Direitos Fundamentais e Relações Privadas

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Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas 1. Introdução O debate apresentado é o da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Horizontal porque tais direitos não incidem apenas na relação Estado-cidadão, que é uma relação vertical, mas na relação entre particulares, que se encontram em posição de igualdade formal (e é dita, por isso, horizontal). O grande contraponto a essa incidência horizontal é o fato de, nas relações privadas, existir não apenas um direito fundamental em jogo, a merecer a proteção jurídica, mas dois, sendo um deles, normalmente, a autonomia privada, o que não ocorre quando no pólo passivo está o Estado (pois este não é detentor de direitos fundamentais). Daí a necessidade de compatibilizá-los. 2. Terminologia A questão da incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas surge na Alemanha sob a denominação drittwirkung der grundrechte, que significa “eficácia perante terceiros”, para apontar um novo destinatário dos direitos fundamentais, um terceiro, que não o Estado. Depois, passa- se a falar em horizontalwirkung, eficácia horizontal, no sentido de igualdade entre as partes na relação onde incide o direito fundamental. Outra expressão empregada, esta a de uso mais corrente, é a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas (grundrechte und privatrecht). A doutrina nacional acaba se valendo dessas expressões indistintamente. 3. A Colocação do Problema 3.1. Histórico dos Direitos Fundamentais A idéia de direitos fundamentais como um conjunto de direitos inatos ao homem, inalienáveis, imprescritíveis e anteriores mesmo ao Estado remonta à discussão do chamado direito natural na Antigüidade Clássica. Entretanto, é no período da efervescência iluminista, de oposição ao Absolutismo Monárquico, que se levanta a idéia de uma esfera de liberdade do indivíduo ante o despotismo do Estado.

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O debate apresentado é o da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Horizontal porque tais direitos não incidem apenas na relação Estado-cidadão, que é uma relação vertical, mas na relação entre particulares, que se encontram em posição de igualdade formal (e é dita, por isso, horizontal). O grande contraponto a essa incidência horizontal é o fato de, nas relações privadas, existir não apenas um direito fundamental em jogo, a merecer a proteção jurídica, mas dois, sendo um deles, normalmente, a autonomia privada, o que não ocorre quando no pólo passivo está o Estado (pois este não é detentor de direitos fundamentais). Daí a necessidade de compatibilizá-los.

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Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas

1. IntroduçãoO debate apresentado é o da chamada eficácia horizontal dos direitos

fundamentais. Horizontal porque tais direitos não incidem apenas na relação Estado-cidadão, que é uma relação vertical, mas na relação entre particulares, que se encontram em posição de igualdade formal (e é dita, por isso, horizontal).

O grande contraponto a essa incidência horizontal é o fato de, nas relações privadas, existir não apenas um direito fundamental em jogo, a merecer a proteção jurídica, mas dois, sendo um deles, normalmente, a autonomia privada, o que não ocorre quando no pólo passivo está o Estado (pois este não é detentor de direitos fundamentais). Daí a necessidade de compatibilizá-los.

2. TerminologiaA questão da incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas surge na

Alemanha sob a denominação drittwirkung der grundrechte, que significa “eficácia perante terceiros”, para apontar um novo destinatário dos direitos fundamentais, um terceiro, que não o Estado. Depois, passa-se a falar em horizontalwirkung, eficácia horizontal, no sentido de igualdade entre as partes na relação onde incide o direito fundamental. Outra expressão empregada, esta a de uso mais corrente, é a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas (grundrechte und privatrecht). A doutrina nacional acaba se valendo dessas expressões indistintamente.

3. A Colocação do Problema

3.1. Histórico dos Direitos FundamentaisA idéia de direitos fundamentais como um conjunto de direitos inatos ao

homem, inalienáveis, imprescritíveis e anteriores mesmo ao Estado remonta à discussão do chamado direito natural na Antigüidade Clássica. Entretanto, é no período da efervescência iluminista, de oposição ao Absolutismo Monárquico, que se levanta a idéia de uma esfera de liberdade do indivíduo ante o despotismo do Estado.

Nesse sentido, é compreensível que a tais direitos tenha se reservado o papel de deveres de abstenção do Estado, que deveria manter-se inerte para não violá-los. O conteúdo dos direitos fundamentais, nesse primeiro momento, é, portanto, um conteúdo liberal e individualista, consagrador de valores como a isonomia, as liberdades individuais, a vida, a legalidade, a propriedade (os chamados direitos de 1ª geração).

A Constituição, com os direitos fundamentais consagrados, operava seus efeitos, então, apenas na relação indivíduo-Estado, valendo, no campo privado, o Código Civil, fundado essencialmente na autonomia privada. Na liberdade de contratar. Desse modo, operou-se uma rígida separação: de um lado, a Constituição, com os direitos fundamentais e a idéia de contenção ao poder estatal; de outro, a disciplina das relações entre indivíduos, sujeita, fundamentalmente, ao princípio da autonomia privada.

A concepção puramente liberal dos direitos fundamentais, de extrema importância no patrimônio humano, começa, no entanto, a se mostrar insuficiente à medida que o capitalismo acentua o quadro de exploração do homem pelo homem. A chamada questão social gera críticas ao liberalismo econômico, apontando problemas que o Estado puramente absenteísta não tinha como resolver. Começa a formar-se a convicção de que o Estado precisava intervir, garantindo condições mínimas de subsistência aos cidadãos.

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A partir dessas críticas, surge, com as Constituições do México e de Weimar, o chamado Estado do Bem-Estar Social, e, com ele, a consagração de um novo elenco de direitos, os quais demandam prestações positivas do Estado destinadas à garantia dessas condições mínimas de existência. É nesse contexto que ocorre a incorporação aos textos constitucionais dos direitos sociais e econômicos, como a educação, saúde, previdência, trabalho, ditos de 2ª geração. O Estado Liberal transforma-se no Estado Social.

O advento do Estado social supera a concepção liberal de que o Estado não se imiscuía no campo das relações privadas. O Estado passa a regulamentar as relações sociais e a Constituição, nesse sentido, se projeta na ordem civil.

3.2. A Constitucionalização do Direito PrivadoA Constituição vai converter-se em centro unificador do ordenamento civil. De

fato, a posição hierárquica superior da Constituição, a abertura de suas normas e o fato de que estas, por uma deliberada escolha do Constituinte, versam também sobre relações privadas, possibilitam que se conceba a Lei Maior como novo centro do Direito Privado, apto a cimentar suas partes e informar seu conteúdo. A unidade do sistema, não apenas no sentido lógico-formal, mas também no substantivo, fica recomposta, pois a Constituição costura e alicerça todo o manancial de normas editadas pelo legislador infraconstitucional.

De se ressaltar, nesse sentido, que a Constitucionalização do Direito Privado não se resume ao acolhimento, em sede constitucional, de matérias que, no passado, eram versadas no Código Civil. O fenômeno é muito mais amplo, e importa na releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição.

A Constitucionalização do Direito Privado não significa apenas o deslocamento geográfico do seu centro. Mais do que isso, trata-se de um processo que importa em modificações substantivas e relevantes na forma de se conceber e encarar os principais conceitos e institutos jurídicos.

Assim é que devemos compreender os valores de justiça social, solidariedade, democracia, os direitos fundamentais em sua influência sobre todo o ordenamento, como chave de leitura de todo o sistema. E isso vale ainda com mais força quando pensamos no princípio da dignidade da pessoa humana, o novo “epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil”. O princípio da dignidade da pessoa humana confere unidade de sentido e valor à nossa ordem jurídica, devendo, por isso, condicionar e inspirar a exegese e aplicação de todo o direito vigente, público ou privado.

Tal princípio, para além de sua evidente aplicação como limite para o Poder Público e mesmo como norte para a conduta estatal (impondo a necessidade de prestações positivas ligadas à garantia do mínimo existencial), como não poderia deixar de ser, penetra também na seara do Direito Privado.

3.3. Dimensão Objetiva dos Direitos FundamentaisA partir dessa constatação, há uma inversão na compreensão dos direitos

fundamentais. A teoria liberal concebia os direitos fundamentais como limites impostos ao Estado, que lhe impunham um dever jurídico de abstenção. Era uma perspectiva, portanto, subjetiva, pois se cuidava apenas de identificar quais pretensões podia o indivíduo exigir do Estado.

Para além dessa função, a doutrina passa a falar também em uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ligada ao reconhecimento de que tais direitos, além

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de imporem certas prestações aos poderes estatais, consagram também os valores mais importantes em uma comunidade política, constituindo as bases da ordem jurídica da coletividade. Exprimindo os valores nucleares de uma ordem jurídica democrática, os direitos fundamentais deixam de ser apenas limites ao Estado, convertendo-se em norte de sua atuação.

E mais: a dimensão objetiva importa no reconhecimento de que os direitos fundamentais, condensando os valores mais relevantes para determinada comunidade política, não protegem o homem unicamente contra lesões estatais, mas também contra agressões e ameaças provindas de terceiros. Expande-se o seu alcance para o âmbito das relações não estatais, limitando a autonomia dos particulares e protegendo a pessoa humana da opressão exercida pelos atores privados.

Uma das mais importantes conseqüências da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é o reconhecimento da sua eficácia irradiante, que significa que os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais. A eficácia irradiante enseja a humanização da ordem jurídica, a partir da leitura da mesma à luz dos valores de dignidade, justiça, solidariedade.

3.4. Autonomia Privada versus Direitos FundamentaisA expressão “autonomia privada” designa um dos componentes da liberdade,

direito constitucional fundamental: a autonomia privada envolve tantos aspectos ligados a escolhas existenciais como também uma dimensão mais prosaica da vida humana, concernente à celebração de contratos e outros negócios jurídicos de caráter patrimonial.

A idéia central de autonomia privada é de que compete a cada homem determinar os rumos de sua existência, de acordo com suas próprias preferências e escolhas. Quando, portanto, se defende a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, se coloca a autonomia privada como contraponto natural a essa eficácia.

Ora, se os particulares são titulares de uma esfera de liberdade juridicamente protegida, que deriva do reconhecimento de sua dignidade, a mera transposição de todos os direitos fundamentais às relações privadas comprimiria excessivamente esse campo da autodeterminação individual. Daí a afirmação de que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais requer uma atividade de ponderação, na qual deve figurar, num dos pratos da balança, o próprio direito fundamental em jogo, e, no outro, a autonomia privada do particular.

4. Teorias sobre a Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas

Demonstrada a necessidade de estender os efeitos dos direitos fundamentais às relações privadas, necessário verificar a forma como se dá essa incidência. Obviamente, não se dará ela da mesma forma que nas relações entre o indivíduo e o Estado, visto que estaremos diante de uma oposição entre sujeitos dotados ambos de direitos fundamentais.

O ponto nodal da questão consiste na busca de uma fórmula de compatibilização entre, de um lado, uma tutela efetiva dos direitos fundamentais, e de outro, a salvaguarda da autonomia privada da pessoa humana.

4.1. A negação da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas e a doutrina da “State Action”

Se hoje é praticamente consenso a idéia de que os direitos fundamentais penetram nas relações privadas (restando dúvidas apenas em relação à forma e extensão

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desta incidência), na Alemanha, logo após o surgimento dessa teoria levantou-se-lhe uma reação de forte oposição. Sem embargo, a corrente que negava a eficácia horizontal praticamente desapareceu na Alemanha depois que esta eficácia foi reconhecida por reiteradas decisões do Tribunal Constitucional a partir da década de 50.

É nos EUA que se levanta maior oposição à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. É ponto pacífico, dentro da tradição jurídica norte-americana, a idéia de que os direitos fundamentais impõem limitações apenas para os poderes públicos e não atribuem aos particulares direitos frente a outros particulares (com exceção expressa da proibição à escravidão).

Essa posição é justificada: (i) pela literalidade do texto constitucional, que se refere apenas aos Poderes Públicos na maioria das suas cláusulas consagradoras de direitos fundamentais; (ii) pela proteção à autonomia privada, que seria extremamente suprimida se os particulares tivessem de conformar suas condutas às exigências constitucionais; e (iii) a existência do pacto federativo, pois compete aos Estados, e não à União legislar sobre direito privado, impedindo-se, assim, que as cortes federais intervenham nessa disciplina a pretexto de aplicar a Constituição e salvaguardar direitos fundamentais.

Essa doutrina da state action inicia-se com os Civil Right Cases, já no século XIX, quando ficaram assentadas duas premissas: (i) os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição vinculam apenas os Poderes Públicos; (ii) o Congresso Nacional não tem poderes para editar normas protegendo os direitos fundamentais nas relações privadas, pois essa competência é exclusiva do legislador estadual.

Tal doutrina, contudo, ainda que vigente e amplamente dominante, sofre alguns temperamentos a partir da década de 1940, quando a Suprema Corte passa a reconhecer que também os particulares agindo no exercício de atividades de natureza tipicamente estatal estarão também sujeitos às limitações constitucionais. É a chamada public function theory. Assim é que existiriam, segundo a Suprema Corte, certas atividades que, independentemente de serem prestadas por particulares, são de natureza essencialmente estatal e, portanto, permitem a incidência de direitos fundamentais. É o exemplo emblemático do caso Marsh v. Alabama. Discutia-se se uma empresa privada, que possuía terras no interior das quais se erigiu verdadeira cidade, com ruas, lojas, casas, podia ou não proibir Testemunhas de Jeová de pregarem no interior de sua propriedade. A Suprema Corte declarou inválida tal proibição, pois, ao manter uma “cidade privada”, a empresa se equiparava ao Estado e se sujeitava à liberdade de culto.

4.2. A Teoria da Eficácia Indireta e Mediata dos Direitos Fundamentais na Esfera Privada

É a concepção dominante na doutrina e jurisprudência alemãs, pela qual os direitos fundamentais não ingressam no cenário privado como direitos subjetivos, que possam ser invocados a partir da Constituição. A ponte entre o Direito Privado e a Constituição, para submeter o primeiro aos valores constitucionais, é representada pelas cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados acolhidos pelo legislador, os quais devem ser interpretados e aplicados pelos juízes sempre em conformidade com a ordem de valores subjacente aos direitos fundamentais. A força jurídica dos preceitos fundamentais não seria diretamente invocada pelos particulares, mas a estes se aplicaria na concretização dos conceitos jurídicos abertos, como “boa-fé”, “probidade”, “retidão”. Na interpretação e concretização desses conceitos, ter-se-ia a incidência dos valores constitucionais fundamentais.

4.3. Teoria dos Deveres de Proteção e a Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais

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Um importante segmento da doutrina alemã, no qual figuram autores como Isensee e Canaris, vem defendendo a tese de que a doutrina dos deveres de proteção do Estado em relação aos direitos fundamentais constitui a forma mais exata para solucionar a questão da projeção destes direitos no âmbito das relações privadas.

Canaris, por exemplo, afirma que o legislador privado, como órgão do Estado, encontra-se plenamente vinculado aos direitos fundamentais. Não pode atentar contra eles, sob pena de inconstitucionalidade, e, mais do que isso, tem a obrigação de defendê-los. Mas os particulares, no exercício da sua autonomia privada, não se sujeitariam a esta mesma vinculação, pois, no seu entendimento, o comportamento dos entes privados nas suas relações recíprocas não estaria submetido aos direitos fundamentais. No entanto, caberia ao legislador disciplinar tais comportamentos, de modo a evitar lesões a direitos fundamentais decorrentes de pessoas não estatais. Sob este prisma, os atos privados não teriam de se conformar aos direitos fundamentais, tal como plasmado na Constituição, mas sim aos parâmetros ditados pelo legislador, no exercício da sua função de proteção daqueles direitos. E o legislador poderia optar pela introdução de direitos fundamentais na disciplina das relações privadas de modo mais preciso, através de regras dotadas de alto grau de densificação, ou então decidir pela atribuição de um espaço de valoração mais amplo para o Judiciário, valendo-se, nesse caso, de cláusulas gerais.

Notamos que, apesar da diferente fundamentação, a teoria dos deveres de proteção aproxima-se muito, quanto aos efeitos, da teoria da eficácia indireta dos direitos fundamentais, que também reclama mediação do legislador.

4.4. A Teoria da Eficácia Direta e Imediata dos Direitos Fundamentais na Esfera Privada

Com base na constatação de que ameaças aos direitos fundamentais não provêm apenas do Estado, mas também de atores privados, surge a teoria de que determinados direitos presentes na Constituição, pela sua própria natureza, podem ser invocados diretamente nas relações privadas, independentemente de qualquer concretização pelo legislador. Tais direitos, quando não suficientemente protegidos pelo legislador na esfera privada, incidirão diretamente e com efeito de obrigatoriedade nas relações entre os cidadãos, observada a necessidade de ponderação com a autonomia privada dos particulares envolvidos.

Conquanto não tenha logrado grande aceitação na Alemanha, tal teoria é majoritária na Espanha e em Portugal, por exemplo. Na Itália, apesar de não haver previsão constitucional expressa, a jurisprudência da Corte Constitucional aderiu à teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, da mesma forma que a doutrina de autores como Crisafulli e Perlingieri.

5. A Eficácia Direta e Imediata dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas no Direito Brasileiro

5.1. Os argumentos trazidosA Constituição e os direitos fundamentais que ela consagra não se dirigem

apenas aos governantes, mas a todos, que têm de conformar seu comportamento aos ditames da Lei Maior. Isso porque a Constituição não é apenas a lei fundamental do Estado brasileiro, mas também da sociedade, contendo os principais valores e diretrizes para a conformação da vida social no país.

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Não havendo nada no texto constitucional brasileiro que sugira a idéia de vinculação direta apenas dos poderes públicos aos direitos fundamentais, vamos ver que, no Brasil, tudo favorece a postulação da eficácia direta.

A sociedade brasileira é muito mais injusta e assimétrica do que a de qualquer outro país do Primeiro Mundo. Essa triste característica justifica um reforço na tutela dos direitos humanos no campo privado, em que reinam a opressão e a violência. Tal quadro impõe ao jurista a adoção de posições comprometidas com a mudança do status quo. Por isso, não hesita a doutrina nacional em afirmar que a eficácia desses direitos é direta e imediata, como questão de direito, ética e justiça.

Os argumentos que podem sustentar uma vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais são vários:

(i) Em relação à alegada restrição excessiva à autonomia privada, podemos contraditar no sentido de que tal autonomia não constitui um valor absoluto, e que pode, portanto, ser ponderada com outros direitos e interesses constitucionais. Nesse sentido, praticamente todos os defensores da eficácia direta apontam a necessidade de ponderação, resguardando, com isso, a autonomia privada.

(ii) Além disso, só existe efetivamente autonomia privada quando o agente desfrutar de mínimas condições materiais de liberdade, ou seja, só faz ela sentido se for exercida de forma livre e esclarecida, pressupondo uma verdadeira autodeterminação dos sujeitos, que só é possível com a atuação dos direitos fundamentais.

(iii) A objeção concernente à insegurança jurídica também pode ser refutada; em primeiro lugar, porque no próprio Direito Privado é extremamente freqüente o emprego de conceitos jurídicos indeterminados e de cláusulas gerais que também apresentam reduzido grau de determinação semântica. Portanto, deixar de lado a Constituição na resolução dos conflitos entre particulares não restauraria o “reino da segurança”. Por outro lado, o progressivo estabelecimento de standards para a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, com a identificação dos casos em que sua incidência deve prevalecer sobre a autonomia privada dos particulares, bem como aqueles em que deve ocorrer o contrário (as chamadas relações de precedência condicionada entre princípios) vem reduzindo a margem de subjetividade nas futuras decisões sobre questões semelhantes, e, com isso, a incerteza decorrente da aplicação de normas constitucionais abertas.

(iv) Finalmente, a alegada perda da autonomia do Direito Privado não se sustenta: nenhum ramo do direito, público ou privado, sobrevive hoje às margens da normatividade constitucional, fenômeno esse que deve ser louvado, sobretudo no caso brasileiro, diante das bases humanitárias, democráticas e solidárias do nosso texto.

Ademais, a compreensão de que o princípio da dignidade da pessoa humana representa o centro de gravidade da ordem jurídica, que legitima e modela o direito positivado impõe a adoção da teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais no âmbito dos particulares.

5.2. Doutrina e JurisprudênciaNesse sentido, vêm reconhecendo, doutrina e jurisprudência, a eficácia direta e

imediata de direitos fundamentais nas relações privadas. Ingo Sarlet pronunciou-se no sentido do reconhecimento da eficácia direta dos direitos fundamentais na esfera privada, após concluir que inexiste na nossa ordem jurídica respaldo suficientemente robusto a sustentar uma negativa no que diz com a vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais. Não obstante, reconheceu ele que a resolução de cada situação envolve uma ponderação, no caso concreto, com a autonomia privada do particular.

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Para Siqueira Castro, “o agravamento dos antagonismos sociais impôs a convicção de que os direitos fundamentais devem ser protegidos não apenas em face do Estado, mas especialmente em face da própria sociedade, nas relações entre particulares”. A partir daí, posiciona-se em prol do reconhecimento da eficácia direta, assentada no princípio da dignidade da pessoa humana.

Gustavo Tepedino, abordando a questão sob a perspectiva do direito civil-constitucional, também defende a incidência direta, apontando no sentido do fortalecimento da aplicação direta da Constituição como instrumento de humanização e solidarização do direito civil. O principal instrumento de tutela da pessoa nas relações entre particulares seria a cláusula geral da dignidade da pessoa humana.

Na jurisprudência, não são tão escassas as decisões utilizando diretamente os direitos fundamentais para dirimir conflitos de caráter privado. Porém, com raríssimas exceções, estes julgamentos não são precedidos de nenhuma fundamentação teórica que dê lastro à aplicação do preceito constitucional ao litígio entre particulares.

O STF julgou caso em que associados de uma cooperativa haviam sido excluídos sem oportunidade de defesa; apesar de a questão da incidência horizontal dos diretos fundamentais não ter sido travada, restou acolhida a pretensão dos associados excluídos, por força de aplicação direta do direito fundamental à ampla defesa.

Em outro caso, empregado brasileiro de companhia francesa pretendia o reconhecimento de direitos que, a princípio, só beneficiariam os empregados de nacionalidade francesa. O STF acolheu a pretensão do trabalhador, afirmando ofensa ao princípio da igualdade por meio de discriminação inconstitucional.

Mais recentemente, decidiu a corte que a proibição constitucional da prova ilícita também alcança, no processo penal, as provas resultantes de ato ilícito perpetrado por particular, no qual o Estado não tenha tido nenhuma participação. Dessas decisões, infere-se que o STF adota a tese mais progressista, aceitando a aplicação direta e imediata de direitos fundamentais na resolução de conflitos interprivados, independentemente da mediação do legislador.

6. Parâmetros para a Ponderação de Interesses no conflito entre os direitos fundamentais

Partindo da premissa de que Direitos Fundamentais vinculam particulares, a doutrina é assente em admitir que essa eficácia, entretanto, não é absoluta, tanto porque (i) nenhum direito fundamental é absoluto quanto (ii) porque nos dois lados da relação estão particulares, detentores de direitos fundamentais, o que não ocorre na relação com o Estado. Além disso, (iii) a autonomia privada, que aos direitos fundamentais se contrapõe, também é um bem constitucionalmente protegido. Ou seja, (iv) colisão entre um direito fundamental e o princípio da autonomia privada se coloca como colisão entre direitos fundamentais em sentido amplo (direito fundamental x bem constitucionalmente protegido).

Desse modo, a incidência de direitos fundamentais nas relações privadas haverá de ser diferenciada. Assim é que se fala, nessa incidência, na necessidade de ponderação do direito fundamental em jogo com a autonomia privada.

Direitos fundamentais não são absolutos, ilimitados. Ao contrário, são passíveis de restrição, harmonização, como condição do exercício de tais direitos por toda a coletividade. É a chamada “concordância prática”. Mas tal restringibilidade não pode ser excessiva: daí entrar em cena o princípio da proporcionalidade, pois a ponderação não pode ser um rótulo genérico para designar atividade absolutamente discricionária do juiz. É preciso traçar parâmetros e standards para tais casos de colisão, tornando a

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aplicação de direitos fundamentais uma atividade controlável e independente da mera subjetividade do juiz.

Diz Daniel Sarmento que um desses critérios é o grau de desigualdade fática entre os envolvidos: quanto maior a desigualdade, mais intensa a proteção ao direito fundamental em jogo, e menor a tutela da autonomia privada. Ao contrário, numa situação de igualdade, a autonomia privada recebe proteção mais intensa, abrindo espaço para restrições ao direito fundamental com ela em conflito. A desigualdade material justifica a ampliação da proteção aos direitos fundamentais na esfera privada, porque a assimetria de poder prejudica o exercício da autonomia privada das partes mais débeis. Entretanto, em qualquer dos casos torna-se indispensável uma compatibilização (harmonização) à luz do caso concreto.

Outro critério a ser inferido parte da constatação de que, na nossa ordem constitucional, a tutela da autonomia privada no que se refere às questões existenciais é muito mais intensa do que a conferida às decisões de caráter econômico patrimonial. Assim, na ponderação de interesses, é preciso verificar que, se a questão envolve decisão de caráter econômico patrimonial, a importância dada à autonomia privada será menor em relação à proteção do direito fundamental. E, se a decisão se liga a alguma escolha em que se manifeste mais intensamente a dimensão afetiva da personalidade e da intimidade do agente, o peso atribuído à autonomia privada na ponderação de interesses será consideravelmente maior. Quando a autonomia privada envolver opções existenciais e personalíssimas da pessoa humana, restringe-se a incidência dos direitos fundamentais, sob pena de sacrifício sagrado do espaço de autodeterminação individual, abrigado sob o pálio do princípio da dignidade da pessoa humana.

Sofisticando um pouco mais o raciocínio, diz Wilson Steinmetz que a solução para a colisão de direitos fundamentais pode ser reduzida na chamada lei de colisão, que consiste em, dadas as circunstâncias do caso, estabelecer entre os princípios uma relação de precedência condicionada. Ou seja, “tomando-se em conta o caso, indicam-se as condições sob as quais um princípio precede o outro. Sob outras condições, a questão da precedência pode ser solucionada inversamente”. E isso se faz através da atribuição de diferentes pesos aos interesses em conflito, na fórmula: “o princípio P1 tem, em um caso concreto, um peso maior do que o princípio P2 quando existem razões suficientes para que P1 preceda a P2, sob as condições C dadas no caso concreto”.

Esse raciocínio pode ser estendido genericamente a todas as situações de conflito de direitos fundamentais: “se o princípio P1, sob as circunstâncias C, precede o princípio P2, e se de P1 sob a circunstância C resulta a conseqüência R, então vale uma regra que contém C como suposto de fato e R como conseqüência jurídica: na ocorrência de C, tem-se a conseqüência R”. Ou seja, o resultado da ponderação pode ser formulado como uma regra – uma regra de precedência ou preferência que expressa uma relação de precedência condicionada – sob a qual se subsume o caso concreto. Da generalização dessa regra resulta a lei de colisão.

Se, de um lado, não é possível a estruturação de um sistema (uma ordem hierárquica) abstrato de precedência entre princípios, dada sua idêntica hierarquia in abstracto, de outro lado é possível estabelecer condições (gerais) de precedência prima facie.

As precedências prima facie não contêm determinações definitivas em favor de um princípio (P1) e em detrimento de outro (P2), mas estabelecem um ônus de argumentação para a precedência deste (P2). Ou seja, é uma carga de argumentação a favor de um princípio (e, por conseqüência, contra o outro). Assim, exemplificativamente, como já decidiu o Tribunal Constitucional Alemão, na colisão entre a liberdade de informação e a proteção à personalidade, apesar de se estabelecer,

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em um primeiro momento da argumentação, a precedência geral do princípio da liberdade de informação, se os argumentos em favor da proteção à personalidade forem mais fortes, então aquela precedência prima facie deve ser afastada, porque se cumpriu com o ônus da argumentação. As precedências prima facie atuam, assim, como ponto de partida, mas não necessariamente serão confirmadas na chegada, podendo ser afastadas caso o outro princípio tenha a seu favor uma argumentação, no caso concreto, mais forte.

Como conclusão ao raciocínio acima exposto, sugere Wilson Steinmetz um sistema geral de precedências prima facie entre direitos fundamentais e autonomia privada, que pode ser sinteticamente descrita a seguir:

1. em uma relação contratual de particulares em desigualdade fática: (a) se o direito fundamental é de conteúdo pessoal, há uma precedência prima facie deste sobre o princípio da autonomia privada; (b) mesmo se o direito fundamental é de conteúdo patrimonial, há uma precedência prima facie deste sobre o princípio da autonomia privada.

2. em uma relação contratual de particulares em igualdade fática: (a) se o direito fundamental é de conteúdo pessoal, há uma precedência prima facie deste sobre o princípio da autonomia privada; (b) mas se o direito fundamental é de conteúdo patrimonial, há uma precedência prima facie do princípio da autonomia privada sobre o direito fundamental.