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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA DEPARTAMENTO DE SADE PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA MESTRADO ACADMICO

CONSTRUO DE SUJEITOS, SABERES E PRTICAS NA SADE BUCAL DE ALAGOINHAS - BAHIA: o trabalho cotidiano no Programa de Sade da Famlia como protagonista da mudana.

ANA UREA ALCIO DE OLIVEIRA RODRIGUES

FEIRA DE SANTANA 2005

ANA UREA ALCIO DE OLIVEIRA RODRIGUES

CONSTRUO DE SUJEITOS, SABERES E PRTICAS NA SADE BUCAL DE ALAGOINHAS - BAHIA: o trabalho cotidiano no Programa de Sade da Famlia como protagonista da mudana.Dissertao apresentada ao Programa de Psgraduao em Sade Coletiva do Departamento de Sade da Universidade Estadual de Feira de Santana, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Sade Coletiva.

Orientadora: Prof.a Dra. Marluce Maria Arajo Assis

Feira de Santana Bahia 2005

Ficha Catalogrfica

Rodrigues, Ana urea Alcio de Oliveira R611c Construo de sujeitos, saberes e prticas na sade bucal de Alagoinhas BA: o trabalho cotidiano no Programa de Sade da Famlia como protagonista da mudana. / Ana urea Alcio de Oliveira Rodrigues. Feira de Santana, BA, 2005. 234 f. : il. Orientadora: Marluce Maria Arajo Assis Dissertao (Mestrado em Sade Coletiva) Universidade Estadual de Feira de Santana, 2004. 1. Sade bucal Programa Sade da Famlia Alagoinhas, BA. 2. Sade pblica. I. Assis, Marluce Maria Arajo. II. Universidade Estadual de Feira de Santana. III. Ttulo. CDU: 616.314-084(814.2)

ANA UREA ALCIO DE OLIVEIRA RODRIGUES

CONSTRUO DE SUJEITOS, SABERES E PRTICAS NA SADE BUCAL DE ALAGOINHAS - BAHIA: o trabalho cotidiano no Programa de Sade da Famlia como protagonista da mudana. Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Sade Coletiva do Departamento de Sade da Universidade Estadual de Feira de Santana, como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Sade Coletiva.

Feira de Santana, 23 de fevereiro de 2005.

BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________________ Prof Dr Marluce Maria Arajo Assis Universidade Estadual de Feira de Santana ___________________________________________________________ Prof Dr. Marcos Azeredo Furquim Werneck. Universidade Federal de Minas Gerais

___________________________________________________________ Prof Dr Thereza Christina Bahia Coelho Silveira Universidade Estadual de Feira de Santana

Aos meus pais, Jos Miguel e Ana Rosa, pela formao sempre pautada na valorizao do conhecimento, na

honestidade e no respeito ao prximo.

Aos meus filhos e amigos Pedro Henrique e Fernanda Beatriz, pela compreenso e incentivo incondicionais e por possibilitarem o aprendizado da arte de educar.

Dedico este trabalho.

Agradecimento Especial

A Prof.a. Dra. Marluce Arajo Assis, pela competente orientao e pacincia nos momentos de dificuldade imprescindveis para a realizao desta pesquisa.

Agradecimentos

A trajetria de uma vida marcada por pessoas, sejam elas amigas ou no, que nas trocas cotidianas, nos conflitos e contradies, constroem o sujeito e seu produto. Nesse momento de conquista, gostaria de agradecer a todos que, conscientes ou no, contriburam para que esse sonho se concretizasse. Seria impossvel list-los. E, mesmo correndo o risco de deixar de citar o nome de algum, gostaria de destacar aqueles que estiveram mais perto no momento dessa investigao. Meu marido, Carlos Henrique, companheiro de caminhada, pelo apoio aos meus projetos nem sempre compreendidos. Meus irmos, Valria, Eduardo Jos e Karina, que, mesmo distncia, sempre me incentivam, demonstrando muito carinho e respeito. A professora Maria ngela Alves do Nascimento, pelas indicaes bibliogrficas e pelo carinho despretensioso. Os membros da Banca Examinadora, Prof Dr. Marcos Azeredo Furquim Werneck, Prof Dr Thereza Christina Bahia Coelho Silveira e Prof Dr Eliane Santos Souza, pela gentileza em aceitar o convite para participar da avaliao deste estudo. Meu amigo Adriano Maia Santos, com quem tive a sorte de compartilhar vrios momentos dessa investigao momentos de dvidas, questionamentos, alegrias, otimismo e de certeza de estarmos tentando contribuir para a construo de uma nova era na Sade Bucal Coletiva. O prefeito de Alagoinhas, Senhor Joseildo Ramos, pela iniciativa de organizar o Programa de Sade da Famlia - seu pioneirismo na rea de Sade possibilitou a realizao desta pesquisa.

O Secretrio de Sade de Alagoinhas, Dr. Washington Luiz Abreu de Jesus, pela liberdade irrestrita durante o processo de coleta de dados, disponibilizando todo o sistema de sade do municpio. Os representantes do Conselho Municipal de Sade de Alagoinhas, na pessoa da Sra. Maria de Ftima, pela gentileza e rapidez com que nos atendeu, prestando-nos informaes importantes para conduo deste trabalho. Os trabalhadores da equipe de sade de Alagoinhas, em especial, a Wilza, Paulina, Masa, Rogrio, e Lvia, que sempre estiveram disponveis para o fornecimento de informaes. Os trabalhadores das Equipes de Sade da Famlia e das Equipes de Sade Bucal que, nas dificuldades do cotidiano, constroem a sade de Alagoinhas; me acolheram e se colocaram disposio para as entrevistas e observaes, durante a fase de coleta dos dados empricos. Os usurios dos servios de sade de Alagoinhas, que no fizeram objees minha presena no consultrio odontolgico durante a realizao do atendimento. Todos os colegas da turma do mestrado, nossa pluralidade profissional e ideolgica contribuiu para o crescimento e amadurecimento nas relaes pessoais. Os colegas da disciplina de anlise de dados qualitativos, Andr, Tnia, Carmem, Ndia, Adriano, Maria Vilma, Sandra e Vanda, pela participao criteriosa e atenta no processo inicial de anlise dos dados deste estudo. As funcionrias do Colegiado do Programa de Ps-graduao em Sade Coletiva da Universidade Estadual de Feira de Santana, Goreti, Maristela, Licia e Tnia, por toda ateno dispensada durante o curso. Os professores da disciplina Sade e Comunidade, Renato e Ulisses, por disponibilizarem sua turma para a realizao do estgio docente.

Ao professor Jos Jernimo Morais, pela leitura atenta dessa dissertao e sugestes sempre pertinentes. A professora Graa Maria Dultra Simes, que, com gentileza e pacincia, fez a correo da estrutura e das referncias deste trabalho. O amigo e professor da Universidade de So Paulo, Matsuyoshi Mori, pelas oportunidades de convivncia e aprendizado. Sua competncia e dedicao ao ensino e pesquisa cientfica na Odontologia vm inspirando e servindo de exemplo. Os funcionrios da Biblioteca Julieta Carteado, pela presteza nos momentos de dificuldade com a consulta bibliogrfica. A amiga, cirurgi-dentista, Enaura Jandiroba Nascimento, pela companhia e cumplicidade na prtica e na pesquisa em Sade Bucal. Os colegas do 1 Curso de Especializao em Sade da Famlia da Universidade Estadual de Feira de Santana: Claudine, Antonio Carlos, Ana Oflia, Luciana, Denise e Fbio Maurcio, por confiarem em nosso potencial e sempre nos incentivar a assumir desafios. Os estagirios do Ncleo de Pesquisa Integrada em Sade Coletiva NUPISC, pela ajuda no processo de elaborao do projeto que gerou esta dissertao. minha secretria Eliene Farias Silva, que segurou todas as barras, me substituindo no cuidado com meus filhos em meus momentos de ausncia.

RESUMO

Este estudo sobre a micropoltica do trabalho da Equipe de Sade Bucal (ESB) no Programa de Sade da Famlia (PSF) de Alagoinhas-BA tem como objetivos: analisar a micropoltica do processo de trabalho desenvolvido pela ESB no PSF e suas articulaes com a dinmica organizacional da oferta x demanda dos servios de sade; compreender os saberes e prticas que orientam o trabalho dos diferentes sujeitos sociais da Equipe de Sade Bucal no PSF de Alagoinhas BA e discutir a concepo do trabalho para os sujeitos que atuam na ESF. Toma por pressuposto terico central as formas especficas e singulares no exerccio do trabalho cotidiano, utilizando-se das tecnologias (duras, leveduras e leves) para manter a ordem estabelecida ou para transformar e serem transformados no processo de construo coletiva. A trajetria metodolgica fundamentada na corrente histrico-social, luz de uma abordagem dialtica de natureza qualitativa. Utilizou-se como tcnicas de coleta de dados: entrevista semi-estruturada; observao do processo de trabalho e anlise documental. Constituram os sujeitos do estudo vinte e trs pessoas distribudas em trs grupos de representao: grupo I (Equipe de Sade Bucal 11); grupo II (Equipe do PSF 06); e grupo III (Informantes chaves 06). A anlise dos dados foi orientada pela hermenutica-dialtica, permitindo confrontar os diferentes nveis de anlise, articulando o terico com o emprico. Os resultados revelam que o processo de trabalho nas ESB conduzido pelo saber do cirurgio-dentista, cujas aes se caracterizam pelo pronto atendimento, baseadas na queixa-conduta, com baixa resolutividade e demanda reprimida. As Equipes de Sade da Famlia so multidisciplinares, mas ainda no desenvolvem um trabalho interdisciplinar, ocorrendo justaposio de saberes. Cada unidade planeja seu processo de trabalho de acordo com as singularidades dos sujeitos sociais, implementando caractersticas diferentes no acolher, informar, atender e encaminhar, com pouca participao da coordenao do programa no

acompanhamento das aes. Percebe-se um esforo em mudar o processo de trabalho, na perspectiva da clnica ampliada, com o Agente Comunitrio de Sade se destacando como sujeito social/coletivo. Enfim, as Equipes de Sade Bucal no PSF de Alagoinhas, apesar das dificuldades, tm contribudo para a edificao de um Sistema nico de Sade que busca, no cuidado, mudar a realidade de sade bucal.

Palavras-chave: Programa Sade da Famlia, Sade bucal, Trabalho em Sade, Saberes, Prticas.

ABSTRACT

This study on the work micropolitics of the Buccal Health Team (ESB) in the Alagoinhas - BA Family Health Program (PSF) has as goals : analyze the micropolitics of the work process developed by the ESB in the PSF and its articulations with the organizational dynamics of the supply and demand for health care services; understand the know how and practices that direct the work of the different social subjects of the Buccal Health Team of the Alagoinhas PSF and discuss the meaning of work for the people who act in the ESB. This study has as central theoretical purpose the specific and individual forms in the daily work exercise using technologies (hard, soft-hard, and soft) to maintain the established order or to transform and be transformed in the process of collective construction. The methodological trajectory is based on the social historical current in the view of dialectic approach of qualitative nature. The semi-structured interview, the observation of the work process and the documental analysis were used as data collection techniques. Twenty-three people, distributed in three groups of representation were used as study subjects: group I (Buccal Health Team 11) group II (Family Health Program Team 06) and group III (key informers 06). The data analysis was oriented through dialectic hermeneutics, allowing to confront the different levels of analysis, articulating the theoretical with the empirical. The results reveal that the work process in the Buccal Health Team is conducted by the knowledge of the surgeon-dentist, whose actions characterize themselves through ready attending based on the complaint conduct with low resoluteness and restrained demand. The Family Health Program Teams are multi-disciplinary but still dont develop inter-disciplinary work, causing the occurrence of knowledge juxtaposition. Each unit plans their work process according to the singularization of the social subjects implementing different characteristics while welcoming, informing,

attending and guiding with little participation of the program coordination during the followup of the actions. It is possible to perceive an effort to change the work process in the perspective of amplified clinic with the Community Health Agent standing out as the social/collective subject. At last, the Buccal Health Teams of the Alagoinhas-BA Family Health Program, despite the difficulties, have contributed to the building of a Unique Health System that seeks, through care, to change the reality of buccal health.

Key words: Family Health Program, buccal health, health care work, knowledge, practices

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLASACD Auxiliar de Consultrio Dentrio ACS Agente Comunitrio de Sade AIDPI Ateno Integral a Doenas Prevalentes na Infncia AIDS Sndrome da Imunodeficincia Adquirida CAPS - Centro de Ateno Psicossocial CEP Comit de tica em Pesquisa CD Cirurgio-dentista CONASP Conselho Consultivo da Administrao de Sade Previdenciria CPOD Dentes perdidos cariados ou obturados CREOS Centros de Referncia de Especialidades Odontolgicas DATASUS Dados do Sistema de Informao da Sade DIRES - Diretoria Regional de Sade da Bahia DIVAS Diretoria de Vigilncia e Assistncia Sade ESB Equipe de Sade Bucal ESF Equipe de Sade da Famlia FSESP Fundao Servios Especiais de Sade Pblica HRDB Hospital Regional Dantas Bio IAP Instituto de Aposentadorias e Penses IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica INAMPS Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social INPS Instituto Nacional de Previdncia Social IST Infeces Sexualmente Transmissveis NOAS Norma Operacional de Assistncia Sade NOB Norma Operacional Bsica NUPISC Ncleo de pesquisa integrada em Sade Coletiva OMS Organizao Mundial de Sade OPAS - Organizao Panamericana de Sade PACS Programa de Agentes Comunitrios de Sade PDR Plano Diretor de Regionalizao PIASS Programa de Interiorizao de Aes de Sade e Saneamento PNACS Programa Nacional de Agentes Comunitrios de Sade

PREV-SADE - Programa Nacional de Servios Bsicos de Sade PRONAN Programa Nacional de Alimentao e Nutrio PSF Programa de Sade da Famlia SAAE Servio Autnomo de gua e Esgoto SAMU Servio de Atendimento Mvel de Urgncias SB2000 Sade Bucal 2000 SIA Sistema de Informao Ambulatorial SIAB Sistema de Informao da Ateno Bsica SUDS Sistema Unificado Descentralizado de Sade SUS - Sistema nico de Sade. TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido THD Tcnico em Higiene Dental UEFS - Universidade Estadual de Feira de Santana USF Unidade de Sade da Famlia

LISTA DE FIGURASFigura 1 Fluxograma analisador do modelo de ateno de um servio de sade ........ 50 Figura 2 Rede de peties e compromissos do trabalho da Equipe de Sade Bucal no Programa de Sade da Famlia ........................................................................ 95 Figura 3 Fluxograma representando a recepo ao usurio, no primeiro contato com a unidade de sade .............................................................................................. 102 Figura 4 Fluxograma analisador da entrada a deciso de oferta de servios, sem exame prvio do usurio ............................................................................................. 107 Figura 5 Fluxograma analisador da entrada a deciso de oferta de servios, com exame prvio do usurio pelo CD e ACS ...................................................... 109 Figura 6 Fluxograma analisador do modelo de ateno de um servio de sade para anlise da oferta de aes ................................................................................ 113 Figura 7 Fluxograma do fluxo gerado depois da primeira consulta .......................... 116 Figura 8 Fluxograma aps a interveno da ESB ......................................................... 118 Figura 9 Fluxograma do fornecimento da medicao prescrita durante a consulta ............................................................................................................................. 121 Figura 10 Fluxograma do atendimento na referncia de endodontia ......................... 122 Figura 11 Procedimentos odontolgicos realizados pelas Equipes de Sade Bucal de Alagoinhas Perodo janeiro a junho 2000 a 2004. ................................. 139 Figura 12 Evoluo do PACS/PSF na Bahia Nmero de Agentes Comunitrios no Estado da Bahia no perodo de 1992 a 2004 .................................................. 185

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Grupos de representantes participantes do estudo ....................................... 68 Quadro 2 Trabalhadores de sade do grupo I ................................................................ 68 Quadro 3 Trabalhadores de sade do grupo II ............................................................... 69 Quadro 4 Perfil profissional da Equipe de Sade Bucal ............................................... 71 Quadro 5 Perfil profissional da Equipe de Sade da Famlia ....................................... 72 Quadro 6 Modelo do quadro construdo para anlise dos dados ................................. 77 Quadro 7 - Modelo do quadro construdo para anlise dos dados aps o refinamento classificatrio ......................................................................................................................... 78 Quadro 8 - Atribuies comuns aos profissionais de Sade Bucal ................................. 84 Quadro 9 - Atribuies especficas do ACD ...................................................................... 85 Quadro 10 - Atribuies especficas do Agente Comunitrio de Sade (ACS) .............. 85 Quadro 11 - Atribuies especficas do cirurgio-dentista (CD) ..................................... 86 Quadro 12 - Elenco de procedimentos de Sade Bucal na ateno bsica ofertados no municpio de Alagoinhas - Ba-junho 2004 .................................................... 87 Quadro 13 - Elenco de procedimentos de Sade Bucal na mdia complexidade ofertados no municpio de Alagoinhas ...................................................................... 141 Quadro 14 - Mdia de Atendimentos em Sade Bucal em Alagoinhas - Ano 2003 ..... 142

SUMRIO

CAPTULO I - CONSTRUO DO OBJETO DE ESTUDO.......................................... 19 1.1 Uma primeira aproximao ao tema............................................................................. 20 1.2 O objeto em estudo e os pressupostos tericos....................................................... 22

CAPTULO II - FUNDAMENTAO TERICA........................................................... 28 2.1 Programas e polticas de Sade Bucal no Brasil .......................................................... 29 2.2 Organizao tecnolgica do trabalho em sade: construo de sujeitos, saberes e prticas...................................................................................................................... 39 2.2.1 2.2.2 Construo terica do processo de trabalho em sade.......................................... 39 A micropoltica do trabalho em Sade Bucal e a construo do trabalhador coletivo......................................................................................................................... 42 CAPTULO III - A OPO METODOLGICA ............................................................ 53 3.1 Campo emprico do estudo Alagoinhas Bahia ....................................................... 55 3.2 Tcnicas de coleta de dados ........................................................................................... 62 3.3 Sujeitos do estudo ........................................................................................................... 67 3.4 Etapas metodolgicas ..................................................................................................... 72 3.4.1 Questes ticas ............................................................................................................. 72 3.4.2 Coleta de dados ............................................................................................................ 73 3.5 Anlise de dados ............................................................................................................. 75 3.5.1 Ordenao dos dados .................................................................................................. 75 3.5.2 Classificao dos dados ............................................................................................... 75 3.5.3 Anlise final dos dados ............................................................................................. 79

CAPTULO IV - CONSTRUO DE SUJEITOS, SABERES E PRTICAS NA SADE BUCAL DE ALAGOINHAS - BAHIA: o trabalho cotidiano no Programa de Sade da Famlia como protagonista da mudana ........................................................... 81 4.1 Oferta x demanda na ateno Sade Bucal: seletiva, excludente e com baixa resolutividade............................................................................................................ 82 4.2 O trabalho na Equipe de Sade Bucal no PSF: aberto a novas

possibilidades?......................................................................................................... 146 4.2.1 ACS como sujeito da prtica coletiva em Sade Bucal ......................................... 169 4.3 As concepes da Equipe de Sade Bucal sobre o PSF............................................. 186 CAPTULO V - CONSIDERAES FINAIS ................................................................ 199 REFERNCIAS ................................................................................................................. 207 APNDICES ANEXOS

Ana urea Alcio de Oliveira Rodrigues

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CAPTULO I CONSTRUO DO OBJETO DE ESTUDO

Apesar de algumas idias utpicas eventualmente realizadas, no da natureza da utopia ser realizada. Pelo contrrio, a utopia a metfora de uma carncia formulada ao nvel que no pode ser satisfeita. O que importante nela no o que diz sobre o futuro, mas a arqueologia virtual do presente que a torna possvel. Boaventura de Sousa Santos

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CONSTRUO DO OBJETO DE ESTUDO

1.1 Uma primeira aproximao ao tema

Durante nosso curso de graduao, embora o currculo do curso de Odontologia tivesse em sua grade cinco disciplinas voltadas para a preveno (Odontologia Preventiva e Social), a prtica de Sade Bucal preconizada era a individual, voltada para a cura, e visava formao do especialista para atuar em um mercado de trabalho privado. As aes coletivas eram restritas s atividades de preveno em escolas do ensino fundamental e mdio, e as clnicas das disciplinas de Odontologia Preventiva e Social reproduziam a mesma prtica das demais disciplinas, realidade vivida por outras Universidades, em momentos histricos diferentes, como a da Federal de Minas Gerais, conforme relato de Werneck (1994). Apenas no final do curso (2001), fizemos uma discusso sobre o Programa de Sade da Famlia (PSF), centrada na necessidade de aumentar a proporo de Equipe de Sade Bucal (ESB) em relao Equipe de Sade da Famlia (ESF); no entanto, naquele momento, no se discutiu o papel do Programa e dos profissionais de Sade Bucal no contexto de construo do Sistema nico de Sade (SUS). Em 2002, com a abertura da primeira turma para o curso de Especializao em Sade da Famlia, na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), tivemos a oportunidade,

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durante as atividades, de comear a descortinar um universo at ento desconhecido: o campo da Sade Coletiva. As disciplinas de Polticas de Sade e de Sade da Famlia, com seus temas instigantes contriburam decisivamente para aumentar o nosso interesse pelo momento atual da Sade no Brasil e para o reconhecimento da importncia do Programa de Sade da Famlia na transformao da realidade de sade do pas. O curso nos proporcionou contato com diversos profissionais de sade e de outras reas que atuavam no setor e fomos, aos poucos, conhecendo a realidade dos servios de algumas regies da Bahia; em especial, como estava acontecendo a prtica de Sade Bucal naquelas cidades. Na maioria dos relatos, as unidades de Sade da Famlia no contavam com Equipe de Sade Bucal e, naquelas onde o servio funcionava, se reproduzia a mesma prtica individual e curativista preconizada durante a graduao. Pereira, Pereira e Assis (2003), realizaram pesquisa em municpio do semi-rido baiano, onde o Programa de Sade da Famlia ainda no estava implantado, e tambm diagnosticaram essa realidade na prtica de Sade Bucal. Paralelamente s discusses, fomos aprofundando nosso conhecimento sobre a realidade de Sade Bucal em nosso pas, atravs dos levantamentos epidemiolgicos realizados a partir de 1986, e de artigos referentes ao tema em questo. Constatamos, como ser discutido neste trabalho, que a situao ainda preocupante e, que o trabalho da Equipe de Sade Bucal no PSF, para mudar essa condio, de suma importncia. Enfim, esse tema se tornou nosso objeto de estudo para realizao do artigo de concluso do curso de Especializao, intitulado: A organizao do trabalho da Odontologia: a construo de um saber cientfico e tecnolgico (RODRIGUES; ASSIS, 2003).

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Na construo do artigo supra referido tivemos contato com autores que tratam das prticas das equipes de sade e discutem o seu processo de organizao do trabalho. Interessamos-nos, ento, em compreender o processo de trabalho da Equipe de Sade Bucal no PSF, e qual a concepo desse trabalho para os membros das equipes. Consideramos que o avano tecnolgico ocorrido na rea de sade, bem como as propostas de novos modelos para a prtica da Sade Coletiva, pouco mudaram a atuao dos profissionais da Sade Bucal e, embora o PSF proponha uma srie de aes a serem desenvolvidas pelos trabalhadores que esto ligados Sade Bucal, questionamos como esta prtica se est dando e de que forma os profissionais desempenham suas aes no cotidiano da ateno bsica sade. Foi, ento, que, ao ingressarmos no Programa de Ps-graduao em Sade Coletiva da Universidade Estadual de Feira de Santana em 2003, o questionamento acima se transformou em um grande desafio, deslindado aos poucos, atravs desta dissertao de Mestrado em Sade Coletiva.

1.2 O objeto em estudo e os pressupostos tericos

Estudando a prtica das Equipes de Sade Bucal (ESB), nosso interesse se voltou para a realizao do trabalho, ou seja, para o processo em que se procura responder s necessidades dos possveis usurios das Unidades de Sade da Famlia. Ao fazermos levantamento da bibliografia j produzida sobre o processo de trabalho em Sade Bucal, encontramos poucas produes, que, ainda assim no tratavam especificamente do cotidiano nas Equipes de Sade Bucal no PSF. Buscamos, ento, referncias relacionadas com outras reas da sade (MENDES-GONALVES, 1992, 1994; SCHRAIBER, 1993;

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PIRES, 1998; PEDUZZI, 1998; MERHY, 1997; MERHY; FRANCO, 2003 a,b,c), que auxiliaram na construo desta pesquisa. Nos processos de trabalho esto envolvidos os meios de produo (objeto do trabalho e meios de trabalho instrumentos) e a capacidade operria de produo (a fora de trabalho), que representa as condies subjetivas de produo (MARX, 1994). De acordo com Pires (1998), o trabalho em sade tem como finalidade a ao teraputica de sade, sendo seu objeto o indivduo ou grupos enfermos, sadios ou expostos a risco, que necessitam de medidas curativas, ou de preservao da sade e preveno de doenas. O instrumental de trabalho, instrumentos e condutas, representam o nvel tcnico do conhecimento, ou seja, o saber no campo da sade e o seu produto final, a prpria prestao da assistncia de sade, que produzida no mesmo momento em que consumida. Merhy e Franco (2003a) no consideram a cura, a promoo ou a proteo da sade como o objeto da sade, mas sim a produo do cuidado, por meio do qual se poder atingir a cura e a sade, que so de fato os objetivos a que se quer chegar. Mendes-Gonalves (1994), ao discutir as relaes que ocorrem no processo de trabalho das equipes de sade, considera que a tecnologia um conjunto de saberes e instrumentos que expressa, nos processos de produo dos servios, a rede de relaes sociais em que seus agentes articulam sua prtica em uma totalidade social, ou seja, constituda no apenas pelo saber, mas tambm pelos seus desdobramentos materiais e no-materiais. Para o autor, tecnologia refere-se aos nexos tcnicos estabelecidos, no interior do processo de trabalho, entre a atividade operante e os objetos de trabalho, atravs daqueles instrumentos que ganham existncia, no trabalho, quando expressam relaes entre os homens e os objetos sobre os quais trabalham.

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Analisando as idias do autor acima citado, Merhy (2002) considera que o trabalho em sade no pode ser globalmente capturado pela lgica do trabalho morto 1 , expresso nos equipamentos e nos saberes tecnolgicos estruturados, pois o seu objeto no plenamente estruturado e suas tecnologias de ao mais estratgicas configuram-se em processos de interveno em ato, operando como tecnologias de relaes, de encontros de subjetividades. Nesse sentido, Merhy (2002) classifica as tecnologias envolvidas no trabalho em sade, em leve, tecnologia de relao do tipo produo de vnculo, acolhimento, gesto como uma forma de governar processos de trabalho; leve-dura, saberes bem estruturados que operam no processo de trabalho em sade, como a clnica mdica e a epidemiologia; e dura, equipamentos tecnolgicos do tipo mquina, normas, estruturas organizacionais, e outros. Na Sade Bucal, o aparato tecnolgico tem-se desenvolvido de forma uniforme no mundo globalizado, novidades como o laser, materiais restauradores de ltima gerao, entre outros, tm-se constitudo em instrumentos de trabalho largamente utilizados pelos profissionais da rea; no entanto, no se tm observado resultados positivos na qualidade de vida das pessoas, o que nos levou a questionar o processo de trabalho na Sade Bucal, seus agentes e os saberes que conduzem a prtica. Da, partindo do questionamento acima, o presente estudo tem como objeto de anlise o trabalho cotidiano da Equipe de Sade Bucal no Programa de Sade da Famlia em Alagoinhas - Bahia, considerando a construo de saberes e prticas 2 relacionadas ao campo da Sade Coletiva 3 . Nossa preocupao com o tema foi tomando corpo ao entrarmos em contato com a produo de Campos (1997), que considera as mudanas propostas pelo movimento da1

Trabalho morto instrumentos, que sobre os quais j se aplicou um trabalho pregresso para sua elaborao (MERHY; FRANCO, 2003c) 2 Saberes - conjunto de conhecimento que norteia a ao; prticas aes fundamentadas em teorias que se propem mudar uma realidade. 3 Sade Coletiva - campo cientfico, onde se produzem saberes e conhecimentos acerca do objeto `sade', e onde operam distintas disciplinas que o contemplam sob vrios ngulos; e mbito de prticas, onde se realizam aes em diferentes organizaes e instituies por diversos agentes (especializados ou no) dentro e fora do espao convencionalmente reconhecido como "setor sade" (PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998).

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Reforma Sanitria - no aparato legal e na estrutura poltico-administrativa - no levarem em conta as pessoas concretas que operariam e usufruiriam dessa mquina, gerando um impasse com os trabalhadores de sade da rea pblica, que se encontram ento frustrados, descontentes, trabalhando pela sobrevivncia e para garantir um certo nvel de consumo. H uma marcada e especial alienao destes profissionais em relao ao seu objeto de trabalho, aos seus meios de trabalho e tambm em referncia equipe de sade; h trabalho em grupo, mas no h identidade do trabalhador coletivo. Partindo da compreenso de que, para a constituio do sujeito da mudana histrica, a prxis coletiva que assume, como dever, a superao das condies objetivas que bloqueiam a satisfao das necessidades individuais e coletivas, presume, como ressaltou Mendes-Gonalves (1992), a necessidade da prpria teoria. A falta de interesse de grande parte dos pesquisadores cientficos brasileiros, da rea odontolgica, no processo da Reforma Sanitria, revelada por Narvai e Almeida (1998), pode, por vezes, prejudicar a produo de conhecimentos no processo de construo do trabalho coletivo em Sade Bucal. No sentido de ajudar a superar essa limitao e, da, comearmos a entender esse processo, que, em nosso estudo, observando e ouvindo os sujeitos envolvidos na produo do trabalho, esperamos fornecer subsdios que possibilitem uma discusso sobre a prtica das Equipes de Sade Bucal (ESB) integradas na rede bsica de sade, contribuindo para a construo de um novo modelo de ateno que venha colaborar para mudana do atual quadro de sade bucal no Brasil. Com base nas consideraes acima, estabelecemos os seguintes objetivos do estudo: 1. Analisar a micropoltica do processo de trabalho desenvolvido pela Equipe de Sade Bucal no PSF e suas articulaes com a dinmica organizacional da oferta x demanda dos servios de sade.

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2. Compreender os saberes e prticas que orientam o trabalho dos diferentes sujeitos sociais da Equipe de Sade Bucal no PSF de Alagoinhas BA. 3. Discutir a concepo da ESB sobre o PSF.

Tomamos, ento, como eixo orientador, os seguintes questionamentos: 1. Como se organiza a micropoltica do trabalho de Sade Bucal no PSF e sua articulao com a oferta x demanda, saberes e prticas implementados pelos diferentes sujeitos no cotidiano dos servios de sade? 2. Qual a concepo da ESB sobre o PSF? Merhy (1995), ao refletir sobre o processo de trabalho na sade, j trazia as preocupaes levantadas por Campos (1997), ao considerar que os profissionais da sade, no seu processo de produo, transformam-se em objeto, vtimas do modelo liberal-privatista que coisifica a relao trabalhador-usurio, tornando-os meros portadores dos saberes que os comandam e agindo como simples cumpridores de rituais, sem a viso dos problemas e necessidades, o que gera insatisfao e busca de compensaes, como o consumismo e a utilizao de processos tecnolgicos. Frente s consideraes tericas realizadas, com o propsito de atingir os objetivos apresentados, construmos os pressupostos tericos que balizaram a investigao:

PRIMEIRO PRESSUPOSTO: o trabalho da Equipe de Sade Bucal tem razes histrico-sociais no saber mdico que hegemnico na produo da prtica em sade, sendo incorporado pelas demais profisses da sade, em especial a Odontologia, no

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exerccio do fazer cotidiano, fortalecendo o paradigma dominante individual, tecnicista e centrado na figura do mdico e/ou cirurgio-dentista.

SEGUNDO PRESSUPOSTO: os sujeitos sociais imprimem no cotidiano institucional formas especficas e singulares de atuao em seu campo de trabalho (em especial a Equipe de Sade Bucal no PSF), utilizando-se das tecnologias leve, leve-dura e dura, para manter a ordem estabelecida, ou para transformar e serem transformados, no processo de construo coletiva.

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CAPTULO 2 FUNDAMENTAO TERICA

GOTEJANDO De gota em gota nasce um rio, De palavra em palavra, o pensamento. Num belo e crescente manancial se forja o conhecimento inesgotvel. Navegamos nas suas vertentes, no seu vasto cabedal. Na amplitude das suas margens dinmicas, no dialtico embate das correntes, mergulhamos na sabedoria transformista do mundo. De palavra em palavra plasma-se a aventura humana. De gota em gota transborda-se o oceano. De palavra em palavra aprendemos nas lies refletidas no espelho e nos olhos de vrias civilizaes... So marcas imprescindveis no tempo, navegando no sempre novo rio de Herclito, Hegel, Marx... Antonio Carlos Luz Montes (Mdico do PSF de Nordestina Bahia)

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FUNDAMENTAO TERICA

2.1 Programas e polticas de Sade Bucal no Brasil

A situao de Sade Bucal existente no Brasil fruto de um processo histrico, onde as diversas propostas polticas de interveno na Sade Bucal contriburam para a construo. Precisamos entender esse processo para melhor proceder a discusso do processo de trabalho nas unidades de sade da famlia. Nesse sentido fazemos um breve relato histrico da Sade Bucal, do final do sculo XX aos dias atuais. Vejamos as desigualdades que configuram o quadro social brasileiro, reveladas atravs dos dados divulgados, em 2001, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), mostrando que uma parcela significativa da populao no tem acesso aos direitos bsicos de cidadania 13,3% de indivduos analfabetos na faixa etria acima dos 15 anos; renda de 31,1% das famlias inferior a dois salrios mnimos e 23,8% no possuindo gua canalizada; o que configura um quadro de carncia social crnica (FIGUEIREDO; BRITO; BOTAZZO, 2003). Na Sade Bucal, apesar de alguns autores admitirem que as condies melhoraram nas ltimas dcadas (NARVAI; FRAZO; CASTELLANOS, 1999), a melhoria do nvel global dos indicadores foi acompanhada pela polarizao do agravo nos grupos de populao mais submetidos privao social, permanecendo a crie dentria como um grande problema de sade pblica.

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Assim, Baldani, Narvai e Antunes (2002) consideram que, ao se analisar os fatores scio-econmicos relacionados com a crie dentria, deve-se levar em conta a etiologia das desigualdades sociais, como a m distribuio da renda, a falta de participao na riqueza nacional, o desemprego, o atraso tecnolgico em alguns setores e os elevados ndices de analfabetismo. Ressaltando, que alm das dificuldades de acesso aos servios odontolgicos, pessoas com diferenas pronunciadas de renda tambm esto em desvantagem quanto ocorrncia de problemas de Sade Bucal, concordando com as abordagens realizadas por Pucca Jr. (2001). Os primeiros servios pblicos de atendimento odontolgico, direcionados para as camadas de baixa renda, surgiram em capitais das principais unidades federadas, por iniciativa dos governos estaduais; servios de livre demanda destinados a realizar extraes, atendimentos de urgncia e, s vezes, restauraes para uma clientela na qual predominavam adultos de baixa renda. Nos anos 50 comearam os servios de ateno a escolares de 1 grau em Secretarias de Educao e de Sade. Alguns estados criaram abrangentes servios de sade escolar, como So Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Par, Paraba, Alagoas e Cear (PINTO, 1993). No entanto, a Odontologia de mercado continua absolutamente majoritria (NARVAI; ALMEIDA, 1998), agravando as diferenas sociais e estimulando o crescimento do setor privado em detrimento do setor pblico de sade (FIGUEIREDO; BRITO; BOTAZZO, 2003). De acordo com Pinto (1993), o governo federal s passou a ter presena no campo da Sade Bucal no incio da dcada de 60, atravs da Fundao Servios Especiais de Sade Pblica (FSESP). At ento, apenas a Previdncia Social possua algumas unidades de atendimento, com odontlogos contratados pelos Institutos de Aposentadorias e Penses

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(IAPS): servios prestados de maneira assistemtica e pela modalidade direta 4 , sempre por livre demanda de pacientes, e que no podem ser caracterizados como servios de nvel central, embora pertencessem (os servios) a uma instituio - a Previdncia Social - de mbito federal. Sendo assim, evidencia-se que o Brasil no possui tradio de normatizao e coordenao no nvel central das atividades odontolgicas desenvolvidas no pas, o que leva o setor a estabelecer suas prprias regras, com o predomnio de aes curativas e de interesses individuais um no sistema que levou a generalizao de padres muito elevados de doenas bucais, onde, segundo Narvai (1994), a produo de servios era organizada segundo o receiturio liberal, considerada adequada e socialmente til. Essa situao muda com o SUS, atravs da construo de uma agenda de Sade Bucal para o pas. O sistema previdencirio mudou gradativamente. O que se observou foi um crescimento da modalidade indireta de prestao de servios, na qual os odontlogos so remunerados para tratar, em seus prprios consultrios e com equipamentos e insumos de sua propriedade, pacientes encaminhados pela instituio securitria, mediante uma tabela de preos previamente acordada. Mesmo sem se constituir em um tpico sistema central, a Previdncia Social acabou por construir, no pas, um modelo pblico de ateno odontolgica, em moldes similares ao da rea mdica. Esse modelo, ainda segundo Pinto (1993), contribuiu ativamente para o agravamento dos problemas setoriais, seja por sua reduzida eficcia, seja porque acostumou parcela significativa dos profissionais s suas distores (baixa remunerao, fraudes compensatrias, criando problemas ticos de difcil soluo). As aes odontolgicas ficaram, no nvel do Ministrio da Sade, a cargo de uma de suas unidades vinculadas, a Fundao Servios de Sade Pblica (FSESP) que, por sua vez,4

Profissionais assalariados que trabalhavam em espaos fsicos e em equipamentos pertencentes instituio empregadora.

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subsidiava as secretarias estaduais e as secretarias municipais, influenciando toda a Odontologia Sanitria praticada nos servios pblicos brasileiros e seu modelo. Como bem discutiram Zanetti e Lima (1996), tornando-se um paradigma hegemnico de programao pblica, denominado de Odontologia Cientfica Escolar Sespiana, ou resumidamente de Programao Sespiana. Assim, o paradigma da prtica dos primeiros CDs sanitaristas, reconhecido como Odontologia Sanitria, vai ser realizado programaticamente pela FSESP. Suas aes se notabilizaram pela implantao de trs medidas: fluoretao da gua de abastecimento pblico; sistema incremental de ateno a escolares; desenvolvimento de uma rede de servios nos estados, com pessoal prprio e em tempo integral. O sistema incremental foi o modelo adotado pelos estados e inclua trs programas um curativo, prevendo cobertura ascendente dos escolares por idade, em geral a partir dos 6 ou 7 anos e manuteno das crianas tratadas; um preventivo, que primeiro tentou aplicaes tpicas de fluoreto de sdio neutro a 2% e depois os bochechos semanais com fluoreto a 0,2%; e um educativo, com aulas eventuais sobre higiene bucal ou, em alguns casos, incluso de ensinamentos no currculo escolar (PINTO, 1993, ZANETTI; LIMA, 1996). Ainda hoje, os currculos das faculdades de Odontologia e as aes de Sade Bucal sofrem a influncia da proposta excludente do modelo SESPIANO, ocupando-se exclusivamente da populao-alvo e no do conjunto da populao exposta ao risco de adoecer. Para ampliao do acesso ao benefcio do flor na gua de abastecimento, com a aprovao do Programa Nacional de Alimentao e Nutrio (PRONAN) em 1975, foi includo, no captulo dedicado s intervenes nutricionais complementares, o combate crie dental, com recursos suficientes para implementar at 1980, a fluoretao da gua de consumo pblico nas localidades com mais de 50 mil habitantes, como nos mostra Pinto (1993). Os

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recursos seriam repassados pelo Instituto Nacional de Alimentao e Nutrio, ficando a FSESP responsvel pelo projeto. Em 1987 foi proposta a incluso de um projeto especfico de Odontologia, como parte do Programa Integrado de Aes de Sade e Saneamento (PIASS), que tinha como base a fluoretao da gua e aplicaes tpicas de flor (via bochechos); redirecionamento de recursos humanos e fsicos para dar nfase ao atendimento de escolares e a implementao de unidades elementares em localidades sem acesso Odontologia formal. Inclua, ainda, o estmulo ao aumento de produtividade, adoo de equipamentos simplificados e ao emprego de recursos humanos sem formao acadmica, com funes expandidas. De contedo inovador, apesar de aceito, no chegou a obter recursos para sua execuo, devido a maior prioridade para implantao de uma rede de centros e postos de sade na rea mdica (PINTO, 1993; NARVAI, 1994). Enfim, o que acabou se transformando em texto oficial da Secretaria Nacional de Programas Especiais de Sade foi um documento sobre a responsabilidade do Ministrio da Sade na preveno e tratamento das doenas bucais, de 1978, conquistando a aprovao pessoal do Ministrio da Sade da poca. Suas posies centrais podem ser resumidas em trs itens: generalizao de medidas preventivas; prioridade de atendimento faixa de 6 a 14 anos; e simplificao de recursos humanos, equipamentos e demais insumos necessrios ateno bsica (PINTO, 1993). As discusses setoriais concentraram-se volta do Programa Nacional de Servios Bsicos de Sade - PREV/SADE -, que em 1980, num seguimento natural ao PIASS e numa antecipao ao sistema Unificado e Descentralizado de Sade (SUDS), tinha como um dos seus componentes importantes a rea da Sade Bucal, considerada como uma das cinco atividades bsicas que deveriam estar presentes em cada unidade de sade, ao lado da

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ginecologia/obstetrcia, clnica geral, cirurgia e pediatria, o que tambm observou Pinto (1993) em seu importante trabalho sobre a Odontologia no Brasil. O subprograma de Odontologia foi aprovado no mbito do programa global e definia trs grandes nveis de prestao de servios: o primrio, compreendendo a preveno macia e a prestao de cuidados elementares; o secundrio, com atividades de apoio ao primeiro nvel e atendimento a escolares de primeiro grau; e o tercirio, com a referncia para casos complexos e a oferta de prteses sob lucro zero. Propunha-se uma rede de complexidade crescente com nfase nas unidades de ateno elementar e no emprego de pessoal tcnico com funes expandidas, ou seja, Tcnicos em Higiene Dental (THDs), que tambm fariam restauraes dentrias em todas as suas etapas, incluindo o preparo cavitrio, e dariam atendimento emergencial simples sob superviso direta ou indireta, sendo empregados exclusivamente pelos servios pblicos. O PREV/SADE apesar de no ter sido um programa governamental, tornou-se um ponto de referncia para os progressos da em diante alcanados. Porm, no alcanou grandes resultados epidemiolgicos, se constituindo em mais uma ao fracassada (NARVAI, 1994). A partir de 1980 houve um fortalecimento da Previdncia Social. Perodo da Comisso Consultiva da Administrao de Sade Previdenciria (CONASP), que em 1983aprovou, entre outros, o Programa de Reorientao da Assistncia Odontolgica do Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social (INAMPS), cuja maior importncia foi a oficializao das severas crticas ao regime indireto de prestao de servios com pagamento de profissionais por tarefa, propondo sua substituio por servios diretos. Narvai (1994), considera esse momento fruto de uma expanso da assistncia odontolgica no setor estatal, decorrente da fuso dos Institutos de Aposentadorias e Penses (IAPs), dando origem ao INPS em 1967. No entanto, essa expanso no deve ser entendida como sinnimo de melhores condies de Sade Bucal. Um Departamento com numerosa equipe e

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coordenadorias nos estados, notabilizou-se apenas pela tentativa de implantao de um amplo programa de aplicao de selantes oclusais, que no contou com a aceitao dos profissionais de sade pblica do pas e no foi implementado apesar da compra de insumos em grande quantidade. Foi o surgimento do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FINSOCIAL), fonte de financiamento para toda a rea social do governo federal, que possibilitou a aprovao, tambm em 1983, de dois programas essenciais para a Odontologia: um de apoio fluoretao da gua e outro alocando recursos para aes de sade escolar (PINTO, 1993). Apesar da participao restrita de cirurgies-dentistas no processo da Reforma Sanitria, as Conferncias Nacionais de Sade (CNS) ocorridas nos anos 80, concederam espaos representativos Odontologia. Na VIII CNS, ocorrida em 1986, realizou-se a I Conferncia Nacional de Sade Bucal, cujas propostas seguem os princpios e diretrizes adotados na rea de sade em geral, sugerindo um programa de Sade Bucal universalizado, hierarquizado, regionalizado e descentralizado, tendo por base a municipalizao e a participao popular; aconselhando prioridades para faixa de 0 a 14 anos, gestantes e adultos. Os programas e as propostas da Sade Bucal at ento no corresponderam a avanos significativos do ponto de vista epidemiolgico, o que, para Narvai (1994), pode ser explicado pelo privilegiamento no enfoque curativo, abordagem que no capaz de resolver os problemas de Sade Bucal. Muitos programas e, sobretudo, os cirurgies-dentistas encarregados vm se limitando, muitas vezes, a reproduzir mecnica e acriticamente, nas atividades dirigidas a grupos populacionais, o modelo utilizado no setor privado para produzir servios destinados a consumidores individuais. Garrafa (1994), reforou a opinio acima, alertando para o fato do setor de "Sade Bucal" ter o privilgio de haver chegado ao final deste sculo dominando a intimidade das doenas mais freqentes da rea estomatolgica (especialmente a crie e a doena

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periodontal), bem como as medidas tcnicas coletivas adequadas para preveni-las e cur-las. No entanto, a Odontologia brasileira continuou percorrendo, de forma insistente, uma via individual e de mo nica, que tem beneficiado apenas as poucas pessoas que podem pagar por ela. Essa situao, aliada ao alto ndice epidemiolgico de doenas bucais constatado no pas, dificulta a busca de caminhos ticos para o balizamento de propostas sanitrias coletivas, na rea de Sade Bucal. Esse modelo hegemnico decorre de uma concepo de prtica centrada na assistncia odontolgica ao indivduo doente, realizada com exclusividade por um sujeito individual - o cirurgio-dentista - no restrito ambiente clnico-cirrgico. Em 1994, o Ministrio da Sade cria o PSF, na tentativa de consolidar a Reforma Sanitria e fortalecer o SUS. Naquele momento, suas equipes eram compostas de mdico e enfermeiro. Em 1997 foram incorporados o auxiliar de enfermagem e os agentes comunitrios de sade (BRASIL, 1997b). Nas aes de sade, a Sade Bucal deixada em segundo plano e seus profissionais no foram includos na equipe mnima. No entanto, desde 1995, j existia um movimento nacional em prol da incluso da equipe de Odontologia no PSF, iniciado no meio acadmico de Braslia e Curitiba, ocorrendo, aps o I Congresso Brasileiro de Sade Bucal, realizado em Curitiba, no ano de 1996, a adeso de governos estaduais proposta, destacando-se o do Distrito Federal e o de So Paulo, que se lanaram na tarefa de estimular a incorporao da ESB no PSF. Vrios municpios, como Vitria da Conquista, na Bahia, em 1998, Aracaju - SE, em 1999, Macei AL e Ribeiro Preto - SP em 2000, entre outros, foram pioneiros, e formaram as Equipes de Sade Bucal no PSF, antes do Ministrio da Sade e das entidades de classe da categoria aderirem ao movimento (ZANETTI, 2002). A publicao pelo Ministrio da Sade da Portaria n. 1.444 (BRASIL,2000), que estabeleceu incentivo financeiro para a reorganizao da ateno Sade Bucal prestada nos

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municpios por meio do PSF, s veio a ocorrer trs anos aps a criao das equipes de Sade da Famlia, em 28 de dezembro de 2000, sendo regulamentada pela Portaria n. 267, em 06 de maro de 2001. O documento considerava a necessidade de ampliao do acesso da populao brasileira s aes de promoo, preveno e recuperao da Sade Bucal; a necessidade de melhorar os ndices epidemiolgicos da Sade Bucal da populao e a necessidade de incentivar a reorganizao da Sade Bucal na ateno bsica, por meio da implantao de suas aes no Programa de Sade da Famlia (BRASIL, 2001a). Os atendentes de consultrio dentrio (ACD), atualmente denominados de auxiliares de consultrio dentrio, e os tcnicos em higiene dental (THD) foram incorporados nas aes de Sade Bucal no PSF para contribuir no atendimento das necessidades dos usurios, podendo a Equipe de Sade Bucal se estruturar atravs de duas modalidades: a modalidade I que compreende um cirurgio-dentista (CD) e um auxiliar de consultrio dentrio (ACD), e a modalidade II que compreende um CD, um ACD e um THD. Os integrantes da equipe, alm de suas atividades especficas, devem realizar conjuntamente atribuies de planejamento, acompanhamento e avaliao das aes desenvolvidas no territrio de abrangncia das unidades bsicas; identificar as necessidades e expectativas da populao em relao Sade Bucal; estimular e executar medidas de promoo da sade, atividades educativas e preventivas em Sade Bucal; executar aes bsicas de vigilncia epidemiolgica em sua rea de abrangncia, bem como organizar o processo de trabalho, de acordo com as diretrizes do PSF e do plano de sade municipal. Devem participar, tambm, do processo de educao da comunidade, sensibilizando as famlias para a importncia da Sade Bucal na manuteno da sade; programar e realizar visitas domiciliares, de acordo com as necessidades identificadas e desenvolver aes intersetoriais para a promoo da Sade Bucal (BRASIL, 2001a).

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A incluso das aes de Sade Bucal na estratgia de Sade da Famlia deveria expressar os princpios e diretrizes do SUS e apresentar as seguintes caractersticas operacionais: carter substitutivo das prticas tradicionais exercidas nas unidades bsicas de sade; adscrio da populao sob a responsabilidade da unidade bsica de sade; integralidade da assistncia prestada populao adscrita; articulao da referncia e contrareferncia aos servios de maior complexidade do Sistema de Sade; definio da famlia como ncleo central de abordagem; humanizao do atendimento; abordagem

multiprofissional; estmulo s aes de promoo da sade, articulao intersetorial, participao e ao controle social e educao permanente dos profissionais. Em 2003 com a posse do presidente da Repblica do Brasil para o perodo 2003 2007, pessoas com tradio de participao nos movimentos populares e que defendem a diminuio das desigualdades sociais assumiram cargos importantes no governo. E j em junho daquele ano, o Ministrio da Sade publicou portaria alterando a relao entre as ESB e a de Sade da Famlia, como tambm os critrios para implantao de novas equipes. Estabelecendo que, nos municpios brasileiros, podem ser implantadas quantas ESB forem necessrias, a critrio do gestor municipal, desde que no ultrapassem o nmero existente de ESF e considerem a lgica de organizao da ateno bsica. Aps esse breve relato sobre as polticas e os programas de sade implantados no Brasil, passaremos discusso do Processo de Trabalho em sade, e das tecnologias que instrumentalizam a ao no dia-a-dia dos servios nas unidades.

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2.2 Organizao tecnolgica do trabalho em sade: construo de sujeitos, saberes e prticas.

2.2.1

Construo terica do processo de trabalho em sade

O trabalho, na viso marxiana, se caracteriza por um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua prpria ao, impulsiona, regula e controla seu intercmbio material com a natureza. Marx (1994), reconheceu que o homem atuando sobre a natureza externa, modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua prpria natureza, pressupondo o trabalho sob forma exclusivamente humana, no transforma apenas o material sobre o qual opera, imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. Interpretando as consideraes do autor supracitado, Mendes-Gonalves (1992) considerou que toda objetualidade da natureza decorre da presena de um sujeito, para o qual ela objeto, o que enlaa subjetividade e objetividade de modo inseparvel e se esse sujeito transformar a si prprio enquanto se reproduz s custas de sua metabolizao da natureza, ambos tornar-se-o histricos. Estando sua ao vinculada a uma finalidade sempre presente antes e durante o processo. Ao tratar do trabalho em sade, Peduzzi (1998) entende que, apesar de suas peculiaridades, um ato humano pelo qual os homens, em sociedade, produzem e reproduzem sua existncia, no somente no plano material, mas tambm da subjetividade,

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ambos condicionando-se mutuamente, sendo as necessidades sociais que movem o sujeito ao, tendo ele introjetado o que a finalidade do carter social do processo de trabalho. Sua especificidade reside, ainda conforme a autora, nas caractersticas nucleares de seus objetos e instrumentos, que garantiro s suas partes, mesmo como trabalho social, maior autonomia de seus agentes e reflexividade frente ao saber na ao. Considerando seus objetos e as necessidades a que satisfaro, humanamente naturais, social e historicamente determinados; sua prpria existncia como processos de trabalho individualizados, reiteradamente realizados por agentes sociais que ento se definiram como trabalhadores em sade, dentro de uma diviso social do trabalho, que no natural, mas histrica e socialmente determinada (MENDES-GONALVES, 1992). Inspiradas em Peduzzi (1998), podemos afirmar que, nessa rede, ocorre o encadeamento de distintos processos de trabalho que se diferenciam pela sua peculiar conexo dos elementos constituintes (objeto, instrumentos, atividades) e se integram por meio das relaes entre as necessidades que precisam internalizar para se realizar. Distintas reas profissionais, cada qual realizando um processo de trabalho prprio, encontram nas necessidades de sade seu ponto de confluncia. Necessidades essas que se manifestam e so apreendidas desde diferentes ngulos ou aspectos, porm sempre referidas ao mesmo mbito de carecimentos humanos, mesma esfera da vida humana, sade. A esta altura, para entender as idias de cooperao e diviso do trabalho, trazidas pelos autores acima, sentimos a necessidade de retomar Marx (1994), para quem o trabalho seria uma ao em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produo ou em processos de produo diferentes, mas conexos. O autor destacava que o efeito do trabalho combinado no poderia ser produzido pelo trabalho individual, e s o seria num espao de tempo muito mais longo ou numa escala muito reduzida. Considerava que a

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cooperao est fundada na diviso do trabalho, discutindo ento, a questo da diviso geral e da diviso manufatureira. A diviso geral, ou social, distingue os produtores nos diversos ramos de trabalho, e segundo Braverman (1977), essa forma de diviso caracterstica de todas as sociedades conhecidas, pois aparentemente inerente ao trabalho humano, to logo ele se converte em trabalho social. Isto , trabalho executado na sociedade e atravs dela. Por outro lado, a diviso manufatureira seria o mais antigo princpio inovador do modo capitalista de produo, que subdividiu sistematicamente o trabalho de cada especialidade produtiva em operaes limitadas; a diviso tcnica, que representa o parcelamento dos processos implicados na feitura do produto em numerosas operaes executadas por diferentes trabalhadores. Voltando ao universo da sade, a Sade Coletiva, conforme anlise de Almeida, Mishima e Peduzzi (1999), o processo sade-doena e cuidado tomado para alm da perspectiva biolgica e multicausal, compreendendo-o relacionado s determinaes sociais e pela ao dos distintos sujeitos em suas relaes entre si e na sociedade em que vivem, o que, de acordo com Silveira (2002) envolve processos de trabalho que culminaro em assistncia, cuidado e aes de sade, em espaos scio-poltico-econmico-culturais especficos, em tempos determinados e submetidos a condies de vida diferenciadas. Assim, o homem no existe, no trabalha, no se reproduz, seno organizado em grupos de homens: os carecimentos, que transformados em finalidades guiam todos os processos de trabalho, no os dele, trabalhador individual, que sente fome, frio ou tdio, mas sim os do grupo, do cl, da tribo, da comunidade, que inclui sempre homens e mulheres de diversas idades e que no exatamente escolhe existir, viver e reproduzir-se como grupo, mas naturalmente s pode existir, viver e reproduzir-se como grupo (MENDES-GONALVES, 1992).

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Mendes-Gonalves (1992), referindo-se aos conceitos de Marx (1994), em sua discusso sobre o processo de trabalho em sade, ressaltou que os sujeitos inserem entre si mesmos e o objeto de trabalho um complexo de coisas, os meios ou instrumentos de trabalho, que lhes servem para dirigir sua atividade sobre esse objeto. Utilizam-se das propriedades mecnicas, fsicas, qumicas das coisas, para faz-las atuarem como foras sobre outras coisas, de acordo com o fim que tm em mira. Nesse sentido, que os elementos constitutivos de um processo de trabalho se articulam atravs das relaes sociais e tcnicas, desenvolvidas atravs de prticas institucionais tecnologicamente distintas, constituindo-se em atividades de sade, lingisticamente mediadas, ou seja, de natureza tambm simblica, atada, portanto ao conjunto das prticas sociais (SILVEIRA, 2002), que iro determinar o modo como ser realizado o trabalho, ou seja, o seu modo de produo.

2.2.2 A micropoltica do trabalho em Sade Bucal e a construo do trabalhador coletivo

Merhy (1997a) considera que o desafio colocado para os sujeitos que atuam na de sade, est na busca de um outro modo de operar o trabalho de se construir a relao do trabalhador com os usurios do sistema de ateno sade, edificando uma relao mais solidria entre os trabalhadores e os usurios e os prprios trabalhadores, do ponto de vista do seu desempenho tcnico, e da construo de um trabalhador coletivo.

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As relaes, entre os sujeitos, podem ser, de um lado, sumrias e burocrticas, onde a assistncia se produz centrada no ato prescritivo, compondo um modelo que tem na sua natureza o saber mdico hegemnico, produtor de procedimentos; ou, por outro lado, podem se dar como relaes intercessoras, estabelecidas no trabalho em ato, realizado no cuidado sade (MERHY, 2002). Dentro da diviso do trabalho em sade, que se insere a discusso do trabalho na Sade Bucal. Novaes (1998) considerou que a viabilidade da Odontologia, no desenvolvimento de seus instrumentos, de suas tcnicas e da profissionalizao da atividade, se efetivou a partir da necessidade dos prprios homens de negarem uma realidade agressiva e adversa. A prtica odontolgica, como nas diversas atividades que envolvem a prestao de servios em geral, tem sofrido influncia do grande desenvolvimento tecnolgico ocorrido a partir da segunda metade do sculo XX. No entanto, para Figueiredo, Brito e Botazzo (2003), tal fator no vem auxiliando na soluo dos problemas de sade, ao contrrio, o modelo tem agravado as diferenas sociais e estimulado o crescimento do setor privado em detrimento do setor pblico, favorecendo a venda e o consumo de um bem que vem sendo considerado uma mercadoria: a sade. Na verdade, o ato odontolgico, em si, no se modificou, mas sim as maneiras ou formas de faz-lo, os conhecimentos e habilidades necessrios do profissional. Desenvolveram as foras produtivas do trabalhador, modificando as formas de trabalho artesanal para um trabalho mecanizado e transformando as relaes sociais de produo. Essas alteraes inserem, paulatinamente, as atividades odontolgicas no circuito da acumulao e valorizao do capital. Trazendo as consideraes de Peduzzi (1998) para a rea da Sade Bucal, consideramos que o servio odontolgico, como um servio de sade, tem as caractersticas

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de setor tercirio e as peculiaridades do seu objeto de trabalho, as necessidades de sade, sentidas e trazidas aos servios pelos sujeitos/usurios e apreendidas e interpretadas pelos sujeitos/agentes; configura-se como trabalho reflexivo, destinado preveno, manuteno ou restaurao de algo (a sade) que imprescindvel ao conjunto da sociedade. E concordamos com Iyda (1998), ao destacar que, como toda produo social, associa indissoluvelmente objeto, meios e atividade orientada (o prprio trabalho), trade esta no confundvel entre si porque porta, em sua particularidade, a universalidade da produo social, as relaes sociais de produo. Para ns, a compreenso do processo sade-doena tem orientado o tipo de interveno a ser adotado nas aes de Sade Bucal. Discutindo a idia acima, Iyda (1998) mostrou que, na prtica reiterativa e cotidiana, a extrao dentria e a substituio por meios artificiais dos mais diversos primeiras medidas de interveno representaram um avano tcnico num determinado momento e, inclusive, antecipando em muitos sculos a possibilidade de uma biotecnologia; no entanto, hoje representa o resqucio de uma concepo e de uma prtica de Sade Bucal atrasada. Eliminando um sintoma da doena, pela extrao, restaura a condio de normalidade (no sentir dor), mas instaura a anormalidade (no ter dentes), que pode ser reconduzida sua normalidade por meio de uma prtese dentria e, assim, o que anormal passa a ser aceito como normal, social e mesmo profissionalmente. Essa abordagem nos remete a Canguilhem (1995) ao discutir sobre a postura do homem frente a uma anormalidade, quando reporta-se a sua condio passada, voltar a ser normal, significa retornar uma atividade interrompida, ou pelo menos uma atividade considerada equivalente, segundo os gostos individuais e os valores sociais do meio. Para Iyda (1998), aqui reside o limite da Odontologia; desraizada da prxis coletiva, considera a prtese dentria, como soluo de um mal menor, negando a possibilidade de

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alterar e controlar este mal menor, exime-se do controle das doenas bucais ao responsabilizar os indivduos ou o social pelo aparecimento das doenas e pela no adoo de medidas preventivas. Articulado com as idias de Iyda (1998), Botazzo e Freitas (1998) destacaram que, no Brasil, a Odontologia tem seu mrito reconhecido apenas no desenvolvimento cientficotecnolgico. A passagem de um reduzido instrumental dos antigos cirurgies e barbeiros para a incorporao crescente de todo um arsenal cientfico-tecnolgico, apenas demonstram que os conhecimentos sociais gerais, a cincia e sua objetivao nos instrumentos se converteram, cada vez mais, em uma fora produtiva direta no processo de trabalho odontolgico, inserindo-o no sistema produtivo (movimento do capital, modo de organizao da produo e formas de diviso de trabalho). Estando seu desenvolvimento (teoria e prtica) e sua atuao submetidos s condies gerais da produo social, que dissolveram o processo de trabalho, baseado no ofcio, e provocaram o surgimento de novas formas de trabalho, seguindo a tendncia geral da produo e reproduo capitalista. Na organizao do trabalho da Sade Bucal, as atividades especficas dos vrios profissionais envolvidos traduzem separaes que permitem a distino entre diversos graus de complexidade dos trabalhos parciais ou especializados, os quais requerem, tambm, diferentes graus de formao do trabalhador. Temos, assim, que o processo de trabalho, tambm na Sade Bucal, somente pode ser apreendido enquanto tal, se considerados, simultnea e articuladamente, todos os seus componentes. E, ainda, que um dado processo de trabalho no ocorre isoladamente, mas sim numa rede de processos que se alimentam reciprocamente. Para Merhy e Franco (2003a) esse trabalho sempre relacional, dependendo do trabalho vivo em ato, isto , o trabalho no momento em que se est produzindo, ressaltando a importncia das tecnologias leves como fundamental para a produo do cuidado.

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Iyda (1998) acredita que o prprio objeto da Odontologia, designado comumente boca, e mais estritamente arcada dentria, resulta da prxis social. A boca ingestora de alimentos, emissora de sons, da transmisso verbal dos smbolos, guarda hoje os sculos dessa prxis social. Nesse sentido, as estruturas dentrias no so fenmenos naturais, mas resultam de um processo da produo e reproduo dos homens, de suas condies materiais e de sua insero nesta produo. So, portanto, socialmente investidos, apresentando-se diferentemente entre as classes e categoriais sociais. No se trata simplesmente de uma simples questo tcnica, mas econmica e poltica, produzindo, inclusive, formas ideolgicas que legitimam essas prticas. A forma de conhecimento decorrente desse modelo de cincia exclui da Odontologia o que h nela de essencial, sua humanidade (o trabalho e as relaes sociais) e sua historicidade. No a boca ou, mais estritamente, a arcada dentria que constitui o objeto da Odontologia, seno o homem, seu produto e produtor. Acreditamos, concordando com a autora supracitada, que, embora a produo Odontolgica assemelhe-se produo industrial, possui uma especificidade que a diferencia dos servios: a presena de uma clientela, que deve ser co-produtiva. O consumidor imprescindvel, sem o qual a produo no se efetiva. A manipulao do consumo se ajusta ideologia jurdico-poltica, uma vez que os indivduos a concebem e atuam como indivduos participantes, no de classes, mas de estratos hierarquizados gradualmente, segundo o montante de seus rendimentos. Discutindo a prtica da Sade Bucal, Figueiredo, Brito e Botazzo (2003) enfatizam que, se a diviso social do trabalho, de um lado, possibilitou Odontologia aspectos positivos, como o desenvolvimento das foras produtivas, a sua especializao acarretou tambm aspectos negativos, a alienao fundamentada na autonomizao e no fetichismo de sua

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prtica: a transformao do desejo humano em mercadoria, ou seja, a fantasia de que os desejos podem ser satisfeitos ao se comprar o produto sade. Entendemos que, quando a sade, enquanto mercadoria, condiciona seu acesso ao poder aquisitivo dos sujeitos, leva excluso de uma parcela da sociedade, e concordamos com Narvai (1994), quando enfatiza que tais desigualdades no so suficientes para gerar presses significativas sobre o poder pblico, sendo equacionada no mbito de mercado para quem pode arcar com seus custos e para aqueles que tais custos tornam proibitivo o acesso aos consultrios. Essa problemtica resta como questo secundria incapaz de, isoladamente, motivar a mobilizao de pessoas e se tornar objeto de reivindicao socialmente expressiva. O que pode mudar atravs da atuao dos Conselhos de Sade, locais e municipais. Em sentido contrrio realidade apresentada acima, no intuito de promover a incluso social, de acordo com Frazo (1998), vrios sistemas municipais de sade vm modificando o modelo de ateno Sade Bucal, para realizar aes coletivas capazes de reduzir as principais doenas da boca a nveis socialmente aceitveis, traduzindo na prtica, o movimento da Sade Bucal Coletiva, cuja proposta pode ser sintetizada na conquista da cidadania em todos os campos da vida social, na direo da democracia poltica, da justia social e do desenvolvimento econmico, para que, na sade, todos tenham acesso s aes e servios de sade, incluindo as aes de Sade Bucal. Ainda em sua avaliao da situao da Odontologia no Brasil, ao considerar a Sade Bucal Coletiva, Narvai (1994) argumenta que as proposies de prtica da Sade Bucal Coletiva opem-se frontalmente Odontologia de mercado. O que no significa oposio aos consultrios ou clnicas particulares, mas mercantilizao da sade e ao fato de que, em seu conjunto, predominem e imponham sua lgica na organizao da assistncia Odontolgica e do sistema de ateno Sade Bucal.

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Retomando a discusso da diviso tcnica do trabalho, concordamos que a mesma introduziu, por um lado, o fracionamento de um mesmo processo de trabalho originrio, do qual vrios outros trabalhos parcelares derivam e, por outro lado, os aspectos de complementaridade objetiva e de interdependncia entre os trabalhos especializados, atinentes a uma mesma rea de produo. Ressaltamos a importncia desses aspectos, quando considerados os objetivos traados na incorporao da Equipe de Sade Bucal Equipe de Sade da Famlia; sem perder de vista que a estratgia do PSF visa assegurar o acesso progressivo de todas as famlias, residentes nas reas cobertas pelas Equipes de Sade da Famlia, s aes de promoo e de preveno; bem como aquelas de carter curativo-restauradoras de Sade Bucal, alm de capacitar, formar e educar permanentemente os profissionais de Sade Bucal necessrios ao PSF, por intermdio da articulao entre as instituies de ensino superior e as de servio do SUS. Para Merhy e Franco (2003b) o PSF, em muitos casos, tem mudado a forma de produzir o trabalho, sem, no entanto, alterar o processo de trabalho centrado nas tecnologias duras. Apesar do trabalho em equipe e do incentivo vigilncia sade, o que d idia de mudana no modo de produzir sade, a micropoltica de organizao do trabalho revela, especialmente na atividade clnica, um ncleo do cuidado que continua operando um processo centrado na lgica instrumental de produo de sade. Ou seja, centrado no trabalho morto, pouco relacional, o que revela a captura do trabalho vivo pelo instrumental, a no valorao da tecnologia leve no processo produtivo. Nesse contexto, Mendes (1996) ressaltou que os processos de trabalho em sade devem ser organizados mediante operaes intersetoriais, articuladas por diferentes estratgias de interveno, resultante da combinao das aes de promoo da sade, a preveno das enfermidades e acidentes e a ateno curativa, e para sua operacionalizao ter

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como base os conceitos de territorializao, problema e intersetorialidade, tomando como referncia as informaes demogrficas, scio-econmicas, poltica, cultural, epidemiolgica e sanitria, que so estabelecidas atravs da identificao de grupos de riscos nas micro-reas da rea de abrangncia, espaos sociais em permanente construo. Campos (2000, 2003), considera que esse territrio extrapola a dimenso geogrfica, se constituindo em um espao de modos singulares de vida, com interesses e necessidades diversos, que geram conflitos, sendo necessria a negociao e formulao de contratos, por vezes tcitos, que influem no processo de trabalho, e que devem ser considerados para a gesto e planejamento das aes em sade. A geografia, as pessoas e a organizao social so modificadas pela ao concreta dos sujeitos, da natureza, do tempo e das instituies (CAMPOS, 2000. p. 59). Para Merhy (1997a) as discusses na rea de sade e os projetos de interveno dos vrios grupos sociais interessados no setor tm destacado a necessidade de mudanas do modo de trabalhar na rea, em todos os seus nveis de organizao, no se devendo deixar de avaliar a situao macropoltica e a sua influncia nos servios; mas, importante se dedicar anlise do espao onde se do as questes micropolticas dos processos de trabalho em sade, na tentativa de procurar novas pistas para tratar as intenes de transformao que permeiam o setor sade. Com essa finalidade, ento, o autor criou um instrumento de anlise: as ferramentas analisadoras (MERHY 1997a, 2002, MERHY; FRANCO 2003c), constitudo por um fluxograma descritor e por uma rede de petio e compromissos. O fluxograma descritor uma representao grfica do processo de trabalho, que deve ser elaborado de forma centrada no usurio, com riqueza de detalhes para perceber os aspectos da micropoltica da organizao do trabalho e da produo de servios. A rede de

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petio e compromissos uma descrio das relaes intra e interinstitucionais, onde so revelados os estranhamentos e conflitos entre os diversos atores, no cenrio. Segundo o autor, uma anlise mais detalhada das interfaces entre os sujeitos institudos, seus mtodos de ao e o modo como estes sujeitos se interseccionam, possibilitam uma nova compreenso sobre o tema da tecnologia em sade, ao se tomar como eixo norteador o trabalho vivo em ato, que essencialmente um tipo de fora que opera permanentemente em processo e em relaes. Nesse sentido, considera que qualquer servio assistencial de sade pode ser enquadrado na seqncia mostrada pelo diagrama resumo apresentado na figura 1.

entrada

recepo

deciso de ofertas cardpio sada

Figura 1 - Fluxograma analisador do modelo de ateno de um servio de sade

A entrada e a sada so representadas simbolicamente por uma elipse, a etapa da recepo por um retngulo, em seguida ocorre um momento de deciso, representado por um losango e que, de acordo, com a resposta positiva ou negativa, direcionar o tipo de interveno a ser realizado na prxima etapa; caso seja encaminhado para a interveno tecnolgica em sade propriamente dita, ter um verdadeiro cardpio de ofertas de aes a serem desempenhadas por diferentes profissionais e nos mais variados lugares.

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Nessa etapa, concretiza-se um trabalho que, toma centralmente um conjunto de sabedorias e de prticas com a finalidade de realizar uma interveno sobre um determinado problema de sade, conforme os critrios adotados pelo modelo de ateno do servio. O objeto de ao de sade pode se d em um processo individual ou coletivo, mas deve visar alterar a lgica do sofrimento, representada como problema de sade, pelo usurio, ou o seu percurso no indivduo ou no coletivo, ou mesmo alterar a sua produo no nvel do conjunto das relaes sociais. Embora o autor esteja discutindo as aes do atendimento mdico, tem a preocupao de mostrar que a mesma situao se repete, ao considerarmos qualquer trabalhador da rea de sade. Considerando que o processo de trabalho de Sade Bucal tambm est determinado pelas relaes que se do no cotidiano das Unidades de Sade da Famlia, procuramos, atravs das ferramentas analisadoras discutir os elementos desse processo. Embora, como visto acima, aquelas ferramentas tenham sido elaboradas para avaliaes de servios dentro da unidade com a participao dos seus trabalhadores, ousamos, e construmos nossos instrumentos a rede de peties e compromissos e os fluxogramas analisadores - a partir das entrevistas e das observaes realizadas. No podemos deixar de retomar aqui, as relaes que se estabelecem, nos vrios momentos do processo de trabalho, entre os trabalhadores e usurios e entre os prprios trabalhadores, criando-se um espao intercessor, onde h um encontro do agente produtor e suas ferramentas 5 com o agente consumidor, tornando-o, em parte, objeto de ao daquele produtor, mas sem que, com isso, deixe de ser tambm um agente, que, em ato, coloca seus conhecimentos e representaes, expressos como um modo de sentir e elaborar necessidades de sade (MERHY, 1997a).5

Ferramentas - conhecimentos, equipamentos, tecnologias de um modo geral (leve, leve-dura e dura)

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Nesse espao intercessor os sujeitos em ao, indivduos com singularidades e contextos diferentes, passam a atuar como sujeitos que se interrelacionam e se complementam para a produo do cuidado, agindo ento, como atores que se articulam com criatividade no sujeito coletivo.

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CAPTULO III A OPO METODOLGICA

Nas condies de pesquisa social [...] revela-se muitas vezes que o que poderia, em um primeiro momento, ser tomado por aspecto irrelevante, mostra-se intrinsecamente vital para a

compreenso e a explicao do objeto. O andamento da pesquisa, em todas as suas fases, capaz de impor correes e redefinies: ao contrrio de um procedimento protocolarmente delimitado de sada, no caso da investigao sobre os objetos sociais, a pesquisa se faz predominantemente no processo, na resoluo de tenses

permanentes entre os plos epistemolgico, terico, morfolgico e tcnico internos a ela, e tambm na interao com o espao mais amplo em que a investigao se orienta inclusive pelo significado vivo de seu objeto, o qual foge permanentemente dos pontos sucessivos em que foi por ltimo entrevisto e assume incessantemente novas determinaes. A pesquisa processual, porque processual a realidade a que ela se aplica. Ricardo Bruno Mendes Gonalves

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A OPO METODOLGICA

Neste estudo procuramos discutir o processo de trabalho das Equipes de Sade Bucal no Programa de Sade da Famlia, partindo da observao da prtica e da compreenso que os sujeitos portam de seu trabalho e dos vrios aspectos a ele relacionados. Optamos, de acordo com Mendes-Gonalves (1994) e Merhy (1997a), pelo contraste entre aspectos objetivos e subjetivos do processo de trabalho e as concepes desses agentes a respeito do mesmo e das diversas questes a ele conexas. Para nos aproximar do objeto de estudo, fizemos a opo por uma abordagem qualitativa, histrico social, que nos possibilita conhecer os processos histricos que configuram os distintos padres de relao entre Estado e sociedade, bem como as caractersticas dessa configurao no encaminhamento das propostas de mudana do setor sade (TEIXEIRA, 1995). Dentro de uma perspectiva crtico-analtica, o que permite de acordo com Minayo (1999, p.22), responder a questes muito particulares. Houve preocupao com uma realidade que no pode ser quantificada, entendendo-se os sujeitos do estudo como gente, em determinada condio social, pertencente a determinado grupo social ou classe, com suas crenas, valores e significados . A relao dos sujeitos envolvidos (trabalhadores e usurios 6 ) na produo do servio de sade foi analisada a partir da prtica da Equipe de Sade Bucal, inserida na Equipe de Sade da Famlia, articulada com os princpios tericos que norteiam as aes na rea de

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Os usurios foram sujeitos da pesquisa no momento da observao da prtica.

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Sade Bucal, realizando confronto entre os dados empricos, obtidos atravs de entrevista, observao da prtica e a anlise de documentos.

3.1 Campo emprico do estudo Alagoinhas - BA

Optamos por realizar a investigao no Sistema de Sade de Alagoinhas porque, das cidades prximas Universidade Estadual de Feira de Santana, a implantao das Equipes de Sade Bucal no PSF ocorreu j em 2001, o que a diferencia das demais, pois j existe um servio relativamente estruturado, sendo possvel a anlise de seu processo de trabalho. A configurao do campo de estudo, apresentada abaixo, foi elaborada a partir de informaes constantes de documentos tcnicos (ALAGOINHAS, 2002ab), obtidos na construo do Projeto de Pesquisa. Em seguida, apresentamos o desenho da rede de unidades de sade da famlia, construda a partir de nossa insero no cenrio de estudo. Alagoinhas fica situada na Macrorregio Nordeste (BAHIA, 2003) e ocupa o 6 lugar na classificao do Estado em rea territorial, com extenso de 738,6 km2. Tem uma populao de 130.095, segundo o censo de 2000, e densidade demogrfica de 175,9 hab. /km2, com 86,43% residindo nas reas urbanas. Possui uma taxa de analfabetismo, na populao adulta, de 17,1% e uma renda per capta mdia de R$ 181,30, sendo que 43,8% da populao classificada como pobre.

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Encontra-se na microrregio de sade de Alagoinhas 7 , que tambm composta pelos municpios de Aramari, Ouriangas, Pedro, Acajutiba, Apor, Conde, Crisoplis, Esplanada, Inhambupe, Nova Soure, Olindina, Stiro Dias, Itapicuru, Jandara e Rio Real, funcionando como municpio-plo da regio. 8 O acesso a Salvador se d atravs das rodovias federais BR 101 e 116, numa distncia de 107 km. Limita-se com o municpio de Inhambupe ao norte, com os municpios de Catu e Aras ao sul, com o municpio de Teodoro Sampaio e Aramari, a oeste, e com o municpio de Entre Rios, a leste. A economia do municpio tem sua base no comrcio, alm de indstrias de pequeno porte, como saboarias, cermicas, artefatos de couro, mrmore, entre outras. Conta tambm com o Distrito Industrial de Saupe (DISAI), onde esto instaladas indstrias de grande e mdio porte. Os rgos pblicos tambm se constituem em um dos maiores empregadores. a segunda regio administrativa do Estado, sede de vrios rgos pblicos, dentre eles a 3 Diretoria Regional de Sade da Bahia (DIRES), Secretaria de Fazenda, Receita Federal, Correios, Ministrio Pblico e Ministrio do Trabalho. Constitudo pela sede, pelos distritos de Riacho da Guia e Boa Unio e pelos povoados de Estevo, Narandiba, Quizambu, Rio Branco, Macaquinho, Catuzinho, Catu, Lamaro, Papagaio, Buri, entre outros. No que se refere ao controle social, possui grande nmero de associaes e conselhos, a exemplo do Conselho Municipal de Sade, de Educao, de Assistncia Social, Sindicato dos Ferrovirios de Alagoinhas e Unio das Associaes de Moradores de Alagoinhas.

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Microrregio de sade base territorial ou espao geogrfico que conta, alm da ateno bsica, com servios ambulatoriais e hospitalares de mdia complexidade, tendo uma aglutinao de uma populao de 250 mil habitantes (BAHIA, 2004). 8 Municpio-plo tem papel de referncia para outros municpios, em qualquer nvel de ateno. Deve contemplar um dos seguintes critrios: realizar internaes nas quatro especialidades bsicas, realizar parto Cesrio, ter populao igual ou superior a 35 mil habitantes, ser sede de Diretria Regional de Sade - DIRES (BAHIA, 2003)

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Sistema de Sade de Alagoinhas: O municpio se encontra na Gesto Plena do Sistema Municipal 9 , devendo responder pela ateno bsica e pelos servios de mdia e alta complexidade. Na ateno bsica funcionam duas estratgias de reorganizao O Programa de Agentes Comunitrios de Sade (PACS) e o Programa de Sade da Famlia (PSF), existindo no municpio vinte e trs unidades de sade, distribudas entre as reas urbana e rural. O PSF foi implantado em 1998, e hoje tem vinte e uma Equipes de Sade da Famlia, que so responsveis, aproximadamente, por 52% de cobertura da populao. As Unidades de Sade da Famlia oferecem aes mdicas, de enfermagem e de sade bucal, com os seguintes programas e servios: planejamento familiar, pr-natal, imunizao, controle das Infeces Sexualmente Transmissveis (IST) e AIDS, acompanhamento de diabticos e hipertensos, preveno do cncer crvico-uterino, acompanhamento do crescimento e desenvolvimento de crianas, teste do pezinho, bolsa famlia, Ateno Integral a Doenas Prevalentes na Infncia (AIDPI), visitas domiciliares, atividade em Sade Bucal e atividades educativas. Em Alagoinhas trabalham 185 Agentes Comunitrios de Sade, atuando no PSF e no PACS. O PACS, com uma cobertura de cerca de 60% da populao no coberta pelo Programa da Sade de Famlia, um programa coordenado por dois enfermeiros e conta com sessenta e seis ACS distribudos nos diversos bairros da zona rural e urbana. Os usurios desses bairros e daquelas reas no cobertas pelo PACS/PSF so referenciados para atendimento, no Centro de Sade Parque Floresta.

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Gesto plena do sistema municipal gere todo o sistema municipal, incluindo a gesto sobre os prestadores de servios de sade vinculados ao SUS, independente da sua natureza jurdica ou nvel de complexidade, exercendo o comando nico (NOB-SUS 1996; NOAS-SUS 01/02)

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No Centro de Sade, acima referido, so oferecidos atendimentos e servios mdicos, de enfermagem, de sade bucal (populao coberta pelo PACS e para aquela sem cobertura do PACS/PSF), de pediatria, acompanhamento e tratamento de tuberculose e hansenase, servio de referncia para diabticos e hipertensos e imunizao para todo o municpio. Funciona, tambm, o Servio de Ateno Especializada (SAE), como referncia para os portadores de IST/AIDS, e ainda os servios de infectologia e pneumologia. A mdia complexidade ofertada em unidades ambulatoriais e hospitalares municipais, pblicas ou conveniadas com o SUS. Compreende aes bsicas de internamento nas especialidades de clnica mdica, pediatria, obstetrcia e cirurgia; urgncia, emergncia e atendimento em traumo-ortopedia. No Centro de Ateno Especializada (CAE) so referenciados os problemas de mdia complexidade, sendo prestados servios de dermatologia, cardiologia, mastologia, otorrinolaringologia, gastroenterologia, pneumologia, angiologia; alm de pequenas cirurgias, emisso de autorizao de internaes hospitalares e realizao de exames complementares. Foram estabelecidos convnios com entidades privadas, para as aes de mdia complexidade de que o sistema municipal no dispe. As emergncias e as cirurgias ortopdicas eletivas so realizadas pela rede privada contratada. As urgncias e emergncias clnicas, peditricas e cirrgicas so encaminhadas para o Hospital Regional Dantas Bio (HRDB), unidade sob a responsabilidade do Estado, e que se encontra em precrias condies de funcionamento, com suas instalaes fsicas e equipamentos necessitando de manuteno, e inexistncia de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). O Servio de Atendimento Mvel de Urgncias (SAMU) foi implantado em Alagoinhas, em setembro de 2004. Em regime de planto, diariamente, presta assistncia pr-

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hospitalar e leva os usurios para hospital de suporte no prprio municpio e, se necessrio, para outra cidade. Das aes de alta complexidade apenas so disponveis as de terapia renal substitutiva, outras necessidades como UTI, oncologia, cirurgia e exames complementares de alta complexidade (tomografia, ressonncia, sintilografia) so referenciadas para Salvador. As aes de vigilncia sade so desenvolvidas pelas equipes tcnicas da Vigilncia Sanitria e da Vigilncia Epidemiolgica. Tambm atuam no municpio vigilantes locais de sade, que implementam aes de combate a dengue e outras endemias. Na Maternidade Municipal so realizados os atendimentos de: emergncia na obstetrcia, ambulatrio de pr-natal de alto risco, partos normais e cesarianos, laqueaduras, alm de exames complementares; os servios do Laboratrio de Exames Clnicos Municipal, que oferece a maior parte dos exames necessrios a um municpio em gesto plena, alm do Centro de Ateno Psicossocial (CAPS), que, com uma equipe multiprofissional, composta por psiquiatra, enfermeira, psiclogo, assistente social, terapeuta ocupacional e auxiliar de enfermagem, realiza o servio de