Discussão Sobre a Matéria Celeste Em Aristóteles

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Discussão sobre a Matéria Celeste em AristótelesResumo: O objetivo deste artigo é discutir algumas questões relativas à concepção aristotélica sobre a matéria celeste, ou seja, discutir a concepção aristotélica do éter, o primeiro corpo: puro, eterno, inalterável e incorruptível. A teoria do éter de Aristóteles desempenhou importante papel em sua cosmologia, sustentan-do a sua concepção de um mundo eterno e sempre idêntico a si mesmo.Palavras-chave: Aristóteles. Cosmologia. Éter. Eternidade do mundo. Primeiro motor.Abstract: This paper intends to discuss some questions concerning the Aristotelian conception of celestial matter, which means to discuss the notion of aether or first body: pure, eternal, unchangeable and incor-ruptible. The Aristotle’s theory of aether rules a relevant part in his cosmology, holding a conception of an eternal world, always identical to itself.Key-words: Aristotle. Cosmology. Aether. Eternity of the world. First mover.

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  • Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriands Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (eds

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 2, p. 359-373, jul.-dez. 2007.

    CDD: 185

    Discusso sobre a Matria Celeste em Aristteles1 FTIMA REGINA RODRIGUES VORA Departamento de Filosofia Universidade Estadual de Campinas CAMPINAS, SP

    [email protected] Resumo: O objetivo deste artigo discutir algumas questes relativas concepo aristotlica sobre a matria celeste, ou seja, discutir a concepo aristotlica do ter, o primeiro corpo: puro, eterno, inaltervel e incorruptvel. A teoria do ter de Aristteles desempenhou importante papel em sua cosmologia, sustentan-do a sua concepo de um mundo eterno e sempre idntico a si mesmo. Palavras-chave: Aristteles. Cosmologia. ter. Eternidade do mundo. Primeiro motor. Abstract: This paper intends to discuss some questions concerning the Aristotelian conception of celestial matter, which means to discuss the notion of aether or first body: pure, eternal, unchangeable and incor-ruptible. The Aristotles theory of aether rules a relevant part in his cosmology, holding a conception of an eternal world, always identical to itself. Key-words: Aristotle. Cosmology. Aether. Eternity of the world. First mover.

    Este texto trata da concepo aristotlica da matria celeste, tam-bm denominada ter, o primeiro corpo, que tem entre seus atributos a pureza, a eternidade, a inalterabilidade e a incorruptibilidade. A anlise empreendida neste artigo baseia-se nas teses defendidas por Aristteles

    1 Este trabalho resultou da pesquisa apoiada pelo CNPq (Bolsa de produtivi-

    dade de Pesquisa com o projeto Natureza e Movimento: estudo da fsica e da cosmologia aristotlicas e suas recepes na Antigidade Tardia) e FAPESP (Projeto Temtico intitulado: A Filosofia de Aristteles, proc. N 05/58322-7). Agradeo imensamente a Mrcio Damin Custdio e Tadeu Verza pelos comen-trios, crticas e sugestes que foram fundamentais na verso final deste artigo.

  • Ftima Regina Rodrigues vora

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    no De Caelo, especialmente I, 2-4. O ter participa, em Aristteles, da concepo de um mundo eterno e sempre idntico a si mesmo. Trata-se de um mundo auto-suficiente, estruturado em duas esferas concntricas; a interna a Terra, fixada no centro de uma segunda esfera, vasta, porm finita, em rotao e que leva consigo as estrelas fixas. As duas esferas di-videm o mundo em duas regies distintas, a terrestre e a celeste, ocupa-das por entes distintos e governadas por leis distintas.

    Todos os corpos que compem o mundo, segundo Aristteles, so ou simples ou compostos de corpos simples, entendendo por sim-ples os corpos que possuem um princpio nico de movimento em suas prprias naturezas (De Caelo, I, 2, 268b 27-28). O movimento dos corpos simples tambm deve ser simples, e os nicos movimentos sim-ples so os retilneos (para cima e para baixo) e o circular, pois somente estes percorrem as nicas magnitudes geometricamente simples: a reta e o crculo. As coisas que pertencem regio terrestre so compostas dos quatro elementos (terra, gua, ar e fogo, ou de uma combinao deles) e se movem naturalmente com movimento retilneo, uns para cima (para longe do centro), outros para baixo (em direo ao centro). O movimen-to natural dos corpos compostos por mais de um elemento corresponde quele do elemento preponderante (De Caelo, IV, 4, 311b 5-15). Aristte-les reconhece, entretanto, que pela violncia, ou seja, pela aplicao de um esforo exterior, os corpos simples possam mover-se com o movi-mento de outros e diferentes corpos, mas pela natureza isto impossvel, dado que um movimento simples pertence naturalmente a cada corpo simples (De Caelo, I, 2, 269 7-9).

    Alm dos quatro elementos terrestres h um quinto que no nem leve nem pesado, cujo movimento natural a rotao, e do qual so feitos todos os corpos celestes: as estrelas, os planetas e as esferas crista-linas. A existncia deste quinto elemento concluda, necessariamente, a partir da aceitao das seguintes premissas: 1) todo movimento ou na-tural ou contrrio natureza, 2) o movimento que contra-natural para

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    um corpo natural para outro2, 3) uma coisa simples tem um contrrio simples, 4) movimentos simples pertencem naturalmente a corpos sim-ples e, 5) os movimentos simples so o retilneo (para cima e para baixo) e o circular. Uma vez que os quatro elementos terrestres movem-se reti-lineamente, faz-se necessrio outro elemento do qual se diz mover-se circularmente, e que ser celeste: sendo o movimento circular no natural para os elementos terrestres, ele ser, conclui Aristteles, necessariamente natural para algum outro3, pois o movimento circular no poderia ser contra-natural nem para os corpos terrestres, nem para os celestes, pois se o corpo que se move contra-naturalmente em crculo fosse o fogo ou algum outro elemento [terrestre], sua locomoo natural seria contrria ao movimento circular. Mas uma coisa simples tem um contrrio simples, e os movimentos para cima e o para baixo so [sempre] contrrios um ao outro ... Mas se o corpo movido contra-naturalmente em um crculo fos-se algum outro corpo, ento algum outro movimento pertenceria a ele naturalmente. Mas isto impossvel; pois se ele fosse um movimento para cima aquele corpo seria o fogo ou o ar, enquanto que se fosse um movimento para baixo seria gua ou terra (ARIST., De Caelo, I, 2, 269a 12-18). Ademais, se o movimento circular o deslocamento natural para alguma coisa e percorre uma magnitude geometricamente simples, est claro que h entre os corpos simples e primeiros algum que se move na-turalmente em crculo, como faz o fogo para cima e a terra para baixo (De Caelo, I, 2, 269a 31-269b 6). Assim, de acordo com Aristteles, h que se convencer da existncia de algo alm dos corpos terrestres, algum ou-tro corpo diferente e separado, de uma natureza tanto superior quanto

    2 Como o caso do movimento para cima e do movimento para baixo: que

    natural e contra-natural para o fogo e para a terra, respectivamente (ARIST, De Caelo, I, 2, 269a 12-3).

    3 Ver: De Caelo, I, 2, 269a 12-3.

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    mais afastada est do mundo sublunar. Este corpo de natureza superior composto pelo quinto elemento e preenche toda a regio celeste.4

    A expresso natureza superior aplicada aos corpos celestes, refe-re-se superioridade do movimento circular em relao ao movimento natural retilneo dos corpos terrestres. A superioridade sustentada pela afirmao de que o crculo pertence classe das coisas perfeitas, diferen-temente da reta: Com efeito, o perfeito , por natureza, anterior ao imper-feito. Ora, o crculo pertence classe das coisas perfeitas, enquanto que a linha reta no , em nenhum caso, perfeita (De Caelo, I, 2 269 19-21).5 Se o crculo perfeito, tambm perfeito ser o movimento circular, uma vez que o movimento que ocorre por meio de uma linha perfeita , necessa-riamente, perfeito. Admitindo-se o movimento circular como perfeito, admite-se conjuntamente que ele anterior ao movimento retilneo; e novamente, tudo que dito deste movimento tambm dito do corpo simples que se move naturalmente com tal movimento, ou seja, o ter, alm de superior, ser tambm anterior aos elementos terrestres.6

    Parece [diz Aristteles] que o nome do primeiro corpo tem sido transmiti-do at os nossos dias desde o tempo dos antigos que alimentavam concep-es idnticas quelas que ns professamos [...] Eles acreditavam que o primeiro corpo era diferente da terra, do fogo, do ar e da gua, e denomina-ram ter o lugar mais alto, e lhes deram este nome porque ocorre sem-pre na eternidade inteira. (ARIST., De Caelo, I, 3, 270 b 16-24)

    4 Eles acreditavam que o primeiro corpo era diferente da terra, do fogo, do

    ar e da gua, e denominaram ter o lugar mais alto, e lhes deram este nome porque ocorre sempre na eternidade inteira (De Caelo, I, 3, 270b 16-24).

    5 No so perfeitas, com efeito, nem a linha reta infinita pois ela deveria ter um limite e uma extremidade , nem qualquer linha reta finita pois todas tm alguma coisa para fora, pois que se pode prolongar qualquer linha reta (De Caelo, I, 2 269 21-25).

    6 O movimento circular superior ao movimento retilneo e o movimento retilneo prprio dos corpos simples o fogo, com efeito, move-se em linha reta para cima, e a terra para baixo, em direo ao centro , necessrio que o movimento circular seja prprio, ele tambm, de um corpo simples (De Caelo, I, 2 269 25-30).

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    Supondo-se, ento, que os corpos celestes movem-se circularmen-te, no podem ser nem leves, nem pesados; se possussem pesos, mover-se-iam para o centro do mundo e, se fossem leves, mover-se-iam para cima.7 Os termos gravidade e leveza designam, respectivamente, o que naturalmente se move para o centro e o que naturalmente se move para a periferia do mundo (De Caelo, I, 3, 269b 26-30). A regio celeste, nem leve nem pesada, tambm no est sujeita a outros pares de opostos que se lhe poderia sugerir: a gerao e a corrupo, o aumento e a dimi-nuio, e apenas a ausncia de contrariedade nos movimentos circulares, inferida por Aristteles em De Caelo, I, d razoabilidade sua no atribui-o desses pares ao quinto elemento8.

    H duas razes para que o movimento circular seja isento de con-trariedade. Em primeiro lugar, Aristteles sustenta que o movimento retilneo no pode ser considerado o par contrrio ao circular, porque os movimentos retilneos so contrrios entre si, em virtude do lugar, pois o acima e o abaixo so diferenas e contrariedades de lugar (De Caelo, I, 4,

    7 Os corpos que se movem em um crculo no podem possuir peso ou le-

    veza. Pois no podem, com efeito, se mover nem naturalmente nem contra-naturalmente para ou a partir do centro. Pois, primeiro, a locomoo em linha reta no pertence a ele naturalmente: porque h um movimento para cada corpo simples, e conseqentemente, se ele se movesse naturalmente em linha reta seria idntico a um dos corpos que se move deste modo. Segundo, supondo que ele se move contrrio natureza: ento, se o movimento contra-natural para baixo, o movimento para cima seria natural; mas, se o movimento contra-natural for para cima, ento o movimento para baixo seria natural. Pois temos que no caso dos movimentos contrrios, se um contra-natural o outro natural (De Caelo, I, 3, 269b 30-270 3).

    8 Tudo aquilo que vem a ser, assim como tudo que se corrompe, vem a ser, ou se corrompe, ou a partir dos contrrios ou nos contrrios e em seus interme-dirios. E os intermedirios so a partir dos contrrios, por exemplo: as cores so a partir do branco e do negro; de modo que tudo o que vem a ser por natureza ou contrrio ou a partir de um contrrio (Fsica, I, 5, 188b 21-16). Ver tambm: Fsica, I, 7, 191a 5; De Caelo I, 3, 270 12-22.

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    271 3-5). Em segundo, afirma que movimentos contrrios implicam des-tinos contrrios, tal que o movimento retilneo do ponto A para o ponto B, distantes um do outro, contrrio ao movimento retilneo de B para A. O movimento de A para B ao longo de uma linha reta nico e h uma nica linha reta que une os dois pontos. O mesmo no ocorre com o movimento circular de A para B e de B para A, uma vez que so infinitas as possibilidades de movimentos circulares entre dois pontos A e B quaisquer, pois so infinitas as linhas circulares que podem ligar tais pontos. Ademais, mesmo que se suponha que, dado um crculo completo de dimetro EF, o movimento circular do ponto E at o ponto F, atra-vs do semicrculo superior H, fosse contrrio ao movimento circular de F para E atravs do semicrculo inferior G, de modo algum se segue que o movimento reverso no crculo completo seja contrrio (De Caelo, I, 4, 271a 17-19). Tambm no so contrrios os movimentos de A para B e de A para C, sobre um mesmo crculo, uma vez que movimentos contrrios implicam em destinos contrrios, o que no ocorre neste caso. Finalmente, conclui Aristteles, tambm no so contrrios dois movi-mentos circulares em direes opostas em torno de um mesmo crculo, uma vez que um deles seria vo, pois por meio de ambos se chegaria ao mesmo ponto, embora seguindo ordem inversa.9 Portanto, se no h nenhum movimento natural contrrio ao movimento circular ento no h nada que seja contrrio quilo cujo movimento natural no tem con-trrio. Mas, se o ter no tem contrrios, ele no pode estar sujeito ge-rao e corrupo, visto que tudo o que vem a ser por natureza, assim

    9 Alm disso, necessrio que o que se move circularmente, seja qual for o

    ponto de partida, chegue a todos os lugares contrrios e as contrariedades de lugares so o acima e o abaixo, o adiante e o atrs, direita e esquerda e a contrariedade do movimento existe segundo as contrariedades de lugares. Mas, se estes forem iguais, no haver mais movimento (De Caelo, I, 4, 271a 23-28).

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    como tudo que se corrompe, vem a ser, ou se corrompe, ou a partir dos contrrios, ou nos contrrios, na presena de algum subjacente10.

    Se h uma inalterabilidade do mundo celeste ento a ordem deste mundo celeste eterna. Afirma Aristteles no De Caelo (283b 26-30):

    Portanto, o Cu, na sua totalidade, nem foi gerado, nem pode perecer, como certos filsofos dizem, mas ele um e eterno, no tendo princpio e fim de sua durao toda, mas, ao contrrio, contendo e compreenden-do em si mesmo o tempo infinito. (ARIST., De Caelo, II, 1, 283b 26-30)

    Em suma, tudo que compe a regio celeste, a saber, as estrelas, os

    planetas e as esferas cristalinas, ter, no sujeito contrariedade, conse-qentemente eterno, inaltervel e incorruptvel.

    Este, contudo, no o nico argumento de Aristteles a favor da eternidade do mundo e no se pode dizer a partir desta anlise que histo-ricamente a tese aristotlica da eternidade do mundo decorre de sua teo-ria do ter. Nosso objetivo, neste artigo, foi apenas mostrar que a tese da eternidade no De Caelo uma conseqncia necessria de algumas pre-missas anteriormente admitidas por Aristteles.

    Contudo, alm do mundo celeste ser eterno, tambm so eternos o movimento e o tempo. O movimento, sendo em algo, i.e, no mvel, a passagem da potncia para o ato, requer a admisso da pr-existncia do que est em movimento; e sua pr-existncia deve dar garantia de possi-bilidade do movimento que poder vir a ocorrer.11 Assim, necessrio que o mvel ou seja eterno e, portanto, tambm ser eterno o seu movi-

    10 Ver: ARIST., Fsica, I, 7, 191a 5. 11 Qualquer um admitir que necessariamente se move aquilo que capaz de

    mover-se com cada classe de movimento: por exemplo, que se altera o que capaz de alterar-se e que translada o que capaz de mudar de lugar. De modo que tem que existir algo capaz de gerar-se antes que se gere (Fsica, VIII, 1, 251a 10-5).

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    mento12, ou que eram inexistentes tanto o mvel quanto ao seu movi-mento, tendo, ento que se admitir que foram gerados em algum mo-mento.13 O termo gerao, na segunda opo enunciada, refere-se gerao de uma nova ousia, entendido como o ponto de convergncia de uma srie de movimentos qualitativos, quantitativos e locais teleologica-mente orientados. Deve-se, entretanto, recusar esta segunda opo, uma vez que ela leva a um regresso ao infinito: um movimento precederia a gerao de um corpo em potncia mvel, que por sua vez seria precedido por um mvel, ad infinitum.

    A prpria noo de tempo, implcita na argumentao exposta acima, tambm leva admisso de um mundo eterno: se na verdade o tempo o nmero do movimento ou de certo movimento , necessa-riamente o movimento ser eterno, se o tempo for eterno (Fsica, VIII, 1, 251b 12-4); e o tempo necessariamente eterno, pois impossvel que seja concebido ou que exista sem o agora, uma vez que o tempo consiste de agora, no sendo possvel captar no tempo nada alm, e o agora nada mais do que um intermedirio que contm necessariamente o co-meo do futuro e o fim do passado. Infere-se que sempre haver o tem-po antes e depois do agora e, portanto, que necessariamente sempre haver tempo (Fsica, VIII, 1, 251b 25), e, a fortiori, infere-se que sempre haver movimento.

    12 Existindo sempre as coisas que podem mover-se e as que podem mover,

    algumas vezes h um primeiro movente e um movido e outras vezes nada seno o repouso, e este [o corpo em repouso] necessariamente tem que ter mudado antes: visto que tem que ter existido uma causa do repouso, j que o repouso a privao do movimento (Fsica, VIII, 1, 251a 25-8).

    13 Ento, se cada uma das coisas que podem mover-se foi gerada, necessa-riamente se produziu outra mudana e movimento anterior ao considerado, em virtude do qual foi gerado o que capaz de ser movido ou de mover (Fsica, VIII, 1, 251a 16-8).

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    Admitida a eternidade, passa-se inspeo de suas causas14 de dois modos: por meio das causas provveis e por meio das causas prxi-mas. Quanto s causas provveis, trata-se de relat-las ou list-las exaus-to.15 Quanto s causas prximas, h que se investigar a forma e a mat-ria; no que compete ao mundo celeste, o termo matria deve designar o quinto elemento: No que respeita s essncias naturais, porm eternas, diverso o tipo de explicao. Com efeito, algumas, certamente, no comportam matria, ou no comportam uma matria de tal e tal qualida-de, mas apenas uma matria capaz de se mover pelo lugar (Metafsica, VIII, 4, 1044b 3-8). A meno ao movimento local na passagem da Metaf-sica, por seu turno, pode ser interpretada com o auxlio do De Caelo, que afirma que os corpos celestes so naturalmente constitudos para se mo-verem circularmente em virtude de sua prpria natureza (De Caelo, II, 4, 284a 14-15).

    A expresso movimento local deve ser redefinida para tratar do movimento circular do quinto elemento. Para tanto, deve-se isentar a expresso de qualquer referncia a uma contrariedade no mundo celeste e deve ser justificada a partir de caractersticas especiais atribudas ao mo-vimento circular, ainda que a justificao seja apenas repetir que: todas as coisas cessam o movimento quando atingem seus lugares prprios, entretanto, para o corpo movido circularmente, o lugar de onde partiu

    14 Pois [segundo Aristteles] visto que o estudo em vista do conhecer, e

    visto que no julgamos conhecer cada coisa antes de apreendermos o porqu a respeito de cada uma (eis o que apreender a causa primeira), evidente que devemos fazer isso tambm no que concerne a gerao e corrupo e toda mu-dana natural, de tal modo que, conhecendo suas causas, tentemos reportar a elas cada um dos itens que se investigam (Fsica, II, 3, 194b 16-23).

    15 Por exemplo: Do homem, qual a causa enquanto matria? Seriam os sangues menstruais? E qual seria enquanto causa motora? Seria o esperma? E qual seria enquanto forma? O que era o ser? E qual seria como em vista do que? O acabamento. E certamente, ambas as ltimas so uma mesma coisa (Meta-fsica, VIII, 1044a 32-1044b 1).

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    idntico a aquele ao qual chegou (De Caelo, I, 9, 279a 33-279b 3). Em cer-to sentido, a esfera em rotao est em movimento, j que suas partes giram continuamente em torno de um centro, mas em outro sentido est em repouso, pois, uma vez que seu centro imvel, tomando-a como um todo, ela nunca sai do lugar,16 entendendo o termo lugar como o limite do corpo continente e o contorno do corpo contido.17Ademais, nada que seja eterno e incorruptvel est em potncia;18 ao contrrio, em ato, mas, segundo Aristteles, dizer que em ato no impede que tambm se diga que est em potncia em algum aspecto, por exemplo, em certa qua-lidade ou lugar, e isto no envolve contradio.19

    Admitido o movimento eterno do cu e admitido que este movi-mento circular, ento tambm h que se admitir uma causa motora, o

    16 Ver tambm Fsica, VIII, 9, 265b 1-5. 17 O todo est em certo sentido sempre em repouso e em outro continua-

    mente em movimento (Fsica, VIII, 9, 265b 10-15). 18 A atualidade anterior capacidade tambm de modo mais decisivo: pe-

    lo modo de ser, os eternos so anteriores aos corruptveis, e nenhum eterno em potncia. A explicao esta: toda capacidade ao mesmo tempo capacidade da contradio, pois aquilo que no capaz de ser o caso no pode se dar em nada, mas tudo aquilo que capaz pode no estar em atividade. Portanto, aquilo que capaz de ser pode tanto ser como tambm no ser; assim, a mesma coisa capaz de ser e de no ser. Mas aquilo que capaz de no ser pode no ser; e aquilo que pode no ser corruptvel, ou sem mais, ou em relao quilo mesmo pelo que se diz que pode no ser (ou pelo lugar, ou pela quantidade ou qualidade); e sem mais corruptvel aquilo que o em sua essncia (Metafsica, IX, 8, 1050b 6-15).

    19 Se h algo que seja movido eternamente, ele tampouco em potncia movido, a no ser de certo lugar para outro (nada impede que se d a matria para isso); por isso, o sol, as estrelas e o Cu inteiro sempre esto em atividade, e no de se temer que porventura parem como temiam os estudiosos da natu-reza. Tais coisas tampouco se cansam ao fazer isso [sc. estar em atividade]; pois, para eles, o movimento no (como para os corruptveis) concernente capa-cidade da contradio, como se lhes fosse penosa a continuidade do movimento. Pois a essncia causa disso na medida em que matria e capacidade, no na medida em que efetividade (Metafsica, IX, 8, 1050b 21-27).

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    que encerra uma dificuldade (Metafsica, XII, 7, 1072a 19-24): se tudo que movido movido por algo e todo motor, ao mover-se, move algo, ento, para o movimento eterno, haver uma srie infinita de causas (Metafsica, 994a 1-30). A dificuldade eliminada se no for necessrio que o movido seja sempre movido por algo que tambm esteja em movimento. Dito de outro modo, a regresso ao infinito, no que se refere s causas dos mo-vimentos eternos, no necessria, pois se o movimento eterno, ento necessariamente tem que haver algo eterno que se move primeiro, e o primeiro motor do movimento eterno ser eterno e imvel.20 Por conse-guinte, Aristteles pode afirmar:

    J que necessrio que haja continuamente um movimento, tem que ha-ver um primeiro motor que seja imvel, inclusive por acidente, se, como dissemos, tem que haver nas coisas um movimento incessante e incor-ruptvel, e se o mundo tem que permanecer em si mesmo e no mesmo, pois se o princpio permanece o mesmo, tambm o todo permanecer o mesmo, sendo contnuo em relao ao princpio. (Fsica VIII, 6, 259b 21-28)

    Argumentos semelhantes tambm so encontrados em Metafsica,

    XII, na explicao do movimento eterno dos astros atravs da introduo de uma hiptese necessria, a saber, o primeiro motor imvel, a causa final, o tlos do mundo: dado que aquilo que movido e propicia movi-mento intermedirio, h algo que propicia movimento sem ser movido, sendo uma essncia e uma atividade eterna (Metafsica, XII, 7, 1072a 24-26). A finalidade geral de todos os seres, de acordo com a tese aristo-tlica, o primeiro motor, que no s imvel, mas no sequer suscet-vel de movimento, j que ato puro, nada lhe falta, e nele no h nada em potncia. Porm, h que se esclarecer como o primeiro motor, no-suscetvel de movimento, governa o movimento eterno dos corpos celes-tes e o devir:

    20 Fsica, VIII, 6, 258b10.

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    Aquilo que desejvel e aquilo que suscetvel de ser pensado: propiciam movimento sem serem movidos. As primeiras entre essas coisas so as mesmas. De fato, aquilo que aparece como belo apetecvel, mas o obje-to do querer, primeiramente, aquilo que realmente belo. Desejamo-lo porque nos parece ser belo, em vez de parecer ser belo porque desejamo-lo [...] Assim, ele propicia movimento na medida em que amado, mas, por meio de algo que movido, move as demais coisas. (Metafsica, XII, 7, 1072a 26-1072b 3)

    A passagem sugere que o primeiro motor propicia o movimento

    na medida em que amado, desejado, por todos os entes do mundo. Po-rm, tal compreenso do modo pelo qual o primeiro motor cria outra dificuldade, a saber, entender por que esse desejo no faz com que os corpos o imitem e permaneam imveis. Eis uma hiptese interpretativa que responde a dificuldade: a totalidade dos entes no deseja a imobilida-de em seu estado atual, em que realiza parcialmente sua potncia, mas deseja o ato puro, a perfeio do primeiro motor. Tal desejo faz com que os corpos atualizem as suas potncias e, conseqentemente, movam-se, j que o movimento a transio da potncia para o ato. Esta hiptese en-contra apoio textual na seguinte passagem:

    Assim, pelo que foi dito, evidente que h uma essncia eterna, no-suscetvel de movimento e separada das coisas sensveis. Tambm est provado que no possvel que tal essncia possua grandeza, pois ela indivisvel e desprovida de partes (de fato, ela propicia movimento por um tempo infinito, mas nenhuma coisa finita possui capacidade infinita; dado que qualquer grandeza ou infinita ou finita, por isso, ela no pode-ria ter uma grandeza finita, nem uma grandeza infinita, porque, em geral, no h nenhuma grandeza infinita). Alm disso, est provado que ela no suscetvel a modificaes e alteraes, pois todos os demais movimentos so posteriores ao movimento local. Assim, evidente porque essas coi-sas so desse modo. (Metafsica, XII, 7, 1073 3-14, grifo meu)

    A passagem autoriza que se entenda que o mundo celeste move-se

    atrado pelo motor imvel. Os astros incorruptveis realizam um nico movimento, o mais perfeito de todos, isto , o movimento circular, aque-le que no tem comeo nem fim. O mundo sublunar e as coisas terrestres,

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    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 2, p. 359-373, jul.-dez. 2007.

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    sujeitas a gerao e corrupo, aspiram incorruptibilidade, regularidade perfeita e atividade contnua do mundo celeste, uma vez que esto sem-pre em atividade e tm o movimento em si mesmo e por si mesmo (Meta-fsica, IX, 8, 1050b 28). O mundo celeste, composto de ter, atua como se fosse o motor do mundo sublunar, mas no como um motor perfeito, j que se move circularmente. Porm, o mundo celeste, e, portanto, indire-tamente o mundo sublunar, tem como princpio o primeiro entre os en-tes, o no-suscetvel de movimento em si mesmo e por acidente, o que promove o movimento primeiro e eterno, o que nico.

    Torna-se, ento, explcito que a natureza dos astros eterna, sendo uma essncia, e o que move eterno e anterior ao que movido, e neces-sariamente essncia aquilo que anterior a uma essncia. Evidentemen-te, necessrio que exista a mesma quantidade de essncias eternas em suas naturezas e, em si mesmas, no-suscetveis de movimento e despro-vidas de grandeza, pelas causas antes mencionadas (Metafsica 1073 23-1073b 1). Cumpre-se o itinerrio proposto: a teoria do ter e a doutrina da eternidade do mundo encontram-se explicitamente relacionadas em Aris-tteles.

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