Discutindo o Conceito de Relativismo Cultural Abrangências e Limites

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DISCUTINDO O CONCEITO DE RELATIVISMO CULTURAL: ABRANGÊNCIAS E LIMITES DISCUTER LE CONCEPT DU RELATIVISME CULTUREL: LES PORTEES ET LES LIMITES Lídia Maria Pires Soares Cardel 1 Universidade Federal da Bahia - UFBA RESUMO: Neste artigo, propomos discutir a instrumentalização conceitual do relativismo cultural no âmbito do pensamento antropológico contemporâneo. No sentido epistemológico, objetivamos estabelecer as balizas e as abrangências deste instrumento teórico-analítico na produção etnográfica, tendo como questão de fundo o papel ético do trabalho do campo e da escrita etnográfica enquanto produções científicas. Palavras-chave: relativismo cultural; ética; etnografia. RÉSUMÉ: Dans cet article, nous nous proposons de discuter l'instrumentalisation conceptuelle du relativisme culturel au sein de la pensée contemporaine anthropologique. Dans le sens épistémologique, le but principal c'est établir les objectifs et les champs de cet instrument théorique et analytique dans la production ethnographique ayant comme toile de fond la question du rôle éthique du travail de terrain et de l'écriture ethnographique alors que une production scientifique. Mots-clés: relativisme culturel, éthique, ethnographie. 1 . Professora Associada do departamento de Sociologia (UFBA), membro permanente da Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFBA) e da Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade (UFBA), pesquisadora convidada da Université de Strasbourg (França) e Coordenadora do Núcleo de Estudos Ambientais e Rurais (NUCLEAR-UFBA). E-mail: [email protected]

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Discutindo o Conceito de Relativismo Cultural Abrangências e Limites

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  • DISCUTINDO O CONCEITO DE RELATIVISMO CULTURAL: ABRANGNCIAS E LIMITES DISCUTER LE CONCEPT DU RELATIVISME CULTUREL:

    LES PORTEES ET LES LIMITES

    Ldia Maria Pires Soares Cardel1

    Universidade Federal da Bahia - UFBA

    RESUMO: Neste artigo, propomos discutir a instrumentalizao conceitual do relativismo cultural no mbito do pensamento antropolgico contemporneo. No sentido epistemolgico, objetivamos estabelecer as balizas e as abrangncias deste instrumento terico-analtico na produo etnogrfica, tendo como questo de fundo o papel tico do trabalho do campo e da escrita etnogrfica enquanto produes cientficas. Palavras-chave: relativismo cultural; tica; etnografia. RSUM: Dans cet article, nous nous proposons de discuter l'instrumentalisation conceptuelle du relativisme culturel au sein de la pense contemporaine anthropologique. Dans le sens pistmologique, le but principal c'est tablir les objectifs et les champs de cet instrument thorique et analytique dans la production ethnographique ayant comme toile de fond la question du rle thique du travail de terrain et de l'criture ethnographique alors que une production scientifique. Mots-cls: relativisme culturel, thique, ethnographie.

    1. Professora Associada do departamento de Sociologia (UFBA), membro permanente da Ps-Graduao em Cincias Sociais

    (UFBA) e da Ps-Graduao Multidisciplinar em Cultura e Sociedade (UFBA), pesquisadora convidada da Universit de

    Strasbourg (Frana) e Coordenadora do Ncleo de Estudos Ambientais e Rurais (NUCLEAR-UFBA). E-mail:

    [email protected]

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    Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.

    At meados da dcada de 90 do sculo

    XX, convencionou-se que a Antropologia, em

    contraposio s Cincias Sociais como um

    todo, vinha passando por um perodo de

    calmaria e sem grandes crises que abalassem

    suas estruturas empricas e tericas, nas quais

    estava solidamente alicerada: as teorias

    clssicas e o trabalho etnogrfico, mitificados e

    personalizados nos nomes fundadores que

    compunham, e ainda compem, a histria

    desta modalidade de pensamento cientfico.

    Sendo considerada ainda uma cincia do

    extico no mbito das cincias sociais, a

    Antropologia, mesmo passando por diversas

    crticas internas, advindas principalmente da

    linhagem dos antroplogos considerados ps-

    modernos, no conseguiu at o presente

    momento construir uma reflexo tica2

    aprofundada sobre um dos paradigmas mais

    centrais que lhe servem de alicerce para a

    compreenso da alteridade.

    Ao identificarmos as estruturas tericas

    da cincia antropolgica, observamos que esta

    permanece com a sua epistemologia

    considerada clssica e, portanto, quase

    inaltervel, calcada numa discusso inequvoca

    da unidade biolgica e da diversidade cultural

    da humanidade. Estamos em pleno sculo XXI,

    e nossa cincia ainda se baseia totalmente nas

    descobertas feitas pelos nossos antepassados.

    Impossvel negar a importncia de

    Durkheim, Mauss, Boas, Weber, Marx,

    Malinowski e tantos outros clssicos para a

    2. Seguirei aqui a concepo Kantiana sobre a concepo

    de tica. Segundo Kant, ns somos seres naturais e

    morais ao mesmo tempo, e a nossa verdadeira liberdade

    s poder ser construda por meio do dever intrassocial.

    Nesta concepo, Kant afirma que, no reino da natureza,

    impera a razo terica ou especulativa e, no reino

    sociocultural (do humano), prevalece a razo prtica,

    onde a liberdade construda tendo como parmetro, no

    a volio individual, mas a liberdade coletiva

    estabelecida por normas e fins morais. (Ver Chau, 2000)

    consolidao do que eles mesmos chamaram

    de uma nova rea de conhecimento. As

    Cincias Sociais nasceram jovens pelas mos

    destes grandes pensadores, e agora

    envelhecem nas nossas, sem que possamos

    acelerar a contento o seu processo de

    transformao e amadurecimento. Parece-nos

    que esquecemos o recado dado pelos criadores.

    Eles esperavam que seus seguidores ajudassem

    a consolidar uma Cincia com o mesmo mpeto

    criativo e inovador com que eles a criaram; e

    ns, ao l-los e interpret-los, ainda nos

    debatemos com reas obscuras,

    principalmente no que concerne s questes

    terico-metodolgicas e suas aplicabilidades

    em uma prxis cientfica.

    No h dvida de que os clssicos

    pensadores e fundadores das Cincias Sociais

    permanecero no nosso imaginrio e nas

    nossas produes cientficas, pois suas obras

    so fonte permanente de dilogo

    epistemolgico. Penso que esta realidade a

    distintividade das Cincias Humanas, mas, por

    outro lado, o que devemos mudar, inovar,

    transformar, ou melhor, quais paradigmas

    podem ser abandonados ou transformados sem

    causar prejuzo nossa identidade cientfica?

    Entendo que esta busca est intrinsecamente

    ligada ao processo histrico das Cincias

    Sociais, que, no momento da sua consolidao

    enquanto um campo acadmico, dividiu-se em

    subreas disciplinares, como a Sociologia, a

    Antropologia e as Cincias Polticas. E, dentro

    dessa subdiviso, a Antropologia aferrou-se na

    busca pela compreenso do outro, ou seja, na

    investigao das culturas distantes, no apenas

    e necessariamente sob a tica espacial, mas

    principalmente sob o ponto de vista

    cosmolgico. E, ao pensar este outro, forjou

    um paradigma que lhe permitiria compreender

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    Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.

    a lgica simblica deste diferente sem encaix-

    lo em estruturas sociais preexistentes e

    preconcebidas. Todavia, esse movimento s foi

    possvel quando o Homem comeou a olhar

    para si mesmo num perodo especfico da

    histria ocidental.

    Aps o perodo Renascentista, quando o

    pensamento ocidental iniciou o seu processo

    de secularizao, a Filosofia Social, matriz do

    pensamento das cincias humanas, promoveu

    o Homem como o objeto sine qua non da

    dvida metdica e da observao laica e

    criativa. Tornar-se objeto do seu prprio

    pensamento racional e cientfico foi uma das

    maiores revolues efetuada pelo Homem da

    sociedade ocidental; e a Antropologia

    alimentou-se do produto desta revoluo para

    se consolidar e se firmar dentro deste

    pensamento cientfico. No entanto, quando no

    perodo Moderno este pensamento foi taxado

    negativamente de positivista, a Antropologia

    passou a questionar a lgica cientfica3 atravs

    de um conceito amplo e inovador, qual seja, o

    Relativismo Cultural, que a fez saltar do

    paradigma evolucionista e biologicista para o

    paradigma funcionalista e culturalista.

    Relativizar foi a maneira encontrada por

    ns (uma categoria ampla, que engloba todos

    que se consideram herdeiros de uma forma

    ocidental de viver e de pensar), para

    construirmos o outro (tambm uma categoria

    ampla, que reifica qualquer ser humano

    estranho s normas e regras ocidentais), e nos

    separarmos dele definitivamente, como faz

    qualquer cientista-sujeito com seu objeto de

    pesquisa.

    3. O pensamento estruturalista de Claude Lvi-Strauss foi

    o mais incisivo. Para uma viso mais pertinente, ver as

    seguintes obras deste autor: Antropologia Estrutural,

    vol.1 e vol.2 (2008).

    Entretanto, no apenas dessa forma

    que este conceito est sendo apropriado nesse

    nosso mundo Contemporneo. A linguagem

    miditica estabelecida pela mundializao do

    capital real e simblico adaptou-se forma

    mais rasteira e cruel de relativismo, criando

    regras politicamente corretas, tanto para o

    mundo cotidiano como para o universo

    cientfico, que nada mais so do que o mais

    perverso desrespeito pelas reais diferenas e

    similitudes socioculturais e individuais

    existentes. Esta vulgarizao de um

    pensamento cientificamente slido, criada pela

    banalizao e pela incompreenso com relao

    epistemologia cunhada pelo historicismo

    alemo e pelo funcionalismo francs

    apresenta-se hoje, para a cincia culturalista,

    como o mais profundo abismo entre um saber

    cientfico e uma tica humanista.

    Neste universo ps-paradigmtico,

    marcado pela crise de representao e de

    fragmentao do objeto em estudo, a

    Antropologia apega-se cada vez mais sua

    base metodolgica arraigada ao trabalho

    etnogrfico, uma das fontes de distino frente

    s suas cincias-irms. H um certo consenso

    atual de que a viso de mundo de um ourives

    urgentemente necessria: e precisamente

    neste ponto que residem no momento a fora e

    a atratividade da Antropologia

    cultural(MARCUS; FISCHER, 1986, p. 6).

    Como tambm que

    [...] as inovaes contemporneas no texto da antropologia, ocasionada pela mesma crise de representao que afeta outras disciplinas, a esto levando em direo a uma sensibilidade histrica e poltica de um refinamento sem precedentes, que est transformando a maneira como a diversidade cultural retratada (idem, 1986).

    Esta viso otimista que marca o incio do

    movimento ps-moderno na Antropologia deu,

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    Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.

    sem sombra de dvida, um novo lan para esta

    disciplina. Juntamente com esse movimento

    interno, a Antropologia alcanou nos ltimos

    anos uma popularidade considervel entre a

    mdia de um modo geral, exatamente pela

    capacidade de relativizar e de contextualizar o

    diferente.

    Porm, esta imagem construda para e

    pela Antropologia, de uma cincia que reifica e

    normatiza o diferente, por meio de um

    processo de intensa fragmentao,

    preocupante. Vivemos numa ausncia de

    autoridade paradigmtica que pode, em algum

    momento, transformar-se numa ausncia de

    legitimidade do saber cientfico. Tentar

    compreender a fragmentao como um

    produto da diversidade cultural o objetivo

    fundante da dmarche antropolgica.

    Entretanto, fragmentar-se enquanto cincia

    identificando-se com o universo emprico do

    objeto estudado pode significar um retorno s

    amarras conservadoras que impedem o

    surgimento de novos paradigmas cientficos.

    Nesse momento, vale a pena ser feito o

    seguinte questionamento: at que ponto o

    relativismo cultural pode ajudar a

    Antropologia a compreender o

    desenvolvimento do Homem e da Humanidade

    enquanto um todo?

    Toda forma de pensamento cientfico traz

    no seu bojo uma relao de assimetria e

    hierarquia com o elemento desejado, enquanto

    um objeto de anlise. Sobrevm desta

    imponderabilidade as complicaes tericas e

    ticas que as cincias humanas encontram ao

    construrem seus paradigmas e suas

    epistemologias.

    Dan Sperber (1992), em sua discusso

    sobre as proposies lgicas que do base ao

    princpio do relativismo e dos problemas de

    ordem epistemolgica advindos da utilizao

    abusiva deste princpio pela Antropologia,

    vaticina:

    Que as crenas culturais sejam representacionais quase tautolgico; que sejam semiproposicionais est implcito, s vezes, mesmo explcito na maneira como os crentes as exprimem e comentam. Uma tal concepo acerca das crenas culturais rica em implicaes; apenas uma destas implicaes nos interessa aqui: o relativismo suprfluo [...] So os escritos dos antroplogos que alimentam o relativismo e, contudo nada revela melhor o seu carter errneo que a prpria atividade antropolgica (idem, p. 92-95).

    Esta afirmao inquietante. como se

    Sperber estivesse cometendo um infanticdio.

    Como abrir mo do relativismo sem destruir as

    bases constitutivas da moderna Antropologia?

    Por outro lado, como manter um conceito que

    em si mesmo carrega tantas contradies

    lgico-cientficas e tico-humanistas?

    Uma das questes que mais incomodam

    no relativismo o fato dele negar, a princpio, a

    possibilidade cientfica da compreenso das

    diferenas. Se cada universo cultural tem os

    seus prprios critrios de explicao racional e

    o seu prprio leque de metforas possveis,

    sem nenhum vnculo com leis universais, na

    prtica, o estudo etnogrfico torna-se incuo.

    Esta a ideia lanada por Rouanet (1993)

    em seu pertinente dilogo com Cardoso (1990)

    sobre a tica e o saber cientfico no mbito da

    Antropologia. O mal-estar causado pelo uso

    acriterioso do relativismo incentivou um

    frutfero debate entre ambos e produziu

    algumas propostas pertinentes sobre o papel

    do antroplogo frente ao seu objeto de

    pesquisa.

    Tendo como ponto central o problema da

    moralidade na Antropologia, frente a sua

    conhecida tradio relativista, Cardoso

    estabelece esta discusso criando espaos

    epistemolgicos diferenciados entre a

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    Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.

    Antropologia e a Filosofia. Desta forma, sente-

    se confortvel para afirmar que se para a

    Filosofia a questo fundamentar

    racionalmente uma tica universal, para o

    antroplogo ou cientista social como agir

    eticamente (1990, p. 28). Este jogo entre uma

    cincia que pensa e uma cincia que faz, um

    estratagema legtimo de uma cultura que

    privilegia o fazer, estabelece um vcuo no

    dialgico com a pretenso de colocar a filosofia

    e seu interlocutor no seu devido lugar.

    Pra corroborar a sua viso de que a tica

    para a Filosofia possui um foco diferente do da

    Antropologia, Cardoso lana mo da hiptese

    de H. Groenewold4, que separa as aes

    humanas em trs espaos distintos: a

    microsfera, o espao da famlia, do

    matrimnio e da vizinhana; a mesosfera, o

    espao da poltica nacional; e a macrosfera, o

    espao dos interesses vitais de toda a

    humanidade. Cada espao regulado por um

    nvel de interesses. Na microsfera, as regras e

    normas estabelecem a conduta entre os

    indivduos e os sexos distintos; na mesosfera,

    os interesses grupais estabelecem os princpios

    comunitrios; e na macrosfera, os princpios

    ticos universalistas se impem para a

    preservao da humanidade, como, por

    exemplo, a proteo dos ecossistemas e a

    regulamentao do uso da energia nuclear.

    Apenas nesta esfera, as aes no so

    passveis de relativizao.

    Tomando como referncia esta

    desarticulao das aes humanas em espaos

    sociais diferenciados, Cardoso encontra uma

    sada para a ao do antroplogo ao se apoiar

    na seguinte questo: No exatamente na

    micro e mesosfera que se encontra o objeto

    4. Especificamente a obra Science and Macro-ethicson a Finite Earth, comunicao feita no colquio internacional realizado na Pennsylvania State University,

    1971.

    primeiro do estudo antropolgico?5 Porm, o

    que Cardoso no leva em conta que estes

    espaos so realmente permeveis e

    intercambiveis. Ferindo a lgica

    argumentativa, prope uma fragmentao da

    ao humana em espaos sociais relativistas e

    espaos sociais universalistas, como se essa

    falha diviso terica pudesse resolver o

    paradoxo terico-emprico da Antropologia

    neste ponto que Rouanet contra-

    argumenta. Na sua perspectiva, obvio que as

    aes humanas tm que ser respeitadas e

    relativizadas. Contudo, existe um limite

    estabelecido por uma tica argumentativa

    que permeia todo o universo das aes

    humanas, sejam elas da micro, meso ou

    macrosfera.

    Segundo sua viso crtica, nem mesmo a

    Antropologia ps-moderna consegue se livrar

    do mais antigo dos fetiches da Antropologia

    (ROUANET, 1993, p. 257), mesmo lanando

    mo dos paradigmas da intersubjetividade, da

    polifonia e do enfoque dialgico. O que

    Rouanet observa de forma pertinente que os

    autores ps-modernos reificam o paradigma

    do relativismo atravs da aceitao tcita da

    existncia de uma incomensurabilidade entre o

    eu e o outro. Seguindo uma linha que exclui a

    moldura argumentativa da razo cientfica, o

    antroplogo ps-moderno

    jamais problematiza o que dito pelo informante, o que resulta numa atitude de extraordinria condescendncia... [e] est to ansioso em mostrar que no colonialista que se esquece de que a melhor maneira de tratar os homens

    5. Pois bem: se tomarmos como referncia essa separao das aes humanas em espaos distintos, ainda

    que articulados e articulveis, verificamos que

    precisamente na micro e mesosfera que a postura

    relativista, exercitada pelos antroplogos (naturalmente

    que mais na primeira esfera do que na segunda), mais se

    aplica e ganha consistncia terica na lgica da

    disciplina (CARDOSO, 1990, p. 28).

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    como iguais argumentar com eles [...] (ROUANET, 1993, p. 258).

    Com estes argumentos, Rouanet est

    perguntando a ns, antroplogos, tendo

    Cardoso como um interlocutor, onde a

    Antropologia se encaixa e como ela quer ser

    configurada no rol das Cincias Humanas. As

    ambiguidades que ele observa nas bases

    tericas e metodolgicas do pensamento

    antropolgico contemporneo fazem parte, a

    meu ver, das razes da Antropologia. A nossa

    cincia sempre teve um certo desprezo pelos

    limites explicativos da lgica racional, e esta

    viso crtica resultou em problemas

    relacionados s suas bases epistemolgicas.

    Por exemplo, a simples existncia da

    Antropologia enquanto um estudo do outro

    pressupe a falibilidade do pressuposto

    relativista, j que este pressuposto cria uma

    incomensurabilidade entre seres

    biologicamente (geneticamente) idnticos. Se a

    Antropologia se curvar apenas sobre as

    diferenas culturais e ignorar os avanos

    contemporneos dos estudos na rea da

    Gentica e da Etologia, sua existncia

    enquanto cincia ser legitimamente colocada

    em xeque.

    Entretanto, o que ainda mantm a

    validade da Antropologia enquanto um ramo

    do pensamento cientfico que, apesar dos

    antroplogos acreditarem na singularidade

    incondicional de cada cultura, todos, sem

    exceo, partem do princpio de que existem

    traos invariantes entre os homens. Um

    exemplo mximo a universalidade da

    estrutura comunicativa das culturas. A

    linguagem e a capacidade de comunicao so

    aspectos natos do Homo sapiens sapiens, e

    atravs desta capacidade que a Antropologia

    prope, sem ainda muita convico, um

    processo dialgico de conhecimento.

    A proposta de Rouanet, para que a

    Antropologia alcance um conhecimento vlido

    e objetivo, no pode ser considerada apenas

    como uma retrica de um representante de

    uma cincia que busca de forma obsessiva

    fundamentar racionalmente uma tica

    universal, como afirma Cardoso. A

    Antropologia necessita urgentemente se

    reafirmar como um pensamento cientfico, o

    que no significa que tenha que se curvar a

    dogmas preestabelecidos.

    O pensamento cientfico, por ser uma

    inveno e um produto histrico do Homem

    ocidental, impe uma forma especial de viso

    sobre a realidade que visa aumentar um tipo

    especfico de conhecimento e/ou melhorar a

    compreenso acerca dos fenmenos j

    conhecidos. Assim, a Antropologia, sendo parte

    integrante da lgica cientfica, possui um corpo

    epistemolgico e uma estrutura terico-

    metodolgica falvel e mutvel como qualquer

    conhecimento cientfico, e que no se coaduna

    com verdades preestabelecidas como as

    impingidas pelo princpio do relativismo

    cultural.

    Se como antroplogos invertermos o

    nosso foco de interesses e nos voltarmos para a

    Antropologia enquanto um conjunto de regras

    a serem analisadas, nos deparamos no

    somente com o problema do fazer cientfico,

    mas principalmente nos damos conta da

    dimenso tica, pouco discutida, embutida em

    uma cincia positivamente ambiciosa que se

    prope pensar qualquer grupamento humano.

    Neste movimento inverso, perguntas bsicas e

    simples de serem respondidas transformam-se

    em teoremas prontos a nos devorarem. O que

    significa para a Antropologia o direito de vida e

    de morte? O respeito e a equivalncia entre os

    gneros? A opo sexual dos indivduos? At

    onde vai sua tolerncia com a violncia social,

    sexual e moral embutidas em culturas

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    Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.

    teologicamente fundamentalistas? Deve o

    antroplogo, como um ser humano envolto em

    uma histria de vida, marcado pelo seu gnero,

    por sua classe e experincia sociocultural,

    expor seu ponto de vista outsider ao grupo que

    lhe serve de objeto de estudo?

    O estudo cientfico estabelece entre o

    sujeito detentor de um conhecimento e o

    objeto-sujeito deste conhecimento uma relao

    assimtrica. Mesmo para as Cincias

    Humanas, onde o objeto o prprio homem, e

    para a Antropologia em particular, onde o

    homem-objeto possui um conhecimento a ser

    decifrado pelo conhecimento maior, a

    assimetria de forma alguma superada.

    A crise de representao que atinge h

    algum tempo a Antropologia, atravs das vozes

    polifnicas dos ps-modernos, faz parte, como

    aponta Monteiro (1991), de uma ordem maior

    que atinge o modo de ser ocidental desde o

    final da dcada de 1960. A Cincia, como um

    produto desta ordem, no pde passar ao largo

    deste processo de desencantamento tpico de

    incio de sculo; de um ciclo que procura se

    fechar para a razo positivista, mas sem

    sucesso.

    A fragmentao em campos de saber

    estabelecida pelo formalismo positivista o seu

    prprio paradoxo e o seu ocaso. Disciplinas to

    prximas, como a Antropologia, a Psicologia, a

    Psicanlise e a Filosofia se afastaram, como

    aponta Sperber, muito mais por problemas

    ligados ao mtodo do que por problemas de

    ordem terica. A Etnografia, a base pulsante da

    Antropologia, permanece inquestionvel como

    uma disciplina, viva e agitada (SPERBER,

    1992:25), justamente por ser a nica forma

    conhecida e legtima de conhecer os grupos

    culturais. Da mesma forma, o ato psicanaltico

    permanece inabalvel atravs da eficcia da ab-

    reao6 como mtodo de cura. Como vemos, o

    arcabouo terico sofre um descompasso com

    as prticas investigativas em vrios campos das

    cincias contemporneas. Qui, porque as

    teorias fragmentam e as metodologias tratam

    de organizar estes fragmentos atravs de um

    todo interligado7. Assim sendo, visto que a

    Antropologia contempornea pretende

    estabelecer um processo dialgico entre grupos

    distintos, o relativismo apresenta-se como uma

    ferramenta empobrecedora do ponto de vista

    epistemolgico. Neste sentido, no basta

    compreender as estruturas sociais, as formas

    mentais e as teias de significado de um

    determinado grupo social, como nos aponta

    Geertz. necessrio que a Antropologia avance

    e busque compreender at que ponto as

    estruturas hierrquicas so convenientes para

    os indivduos que a elas esto submetidos; que

    visualize onde esto os pontos

    desestruturantes das culturas estudadas, e

    como e de que forma os indivduos que as

    compem pensam as mudanas; que

    questione, pela via argumentativa como sugere

    Rouanet, utilizando-se de valores eticamente

    universais, o direito e o poder das estruturas

    tradicionais sobre os indivduos e sobre as

    liberdades coletivas8.

    Em sntese, se o objeto de estudo da

    Antropologia so as vrias formas de

    organizao do gnero humano, tendo como

    objetivo ltimo a compreenso do Homem

    como uma categoria universal, nos deparamos

    com uma premissa maior, vlida para todo o

    pensamento cientfico: a defesa da vida

    6. Mtodo, alis, utilizado por vrias prticas religiosas.

    7. Por exemplo, para a Psicanlise, a prxis se volta para

    o indivduo, e para a Antropologia, a prxis foca-se na

    compreenso da organizao social de um determinado

    grupo.

    8. Como as estabelecidas pela Declarao Universal dos

    Direitos Humanos, adotadas pela Assembleia Geral das

    Naes Unidas, em 10 de dezembro de 1948.

  • 85 Discutindo o Conceito de Relativismo Cultural: abrangncias e limites

    Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.

    humana e da sua liberdade o limite para

    qualquer racionalidade lgico-cientfica. E

    para a Antropologia, este o limite para o

    exerccio do relativismo.

    Segato (1992), em sua instigante anlise

    sobre a racionalidade da Antropologia frente

    ao sagrado, aponta um outro limite no menos

    importante da prxis relativista: ela promove

    um perene desencantamento das reais

    diferenas existentes entre os grupos e os

    indivduos, e ainda retira do antroplogo a

    possibilidade do encantamento frente

    descoberta do inexplicvel, do que no

    passvel de ser analisado somente por uma

    lgica e est fora do universo cientfico, mas

    que parte integrante do universo humano,

    pois que est envolto mais do que nunca em

    uma tica humanista9.

    Neste ponto especfico, a Antropologia ps-

    moderna, apesar de manter a crena no

    relativismo, apresenta um enfoque mais

    confortvel para o antroplogo que se sente

    comprometido com seu objeto de estudo.

    Michael Taussig (1993), ao juntar em um

    mesmo momento etnogrfico o terror do ciclo

    da borracha e o processo de cura entre a

    populao da regio da Amaznia Colombiana,

    viveu intensamente suas experincias

    alucingenas durante seu perodo de trabalho

    de campo. Visando compreender o imaginrio

    desta populao sobre o espao da morte e

    9. Do meu ponto de vista, a compartimentalizao do campo simblico, esta anomalia humana universal, o

    que permite que sem renegar das nossas adeses, sejamos

    capazes de negociar e casar com o povo vizinho, ou de

    tornar-se antroplogo. So precisamente as brechas de

    inconsistncia entre os nossos mundos internos, parece-

    me, as portas e janelas que nos do acesso aos outros

    mundos, sejam eles tnicos ou histricos. Contudo, tanto

    o relativismo como os historicismos em voga soem

    projetar sobre as sociedades que abordam a mesma

    determinao monoltica que caracteriza a viso de

    mundo da qual partem. O resultado um antropologismo

    irrespirvel, descries inconcebveis [...] (SEGATO, 1992, p. 129).

    elaborar um contradiscurso violncia, este

    etngrafo ousou adentrar este espao atravs

    da participao efetiva nos rituais de cura e da

    ingesto do yag. O resultado desta experincia

    foi o encontro com um novo modo de

    representao retratado com maestria em sua

    obra Xamanismo, Colonialismo e o Homem

    Selvagem(1993).

    No desmerecendo a importncia deste

    processo de humanizao do antroplogo

    atravs de uma nova postura como etngrafo e

    como escritor, o que transparece na realidade

    que a corrente ps-moderna, ao potencializar a

    prxis relativista prpria forma do fazer

    cientfico, fez um grande bem aos

    antroplogos, mas pouco acrescentou

    Antropologia. O que ela conseguiu demonstrar

    que ns somos falveis, no temos

    neutralidade e possumos crenas, defeitos e

    mritos, como qualquer ser humano e como

    qualquer cientista, seja ele fsico, bilogo,

    socilogo ou antroplogo. Como afirma

    Caldeira (1988),

    a maioria das alternativas ps-modernas antropologia no se refere a discusses sobre o contexto poltico em que ela ocorre, ou s possibilidades crticas da antropologia em relao s culturas das sociedades do antroplogo ou s culturas do Terceiro Mundo que ela continua a estudar. As alternativas so basicamente textuais: refere-se a como encontrar uma nova maneira de escrever sobre culturas, uma maneira que incorpore no texto um pensamento e uma conscincia sobre seus procedimentos [grifos meus] (1988, p.140-141).

    Em suma, desconstroem a postura do

    antroplogo e o seu objeto, mas no discutem a

    essncia da Antropologia e sua diretriz

    cientfica.

    George Marcus (1994), um dos

    fundadores desta linha, ao fazer uma reviso

    crtica do movimento, afirma que o ceticismo

  • 86 Ldia Maria Pires Soares Cardel

    Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.

    excessivo e o relativismo paralisante

    aprisionaram a Antropologia em um campo de

    contnua fragmentao e produziram, como

    sintoma, uma confuso epistemolgica. E, mais

    ainda, na concepo de Geertz, produziram um

    conjunto de obras que falam muito mais dos

    seus autores do que dos objetos estudados.

    Apesar da proposta de uma fuso de

    modelos micos e ticos como uma

    possibilidade de traduo simultnea de

    culturas e formulao de epistemes

    alternativos, visando uma postura tica

    progressista, o que se observa que esta meta

    no foi alcanada em funo da recusa dos ps-

    modernos em pensarem a dinmica social e os

    anseios dos grupos estudados10. Contudo,

    estabelecer uma relao equilibrada entre o

    saber, o tico e o poltico no uma tarefa fcil.

    Um dos caminhos a ser tomado tentar ir alm

    da quebra do mito da neutralidade do

    investigador, desconstruindo tambm o mito

    da neutralidade etnogrfica. Ou seja, a

    Antropologia deve comear a tomar posturas

    mais explcitas quanto ao objetivo de seus

    estudos, assumindo publicamente, para o meio

    acadmico e para os vrios setores da

    sociedade civil, as consequncias polticas,

    ticas, econmicas e socioculturais causadas

    pelos estudos etnogrficos. Seus fundamentos

    tericos e epistemolgicos fazem parte do seu

    arcabouo cientfico e exercem pouco ou

    nenhum interesse em outros meios que no o

    acadmico. Entretanto, sua prtica

    estabelecida pelo trabalho etnogrfico bem

    visvel, e hoje est na mira de vrios grupos de

    10. O conceito de etnodesenvolvimento, sistematizado por

    Rodolfo Stavenhagem, defendido por Cardoso e

    retomado criticamente por Rouanet, parece ser uma sada

    digna para a Antropologia, quando esta se volta para uma

    anlise socioeconmica, por exemplo. Porm, devemos

    ter cuidado com o prefixo etno para que este no se torne

    um elemento vazio, utilizado to somente em discursos

    pseudopolitizados.

    poder, como, por exemplo, a mdia escrita e os

    meios de comunicao de massa. A

    Antropologia contempornea tem que se

    estruturar tambm fora dos muros da

    Academia, mas sem deixar de separar o joio do

    trigo.

    De uma forma geral, os crticos da

    Antropologia acusam-na de ser uma cincia

    conformista, avessa s transformaes sociais e

    ideologicamente passiva. O que existe nestas

    consideraes uma confuso sobre aqueles

    que personificam a Antropologia e a

    Antropologia em si. Uma cincia capaz de

    expor suas prprias mazelas no pode ser

    considerada fruto de um pensamento

    homogneo. E mais. Uma cincia que tem

    como principal objetivo compreender as

    diferenas est alm do que o positivismo da

    objetividade cientfica pode proporcionar. Ela

    nunca ir produzir equaes universalmente

    aceitas sobre a ao humana. E se,

    paradoxalmente, algum dia esta utopia se

    concretizar, ser o seu ocaso. A Antropologia

    a cincia da incompletude humana. Os dados

    etnogrficos, coletados de forma metdica,

    como pedaos espalhados de algo valioso,

    juntamente com a vocao da Antropologia

    para a interdisciplinaridade e

    transdisciplinaridade, efetivadas pela sua

    capacidade de interligar-se com qualquer rea

    do pensamento cientfico sem perder sua

    identidade, so suas molas mestras.

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