de defesa brasileira: análise da alternativa Cooperação Sul-americana/européia. Vértices, v. 9, n. 1, 2007.

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