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GRANTA DIÁRIOS DA SÍRIA (2012) Jonathan Littell TRADUÇÃO DE ANDRÉ TELLES

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GRANTA

DIÁRIOS DA SÍRIA(2012)

Jonathan Littell

TRADUÇÃO DE ANDRÉ TELLES

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NOTA PRELIMINAR

Isto é um documento, não um ensaio. Trata-se da transcrição,

a mais fiel possível, de dois cadernos de anotações que man-

tive, por ocasião de uma viagem clandestina à Síria, em janeiro

de 2012. A princípio esses cadernos serviriam de base para as

reportagens que escrevi ao retornar. Aos poucos, contudo, entre

os longos períodos de espera ou ociosidade, os lapsos de tempo

exigidos durante as conversas pela tradução e uma certa excitação

que tende a querer transformar no calor da hora o vivido em texto,

eles ganharam amplitude. É o que torna possível sua publicação.

O que a justifica é coisa bem diversa: o fato de eles abrangerem

um momento breve e já evanescido, praticamente sem testemu-

nhas de fora, dos últimos dias do levante de parte da cidade de

Homs contra o regime de Bashar al-Assad, imediatamente antes

de este ser reprimido num banho de sangue que, no momento em

que escrevo estas linhas, ainda perdura.

Gostaria de ter apresentado este texto em sua forma bruta,

sem interferências. Contudo, em virtude das circunstâncias de sua

redação, determinados trechos resultaram demasiado confusos ou

fragmentários e tiveram de ser reescritos. Em outros, a memória

viu-se tentada a compensar a desatenção. Porém, afora as notas

e esclarecimentos ou comentários imprescindíveis, grafados em

itálico, procurei não acrescentar nada.

Como é de conhecimento geral, o governo sírio proibiu taci-

tamente que jornalistas estrangeiros trabalhem em seu território.

Os raros profissionais a obter uma credencial de jornalista são mi-

nuciosamente monitorados e vigiados, cerceados em seus movi-

mentos e possibilidades de encontrar sírios comuns, e submetidos

a todo tipo de manipulações ou provocações — às vezes crimino-

sas, como a que custou a vida do repórter francês Gilles Jacquier.

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JONATHAN LITTELL

Alguns conseguiram trabalhar fora desse contexto, seja entrando

com um visto de turista, depois “escapando” do dispositivo de vi-

gilância, seja atravessando a fronteira ilegalmente, com o apoio do

Exército Sírio Livre, como fiz em companhia do fotógrafo Mani.

Nesse caso, como pude constatar nas últimas semanas, os riscos

tampouco são desprezíveis.

Tive a ideia dessa reportagem em dezembro de 2011, depois

que minha amiga Manon Loizeau retornou da cidade de Homs,

onde acabava de rodar um documentário. Conversei com a di-

reção do jornal Le Monde, que aprovou o projeto, sugerindo-me

depois trabalhar em equipe com Mani. Este já passara mais de um

mês na Síria, em outubro e novembro de 2011, tendo publicado

uma primeira série de fotografias, inéditas na época. Se consegui-

mos entrar na Síria rapidamente e com relativa facilidade, e traba-

lhar em Homs tão livremente quanto fizemos, foi de fato graças a

seus contatos e conhecimento prévio do terreno. Diante da quase

impossibilidade de encontrar um intérprete no local, Mani, que

fala um árabe fluente, também traduziu a maior parte das conver-

sas. Nossa reportagem, com texto e fotografias, foi publicada no

Le Monde em cinco partes, de 14 a 18 de fevereiro.

Mani, claro, aparece constantemente nesses cadernos. Devido

à nossa condição de clandestinos, ambos adotamos “codinomes”

(o meu era Abu Emir), e conservo aqui o seu, Raed. Da mesma

forma, a maioria de nossos interlocutores sírios aparece sob pseu-

dônimo, seja sob o que eles próprios escolheram para si, seja sob

um forjado por mim. Os que figuram com seus nomes verdadei-

ros deram-me autorização expressa para isso. A propósito, não

publico os nomes das pessoas que vi feridas ou mortas, no receio

de possíveis represálias contra eles ou sua família sobrevivente.

Essa reportagem não teria sido possível sem a confiança e o

apoio que Le Monde me proporcionou. Eu gostaria de agradecer a

todos do jornal que participaram do projeto, em particular a Serge

Michel, secretário da redação, e Gilles Paris, chefe da editoria in-

ternacional. Por fim, gostaria de exprimir toda a minha gratidão e

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DIÁRIOS DA SÍRIA

admiração pelos numerosos sírios, militantes civis e combatentes

do Exército Livre, que nos ofereceram sua ajuda, espontaneamen-

te e não raro arriscando suas vidas.

Jonathan Littell

Domingo, 22 de janeiro

BABA AMR

(...)

No parque ao lado, as crianças correm, brincam, gritam sob a

neve úmida.

Para de nevar subitamente. Enquanto comemos falafels frios

numa birosca, uma detonação, não muito distante, seguida por

rajadas.

Circulamos um pouco em meio à cerração, depois encontra-

mos um soldado que propõe nos mostrar o local da detonação. É

num beco próximo ao “front”, à rotatória que desemboca na rua

Brasil: dois disparos de lança-granadas, bem ao lado de um dos

últimos postos do ELS [Exército Livre da Síria], uma das quais

não explodiu. Observamos o impacto e vamos embora. O solda-

do, Abdulkader, declara: “Vocês precisam ir. Riad al-Assaad disse

que vocês não podem ficar, por razões de segurança, sua própria

segurança. O Exército ameaça atacar o bairro como atacaram o

grupo de Jacquier.”

Como foi dito, essa tensão com diversos ativistas civis, ou soldados do ELS, foi uma constante em nossa visita. Em diversas ocasiões, Raed teve de se defender contra tentativas um tanto incivilizadas de deletar alguns arquivos seus. Todas as vezes, Muhannad al-Umar, do Conse-

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lho Militar, interveio para acalmar a situação, e eis por que mais uma vez procuramos encontrá-lo aqui.

Ligam para Muhannad: “Voltem para o abrigo de Hassan.

Chego em vinte minutos.” Voltamos. Lá, Hassan e seus amigos

nos esperam com um frango assado saído do forno e homus, que

eu devoro com alegria, enquanto Raed, por via das dúvidas, cria

uma cópia de todos os seus arquivos.

Chegada de Muhannad. Todo mundo senta em círculo e ime-

diatamente a coisa fica mais formal. Calmamente, Muhannad faz

perguntas a Raed: Viu o que queria ver? Quais são seus planos? O

que acha da situação? Raed explica que a situação está melhor do

que em sua primeira visita; graças à expulsão da barreira, o bair-

ro está mais seguro. Gostaríamos de continuar indo a Khaldiya,

depois talvez a Telbisi, ver pessoas que ele conhece e cujos nomes

desfia. “Quem os atravessou na fronteira com o Líbano?” — “Abu

Brahim.” E prossegue nesse ritmo. Muhannad indaga a respeito do

problema na primeira clínica, com Abu Bari. Raed explica: as fo-

tografias etc. Muhannad: “Não é recomendável ir à clínica de Abu

Bari. Foi por isso que os levamos para os feridos da outra clínica.”

Ele e Hassan trocam uma palavra sobre Jeddi, sobre como

ele se comportou mal no primeiro dia, saindo e batendo a porta.

Muhannad: “Isso não é digno de um responsável pela informa-

ção, ele não se comportou direito. Deveria se desculpar. Os que

se comportaram mal com vocês devem se desculpar. Se quise-

rem continuar, podem continuar sem problema, são bem-vindos.

Imad permanecerá com vocês e não haverá problema.”

Muhannad conta que um oficial da polícia criminal, Abu Ali

Munzir, junto com dois shabbiha, raptou quatro garotas. É o mes-

mo homem mencionado pela garota na clínica de Abu Bari. Dian-

te de nós, ele telefona para a garota, obtém os mesmos cinco no-

mes que já tenho, depois um sexto. Há três outras garotas detidas

por Munzir, mas eles não têm os nomes. Nove ao todo.

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A sexta garota é aquela sobre a qual nos falaram no Conselho

Militar, aquela capturada no salão de cabeleireiro. Muhannad diz

que sim, quando falamos dela, achavam que ela tinha sido captura-

da pelos mukhabarat da aviação, mas agora sabem que foi Munzir.

Munzir detêm as mulheres por conta própria, como um shab-biha. O ELS faz pressão, por intermédio dos observadores da Liga

Árabe, para que elas sejam transferidas para a Segurança Política,

mas sem resultado até o momento.

O irmão de Mohammed Z., do “salafista simpático”, como

o chamo, está aqui. Chama-se Abu Salaam. Explica que as duas

mulheres de seu irmão foram capturadas no fim de dezembro pe-

los shabbiha, nos pomares. Mohammed é procurado, e os shabbiha

foram atrás dele em sua casa de campo; não o encontrando, pega-

ram as duas mulheres como reféns para que ele se rendesse. Elas

permaneceram detidas por seis dias; depois, com a chegada dos

observadores da Liga Árabe, foram libertadas. Mohammed não

nos contou receando que pedíssemos para vê-las.

As mulheres de Mohammed sofreram maus-tratos, diz Muhan-

nad, maus-tratos terríveis. Sem maiores esclarecimentos. Há muita

gente na sala para que possamos insistir.

Voltamos à questão da jihad. Muhannad: “Há mortos diaria-

mente. A posição da Liga Árabe é fraca, a posição internacional é

fraca, logo a ideia da jihad se impõe a nós.”

O que isso significa? “Queremos que todos os combatentes do

mundo árabe venham se juntar a nós para a luta. Queremos que

todos os responsáveis que continuam a trabalhar para o Estado

sejam passíveis de pena de morte. Quando anunciarmos isso, to-

dos os civis que ainda não pegaram em armas se juntarão a nós.”

Para eles, a pressão internacional é insuficiente. “Se passarmos

à jihad, passamos à etapa de uma revolução militarizada.”

Imad intervém: “Não, se fizermos isso, passamos a uma guerra

generalizada.”

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Eles querem uma intervenção direta da Otan, o que não era o

caso em novembro. Naquela época, Raed assistira a uma manifes-

tação em Kussur [um bairro a noroeste da cidade], onde um ativista

tentara lançar o slogan: “O povo quer uma intervenção da Otan!”

Ninguém o repetiu, a despeito de todas as tentativas.

Muhannad: O ELS raptou três homens e duas mulheres para

trocá-los por 16 operários da empresa Mandarin (Pepsi) captu-

rados pelos shabbiha em torno de 16 de novembro. Eles foram

detidos numa barreira mukhabarat, que chamaram os shabbiha,

que os levaram. Cinco dias depois, o ELS raptou os cinco e dali a

dois dias negociou uma troca.

Uma das duas mulheres era alauita; a outra, ismaelita. Uma era

esposa, a outra irmã de um oficial. Os três rapazes eram alauitas

também, dois shabbiha e um gerente de bordel, segundo eles.

Muhannad acha que o acirramento da repressão provavelmen-

te levará a um conflito sectário. “O fato de a comunidade alauita

apoiar inequivocamente o regime pode conduzir a um conflito

sectário. Mas essa questão é da alçada dos líderes religiosos, dos

xeiques.

“Estamos conscientes de que o regime joga a cartada do con-

flito sectário. Contudo, se o regime cair, seus métodos desapare-

cerão. Não haverá represálias. Os que houverem participado serão

julgados. A comunidade alauita terá o que lhe cabe, como todos

os cidadãos sírios. Seja como for, não podemos eliminá-los. Eles

fazem parte da sociedade síria, como nós.

“Sei como pensam as pessoas na comunidade sunita. Não te-

mos esse pensamento sectário.”

Pedimos explicações sobre a organização do bairro. Há três

estruturas:

— os majlis al-askari (Conselho Militar): 24 membros, dos

quais três civis e 21 militares;

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— os majlis al-shura (Conselho Civil ou Conselho Consultivo),

que se ocupa das questões de justiça, do socorro humanitário aos

civis e também do abastecimento do ELS: 14 membros, dos quais

sete civis e sete militares;

— os tansikiyyat (Comitês de Coordenação Locais): organi-

zam as manifestações. O maktab el-al’iilami (escritório da Infor-

mação) é um desses comitês.

Muhannad afirma que Abderrazzak Tlass não é o comandan-

te da katiba. Não quer dizer o nome do verdadeiro comandante.

Abderrazzak Tlass é membro do Conselho Militar, mas determi-

nados membros têm patentes mais altas que ele, como o naqib que

vimos na manifestação (que na verdade desertou há dois meses).

Há um coordenador, que é membro do Conselho Militar —

seu nome é secreto —, que faz a ligação com os tansikiyyat e serve

de elo entre o Conselho Militar, os tansikiyyat e o Conselho Na-

cional Sírio. É ele também que faz a ligação com Riad al-Assaad.

Riad al-Assaad dá ordens, orientações gerais e também armas

e dinheiro. Eles reconhecem sua autoridade.

O Conselho Militar concorda com a visão e os objetivos polí-

ticos do CNS. Ele considera que o CNS representa o povo revo-

lucionário e aceita sua autoridade. Caso um governo provisório

venha a se constituir, ele se alinhará sob sua autoridade.

Chegada de um velho senhor de terno, muito elegante, um ex-

-oficial reformado que se põe a colocar no ombro os fuzis de fran-

coatiradores e a dar conselhos. Depois, uma grande discussão

entre os homens, Hassan, Imad, o velho, Abu Jauad, Abu Assad,

sem a participação dos jovens. No fim, Abu Jauad e o velho sacam

cédulas, um grande maço de libras sírias, e entregam uma par-

te a Hassan, “para os jovens”, se bem compreendi. Hassan tenta

recusar, discute, finalmente o dinheiro fica sob um cinzeiro. Em

seguida todo mundo se despede e vamos para a casa do doutor Ali

acessar a internet.

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*

Nos deparamos com uma sala cheia de ativistas, cada um com

um laptop, trabalhando no Facebook ou outra coisa qualquer.

Estão presentes Alush, que lidera as manifestações, e amigos.

Preparam um narguilé. As conexões são muito lentas, mas safe, protegidas por Tor. Mas meu pendrive contraiu um vírus sério

na casa de Abderrazzak Tlass. É impossível limpá-lo. “Peguei-o

no al-Jaych al-Hurr, o Exército Livre.” — “Al-Jaych al-Hurr é

um vírus!”

Ali, o mártir vivo, está presente. Seus companheiros contam

como o julgaram morto. Pesava cem quilos na época e seu amigo,

Abu Sliman, um rapazola esguio, não conseguia sequer puxar seu

corpo. Foi levado para o hospital atravessando as barreiras; quan-

do os soldados viram seu estado, deixaram-no passar. “De toda

forma, ele já está morto.”

Bastante orgulhoso, o mártir vivo nos mostra um vídeo com ele

logo depois do ferimento, metade do pulmão para fora do peito.

Segundo os jovens, houve somente uma morte desde a nossa

chegada, Abd al-Kafi M., morto no hospital militar. Sem dúvida

foi o enterro que perdemos, daquele que diziam que tinha aca-

bado de morrer. Mas imediatamente antes estava muito violento:

cinco mortos no domingo, dia 15, cinco mortos na terça, 17, um

morto na quarta, 18, véspera de nossa chegada.

Abu Sliman: “Nossos pais foram subjugados pelo medo. Nós

derrubamos o muro do medo. Ou venceremos ou morreremos.”

Faz um V com os dedos. Sessão de fotos, posamos todos fazendo

um V — mas apenas para as suas câmeras, a minha, não.

*

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Segunda-feira, 23 de janeiro

BABA AMR

Acordo agitado. Por volta das 10h, 10h20, emerjo lentamente

ao som de rajadas distantes. Tento sacudir Raed; Fadi e Ahmad

dormem na sala, vou procurar água quente, mas não há mais die-

sel. Logo aparecem uns caras, um pouco nervosos. Vêm pegar

metralhadoras e cinturões de cartuchos. As rajadas continuam, a

maioria bastante próxima, parece estar acontecendo alguma coisa.

Os soldados acordam Fadi e Ahmad, nos vestimos às pressas e

decidimos acompanhá-los.

Do lado de fora faz um frio úmido, enevoado. Atravessamos

o largo correndo na direção do posto de comando de Hassan.

Ninguém. Imad chega de carro cantando pneu, explica por alto.

Saímos correndo pela rua dos prédios defronte da linha de fren-

te, que são as posições de tiro. As rajadas são constantes e bem

próximas, agora é claramente o ELS que atira. Ibn Pedro chega

de carro com dois camaradas e subimos num prédio, até o se-

gundo andar. Um rapaz está posicionado atrás de um buraco de

obus com uma metralhadora, mas ela está travada. Ahmad sobe

com a sua, toma seu lugar e começa a disparar curtas rajadas.

Os cartuchos vazios ricocheteiam nas paredes, Raed fotografa,

é um estrondo infernal. Os outros observam calmamente, fu-

mando e trocando gracejos. Um pouco mais tarde, Ibn Pedro

toma o lugar de Ahmad para treinar a mão, um pequeno exer-

cício matinal. O cheiro da pólvora toma conta do apartamento

destroçado.

Ibn Pedro nos explica a situação: um francoatirador posicio-

nado num dos edifícios perto do estádio começou a alvejar civis e

feriu quatro. O ELS responde.

O primeiro jovem retoma seu lugar e passa a atirar. Dispara

algumas rajadas, mas sua metralhadora trava o tempo todo.

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Saímos. Os caras na rua estão calmos, conversam. Fadi chega.

Eu: “E aí, colocou o óleo para aquecer a água?” Ahmad sai nova-

mente para arranjar munição.

Percorremos a rua com Fadi, atravessamos outro prédio, de-

pois transpomos o muro do jardim por um buraco para entrar

no prédio do meio. A claraboia da escada está exposta, temos de

subir correndo. Lá em cima, no apartamento, a televisão derreteu,

os sofás estão todos revirados. Um cara posicionou uma escada

metálica em frente a um buraco na parede, para servir de apoio à

sua arma, e se instalou confortavelmente numa pequena cadeira

de escritório. Vários indivíduos se revezam para dar alguns tiros.

Começo a anotar, Raed telefona para Imad. Há três feridos do

ELS, por um RPG, um deles com bastante gravidade. Mas todos

eles estão na clínica de Abu Bari, não teremos acesso.

Descemos novamente, saímos, depois voltamos a subir, ao

primeiro apartamento. Abu Hussein, um barbudo atarracado e

sorrindo com seus dentes estragados, envolto num poncho-co-

bertor tradicional, faz disparos barulhentos com seu G3 Heckler

& Koch. O outro continua a digladiar-se com sua metralhadora

travada, depois dispara algumas rajadas que ressoam na saleta.

Agora acalmou um pouco, mas os caras acham que o Exército

voltará à carga. Ainda há pouco houve o disparo de um lança-gra-

nadas, mais distante, em contrapartida nenhum tiro de obus. Pa-

rece que estamos fora de alcance dos RPG. Abu Hussein explica

que eles só atiram com os tanques quando atacam. Em compen-

sação, se o ELS mata alguém do lado deles, eles lançam obuses de

morteiro.

O imã local faz seu chamado à prece como se nada estivesse

acontecendo. Jovens entram e saem. Alaa posicionou-se diante do

buraco e fuma.

Calmaria. Conversas. Abu Mahmud entra, cumprimenta ale-

gremente. Outro soldado ELS foi ligeiramente ferido, estilhaços

de vidro na testa. Soldados propõem partir para Insha’at. “Não,

permaneçam em seus postos”, ordena Abu Mahmud.

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Faz um frio do cão, o vapor dos bafejos sobe diante dos rostos,

os homens circulam no apartamento devastado.

Ali nos chama: há um shahid na mesquita Gilani. Corremos

para lá para não perder o fim da prece. Chegamos ofegantes.

Dentro da mesquita, poucas pessoas rezam. O cadáver jaz num

canto, envolto numa mortalha e depositado sobre um esquife.

Mas parece ter morrido de morte natural.

Compramos doces e batatas fritas na mercearia da esquina, o

suficiente para todos os caras, e voltamos correndo para os pré-

dios do front. Abu Mahmud recebeu a informação, de um homem

vindo de Insha’at, onde isso começou, de que o Exército vai atacar.

Diante de sua base, Hassan, de moletom, aparafusa um fuzil de

francoatirador. Confirma a informação e nos aconselha a procu-

rar proteção no apartamento.

Conversa com Raed. Hassan sugere irmos ao encontro de Ibn

Pedro, que está atirando num prédio. Raed quer ficar com Has-

san. De toda forma, é apenas uma pausa, quase não há tiros, os

homens se aquecem em torno de um braseiro.

Defronte do prédio, um Kia com cinco marcas de balas no

para-brisa, buracos nos assentos. O motorista nos conta: estava

se preparando para subir quando atiraram. “Al’hamdulillah!” Isso

aconteceu uma hora atrás, em Insha’at.

Voltamos para defronte do posto, comemos e conversamos. As

batatas são com vinagre, nada de muito gostoso. Fadi traz muni-

ções do apartamento. Volto lá para passar uma água no rosto e

pegar outro caderno — este está quase terminado e seria pena de-

sistir justamente quando está ficando interessante. Quando volto,

Abu Yazan está presente. É ele o ligeiramente ferido no front. Seu

companheiro, em Insha’at, foi ferido na virilha por um francoati-

rador e, de raiva, lançou um RPG através de uma sacada envidra-

çada, que explodiu na cara de Abu Yazan.

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Por enquanto tudo continua calmo. São cerca de 13h. Talvez os

militares tenham decidido comer antes de atacar.

Exatamente no momento em que escrevo isso, os tiros recome-

çam de todos os lados. Hassan nos pede para recuarmos para a pa-

rede. “Poderia haver uma granada.” Mas ninguém retorna ao inte-

rior do posto de comando. Os militares, parece, estão a cem metros.

Continua nublado. O sol paira acima dos prédios, um disco pá-

lido mas brilhante na cerração. O gosto um pouco cinza da guerra.

Hassan pega seu fuzil de francoatirador: “Vou testá-lo.” Atra-

vessamos o apartamento-posto de comando, depois um jardim,

um buraco num muro, outro apartamento devastado. Na sala, em

meio aos destroços, belos móveis, sofás e poltronas dourados, Luís

XVI de quinta categoria. Alguns estão derrubados, uma das poltro-

nas está instalada diante de um buraco na parede; Hassan senta-se

nela, acomoda-se e começa a dar tiro atrás de tiro. Os cartuchos

vazios pipocam na parede, o cheiro de pólvora impregna a sala.

Hassan cobriu a cabeça com o keffieh de Raed, para que seu rosto

não aparecesse na foto, e logo fica sem ar. Abu Hussein chega e

toma seu lugar diante do buraco para começar a atirar por sua vez.

Disparam contra os sacos de areia da posição inimiga, para

obrigar os atiradores a se abaixar e impedi-los de atirar. Não pos-

suem armas suficientemente sofisticadas para desalojá-los, mas

podem ocasionalmente abatê-los caso eles se mostrem.

Hassan sobe até ali, faz mais alguns disparos pela janela na

escada no segundo andar. Vamos atrás dele. Ao descer novamente,

justamente quando estou passando pela janela exposta, ele atira, e

termino despencando escada abaixo sob as risadas de Raed: “Ah,

essa foto eu perdi.”

Do lado de fora, Abu Hassan chega de carro. Saudações.

Abu Hassan a Raed: “Está atirando?” Raed mostra sua câmera:

“Tirando.”

Os disparos continuam, regulares. Tudo igual. Nos desloca-

mos, tenho tempo de anotar. Os caras, nas posições, atiram regu-

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larmente. É esse tempo singularmente plástico, nervoso, da espe-

ra. Se o ataque começar, será muito rápido.

Ahmad, o urso barbudo, é o braço direito de Hassan e assume

o comando em sua ausência.

Subimos para um telhado onde encontramos outra posição de

tiro. Alaa está deitado com uma metralhadora e uma luneta, va-

gamente protegido por três sacos de areia e alguns módulos de

cimento. Eu me deito ao seu lado e, com o zoom da minha Linux,

ele me mostra a posição do francoatirador inimigo, no fim da rua,

bem em frente, numa casa atrás do estádio, a quatrocentos metros.

Pelos buracos nas paredes, também observo e fotografo as po-

sições dos atiradores nos prédios à direita, aquele em construção e

o de vidros azuis. Vemos sacos de areia, a apenas duzentos metros,

com os muros em volta crivados de balas. Está calmo, o sol final-

mente sai e brilha sobre o telhado coberto de destroços, de vez em

quando um cara dispara uma rajada, senão conversamos. Trazem-

-nos almofadas bordadas e nos sentamos recostados na parede do

hall da escada, muito à vontade. Alguém prepara um chá, parece.

De repente os tiros recrudescem, os caras correm para suas ar-

mas e abrem fogo contínuo. Os caras defronte reagem e ouvimos

o silvo das balas. Recuo para trás do hall da escada, que tampouco

é seguro, uma vez que está crivado de balas. Raed fotografa. Dura

cerca de cinco minutos, depois a situação acalma. “Então, Alaa,

onde está o chá? Wen tchai?”

Alaa explica que um carro descaracterizado chegou ao pos-

to inimigo, para abastecê-lo com munição, e eles abriram fogo.

Acham que feriram os caras. O posto inimigo replicou para dar

cobertura aos seus homens. Nós: Como vocês sabiam que eram

soldados, se era um carro civil? Eles viram um sujeito de uniforme

no carro, foi por isso que atiraram. Não atiram em civis, claro,

mas os militares confiscam veículos civis para abastecer seus pos-

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tos. Se eles vierem com um blindado, o expulsaremos com um

RPG. Raed: “Então por que eles não se vestem à paisana tam-

bém?” Alaa: “Eles correriam o risco de ser mortos pelos próprios

francoatiradores!”

Tudo calmo de novo. Ao longe, ouvimos o tráfego na autoes-

trada. Os calçados de Alaa, deitado ainda, estão perdendo a sola.

Entre uma escaramuça e outra, é um tédio. Os caras fumam,

conversam banalidades. Faz menos frio agora que o sol saiu. Mais

uma vez descemos ao posto de comando, serenamente, para to-

mar chá com Hassan, Imad e outros. A mãe de Fadi preparou

deliciosas empanadillas de queijo e carne, que comemos junto

com o chá pelando. Faz um bem danado, o corpo relaxa na hora.

Regressamos à casa. Chuveiro quente, maravilhoso. Quando

saio do banho, Raed partiu. Esgotamento. Como se eu me liquifi-

zesse de repente. É só nessas horas que sentimos a tensão, quando

ela se vai.

A situação volta a esquentar. Raed retorna um pouco mais tar-

de. Um dos homens foi ferido, uma bala no braço, aparentemente.

Ele me descreve um menino de 8 anos caminhando tranquila-

mente no canto da rua exposto aos francoatiradores, enquanto o

tiroteio comia solto.

A vida dos soldados: dormir, comer, limpar as armas, montar

guarda e, de quando em quando, lutar. Muita paciência e tédio em

troca de algumas horas intensas, que às vezes terminam com um

ferimento, ou a morte.

Um rapaz que eu não conhecia volta para recarregar a arma.

Despeja os cartuchos de um saco de aniagem e, ajoelhado no ta-

pete, enche o carregador. Gorro preto, bigodinho, colete tático

preto por cima de um agasalho de náilon.

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DIÁRIOS DA SÍRIA

Retornamos por volta das 15h, tudo isso durou aproximada-

mente quatro horas. Finalmente, uma hora e meia depois, Imad

traz esfihas e iogurte. Ibn Pedro está presente, Ahmad também, ou-

tros rapazes, todo mundo come com apetite. Num dado momento,

uma forte detonação, não muito distante. Hassan telefona: um de

seus homens disparou um RPG, para desalojar um francoatirador.

A curiosíssima sensação de defasagem durante o combate. O

barulho infernal dos tiros dá nos nervos, ao passo que são tiros

amigos, inofensivos. Do outro lado, os disparos parecem rojões,

uma brincadeira de criança, para rir. Tentamos nos proteger, mas

há buracos em toda parte, linhas de tiro em toda parte, não temos

qualquer ideia real do que é ou não seguro. Perguntamos e deve-

mos acreditar no que dizem. Tudo isso permanece fabulosamente

abstrato, mesmo quando os sujeitos em frente atiram em você. É

apenas, imagino, no momento em que somos atingidos por uma

bala que a coisa se torna súbita e irremediavelmente concreta. Mas,

enquanto não temos nada, experimentamos a sensação de uma

coisa curiosamente irreal, como se evoluíssemos num sonho, como

se tudo o que acontecesse fosse com os outros, não com a gente.

Retorno de Abu Yazan, aparência esgotada, curativo na testa.

Não é muito grave.

17h. Imad sai para visitar a família do ferido e recusa categori-

camente nos levar com ele. Ibn Pedro começa a criticar Raed por

suas fotografias da primeira viagem, declarando que alguém teve

problemas por causa dele, o que é ridículo, visto as precauções to-

madas por Raed. Ele mostra os arquivos em pdf e a coisa parece se

acalmar. Mas Ibn Pedro continua nervoso, não parece convencido.

Raed: “Às vezes você tem sorte de não falar árabe. O mínimo

que posso dizer é que ele não foi muito gentil. Falar isso na frente

de todo mundo, desse jeito, é um pouco escroto.”

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JONATHAN LITTELL

Num canto, o jovem atirador dessa manhã recarrega cinturões

com cartuchos retirados de um grande saco cheio de munição.

Alguns outros fazem a mesma coisa.

Saio com Alaa para fazer algumas compras. As ruas estão

encharcadas, as poças cintilam sob os faróis. Os soldados nos

checkpoints parecem fantasmas, piscando um celular à guisa de

lanterna.

Compro sabonete de Aleppo, perto da mesquita. Na volta, os

caras zoam: “Você está com o pessoal de Aleppo, você está com

Bashar! Você compra sabonete de Aleppo, você é um traidor!”

*

19h30. Impossível encontrar ou saber onde está Abu Salim, o

médico dos mukhabarat que desejávamos rever.

Em torno das 23h, um jovem soldado que se autodenomina O

Gato nos leva a pé à casa de outros ativistas, para nos conectar-

mos à internet. Estes são ardorosamente contrários à declaração

da jihad: “Nossa revolução não é uma revolução religiosa, é uma

revolução pela liberdade. Declarar a jihad mudaria completamen-

te o teor da mensagem da revolução síria. Sim, houve quem en-

toasse o slogan na manifestação. Mas são pessoas simples, elas não

compreendem.”

Nosso anfitrião, Abu Adnan, é um advogado comunista que

defende prisioneiros políticos. Oferece levar-nos ao tribunal, para

vermos como a coisa funciona. “Com dinheiro, tudo é possível.”

Há também um cameraman, Abu Yazan al-Homsi, que fornece

muitas imagens à Al-Jazeera e outros canais.

Durante a refeição, Abu Adnan nos serve “uísque”, uma fabri-

cação local meio viscosa, esclarecendo que não devemos contar

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fora dali, e nos pergunta se acreditamos em Karl Marx. Ele acre-

dita em Karl Marx como outros em Jesus ou Maomé, pelo menos

é o que ele diz. Seu pai, cujo retrato extremamente formal está

pendurado na parede, também era comunista. O farmacêutico,

Abdel Kader, corrige suas palavras: “Din, din. Fikr, fikr.” Religião

é religião. Pensamento é pensamento.

Mais cedo, Abu Yazan al-Homsi explicava a Raed que se con-

siderava um ativista, não um jornalista. “Eu jamais conseguiria

postar uma imagem que pudesse prejudicar a revolução.” Quase

não pode filmar o ELS. Uma vez, filmou a destruição de um tan-

que, mas o ELS proibiu-lhe de divulgar as imagens. O ELS tem

medo de mostrar que há civis integrando suas fileiras. Para eles,

isso seria subscrever o discurso do regime sobre o “terrorismo”. A

paranoia chega a esse nível.

Abu Yazan al-Homsi confirma que todos os jornalistas estran-

geiros (afora nós) trabalham com o escritório da Informação. “É

porque eles não devem ter acesso a determinadas informações. O

escritório os monitora.”

Abu Adnan quer começar uma conversa comigo via Google

Translate: “Please tell the world we are not islamists. — I am a com-munist and I hate islamists.”

A muito custo saímos de lá já de madrugada, às 3h. Abu Ad-

nan, ligeiramente embriagado, nos acompanha na rua: “Quando

formos livres, voltem como turistas, serão meus hóspedes!” Volto

a pé com O Gato, no frio, através das poças. O checkpoint do ELS

está atento e grita em nossa direção: “Quem vem lá?” O Gato

responde e não paramos.

*

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JONATHAN LITTELL

Terça-feira, 24 de janeiro

BABA AMR — KHALDIYA — BAYADA

10h. Desperto quando Ahmad e alguns caras já falam alto em

torno da sobia. Fadi continua a dormir. Bebem mate e fazem chá.

Raed liga para o seu amigo Abu Assad, para planejar a passa-

gem para Khaldiya, mas está complicado para ele. No fim é Bilal

que virá, um ativista de Khaldiya que trabalha com os hospitais

clandestinos.

Apesar de algumas coisas que não foram levadas a cabo, como as conversas com o médico dos mukhabarat que não conseguimos rever, na véspera tínhamos decidido deixar Baba Amr para trabalhar um pouco nos bairros do centro, começando por Khaldiya, que fica na zona noroeste da cidade e onde Raed tinha bons contatos.

Em torno do meio-dia, após a prece, o enterro de um shahid.

Segundo os ativistas de ontem à noite, é um civil que voltava do

centro e foi detido numa barreira, onde viram que ele morava em

Baba Amr. Nesse momento, rebentou um tiroteio entre os soldados

da barreira e o ELS; os soldados amarraram o homem e o usaram

como escudo humano. Saiu ileso, mas foi executado em seguida.

Espera em frente à mesquita sob a chuva.

Informações apuradas, o shahid chamava-se Mohammed W.

Foi enterrado às 9h da manhã. Mas não é o shahid que nos fa-

laram ontem, é um dos feridos pelo obus que caiu dez dias atrás

sobre a padaria e morreu ontem em decorrência dos ferimentos.

[O bombardeio, pouco antes da nossa chegada, da padaria de Insha’at, próximo à rua Brasil, fizera diversas vítimas civis.] Raed liga para

Abu Yazan al-Homsi, o cameraman da Al-Jazeera: não, era de fato

o shahid que procurávamos. Ele foi atingido há quatro dias — na

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barreira, como nos disseram? Impossível saber — e morreu on-

tem. Como sua família é de al-Waaor, próximo à refinaria, eles re-

colheram seu corpo esta manhã para enterrá-lo por lá. Mais uma

história confusa, como todas aqui.

No fim das contas, o morto da panificadora também existe e

efetivamente foi enterrado esta manhã.

(...)

*

Sexta-feira, 27 de janeiro

SAFSAFI — BAB DRIB — SAFSAFI

(...)

O ELS atacou três lugares ontem: barreiras em Zahra, barrei-

ras na estrada de Damasco, na entrada do bairro de Midan, e a

segurança militar na praça Hajj Aatef, naquele bairro. Eles teriam

entrado no prédio. Nos bairros, conquistaram diversas barreiras,

mataram os soldados, confiscaram armas e munições, e se retira-

ram. Não conseguem conservar essas posições face aos blindados.

As operações foram comandadas pelos homens de Bab Amr, a

katiba al-Faruk.

Em princípio, segundo Anjad, o ELS tenta não matar os sol-

dados do Exército que se rendem e capturar os oficiais, inclusive

mukhabarat. Mas executam sistematicamente os shabbiha.

Vídeo da manifestação de Bab Sbaa. Queimam um retrato de

Putin junto com o de Bashar. Os manifestantes batem neles com

seus sapatos.